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Escritos à margem: a presença de escritores de periferia na cena literária contemporânea
Paulo Roberto Tonani do Patrocínio
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Sumário 1. Introdução 2. Literatura Marginal, uma literatura feita por minorias 3. O “cânone marginal” 3.1. Orestes Barbosa, um olhar sobre a cidade noturna 3.2. Antônio Fraga, o Mangue como abrigo 3.3. João Antônio, o jogo de transitar pela cidade 4. Hip-Hop e Literatura Marginal, por uma pedagogia própria 4.1. A presença do RAP na Literatura Marginal 5. Uma leitura de três casos e uma possibilidade 5.1. Ferréz 5.2. Allan Santos da Rosa 5.3. Sérgio Vaz 5.4. Marcelino Freire (uma possibilidade) 6. Entre os Marginais e os Intelectuais, uma leitura não conclusiva 7. Referências Bibliográficas
3
1.
Introdução
Inicio com uma cena:
Um homem – também poderia ser uma mulher; importa dizer que esse
personagem é marginalizado, e talvez negro, como quase todos os homens e mulheres
pobres marginalizados o são – transita de forma acanhada em uma superfície branca.
Em princípio sente um desconforto ao caminhar, o branco fere seus olhos e,
principalmente, não se sente seguro. Sabe que, para percorrer tal superfície com
maior familiaridade, necessita de códigos distintos, signos formulados por sujeitos
que se diferem dele e, principalmente, por instituições às quais não pertence. No
entanto, ao recordar que já havia estado ali inúmeras vezes acompanhando por um
guia, um condutor que feria o branco do ambiente com elementos negros – talvez tão
negros quanto a sua possível pele negra –, passa a sentir mais confiança. Além disso,
se agora está transitando sozinho pela superfície branca, sem a companhia do guia,
isso é resultante de sua própria vontade, de seu desejo declarado de também poder
selar a brancura de todo o espaço com os caracteres. Há uma diferença nessa nova
visita, sozinho, não necessita seguir o condutor sussurrando o que será estampado na
superfície. Mas, o personagem – devemos lembrar que ele talvez seja negro, mas é
certamente marginalizado – sabe que havia uma relação de troca com seu guia. Uma
dependência mútua. Por ser conhecedor dos signos necessários para a transformação
da superfície branca em um tecido discursivo, o condutor servia como porta-voz,
fazendo representar em complexos caracteres as angústias e desejos do nosso
personagem. Também dizer que esse nosso personagem está sozinho é, de certa
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forma, um equívoco. Lançando o olhar pela imensidão branca, ele percebe vultos
difusos, que transitam também de forma tímida. Vistos de longe, não é possível
identificar características de singularidade nos vultos. Nosso personagem, mesmo
forçando o olhar em busca de um foco mais revelador, só percebe que os vultos
também vagam sozinhos e são, em sua maioria, negros. Os vultos aos poucos
abandonam sua forma difusa e ganham contornos mais delimitados, possuindo
fisionomias próprias. Isto ocorre devido à progressiva aproximação que nosso
personagem realiza em direção aos vultos e vice-versa. Tal aproximação desencadeia
na constituição de um grupo coeso, e um observador distraído poderia dizer, sem
titubear, que o processo ocorreu como um fenômeno natural. No entanto, na
construção de um olhar mais apurado sobre o evento, será possível constatar que
negociações, acertos e discórdias, são travadas. Agora, em grupo, os vultos, que não
mais são vultos, mas, sim, sujeitos que buscam, cada qual a sua maneira e com os
mecanismos disponíveis, traçar com signos negros os seus caminhos em uma terra de
brancura plena. E, por mais que o resultado do ato de cravar tais elementos na
brancura – ato que podemos denominar de escrita – aponte para a potência criadora
do sujeito que o executou, ainda permanecem em grupo. E, dessa forma, percebemos
que não era o simples desejo de percorrer sozinhos a brancura de uma página em
branco o que motivou o abandono do guia, mas, sobretudo, a necessidade de produzir
seu próprio discurso.
A cena descrita acima tem sido encenada em nossa literária há pouco mais de
uma década. Desde o surpreendente sucesso de Cidade de Deus, de Paulo Lins,
publicado em 1997, diferentes autores residentes em bairros periféricos, favelas e
conjuntos habitacionais – em sua maioria autores negros – buscam expressar em
forma de criação literária, seja em prosa ou poesia, o cotidiano de uma expressiva
camada de nossa sociedade: as populações marginalizadas. A presença desses autores
em nossa série literária não pode ser lida como um dado isolado, mas, sim, como a
conformação de um grupo específico que deseja se fixar no seio de uma estrutura
hegemônica.
Ao tomar a publicação do romance de Paulo Lins como possível marco
inaugural desse fenômeno, desejo ler o texto do autor de Cidade de Deus enquanto
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produto discursivo que une testemunho e ficção, resultando em um novo olhar sobre a
escalada da violência nas favelas do Rio de Janeiro. Decerto, o plano temático
apresentado não é inaugurado por Paulo Lins; há tempos, diversos discursos,
sobretudo jornalísticos, empenham-se em indexar as razões do crescimento e
proliferação de quadrilhas de varejistas de drogas nas favelas. O diferencial de Lins é
o seu ponto de observação, a possibilidade de narrar os fatos a partir de sua
experiência de ex-morador da localidade, produzindo “uma experiência artística
incomum” – como observou Roberto Schwarz, em resenha publicada no Caderno
Mais do jornal Folha de São Paulo, em 7 de setembro de 1997. A singularidade de
Cidade de Deus provém da constatação da origem do discurso, da percepção de que o
local de enunciação é o mesmo do objeto. Sobrepostas as duas esferas, é criado um
espaço de conjunção entre sujeito e objeto. Ao apresentar-se como ex-morador da
favela por ele romanceada, Paulo Lins passa a ser “personagem, ator, agente que se
situa naquele mesmo espaço físico, arquitetônico e simbólico de exclusão de que
fala” (Resende, 2002, p. 158), como destacou com grande propriedade Beatriz
Resende, em Apontamentos de crítica cultural.
O caminho aberto por Paulo Lins está sendo percorrido por inúmeros autores
de periferia. Reginaldo Ferreira da Silva – mais conhecido por seu pseudônimo:
Ferréz – é o exemplo mais bem-sucedido desse empenho em estruturar um discurso a
partir do próprio referencial, formando uma compreensão das fraturas marginalizadas
da sociedade fora dos espaços centrais de saber e poder. O êxito de Ferréz deve ser
medido não apenas na expressiva vendagem de seus livros, fator que revela o alcance
de seu discurso, mas, principalmente, em sua contribuição na formação de um grupo
de autores da periferia, a chamada Literatura Marginal. Residente no Capão Redondo,
bairro da periferia de São Paulo, Ferréz é autor de dois romances, Capão Pecado
(2000) e Manual prático do ódio (2003), um livro infanto-juvenil Amanhecer
esmeralda (2005), um livro de contos, Ninguém é inocente em São Paulo (2006),
atuou como organizador dos três volumes especiais da Revista Caros Amigos
dedicados à produção literária da periferia: Caros amigos/Literatura marginal – a
cultura da periferia, que resultou em um livro organizado pelo próprio autor, lançado
pela Editora Agir, em 2005. Por fim, também é importante destacar que Ferréz
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fundou, em 2008, uma editora independente, destinada unicamente à publicação de
autores periféricos cuja comercialização é baseada em preços populares, a Editora
Literatura Marginal/Selo Povo.
Desse elenco de ações e publicações do autor, uma das mais relevantes é a
atuação do autor na produção e divulgação dos suplementos literários da Revista
Caros Amigos. Além do alcance da distribuição dos três volumes, com uma tiragem
de 30.000 exemplares, foi através destes suplementos que diferentes autores
periféricos, a convite do próprio Ferréz, puderam publicar seus escritos e ganharem
visibilidade. Ao reunir escritores de diferentes periferias do Brasil, as três edições
especiais podem ser lidas como um importante marco na formação e estruturação
desse grupo de autores, fundando um espaço próprio. A formação desse espaço não
repousa apenas na articulação entre vozes que outrora estavam dispersas, mas,
igualmente, na estruturação de uma argumentação em favor da existência de um
conjunto de autores periféricos que cobra para si um lugar na cena literária
contemporânea. Tal argumentação é apresentada nos manifestos que abrem cada
publicação. No primeiro suplemento especial, Literatura Marginal – A cultura da
periferia, publicado em 2001, no “Manifesto de abertura: Literatura Marginal”,
Ferréz apresenta a publicação como “O significado do que colocamos em suas mãos
hoje é nada mais do que a realização de um sonho que infelizmente não foi vivido por
centenas de escritores marginalizados deste país” (Ferréz, L.M.-I, p.3) E, na
argumentação proposta pelo autor, o papel da publicação é preservar uma memória e
uma cultura que não encontra espaço nos discursos hegemônicos que buscam apagar
tais referências populares/marginais:
Jogando contra a massificação que domina e aliena cada vez mais os assim chamados por eles de “excluídos sociais” e para nos certificar de que o povo da periferia/favela/gueto tenha sua colocação na história e não fique mais quinhentos anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de sua própria cultura, a Caros Amigos/Literatura Marginal vem para representar a autêntica cultura de um povo composto de minorias, mas em seu todo uma maioria. (Idem, Ibidem)
Não se trata apenas de uma busca pela inserção no espaço literário, mas,
também de utilizar a literatura enquanto veículo de um discurso que almeja uma
representatividade política para um grupo silenciado.
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Mas estamos na área, e já somos vários, e estamos lutando pelo espaço para que no futuro os autores do gueto sejam também lembrados e eternizados. Neste primeiro ato, mostramos as várias faces da caneta que se manifesta na favela, pra representar o grito do verdadeiro povo brasileiro. (Idem, Ibidem)
Representar, na concepção de Ferréz, designa a representatividade política dos
autores em contato com os setores marginalizados. Ou seja, os escritores que
compõem esse grupo passam a ser visto como os únicos habilitados a produzirem
uma literatura sobre a periferia. Tal noção, reforçada de diferentes formas pelos
autores da Literatura Marginal, passa a nortear a formação política do grupo. No
entanto, no segundo suplemento especial, Literatura Marginal – A cultura da
periferia, publicado em 2002, após apresentar uma breve definição do grupo – “A
Literatura Marginal, sempre é bom frisar, é um literatura feita por minorias, sejam
elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à margem dos núcleos centrais do
saber e da grande cultura nacional, ou seja, os de grande poder aquisitivo”, Ferréz
busca relacionar a Literatura Marginal a outros autores do passado, como Plínio
Marcos e João Antônio, ato que podemos ler como a formação de um cânone, assim
como a outras definições de Marginal:
Também não vamos nos esquecer que em São Paulo, no gueto da Boca do Lixo, e no Rio de Janeiro, nas rebarbas da geração Paisandu e do elitismo etílico de Ipanema, se fazia um certo cinema marginal, na periferia dos grupos de vanguarda do cinema novo. Desse tempo também é o manifesto “Seja Marginal, Seja Herói”, de Hélio Oiticica”(Ferréz, L.M.-II, p. 2).
Este aspecto mencionado por Ferréz merece uma análise mais atenta no desejo
de localizar as especificidades que o termo/conceito marginal pode adquirir para cada
grupo cultural (autores de periferia e cineastas atuantes fora de um circuito
estabelecido) e nas diferentes áreas das ciências humanas (sociologia e crítica
literária). Um primeiro aspecto a ser delimitado é iniciar a busca por um possível
significado e os diferentes usos que este termo/conceito recebeu não apenas no campo
dos estudos literários, mas, igualmente, nos estudos de cultural. Podemos dizer que
ser marginal é, antes de tudo, se colocar, ou ser colocado, em uma posição antagônica
a algo. O emprego do termo já traz em si uma forte carga metafórica que se baseia em
categorias territoriais. Além disto, o dado antagônico revela a formação de um jogo
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de oposições, na qual o marginal surge enquanto elemento contrário ao centro. A
potência deste modo de leitura, que se baseia na existência de elementos estanques,
oferece uma visibilidade ímpar para a compreensão e análise do cenário cultural e
literário no qual parecem duelar tais sujeitos discursivos.
No entanto, a ocupação deste espaço não é decerto um ato simples. Em outros
termos, ser marginal é não ocupar de modos distintos um mesmo centro. Pois, é
importante recordarmos que não ser o centro pode ser um ato político performático,
propondo um posicionamento que deve ser lido como uma forma de resistência;
assim como pode ser a definição de um conjunto de textos não centrais, que a partir
de critérios hierarquizantes são denominados de marginais.
Neste último caso, vale destacar como exemplo a coletânea de crônicas
Marginália, de Lima Barreto. A classificação dos escritos que compõem a publicação
enquanto marginais obedece a critérios formados pelo próprio autor, como podemos
observar na crônica “A questão dos poveiros”: “Organizei assim uma ‘marginália’ a
esses artigos e notícias. Uma parte vai aqui (...) Ei de publicá-la um dia” (Barreto,
p.32, 1956). O termo marginália, na acepção de Lima Barreto, designa um método de
elaboração que consiste em “anotações à margem”, assim como reflexões produzidas
em forma de artigo para a veiculação em jornais. É interessante notar a existência de
uma demarcação baseada na temporalidade para a classificação desta marginália, o
efêmero passa a orientar a recolha dos textos. A efemeridade da crônica, uma vez que
está ligada ao tempo presente do processo de escrita, abordando no calor do momento
os acontecimentos e registrando-os em letra de fôrma, parece também determinar a
marginalidade do texto. Nestes termos, a natureza do texto, sobretudo a sua estrutura,
passa a ser o índice necessário para a definição de uma literatura marginal, como
sinalizou Lima Barreto.
Ao receberem a denominação de marginália, os textos passam a ocupar outro
espaço no próprio conjunto da obra, formando, assim, uma estrutura hierarquizada.
Nesse sentido, não estamos lidando com uma literatura marginal, mas, sim,
marginalizada, para citar o termo empregado por Arnaldo Saraiva, no livro:
Literatura Marginalizada. Publicado em 1975, o estudo de Saraiva problematiza o
desprezo da teoria literária em relação a produtos discursivos populares e interroga os
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limites e possibilidades do campo disciplinar dos estudos de literatura frente a estes
objetos. Importante destacar que Arnaldo Saraiva define enquanto marginal as
literaturas populares, principalmente de cordel, devido o silêncio dos críticos frente a
este objeto, que a transforma em um objeto posto a margem e um sistema literário
que a desqualifica e apenas repete a mesma história literária dos cânones oficiais: “A
literatura dita popular, antiga ou recente, tem sido a maior vítima dos muitos e vários
censores que têm existido ao longo da sua história – e que obviamente não
desapareceram com o 25 de Abril” (1975, p. 106). Na citação é evidente o aspecto
datado da análise. Hoje, com a já consagrada recepção dos Estudos Culturais, a
classificação de uma literatura enquanto marginal devido a sua origem popular, soa
como algo quase anacrônico. No entanto, é partir desse olhar contemporâneo que os
questionamentos do crítico português ganham novo relevo, devido a sua originalidade
na abordagem de um campo que no período era pouco explorado. Além disso, em sua
análise a designação “literatura marginal” não assinala um julgamento pejorativo,
antes pretende “favorecer a incorporação no espaço da verdadeira “literatura” de
inúmeros textos que eram ou são colocados “à margem” dela, não importa se por
injúria, por preconceito, por censura ou por ignorância, desta forma marcando “a
provisoriedade e artificialidade do fenômeno da marginalização literária”.(Idem, p.
108)
A provisoriedade e a artificialidade, na leitura de Arnaldo Saraiva, são duas
características de um fenômeno de marginalização que é impulsionado pelo fato
destes objetos serem preteridos pela crítica. Ao ser alçada à categoria de objeto, tais
manifestações literárias deixarão de ocupar a margem.
O questionamento acerca dos limites e possibilidades do termo marginal para
denominarmos parte da produção literária não é novo. Em ensaio publicado no livro
Crítica literária em nossos dias e a literatura marginal, lançado em 1981, Robert
Ponge interroga: “A partir do momento que se fala em marginal (pessoa, corrente
literária, etc), levanta-se a questão: o que é a marginalidade? Onde começa? Onde
termina? Está à margem de quê? De quem?”(Ponge, 1981, p. 137). O leque de
questões apresentado pelo crítico problematiza não apenas a aplicação do conceito,
mas, principalmente, sua definição. Reconhecendo que a utilização do termo marginal
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é na maioria das vezes de fundo impressionista, sem rigor teórico, na qual predomina
a aplicabilidade indiscriminada do termo, Ponge propõe uma definição sintética que
repousa na afirmação de que a Literatura Marginal é aquela que aparece à classe
dominante como sendo outra, não lhe pertencendo. (Idem, p. 139.). E, a partir dessa
breve definição, o autor busca sua aplicação em possíveis vertentes da Literatura
Marginal retirados de literatura francesa, sendo eles: (a) a literatura de mulheres em
revolta, que congrega nomes como Hélène Cixous e Victoria Thérame, designando
não apenas a existência de um grupo de autoras que escreveram sobre mulheres, mas,
principalmente, o aparecimento de uma proposta centrada no feminino; (b) A
literatura proletarizante, que segundo o próprio Robert Ponge, é uma proposta de
escrita que fala dos proletários e através deles, entre os escritores que merecem
destaque podemos citar Joseph Benoit, Louise Michel e Louis Montagut; e, por fim,
o autor também sinaliza para a existência de uma proposta literária marginal que pode
ser denominada como (c) A literatura de indivíduos marginalizados, caracterizada
enquanto uma literatura de minorias nacionais ou centrada em formas de
representação de sujeitos desviantes da norma burguesa, como hippies, beatniks,
drogados, misfits ou homossexuais.
A delimitação proposta pelo autor, mesmo que fixada em exemplos recolhidos
da literatura francesa, é rentável para observar o sentido político agonístico que
orienta o olhar do crítico. Nesses termos, passa a ser denominada enquanto marginal
não apenas a literatura que está à margem, mas aquela que se coloca à margem
enquanto proposta de intervenção literária que busca lançar uma sombra na
modelação do sujeito burguês. É importante notar que nos três eixos classificatórios
propostos pelo autor, todos se baseiam na estruturação de um discurso que se quer
contrário a um modelo forjado pela sociedade, seja no corte de gênero, de classe ou
de padrão de comportamento.
Por outro lado, Sérgius Gonzaga, em artigo publicado no mesmo livro,
expande o conceito de Literatura Marginal ao propor uma caracterização que não se
baseia apenas em uma apreciação do caráter político das obras. O autor propõe uma
leitura historicista acerca da utilização do conceito e, principalmente, de sua
acomodação para nomear parte significativa da literatura produzida na década de
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1970. Desse posto de vista, a marginalidade surge em decorrência da própria estrutura
política do período.
A euforia do milagre tornou suspeita qualquer forma de debate cultural e o letrado perdeu o respaldo das classes médias que apoiavam seu discurso populista. Neste instante, a condição marginal oferece uma resposta. Após a desilusão, o escritor começava a se ver como um sujeito fora do processo social, ou então descobria-se falando em nome dos sujeitos marginalizados pela expansão interna do capitalismo. (Gonzaga, 1981, p.147)
O intelectual perde o respaldo da classe média e busca amparo nos marginais,
identificando neste ato de aproximação uma possível saída para o impasse sobre a sua
atuação. No entanto, não é apenas um ato de solidariedade, mas de construção de uma
identidade e de projeto, ligando sua condição de escritor à condição dos sujeitos
marginalizados pelo avanço de um processo modernizador autoritário.
Contudo, mesmo que o autor aponte para a existência de um marco político
que orienta a constituição deste projeto de ligação entre intelectuais e marginais, é
igualmente colocado em destaque a existência de uma postura marginal no exercício
da linguagem e na escolha dos objetos. Por esse viés, além do sentido político, a
definição de literatura marginal acaba por alcançar também a própria dimensão
estética do texto literário. Dito isto, o autor apresenta uma espécie de esquema que
esquadrinha três vertentes que lidam com o conceito de forma distinta: os marginais
da editoração, os marginais da linguagem e os marginais por apresentarem a fala
daqueles setores excluídos dos benefícios do sistema.
Interessa-me, sobretudo, esta última categoria. Pois, a partir da leitura
produzida pelo autor, torna-se rentável estabelecer as possíveis aproximações e os
distanciamentos entre esta manifestação da década de 1970 e a produzida na
contemporaneidade. Em outras palavras, é possível observar como é operado uso do
termo marginal para denominar a proposta de autores que se empenharam em
representar os setores mais baixos da sociedade – ainda que não sejam eles mesmos
marginais – e a consequente adaptação deste termo para designar a literatura
produzida por autores ligados à periferia – esses, sim, marginais.
No elenco dos autores marginais da década de 1970 que buscavam apresentar
sua produção enquanto ferramenta de uma denúncia da condição de vida dos setores
excluídos do milagre o nome de maior destaque é João Antônio. Seja pelo volume de
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sua obra, pelo vulto de sua fortuna crítica ou pelo papel de porta-voz do grupo, João
Antônio figura como autor exemplar de um tipo de literatura que, nos dizeres de Flora
Süssekind, “opta por negar-se enquanto ficção e afirmar-se como
verdade”(Süssekind, 2004, p. 99). A busca pela verdade surge como uma forma de
resposta aos mecanismos repressivos vigentes no período. A prosa fica ancorada ao
jornalismo e o utiliza como uma espécie de modelo, atribuindo à literatura a função
de relatar e retratar sujeitos/personagens em condições inenarráveis à grande
imprensa. Na leitura de Sérgius Gonzaga, é a escolha dos protagonistas, situações e
cenários que permite a denominação deste conjunto de textos enquanto marginais.
Embora alguns dos autores dessa tendência autodefinam-se como maditos, não pairam acima ou abaixo do organismo social, como queriam os malditos do romantismo europeu. Sua rebeldia dá-se no momento em que tentam enquadrar, no corpus artístico, as frações eliminadas do processo de produção capitalista.(Gonzada, op. cit., p. 151).
O conto-notícia de João Antônio ou o romance-reportagem de José Louzeiro,
para citar outro escritor de destaque no período, podem ser acionados como os casos
mais representativos desta busca pelo realismo. Nesses, o leitor passa a travar contato
direto com temas emblemáticos de uma realidade social marcada pela desigualdade.
Crianças desvalidas, crimes chocantes, bandidos, malandros e prostitutas são os
principais personagens de um cenário que descortina um retrato que se quer próximo
da realidade. O empenho destes autores em retratar certos aspectos da sociedade
brasileira, oferecendo maior destaque a um conjunto invisível de sujeitos da periferia
urbana, resulta também na construção de um posicionamento político que lança mão
da escrita como veículo de denúncias. No entanto, para consolidar esta experiência
literária foi necessário também construir uma imagem própria para o escritor, afirmar
sua dupla proximidade com o tema, “que parecia oscilar entre marginalidade
semelhante à dos personagens que representava e o heroísmo de um “Robin Hood” de
classe média que se imaginava sempre ao lado ‘dos fracos e oprimidos’”(Süssekind,
op. cit., p. 99).
Leitura semelhante foi produzida por Ana Cristina Cesar, no ensaio “Malditos
marginais hereges”, reunido no livro Escritos no Rio, acerca da postura dos escritores
empenhados em retratar o povo marginalizado: “A intenção é construir a identidade
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de escritor com o povo a partir da própria vida do escritor ( ou de dados bem
selecionados dessa vida). De um escritor que, supostamente, não é consagrado, que
ganha concursos mas é esnobado ou explorado pelas editoras.”(Cesar, 1993, p.111).
De forma sintética, Ana Cristina Cesar alcança uma leitura possível do ato
performático realizado pelos escritores que se empenham em operar enquanto
representantes do povo, seus porta-vozes. O exame crítico produzido por Ana Cristina
Cesar tem como objeto uma coletânea de contos publicada em formato de revista e
comercializada em bancas de jornal. Coordenada por João Antônio, a coletânea
congrega os índices que podem ser tomados como característicos da produção
literária da década de 1970 que narrava os marginais. Com uma apresentação gráfica
inspirada em revistas periódicas de notícias, a publicação traz no topo a expressão
“Extra”, seguida da sentença: “Realidade Brasileira”. No centro, em letras garrafais,
temos a adjetivação dos autores: “Malditos escritores!”. Para completar o jogo de
inspiração com as revistas de notícias e alardear ainda mais a busca pelo realismo
factual, na capa os escritores são retratados em fotografias 3x4 com expressões sérias,
remetendo claramente às imagens de presos fichados pela polícia. Na apreciação de
Ana Cristina Cesar, o empenho em produzir tal efeito estético revela o desejo destes
autores de enfatizar sua proximidade com o objeto narrado. O escritor maldito é
apresentado enquanto um marginal, semelhante aos seus personagens, como observa
a crítica:
Num golpe de mestre, ficou construída a identidade de classe entre o “nosso povo” e o “escritor típico do misere cultural”. Quem melhor para fazer literatura sobre este povo? Para narrá-lo, representá-lo, expressá-lo, dar-lhe voz? Se defeitos há nessa literatura, a culpa será do misere: a rapidez do trabalho, a angústia do momento, a exigüidade geral, os dias que correm, a pobreza do nosso jornalismo, a censura, a ineficiência dos concursos, e até a falta de intimidade maior entre as pessoas e os lugares, o pouco perambular pelas ruas. São fraquezas contingentes. Haverá talento e honestidade e busca sincera do povo. (Idem, p. 112)
A leitura desta publicação revela aspectos importantes acerca do projeto
literário proposto por estes escritores. É visível o uso de um tom messiânico, no qual
o exercício da escrita ficcional abre espaço para uma forma de intervenção que se
baseia na revelação de uma realidade social oculta. No entanto, como destacou Ana
Cristina Cesar, tal realidade é observada e desvelada por um olhar solidário que busca
14
na miséria e na marginalidade fonte de inspiração, mas não a contesta. Em outras
palavras, o escritor maldito – que se quer marginal e semelhante aos personagens que
povoam seus escritos – alimenta-se da miséria do outro, mas não lança um olhar
crítico frente à matéria narrada. Nas palavras de Ana Cristina Cesar:
Intenção do narrador: levar o leitor a compadecer-se das vítimas, revoltar-se contra o inimigo e os carrascos. Comover o leitor, sacudi-lo, identificá-lo à situação. Culpar e chocar, se necessário. Arrancar o leitor de suas frescuras e introduzi-lo a este mundo “mais real”.(Idem, p. 115)
Mesmo que colada na leitura da já citada revista, os apontamentos da autora
podem ser utilizados como índices exploratórios desta vertente literária marginal.
Contudo, a adoção do termo marginal para nomear parte da produção literária da
década de 1970 é resultante da observação da existência de um eixo temático
predominante nas obras. Os autores proclamam a marginalidade enquanto identidade
artística, acionando uma postura crítica acerca do fazer literário.
No caso dos autores contemporâneos, a utilização do termo marginal assume
nova nuances. É importante notar que para os autores da periferia, a utilização desta
categoria condiciona o seu uso enquanto um importante lócus identitário que
possibilita a afirmação de uma postura política. No entanto, é perceptível que para
estes sujeitos periféricos o termo marginal designa um fenômeno social urbano.
Como observa João Camilo Penna, no artigo “Estado de exceção”:
esta população não é de fato excluída ou pura e simplesmente marginalizada. Trata-se, em sua grande maioria, de cidadãos respeitadores da lei, que trabalham, que veem as mesmas novelas da TV, e que têm opiniões e ambições semelhantes, senão idênticas, a toda a população brasileira.(Penna, 2007, p. 191)
Compreender a marginalidade apenas na perspectiva socioeconômica se torna
insuficiente. Posto que estes sujeitos, em diferentes graus, são consumidores e
atuantes na esfera pública. A marginalidade não é apenas uma marca passiva que se
fixa no sujeito, um desígnio social que nunca será rompido ou obtliterado, mas, sim,
uma posição que estabelece o sujeito fora de um centro, com o qual este mantém
relações orgânicas e dinâmicas. Mesmo que, na perspectiva dos autores pertencentes
ao movimento, ser marginal seja estar situado à margem, residir na periferia e
pertencer a um setor socioeconômico específico que dificulta seu acesso aos direitos
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sociais mínimos, esta posição de distanciamento de um centro não impede o acesso
ao centro. Dessa forma, antes de uma compreensão socioeconômica para o fenômeno
da marginalidade, a definição utilizada pelos autores se baseia em critérios espaciais,
localizando no próprio território as marcas de uma vivência periférica.
É possível identificar alguns pontos de convergência entre a definição de
marginal proposta por esses autores periféricos e a compreensão que esse termo
possui para o grupo de artistas que igualmente o utilizaram na década de 1960/70
como signo identitário. Há uma clara intencionalidade estética no uso do termo
marginal em artistas como Hélio Oiticica, conforme observa Frederico Oliveira
Coelho, em seu estudo Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado. Cultura
marginal no Brasil dos anos 60 e 70. De acordo com Coelho, na década de 1960 e
1970 o movimento artístico marginal que utiliza como veículo a literatura, o cinema,
a arte e imprensa, relacionava o termo a sua forma de atuação, propondo uma relação
marginalizada frente ao mercado consumidor e às práticas culturais dominantes. Ou
seja, a marginalidade era utilizada no cenário cultural como categoria que
representava setores sociais desviantes ou não pertencentes aos grupos beneficiados
pelo regime militar pós-64. O marginal, que poderia designar tanto os moradores de
favelas, desempregados, retirantes nordestinos e bandidos, simbolizava para estes
artistas o não pertencimento às estruturas sociais hegemônicas e autoritárias,
representando a não integração ao modelo de modernização conservadora perpetrado
pelo Estado de forma autoritária e excludente. A leitura produzida por Heloisa
Buarque de Hollanda torna mais clara a intencionalidade do grupo de artistas da
década de 1960 e 1970 ao adotar tal terminologia: “A marginalidade é tomada não
como saída alternativa, mas no sentido de ameaça ao sistema; ela é valorizada
exatamente como opção de violência, em suas possibilidades de agressão.”(Hollanda,
1980, p. 68)
Pensando-se no sentido atribuído ao termo marginal na contemporaneidade, é
possível perceber uma possível correlação com as atribuições produzidas na década
de 1960-70. A maior distinção entre os dois grupos se dá na própria origem social dos
pertencentes. Hoje é o sujeito pertencente à margem que utiliza esse termo como
referência e não, como no passado, o artista oriundo de outro estrato social que busca
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nos setores marginalizados uma forma de atuação artística e política que possibilite a
criação de uma performance de contestação. No entanto, ainda que a constituição dos
sujeitos discursivos seja distinta, o signo da marginalidade ainda permite a formação
de um discurso de resistência que se fixa no confronto a uma determinada norma
estabelecida, seja ela estética ou ética.
O movimento contemporâneo de autores oriundos de bairros populares, aqui
denominado de Literatura Marginal, é muitas vezes também denominado de
Literatura Periférica. Periferia – termo amplamente utilizado pelos músicos do Hip
Hop, como no belo RAP do grupo Racionais MC’s: “Periferia é periferia em qualquer
lugar” – apresenta, assim como margem, uma clara compreensão espacial para a
definição do grupo. São periféricos e marginais aqueles não pertencentes ao centro,
que estão fora do espaço hegemônico. A adoção desses dois termos revela a feição
política que esse movimento possui e a sua relação com esses territórios
negligenciados e quase esquecidos: não centrais. Contudo, proponho a utilização do
conceito Marginal e Marginalidade para operar minhas leituras e análises. Dessa
forma, recuso a ideia de exclusão social, identificando neste conceito uma perversa
noção etnocêntrica, que concebe os territórios periféricos como não pertencentes à
cidade e, principalmente, como detentores de uma população não atuante na esfera
pública da cidade. A Literatura Marginal, e todo o movimento Hip-Hop que aglutina
inúmeros jovens da periferia, revelam justamente uma ideia contrária à de exclusão,
afirmando o poder de articulação e contestação desses sujeitos. A opção por nomear
tais sujeitos e territórios como marginais deriva, em primeiro lugar, da constatação de
que é este o conceito utilizado pelos próprios autores do movimento que pretendo
analisar. Além disso, a noção de marginalidade apresenta uma importante
ambiguidade, amplamente trabalhada nos textos que serão analisados, significando
tanto o sujeito que atua fora das grandes cadeias hegemônicas e centrais como,
principalmente, os sujeitos em conflito com a lei. O marginal, nesse sentido, tanto é o
trabalhador assalariado que reside na periferia, quanto o jovem varejista do
narcotráfico.
Ao assumirem este termo como signo identitário, os autores marginais
instauram uma espécie de cisão na produção literária nacional, demarcando um
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terreno específico de produção e de atuação. Cria-se, nesse sentido, um discurso
minoritário centrado na estruturação de ações que visam o estabelecimento de uma
nova representação dos setores periféricos. A separação, que em princípio obedece a
critérios de seleção dos autores pertencentes ao movimento literário, é descrita por
Ferréz como um ato de apropriação, como podemos observar no trecho abaixo,
recolhido do texto-manifesto “Terrorismo Literário”, assinado por Ferréz e publicado
na coletânea Literatura Marginal, talentos da escrita periférica, organizada pelo
mesmo autor e publicada pela Editora Agir:
Cansei de ouvir: - Mas o que cês tão fazendo é separar a literatura, a do centro e a do gueto. E nunca cansarei de responder: - O barato já tá separado há muito tempo, só que do lado de cá ninguém deu um gritão, ninguém chegou com a nossa parte, foi feito todo um mundo de teses e de estudos do lado de lá, e do cá mal terminamos o ensino dito básico. Sabe o que é mais louco? Neste país você tem que sofrer boicote de tudo que é lado, mas nunca pode fazer o seu, o seu é errado, por mais que você tenha sofrido você tem que fazer por todos, principalmente pela classe que quase conseguir te matar, fazendo você nascer na favela e te dado a miséria como herança. (Ferréz, 2005, p. 13)
A argumentação apresentada por Ferréz como resposta à recorrente crítica da
“separação” entre literatura do centro e do gueto, busca amparo em uma
temporalidade não demarcada, mas suficientemente representativa de sua existência:
“já tá separado há muito tempo”. A estratégia adotada pelo autor é afirmar esta
separação. Não são criadas formas de inclusão, mas, ao contrário, são estabelecidos
espaços de aglutinação de vozes que possam delimitar uma produção literária deste
grupo silenciado. Cria-se, nesse sentido, um discurso minoritário que se ergue no
interstício social originado pela desigualdade.
Para compreender a especificidade deste desejo de diferenciação da margem,
se faz necessário formar um referencial teórico que possibilite lançar novas luzes
sobre esta disputa discursiva. Os conceitos “pedagógico” e “performático”,
formulados por Homi K. Bhabha a partir de sua análise sobre a formação das nações
modernas, são úteis para vislumbrar a particularidade destes discursos marginais
frente à pretensa fala hegemônica da nação. A leitura produzida por Bhabha está
amparada nas formulações de Benedict Anderson e Ernest Renan que destacam a
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nação enquanto um aparato discursivo, cujo objetivo é construir uma “comunidade
imaginada”, para citar a expressão de Anderson. No entanto, não se trata de lançar
esta proposta de leitura da nação enquanto uma perspectiva teórica que substitui as
clássicas análises baseadas em categorias políticas específicas e análises centradas na
historiografia, mas, sim, ler tais aparatos discursivos da nação como
estratégias complexas de identificação cultural e de interpelação discursiva que funcionam em nome do povo ou da nação e tomam sujeitos imanentes e objetos de uma série de narrativas sociais e literárias.(Bhabha, 1998, p. 199)
Seguindo os passos de Bhabha, é possível observar que estes autores, ao
formularem um discurso estruturado a partir do signo da diferença, instauram uma
rasura na escrita homogeizante da nação. O ato performático, nesse sentido, é
observado na existência deste discurso contrário e, principalmente, na eclosão de uma
escrita que rompe com a homogeneidade proposta pelos discursos pedagógicos.
Como teoriza Homi K. Bhabha:
O pedagógico funda sua autoridade narrativa em uma tradição do povo, descrita por Poulantzas como um momento de vir a ser designado por si próprio, encapsulado numa sucessão de momentos históricos que representa uma eternidade produzida por autogeração. O performativo intervém na soberania da autogeração da nação ao lançar uma sombra entre o povo como imagem e sua significação como um signo diferenciador do Eu, distinto do Outro ou Exterior.(Bhabha, 1998, p. 209)
Na conceituação proposta pelo crítico, as nações modernas são fundadas por
uma autoridade narrativa que almeja produzir um discurso homogeneizante e
conciliador das diferenças internas. O resultado deste recurso baseado na narração é a
adoção de uma proposta pedagógica nacionalista que consiste na absorção e
esvaziamento dos elementos antagônicos presentes no interior da nação. Contudo, o
pressuposto apresentado por Bhabha também busca identificar as performances
narrativas que incidem no movimento oposto, ou seja, os discursos formados no
desejo de rasurar a pretensa fala pedagógica e lançar uma sombra no discurso
hegemônico. Tais operações discursivas são nomeadas pelo autor como performáticas
ou performativas. Pois são discursos em ato que interrompem a noção de tempo
empregada pela estrutura pedagógica da nação, que se baseia na autogeração, e
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apontam para um significado de povo não heterogêneo. Estes pólos discursivos
surgem como elementos conflitantes e será
a tensão entre o pedagógico e o performativo (...) na interpelação narrativa da nação converte a referência a um “povo” – a partir de qualquer que seja a posição política ou cultural – em um problema de conhecimento que assombra a formação simbólica da autoridade nacional. (idem, p.207)
Por este turno, a simples existência de um discurso performativo produz um
abalo na produção narrativa pedagógica, instaurando uma instabilidade na estrutura
discursiva que objetiva a conciliação dos opostos, como avalia Homi K. Bhabha:
As contra-narrativas da nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras – tanto reais quanto conceituais – perturbam aquelas manobras ideológicas através das quais “comunidades imaginadas” recém identidades essencialistas. (idem, p. 209)
Estes sujeitos periféricos, empenhados em produzir um discurso próprio, mais
do que produzir uma fala que entre em conflito com a narrativa pedagógica, estão
primeiramente empenhados em consolidar uma proposta discursiva específica sobre a
margem. Nesse sentido, é possível constatar não apenas o empenho destes autores em
afirmar a diferença da periferia frente a outros setores da sociedade através do texto
literário, mas, igualmente, a partir de um complexo empreendimento cultural que
utiliza linguagem, música, arte, vestimentas, etc. À literatura são acrescidas outras
manifestações culturais e sociais que também objetivam uma imagem própria baseada
na diferença social. Ou seja, o movimento/grife 1 da Sul, criado por Ferréz; a
realização da Semana de Arte Moderna da Periferia, organizada por Sérgio Vaz e
outros poetas da Cooperativa Cultural da Periferia, a Cooperifa; a criação da Edições
Toró, idealizada por Allan Santos da Rosa, são alguns dos muitos exemplos de
articulação destes autores periféricos no desejo de constituição de espaços próprios
voltados exclusivamente para a reflexão sobre os setores marginalizados. Tais
elementos ressoam como um mecanismo de intervenção social que almeja a criação
de uma identidade própria em oposição aos grupos sociais pertencentes ao centro. A
leitura produzida por Homi K. Bhabha oferece novas luzes a esta questão:
Cada vez mais, o tema da diferença social emerge em momentos de crise social, e as questões de identidade que ele traz à tona são agonísticas; a identidade é reinvindicada a partir de uma posição de marginalidade ou em
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uma tentativa de ganha o centro: em ambos os sentidos, ex-cêntrica. (Idem, p. 247)
No caso específico da Literatura Marginal, e das diferentes ações
desencadeadas pelos autores pertencentes a este movimento, percebemos a
reivindicação de uma cultura própria e cerceada aos espaços marginais. A noção que
orienta tal perspectiva cultural se baseia em uma ideia de cultura essencialista e
definidora dos sujeitos residentes em favelas e bairros periféricos, como destaca Érica
Peçanha, em Vozes marginais na literatura: “A ideia essencialista de uma cultura da
periferia, defendida pelos escritores estudados, e exclusiva dos moradores das
periferias, pressupõe um mundo à parte.”(Peçanha, 2009, p. 56)
Tal concepção de cultura, mesmo que equivocada e ultrapassada, recebe uma
conotação política agonística ao propor uma hierarquização entre culturas, almejando
o estabelecimento de uma rígida separação entre a cultura periférica – leia-se também
de rua – e a cultura do centro – leia-se também burguesa.
Os signos criados para conformar essa identidade cultural periférica agonística
revelam o intento em realçar a diferença social destes setores marginalizados.
Favelas, conjunto habitacionais e bairros de subúrbio surgem como espaços exteriores
à urbe, não dialógicos e antagônicos ao centro. Tal rigidez do discurso busca
fundamentar um movimento de oposição à configuração social estabelecida através
de reunião de posturas e falas que buscam romper com a conciliação.
Com o objetivo de localizar a operação destes mecanismos discursivos é
necessário propor um modo de leitura que não se baseie apenas no texto literário e
que possibilite colocar em relevo o próprio movimento que o discurso opera, tratando
a literatura como um veículo de intervenção social. Dessa forma, os pressupostos
teóricos dos Estudos Culturais serão acionados com este intuito. Além disso, através
deste referencial teórico será possível ler e analisar as diferentes produções culturais
marginais sem recorrer a instrumentais hierárquicos e excludentes. Tendo como ponto
de partida o desejo de apresentar um olhar crítico sobre as representações da margem
e, principalmente, acerca da periferia enquanto produtora de signos culturais e
discursivos, é fundamental para a realização deste exame utilizar um corpus teórico
que auxilie a análise de discursos tão heterogêneos e contrastantes do ponto de vista
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formal. Não se trata de formular um novo conceito de literatura, mas, sim, de utilizar
novas ferramentas para empreender um olhar que revele a especificidade de cada
manifestação cultural analisada, abandonando assim uma percepção que se baseie
apenas nos valores estéticos das obras.
Ao optar por não realizar apenas uma leitura estética destes discursos, coloco
em destaque uma compreensão ética destas manifestações. Certamente, para o pleno
resultado deste empreendimento crítico se faz necessário recorrer a uma noção mais
ampla de cultura, objetivando não somente dar voz a estes sujeitos, mas utilizar um
método de análise desses discursos que possibilite a emergência destas vozes outrora
silenciadas. Além disso, ao utilizar as definições e teorias formuladas por
pesquisadores dos Estudos Culturais irei compreender as produções discursivas dos
autores marginais em uma relação mais ampla com a sociedade, identificando os
diálogos que tais textos possuem não apenas com a produção literária contemporânea,
mas, igualmente em uma perspectiva política e social. Posto que, conforme observa
Douglas Kellner, em A cultura da mídia,
Os Estudos Culturais britânicos situam a cultura no âmbito de uma teoria da produção e reprodução social, especificando os modos como as formas culturais serviam para aumentar a dominação social ou para possibilitar a resistência e a luta contra a dominação. A sociedade é concebida como um conjunto hierárquico e antagonista de relações sociais caracterizadas pela opressão das classes sociais, sexos, raças, etnias e estratos sociais subalternos. Baseando-se no modelo gramsciano de hegemonia e contra-hegemonia, os estudos culturais analisam as formas sociais e culturais “hegemônicas” de dominação, e procura forças “contra-hegemônicas” de resistência e luta. (Kellner, 2001, p. 47-48)
Nessa perspectiva, os produtos discursivos marginais serão analisados como
manifestações contra-hegemônicas, resultantes de um esforço em produzir uma
imagem própria sobre a vivência marginalizada. O modelo teórico adotado, nesse
sentido, busca um relacionamento direto entre as manifestações culturais, Estado,
economia, sociedade e vida diária.
O principal desafio no tocante à elaboração das análises foi estabelecer qual
corpos que seria acionado para compor minha leitura. Mesmo que o principal objetivo
seja ler a constituição deste grupo de autores da periferia, buscando estabelecer os
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possíveis contornos estéticos e éticos destes escritos formados a partir da égide
“Literatura Marginal”, é necessário definir quais autores e obras serão selecionadas.
A principal dificuldade foi propor uma relação de autores que fosse
representativa dentro de um grande volume de publicações. Afinal, no breve período
de uma década, despontaram diferentes autores marginais no cenário literário
brasileiro. Os nomes são muitos e propor uma apresentação de todos aqui, nesta
introdução, seria exaustivo e pouco auxiliaria o desenvolvimento de minha reflexão.
Importa dizer que a Literatura Marginal ganhou as ruas e becos da periferia e reúne
um considerável número de sujeitos periféricos. O nome mais conhecido e de maior
destaque é Ferréz, a este podemos adensar Allan Santos da Rosa e Sérgio Vaz. Os três
autores serão objeto de uma leitura específica desta Tese. Mas, ao selecionar estes
autores como referência, estou igualmente excluindo outros, como Ademiro Alvez de
Sousa, mais conhecido pelo pseudônimo de Sacolinha e Alessandro Buzo. Graduado
em Letras e morador da periferia paulistana, Sacolinha é autor de Graduado em
marginalidade (2005) e 85 letras e um disparo (2007). Através de sua atuação no
Projeto Cultural Literatura no Brasil, o autor participa de diferentes eventos com o
objetivo de difundir a leitura nas periferias. Alessandro Buzo, ativista do movimento
Hip-Hop e morador do Itaim Paulista, é autor de quatro livros de forma independente.
Guerreira (2007), recém publicado pela Global Editora, sua última produção, narra a
trajetória de uma jovem no submundo das drogas e prostituição.
Além de exame centrado na obra de Sérgio Vaz, Ferréz e Allan Santos da
Rosa, também serão criadas propostas de leitura dos três volumes do suplemento
literário Literatura Marginal – A cultura da periferia, assim como dos textos que
posteriormente foram compilados na antologia Literatura Marginal – talentos da
escrita periférica. Soma-se a estes produtos, outras publicações lançadas por editoras
independentes, como a Edições Toró, e o acompanhamento dos blogs mantidos pelos
autores.
É importante ressaltar que paralelo a este movimento de articulação cultural
da periferia através da literatura temos observado a proliferação de obras literárias e
fílmicas, não produzidas por sujeitos da periferia, que buscam examinar estes espaços
marginalizados. A margem, este território quase esquecido e muitas vezes invisível da
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cidade, surge na contemporaneidade como um precioso território a ser explorado.
Seja pelo olhar do próprio marginal, que agora abandona a posição de objeto para
figurar como sujeito do próprio discurso; ou por autores não pertencentes à margem
que, movidos pelo crescente interesse do mercado editorial, repetem as ideias e os
preceitos formados pela Literatura Marginal, é inegável que a periferia urbana ocupa
hoje, paradoxalmente, um espaço central na produção discursiva brasileira. Vale
lembrar que processo semelhante ocorreu com a chamada Literatura de Cárcere. João
Camillo Penna, no artigo “Estado de exceção”, identifica as implicações do “boom”
da Literatura do Cárcere:
(...) a literatura carcerária em particular, e a antes insipiente literatura de testemunho em geral, no Brasil, surge na seqüência da abertura do espaço de visibilidade que o problema carcerário obteve a partir do massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992. O nefando episódio da crônica paulistana, quando 111 presos, segundo dados oficiais, foram executados em selvagem carnificina pela polícia militar, com suas terríveis implicações de violência policial sistêmica, demonstrou claramente que a população carcerária brasileira vive de fato sob um estado de sítio permanente, completamente fora do regime regular de cidadania que é seu direito constitucional.(Penna, 2007, p. 184)
Na leitura de João Camillo Penna, o Massacre do Carandiru tem uma “função
ontológica, constitutiva, de produzir sujeitos”(Idem, p. 188). Dessa forma, os textos
produzidos em decorrência do Massacre são instrumentos de subjetivação,
favorecendo a constituição de sujeitos. No entanto, além do claro intento ético destes
discursos, é igualmente perceptível um sentido mercadológico. O “boom” da
Literatura do Cárcere foi resultante da incessante busca das editoras por presidiários
que testemunharam o Massacre do Carandiru que pudessem oferecer seus
testemunhos aos leitores. Esses produtores, nesse sentido, ambicionavam repetir o
sucesso mercadológico de Estação Carandiru, de Draúzio Varela.
Dessa forma, exame semelhante pode ser realizado no tocante ao empenho de
casas editoriais em publicar escritos de autores da periferia, sendo perceptível o
interesse de grupos editoriais nesses autores, observando nesse tipo de produção
literária um importante nicho mercadológico. Exemplar, nesse sentido, é a criação do
selo Literatura Periférica da Global Editora, responsável pela publicação dos livros de
Alessandro Buzo, Sacolinha, Allan Santos da Rosa e Sérgio Vaz. Além do inegável
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empenho da Editora Aeroplano em se constituir enquanto espaço de veiculação de
obras produzidas sobre a periferia urbana e por sujeitos pertencentes a este espaço,
destacando para estas obras o selo Tramas Urbanas. Selo responsável pela publicação
da autobiografia de Alessandro Buzo, Favela toma conta, em 2008; e pelo
lançamento de Cooperifa, antropofagia periférica, de Sérgio Vaz, em 2007.
Revela-se, assim, não apenas uma orientação ética na publicação destes textos
e na produção de obras cinematográficas e televisivas sobre estes setores da
sociedade, mas, sobretudo, mercadológica. Não se trata de elaborar uma exasperada
crítica dos meios de comunicação de massa e das grandes corporações editoriais que
promovem tais discursos, mas compreender tal fenômeno cultural e comercial como
um substrato da própria sociedade brasileira. Dessa forma, vale questionar: o que
move esse olhar da Literatura Marginal em direção à periferia? Responder este breve
e inquietante questionamento é um dos meus objetivos.
Mesmo que este questionamento seja um possível elemento norteador de
minhas análises, o resultado de minhas observações não se destina a configurar um
rígido estudo sobre a Literatura Marginal. Meu objetivo não é compor um tratado
acerca do tema e muito menos desejo construir um modelo de leitura que esgote o
tema. Ao contrário, minhas leituras e análises são direcionadas a ensaiar formas de
contato com este objeto, utilizando para isso diferentes propostas teóricas e
possibilidades de leitura. Os capítulos podem ser vistos como pontos de ancoragem
ao objeto, resultando em uma visão prismática sobre a Literatura Marginal. Os
capítulos, dessa forma, podem ser lidos de forma autônoma, e quando colocados em
conjunto, na articulação das teorias utilizadas, oferecem uma perspectiva mais ampla
sobre o tema.
25
2.
Literatura Marginal, uma literatura feita por minorias.
A Literatura Marginal, sempre é bom frisar, é uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou sócio-econômicas.
Ferréz, Literatura Marginal: talentos da escrita periférica.
Na primeira edição de Capão pecado, publicada em 2000, em um texto de
abertura do romance – uma espécie de epígrafe – Ferréz traça um movimento de
aproximação ao bairro em que reside:
Universo Galáxias Via-láctea Sistema solar Planeta Terra Continente americano América do Sul Brasil São Paulo São Paulo Zona Sul Santo Amaro Capão Redondo Bem-vindos ao fundo do mundo (Ferréz, 2000, p13)
O ponto de partida para alcançar o “fundo do mundo” é o mais geral possível,
o universo. O objetivo não é, definitivamente, ser universal; busca-se algo específico.
A trajetória traçada abre diferentes camadas, rompendo territórios. O percurso é
semelhante a um jogo de escalas, com um movimento em abismo, buscando seu fim.
Lendo o texto facilmente relacionamos o movimento do autor às conhecidas
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matrioshkas - bonecas russas que são colocadas uma dentro da outra, da maior até a
menor, todas com o mesmo ornamento e cores. Mas a semelhança com o tradicional
brinquedo russo é restrita ao movimento operado pelo texto, posto que não
encontramos dentro da série menor uma reduplicação reduzida. A cada nova
descoberta realizada pelo autor, ao romper as camadas territoriais, nos deparamos
com um território em diferença. Ser o fundo do mundo, como o autor denominou o
bairro em que reside e que serve de palco para a narrativa que será iniciada, não é
simplesmente o ponto de chegada, mas, sim, a representação material de uma
condição de extrema marginalização. O exercício de busca por uma profundidade, tal
qual um fenômeno de mise en abyme realizado por Ferréz afirma a territorialidade do
texto em duas perspectivas: primeiro enquanto cenário do romance, focando o Capão
Redondo, bairro da periferia da Zona Sul de São Paulo, como espaço em que será
representado o texto ficcional; e, na segunda possibilidade de análise, afirma o
território em um sentido político, apresentando o romance enquanto produto
discursivo originário do “fundo do mundo” – espaço marginalizado por excelência,
na leitura do autor. Capão Redondo: este é o elemento final a ser descortinado por um
olhar em profundidade lançado por um sujeito marginal.
A verticalidade apresentada no texto, centrando um olhar sobre a periferia
urbana, pode ser tomada como uma característica fundadora da Literatura Marginal.
A afirmação da territorialidade do texto, seja em uma perspectiva ficcional –
utilizando-o como cenário da narrativa – ou enquanto lócus identitário –
apresentando o autor enquanto residente da periferia ficcionalizada – é um dos
principais elementos que possibilita o estabelecimento de contornos mais nítidos para
a identificação desse movimento literário que reúne na contemporaneidade inúmeros
autores de periferia.
A Literatura Marginal, com o seu acentuado discurso baseado em um
princípio socioeconômico e territorial, instaura em nossa série literária um novo
molde para a apreensão de obras literárias. Ao cobrar para si um exame fundado em
estruturas sociais, expressando como principal diferenciação a origem periférica de
seus produtores discursivos, o grupo de autores que se agrupam sob o título de
Marginal não utilizam como primeiro elemento catalisador um pacto estético. Ao
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contrário de outros movimentos, o topos da linguagem, ou outros elementos e
recursos literários, não surge como índice de aproximação dos autores. Não
presenciamos neste movimento a formação de um grupo que almeja defender, ou
rechaçar, determinado elemento estético, como é possível observar nas vanguardas
modernistas das primeiras décadas do Século XX. Na estruturação desse novo grupo,
o estético foi colocado em segundo plano, não é negligenciado, mas é suprimido pela
importância conferida à ética. A ética passa a nortear a seleção dos autores que
poderão compor o movimento, tendo como principal premissa a origem marginal. Ser
residente de um dos inúmeros bairros de periferia que circundam os poucos bairros
centrais dos grandes centros urbanos do país é o primeiro elemento que conta. Se é
inovador o critério de formação do movimento, o mesmo não pode ser dito em
relação a seu modus operandi.
A Literatura Feminina, ou Feminista, assim como a Literatura Negra, ou
Afrobrasileira, podem ser tomadas como exemplos de estruturação discursiva que
busca a valorização do sujeito da enunciação amparado no princípio ético. Tais
movimentos literários possuem como fundamento identificar o sujeito na situação
que descreve, como objeto do conhecimento que propõe recortar, a partir de sua
particularidade, seja de gênero (gen der) ou raça. Um exame das estratégias
discursivas fundadas por estes dois grupos, ambos minorias – em consonância com os
autores marginais – auxilia na construção de uma leitura mais ampla da Literatura
Marginal.
Marginal, Feminista ou Afrobrasileira, na perspectiva que almejo oferecer a
estes movimentos, não são apenas adjetivos alocados à palavra Literatura, são, em seu
sentido mais amplo, a demarcação de uma territorialidade no âmbito da produção
discursiva. A adjetivação, nesse sentido, perpassa pela busca de uma esfera de
legitimação, delimitando os espaços fronteiriços entre a produção discursiva que
exprime os desejos de um sujeito opressor – que pode ter a feição do gênero
masculino, ou do branco, e em alguns casos de ambos – e a produzida por um grupo
minoritário. Construir tal fronteira na esfera literária é apenas transplantar os
confrontos de gênero e racial para o discurso literário, transformando-o também em
espaço de contestação e disputa política. As vozes que criticam o estatuto homogêneo
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do discurso literário buscam alargar conquistas que garantam espaços para as
diferenças e para a autonomia. Ao fixarem um hífen após o termo Literatura,
impresso na visível separação de um discurso hegemônico, sentenciando a pretensa
igualdade do discurso utópico-romântico que a época moderna forjou, estes grupos
atuam em favor de uma igualdade em diferença, nas especificidades de gênero, raça e
classe.
Na Literatura Feminista, identificada como uma produção literária gendrada, a
prática literária é transformada em um espaço de construção simbólica, estruturando
um discurso sobre e do gênero minoritário. O feminino passa a ser concebido como
uma construção cultural, e não um dado ofertado pela natureza. Os discursos sobre o
feminino, em uma lógica feminista, perpassam por uma discussão sobre a sua posição
na sociedade e, principalmente, na utilização dessa estrutura como referência em sua
atuação social. Do ponto de vista teórico, a Literatura Feminina busca a formação de
um espaço próprio dentro do universo da literatura mundial mais ampla, em que a
mulher seja o sujeito do discurso e possa a partir de um ponto de vista e de um sujeito
de representação próprios, que sempre constituem um olhar da diferença, construir
sua própria representação. Não se trata de oferecer uma percepção mais afetiva,
delicada, sutil, reservada, frágil ou doméstica no âmbito da literatura, mas, sim, de
constituir-se enquanto sujeito discursivo, livrando-se da silenciosa posição de objeto.
A Literatura Negra possui como fundamento a defesa por um discurso que
possibilite a assunção do negro enquanto sujeito histórico, rompendo com a
representação produzida pelo branco, concebida em alguns casos como opressora e
baseada apenas no exotismo comparatista racista. Maria Conceição Evaristo de Brito,
em Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade, identifica a produção
literária de autores negros como a “construção de um discurso capaz de explicitar o
negro, sua inserção no mundo, os seus sentimentos, as suas particularidades como
sujeito da história”(Brito, 1996, p. 41). A defesa pela emergência de uma voz negra
na literatura possui como referência a possibilidade de produzir um discurso que
representa um sistema de pensamento específico. Na leitura de Conceição Evaristo,
em consonância com os principais movimentos que buscam consolidar a literatura
negra no Brasil, o exercício da escritura negra resulta no afloramento de uma
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cosmogonia própria, negra, através da representação. A linguagem, símbolos,
memórias e interpretação do mundo, seriam os vetores que confluem para a
consolidação de um corpus negro, conflitante com a visão branca sobre o negro. No
entanto, mesmo estabelecendo um recorte racial para a apreensão de obras literárias, a
Literatura Negra não se baseia apenas em uma referência étnica, mas busca construir
um conceito mais abrangente, a uma implicação mais profunda, que é a de ser, a de se situar conscientemente negro na escritura. Estamos falando de uma literatura em que seus produtores se propõem consciente e politicamente criar um discurso, uma escrita que parta do “eu negro”, sujeito que se inscreve e escreve negro e não que represente o negro.(Idem, Ibidem).
Não se trata apenas de estabelecer uma fronteira racial na produção literária
nacional, mas, sim, de consolidar um espaço de representação dentro de uma série
hegemônica. O discurso literário passa a ser concebido como uma prática que
favorece a construção cultural de um grupo marginalizado. Valoriza-se a voz negra,
mas, sobretudo, a voz negra em contato com a sua cultura e história, livrando-a do
papel de objeto.
Seja através de um recorte de gênero ou de raça, os grupos minoritários que
instauram um elemento de distinção no seio da série literária hegemônica buscam
pensar o Outro sob o prisma da diferença. Não são mais sujeitos desviantes de uma
norma, de um modelo universal, mas como indicador de outras posturas possíveis,
como revelador do princípio da diversidade. Vera Queiroz, em Crítica literária e
estratégias de gênero, amparada nas concepções teóricas de Michel Foucault e
Jacques Derrida, apresenta de forma clara a mudança epistemológica realizada na
segunda metade do século XX que favoreceu a emergência de vozes outrora sulcadas
por uma concepção iluminista de sujeito universal que impossibilitava a constituição
desses sujeitos marginalizados:
O estudo sobre as relações entre poder e saber, entre o conhecimento, o sujeito e a verdade na passagem da episteme clássica para a moderna [ realizada por Michel Foucault a partir da leitura de Marx, Nietzsche e Freud] fundou um novo paradigma na compreensão do sujeito das ciências humanas, a partir do qual as noções de profundidade (quanto ao saber) e de origem (com relação à verdade) estão abaladas; a descontinuidade e a dispersão, ao invés da linearidade e da homogeneidade, são as forças motrizes dos acontecimentos e da história; a concepção de sujeito, a partir da época moderna – na verdade, esse seria um traço distintivo capital na
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passagem do sujeito clássico ao moderno – passa a estar relacionada às formações discursivas que regulam saberes e os poderes, de modo a inscrever-se também como objeto de práticas interpretativas plurais que, longe de conferir-lhe essência, inserem-no na cadeia discursiva reguladora dos objetos e das coisas, de que se torna doravante parte. (Queiroz, 1997, p. 104)
A conquista do poder discursivo reflete não apenas os resultados das lutas
empreendidas por um grupo específico, mas, igualmente, uma importante mudança
teórica no pensamento moderno. Atrelada à nova compreensão do sujeito, concebido
agora em sua pluralidade rizomática, em contraposição ao sujeito detentor de uma
raiz cultural única e não contraditória, é empreendida uma sutil modificação dos
sistemas de pensamento e, principalmente, de valorização dos objetos discursivos e
de arte. Tal modificação teórica, sobretudo no campo dos estudos literários,
estruturou uma nova concepção acerca do texto literário, analisando-o a partir de um
suporte que faça emergir um debate sobre a sua natureza. Vera Queiroz, tomando
como referência a análise de Heidrun K. Olinto acerca do itinerário da crítica literária
ao longo do século XX e a reavaliação sistemática dos modelos teóricos e críticos que
conferem ao literário sua legitimidade, observa que
no multifacetado espectro de visões ( e de versões) que configuram hoje os diversos modelos e as diferentes teorias, o que parece consensual é a perda de privilégio da imanência do(s) sentido(s) no próprio texto, compreendido na perspectiva de um conjunto amplo de relações dialógicas e contextuais, em que se problematizam tanto o leitor (em suas diversas personae de leitor fictício, real, implícito, histórico, crítico), como pólo constitutivo de significações, quanto as rígidas configurações do objeto literário, na medida em que esse estatuto – o literário – será definido como tal na perspectiva do recorte que o fundamenta. (Queiroz, op. cit., p. 12-13)
Na leitura de Vera Queiroz não apenas a obra literária passou a ser analisada
enquanto parte de um sistema mais amplo e complexo de práticas textuais, avaliando
a função e o valor da obra em relação a contextos culturais historicamente
específicos, como a própria reavaliação da figura do leitor e o estatuto ideológico das
posições dos sujeitos envolvidos nas práticas avaliativas e judiativas inerentes às
atividades interpretativas também foram, igualmente, analisadas fora de um circuito
autotélico. Tais mudanças operaram uma nova interrogação ao campo dos estudos
literários, levando à “substituição da eterna pergunta – o que é literatura? Por outra –
31
o que é considerado literário, quando, em que circunstâncias, por quem e por
quê?”(Olinto, 1993, p. 09) como observou como grande pertinência Heidrun K.
Olinto, no ensaio “Letras na página/palavras no mundo. Novos conceitos sobre
estudos de literatura”. Nessa leitura vemos o progressivo abandono de uma crítica
literária ancorada em teorias de cunho formalistas, centradas unicamente no texto
literário, e o sucessivo avanço de formulações teóricas que utilizam extratos de
abordagem do discurso literário baseadas em reflexões pragmáticas, colocando em
voga exames centrados em esferas extraliterárias.
No entanto, mesmo com o fortalecimento de um horizonte teórico que
fundamenta a leitura crítica na busca por uma relação entre texto e seu entorno social,
político e cultural, os críticos literários que se debruçaram sobre os textos da
Literatura Marginal de forma recorrente expressaram a insuficiência dos estudos
literários frente ao objeto, como demonstra a leitura de Fernando Villaraga Eslava, no
artigo “Literatura marginal”:
Enfim, a visita panorâmica ao salão da tímida e polêmica recepção crítica da literatura marginal indica que ainda não se achou as chaves necessárias para uma leitura capaz de reconhecer as especificidades e os sentidos de suas expressões, que falta (re)definir os itens fundamentais que ainda devem orientar a indagação hermenêutica de suas heterogêneas escritas. (Eslava, 2004, p. 49).
Segundo Fernando V. Eslava, é necessário criar formas de abordagem dos
textos da Literatura Marginal que possam alinhavar um exame que coloque em relevo
as especificidades dessa produção, relacionando o aspecto literário e estético a sua
forma de enunciação política e ética. O desafio, seguindo esse raciocínio, é
empreender uma leitura crítica do objeto literário a partir de experiências estéticas
distintas dentro de um mesmo movimento. A leitura de Ângela Maria Dias apresenta
questionamentos semelhantes ao avaliar que
muito se tem discutido sobre a perplexidade da crítica diante [da Literatura Marginal e de] seu estatuto indefinido entre testemunho de uma condição social, biografia de uma experiência subjetiva e criação intencionalmente ficcional e/ou literária, bem como sobre o estranhamento causado pelo seu acento de língua coletiva, arrebanhando vozes e versões de uma comunidade, no intuito de formar o mosaico de uma língua geral. (Idem, p. 14)
32
Os apontamentos apresentados por Ângela Dias, formados a partir de sua
análise da coletânea Literatura Marginal: talentos da escrita periférica, são precisos
ao perceber o caráter multifacetado da escrita produzida pelos autores reunidos sob o
título de marginais. Ampliando o foco de análise e debruçando-se sobre os três
suplementos Literatura Marginal – A cultura da periferia, publicados pela Revista
Caros Amigos, que apresentam os textos que posteriormente foram selecionados e
reunidos na coletânea supracitada, é possível observar com mais força a constituição
de um amplo espectro de linguagens e estilos que clamam uma origem comum. Se
estabelecermos uma leitura das três edições em conjunto, além de percebermos a
ampliação do conceito Literatura Marginal, será possível observarmos uma sutil
mudança de estilo e manejo da linguagem por parte dos autores. No Ato I – primeira
edição do suplemento lançado em 2001 - os textos publicados são explicitamente
formados a partir de um desejo de denúncia e exame crítico da realidade da periferia
urbana. Á exceção de Erton Moraes, com a fábula A peregrinação da mosca
varejeira, os textos possuem como foco as margens urbanas e os problemas sociais
que assolam estes territórios. Além disso, é perceptível a presença de autores que
mantém estreitas relações com a cultura Hip-Hop, utilizando a escrita como veículo
de divulgação dos seus principais conceitos norteadores, como operam: Cascão, em A
conscientização e Consciência; Ferréz, em Os inimigos não levam flores; ATrês, em
A.C. em qualquer lugar e Garret, em Sonhos de um menino de rua. Nos exemplos
citados é possível observar a presença de um discurso próprio da cultura Hip-Hop no
texto literário. Nestes a escrita é construída com o claro intento do engajamento e da
denúncia, além da explicita referência ao movimento, como ocorre em A
conscientização. Além disso, outro claro elemento de união dos contos e crônicas
publicados no Ato-I é a utilização do aparato literário como mecanismo de reflexão
sobre o próprio entorno, utilizando bairros populares, favelas e conjunto habitacionais
como palco preferencial das narrativas ficcionais. Seja no conto de Paulo Lins, que se
faz presente com Destino de artista, ou na poesia de Sérgio Vaz, presenciamos a
construção de uma literatura engajada.
Nos Atos II e III, a segunda e terceira edição do suplemento lançadas em 2002
e 2004 respectivamente, os textos literários, em sua grande maioria, continuam
33
recebendo uma potencialidade política baseada na denúncia, demarcando territórios e
sujeitos da periferia com o desejo de formar uma reflexão acerca de uma condição
social baseada na vulnerabilidade. No entanto, ao lado deste engajamento vemos
também a presença de uma escrita sem a produção de apelos claros a uma tomada de
consciência por parte do leitor. Exemplo disto são os textos produzidos por alunos de
uma escola pública nas cercanias da favela da Vila Flórida, em Garulhos, com
destaque para Olhar, de autoria de Vilma: “Não te vejo/ Pois com teu olhar/
Desapareço/ Não te sinto/ Pois no teu tocar/ Desfaleço”, e Lágrimas, de Silmara
Carvalho, “No meu rosto correm/ lágrimas de um desespero/ sem fim como um grito/
inútil de folhas secas no/ jardim.”, ambos publicados no Ato II. Além destes
exemplos, é igualmente possível observar que os textos poéticos de Marco Antônio,
morador da Cidade de Deus, favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro, também fogem
a esta caracterização. Nos poemas são apresentadas as angústias de um eu lírico em
contato com as desventuras de um amor não correspondido, como em Reverso e A ti,
e sobre o ato de escrita poética, como em Manuscrito. Em seus cinco textos
publicados, Marco Antônio apresenta uma visão sobre o homem, independente do seu
lugar ou papel social, estabelecendo uma fissura no exercício crítico que almeja
ordenar de forma estanque os escritos produzidos pelo movimento a partir de uma
leitura centrada em um eixo temático marcadamente político.
Além disso, mesmo nos textos que possuem como cenário e tema central os
bairros da periferia, é possível observar a realização de um tratamento do cenário
periférico a partir de procedimentos literários mais sofisticados e inspirados em
formas canônicas da literatura. Dona Laura e Tico, autores que tiveram seus contos
publicados pelo suplemento, são exemplares neste sentido. A primeira, apresentada
como “porta-voz da sua comunidade na colônia de pescadores Z-3, em Pelotas, RS”,
participou do Ato II com o conto “Os olhos de Javair”(2002) e do Ato III com o “A
vingança de Brechó”(2004), ambos posteriormente publicados na coletânea. Nos
contos de Dona Laura é visível a busca por uma linguagem culta, com um manejo
peculiar da escrita, utilizando procedimentos que apontam para um tratamento
distinto dos personagens e situações descritas. Em “A vingança de Brechó”, para citar
apenas um exemplo que ratifica o argumento apresentado, a narração do assassinato
34
de uma personagem torna clara a opção da autora por uma forma de representação
distinta da maioria dos autores reunidos no suplemento:
Rosa que nasceu no lodo tem vida curta, e nem é pela lama existente, e sim pelos olhares cobiçosos. Potira era uma semente rara, desviada da estufa. Aconteceu. O assassino, após saciar os seus instintos malignos, deixou o corpo dela à beira da cachoeira, para ser encontrado, e foi, ainda quente. (Dona Laura, L.M. III, p. 26)
Rompe-se com o realismo, não acompanhamos a ação do assassino, ocorre um
movimento oposto, o ato é apresentado em apenas um verbo: “Aconteceu”. Domina o
trecho a utilização de metáforas, ofertando para o evento narrado uma compreensão
distinta. Ao descrever a personagem como uma rosa que nasceu no lodo, a autora
estabelece uma nova perspectiva para o tema que será apresentado, afirmando que
não será o em torno que podará sua vida, mas, sim, os olhares cobiçosos lançados
sobre a rosa. Na leitura dos contos de Dona Laura é possível observar que os
personagens e o próprio cenário não são construídos através de um quadro realista,
impregnado da referência de um dado factual. Ao contrário, são personagens
construídos a partir de um exercício de escrita ficcional ancorado em modelos
consolidados da literatura.
Leitura semelhante pode ser realizada do conto “Uma noite com
Neuzinha”(2004), de Tico, autor que “nasceu e mora no Jd. Umariza, periferia de São
Paulo, é anarquista, exerce a não-posse e faz de sua vida uma atividade sem fins
lucrativos”. Com uma clara referência à literatura beatnik, Tico apresenta uma
narrativa em primeira pessoa que possui como enredo a relação entre o protagonista e
Neuzinha. O conto é aberto com o relato sobre a vista da cidade a partir de uma janela
do hospital em que Neuzinha se encontra:
Pela janela do corredor do hospital, eu observava os vitrais da igreja do outro lado da rua. Começava a anoitecer e, à medida que a luz cedia lugar ao brilho da lua e algumas lâmpadas iam sendo acesas, elas iam ganhando matizes diferentes, ficando mais bonito. Neuzinha ia gostar. (Tico, L.M. III, p. 4).
Após deixar o hospital, o personagem segue para casa, sem antes parar em um
bar:
Caminhei até a praça, peguei a rua da biblioteca desci um pouco mais e fui ao bar de dona Bina, famoso pelas alquimias etílicas, cujas fórmulas ela
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não revela a ninguém, onde há pingas e batidas feitas das misturas mais insólitas, birita para todos os gostos. A minha preferida e um dos grandes orgulhos de dona Bina é o rabo-de-galo diet. Bebi quatro desses, pedi uma lata de cerveja, paguei e saí.(Idem, Idibem)
Em oposição à fórmula recorrente dos textos de outros autores marginais, o
álcool e seu espaço por excelência, o bar, não são criticados ou denunciados como
símbolos de uma vida alienada. Ao contrário, o tom empregado pelo autor revela uma
perspectiva apologética. Leitura semelhante pode ser feita do encontro do narrador
com um grupo que se aquece envolta de uma fogueira:
Cinco homens e três mulheres fumavam maconha e bebiam, aquecendo-se junto ao fogo, que ia sendo alimentado com os caixotes de feira, galhos secos e os destroços de um sofá. Diga lá, mano! Como é que é, maluco? Tá afim de dá um doisinho? Banzaixé, saravoé! – saudei meus companheiros. Bebi uns goles de pinga e dei três ou quatro tapas no baseado. Arrastei um caco de bloco de cimento até onde pudesse sentir o calor das labaredas e me sentei. Mantive-me quase toda a noite calado. (Idem, Ibidem)
O relato do consumo das drogas e do álcool não deixa dúvida, não há espaço
para o estabelecimento de uma moral. O texto, em um sentido claramente oposto aos
outros escritos marginais, não visa orientar os leitores, o autor não é um porta-voz,
não deseja produzir um discurso capaz de formar um novo tipo de engajamento
político. Não obstante, o desfecho do conto torna mais evidente o sentido antagônico
que a presença do conto realiza no suplemento. Após avistarem um rato em meio ao
entulho e lixo amontoado nas proximidades da fogueira, os homens e mulheres atiram
incessantemente pedras em direção ao animal, tornando-o apenas “uma massa,
amarelada, cinza e vermelha”. Com o amanhecer e a fome ganhando vulto nos
corpos, o grupo, incentivado por uma “ruivinha”, decide reacender a fogueira e assar
o animal:
As tripas foram retiradas com um canivete e o que restou do cadáver foi espetado numa vareta de guarda-chuva e suspenso ali por duas forquilhas improvisadas. Eu também estava com vontade de um trampo. Ninguém tinha mais dinheiro. Enfiei novamente a mão no bolso e não encontrei nem ao menos uma moeda, apenas senti alguns grãos um tanto melados se grudarem às pontas dos dedos.
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Olhei o sol que vinha surgindo atrás dos pés de mamona e das lajes das casas e fui arremessando as sementes de mexerica no córrego, pensando se Neuzinha gostaria de carne de rato. (Idem, Ibidem)
É do próprio autor a melhor definição da função de sua arte, conforme é
descrito na nota de apresentação de Tico: “deseja com sua ficção o que acredita ser a
‘função’ de toda a arte: deleitar, despertar, espantar, emocionar, subverter”.
Claramente inspirando em Charles Bukowski, Tico não deseja que sua literatura
tenha uma ‘função’ além da própria experimentação artística, não almeja, assim, criar
uma estrutura discursiva que aponte um caminho a ser trilhado. Seu intuito, como o
próprio Tico esclareceu, é o deleite, o espanto, a subversão e a emoção. Após ler
“Uma noite com Neuzinha” e travar contato com a sua singular concepção de
literatura e com seus experimentos literários, podemos afirmar que o autor teve êxito.
Autores como Marco Antônio, Dona Laura e Tico são exceções, recebe maior
vulto a reincidência do tratamento literário da violência por parte dos outros autores.
Estes utilizam as ferramentas da literatura para o estabelecimento de uma
compreensão das estruturas sociais desiguais e para denunciar as situações de
vulnerabilidades sofridas pelos residentes em favelas e bairros de periferia. Resulta
disto a construção de uma imagem complexa para o movimento devido não apenas a
diversidade de temas abordados, mas, sobretudo, ao modo como estes são abordados
através de linguagens múltiplas e tratamentos distintos, deixando, como observou
Ângela Maria Dias no artigo já citado, a crítica literária que se ocupou destas obras
perplexa.
A fuga da perplexidade pode ser a tomada de um caminho de análise que
oriente um duplo exame, estruturando uma leitura dos textos literários da Literatura
Marginal ancorada na compreensão da dimensão política e social de sua intervenção
enquanto manifestação artística e literária. Trata-se, nesse sentido, de compreender as
heterogêneas escritas a partir de um local de enunciação homogêneo. Por este viés,
será operada uma forma de análise de possibilite a ordenação de textos tão dispares
com um mesmo aparato crítico, buscando observar quais as possíveis aproximações e
distanciamentos dentro de um mesmo conjunto.
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Mas, a tarefa do crítico não é tão simples assim. Por se tratar de um dado
novo, símbolo da insurreição dos sujeitos silenciados – para citar uma expressão
empregada por Michel Foucault - é necessário criar uma estratégia de análise que
identifique a particularidade do movimento, oferecendo um recorte específico para o
sentido social e político da presença destes autores marginais em nossa literatura. Por
este viés, é digno de nota que os primeiros estudos acadêmicos centrados na análise
especifica desses escritos tenham sido produzidos por pesquisadores da área das
Ciências Sociais, como as dissertações: Literatura Marginal: os escritores da
periferia entram em cena, de Érica Peçanha Rodrigues, defendida no Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, e depois lançada em livro pela Editora
Aeroplano, em 2009, sob o título Vozes marginais na literatura; e Cultura e
violência: autores, polêmicas e contribuições da Literatura Marginal, de Rogério de
Souza Silva, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade
de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista em 2006. Em ambos estudos,
a Literatura Marginal é analisada não apenas enquanto movimento literário, mas,
sobretudo, social. Busca-se compreender o sentido político e social da inserção destas
vozes periféricas na série literária e, igualmente, as relações que tais textos e autores
mantém com os bairros de origem. O foco da investigação, mesmo utilizando como
objeto de análise textos ficcionais e seus respectivos autores, não se restringe ao
literário, expande-se e passa a observar o seu sentido político, social e cultural. O
percurso destes estudos reflete o movimento que os próprios textos literários
realizam, utilizando o discurso literário, seja em prosa ou poesia, para a estruturação
de uma complexa rede social e formação de uma política identitária própria. Nessa
perspectiva, os autores, sobretudo os detentores de uma enunciação marcada por um
forte sentido político, passam a figurar também como objetos de análise, uma vez que
(...) é digno de nota o empenho de um número considerável de jovens das periferias urbanas em elaborar sua experiência através da palavra e dá-la a conhecer por meio de práticas discursivas associadas à tradição literária. Em tempos de profundas dúvidas e questionamentos quanto à sobrevivência das tradições literárias no futuro próximo, a opção destes jovens em construir identidades a partir da palavra escrita, (...) reclama uma reavaliação dos critérios e perspectivas com as quais nós mesmos,
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críticos literários, tendemos a ler o lugar da literatura e de nossas práticas profissionais na sociedade (Rodrigues, 2003, p. 50)
No entanto, estabelecer o viés sociológico como principal ferramenta de
análise impede a realização de uma leitura do aparato literário utilizado por estes
autores, preterindo uma compreensão do discurso que é veiculado nas obras. Desse
exercício também resulta a valorização do papel social que os escritores marginais
encenam em suas respectivas comunidades, vistos agora mais como “objetos” do que
como sujeitos do processo simbólico literário. É importante ressaltar que o enfoque
sociológico ofertado nos estudos sobre a Literatura Marginal não apresenta nenhum
equívoco, mas é insuficiente conceber os escritos produzidos no âmbito desse
movimento apenas enquanto um dado social. Paradoxalmente, o olhar do crítico,
desejoso em valorizar o ato de rebelião protagonizado pelos sujeitos marginalizados
ao utilizarem a literatura como veículo para a construção de sua identidade e
apresentação de suas ideias, abandona o exame do discurso. Desse exercício crítico
deriva uma análise que não valoriza tais autores enquanto sujeitos da enunciação,
sendo concebidos apenas como portadores de uma voz outrora silenciada. Faze-se
necessário utilizar uma clave de leitura que possibilite uma análise conjugada: ler no
texto literário a presença do sentido político e social do movimento.
É necessário, portanto, buscar novas formas de análise que coloquem em
relevo as particularidades desses textos, observando a tênue fronteira entre ficção e
testemunho de uma condição de vida marginal, e as relações que este ato de escrita
mantém com os espaços periféricos. Uma possibilidade de análise rentável, para o
caminho aqui estabelecido, é a utilização do conceito de “literatura menor” proposto
por Gilles Deleuze e Félix Guattari, a partir da leitura da obra de Franz Kafka. De
posse deste referencial, mesmo que o conceito tenha sido formado para a leitura da
obra de um autor que em nada se assemelha aos escritos produzidos na periferia
brasileira, torna-se possível conjugar os aspectos extra-literários com as
singularidades próprias a cada texto.
A utilização do conceito “literatura menor” é recorrente nas pesquisas da área
de literatura e cultura no Brasil, o caminho que aqui se abre não é inédito. Utilizam o
conceito: Luiz Eduardo Franco do Amaral, em Vozes da favela, dissertação de
39
mestrado que utiliza a expressão literatura de favela para designar as recentes
produções literárias de autores oriundos destas localidades; Maria Conceição Evaristo
de Brito, em Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade, para analisar a
relação entre autor e comunidade negra no caso específico de seu objeto; Écio Salles,
em Poesia revoltada, para observar a presença de uma voz coletiva nas composições
de RAP, e Stefania Chiarelli, em Vidas em trânsito, para expor a condição peculiar da
escrita em deslocamento de Sammuel Rawet, para citar alguns. O tratamento que
pretendo oferecer ao conceito será baseado na experimentação, promovendo o atrito
entre o meu objeto e um conceito formulado para uma obra específica. Não desejo
apenas a simples denominação da Literatura Marginal como uma “literatura menor”,
emoldurando-a com este termo. Busco observar os limites e potencialidades do
emprego desta referência teórica no tratamento das obras literárias selecionadas que
compõem este movimento literário, concebendo-o como uma produção referencial de
um setor específico.
É igualmente importante destacar a percepção de um dos autores da Literatura
Marginal sobre o conceito que pretendo utilizar. No prefácio do já citado volume
Literatura Marginal: talentos da escrita periférica, Ferréz, organizador da obra,
apresenta uma clara oposição à denominação de sua produção e de seus pares como
“literatura menor”, como evidencia a passagem a seguir: “Hoje não somos uma
literatura menor, nem nos deixemos tachar assim, somos uma literatura maior, feita
por maiorias, numa linguagem maior, pois temos as raízes e as mantemos.”(Ferréz,
2005, p. 13). Decerto, em primeiro momento causa espanto utilizar um termo com
tamanha carga pejorativa para designar tais escritos e, ao menos creio eu, a crítica de
Ferréz em relação ao termo é baseada nessa apreciação. O autor, personagem
fundamental na construção do movimento, conforme explicitei anteriormente,
rechaça o uso de um conceito que em primeira leitura apresenta o estabelecimento de
uma hierarquização. De acordo com a compreensão de Ferréz, se há uma “literatura
menor”, certamente há de existir a “literatura maior” – uma equação correta. No
entanto, é importante esclarecer, o termo menor, no pensamento deleuziano, designa a
construção de uma estrutura política própria no seio de um grupo maior. Em outros
termos, ser “menor” é utilizar como estratégia de atuação um posicionamento de
40
resistência. Por este viés, seguindo os passos de Deleuze e Guattari, busco examinar a
potencialidade de resistência da Literatura Marginal dentro de uma série maior. Na
formulação de Deleuze e Guattari, uma literatura menor não é, em primeira instância,
uma hierarquização de certos procedimentos literários que um grupo minoritário
realiza frente a uma série hegemônica, “mas as condições revolucionárias de toda
literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida)”(Deleuze e
Guattari, 1977, p. 28) Dessa forma, uma literatura menor é, antes de tudo, uma
proposta de agenciamento político através de uma escrita que rasura o estabelecido.
Na caracterização proposta pelos autores, uma literatura menor se constitui em
três aspectos. O primeiro é a utilização que uma minoria faz de uma língua maior,
alterando-a a partir de um procedimento marcado “por forte coeficiente de
desterritorialização”(Idem, p.25). Devemos lembrar que a análise de Deleuze e
Guattari se baseia na relação que Kafka mantinha com a língua alemã e que “o
alemão de Praga é uma língua desterritorializada, própria a estranhos usos
menores”(Idem, p. 26). O segundo aspecto apresentado se concentra na compreensão
de que na literatura menor o enunciado adquire uma potencialidade política. Posto
que, por se tratar de uma produção intimamente ligada a um grupo minoritário, fator
este que limita a emergência de inúmeras vozes, “seu espaço exíguo faz com que cada
caso individual seja imediatamente ligado à política”(Idem, Ibidem). E, por
conseguinte, o terceiro aspecto da literatura menor é o seu valor coletivo,
“precisamente porque os talentos não abundam em uma literatura menor, as
condições não são dados de uma enunciação individuada, que seria a de tal ou tal
“mestre”, e poderia ser separada da enunciação coletiva”(Idem, p. 27).
Contudo, julgo necessário estabelecer os limites para a utilização do conceito
de Deleuze e Guattari em minha análise da Literatura Marginal, sobretudo em relação
ao processo de desterritorialização da língua. Minha resistência teórica advém da
compreensão de que nos escritos dos autores marginais – seja em Ferréz, Allan
Santos da Rosa ou Sacolinha, para citar alguns – não encontramos a realização de um
choque de linguagens tal qual definido por Deleuze e Guattari. É possível observar ao
menos a utilização de uma série de expressões próprias das periferias dos grandes
centros urbanos, produzindo assim uma escrita centrada na elaboração de
41
neologismos. No entanto, estabelecer uma fronteira rígida entre os espaços centrais e
as esferas marginalizadas a partir do tópico da linguagem resultaria em um
procedimento analítico que (re)produziria uma compreensão estigmatizada acerca
dessa população. O estigma se dá na busca por uma linguagem que seja própria da
periferia, esquecendo-se de que as falas produzidas nas margens são, antes de tudo,
heterogêneas e impulsionadas por grupos sociais específicos e dotados de códigos
culturais distintos. Além disso, mesmo que possamos estabelecer as marcas de uma
linguagem originada nos espaços periféricos, os códigos lingüísticos não obedecem
fronteiras espaciais rígidas. Mesmo apresentando os limites e impossibilidades de
utilização do aspecto da linguagem que o conceito apresenta ao ser aplicado na
Literatura Marginal, irei mantê-lo. Observo apenas a existência de uma outra tensão,
esta se dá no confronto entre uma expressão escrita formal e um imaginário que se
exprimiu, durantes séculos, através da oralidade.
Por este viés, o conflito entre linguagens, que na leitura de Deleuze e Guattari
acerca da obra de Kafka se baseia na oposição de línguas nacionais, na produção
discursiva da periferia brasileira se dá na encenação da disputa por um espaço de
enunciação, como observa Ferréz no prefácio, “Terrorismo literário”, do volume
Literatura Marginal:
Mas alguns dizem que sua principal característica [da Literatura Marginal] é a linguagem, é o jeito como falamos, como contamos a história, bom, isso fica para os estudiosos, o que a gente faz é tentar explicar, mas a gente fica na tentativa, pois aqui não reina nem o começo da verdade absoluta. (Ferréz, 2005, p. 12-13)
Retomando as palavras de Ferréz, uma das principais características desta
produção literária é corromper a linguagem formal, construindo uma outra linguagem
que não é mais a oralizada, e, tampouco, é um experimento marcado pela norma
cultura. É nesse interstício que a expressão literária destes autores oriundos de
bairros populares ganha mais vitalidade. No entanto, os procedimentos adotados
pelos autores para instaurar uma linguagem de rasura na estrutura literária
hegemônica são os mais variados possíveis. Se em Allan Santos da Rosa a linguagem
oral é resultante de um exercício de contato com saberes subalternizados e quase
esquecidos, revelando uma ancestralidade na expressão literária, como podemos
42
perceber em Da Cabula (2006) e Zagaia (2007), nos textos literários de Ferréz, para
citar um contraponto, as gírias próprias dos rappers instauram a presença da oralidade
em sua obra. A divergência de procedimentos é resultante da própria forma de
apresentação do grupo. Não é escusado lembrar, como já foi explicitado
anteriormente, que a Literatura Marginal não se baseia em pressupostos estéticos
estanques que fixam normas literárias. Em principio, o único elemento que une as
diversas vozes contidas no grupo é a afirmação do mesmo espaço de enunciação: a
margem. Mesmo sem fundar um estatuto estético próprio, o grupo de autores que se
reúne sob o título de marginais apresentam como marca recorrente a busca por uma
linguagem que possa abarcar uma fala que se assemelha a uma expressão que se quer
própria da periferia. Explicitada esta questão, passemos a explorar a proposta de
leitura dos textos marginais a partir do conceito.
O conto “Colombo, pobrema, problemas”, de Gato Preto, publicado na
coletânea Literatura Marginal, é um bom exemplo de estruturação de um discurso
literário minoritário, oferecendo uma compreensão coletiva para trajetórias
individuais. Além disso, é perceptível o desejo de construção da realidade periférica a
partir de uma lógica maniqueísta com um visível intuito doutrinário através de uma
fala pedagógica, procedimento presente em outros textos da Literatura Marginal. Na
narrativa acompanhamos o percurso do narrador pelas ruas da localidade Colombo,
favela localizada na periferia da cidade de São Paulo. Na abertura do conto, o
narrador encontra um personagem que abandonou sua terra natal, no Nordeste, para
residir na cidade grande:
- Opa, como está, seu Chico? Como vão as coisas? Vô bem. Tabaianu muntcho...E você, Artino? Como vai as musga? Fazenu muntchu xô?”(Preto, 2005, p. 64)
Após tal diálogo, o narrador do conto, que pode ser compreendido como
próprio autor da narrativa, se dirige a outro interlocutor, possivelmente o leitor, e
comenta:
Olha lá, ali vai um dos verdadeiros guerreiros da favela. O nome dele é Francisco, os vizinhos e quem o conhece o chamam de seu Chico, tá na favela do Colombo há vários anos e ele é um dos muitos nordestinos retirantes que veio para as grandes capitais seguindo a lenda de melhores
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dias pra sua vida, e quando chega bate de cara no muro da desilusão. (Idem, Ibidem).
O trecho citado acima utiliza como referência para a apresentação do
personagem uma abordagem sociológica da trajetória de vida do mesmo, lançando
mão para tanto de uma leitura das diferentes intervenções que as macroestruturas
sociais operaram em sua vida privada. O personagem em questão, “seu Chico”, surge
também como representante de um grupo específico, pois “ele é um dos muitos
nordestinos” que migraram para o sudeste, abandonando a terra natal. Procedimento
semelhante também é empreendido para compreender/justificar o consumo de drogas
por parte de um jovem da favela:
Porra, tá foda, a maioria dos moleque tá tudo envolvido com a porra da droga, esse aí é um dos que estão complicados (...) Aí: só tem cinco anos que eu vi esse moleque, inocente, era do colégio pra casa, hoje tá acelerado, nervoso, sempre de respiração ofegante num corre-corre desesperador, é a porra do crime e sua fantasias, vários de mente inocente iludido, e nós já vimos muitos espelhos, exemplos de quem já se envolveu com cenas erradas, mas eles não tão nem aí nem tão chegando, querem nome, status, moral na quebrada. (Idem, p. 65-66).
O olhar do narrador não observa as singularidades dos personagens que
entrecortam seu percurso, mas, sim, o sentido coletivo. O jovem descrito no trecho
acima não é o único a deixar-se levar pela engrenagem do crime e das drogas,
existem vários “exemplos de quem já se envolveu com cenas erradas”, ou, como
próprio autor define, “muitos espelhos”. Os personagens passam a ser imagens
refletidas de um sujeito real. No entanto, a busca pelo real realiza-se através da visão
que o narrador apresenta sobre os personagens, sempre amparada em um
procedimento de análise que se quer sociológico. Não é o efeito estético que aponta
para o realismo da escrita, mas, sim, a presença de situações de vida que são
claramente retiradas de um dado real factual. É recorrente a utilização deste
procedimento no conto, criando uma estrutura própria. O percurso do narrador é
entrecortado por diferentes encontros, e a cada interrupção da caminhada há a
formação de um diálogo que apresenta minimamente o personagem para,
posteriormente, ser realizada a indexação deste ao universo da favela do Colombo. É
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com este olhar que busca formar um amplo mosaico das diferentes trajetórias sociais
da periferia, que o autor Preto [re]constrói a história de vida dos personagens.
Procedimento semelhante é apresentado por Eduardo, no conto “Algo
mudou”, publicado no suplemento Literatura Marginal, a cultura da periferia – Ato
III. O autor, que também é rapper do grupo Facção Central – grupo que ganhou
notoriedade após a proibição da exibição do vídeo-clipe da música “Isso aqui é uma
guerra”, do álbum Versos sangrentos(1999), denunciado por apologia ao crime,
segundo o Ministério Público – apresenta em sua narrativa o despertar de um
personagem e seu caminhar pelas vielas e becos de uma favela da periferia de São
Paulo:
Hoje eu acordei diferente, porra eu tô me sentindo estranho, alguma coisa mudou e eu não consigo identificar, o que é, as goteiras da brasilite tão aqui, os furos de bala dos gambé nas maderite também, e aliais eu ainda tô morando numa casa construída de maderite, ah!. Caralho deve ser isso, se pá tem pãozinho, já pensou um com manteiga, café com leite, ou talvez até leite com Nescau, que rufam os tambores, momento de expectativa, eu vou abrir o armário, armário entre aspas né?, eu vou abrir o conglomerado de caixote de feira construído pelo meu pai, 1,2,3 e...infelizmente também não é isso. (Eduardo, L.M.III. p. 20)
A relação que o autor mantém com o RAP e a cultura Hip-Hop não pode ser
descartada e será objeto de análise no próximo capítulo, no momento interessa-me
destacar como será feita a descrição da comunidade pelo narrador através de seu
caminhar, enquanto examina qual foi a mudança operada que o fez acordar diferente
naquela manhã. O narrador primeiramente observa sua residência, buscando
identificar alguma mudança. Mas, se não foi possível observar nenhuma alteração em
sua casa, pois a mesma continua sendo de madeira e com goteiras no telhado, o
personagem passa a procurar pelas vielas e becos da comunidade, interrogando-se o
que mudou naquele local.
Os pontos de ônibus tão cheio, uns esperando o ônibus que não vem, outros esmagando na lotação com capacidade para 16 com mais de 30, meus parentes, meus manos, tão indo pra cadeia, pro cemitério, as crianças continuam estudando sentadas no chão (...) Bom, os crentes tão entregando folheto, jornalzinho, tentando mais fiéis pro rebanho do pastor, tentando convencer a favela da 2ª vinda, tudo normal (...) A trilha sonora do inferno continua a mesma, muito rap, alguns cantando a real sem tremer, sem pagar, cumprindo a missão (Idem, p. 21)
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O olhar do narrador, centrado no exame de seu em torno na busca por um
índice que revele qual foi a mudança realizada em sua comunidade, passa a
apresentar a partir de sua perspectiva o cotidiano da comunidade, colocando em
relevo os elementos que a constitui. No entanto, não é realizada apenas a simples
descrição. De forma recorrente, estruturando inclusive um modelo de narrativa, após
apresentar os elementos do cotidiano da favela ( os ônibus lotados, os evangélicos na
rua, a música do RAP ) é formado exame destes elementos. Dessa forma, se o RAP é
descrito como a trilha sonora do inferno e é exaltado por “cantar a real sem tremer”,
os ônibus lotados são objetos de uma apreciação no seu sentido reverso, formando
uma denúncia de sua precariedade.
O desfecho do conto é esclarecedor do objetivo do autor ao apresentar a
narrativa, após percorrer toda a extensão da comunidade e perceber que nada foi
alterado, o personagem aproxima-se do retrovisor de um carro e descobre que a
mudança foi realizada nele próprio. Não no seu aspecto físico, mas em seu
comportamento:
Falando em espelho de carro, que Audi muito louco só o Robocop deve dá uns 500 conto, se for o que tem MD então, ou aquele de 2 CDs, tô feito, a fita é o seguinte: vou esperar o dono de campanha, faca, boy, caralho é isso, infelizmente é isso mesmo, descobri o que mudou, a mudança tá no meu coração, ele foi petrificado, arrancaram o amor e injetaram o ódio, agora o sangue que ele bombeia pro meu cérebro vem contaminado por um sentimento de “vingança” por tudo de ruim que eu vivo e vejo. (Idem, Ibidem).
A grande mudança operada no personagem é o surgimento de um sentimento
de “vingança”. A mudança é repentina, ocorrendo de forma abrupta e difícil de ser
percebida. No entanto, tal desejo de vingança que se instala no peito do personagem e
passa a guiar suas ações poderia também se fazer presente como resultado de seu
caminhar pela comunidade. Ao travar contato com a realidade do seu bairro,
examinando-a com mais atenção na busca por algo distinto, os elementos cotidianos
se tornam mais gritantes, ganham uma visibilidade maior. A situação de
vulnerabilidade apresentada no conto surge como elemento causador da violência do
furto. O desejo de arrombar o carro, munido com uma faca na espera do proprietário,
surge com alarde para personagem. É uma mudança brusca, causa espanto ao
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personagem/narrador, mas, de acordo com o desfecho do conto, a opção pelo crime é
um caminho quase natural. Os elementos que potencializaram tal transformação
foram descritos em sua precariedade rotineira, inalterados, o desejo de vingança,
como o próprio autor afirma, foi despertado “por tudo de ruim que eu vivo e vejo”.
Nos textos analisados acima, Gato Preto e Eduardo apresentam o exercício
literário como veículo de uma orientação. O tom empregado nos textos, estruturado
em uma linguagem direta, visa orientar os jovens de periferia, dotando-os de um
ethos próprio. O objetivo, claramente ancorado em um engajamento através da
literatura, aponta para o desejo de formar um povo que se configura de forma
anômala, espraiado nas margens urbanas. A formação deste povo marginalizado se dá
na sua ficcionalização, empreendendo para isso o resgate de elementos reais e fatos
concretos. Nesta articulação entre ficção e realidade, o povo é reinventado,
favorecendo a construção identitária a partir de um discurso de afirmação. A leitura
realizada por Deleuze acerca do projeto político do cinema do terceiro mundo, em A
imagem-tempo, pode ser utilizada como um índice de análise das formas de
agenciamento realizadas pelos autores da Literatura Marginal:
É preciso que a arte, particularmente a arte cinematográfica, participe dessa tarefa: não dirigir-se a um povo suposto, já presente, mas contribuir para a invenção de um povo. No momento em que o senhor, o colonizador proclama ‘nunca houve um povo aqui’, o povo que falta é um devir, ele se inventa, nas favelas e nos campos, ou nos guetos, com novas condições de luta para as quais uma arte necessariamente política tem que contribuir. (Deleuze, 2005, p. 259-260)
Inventar um povo, nos termos de Deleuze, não é, necessariamente, a
construção de uma imagem do povo a partir do próprio artista, tampouco é abandonar
a realidade para rearticular este povo em devir, criando uma ficção deste povo. O
povo inventado, a partir da arte menor, é fruto de um duplo movimento, operado a
partir de uma ficcionalidade.
Resta ao autor a possibilidade de se dar ‘intercessores’, isto é, de tomar personagens reais e não fictícias, mas colocando-as em condição de ficcionar por si próprias, de ‘criar lendas’, ‘fabular’. O autor dá um passo no rumo de suas personagens, mas as personagens dão um passo rumo ao autor: duplo devir. A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca pára de atravessar a fronteira que separa seu assunto
47
privado da política, e produz, ela própria enunciados coletivos. (Idem, p. 264)
A fala coletiva da Literatura Marginal, que para setores da crítica literária foi
concebida como um elemento perturbador do exercício crítico, a partir do referencial
teórico deleuziano emerge como signo diferenciador da proposta política da arte
menor. A singularidade desta enunciação se dá na possibilidade de [re]articular
elementos ficcionais e reais, construindo uma produção literária que se baseia na
fronteira entre o privado e o público. A enunciação coletiva, observada por Deleuze
em sua análise das formas de agenciamento do cinema do terceiro mundo, se faz
presente na produção literária marginal a partir da indexação de personagens e
espaços geográficos reais no campo ficcional. Em princípio, tal procedimento pode
ser lido como um exercício etnográfico, uma vez que a demarcação do território
periférico, assim como a construção de personagens, se assemelha aos seus pares
factuais, facilitando assim a indicação de uma simples transposição de elementos
reais para o terreno literário ficcional. No entanto, este procedimento favorece a
construção de um novo olhar sobre o espaço marginal, e, por conseguinte, a
observação crítica deste território e de seu povo. A produção desta articulação entre
real e ficcional se dá em ato, no constante diálogo que o texto literário busca manter
com o espaço representado.
Dessa forma, estes índices de realidade, que podem ser o território e/ou
sujeitos, obedece a um intuito específico: cita-se a realidade na ficção para formar
uma abordagem politizada da marginalidade. É com este intuito, por exemplo, que
Gato Preto, no conto “Colombo, pobrema, problemas”, constrói seu percurso
ficcional pela favela do Colombo. Para a realização de um agenciamento, as histórias
privadas se tornam públicas não apenas pelo exercício crítico do autor, mas pela
própria abordagem crítica que o narrador imprime em sua análise sobre a intervenção
das ações políticas, originárias de uma macroestrutura, na trajetória pessoal dos
personagens. A enunciação coletiva, nesse sentido, surge como resultante da própria
estrutura textual do conto. As histórias narradas são edificadas não apenas pelo
próprio narrador do conto, mas pela intervenção dos próprios personagens/sujeitos na
narrativa. Além disso, por optar em compreender a marginalidade a partir de uma
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clave centrada na macroestrutura, Gato Preto possibilita também que seu exercício
seja ativado em outras localidades. Favorecendo assim a construção de uma imagem
unívoca para diferentes espaços e/ou sujeitos periféricos.
Decerto, uma manifestação literária nascente faz-se a partir dos elementos
temáticos que estão ao seu entorno. Tal escolha de cenário deriva, primeiramente, da
emergência de tornar público aspectos que outrora eram apenas examinados por
intelectuais não pertencentes aos extratos marginais. No entanto, a reincidência da
periferia como cenário na Literatura Marginal visa, na minha leitura, a uma
abordagem crítica de uma realidade concreta.
Tal forma de agenciamento político através da literatura é possível ser
encontrada no conto “Tentação”, de Alessandro Buzo, publicado em Literatura
marginal, talentos da escrita periférica. A narrativa é iniciada com a descrição de
uma cena: “Na roda da fogueira que nunca cresce e nunca se apaga estão Matraca,
Coelho e Cezinha, eles comentam com sobre Júnior com saudades...”(Buzo, 2005, p.
105) Após esta descrição, utilizando uma narração em flash-back, a narrativa
concentra-se na trajetória do personagem que é rememorado pelos amigos. A história
de Júnior é tratada de forma linear, mas há o efeito de suspensão, provocado pela
cena descrita na abertura do conto. Dessa forma, acompanhamos a trajetória do
personagem questionando quando será relatada a sua morte. É com tal premissa que o
narrador enumera, sem estender-se, os principais aspectos de sua infância e
adolescência.
Foi uma criança comum de favela, que corre descalça por ruas de terra, que solta pipa, brincou de pião, bolinha de gude, esconde-esconde e os primeiros beijos numa garota foi brincando de beijo, abraço ou aperto de mão. O Tijuco Preto [nome da favela que serve de cenário à narrativa] até hoje em pleno 2004 tem sua rua principal sem asfalto. (Idem, idem. Grifo meu)
Mesmo que de forma simplificada, a articulação entre ficção e realidade
favorece a criação de uma forma de agenciamento. Ao apresentar o cenário do conto
em sua materialidade contemporânea, dado este sem nenhuma relevância para a
economia da narrativa, o autor aponta para a necessidade de recriação de um olhar
para as condições físicas da periferia. Narra-se não apenas a ficção de um jovem de
uma favela, mas a historicidade de todo um espaço marginalizado. Nesse sentido, a
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própria trajetória do personagem confunde-se com a de outros sujeitos. A afirmação
da ausência de um dado intrínseco ao personagem, pois é descrito como “uma criança
comum da favela”, torna a história privada do personagem em uma história coletiva.
Deleuze, no ensaio “Literatura e vida”, apresenta uma definição do fazer literário das
minorias que é útil para a análise que realizo: “Embora remata a agente singulares, a
literatura é agenciamento coletivo de enunciação”(Deleuze, 1997, p. 14-15). É com
este tom coletivo que o narrador aponta os elementos constituintes da opção do jovem
pelo tráfico de drogas: “Como estava com dezessete anos não conseguiu emprego
nenhum, a fase do Exército quebra as penas de vários jovens”(Buzo, op. cit., p. 106,
Grifo meu) O desfecho, por sua reincidência, seja na ficção ou na realidade, é
conhecido: sem dinheiro e sem oportunidades seguras, o personagem passa a assaltar
e atuar como varejista do comércio de drogas, acabando morto ainda adolescente pela
polícia. Fechando o conto, o narrador retoma a imagem apresentada na abertura: “Na
rodinha em volta da fogueira todos lembram dele com saudades e são unânimes, ele
não era do crime, caiu em tentação.”(Idem, p. 107).
Exemplo semelhante pode ser observado em outro conto de Alessandro Buzo,
Toda brisa tem o seu dia de ventania, publicado no Ato I da Literatura Marginal e
posteriormente selecionado para compor a coleção Literatura Marginal, talentos da
escrita periférica. O conto é aberto com a indicação: “O Itaim Paulista dorme. É noite
no último bairro da Zona Leste de São Paulo.”(Buzo, 2005, p101). Após a
apresentação do cenário – descrito como o último bairro do extremo leste da cidade,
revelando sua condição de margem, distante de um centro – temos descrição do
personagem protagonista da narrativa:
Se for verdade que todo paulistano é viciado em trabalho, André é um destes maníacos. Que acredita na força do trabalho, que acredita estar no caminho certo, que acredita que um dia a vida dura vai melhorar, mas até chegar esse dia não se cansa de trabalhar. Pula da cama às cindo da madrugada todo dia e só volta da lida com a lua no céu.(Idem, Ibidem).
Tal qual no conto analisado anteriormente, o personagem também é apontado
como um sujeito semelhante aos demais. Não é o dado intrínseco que revela a
importância do mesmo, mas o oposto, é devido as características típicas do
personagem que o foco lhe é ofertado. O movimento realizado pela narração em
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terceira pessoa torna evidente a busca por um personagem representativo, posto que o
início do conto apresenta o cenário, descrevendo-o sucintamente, e em seguida
focaliza um sujeito. A escolha deriva não de sua singularidade, mas por possuir os
elementos característicos dos muitos trabalhadores residentes nos bairros de periferia
que, em semelhança ao personagem ficcional, também acreditam na força do trabalho
e que um dia a vida vai melhorar. A partir da leitura do conto podemos compreender
melhor o amplo mosaico construído pela representação das margens através da
escrita.
Ao lançar um olhar específico sobre um trabalhador, Alessandro Buzo abarca
também a representação dos sujeitos que não atuam no funcionamento do comércio
varejista de drogas ou que engrossam as perturbadoras estatísticas da violência
armada. Também são alvo da investigação destes autores os trabalhadores residentes
na periferia, os jovens sem perspectiva de futuro, as idosas empregadas doméstica e
analfabeta, enfim, o multifacetado espectro que povoa os becos e vielas dos grandes
centros urbanos. Mesmo que exista uma prevalência por relatos que ofereçam como
principal plano temático a violência provocada pelo avanço do consumo de drogas e
pela inserção dos jovens destas localidades na engrenagem do comércio de drogas, há
também espaço para a tematização de outras formas de violência para além da física e
letal.
Os apontamentos aqui empreendidos a partir da leitura de fragmentos de
textos de autores marginais incidem na constituição de uma proposta de arte
engajada, vinculada diretamente aos territórios que surgem no texto literário não
apenas como cenário, mas como local identitário. São textos formados a partir de um
princípio ético regulador. Não são, em última palavra, discursos moralistas, mas um
instrumento discursivo que busca forjar um perfil próprio para seus pares. Deleuze,
ao observar no fazer literário a possibilidade de construção de signos libertadores,
designa à literatura o papel de construção de uma nova imagem e feição para uma
coletividade:
A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem ou a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas tradições e renegações. (Deleuze, 1997, p. 14)
51
Contudo, mesmo afirmando a necessidade de formular um olhar crítico
específico para o exame do discurso destes textos marginais, amparado em uma teoria
que coloque em destaque a dimensão política de sua intervenção social através do
texto, recuso a ideia de tratar a Literatura Marginal apenas como um movimento
literário. Meu olhar acerca destas publicações se torna mais amplo, tomando-as como
produtos culturais. Por este prisma, concebo tais produções como resultantes de um
complexo empreendimento cultural e político encenado nas periferias urbanas das
grandes capitais do Brasil. Na contemporaneidade temos observado o empenho de
diferentes organizações não governamentais e grupos culturais ligados à periferia em
formar uma imagem própria para si, utilizando como veículo de suas representações a
música, a fotografia e o vídeo. A Literatura Marginal, nesse sentido, não pode ser
tomado como um fenômeno isolado. Mas, no caso específico da literatura, esse
fenômeno se torna mais transgressor. Posto que não se trata somente de ter voz
própria, mas de estabelecer essa voz como meio de expressão coletiva, utilizando
para tanto um espaço do qual esses grupos foram, quase sempre, excluídos: a
literatura.
52
3.
O “cânone marginal”
Em entrevista concedida a Aírton R. Oliveira, nos conta Maria Célia Barbosa
Reis da Silva, Antônio Fraga realiza uma pertinente crítica aos estudiosos de
literatura que buscam aproximar autores e práticas literárias algumas vezes
incompatíveis: “Em geral, os paralelos literários têm o grande inconveniente de
estabelecer semelhanças entre autores, extremamente inócuas ou profundamente
arbitrárias.”(Silva, 2008, p. 182). A voz de Fraga se eleva contra o exercício crítico
que, no afã da descoberta de uma suposta filiação literária, designa aproximações e
encontros que pouco refletem o desdobramento da escrita dos autores investigados.
Mas, mesmo conhecendo a crítica do autor, aceito o desafio e busco aproximá-lo de
outros escritores que, em semelhança à prática literária de Fraga, buscaram exprimir
na letra de fôrma a vivência dos sujeitos que habitam a margem. Assim, ao lado de
Fraga coloco Orestes Barbosa e João Antônio – dois escritores que, cada qual a seu
modo e em semelhança a Antônio Fraga, souberam exprimir em páginas impressas as
sutilezas das histórias encenadas por homens e mulheres que (sobre)viviam nos
espaços subalternizados da cidade.
Ao lançar um olhar específico sobre a produção literária destes autores, busco
colocar em relevo as representações formadas pelos escritores pioneiros no exercício
de fixar em prosa os sujeitos e territórios do subúrbio. Dessa forma, se na
contemporaneidade temos observado o empenho de autores marginalizados em
fundar uma proposta literária centrada no exame do cotidiano da periferia, não
podemos esquecer que tal tarefa não é inédita em nossa literatura brasileira. Orestes
Barbosa, Antônio Fraga e João Antônio serão lidos e analisados aqui como possíveis
autores de um cânone imaginário e próprio da Literatura Marginal. O exercício de
53
aproximação que aqui realizo entre estes autores do passado e os escritores marginais
contemporâneos não é arbitrário, utilizo como fundamento as diferentes homenagens
e citações que autores da Literatura Marginal realizam em suas obras e sítios
eletrônicos. No processo de investigação deste possível cânone literário marginal foi
possível observar que, com exceção de Orestes Barbosa, os autores aqui elencados
são de diferentes formas postos em evidência e apresentados como pioneiros do
desejo contemporâneo dos autores marginais em focar preferencialmente os sujeitos e
espaços não pertencentes a um centro hegemônico. Exemplar nesse sentido é a
utilização de uma passagem de Abraçado ao meu rancor, de João Antônio, no
prefácio “Manifesto de abertura: Literatura Marginal”, assinado por Ferréz, publicado
no suplemento Literatura Marginal – A cultura da periferia ATO-I, lançado pela
Revista Caros Amigos, e posteriormente utilizado no prefácio “Terrorismo literário”,
do volume Literatura marginal, talentos da escrita periférica. O trecho de João
Antônio é acionado como uma espécie de aviso aos escritores que almejam percorrer
estes espaços subalternizados, advertindo sobre a especificidade deste ambiente e a
impossibilidade de representar tal cenário sem um mergulho na cultura e na
linguagem destes sujeitos:
Evitem certos tipos, certos ambientes. Evitem a fala do povo, que vocês nem sabem onde mora e como. Não reportem o povo, que ele fede. Não contem ruas, vidas, paixões violentas. Não se metam com o restolho que vocês não vêem humanidade ali. Que vocês não percebem vida ali. E vocês não sabem escrever essas coisas. Não podem sentir certas emoções, como o ouvido humano não percebe ultra-sons.(Antônio, L.M. I, p. 03)
A argumentação de João Antônio se confunde com a produzida pelos autores
da Literatura Marginal: melhor representam os personagens da periferia aqueles que
não apenas percorrem tais territórios, mas que possuem uma relação embrionária com
estes. A equação apresentada é simples e pode facilmente ser posta em xeque – é
possível apresentar uma série de autores que mesmo não pertencente à margem
conseguiram exprimir com qualidade tais vivências – mas tal postura, sobretudo pela
sua força política, se coaduna com o principal objetivo da Literatura Marginal: quem
melhor representa a periferia é o periférico.
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A homenagem prestada a João Antônio se estende à publicação de um texto
inédito do autor em Literatura Marginal Ato II, com o título de “Convite à vida”. No
texto, uma carta destinada a Myltainho, o autor relata sua experiência de leitura dos
romances de Machado de Assis.
Leio e releio, com calma e modos, o nosso primeiro bailarino, o safo-mor, o velho gamenho de espírito, o ferrabrás, o machucho, o bem-parido, o mais desconcertante, o elegante permanente, o mais que vitalício porque eterno Joaquim Maria Machado de Assis, o esguio de alma. (Antônio, L.M.-II, p. 17)
O trecho publicado é seguido por uma breve apresentada do autor, oferecendo
destaque para a sua prática literária em busca de uma aproximação da “gente da
periferia do capitalismo”: “Foi cronista das sinucas, das boates, dos malandros, das
prostitutas, dos meninos de rua.”(Idem, Ibidem).
Já em relação a Antônio Fraga, em texto publicado em seu blog no dia
13/06/2007, Ferréz afirma que “na Literatura Marginal, é o cara mais esquecido dessa
linha. Até João Antônio e Plínio [Marcos] tiveram mais destaque que ele. Mas se
você quer saber sobre a raiz das letras marginais tem que ler esse cara.”1. O destaque
ofertado, apresentando Fraga como autor que sustenta “a raiz das letras marginais”,
coloca em evidência um possível precursor do percurso que estes autores da
Literatura Marginal percorrem na contemporaneidade.
A formação do cânone marginal passa a ser regida por uma ordenação própria,
as homenagens realizadas unem, em alguns casos, autores com aparatos estéticos e
orientações distintas. Se é possível estabelecer a união de Antônio Fraga e João
Antônio em torno de uma mesma proposta, observando os recursos literários
utilizados na construção de uma linguagem própria, a estes dois é adensada Carolina
Maria de Jesus, autora que ingressou nas páginas da literatura a partir da publicação
de seus diários. A publicação de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, em
1960, pode ser tomada como uma das primeiras experiências de um marginalizado
confrontando-se com o código letrado. O resultado desta incursão de uma mulher
negra catadora de papel nas páginas da literatura brasileira foi o sucesso expresso no
1Ferréz, “Antônio Fraga mais marginal impossível”, disponível em http://ferrez.blogspot.com/2007/06/antnio-fraga-mais-marginal-impossvel.html. Acesso em 12 de novembro de 2009.
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número de vendas do livro, cerca de dez milhões de exemplares no mundo todo. Se
no âmbito nacional esta experiência literária causou impacto e curiosidade por parte
dos leitores em conhecer o cotidiano de uma favelada, no exterior, sobretudo nos
Estados Unidos, a recepção de Quarto de Despejo foi impulsionada pelo valor
testemunhal da obra, sendo lido não apenas como uma produção artística, mas
também como um documento que apresenta uma “verdade” sobre o Brasil. O sucesso
foi efêmero, e “o descenso do prestigio de Carolina coincide com o fim do populismo
oficial no país e com a virada política do golpe militar”(Vogt, 1983, p.206).
Se o caráter documental e testemunhal da obra de Carolina Maria de Jesus
despertou paixões no exterior, no Brasil este aspecto foi muito questionado. O crítico
literário Wilson Martins, em artigo publicado no Jornal do Brasil, no dia 23 de
outubro de 1993, afirmou que “Carolina é um produto da mão de Audálio
Dantas2”(Apud: Levine, 1996, p.22). Uma crítica mais fecunda foi realizada por
Anthony Leeds e Elizabeth Leeds, em A sociologia do Brasil urbano. Os autores
analisam que “o livro de Carolina Maria de Jesus, foi ávido, mas não criticamente,
lido pelos Brasileiros.”, e em nota explicam qual seria a leitura crítica que deveria ser
realizada:
Vários cuidados deveriam ser tomados na leitura de Carolina Maria de Jesus: a) o livro foi de maneira clara, amplamente organizado por seu descobridor, um jornalista; b) consideramos bastante possível que na verdade, o livro não tenha sido totalmente escrito por Carolina; c) o livro serviu claramente às operações da carreira do jornalista; d) Carolina não é certamente uma representante característica dos dois mil [sic] moradores de favelas no Rio de Janeiro que conhecemos, como mostramos aqui, embora seja concebível que a população das favelas de São Paulo seja diferente. É verdade que as favelas de São Paulo são menores e mais pobres que as do Rio de Janeiro. (LEEDS e LEEDS, 1978, p.87)
E de certo o livro não foi totalmente “escrito” por Carolina, pois é possível
observamos a interferência de Audálio Dantas, jornalista “descobridor” de Carolina,
no processo de “tradução” do texto manuscrito da autora para o sistema letrado. Os
questionamentos realizados por Leeds e Leeds quanto à autenticidade do testemunho
2 Jornalista de São Paulo que “descobriu” Carolina durante uma reportagem na favela em que a mesma residia.
56
de Carolina são problematizados por Elzira Divina Perpétua em artigo intitulado:
“Aquém do Quarto de Despejo: a palavra de Carolina Maria de Jesus nos manuscritos
de seu diário”(Perpétua, 2003). Ao realizar uma comparação entre o manuscrito
original de Carolina e o texto publicado, Elzira observa que no texto publicado foram
realizados acréscimos, substituições e supressões. No deslocamento do discurso de
Carolina das páginas manuscritas – forma na qual a autora possuía total domínio
sobre a sua escrita – para as páginas impressas – momento em que o jornalista
Audálio Dantas rege a seleção do texto – é possível observarmos a interseção de duas
idéias distintas sobre a favela. O resultado disto é a criação de um novo espaço de
enunciação, que se fixa no cruzamento da idealização de uma escrita contra a favela,
representada por Carolina, e do desejo de uma expressão literária a favor da favela,
representada pelas supressões de Audálio Dantas.
Presenciamos, portanto, um confronto entre autor e editor em que cabe a
Audálio o papel de reconstituir textualmente a imagem da favelada idealizada, em
que os aspectos contraditórios são escamoteados. Silencia-se a voz que emerge de um
contexto periférico, utilizando para tal os mecanismos da cultura prevalecente. Tal
processo de tradução cultural resulta na construção de um discurso que revela uma
Carolina Maria de Jesus diversa, como observa Elzira Divina Perpétua: “Depois de
ler Quarto de despejo, sabemos que ele encena a vivência de uma mulher, negra e
favelada, mas não travamos contato com a imagem que Carolina produziu de si
mesma nos seus manuscritos: complexa, multifacetada, proteiforme.”(Perpétua, 2003,
80).
Mesmo que o texto dos diários de Carolina não revele sua própria feição, é
inegável o destaque que a autora recebe por parte dos autores da Literatura Marginal,
sendo, inclusive, objeto de estudo em um curso ministrado por Ferréz, como o autor
informou em seu blog:
salve rapa, bom em fevereiro vou dar um curso na casa do Zezinho lá no Parque Sto. Antônio, portanto se vocês quiserem, é só mandar um e-mail para [email protected] que é grátis. vou tentar mostrar toda a trajetória da escritora Carolina Maria de Jesus, que foi a primeira autora da favela, e tembém tenho nas mãos o primeiro livro publicado no Capão, em 1930(sic)
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Fora isso vou passar o video do Jeferson De e vai ter várias novidades. agente se vê.3
O elenco de escritores que formam este cânone proposto é vasto, rompendo
inclusive as amarras do Estado Nação ao incluir Máximo Gorki, apresentado por
Ferréz como “o primeiro grande escritor proletário da literatura universal.”4. Neste
olhar que se volta ao passado, impulsionado pela busca por escritores com propostas
literárias semelhantes às realizadas pelos autores marginais contemporâneos, é posto
em destaque não apenas a preferência destes autores em tematizar as vidas encenadas
nos bairros populares, mas, igualmente, a relação pessoal que tais escritores possuíam
com estes espaços marginais. Dessa forma, além de resgatar as possíveis primeiras
representações da periferia enquanto cenário literário, as homenagens aos “pioneiros”
– aqui vistas como a formação de um cânone – objetivam também lançar novas luzes
na trajetória de vida de autores oriundos de bairros de subúrbio. João Antônio,
Antônio Fraga e Carolina Maria de Jesus serão vistos e lidos pela Literatura Marginal
através deste duplo exame.
No entanto, se no tocante aos dados biográficos e na escolha da temática
preferencial dos escritos é possível destacar e enumerar as semelhanças entre os
“autores do cânone marginal” e os contemporâneos, o mesmo exercício não pode ser
realizado acerca da forma literária empregada e do sentido político. Ao cotejar
propostas literárias tão díspares nos procedimentos estéticos e com estruturas formais
tão distintas, não estou em uma incessante busca das origens destes discursos e dos
olhares pioneiros sobre a margem. Mesmo que João Antônio e Antonio Fraga
ocupem um espaço privilegiado no cânone literário sugerido pelos autores da
Literatura Marginal, conforme observei acima, estes escritores e Orestes Barbosa não
serão lidos como principais influenciadores dos escritos marginais contemporâneos.
A eleição que os autores da Literatura Marginal fazem de João Antônio e Fraga como
pioneiros obedece mais a razões políticas que literárias. A homenagem – semelhante
ao recorrente recurso que João Antônio realizava em seus livros ao dedicar seus
3 Disponível em http://ferrez.blogspot.com/2004_12_01_archive.html, acessado em 18 de março de 2007. 4 Ferréz, “O primeiro da Literatura Marginal”, disponível em http://ferrez.blogspot.com/2007/06/o-primeiro-da-literatura-marginal.html. Acesso em 12 de outubro de 2009.
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escritos a Afonso Henriques de Lima Barreto “o pioneiro, consagro” – deve ser
compreendida como um ato performático, uma intervenção política através do texto.
Ao resgatarem tais escritores, a Literatura Marginal enumera na série literária
hegemônica uma filiação própria, selecionando seus pares a partir de critérios não
apenas literários.
Mas, se há semelhanças entre estes dois grupos, também é possível destacar as
diferenças. Como primeiro indício de distinção, podemos dizer que ao contrário dos
autores da Literatura Marginal, não encontramos uma representação majoritariamente
maniqueísta, pedagógica e didática destes setores nas obras de João Antônio e Fraga.
Segundo, mesmo sendo autores de origem popular, Fraga e João Antônio não
construíram suas trajetórias literárias através de uma ação política que tinha como
principal argumento uma produção literária voltada para os espaços marginalizados,
tal qual os autores contemporâneos atuam.
Ao propor tal leitura não estou incorrendo no equivoco de realizar um
exercício anacrônico, sublevando as camadas do tempo sem precisar as condições
reais destas produções. A inserção de Orestes Barbosa neste elenco de autores,
mesmo sem observar qualquer menção ao seu nome por parte dos autores da
Literatura Marginal, resulta da constatação de que o exercício literário do autor,
sobretudo na crônica, se coaduna com a proposta de João Antônio e Antônio Fraga.
Além de possuir uma origem popular, o autor utilizou os morros, bairros de subúrbio
e as celas de prisões como palco primeiro de seus escritos. Além disso, recuperar e
rediscutir estas representações da cidade, principalmente dos lados noturnos da
cidade, possibilita a construção de uma percepção plural da margem.
3.1
Orestes Barbosa, um olhar sobre a cidade noturna
Em Bambambã!, livro de crônicas sobre os personagens da marginalia
carioca, publicado em 1923, Orestes Barbosa apresenta sua predileção pela cidade
noturna: “Há, sem dúvida, duas cidades no Rio. A misteriosa é a que mais me
encanta”(Barbosa, 1993, p. 115). Tal encantamento é de fácil compreensão. Nascido
59
em uma família de poucas posses, o autor conheceu ainda criança a pobreza e,
conseqüentemente, travou contato com os tipos que anos mais tarde povoariam seus
escritos. “Aos dois anos de idade”, escreveu Orestes em crônica publicada em fins da
década de 1940, “dormia na rua, em virtude de ação de despejos contra os
pais”(Didier, 2005, p.33). O episódio, que determinará fortemente a trajetória do
futuro jornalista, resultou da saída do pai da Polícia - um impulso tomado sem pesar
as conseqüências. Sem ocupação fixa, Caetano Barbosa, pai do autor, não encontra
provimentos para sustentar a família. A saída buscada pelo pequeno Orestes foi
utilizar a rua como forma de sobrevivência. “Tudo se passa na rua, esse vasto e
impreciso território onde vivem os órfãos da sorte. Entre 1902 e 1905, dos 9 aos 12
anos, cresce solto, numa mistura de liberdade e abandono.”(Idem, p.32) Do período
ficará na memória do autor o fascínio pelos jornais, artigo predileto para o comércio.
Vende as notícias impressas aos gritos, lutando por atenção e, principalmente, pelo
freguês. A rotina dura, vencendo a fome a cada dia, será lembrada por Orestes sem
ressentimentos, narrando inclusive com humor fatos vivenciados na rua. Exemplo
disso é a crônica “Notas sintéticas”, publicada em 1949, em que narra o diálogo que
travou com um guarda civil após ser encontrado dormindo na rua. Conhecedor da lei,
Orestes sabia que se o guarda agisse com rigor deveria efetuar seu recolhimento.
Dormir na rua, de acordo com o código penal de 1905, era crime de vadiagem. Mas,
com sagacidade e presença de espírito, o menino, segundo narra Orestes anos mais
tarde, “fez ver ao guarda que dormindo não oferecia perigo. Que os criminosos não
dormem – que quem dorme já está preso pelo sono”(Idem, p. 35)
É com essa leveza que Orestes Barbosa desvela uma outra cidade,
apresentando ao leitor uma massa de personagens que vivem na penumbra, ocupando
espaços ocultos e, como o próprio autor denomina, misteriosos. O jornalista cumpre o
seu papel, informa, noticia. Ávido por histórias percorre as ruas, quer saber sobre os
crimes e levar o leitor ao êxtase com os relatos. Há um sentido sensacionalista na
feitura do texto. Mas, esse aspecto não é uma marca do autor, mas, sim, do período.
Os jornais, quase sem exceção, davam grande destaque aos crimes passionais e temas
60
de impactos5. Apostavam nesse tipo de matéria com a certeza da vendagem. José do
Patrocínio Filho, em prefácio da primeira edição de Bambambã!, intitulado “O
cronista da Casa Silenciosa”, defende o sensacionalismo presente nas crônicas de
Orestes observando que
(...) não é tão fácil, como pode parecer, penetrar nos grande cotidianos cariocas. A ardilhosa mediocridade que, já de há muito, neles se instalou, repele, sempre, com hostilidade e êxito, todos os valores novos que possam vir fazer-lhes sombra. Aos debutantes como Orestes Barbosa, só resta, pois, o recurso de entrarem para os pequenos jornais recém fundados, que vivem freqüentemente da difamação e do escândalo e nos quais, por uma paga incerta, além de precária, fazem, às vezes, sem comer, o homem do miolo de outro de que fala Daudet...(Patrocínio Filho, 1993, p. 16)
Orestes segue o fluxo, nesse ponto não se difere dos demais colegas de
profissão, acompanha a corrente jornalística que busca de forma incansável o assunto
chocante. Sua marca de distinção no texto é a escrita rápida, a sentença miúda, o
parágrafo curto. Telegráfico, sem grandes elucubrações, o cronista fixa em crônicas a
rapidez do cotidiano carioca. O estilo, que era chamado de puxa-puxa ou picadinho,
ficou conhecido como marca autoral de Orestes6. Com uma agilidade peculiar na
escrita, descortina uma cidade pouco conhecida e oferece ao leitor uma leitura própria
sobre o Rio de Janeiro. A crônica “Fisionomia Policial da Cidade”, publicada em
abril de 1920, é um exemplo desse olhar sobre a cidade noturna. Distrito a distrito,
Orestes Barbosa elabora um percurso pela cidade.
O 3º Distrito é o contrabando.
5 Em Passeio Público – O Chão de Estrelas de Orestes Barbosa, de Roberto Barbosa, é possível localizar um exemplo que sintetiza o caráter sensacionalista dos jornais do período, além de narrar a estréia de Orestes na imprensa. Segundo nos relata Roberto Barbosa, ao chegar na redação do jornal notícia da castração de homem por sua mulher em um ataque de fúria devido uma traição, todos se perguntavam como deveriam tratar o caso, foi nesse momento que o jovem Orestes, que trabalhava na revisão, disse sem titubear: “Cortou o mal pela raiz!”(Barbosa, 1994, p. 7). A solução dada ao caso resultou em uma manchete de primeira página, marcando o seu debute na imprensa carioca. 6 Carlos Didier observa que o estilo de Orestes será copiado por inúmeros cronistas:
A maioria gosta e muitos vão copiar. Zeca Patrocínio fez restrições à prosa que sentiria o efeito da pressa jornalística. Por causa dela, Silvio Terra, dublê policial e repórter do crime, põe o cronista a alcunha de ‘Salta Pocinhas’. Segundo ele, quem lê faz os movimentos de quem pula poças d’água: passa por cima de uma, passa por cima de outra. Essas interrupções tornariam a leitura cansativa. A expressão salta-pocinhas existe e designa o homem afetado, justamente em seu modo de andar. A inovação e a fama têm seu preço. O másculo e valente repórter paga por elas. (Didier, 2005, p.189)
61
As hospedarias misteriosas, a “intrujice”, o “paco”...
No 3º Distrito o crime anda calado e rente à parede – o malandro usa bonet – é geralmente estrangeiro e humilde com a polícia. (Orestes, 1920, Apud Didier, Idem, p. 129).
O fragmento, além de tornar evidente a lúcida utilização por parte do autor da
estratégia de uma escrita rápida, apresenta Orestes como conhecedor dos meandros da
marginália, capaz de identificar os sujeitos que habitam esses espaços. Não é um
simples passeio pela cidade, é um roteiro do crime, a fisionomia de uma outra urbe.
Mas, deixando esses distritos que sabem ler, passemos ao 7º e ao 8º e o leitor está na favela... Agora é que são elas. O “Corneta Gira” foi morto, é verdade, o “Cardozinho” está condenado a 24 anos, mas depois das 10 horas, se o leitor reside na rua Oito de Dezembro, apostamos que não sobe o ainda e sempre morro da Favela. É gente de respeito. Polícia ali obedece. (Idem, Idem)
O texto é uma visita, oferece ao leitor um contato próximo com o narrado, na
companhia de Orestes ficamos íntimos da marginália. Nosso guia oferece proteção,
sabe penetrar nas ruelas, percorre com leveza e agilidade os contornos soturnos da
cidade criminosa. Mas, não podemos esquecer, não pertence em essência a esse
mundo. É um jornalista, seu contato com a cidade noturna é ligeiro, busca o
fundamental para poder contar. Se há encantamento, há também distanciamento, tem
que cumprir o seu papel: narrar a um leitor ávido por conhecer as engrenagens da
outra urbe. Orestes é uma ligação entre as duas cidades, um caminho necessário para
alcançar ambos espaços, uma esquina.
Armando Gens e Rosa Maria Gens, na apresentação da segunda edição de
Bambambam!, intitulada “O taquígrafo das esquinas”, utilizam a esquina como
imagem que melhor representa a obra de Orestes Barbosa e sua própria trajetória de
vida. Na leitura dos pesquisadores, o autor constrói um novo enfoque ao temário da
literatura do início do século XX que via na rua como veio literário promissor ao
dedicar-se especialmente às esquinas. Nesse sentido, são as esquinas que oferecem a
Orestes a matéria ficcional. “É lá, no cruzamento, no canto, na dobra que o cronista se
posta.”(Gens e Gens, 1993, p. 10) As esquinas, esses territórios freqüentados por
62
malandros e boêmios, espaços facetados, propensos a práticas escusas e a encontros
amorosos, é o ponto de observação do autor, um espaço que possibilita compreender
a dinâmica da cidade noturna. Além disso, a esquina pode ser igualmente uma
alegoria de sua obra, “já que o escritor opera na junção do erudito com o popular, sem
cair no exagero da altivez do dândi ou no paternalismo populista.”(Idem, Idem).
Orestes fica nesse ponto, na esquina, na interseção entre as duas cidades, observando
os mistérios de uma para contar para a outra.
Quando penetra com maior densidade na cidade misteriosa o faz com os olhos
abertos, pronto para registrar o funcionamento desse outro mundo. Sabendo que é
impossível compreender a totalidade, empenha-se em registrar as pequenas
engrenagens que impulsionam esse espaço noturno. Por partes, contando breves
histórias, apresentando malandros e mulheres do vício, consegue compor um amplo
mosaico da marginália carioca da década de 1920.
Como repórter policial, entre fins da década de 1910 e início da década de
1920, travou contato com os pequenos delitos, as histórias de amor seladas pelo crime
e os assassinatos vultosos. Mas, será a partir da experiência no cárcere que Orestes
Barbosa ganhará fama do cronista do submundo e da prisão. O episódio de sua prisão
revela uma marca importante do espírito do autor, dono de uma escrita voraz e
determinada, não se expressa em meias palavras, mas, sim, de forma direta e cortante.
A valentia, por assim dizer, causou a Orestes um breve período na cadeia. Devido a
inflamadas crônicas em defesa do filho de Euclides da Cunha, Manoel Afonso da
Cunha, publicadas no jornal A Folha, o diretor do Grêmio Literário Euclydes da
Cunha, Francisco Venâncio Filho, move um processo contra Orestes Barbosa,
acusando-o de injuria e difamação. Da ação resultou para o autor a condenação de
dois meses em prisão celular, convertida em encarceramento com trabalho, e multa de
trezentos mil-reis. O grau mínimo previsto no Código Penal.(Didier, op. cit., p. 163).
Da experiência no cárcere, o autor regressou com as crônicas que compõem o
livro Na prisão, publicado em 1922. O sucesso do livro foi tamanho que a primeira
edição, com mil exemplares, esgotou em apenas uma semana, selando o autor como o
conhecedor dos meandros do crime. “A cadeia”, observa Carlos Didier, “dá a Orestes
Barbosa seu primeiro livro de prosa. Onde muitos veriam o tormento, ele enxerga a
63
oportunidade.”(Idem, p. 188). A oportunidade a que se refere seu biografo é a de se
tornar o primeiro autor a estruturar um vasto exame dos personagens e histórias da
prisão.
Poucos são os historiadores dos presídios. Ernesto Senna tratou do assunto em “Através do Cárcere”, João do Rio em “A Alma Encantadora das Ruas”. A oportunidade que se abriu para Orestes é fruto dessa escassez. A força de sua narrativa vem do distanciamento em relação à condição do condenado. O cronista escreve como se não padecesse as aflições da masmorra.(Idem,Idem)
Dessa forma, mesmo habitando o palco em que se desenrolam as histórias que
povoam as crônicas, o autor não apresenta um relato de sua vivência na cadeia, mas,
sim, lança luz sobre os sujeitos que o cerca, trazendo à tona as histórias dos crimes
praticados pelos detentos. Pois, como o próprio Orestes Barbosa observou em crônica
publicada durante a sua temporada na prisão, “um homem, depois de alguns anos de
polícia, passa a ser um romance ambulante e é assim que existem histórias compridas
capazes de gerar pesadelos nos temperamentos mais plácidos do mundo”(Didier, op.
cit., p. 166). O cronista quer conhecer esses romances ambulantes, sujeitos que
habitam a prisão, seja na qualidade de carcereiro ou encarcerado. Por isso, não apenas
entrevista os companheiros de cárcere, quase os interroga, questionando sobre os
crimes cometidos. Quer saber detalhes, o que o move é sua curiosidade de repórter, a
necessidade de conhecer o fato para poder contar. No entanto, não é uma vivência na
cadeia com distanciamento, na verdade, como narra Carlos Didier, “Orestes Barbosa
simpatiza com alguns criminosos. Faz camaradagem com Eutachio do Carmo que
matou a faca, em 1920, Luiz Gonzaga Jayme, juiz de direitos, ex-chefe de Polícia,
senador por Goiás.”(Idem, p. 168)
As histórias e personagens são muitas, o material não cabe em um único livro
e Bambambã!, segundo livro de crônicas do autor, nasceu da necessidade de narrar os
casos restantes. Em comum com o primeiro livro, Bambambã! também reúne textos
publicados anteriormente na imprensa carioca. O título do livro é uma gíria. Ao
contrário que possa parecer, não é uma onomatopéia que reproduz o som de tiros,
mas, sim, um termo que designa o sujeito valente, bom de briga, o bamba. Ou, como
desejou denominar Orestes, o Bambambã.
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É possível dividir o livro em duas partes distintas, a primeira com crônicas
sobre os sujeitos da prisão. Textos possivelmente remanescentes do período em que o
autor frequentou o cárcere. A segunda parte rompe os muros da cadeia e mostra um
cronista que percorre os meandros da cidade, travando contato com a temida favela,
os rituais de “macumba” e discutindo as mudanças do modus operanti da
malandragem carioca.
Bambambã! apresenta um Orestes Barbosa mais atento à dinâmica do cárcere,
interessado não apenas em narrar os episódios, mas em apresentar a vivência nesse
espaço. A crônica “Na cidade do punhal e da gazua” é um exemplo desse novo
empenho do autor. No texto é apresentada uma similitude entre a cadeia e a cidade do
Rio de Janeiro. A Casa de Detenção é vista como uma cidade, que reproduz as
diferenças e hierarquizações da cidade que se expande fora dos muros de concreto.
Na leitura atenta de Orestes, “a casa de Detenção é uma cidade entregue ao ilustre
coronel Meira Lima. Tem comércio, tem autoridades, política, clubs chics e bagunças
– tem amores e até literatura emocional.(Barbosa, 1993, p.45)
A semelhança perpassa também um caráter sociológico, caracterizando o
conjunto prisional como um Rio de Janeiro em miniatura, reproduzindo as diferentes
áreas e bairros da cidade.
Há palacetes nobres – os salões 1 e 2 . É Flamengo e Botafogo. Há casas de menor vulto, com moradores igualmente importantes: a primeira e a terceira galerias, nas quais vivem dois condenados em cada prisão. A primeira e a terceira galerias equivalem à Tijuca e Vila Isabel. A segunda galeria, de um lado é Mangue, Catumbi e Ponta do Caju – do outro lado é Saúde, Madureira e Favela. Gente pesada... Na segunda galeria onde se destaca, pelo número, a ladroagem, há, ao vivo, o Rio criminoso. Em cada cubículo moram dez, vinte, trinta e às vezes quarenta homens. (Idem, ibidem).
Na distinção geográfica, em semelhança à cidade, surge na percepção de
Orestes a hierarquização da cadeia:
Antes do despertar do bairro chegam o leiteiro, o padeiro e o jornaleiro. O leiteiro só vai a Botafogo, Flamengo, Tijuca e Vila Isabel – os salões, a primeira e a terceira galerias. A Favela não bebe leite.
65
O jornaleiro e o padeiro, entretanto, correm a cidade toda. As casas despertam. (Idem, ibidem).
Ao estabelecer a correspondência entre a cadeia e a cidade, Orestes Barbosa
aproxima o leitor da dinâmica própria da Casa de Detenção. Criado o efeito de
similitude, o leitor, estrangeiro nesse espaço, consegue fluir com maior desenvoltura
dentro dos muros do cárcere, visualizando com maior clareza o cotidiano precário dos
detentos. Mas não é apenas um simulacro a leitura produzida por Orestes. A cidade
cárcere, na percepção do autor, surge como um organismo independente,
reproduzindo as instituições e organismos que compõem a cidade formal. A presença
da autoridade, política e bagunças reafirma a visão de um território independente da
cidade, detentor de suas próprias leis e, principalmente, de seus habitantes peculiares.
Na leitura de Bambambã! travamos contato com os mais diversos tipos. Desde
de malandros que utilizam a lábia como uma ginga rápida para surrupiar os otários
até os detentos mais temidos da época. Há uma predileção de Orestes pelos tipos
divertidos, contadores de casos inverossímeis recheados de trapaças malandras. Na
crônica “Afonso Coelho”, nome de um malandro falsificador que nessa arte era uma
celebridade, como o próprio autor definiu, travamos contato com a breve biografia do
sujeito. Partindo da notícia de seu assassinato, resultante de uma querela com a
amante, Orestes Barbosa faz um balanço da trajetória do criminoso, apresentando-o
como o criminoso mais popular do Brasil, depois de Carletto. Além da fama, o
falsário também acumulou riqueza. Até que “um dia, porém, o homem do cavalo
branco deixou de roubar”(Orestes, op. cit., p. 39). Com o dinheiro das falcatruas
comprou um sítio e formou família em Friburgo. Mesmo afastado do crime, a polícia
manteve observação sobre o bandido. E, devido um derrama de notas falsas, a polícia
convoca Afonso Coelho para depor. Acham que ele está envolvido no caso. Mas o
malandro nega a autoria e, em uma fala repleta de sinceridade, revela que se
aparecesse um negócio não hesitaria em pegar. Surpresos com a honestidade do
suspeito, os policiais questionam: “Mas você, Afonso, não teme ficar um dia
irremediavelmente perdido nos artigos do Código Penal?” E, como escreveu Orestes
na crônica, “Afonso Coelho sorriu e disse: Qual, Exa. Os artigos do Código Penal são
66
como essas bóias luminosas que existem nas baías: o bom navegador passa entre
elas...”(Idem, p. 40)
A fala do malandro apresenta uma síntese da malandragem. Na declaração
visualizamos o sentido desviante da ginga malandra, que confunde e ilude otários e
igualmente o código penal. A crônica estabelece uma homenagem póstuma, há um
encantamento pelo sujeito. Prática semelhante é realizada por Orestes na crônica que
apresenta os feitos de João de Brito Fernandes, o João Maluco. Descrito como “um
moloque muito alto e muito magro, cor de chocolate, com os olhos esbugalhados,
como se estivesse sempre vendo uma assombração.”(Idem, p. 41). O interesse de
Orestes pelo malandro é perceptível na apresentação de suas práticas: “Esperto, com
as suas conversas consegue ir vivendo bem, até na prisão onde aplica partidos, isto é,
usa de meios e modos para tudo obter. A sua última conquista foi a liberdade.”(Idem,
Ibidem). O partido aplicado pelo malandro foi a encenação de uma moléstia incurável
na época, a tuberculose. Com a ajuda de seu tipo físico, João Maluco, como nos conta
Orestes, transformou uma gripe em uma tuberculose pulmonar. Não foi preciso
muito esforço, bastou mudar o passo e falar menos. A moléstia encenada foi
diagnosticada pelo médico da Casa de Detenção, resultando em sua transferência para
o Hospital São Sebastião. O desfecho da história é o esperado:
Quando João Maluco entrou na ambulância, parecia um defunto. As pernas como dois varapaus, o pescoço embrulhado num pano preto de guarda-chuva e a tosse, aquela tosse de comover... Dentro de 15 minutos a ambulância voltou à Detenção com o chaufeur desolado. Este, ao passar pelo largo do Estácio, teve necessidade de diminuir a marcha por causa de um bond. Um garotinho disse, na calçada da igreja ao chauffeur: - Ó moço, a porta está aberta! João Maluco ficara logo ali pela altura do morro de São Carlos – a zona da sua predileção e para a qual voltava graças ao seu talento teatral (Idem, p. 42-43)
Mas, não é apenas de partidos que vivem os malandros. Eles utilizam outros
meios para trabalhar – pois, como observa o autor, o malandro é “o homem que vive
misteriosamente, trabalhando a seu modo, porque malandro quer dizer esperto, sabido
e não ocioso como erradamente se supõe”(Idem, p. 103) – quando não consegue seu
objetivo pela fala gingada da gíria, recorre à força física. Orestes Barbosa procura
67
compreender essa dinâmica da malandragem e, principalmente, a constituição de um
perfil simbólico desses personagens. Na crônica “As armas”, o autor observa que
“com a evolução da cidade, o malandro largou a bombacha, a botina de salto alto, o
chapéu desabado e a moca – bengala de grossura ostensiva, como também usavam os
policiais.”( Idem, p. 99). E constata: “O ideal do malandro hoje é uma pistola para-
bellum”. Se há o abandono da indumentária que o transformou em personagem típica
de um Rio de Janeiro noturno e misterioso, tal fato se deu pelo impulso da
modernidade. O malandro romântico, tipo que será idealizado nas décadas futuras,
parece não pertencer a essa nova configuração da cidade. Se a cidade evoluiu, o
malandro, na leitura de Orestes, acompanhou esse movimento. A evolução se dá na
aquisição de uma nova arma, um pistola, arma implacável que insere no malandro em
um novo marco temporal. A para-bellum é o ideal dos malandros por favorecer uma
nova marca de seus atos, uma escrita:
Ouvi certa vez do Patola, que está condenado, a descrição do assassinato de um espanhol, na ponta do Caju:
- Dei-lhe o primeiro tiro, ele desceu. Aí baixei fogo nele, a para-bellum parecia uma máquina de escrever. Despejei-lhe os 24 na cabeça. (Idem, p. 101)
De máquina letal à máquina de escrever, sentenciando uma nova escrita no
corpo da vítima, a pistola, como narra Orestes, era um desejo dos malandros dos
malandros:
Vinte e quatro tiros. Ele falava com volúpia do valor da arma. Em volta do Patola estavam outros criminosos – todos de olhos
cobiçosos, sonhando com a máquina de escrever. (Idem, Ibidem)
Armando Gens e Rosa Maria de Carvalho Gens, na apresentação já citada,
elaboram uma interessante leitura dessa passagem:
A relação ente tiros e letras, pistola e máquina de escrever não deixa dúvidas. A pistola dava ao criminoso o poder de escrever a sentença e a morte, simultaneamente, no corpo da vitima, já que com a faca, no máximo, conseguiria uma inscrição. (Gens e Gens, op. cit. P. 11)
A descrição do assassinato revela esse novo malandro, agora afeito ao Rio
moderno. O abandono da navalha revela o possível fim de uma era, um período
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marcado pela formação de um imaginário que se fará presente em diferentes
representações sobre esse tipo urbano, seja na música, na literatura ou no cinema.
Orestes Barbosa, devido o seu evidente encantamento por esses personagens da
margens, será um dos responsáveis pela consolidação desse imaginário.
3.2
Antônio Fraga, o Mangue como abrigo.
Desabrigo, título da marcante novela de Antônio Fraga, pode ser também um
termo referencial para pensarmos na trajetória de seu autor em suas andanças pela
cidade do Rio de Janeiro e, posteriormente, seu exílio, como denominou sua biografa,
em Queimados, na Baixada Fluminense. Fruto da união de dois militantes
anarquistas, Justino Antônio Fernandes e Waldemira Moreira Fraga, Antônio Fraga
nasceu em julho de 1916, na Cidade Nova, na Rua Senador Eusébio. De sua infância
pouco se conhece. Segundo relata Maria Célia Barbosa Reis da Silva, em seu texto
crítico-biográfico sobre Antônio Fraga, dos primeiros anos de vida o autor recorda
apenas dois episódios que servem como uma espécie de gênese do exercício literário
que irá desenvolver anos mais tarde. O primeiro, narrado em entrevista ao Jornal O
Globo na edição de 08 de dezembro de 1978, remete aos cinco anos de vida do autor
e a um brinquedo recém adquirido: uma lata de goiabada fixada em um cabo de
vassoura. O ‘lata-ciclo’, como Fraga denomina, chamou a atenção de uma criança que
passava pela rua com seu velocípede. Bem vestida e com cabelo alinhado, o menino,
filho de uma família rica, mostra interesse pelo singelo brinquedo de sucatas.
Realizam uma troca e juntos brincam. E, como nos conta Maria Célia,
Ficam amigos e, no dia de seu aniversário, Pedro convida Antônio para sua festa. Waldemira [ mãe de Fraga] veste-o com um terninho de marinheiro que, do baú de roupas, sai com cheiro de naftalina. A mãe zelosa penteia-o e leva-o até a porta da casa de Pedro. Pelas fissuras das lembranças infantis, a casa é uma mansão com um jardim cheio de estátuas, lago artificial e grama amparada. O pequenino está subindo no convés da mansão, quando surge uma senhora elegante que, de forma
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brusca e grosseira, lhe pergunta o que está fazendo lá. Ela chama o filho e repreende-o por ter convidado aquela ‘coisa’. Antônio, humilhado e cheio de ódio, desce as escadas e caminha de volta para casa, rasgando a roupa e passando terra no corpo.(Silva, 2008, p. 42).
O segundo episódio, contado por sua biografa com a mesma riqueza de
detalhes, possui final semelhante. Antônio acompanhando a mãe e o irmão mais
novo, visita a casa de uma madame. A mãe, transformada em costureira após a
separação do marido, adentra a casa para tirar medidas e ofertar tecidos. As crianças
ficam sentadas em um banco do quintal.
De dentro da casa, surge uma menina de cabelo louro, longo e cacheado, com vestido amarelo enfeitado de renda. A menina, exalando alfazema, aproxima-se deles e senta-se ao lado de Antônio. A troca de olhares e o toque de mão selam uma cumplicidade amorosa que dura aproximadamente quarenta minutos de uma tarde de março de 1931. (...) A chegada das mães quebra o encanto. Antônio segue a mãe e o irmão, não antes de ouvir a mãe de Marla repreendê-la por conversar com o filho da costureira.(Silva, op. cit., p. 41).
Esses incidentes, únicos recolhidos pelo autor de sua infância, nutrem o rancor
e o desprezo pelas camadas mais altas que acompanhará Fraga ao longo de sua vida.
Recuperados pela memória, são utilizados como referência, um marco inicial, de uma
trajetória de vida relacionada diretamente com as camadas mais baixas.
E, se sua infância é composta de apenas dois retalhos reunidos pela
justificativa de sua preleção pela marginália em virtude do menosprezo pela classe
alta, a juventude e a vida adulta de Fraga será pontuada pela vivência direta na
margem. Através de ocupações efêmeras, biscates variados que revelam uma
trajetória ímpar, o autor reunirá as experiências que posteriormente serão impressas
em sua obra. Dentre as muitas atividades – professor de crianças e adultos no interior
de Minas Gerais, lavrador em Nova Iguaçu, lanterninha de cinema, auxiliar de
cozinha no Hotel Glória e redator-chefe da Rádio Vera Cruz – podemos destacar
duas por razões distintas. Uma por ser a única ocupação formal que o autor teve ao
longo de toda a sua vida, funcionário da Legião Brasileira de Assistência. E a
segunda ocupação, como vendedor de quinquilharias e siris no Mangue, é digna de
nota por ser o marco inicial da escritura de uma mitologia pessoal do autor enquanto
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intelectual marginal e o recolhimento da matéria-prima que, dez anos depois, em
1945, ele usa na criação de sua primeira novela: Desabrigo. A partir desse contato
inicial, como observa Maria Célia, “a sorte está lançada. Fraga-texto reflete-se no
texto-Fraga. Vida e obra. Autor, texto e leitor do mundo em total interação, à procura
de editores e leitores que o efetivem enquanto texto através da leitura”. (Silva, op. cit.
45).
Com um andar torto e ziguezagueante, razão pela qual foi apelidado de
Cobrinha, Fraga percorria o Mangue oferecendo toda a sorte de bugigangas
necessárias ao pedaço. Além da subsistência, com a atividade adquiriu a experiência
necessária para expressar em linguagem literária a vida de um mundo que tem na
prostituição e nas artimanhas da malandragem sua fonte de recursos. É explícita a
relação entre esse período de convívio e a posterior criação da novela Desabrigo.
Exemplo disso é a utilização de seu apelido para nomear um dos personagens que
habitam as páginas do texto: cobrinha7.
Efetivar o texto através da leitura é, decerto, um dos principais objetivos de
todo escritor, senão o único. Mas, Antônio Fraga vai além, não almeja apenas
constituir-se enquanto autor a partir do consumo do Outro. Sua escrita aponta para
um movimento mais complexo e denso do exercício literário, quer constituir a vida
enquanto literatura, buscando reunir em páginas impressas a energia vital do vivido.
Desabrigo é o resultado de um exercício de busca desse objetivo. Na novela, Antônio
Fraga constrói uma obra em ato ao narrar os episódios envolvendo os personagens
desabrigo, cobrinha, miquimba, etc. A novela narra-se, revelando o cotidiano dos
malandros e prostitutas do Mangue sob o olhar de quem lá vive. Não é apenas uma
representação, é um contínuo exercício de busca de uma linguagem que possa
abranger toda a oralidade e a ginga dos personagens factuais. Fraga revela pleno
conhecimento da impossibilidade de realização desse ato. Seu texto tangencia os
limites da representação, explora as escolhas e leva o leitor ao diálogo, informando-o
7 Os nomes dos personagens tal qual na novela de Antônio Fraga, serão citados aqui sem a utilização de letras maiúsculas. Em Desabrigo, todos os nomes próprios, personagens ficcionais ou de escritores citados nos pontos de vista, são transcritos com as iniciais em letras minúsculas. Tal exercício estético, na minha leitura, resulta de um desejo do autor em produzir uma representação de um dos setores mais marginalizados da cidade, o Mangue, de forma coletiva. Ao eliminar a utilização de letras maiúsculas da inicial dos nomes próprio, Fraga apresenta todos os personagens de forma equiparada, sem hierarquização.
71
sobre os possíveis caminhos e advertindo sobre as armadilhas do percurso. A inserção
de diferentes “Ponto de Vista” – fragmentos de textos de autores que debatem o fazer
literário ao longo da novela – revela esse intento da obra em ato, a construção de um
discurso como resultante de um contínuo debate sobre a sua própria feitura. O
primeiro “Ponto de Vista” atribuído ao escritor Campos de Carvalho – apresentado no
texto da novela sem as iniciais em maiúsculas – debate a funcionalidade da
linguagem literária na construção de um novo paradigma da literatura brasileira:
Entendem eles que para nos emanciparmos do jugo português devemos, o quanto antes, emanciparmos da língua lusitana a nossa língua, e o melhor de o fazer será abrigarmos no idioma novo toda forma de linguagem chula, de calão, de barbarismo e de sujeira em que, desgraçadamente, sempre foi fértil o linguajar do povo. Em ver de clássicos, dos puristas, dos Camões e caterva dos séculos passados, falem e pontifiquem os malandros, os analfabetos, os idiotas, as prostitutas e a ralé mais baixa (Fraga, 1999, p.21-2. Grifo meu)
Inseridos de forma abrupta, sem relação direta com a economia do texto
literário-ficcional, os “Ponto de Vista” são aberturas textuais que incidem em uma
reflexão sobre a obra, produzindo um diálogo entre autor, leitor e escrita. Na citação
de Campos de Carvalho não somos informados sobre a identidade do grupo a quem o
autor denomina como “eles”. Sabemos apenas que há aqueles que defendem a
utilização do linguajar do povo como premissa para a constituição de uma língua
própria, longe da subordinação e do jugo português. O próprio posicionamento do
autor do comentário não é explicito, tornando-se dúbia a opinião de Campos de
Carvalho sobre o tema. Mas, isso pouco importa. O importante, se assim podemos
dizer, é observar o diálogo que tal comentário realiza com a própria obra e,
principalmente, com a proposta literária de Antônio Fraga. A indeterminação do
“eles”, pronome que indica os sujeitos favoráveis à adoção de uma linguagem
literária que se quer próxima da falada pelas camadas mais baixas, é atenuada pela
certeza da presença de Fraga nesse grupo. Como analisa Giovanna Ferreira Dealtry,
em No fio da navalha:
Se não fica claro qual é a posição adota por Campos de Carvalho, é, no entanto, óbvio ao leitor de Desabrigo que esta é a postura defendida por Antônio Fraga. A independência cultural passa necessariamente pela construção de uma nova língua inclusiva da “ralé mais baixa”. (Dealtry, 2003, p. 96).
72
Mesmo sendo obvia sua posição, Fraga abre espaço para a apresentação de
opiniões contrárias. Não é uma concessão, mas a realização de um debate que
possibilita o desenvolvimento da obra. O terceiro “Ponto de Vista”, atribuído ao
“grande estilista professor doutor josé guerreiro murta”(Fraga, op. cit., p. 25), é um
exemplo de compreensão antagônica. No fragmento citado travamos contato com
uma crítica à utilização de gírias na literatura brasileira ao afirmar que “se o calão
invadisse a literatura honesta (sic), o nobre ofício de escritor tornar-se-ia desprezível
e ajudaria a corromper os costumes”(Idem, ibidem).
Devo acrescentar à fala do grande estilista professor doutor a compreensão de
que a inserção de gírias na literatura representa um ato de violência contra a norma
culta. Além de corromper os costumes, a fala da ralé mais baixa corrompe também as
regras gramaticais construídas para dar corpo a uma linguagem escrita. Ao adotar
como principal elemento da linguagem literária formas e expressões oriundas da
oralidade, Antônio Fraga cria um novo paradigma que possa abarcar a especificidade
da língua falada. Códigos distintos reunidos pela habilidade de um escritor que soube
manipular com precisão elementos da oralidade na linguagem literária. Como
exemplo, cito os trechos que abrem a novela:
cobrinha entrou no boteco e botando dois tistas no balcão pediu pro coisa - Dois de gozo Coisada atendeu à la minuta Largou no copo talagada e pico de água-que-passarinho-não-topa e sem tirar a botuca da cara do cobrinha empurrou o getulinho - Tou promovendo a bicada Depois de enrustir o nicolau e derramar o gole do santo cobrinha mandou o lubrificante guela abaixo Já desguiava quando pulga mordeu atrás da orelha e ele falou pra dentro “Quero ser mico catar bagana e coisa e loisa se nessa coisa do coisa não tem coisa” (...)(Fraga, op. cit., p. 19).
O manejo da linguagem causa estranheza. A ausência de pontuação cria um
ritmo diferente de leitura. Somos levados pela sonoridade e pelas gírias a penetrar em
um ambiente distinto. O ápice desse efeito é a cacofonia realizada por Fraga ao
descrever a fome alucinógena do personagem cobrinha que o levou a comer a própria
mão: “Se uma mão fosse um mamão como seria bom Ah como seria bom se uma mão
fosse um mamão”(Idem, p. 35).
73
Ter Antônio Fraga como guia não é fácil. Não apenas pela presença das gírias
e ausência de pontuação, mas porque adentramos no Mangue guiados por um autor
revestido por uma máscara. No lugar do intelectual marginal temos a construção de
um personagem responsável pela narrativa. É evêmero, personagem-procurador de
Fraga, quem recebe a legitimação para representar o Mangue. evêmero-efêmero, a
semelhança entre os termos é proposital. A distinção é apenas resultante de um
problema de dicção do autor. “Ele é efêmero porque tem consciência de sua
transitoriedade e das circunstâncias do relato do qual faz parte, tanto da enunciação
quanto do enunciado.”(Silva, op. cit., p. 66). E se torna evêmero por carregar consigo
a marca de uma fala própria, como atesta o trecho da novela que apresenta suas
observações sobre o fazer literário:
Bem fei que nam he módica empreza querer alguém introduzir neotericas llingoagem no commercio das letras Diram orthographos e outras caftas de philologos que em se tratando de lingoagem antiguidade he pofto Iffo porém me nam molefta Se consultarmos authores inda em ufo hemos de topar nelles coufas que affi escrevem em seus abufos de defufo. (Fraga, op. cit., p. 43)
A escrita copia a fala. evêmero nos parece fadado a expressar-se, ainda que na
linguagem escrita, com a mesma incorreção da oralidade. Não é um ato restrito, mas
parte de um projeto maior, como o próprio personagem-autor define:
...vou escrever ele todo em gíria para arreliar um porrilhão de gente Os anatoles vão me esculhambar Mas se me der na telha usar a ausência de pontuação ou fazer preposições ir parar na quirica das donzelinhas cheias de nove-horas ou gastar a sintaxe avacalhada que dá gosto do nosso povo não tenho de modo nenhum que dar satisfações a qualquer sacanocrata não acha? (Fraga, 1999, p. 23).
Os annatoles citados pelo personagem é uma explícita referência a Anatole
France, escritor francês que, na leitura de Fraga-evêmero, representa o fazer literário
rebuscado e longe do contato com a linguagem popular. A crítica aqui apresentada se
dá pelo presumido encantamento do intelectual burguês pelo submundo da
marginália. A presença de Annatole France na novela não se dá apenas na indicação
de um modelo literário a ser combatido, mas, também, é o próprio Anatole um
personagem da ficção fragiana. No texto, transfigurado no personagem anatole
frango, o escritor francês é um dos muitos visitantes do Mangue. evêmero que transita
74
pelo território da malandragem e prostituição na busca por desabrigo, malandro que
fora hospitalizado após receber uma navalhada de cobrinha, encontra annatole em
companhia de uma prostituta francesa. Após o encontro, annatole decide acompanhar
evêmero em sua busca por desabrigo.
Com fina ironia, Fraga apresenta annatole como um personagem encantado
pelo Mangue mas, por outro lado, distante desse universo. “Parece que saímos dum
outro mundo não?”, pergunta annatole a evêmero, para prosseguir em sua leitura,
“Que ambiente antinatural! E que linguajar! Se você não traduzisse o patuá daquela
decaída juro que não haveria entendido patavina do que ela narrou acerca do amásio”
(Idem, p. 32). E ao arguir se evêmero pretendia escrever algo sobre o Mangue e seus
personagens, anatole recebe uma resposta enfurecida de evêmero: “Vocês beletristas
são gozadissímos! Olham tudo na vida como motivo pra um conto Não suportam o
ambiente – como é mesmo o palavrão? – antinatural em que vivem essas criaturas e
querem encarcerá-las num mundo de papel!”(Idem, ibidem).
Fraga, através de seu procurador evêmero, destila do encantamento do escritor
burguês pelo mundo dos marginália o visível preconceito. A crítica se dá ao desejo de
transportar os elementos do “ambiente antinatural” para a literatura, encarcerando
esses sujeitos em um mundo de papel com regras formais alheias ao seu universo.
Coloca-se em confronto duas formas distintas de incorporação desse ambiente à
literatura. A primeira, representada por annatale frango, visa examinar esse universo
através de um olhar estrangeiro que produzirá uma nova regência à linguagem falada
e aos eventos presenciados. Já evêmero, encarnando o projeto de Antônio Fraga,
postula uma proposta literária distinta, buscando na especificidade da linguagem a
fórmula motriz para a produção de sua literatura. A inscrição dos personagens em um
mundo de papel, na proposta de evêmero, se justifica pelo desejo de perpetuação de
um imaginário e de uma linguagem. Dessa forma, antes de encarcerar os personagens
nas estruturas formais literárias, evêmero busca criar uma forma de registro que
possibilite que estes sujeitos possam expressar-se por si só.
Ao produzir uma escrita pontuada pelo uso de gírias, “mandando para as
quinquilhas as preposições”, evêmero/Fraga inscreve nas regras formais da literatura
uma proposta de expressão que abriga a originalidade da linguagem da malandragem.
75
Resulta desse complexo exercício estético um contato direto com a linguagem chula,
garantindo aos personagens da novela uma fala fincada no interstício entre a
oralidade e a escrita. Não se trata de realizar uma cópia da linguagem da
malandragem, como observou João Antônio – escritor que afirma pertencer à mesma
filiação de Fraga – em entrevista à Maria Célia da Silva:
Fraga descobriu uma coisa, disso eu sou admirador e de certa forma pertenço a essa família, digamos assim, que havia muita expressão na linguagem da chamada malandragem carioca, brasileira, uma força de expressão já pronta artisticamente. Bem, isso não quer dizer que, se ele colocasse um gravador na mesa da sinuca ou num botequim, fosse fazer uma obra de arte. (...) Ele ia apenas fazer uma gravação, no máximo jornalística. (...) Esse poder de captação do Fraga só pôde ser exercido porque ele não era visitante, nem um turista daquele ambiente, ele não era um diletante, ele era também parte deles.
Na leitura de João Antônio, a relação que Fraga mantém com a linguagem não
se baseia em uma simples cópia, uma reprodução mimética da fala da malandragem.
O que Fraga realiza é uma operação maior, uma captação, como João Antônio
denomina, da linguagem oral para a forma escrita. Nas palavras do escritor discípulo,
o êxito dessa ação só é alcançado porque o autor não é um visitante do ambiente que
visa representar. Mas, sim, mantém com o Mangue uma relação direta, observando e
vivenciando esse espaço.
Transpor a oralidade para a escrita é uma forma de dar vida aos personagens,
assegurando aos sujeitos desse espaço marginalizado uma nova forma de
imortalidade. É com esse reconhecimento da necessidade de construir uma estrutura
escrita que possa abarcar a especificidade de um cotidiano quase perdido que
evêmero se debruça sobre a máquina de escrever e inicia sua obra. A urgência da
escrita surge em decorrência da consciência do fim de uma época. Escrever não será
encarcerar os personagens em um mundo de papel. Mas ofertar uma nova
possibilidade de vida. E, dessa forma, seguindo pelos territórios em que os
malandros, marginais e prostitutas se refugiam, evêmero percebe com assombro o
surgimento de um novo tempo:
Evêmero andando pelas ruas do mangue (agora o mangue acabou) andando pelos escuros da fala (a lapa acabou) passando pela praça onze ( praça onze acabou) procurando os irmãos dele
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- Cadê a sara saracura o coisa o miquimba o velho bonzão da cuíca o rio de janeiro do meu tempo que não é o tempo do senhor luiz edmundo8?(Fraga, op. cit., p. 50)
Em sua busca pelos personagens/sujeitos desaparecidos pela formação de um
novo tempo – um tempo impulsionado pela modernização conservadora de um
Estado autoritário – evêmero segue perguntando pelos malandros e “todas as
prostitutas minhas irmãs”(Idem, ibidem). Sua busca é encerrada quando
uma voz que vinha passando e que se chamava verbo respondeu pra ele: -Teu mano desabrigo vai ficar toda a vida no xadrez e eu acho melhor que em vez de tar berrando aí feito um bezerro tu faça alguma coisa Ele foi encanado por ajudar um pilantra como você que tava se devorando pra se conservar. (Idem, p. 51).
A ordem é dada, evêmero precisa agir. Deve isso a desabrigo, preso por ajudar
cobrinha – que faminto comia a própria mão, achando que era um mamão, para se
conservar. Mas o que fazer, como frear o presente? É um novo tempo, uma era
galopante. A temporalidade muda, tudo se torna mais rápido, fugidio: ágil.
Metralhadoras pipocavam na imaginação dele ‘É preciso fazer qualquer coisa – um esbregue danado de medonho ou uma revolução’ Bombas explodiam arrebentavam quebravam casas matavam sacanocratas ensaguentavam o horizonte como um novo sol ‘É preciso fazer alguma coisa – agir agir agir...”(Idem, ibidem).
Nada apresenta segurança. A esperança de um novo sol é desfeita por surgir já
ensanguentado pelas bombas que explodem e arrebentam as casas. Resta agir.
Despiu o paletó (metralhadora metratrabalhadoras metralhadoras ) arregaçou as mangas da camisa (metralhadoras metratrabalhadoras metralhadoras ) e metralhou na reminton
“Cobrinha entrou no botco e botando dois tistas no balcão pediu pro coisa
- Dois de gozo Coisada atendeu à la minuta (...) (Idem, ibidem).
A ação é a escrita. evêmero, ao metralhar na reminton, re-escreve o início da
novela. Um ciclo se inicia, uma espiral que manterá vivo o Mangue, a Lapa e a Praça
XI. Se antes da ação esses espaços tinham acabado, colocados a baixo por uma norma
higienista que buscava ocultar os elementos desviantes, na escritura eles surgem
8 Referência ao escritor Luiz Edmundo, autor de O Rio de Janeiro do meu tempo.
77
novamente. Única saída possível, a escrita freia o progresso autoritário e cria uma
nova temporalidade. Os personagens se tornam imortais em uma linguagem própria.
Estão agora aguardando um novo visitante – o leitor – que, em companhia dos
malandros e prostitutas, vivenciará um cotidiano perdido, como analisa Giovanna
Dealtry:
As metralhadoras giratórias remetem, pelo olhar do leitor, a uma nova construção narrativa em que o infinitivo “agir, agir, agir” transforma-se em “gira, gira, gira”. Revolve-se parcialmente o enigma: perpetua-se pela escrita e pela leitura o movimento. Dessa forma, o texto de Desabrigo ganha sentido mais amplo quando abordado dentro de uma análise que incluiu o papel do leitor. (Dealtry, op. cit., 2009.)
O leitor se torna encarregado da perpetuação de tudo o que fora destruído,
cúmplice de uma tarefa maior. Através da leitura os personagens se tornaram
imortais. Desabrigo, como observa Maria Célia, “abriga na literatura o linguajar
popular, a prosa espontânea e, por vezes, a construção rebuscada de gírias, extraídas
das falas das pessoas do “pedaço”, recurso do qual Fraga, no Brasil, é
percussor.”(Silva, op. cit., 182-3). O fim de Desabrigo representa um retorno – “o
eterno retorno”, é o título de seu último capítulo. O fim aponta para um re-começo.
Ao abrir as páginas da novela, o leitor possibilitará que o cotidiano do Mangue seja
novamente encenado.
3.3
João Antônio, o jogo de transitar pela cidade.
À semelhança de Orestes Barbosa e Antônio Fraga, João Antônio também
possui uma trajetória pessoal que se confunde com a de seus personagens. Na
infância morou em Presidente Altino, um bairro operário da zona oeste de São Paulo.
Na juventude exerceu diferentes ocupações: Office-boy, contador, bancário e depois
redator publicitário. Neste percurso de tempo ingressou no curso de Jornalismo da
78
Faculdade Casper Líbero. O ingresso no ambiente universitário abriu novas frentes de
trabalho e, principalmente, experiências, como nos conta Vima Lia Martin: “É nessa
fase que começa a frequentar simultaneamente bares e sinucas com assiduidade e a
produzir literatura. A convivência que ele fazia questão de cultivar com jogadores,
prostitutas e boêmios será decisiva na concepção de seus textos.”(Martin, 2008, p. 19)
Dono de uma prosa peculiar, em que estrutura com fluidez expressões típicas
do cotidiano de personagens que sobrevivem em esferas noturnas da cidade, João
Antônio figura como um dos autores mais importantes do intento em construir nas
páginas de nossa literatura uma morada própria para os sujeitos marginalizados. Em
seus livros ganham vida os malandros, prostitutas, leões-de-chácara, pivetes, a raia
miúda, ou, como o próprio autor sempre descrevia esse grupo, a curriola. Mas, claro,
também há espaço para os pequenos trabalhadores. Esses, igualmente habitantes de
uma margem urbana, povoam as páginas em menor número. Mas, quando entram em
cena, sua presença oferece interrogações, questionamentos distintos sobre a condição
de vulnerabilidade e marginalidade que vivenciam. Dois contos em especial oferecem
esse olhar: “Busca” e “Afinação da arte de chutar tampinhas”. Ambos foram
publicados em Malagueta, Perus e Bacanaço, livro de estreia de João Antônio,
lançado em 1963.
“Busca”, o conto de abertura da publicação, tem como narrador-protagonista
Vicente, um homem solteiro que trabalha como chefe de solda em uma oficina e
divide a sua residência com a mãe e a irmã. O conto é estruturado a partir do
caminhar do personagem pelas ruas de São Paulo, momento no qual o mesmo faz
uma espécie de balanço de sua trajetória de vida. O caminhar é apresentado como um
ato oposto à estagnação, mover-se é impedir uma paralisia. Uma imagem em especial,
apresentada no início do conto, orienta a percepção do leitor acerca do personagem e
principalmente sobre o desejo de ganhar as ruas em passos desleixados: o limo nas
paredes de um tanque de lavar roupas. Tal imagem surge como um signo
representativo da fixação, do não movimento. “Quando voltasse”, afirma o
personagem, “daria um jeito no tanque. As manchas verdes sumiriam.”(Antônio,
1982, p. 11). E, após andar pelas ruas, o personagem retorna para casa e apresenta
como último pensamento a imagem do limo: “Lembrei-me que precisava passar uma
79
escova no tanque”(Idem, p. 16). Há uma circularidade na narrativa, o ciclo se fecha e
a ordem se mantém. O limo do tanque serve como metáfora da própria vivência do
personagem. Dessa forma, como observa Vima Lia Martin, o personagem “demonstra
saber, de alguma maneira, que em vez de tirar o limo do tanque é preciso é tirar o
limo da sua própria vida.”(Martin, op. cit., p. 77).
Em “A afinação da arte de chutar tampinhas”, conto que apresenta um
personagem também residente em um bairro proletário e que igualmente experimenta
cotidianamente um sentimento de conflito acerca de sua trajetória de vida, o autor
funda um sentido de resistência frente às estruturas sociais hegemônicas ao oferecer
um protagonista que possui como principal habilidade chutar tampinhas. Nesse
sentido, João Antônio tece com sutileza a transformação de um ato casual,
representativo de um caminhar sem rumo e pressa, em uma atividade dotada de um
empenho único. A afinação dessa nova arte, para utilizar como referência a
construção do personagem, designa um ato contrário à aceleração do tempo moderno,
como observa Vima Lia Martin:
Se, num primeiro momento, podemos pensar na relação profunda que esse ato guarda com a prática do futebol, esporte popular que encantava o narrador na infância e já juventude, também é possível derrivar outros sentidos desse ato. No universo das relações entre trabalho e capital, em que a especialização é uma marca – ainda que falaciosa – do avanço e do progresso, especializar-se na “arte de chutar tampinhas” é uma afronta aos valores dominantes. Sabemos que no mundo do “time is money”, a “arte” e a “beleza” só adquirem valor enquanto mercadorias e, desse ponto de vista, nada pode ser mais ultrajante do que a mania contraproducente do narrador, que parece atender tão somente a uma necessidade subjetiva (Idem, p. 81)
Na análise da crítica, o personagem se insere em uma sociedade marcada por
uma temporalidade movida pela aceleração da modernidade a partir de sua negação.
Especializar-se em chutar tampinhas é um ato de afronta a uma estrutura social
marcada pela necessidade de produzir bens consumíveis, desprezando os valores
dominantes.
Nessa perspectiva, em ambos os contos, João Antônio utiliza personagens que
revelam um desconforto em relação ao mundo burguês. Seja pela urgência em mover-
se e apagar o limo que reflete seu estado de inércia na sociedade ou pelo empenho em
especializar-se em um ato que contradiz a urgência da sociedade moderna, como
80
chutar tampinhas. São personagens que, mesmo inseridos na estrutura social
dominante através de sua força de trabalho, buscam colocar-se à margem desses
processos, buscando alternativas de evasão.
No entanto, esse desejo de colocar-se à margem da sociedade, negando os
princípios norteadores que definem em essência a estrutura burguesa dominante –
como o trabalho assalariado e as relações familiares tradicionais – é potencializado
no momento em que o autor move seu olhar para os malandros e sujeitos em conflito
com a lei. Em princípio, é possível afirmar que a escrita de João Antônio move-se em
direção a esse grupo social, buscando representá-los em seu cotidiano, construindo
diversificadas fisionomias desses sujeitos, deixando para um segundo plano os relatos
ficcionais que oferecem como protagonistas personagens inseridos em uma estrutura
formal, que podemos denominar de trabalhadores ou, para citar um gíria dos
malandros, “otários”. As páginas dos livros de João Antônio passam a ser uma
galeria de tipos residuais, marginalizados pela sociedade que aparentemente abriga e protege os ‘otários’, os malandros – jogadores de sinuca, gigolôs, prostitutas, viradores, praças, dedos-duros, artistas decadentes, leões de chácara – não possuem os mesmos bens; as regras que antes permitiam e incentivavam, agora excluem e proíbem, aos malandros, até o direito aos mesmos objetivos. (Durigan, 1983, p. 216).
A prevalência dos malandros em relação aos otários nos contos de João
Antônio revela o intento em formar um exame de um símbolo maior de uma
resistência, um ato de insubordinação em relação aos domínios de uma estrutura
social que privilegia os elementos que estes sujeitos colocam em xeque. Dessa forma,
se os personagens dos contos anteriormente citados vivenciam a angústia de um
desejo não realizado de abandono das estruturas burguesas, os malandros designam a
sua total recusa.
Movido pelo desejo de apresentar personagens em completa afronta às normas
sociais, João Antônio constrói um olhar peculiar acerca da margem urbana paulistana
e carioca. Seus personagens, em essência, são sujeitos do submundo, que se
esgueiram pelas margens da cidade, vivendo da “viração” – ou seja, virando-se,
buscando alternativas – para suprir as necessidades mais urgentes. A análise de Jesus
Antonio Durigan sobre a obra de João Antônio lança uma oportuna percepção sobre o
tipo de ação que os malandros desenvolvem com o objetivo da sobrevivência:
81
O saber sobreviver, tomar dinheiro dos “otários”, implica, então, na presença de uma falta, na existência de uma necessidade real (pobreza), que para ser suprimida exige do malandro todo um ‘saber especializado’, oposto ao saber da competência capitalista, e que só será adquirido através de um processo prático de aprendizagem, o da vida. (Idem, p. 217).
O conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, que dá título ao volume de estreia do
autor, é exemplar desse tipo de aprendizagem ao narrar as desventuras de três
malandros na noite paulistana. No conto, três personagens, cada qual em uma idade
específica, representando três momentos da existência humana, atravessam a cidade
em busca de um jogo de sinuca oportuno, em que possam concretizar o desejo de um
ganho vultoso o bastante para apaziguar as necessidades imediatas. A cidade, nessa
perspectiva, se abre como um campo de possibilidades, um terreno atrativo que
possibilita o fluxo por suas engrenagens. Tal qual uma mesa de sinuca, a cidade ao
longo da travessia dos personagens também tem suas regras. Bolas moventes,
Bacanaço, Perus e Malagueta percorrem o asfalto/tecido com táticas próprias,
evitando determinados espaços, recuando frente armadilhas semelhantes às caçapas e
buscando ‘otários’ que serão, esses sim, encaçapados pela picardia dos malandros. Do
jogo estabelecido com a cidade resultam episódios que revelam a necessidade de um
aprendizado próprio para o estabelecimento do percurso por suas ruas e avenidas.
O conto inicia com Bacanaço e Perus em uma sinuca no bairro da Lapa. Sem
dinheiro, os dois malandros buscam diferentes passatempos para afugentar a fome:
simulam uma briga, jogam palitinhos, contam casos da malandragem e vantagem
sobre seus atos, transformando esses atos em verdadeiras histórias de valentia. Com a
entrada de Malagueta na sinuca ambos identificam no velho malandro uma
oportunidade de ganho e sugerem: “Quer jogo, parceiro velho?”(Antônio, op. cit, p.
109). Como resposta, Malagueta recua e nada diz. Após nova investida dos dois
malandros e perceber que ambos estavam sem dinheiro, Malagueta oferece uma
alternativa: “A gente se junta, meus. Faz marmelo e pega os trouxas”(Idem, p. 110). É
estabelecido um pacto e juntos, presumem, são mais fortes. Parceiros em busca de
trouxas, cada qual uma necessidade, os três em busca da oportunidade.
82
A partir desse ponto, a narrativa passa a apresentar a cidade a partir dos olhos
dos malandros. Com um narrador em terceira pessoa, o conto é um mapeamento da
cidade, identificando e hierarquizando os bairros. Dividido em seis partes, cada qual
nomeada por um bairro visitado pelos três malandros, o conto [re]constrói a cidade
através do estabelecimento de um olhar que em alguns momentos se configura como
estrangeiro ao ambiente e em outros revela grande familiaridade com o território
percorrido. O percurso pelo bairro da Barra Funda revela o sentimento de não
pertencimento dos personagens ao ambiente, como é possível observar na passagem
abaixo através do uso de um discurso indireto livre pelo narrador:
Vai-e-vem gostoso de chinelos bons de pessoas sentadas balançavam-se nas calçadas, descansando.
Com suas ruas limpas e iluminadas e carros de preço e namorados namorando-se, roupas todo-dia domingueiras – aquela gente bem dormida, bem vestida e tranquila dos lados bons das residências da Água Branca e dos começos de Perdizes. Moços passavam sorrindo, fortes e limpos, nos bate-papos da noite quente. Quando em quando, saltitava o bulício dos meninos com patins, bicicletas, brinquedos caros e coloridos.
Aqueles viviam. Malagueta, Perus e Bacanaço, ali desencontrados. O movimento e o rumor os machucava, os tocava dali. Não pertenciam àquela gente banhada e distraída, ali se embaraçavam.
(...) Um sentimento comum unia os três, os empurrava. Não eram dali.
Deviam andar. Tocassem. (Antônio, op. cit., p. 114-5)
A cidade surge em sua forma ordenada, exibindo seus bairros ricos em
contraste com os próprios personagens malandros, sujeitos evasivos, esquivos, que
cortam ruas e avenidas na “viração”, na busca por uma saída. No entanto, se no plano
físico há uma possível ordem na feição da cidade, revelando um sentido hierárquico
do seu planejamento, o mesmo não ocorre nas relações sociais que são estabelecidas
em seu território. Dois exemplos, em especial, justificam essa proximidade e inversão
das regras sociais. O primeiro, encenado dentro de uma sinuca no bairro da Água
Branca, na segunda parte do conto, apresenta um ex-policial como freqüentador
assíduo da sinuca e conhecedor em potencial das artimanhas da malandragem. Ao
chegarem na sinuca, no Bar Joana D’arc, Bacanaço, Perus e Malagueta encontram o
inspetor Lima, que mesmo aposentado ainda guardava a seriedade de seu cargo antes
do nome, acompanhado de outros jogadores no Jogo da Vida. A modalidade do jogo
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é apresentada como “o joguinho mais ladrão de quantos há na sinuca”(Idem, p. 114).
E, nas palavras do narrador, o Jogo da Vida tem as seguintes regras:
Cada um tem sua bola que é uma numerada e que não pode ser embocada. Cada um defende a sua e atira na do outro.
Cada homem tem uma bola que tem duas vidas. Se a bola cai o homem perde uma vida. Se perder as duas vidas poderá recomeçar com o dobro da casada. Mas só ganha uma vida só. (Idem, ibidem).
Devemos recordar que os três personagens estabeleceram uma parceira, estão
mancomunados. Dois entram no jogo, Perus e Bacanaço, Malagueta fica observando,
na espreita, financiando o jogo. Os outros jogadores, é claro, não sabem disso. O
ritual do artifício, a artimanha malandra, favorece os três. Ganham partidas, um
defendendo a bola do outro, até que o inspetor Lima, “que nem era malandro, nem era
um velho coió”(Idem, ibidem), percebe a parceria e com alarde afirma: “Botem fé no
que eu digo, qu’eu não sou trouxa não e nessa canoa não viajo. ‘Tá muito amarrado o
seu jogo, seu velho cara de pau. Botem fé. Eu pego marmelo neste jogo, arrumo
cadeia pros dois safados.”(Idem, ibidem).
Na passagem, João Antônio apresenta de forma perspicaz as relações de
proximidade entre o mundo da ordem e desordem. O inspetor aposentado, mesmo
compactuando com o jogo, posto que o próprio é também apostador, ao perceber a
parceria entre Perus e Bacanaço utiliza como principal referência para inibir a prática
e punir os dois malandros o elemento de coerção do mundo da ordem, a cadeia. Dessa
forma, mesmo sendo antagônicos, o mundo da ordem e da desordem sofrem
interferências múltiplas, ambos são contaminados. A análise de Vima Lia Martin
lança novos olhares sobre a questão:
A ambiguidade presente na atuação do velho Lima é emblemática da tensão entre nome e conduta que se presentifica na sociedade brasileira. O fato de o tira aposentado, que ainda sustenta influências, ser aficionados pelo jogo e vigiar a sua ocorrência no Joana d’Arc, evidencia um profundo descompasso entre norma e conduta. (...) Ao se construir como porta-voz da perspectiva “oficial” sobre o que seria a conduta ideal e, simultaneamente, como transgressor das regras que ele mesmo propaga, o ex-policial rasura as fronteiras que separam os pólos da ordem e da desordem e, de certo modo, acaba por legitimar a prática da malandragem. (Martin, op. cit., p. 141)
84
Episódio que evidencia conflito semelhante é apresentado na quarta parte do
conto intitulada “Cidade”. Tal qual no relato anterior, temos um representante do
mundo da ordem, um policial, frequentador dos salões de sinuca da cidade. No
entanto, em distinção à cena do inspetor aposentado, não temos um policial que
simpatiza com o jogo e o submundo dos malandros jogadores, mas, sim, “Silveirinha,
o negro tira” que se infiltra nesse ambiente para achacar os jogadores. Perus, por ser o
mais novo e exibir sua fragilidade através da timidez evasiva, é a vitima em potencial
do policial. Inicialmente o policial atinge seu alvo pedindo propina: “Moleque, você
já pagou imposto?”(Antônio, op. cit, p. 134). A conduta do policial é de intimidação,
utilizando a força como recurso:
Azucrinava, exigia, demorava-se no exame do menino. Ali, cantava de galo, dava cartas, jogava de mão, mexia e remexia o bico, a condição de mando era sua. Infeliz algum abria o bico. Levantou-se, fez a volta a redor de Perus. Esperou a fala.(Idem, ibidem)
A fala de Perus surge tímida, um quase sussurro que demonstra sua
fragilidade, transfigurando-se em presa fácil para o negro tira. A saída encontrada por
Bacanaço para socorrer o malandro parceiro é subornar o policial, para tanto pede a
retirada de Perus e Malagueta para, assim, estabelecer o acordo:
Pediu bebida com desplante, indicou o tamborete, sentaram-se como iguais. Como colegas. O malandro e o tira eram bem semelhantes – dois bem ajambrados, ambos sapatos brilhavam, mesmo rebolado macio na fala e quem visse e não soubesse, saber não saberia quem ali era polícia, quem ali era malandro. Neles tudo sintonizava. (Idem, ibidem)
Novamente os mundos da ordem e da desordem são contaminados. Em
princípio não é possível estabelecer um choque entre essas esferas antagônicas, mas,
sim, um processo de acomodação. Contudo, desta vez, o enfoque de João Antônio se
torna mais forte, o policial ainda está na ativa e suas atitudes não deixam margem
para dúvidas, é um policial corrupto. E, como destaca Vima Lia Martin,
O ponto alto dessa passagem consiste justamente na aproximação realizada entre as duas figuras – a de Bacanaço e a de Silveirinha. A aparência, a fala e, por que não, a dissimulação e a trapaça de ambos os fazem iguais, reforçando a ideia de que a lei, na sociedade brasileira, é um mero simulacro. (Martin, op. cit., p. 147).
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A forma como o trio consegue se desvencilhar do policial corrupto serve
como uma espécie de aprendizado, travando contato com esses espaços e personagens
da cidade noturna, Bacanaço, Perus e Malagueta passam a conhecer os entraves,
meandros e armadilhas do submundo. Apreendem as informações necessárias para
formar seu percurso pela cidade. Não apenas os personagens apreendem, mas,
igualmente, o narrador.
Nos textos de João Antônio, o processo de aprendizagem se realiza duplamente: o que é desenvolvido pelos atores das histórias narradas e o que se processa ao nível do aprendizado do narrador. Enunciado e enunciação se envolvem em processos representativos, responsáveis pela organização final dos contos do autor.(Durigan, op. cit., p. 217)
É merecedor de destaque a forma como o narrador dos contos de João
Antônio se posiciona frente ao narrado. O autor lida com desenvoltura com uma
linguagem preenchida por ditos populares, gírias da malandragem, linguagem oral,
etc. O processo, por se assemelhar a um mosaico de vozes e registros da marginália,
foi classificado por Jesus Antonio Durigan como processo de bricolagem. “O
processo criativo do narrador malandro resulta e só pode ser verificado a partir de sua
capacidade de montar, do trabalho de compor um todo com partes heterogêneas e
descontextualizadas.” (Idem, p. 218)
Há uma força peculiar na linguagem do autor, revelando um experimento que
busca abarcar sentidos e emoções, como o próprio autor declara em carta enviada a
Caio Porfírio:
Sem força da linguagem, o melhor que um escritor faz é não escrever. (virar as coisas para a literatura também é ótimo exercício, coisa que escritor brasileiro tem vergonha de fazer, porque gosta mesmo é da vida literária e não de escrever) Se não tem linguagem, o escritor que trate de arrumar uma e urgentemente, porque o leitor não é obrigado a aturar prosa sem colorido, sem garra, sem sexo, sem gente, sem bucetas, caralhos, peitos, suores, etc. Fora daí, é “ismo”. Literatura tem o buraco mais embaixo.(Antônio, 2004, p. 52).
A proposta é criar uma forma de expressão literária que seja capaz de abarcar
a especificidade das gírias da malandragem e, principalmente, que seja um espaço
que possa abrigar as histórias e vivências de personagens que percorrem o submundo.
Uma linguagem que se transforma em ato político. Tal projeto ganha mais vulto
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quando o autor o apresenta no posfácio “Corpo-a-corpo com a vida” do livro
Malhação do Judas carioca, lançado em 1975:
A desconhecida vida de nossas favelas, local onde mais se canta e mais existe um espírito comunitário; a inédita vida industrial; os nossos subúrbios escondendo quase sempre setenta e cinco por cento de nossas populações urbanas; os nossos interiores – os nossos intestinos, enfim, onde estão em nossa literatura? Em seu lugar não estarão colocados os realismos fantásticos, as semiologias translúcidas, os hipermodelismos pansexuais, os supra-realismos hermenêuticos, os lambuzados estruturalismos processuais? Enquanto isso, os aspectos da vida brasileira estão aí, inéditos, não tocados, deixados para lá, adiados eternamente e aguardando os comunicadores, artistas e intérpretes. (Antônio, 1981, p. 146)
O trecho acima sintetiza o fazer literário de João Antônio e, principalmente, a
sua crítica a uma produção literária que se revela mais preocupada com a forma do
que o conteúdo. Em carta enviada em 1974 a Caio Porfírio, meses antes da
publicação do posfacio “Corpo-a-corpo com a vida”, João Antônio já apresenta o
norte conceitual de sua preleção por personagens marginalizados e por uma expressão
literária marcada pela linguagem popular:
Além do que tenho feito normalmente, ando muito interessado numa literatura que, fugindo ao gênero literário (essa coleira do capeta) seja menos literária e mais um corpo-a-corpo com a vida. Sei que isso já foi feito lá no estrangeiro – Vasco Patrolini, Truman Capote, Norman Mailer – isso não me impede de várias incursões. (Antônio, op. cit., 49).
O abandono do gênero literário não significa o abandono das técnicas
literárias. Se estabelecermos um exame da obra do autor é possível observar que após
a publicação do posfacio “Corpo-a-corpo com a vida” João Antônio passa a produzir
narrativas que se assemelham a reportagens. São contos que exibem fisionomias,
sem, necessariamente, apresentar um enredo rígido em sua estrutura narrativa. O
personagem principal, nesse sentido, passa a ser o próprio autor que percorre os
territórios multifacetados do submundo, travando contato com toda a sorte de
personagens e histórias. Casa de loucos (1976), uma reunião de textos publicados em
diferentes jornais, é o mais notório exemplo da nova investida do autor na literatura,
classificado pelo próprio como “experiências colhidas ao longo de tempos de
jornalismo”(Idem, p. 64). Com características semelhantes, Ô, Copacabana (1978)
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também apresenta contos-reportagens que possuem como principal personagem o
bairro carioca, local em que João Antônio morou durante anos até a sua morte. Por
fim, Dama do encantado, último livro inédito do autor que conta com a reunião de
crônicas, contos e ensaios do autor, pode ser compreendido como ápice desse novo
olhar sobre a literatura.
A postura combativa do autor, proclamando uma literatura em constante atrito
com a vida, rendeu uma vendagem expressiva e duras críticas, como observa Karl
Erik Shøllhammer:
Entre seus contemporâneos, João Antônio tinha um público de leitores significativo, ao mesmo tempo em que recebia um certo desprezo por parte da crítica pelo teor antiintelectual, apolítico e “populista” de seu discurso. Era chamado de autor “neonaturalista”, o que não era nada positivo, pois refletia a crítica de Lukács do romance naturalista do século XIX (Shøllhammer, 2000, p. 248).
A crítica, por mais negativa que seja, é procedente. Aprisionado em seu
empenho em produzir uma literatura viva, possível reflexo de uma realidade, João
Antônio modifica o artifício da ficção. Em seu lugar passa a vigorar o relato
jornalístico, o olhar atento sobre as ruas e as pessoas que nelas transitam. Ainda
perdura a técnica, a escrita pontuada pela linguagem da malandragem, repleta de
gírias e ditos populares. Mas, são fisionomias, retratos de sujeitos colhidos pelo autor.
No entanto, como observa Antonio Candido, será a partir desse experimento
literário que são criadas alternativas para a inserção desses sujeitos marginalizados
em nossa literatura:
Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade de dar voz, de mostrar em pé de igualdade os indivíduos de todas as classes e grupos, permitindo aos excluídos exprimirem o teor de sua humanidade, que de outro modo não poderia ser verificada. Isso é possível quando o escritor, como João Antônio, sabe esposar a intimidade, a essência daqueles que a sociedade marginaliza, pois ele faz com que existam, acima de sua triste realidade(Candido, 2004, p.11)
João Antônio figura em nossa literatura como o escritor que soube exprimir
em prosa a feição de personagens oriundos de setores marginalizados de nossa
sociedade. Travou um corpo-a-corpo não apenas com a vida, mas a vida que é
encenada nos espaços esquecidos dos nossos centos urbanos.
88
4.
Hip–Hop e Literatura Marginal: por uma pedagogia própria
Descance o seu gatilho, descanse o seu gatilho. Entre no trem da malandragem, meu RAP é o trilho.
Racionais MC’s, Fórmula Mágica da Paz.
Corpos negros, rígidos, realizam movimentos largos, ostentam seu objetivo
de expansão, alcançar espaços antes fechados. Os punhos cerrados lançados ao ar
no ritmo constante da batida eletrônica acentua a violência já pressentida no cenho
franzido que reforça o olhar fixo. O uso de casacos volumosos, quase sempre com
capuz, aquece e oculta seus rostos e o corpo franzino. Há um aspecto teatral,
encenam um combate, figuram como vitimas e, ao mesmo tempo, vencedores.
São negros, pobres, favelados: marginalizados. Não possuem mais o gingado do
samba, a malemolência deu lugar à rigidez, reforçada pelos passos robóticos dos
dançarinos de break. A ginga é abandonada, esquecida, não há mais um sentido
desviante no trajeto que estes corpos realizam. Ao contrário, são corpos eretos que
sustentam semblantes fechados, sérios. Corpo e fisionomia expressam, em
sintonia, o mesmo teor de revolta contido nas palavras que são proferidas em ritmo
acelerado.
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Não há mais assombro, não é um fenômeno recente. O Hip-Hop com o seu
acentuado discurso de contestação tem aglutinando vozes marginalizadas não apenas
na periferia brasileira, mas igualmente em parte significativa no mundo ocidental.
Arquitetada no centro da decadência urbana norte-americana em fins dos anos 1970,
tal cultura pode ser definida como uma referência para a conformação de identidades
alternativas de jovens em bairros periféricos. Lançando mão da experiência local
como válvula motriz, inúmeros jovens produzem discursos verbais e visuais que
possuem como objetivo a auto-afirmação. Não são mais sujeitos anômalos, sem
identidade, são agora membros de uma nova filia, um grupo crescente que utiliza
como suporte discursivo as mais variadas formas de expressão. Tricia Rose, em artigo
publicado no livro Abalando os anos 90: Funk e Hip-hop, traça um elucidativo
paralelo entre a vertiginosa decadência urbana dos bairros negros e hispânicos nova-
iorquinos sofrida entre fins de 1970 e início de 1980 e o surgimento do movimento.
Na leitura de Tricia Rose, “a cultura hip-hop emergiu como fonte de formação de
uma identidade alternativa e status social para os jovens numa comunidade, cujas
antigas instituições locais de apoio foram destruídas, bem como outros setores
importantes”(Rose, 1997, p. 202). A cultura Hip-Hop emerge neste contexto como
uma resposta ruidosa proferida por uma juventude representante dos bairros
decadentes de Nova York. Através dos simbolismos desta nova cultura jovem
as descrições dos bairros negros e hispânicos foram (...) invadidas por vida, energia e vitalidade. A mensagem foi dita em alto e bom som: se ficarmos parados, aí é que estamos perdidos. E assim, enquanto essas imagens de perda e fatalidades se tornavam características definidoras, a geração mais jovem dos exilados no South Bronx estava construindo saídas criativas e agressivas para sua expressão e identificação. O novo grupo étnico que fez do South Bronx sua casa, no final dos anos 70, construiu uma rede cultural própria, que pudesse se mostrar alegre e compreensiva na era da alta tecnologia. Negros norte-americanos, jamaicanos, porto-riquenhos e outros povos do caribe, com raízes em contextos pós-coloniais, reformularam suas identidades culturais e suas expressões em uma espaço urbano hostil, tecnologicamente sofisticado e multiétnico. Enquanto os líderes municipais e a imprensa popular condenava literal e figurativamente o South Bronx, seus moradores e sua vizinhança, seus jovens habitantes negros e hispânicos, responderam à altura. (Idem, Ibidem)
Em sua leitura, Tricia Rose deposita no movimento Hip-Hop a esperança de
formação de uma política cultural que possibilite a assunção de uma identidade negra
90
e/ou marginal com uma feição emancipatória. Ao observamos com mais atenção os
elementos constituintes desta cultura - traçando os paralelos entre o RAP, o Break e o
Graffite, os três elementos que formam a cultura - podemos compreender melhor o
tom empregado por Rose em sua análise.
O RAP, sigla do termo rhythm and poetry, é uma forma de expressão musical
baseada em batidas eletrônicas sequenciadas e uma melodia que enquadra versos
mais falados que cantados marcados pela rima. Sua origem, de acordo com Micael
Herschmann (2000) e Hermano Vianna (1997), é jamaicana e utilizava como
principal recurso os sound systems (aparelhos de som portáteis). Ao som das batidas
dos ritmos jamaicanos, os Toaster, espécie de mestres de cerimônias, ficavam
improvisando frases, discursos e rimas – versos que delatavam os problemas
socioeconômicos da comunidade, a violência, a guetificação e as péssimas condições
de vida. Em solo norte-americano, levada por Kool-Herc, a estrutura deste tipo de
festa se tornou popular e respondia aos anseios da população negra, como observa
Hermano Vianna:
No final dos anos 60, um disk-jockey chamado Kool-Herc trouxe da Jamaica para o Bronx a técnica dos famosos “sound systems” de Kingston, organizando festas nas praças do bairro. Herc não se limitava a tocar os discos, mas utilizava o aparelho de mixagem para construir novas músicas. Alguns jovens admiradores de Kool-Herc desenvolveram as técnicas do mestre. Grandmaster Flash, talvez o mais talentoso dos discípulos do DJ jamaicano, criou o scratch, ou seja, a utilização da agulha do toca-discos, arranhando [a superfície] do vinil em sentido anti-horário, como instrumento musical. Além disso, Flash entregava um microfone para que os dançarinos pudessem improvisar discursos acompanhando o ritmo da música, uma espécie de repente-eletrônico que ficou conhecido como rap. Os repentistas são chamados de rappers ou MCs, isto é, masters of cerimony.(Vianna, 1997, p. 21)
O Break, expressão corporal baseada na produção de movimentos rítmicos
que acompanham a batida da música, é uma dança de origem porto-riquenha. Os
movimentos e passos emulam uma dança robótica, estruturando uma cadência rítmica
marcada pela estratificação do corpo. De acordo com os dançarinos de break, alguns
conhecidos passos aludem ao conflito bélico do Vietnã, sobretudo as coreografias em
que os b-boys - nome dado aos dançarinos - giram o corpo no chão amparados pelas
mãos, mimetizando, assim, os helicópteros de guerra. O corpo passa a ser utilizado
como suporte de um discurso que almeja denunciar a violência e a opressão social.
91
Tal qual o ocorrido com o RAP, o Break se alastrou por Nova York por volta dos
anos 70, onde ganhou força nas gangues, transformando-se em códigos de luta e
também de resistência cultural e reivindicação social. Ou seja, representando um
estilo de vida que revela uma atitude de protesto e conscientização de um grupo
marginalizado.
Ao contrário do RAP e do Break, não é possível apresentar com precisão a
origem do Graffiti. Segundo Micael Herschmann (2000), acredita-se em uma grande
influência latina devido ao expoente significativo de artistas colombianos, porto-
riquenhos, bolivianos, entre outros que trabalharam com os murais. Na década de 60
e 70, em Nova York, tal prática artística, fundamentada na utilização dos muros, trens
e quadras da cidade como suporte de um discurso de contestação, ganhou força e
notoriedade. O objetivo do Graffiti, de acordo com os próprios artistas, é alcançar o
máximo de pessoas com a manifestação, propagando um discurso crítico que visa
conscientizar o receptor da imagem. A utilização do mobiliário urbano, como uma
espécie de tela pública, revela esse intento.
O traço que une esses três elementos e, dessa forma, possibilita sua
apresentação como um movimento é o sentido de protesto, de criação de uma fala
contrária ao estabelecido, rasurando discursos hegemônicos e produzindo um
interstício entre centro e periferia.
O rap e o scratch não são elementos isolados. Quando eles aparecem nas festas de rua do Bronx, também estão surgindo a dança break, o graffiti nos muros e trens do metrô nova-iorquinos e uma forma de se vestir conhecida como estilo b-boy, isto é, a doração e uso exclusivo de marcas esportivas como Adidas, Nike, Fila. Todas essas manifestações culturais passaram a ser chamadas por um único nome: hip-hop. O rap é a música hip hop, o break é a dança hip hop e assim por diante. (Vianna, op. cit, p. 21)
Ancorada na leitura de Arthur Jafa, Tricia Rose busca relacionar os três
elementos que formam o Hip-Hop a partir de três conceitos: fluxo, estratificação e
rupturas sucessivas. Seguindo esta linha de análise, é possível observar que na cultura
Hip-Hop estes três conceitos - que por sua vez são também termos que remetem ao
movimento operado por corpos – se fazem presentes na dança, na música e na arte
gráfica. Dessa forma, Rose observa que “no graffite, as letras longas, sinuosas,
92
radicais e curvas são quebradas e camufladas por repentinas rupturas no traço”(Rose,
op. cit., p. 207). No break, a dança desloca o fluxo e as rupturas sucessivas através de
imobilismos e movimentos bruscos a partir de saltos e pulos. Por fim, na música rap
o movimento de fluxo se faz presente na estrutura rítmica constante da batida
eletrônica e pelo uso de loops, séries musicais que se repetem sucessivamente, sendo
entrecortadas pelos scratchs, arranhões na superfície do disco de vinil, instaurando as
rupturas na seqüência musical. Além disso, o próprio estilo de cantar do rapper,
apresentando a gagueira como forma quase dominante, reforça a presença do
movimento de ruptura. Tais conceitos, fluxo, estratificação e ruptura, auxiliam na
composição de uma reflexão do movimento Hip-Hop em consonância com a
realidade social vivenciada pelos sujeitos fundadores desta cultura. Dito de outra
forma, o graffite, o break e o rap encenam esteticamente os mesmos movimentos
operados pelos jovens em suas respectivas comunidades.
Os efeitos do estilo e da estética sugerem caminhos afirmativos, nos quais deslocamentos e rupturas sociais profundas podem ser questionados e até mesmo constatados no terreno cultural. Deixem-nos imaginar esses princípios do hip-hop como um projeto de resistência e afirmação social: eles criam, sustentam, acumulam, estratificam, embelezam e transformam as narrativas. Mas também estão preparados para a ruptura e até encontram prazer nela, pois de fato planejam uma ruptura social. Quando essas rupturas acontecem, elas as usam de forma criativa, como se fossem organizadores de um futuro em que, para sobreviver, é necessário executar transformações repentinas no espaço tático.(Idem, ibidem).
Soma-se a isso uma nova utilização do corpo como identidade e, igualmente,
como suporte de um discurso de confronto. Em consonância com o RAP, o Break e o
Graffiti, o corpo, na cultura Hip-Hop, apresenta o mesmo sentido de expansão que o
movimento almeja. Não é mais um corpo alquebrado, vacilante, que circula pelas
periferias, mas, sim, um corpo ereto, consistente. Em outras palavras, consciente.
Conscientes de seu valor enquanto sujeitos marginalizados, utilizam o corpo como
reflexo de seu desejo de conquista. Nesse sentido, a utilização de um vestuário
baseado em roupas de alto poder aquisitivo – salvo o visível apelo consumista deste
ato – revela uma mensagem de integração, de posse e inserção, mesmo que seja ao
mercado consumidor. Écio Salles, em Poesia revoltada, ao analisar a relação entre a
música RAP e a performance artística dos rappers, observou que o mesmo teor de
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revolta e protesto das canções é sentido no corpo dos músicos. Ambos, música e
corpo, servem como suportes de um discurso de valorização da identidade, utilizando
para tanto todos os mecanismos possíveis.
A dança, a performance reforçam o conteúdo das letras dos raps. Em meio ao público, as notas repetitivas e opressivas, a fala grave, a postura de denúncia muitas vezes expressa por vocábulos nada sutis, tudo isso se adequa a uma dança contida, “que não autoriza sensualidade nenhuma”. Até nisso se faz sentir a diferença imposta pelo rap: ao contrário das rodas de samba, dos bailes funk, dos afoxés, das festas de soul etc..., onde o corpo executa passos frenéticos, extravasando uma alegria incontida, o público do rap acompanha o ritmo com um ligeiro balançar do corpo, ou a simulação de gestos calculados de hostilidade (apontar o dedo como se fosse uma arma, cruzar os braços, fechar a cara) ou de afirmação do seu eu (apontar para si mesmo, bater a mão fechado no peito, segurar a genitália). Gestos que contribuíram para marcar os rappers com a pecha de abusados, grosseiros. Na gíria que lhes é familiar: cheios de marra. (Salles, 2007, p. 134).
Essa postura armada, não cordial dos rappers, além de apresentar uma suposta
pecha de grosseiros, como observou Ecio Salles, é utilizada também como símbolo
identitário que busca se distinguir de outros estilos culturais da periferia.
Não há motivos para sorrisos nem para manemolência: o rapper de favela também tem que se diferenciar de outras formas de expressão surgidas no mesmo espaço, como o funk e o pagode, cuja performance tem um quê de afeminado do qual a atitude dos rappers procura distanciar-se: até agora pelo menos, o hip-hop tem sido o reino do masculino (no que esse conceito tem de mais esteriotipado). ( Salles, 2007, p. 110)
Tal performance, que não fica atrelada apenas ao MC – mestre de cerimônias
– mas também ao adepto da cultura, produz uma nova configuração do corpo negro,
com uma atitude superior, soando arrogante, mas, principalmente, não dócil. Maria
Rita Kehl, após assistir um show dos Racionais MC’s, produziu uma clara percepção
sobre essa postura:
Há uma mudança de atitude, partindo dos rappers e pretendendo modificar a auto-imagem e o comportamento de todos os negros pobres do Brasil: é o fim da humildade, do sentimento de inferioridade que tanto à elite da casa grande, acostumada a se beneficiar da mansidão – ou seja: do medo – de nossa boa gente de cor.(Kehl, appud: Salles, 2007, p. 136)
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Além de apresentar uma espécie de confronto, representada na perda da
docilidade e mansidão do corpo negro, a nova postura, conforme observou Maria Rita
Kehl, é igualmente utilizada como uma espécie de espelho para os negros da
periferia. “Olhe o espelho e tente entender” (Racionais MC’s, Vida loka II), proclama
o grupo Racionais MC’s, buscando na própria apresentação do corpo os elementos
significativos do processo de marginalização sofrido pelo negro. O corpo, nessa
leitura, é concebido como um tecido que absorve a violência sentida pelos sujeitos,
formando-os e moldando-os, como podemos perceber no trecho abaixo:
2 de Novembro era finados / E eu parei em frente ao São Luis do outro lado / E durante uma meia hora olhei um por um / E o que todas as senhoras tinham em comum: / A roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura. / Colocando flores sobre a sepultura. ("podia ser a minha mãe"). Que loucura. (Racionais MC’s; Fórmula mágica da paz)
Por reunir as marcas de uma vida marginalizada, o corpo surge como
elemento de singularização de um grupo. A pele escura e o rosto abatido pela vida
dura passam a ser os indícios utilizados pelo Hip-Hop como signos para a construção
de uma identidade própria. Exemplar desse movimento de auto-afirmação é a
abertura do RAP “A volta”, do grupo Câmbio Negro: “Sou negão, careca, da
Ceilândia, mesmo, é daí?“(Câmbio negro, A volta). Ser negro e residente da periferia,
agora, na ideologia proposta pelo Hip-Hop, principalmente através do RAP, é possuir
uma nova identidade que valoriza o que sempre foi negligenciado.
Contudo, devido a crescente presença desse estilo cultural em diferentes
discursos midiáticos – seja através da música RAP ou do próprio vestuário – é
possível perceber um esvaziamento de significados. Patrice Bollon, em A moral da
máscara(1993), produziu uma importante reflexão acerca desse processo de
apropriação dos estilos culturais. Mesmo não analisando os Rappers – posto que seu
estudo segue uma linha temporal que percorre do final do século XVIII, com os
incroyalles, aos fins dos anos 70 do século XX, com os punks – Bollon observa que
qualquer estilo cultural marginal, surgido nas ruas, ao ser abrigado pela moda
hegemônica perde seu sentido desviante e original. O sucesso, nesse sentido, revela o
esgotamento de um discurso contra-hegemônico:
Pois se esses movimentos que afetam as aparências nascem e vivem na espontaneidade, morrem também por se tornarem conscientes demais.
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Ironia da sorte, é o sucesso que provoca sua decadência. É porque eles se tornam normas, até uniformes; porque de um protesto individual fluido e contraditório, plástico e maleável, eles se transformam em ditames unívocos e determinados, sem mais a intervenção da sensibilidade individual.; em resumo, porque eles se institucionalizam, porque perdem, ao mesmo tempo que suas almas, seu valor como modo de expressão.(Bollon,1993, p. 13)
A visível institucionalização de elementos de estilo do Hip-Hop, através da
eleição do seu vestuário como estética dominante na contemporaneidade, relega-o ao
nível de puras formas vazias fomentadas por clichês publicitários.
Aliás, a moda institucional nunca se engana, ela que pilha e vampiriza o mais que pode essa invenção espontânea surgida da “rua”, da periferia, da “margem”. Como uma operação de alquimia, ela transmuta esse ignóbil em belo, e esse mau gosto em novo gosto, e em número de negócios.(Idem, Ibidem)
Em outras palavras, transforma em produto uma complexa trama de símbolos
que representa uma identidade cultural. A leitura de Patrice Bollon identifica o
movimento perpetrado pela moda no amalgama de significados de uma expressão
cultural oriunda da articulação de sujeitos periféricos. No entanto, mesmo criticando
tal processo, Bollon não estabelece um olhar sobre a recepção que os próprios
representantes destes estilos desfigurados pela “operação de alquimia” que transmuta
os elementos de um grupo cultural específico em mercadoria vazia. Tão necessário
quanto identificar tais ações da indústria da moda, é observar a reação dos sujeitos
criadores dos símbolos apropriados. Na audição do trecho final do Rap “Negro
drama”, do grupo Racionais MC’s, encontramos uma possível resposta e,
principalmente, um olhar crítico acerca deste mecanismo de adaptação e legitimação
do Hip-Hop pela moda:
Inacreditável, mas seu filho me imita/ No meio de vocês, Ele é o mais esperto/ Ginga e fala gíria, Gíria não dialeto / Esse não é mais seu/ Hó, subiu, entrei pelo seu rádio. / Tomei, você nem viu/ Nós é isso, é aquilo / O que você dizia / Seu filho quer ser preto / Ah, que ironia / Cola o pôster do 2 Pac / Aí, Que tal? Que você diz? / Sente o negro drama / Vai, tenta ser feliz. (Racionais MC’s, Negro drama, 2002).
Na fórmula apresentada pelo grupo, não é apenas a justaposição de símbolos e
a adaptação de um certo linguajar que referencia a entrada de um indivíduo no
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universo do Hip-Hop. Não se trata, nesse sentido, de ser apenas um adepto da cultura,
apresentando os elementos visuais necessários para o seu reconhecimento. Mas, sim,
possuir um ethos próprio, adquirido na vivência marginal. Pouco importa se a gíria e
a ginga mimetizam a fala e a postura do corpo negro periférico, é necessário sentir o
negro drama. Nesse caso, não está em jogo ter a aparência do Outro – esse marginal
que ocupa cada vez mais um espaço central na mídia e na moda – mas ser o Outro. O
tom jocoso do grupo aponta em direção aos brancos filhos de burgueses - os mesmos
que outrora criticavam a música e cultura da periferia - que almejam repetir a
fórmula criada pelo Hip-Hop. Na equação apresentada pelo grupo não é apenas o
empenho de um sujeito não pertencente ao universo da periferia que o habilita a
integrar tal cultura e estilo de vida. Pouco importa se a roupa portada pelo jovem
branco seja semelhante ao negro periférico, ou vice e versa, o que define o negro são
as marcas adquiridas pelo estigma e preconceito: “O drama da Cadeia e Favela/
Túmulo, sangue / Sirene, choros e vela”(Racionais Mc’s, “Negro drama”). Critica-se
o resultado vazio que o uso dos elementos exteriores adquire. Não é apenas a postura
que designa os pertencentes ao movimento Hip-Hop, mas, sobretudo, o discurso
produzido pelo rapper, como destaca Gog, no RAP “A quem possa interessar...”, do
álbum Aviso às gerações, lançado em 2006:
A quem possa interessar, proposta é mudar/ O que vem da boca, reflete sua forma de pensar / Não é apenas se vestir, investir na imagem /É traduzir, resistir, persistir na mensagem (Gog, A quem possa interessar..., 2006, grifo nosso)
Na formulação feita por Gog – nome artístico de Genival Oliveira Gonçalves,
rapper nascido em Sobradinho, cidade-satélite de Brasília – o ato discursivo surge
como um elemento maior que suprime os aspectos exteriores do movimento. A
mensagem, uma fala direta que almeja atingir os sujeitos negros e periféricos, surge
como principal objetivo deste estilo cultural. No jogo estabelecido entre a imagem e a
mensagem, valoriza-se aquilo que melhor representa um posicionamento próprio: a
fala. Nessa apreciação, ser o portador de um discurso, ser mensageiro da verdade –
para citar os termos que compõe a sigla que designa o rapper carioca M.V. Bill (Alex
Pereira Barbosa) – é o principal intento.
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Interessa-me observar quais os mecanismos utilizados pelos rappers na
produção destas mensagens de positivação sobre a periferia. Soma-se a isto, o
objetivo de buscar localizar a presença a postura crítica e de protesto do RAP na
produção literária da periferia, identificando nos textos os elementos característicos
da cultura Hip-Hop. Minha leitura será fundamentada, principalmente, na análise das
músicas do grupo Racionais MC’s, grupo da periferia de São Paulo e um dos maiores
grupos de RAP do Brasil. Por se tratar do principal grupo de RAP do Brasil e, em
consequência disto, ser referência para inúmeros outros rappers e grupos espalhados
pelas favelas e bairros de subúrbio do Brasil, ao estabelecer uma leitura atenta das
composições dos Racionais MC’s será possível observar as principais vertentes do
RAP, em sua feição nacional, enquanto discurso direcionado para a periferia.
A importância do grupo pode ser aferida na expressiva vendagem dos discos
Sobrevivendo no inferno(1997) e Nada como um dia após outro dia(2002), que
somadas ultrapassam dois milhões de cópias. Se na atualidade o RAP americano, com
poucas exceções, mais se assemelha a um apaziguador comercial de T.V. que vende
carros esportivos e mulheres semi-nuas, ao menos no Brasil ainda é possível
vislumbrar a preservação de uma doutrina ideológica e política. Uma vez que “esse
foi o caminho de pioneiros do hip-hop antes de sua transformação, nos Estados
Unidos, em um negócio multimilionário que altera o horizonte inicial e hoje participa
ativamente da indústria de entretenimento”(Silva, 2008, p. 165) É com esta matriz
ideológica, fundada em um constante trabalho de conscientização, para citar um
termo amplamente utilizado pelos adeptos da cultura Hip-Hop, que se sustenta os
Racionais MC’s. É lúcido recordar que o grupo, em quase duas décadas de existência,
mantém uma postura crítica em relação à mídia impressa e televisiva, recusando-se a
participar de programas produzidos por emissoras de T.V. aberta, as únicas exceções
são a T.V. Cultura de São Paulo e a MTV. No primeiro caso, de acordo com os
integrantes dos Racionais MC’s, estes aceitam dar entrevistas por se tratar de uma
emissora pública, sem compromisso mercadológico. Já em relação à MTV, a
justificativa é a inserção do programa Yo! MTV Raps, já extinto, voltado
especificamente para a exibição de clipes e entrevistas de rappers americanos e
brasileiros. Foi nesta emissora que o grupo protagonizou uma cena amplamente
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debatida pelos cadernos culturais dos principais jornais brasileiros ao receberem o
prêmio de Melhor vídeo-clipe do ano e de Escolha audiência, por “Diário de um
detento”. Beatriz Resende, em Apontamentos de crítica cultural, recorda de forma
sintética os principais aspectos da postura do grupo e a representatividade das falas
proferidas durante a premiação:
Na espontaneidade de suas alegrias eram, ao mesmo tempo, extremamente conscientes, sem qualquer expressão de gratidão a algum favor ou dívida com a sociedade em suas falas sempre duras. (...) A fala dos manos, veiculada pela globalizada MTV, era local, fechada em si, quase um dialeto que, aos poucos foi se popularizando, como a expressão “tá ligado”. Mano Brown, agradecendo à mãe pelo prêmio, como os astros que recebem o Oscar, dizia que a mãe já lavou muita roupa “pra playboy”. Mas o prêmio era atribuído justamente pela escolha da audiência desses assinantes da TV a cabo, os “playboys”.(Resende, 2002, p. 160-1)
No entanto, entre a denúncia da segregação social e racial e a produção de um
discurso que almeja conscientizar os jovens adeptos da cultura Hip-Hop, temos as
letras e declarações abertamente misóginas. Marca indelével do RAP norte-
americano, o sexismo machista também se faz presente nas músicas dos Racionais.
Ao menos duas composições possuem como tema o tratamento vulgar em relação ao
sexo feminino: “Mulheres vulgares”, do disco Raio-X do Brasil (1993) e “Estilo
cachorro”, do álbum Nada como um dia após o outro dia. Tal aspecto revela a
presença sutil de um aspecto contraditório no discurso do grupo. Mesmo que meu
olhar seja pontuado pela celebração do conteúdo ideológico das letras de RAP,
sobretudo pela constante tematização da violência e do racismo, é necessário destacar
que tais artistas também apresentam, em algumas composições, um discurso
machista.
Como o próprio nome do grupo indica, os Racionais MC’s se apresentam
como detentores de uma verdade, um saber que necessita ser passado aos seus pares.
Enlaçando gírias com uma fala explicitamente recolhida de textos religiosos, os
integrantes do grupo – Mano Brown, Ed Rock, Ice-Blue e KL Jay – apresentam um
olhar peculiar sobre as dinâmicas sociais da periferia, propondo aos seus ouvintes
uma saída ética frente ao funcionamento da perversa máquina da violência social.
Significativo desse intento é um trecho da música “Capítulo 4, versículo 3” – o título
faz uma clara referência ao texto bíblico, apresentando a discografia do grupo como
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uma coletânea de ensinamentos sobre o cotidiano da margem, no qual o álbum
Sobrevivendo no Inferno seria o quarto capítulo da coletânea e a faixa da composição,
por ser a terceira, seria o terceiro versículo:
Colou dois manos / Um acenou pra mim / De jaco de cetim e tênis calca jeans / Hei, Brown, sai fora nem vai, nem cola / Não vale a pena da idéia nesse tipo aí / Ontem à noite eu vi na beira do asfalto / Tragando a morte soprando a vida pro alto / Olha os cara só o pó pele e osso / No fundo do poço, mais flagrante no bolso / Veja bem ninguém é mais que ninguém / Veja bem, veja bem, eles são nossos irmãos também / Mas, de cocaína e crack, whisky e conhaque / Os manos morrem rapidinho sem lugar de destaque / Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma? Nem dá / Nunca te dei porra nenhuma / Você fuma o que vem entope o nariz / Bebe tudo que vê faça o diabo feliz / Você vai terminar tipo o outro mano lá / Que era um Preto Tipo A ninguém entrava numa / Maior estilo de calça Calvin Klein, tênis Puma / É um jeito humilde de ser no trampo e no role / Curtia um funk, jogava uma bola / Buscava a preta dele no portão da escola / Exemplo pra nós maior moral, maior ibope / Mais começo cola com os branquinhos do shopping / Aí já era / Ih! Mano outra vida, outro pique / Só mina de elite, balada vários drinques / Puta de butique, toda aquela porra sexo sem limite / Sodoma e Gomorra / Faz uns nove anos, tem uns dias atrás eu vi o mano / Você tinha que vê, pedindo cigarro pros tiozinho no ponto / Dente tudo zuado, bolso sem nenhum conto /O cara cheira mal, as tias sentem medo / Muito loco de sei lá o que logo cedo / Agora não oferece mais perigo / Viciado, doente, fudido: inofensivo. (Racionais MC’s, Capítulo 4, versículo 3. Grifo meu)
O fragmento citado utiliza como dispositivo um diálogo entre Mano Brown e
Ice-Blue – as falas deste último estão representadas em itálico. Além da evidente
qualidade musical do trecho, com destaque para o ritmo das rimas empregadas,
merece nosso foco a presença consistente do discurso político do grupo. É perceptível
a crítica ao consumo de álcool e drogas, expressa com fúria e revolta. O diálogo inicia
com a narração feita por Mano Brown de encontro com dois jovens e o aceno do
“mano de jaco de cetim, tênis e calça jeans”. O gesto receptivo e convidativo é
rechaçado por Ice-Blue, que esclarece e alerta para a conduta destes afirmando que
“não vale a penas dar idéia para esses tipo aí.” Afinal, o próprio rapper testemunhou
“ontem a noite na beira do asfalto, os manos tragando a morte e soprando a vida para
o alto”. A cena é poética e as metáforas tingem com cores vivas o consumo do crack.
Não é o realismo da cena que choca, mas o apelo realista da imagem de uma pessoa
100
realizando o ato. O resultado do vício se torna visível no corpo do sujeito: “os cara só
o pó pele e osso / No fundo do poço, mais flagrante no bolso”. Contudo, observa em
resposta Mano Brown, ninguém é mais que ninguém e eles são nossos irmãos
também. A forma de diálogo obedece o princípio da dialética, na contraposição de
ideias acerca de uma mesma cena, os rappers apresentam perspectivas distintas sobre
o consumo de drogas para obterem uma conclusão. Inicialmente a postura de Mano
Brown é antagônica ao pensamento de Ice-Blue, no entanto, o confronto de
concepções resulta em uma fala que sintetiza o drama descrito na cena: estes vão
terminar “como o outro mano lá”. Na conversa ficcional – denomina-a assim mesmo
sabendo que cena semelhante é encenada cotidianamente nas periferias brasileiras – a
postura assumida por Ice-Blue revela não apenas a crítica ao consumo de drogas,
como, igualmente, o desprezo pelos consumidores. Postura formada a partir da
própria vivência, do conhecimento prévio de que o caminho das drogas só apresenta
uma direção. Direção destrutiva, que aniquila o corpo e a moral, tal qual é narrada a
condição de um jovem que, de acordo com o pensamento do rapper, era um “preto
tipo A”. A degradação de um par, que outrora era um exemplo de virtude, se dá a
partir de sua entrada em um circuito social estrangeiro, representado pelos
“branquinhos do shopping”. Duplo antagonismo, além de pertencer a um grupo social
distinto, o negro, que na composição é classificado como um “Preto Tipo A”, busca
se inserir em um território branco. A entrada neste novo espaço faz com que a
conduta do personagem da composição, explicitada como exemplar, seja esfacelada.
Nesses termos, o exemplo de negro da periferia, que ninguém entrava numa e andava
de calça Calvin Klein e tênis Puma, mas que ainda preservava um jeito humilde de
ser, é destruído pelo “outro pique”, um ritmo pertencente aos brancos burgueses, com
suas festas regadas a álcool e sexo sem limite. A destruição moral do negro é
percebida pelo corpo, um corpo viciado, doente e desleixado em contraste com sua
feição ereta de outrora. Um corpo que não oferece mais perigo, como a própria
composição evidencia. Corpo dócil, manipulado pelo álcool e pelas drogas, que
circula errante mendigando trocados. Ele agora é viciado, doente e fudido. Ou, como
sentencia o trecho: inofensivo.
101
Formar um corpo que seja capaz de romper com as amarras de uma complexa
trama de desigualdade, creio que seja esse um dos objetivos do grupo Racionais
MC’s. Uma leitura atenta do álbum Sobrevivendo no inferno coloca em relevo esse
intento. Na primeira faixa, literalmente abrindo o álbum, surge como um manifesto a
regravação de “Jorge de Capadócia”, música de Jorge Ben Jor, inspirada na oração de
São Jorge Guerreiro. Além de estabelecer um diálogo com a cultura popular,
silenciado os detratores que acusam o Hip-Hop e o RAP de expressão artística e
cultural americanizada e sem relação direta com a cultura nacional, a música incide
na preocupação em manter o corpo negro e marginal fortalecido, apresentando um
discurso de auto-afirmação e autodeterminação.
Jorge sentou praça na cavalaria E eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam E nem mesmo um pensamento eles possam ter para me fazerem mal Armas de fogo Meu corpo não alcançarão Facas e espadas se quebrem Sem o meu corpo tocar Cordas e correntes arrebentem Sem o meu corpo amarrar Pois eu estou vestidos com as roupas e as armas de Jorge Jorge é de Capadócia Salve Jorge Salve Jorge Jorge é de Capadócia Salve Jorge Salve Jorge (Racionais MC’s, Jorge de Capadócia)
A oração/canção apresentada pelo grupo se baseia na construção de um corpo
forte frente aos inimigos. O fortalecimento ocorre no próprio combate, não se trata de
propor uma onipotência, mas, sim, uma defesa. Reconhecendo a necessidade de
confronto, é proposto um corpo que seja capaz de escapar das armadilhas da periferia.
Resguardados por São Jorge, o Santo Guerreiro, como popularmente o ícone religioso
católico é descrito, estes corpos periféricos poderão seguir seguros pelo território
marginal. Estão agora protegidos, não serão vitimas do fascínio das drogas e das
102
ações da polícia. A proposta do grupo é clara, afinal como o próprio título do álbum
evidencia, estes desejam sobreviver no inferno. O disco como um todo pode ser lido
como uma espécie de manual para a construção de uma estratégia de sobrevivência
em um território marginalizado de um país desigual. Afinal, como denúncia a
abertura do RAP “Versículo 4, capítulo 3”:
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é primo preto, mais um sobrevivente...(Racionais MC’s, Capítulo 4, Versículo3)
Lido sem fundo musical, tendo apenas como interferência a introdução de
uma mesma nota após a apresentação de cada estatística, criando assim uma espécie
de sentencia do dado denunciado, o trecho revela o quanto desigual é o tratamento
ofertado pelo Estado para os jovens negros. Ser sobrevivente neste universo é o
intento, para isto é necessário estar vestido com as roupas e as armas de Jorge. Para
que os inimigos, leia-se a polícia, as vezes a única representante do Estado nas
favelas e periferias do Brasil, tenham mãos mais não os alcance.
A presença de símbolos religiosos não se restringe apenas à regravação de
“Jorge de Capadócia”, estes se fazem presente também no encarte do álbum e
disseminado em diferentes músicas. Se nos discos anteriores o grupo realizava apenas
o apontamento da presença da religião na cultura das favelas e periferias – como
podemos ver neste trecho de “Homem na estrada”, música do disco Raio-X do Brasil,
de 1993: “Um lugar onde só tinham como atração/ o bar e o candomblé pra se tomar
a benção/ Esse é o palco da história que por mim será contada./ Um homem na
estrada.” (Racionais MC’s, Homem na estrada) – a partir do disco “Sobrevivendo no
Inferno” é criado um discurso ecumênico que mescla com desenvoltura diferentes
elementos da religião católica, protestante e afro-brasileira.
A utilização de trechos do Salmo 23 no encarte do álbum produz um visível
diálogo com o título “Sobrevivendo no inferno”. Além disso, a presença do uso de
caracteres góticos, utilizados na grafia do nome do grupo e do álbum, somada à cruz
103
cristã no centro da imagem, não deixa dúvidas, estamos travando contato com um
discurso amparado e formado a partir de referências religiosas. “Refrigere minha
alma e guia-me pelo caminho da justiça – Salmo 23, Cap.3”, o texto bíblico surge
como uma espécie de epigrafe. O encarte, enquanto discurso primeiro do álbum,
apresenta de forma sintética os simbolismos que estarão presentes nas letras do grupo.
Fechando o álbum, na quarta capa do encarte, o quarto capítulo do mesmo salmo
conclui o pensamento e o simbolismo: “...e mesmo que eu ande no vale da sombra e
da morte, não temerei mal algum porque tu estás comigo – Salmo 23, Capítulo 4”.
Tal qual o movimento proposto pela canção de Jorge Bem, aqui o Salmo Bíblico é
utilizado como veículo que favorece a construção de um amparo frente às ameaças as
quais os sujeitos negros e periféricos são vitimas potenciais. As letras das músicas
que compõe o álbum também trazem diferentes referências ao texto bíblico, em
especial o trecho inicial da música Versículo 4, Capítulo 3 – esta, conforme
explicitado anteriormente, utiliza-se das divisões da Bíblia Cristã para formar seu
título:
Minha palavra alivia sua dor/ Ilumina minha alma / Louvado seja o meu Senhor / que não deixa o mano aqui desandar / e nem sentar o dedo em nenhum pilantra. / Mas que nenhum filho da puta ignore a minha lei. / Racionais. Capítulo 4, versículo 3.( Racionais MC’s, Capítulo 4, versículo 3)
O discurso, agora emoldurado pela presença do tom assertivo de uma fala que
se quer próxima à produzida pelo texto religioso, apazigua a dor do outro e incide na
construção de uma orientação para a eficaz sobrevivência na periferia. Posto que,
conforme o grupo afirma na mesma faixa: “Irmão, o demônio fode tudo ao ser redor /
pelo rádio, jornal, revista e outdoor / te oferece dinheiro / conversa com calma/
contamina seu caráter / rouba tua alma / depois te joga na merda sozinho / e
transforma um Preto Tipo A num neguinho.” ( Racionais MC’s, Sobrevivendo no
inferno). A fórmula é recorrente e domina parte considerável da composição, utiliza-
se a linguagem do RAP como veículo de denúncia de um cotidiano marcado pela
miséria e desigualdade que produz uma série de armadilhas para os sujeitos residentes
nestes territórios.
Em “Vida loka parte II”, música do álbum duplo Nada como um dia após
outro dia, a religiosidade é utilizada como recurso para salvaguardar o próprio
104
rapper: “Ore por nós, Pastor / lembra da gente / no culto dessa noite / Firmão, segue
quente / Admiro os crentes / Dá licença aí, mô função, mô tabela, desculpa aí”. O
pedido de oração é reforçado pela admiração que o rapper possui pelos crentes, termo
popular para designar os membros das diferentes igrejas neo-pentecostais, ressaltando
a importância desses na periferia. No entanto, para realizar a homenagem aos
“crentes” é necessário pedir um novo olhar sobre estes, “dá licença aí”, colocando em
destaque a função do discurso religioso na vida cotidiana da periferia. Além disso,
também é proposta uma semelhança entre o sujeito membro da filia criada pelo Hip-
Hop e o religioso neo-pentecostal ao afirmar que os crentes realizam “mô tabela”. A
gíria utilizada, em uma clara alusão ao futebol, apresenta a imagem de uma parceria,
um movimento em conjunto. Não é improvável a parceria, ambos, o rapper e o
crente, produzem discursos que, no mínimo, e cada qual ao seu modo, visam orientar
os jovens da periferia a partir de uma fala pedagógica. A pedagogia empregada pelo
grupo aponta para a operacionalização de uma mudança do sujeito, apontando
caminhos a serem percorridos para salvaguardar o destino destes. “Entre no trem da
malandragem, meu rap é o trilho”(Racionais MC’s, Fórmula mágica da paz). Dessa
forma, ao recorrerem às imagens religiosas, as noções de paz e justiça passam a ser
vinculadas a um princípio superior.
No álbum Nada como um dia após o outro dia – composto pelos CDs, “Chora
agora” e “Ri depois” – o desejo de mudança ganha uma estrutura cíclica. O
movimento operado pelo grupo, incidindo na apresentação de uma leitura do
cotidiano da periferia a partir de uma lógica circular – expressa no título do álbum e
no título dos dois CDs – revela o intento em apresentar uma perspectiva sobre a vida
dos sujeitos residentes em favelas e bairros periféricos fundada em um discurso de
auto-afirmação. A vinheta de abertura do “CD 1 – Chora agora” traz em seu início
uma seqüência de elementos amplamente utilizados pelos rappers brasileiros e norte-
americanos – o som de tiros e sirenes – formando uma cena que representa um
episódio recorrente nestes espaços subalternizados: o som de um carro que se
aproxima, na sequência temos o som de disparos, após um breve silêncio o ruído do
carro é retomando até se tornar inaudível, indicando que o mesmo se distancia em alta
velocidade e que os autores dos disparos fugiram; após isto, domina o áudio da
105
vinheta o som característico de um despertador e o cantar de um galo, aos poucos o
ruído do despertador diminui e surge em seguida a voz de Mano Brown:
Vamos acordar, vamos acordar, porque o sol não espera. Demorou, vamos acordar. O tempo não cansa. Ontem a noite você pediu, você pediu.... uma oportunidade, mais uma chance. Como Deus é bom né não nego? Olha aí, mais um dia todo seu. Que céu azul louco hein? Vamos acordar, vamos acordar, agora vem com a sua cara, sou mais você nessa guerra. A preguiça é inimiga da vitória, o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar. Não vou te enganar, o bagulho ta doido e eu não confio em ninguém, nem em você, os inimigos vêm de graça, é a selva de pedra, eles matam os humildes demais. Você é do tamanho do seu sonho, faz o certo, faz a sua, vamo acordar, vamo acordar, cabeça erguida, olhar sincero, ta com medo de quê? Nunca foi fácil, junta os seus pedaços e desce pra arena, mas lembre-se: aconteça o que acontecer nada como um dia após outro dia. (Racionais Mc’, Sou mais você)
O ato de despertar que é invocado na vinheta indica o surgimento de um novo
dia, um novo ciclo se abre. A fala do músico incide na convocação para uma nova
jornada, insistindo na criação de uma nova perspectiva para o percurso que se abre.
“Cabeça erguida”, “sou mais você nessa guerra”, “você é do tamanho do seu sonho”,
“olha aí, mais um dia todo seu”, o tom empregado é claramente amparado em um
discurso de auto-afirmação do sujeito e é dirigido a um interlocutor presumido. O
emprego de termos no singular – você – coloca em evidência o desejo de encaminhar
o discurso diretamente ao ouvinte. A fala do rapper não oferece nenhum recurso
ritímico, não é estruturada a partir de rimas. É dito o necessário para fortalecer o
sujeito em sua caminhada, sem mediações e sem recursos estéticos. A hora é agora, é
necessário acordar, vamos acordar.
Mas, acordar para o quê? Douglas Kellner, em A cultura da mídia, ao
estruturar sua leitura do discurso político e racial presente nas produções
cinematográficas de Spike Lee e veiculadas nas letras do RAP norte-americano,
apresenta a seguinte leitura:
Estão sempre perguntando [os rappers americanos]: ‘Que horas são?’, e respondendo: ‘Hora de acordar!’ Spike Lee (...) usava constantemente a expressão “Acordem”, quase um refrão emblemático de seus filmes. (...) Hora violenta, hora de muitas vítimas, sobretudo de quem é homem, jovem e negro.
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Também é hora de fazer algo, hora de se instruir sobre o que está acontecendo, hora de pensar e atuar. (Kellner, 2001, p. 236)
Acrescento à leitura de Douglas Kellner, sobretudo amparado na análise dos
Racionais MC’s, que é hora de mudar, como evidencia a letra de “Vida Loka Parte
II” - o RAP possuí três partes, a saber: “Vida Loka (intro)” , “Vida Loka parte I”,
apresentadas de forma sequencial no disco I, e “Vida Loka parte II”, no Disco II. Ao
acompanharmos as três faixas que levam este título travamos contato com a
construção de uma espécie de conceito que sintetiza a vulnerabilidade sofrida pelos
jovens residentes em favelas, colocando em revelo as angustias, desejos e temores
destes. Especificamente em “Vida Loka parte II”, fechando a estrutura narrativa
apresentada anteriormente e formando com mais potencialidade o conceito, temos a
utilização do personagem bíblico Dimas, o bom bandido, como o pioneiro na
realização de movimento de mudança que se espera ser realizado por diferentes
jovens da periferia. A história bíblica é narrada pelos Racionais MC’s da seguinte
forma:
Enquanto Zé Povinho, Apedrejava a Cruz / Um canalha fardado, cuspiu em Jesus, Hó... Aos 45 do segundo arrependido, Salvo e perdoado, É DIMAS o bandido, É loko o bagulho, Arrepia na hora, Ó DIMAS primeiro VIDA LOKA da história. (Racionais MC’s, Vida loka parte II)
Retirada da tradição católica, posto que a denominação do bandido bíblico de
Dimas é uma construção do catolicismo, a história é adaptada à realidade das favelas
de São Paulo. O trecho é impregnado por gírias e de uma linguagem próxima à
oralidade para sintetizar a cena descrita pelos evangelhos. Na leitura do grupo, a
multidão insuflada que pedia a punição de Cristo em favor da libertação de Barrabás
é nomeada de Zé Povinho e um soldado romano é denominado de canalha fardado.
Neste processo de adaptação, a figura de Dimas passa a ser utilizada como precursor
de uma mudança desejada. Ao designarem o personagem como “primeiro vida loka
da história”, o grupo apresenta um caminho a ser trilhado. A mudança, mesmo que
realizada “aos 45 do segundo tempo”, indica um percurso a ser percorrido. Dimas
passa a ser apresentado como personagem exemplar. O bandido bom, que fora salvo e
perdoado, foi o primeiro a abandonar as estradas do crime e das drogas, vocês serão
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os próximos – diz o grupo aos seus ouvintes. Ao menos é isso que se espera, seguindo
o raciocínio do grupo. Ser o vida loka, para utilizar o termo, é frequentar este espaço
fronteiriço entre a ordem e a desordem e vivenciar as situações de vulnerabilidade
social. O grupo conhece a periferia e sabe de suas armadilhas, ao exaltarem o
percurso trilhado pelo personagem Dimas e formarem o conceito Vida loka estão
argumentando em favor de um ato de resistência frente aos desafios que a própria
periferia apresenta.
É nesta clave, almejando construir uma reflexão por parte de seus ouvintes
sobre os desafios e armadilhas que a vida nas favelas espalhadas pelas cidades do
Brasil apresenta, que o grupo lança mão de outro recurso muito utilizado nas
composições do grupo, e também presente em diferentes nas produções de outros
grupos de RAP: a narração de estórias exemplares. Narradas como histórias de
proveito e exemplo, as trajetórias de sujeitos da periferia, que em princípio poderiam
ser compreendidas como casos pontuais, são transformadas em uma complexa trama
coletiva, facilitando a pronta identificação do ouvinte com o personagem. No entanto,
é necessário esclarecer que tais trajetórias são pontuadas por um rígido maniqueísmo
que privilegia os casos de insucesso dos personagens ao ingressarem nas grossas
fileiras do comércio varejista de drogas, do assalto e do furto. Nestas músicas são
encenadas a falência dos personagens a partir da opção pelo crime. Em “Mano na
porta do bar”, música do disco Raio-X do Brasil, é apresentado o relato sobre um
jovem da periferia:
Da área uma das pessoas mais consideradas / Ele não deixa brecha, não fode ninguém / adianta vários lados sem olhar a quem / tem poucos bens, mas que nada / um Fusca 73 e uma mina apaixonada / Ele é feliz e tem o que sempre quis / uma vida humilde, porém sossegada. (Racionais Mc’s, Mano na porta do bar).
Acompanhando a narração da trajetória do “mano” percebemos uma mudança
de comportamento no personagem. Se antes ele tinha o que sempre quis,
“ultimamente andei ouvindo ele reclamar / que a sua falta de dinheiro era problema /
que a sua vida pacata já não vale a pena” (Racionais MC’s, Mano na porta do bar).
Sugado pela engrenagem do consumismo, busca uma saída rápida para silenciar o
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apelo que os reclames televisivos provocavam, resultando em seu ingresso no
comércio varejista de drogas:
Ele mudou demais de uns tempos para cá / Cercado de uma pá de tipo estranho / que prometem para ele o mundo dos sonhos / ele está diferente não é mais como antes / agora anda armado a todo instante / não precisa mais dos aliados / negociantes influentes estão ao seu lado(Racionais MC’s, Mano na porta do bar).
O desfecho da estória possui um sentido pedagógico, apresentando a opção
pelo crime como um caminho que aponta para uma única saída: a morte. A descrição
da cena final é rica em imagens, revelando a precisão poética do grupo:
Você tá vendo o movimento na porta do bar / Tem muita gente indo pra lá, o que será? / Daqui apenas posso ver uma fita amarela / Luzes vermelhas e azuis piscando em volta dela / Informações desencontradas, gente indo e vindo / não tô entendendo nada, vários rostos sorrindo / ouço um moleque dizer, mais um cuzão da lista / dois fulanos numa moto, única pista / eu vejo manchas no chão, eu vejo um homem ali / é natural para mim, infelizmente / a lei da selva é traiçoeira, surpresa / hoje você é o predador, amanhã é a presa / já posso imaginar, vou confirmar / me aproximei da multidão, obtive a resposta / você viu aquele mano na porta do bar / ontem a casa caiu com uma rajada nas costas...(Racionais MC’s, Mano na porta do bar).
São muitos os exemplos que podem ser recolhidos, seja através de uma
narração em primeira pessoa, como “To ouvindo alguém me chamar”, ou em terceira
pessoa, como “Mano na porta do bar”, o desfecho da narração é o mesmo: a morte.
Não se trata de um simples recurso ficcional, mas, sim, de uma observação atenta da
realidade. Trata-se de uma opção ética, de um compromisso em falar uma verdade. O
intuito desta encenação realista que julga de forma indiscriminada os manos da
periferia é favorecer a perpetuação da passagem bíblica do novo testamento em que
Dimas, o bandido bom, alcança sua salvação. As estórias encenadas são
transformadas em uma espécie de espelho no qual o ouvinte irá prontamente mirar-se,
conhecendo previamente qual será seu desfecho ao ingressar no crime. “Dar
conselhos”, destaca Ecio Salles, “parece ser uma prerrogativa da qual [os rappers] se
investiram, e que pretendem manter.”(Salles, op. cit., p.66)
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Douglas Kellner, no trabalho já citado, ao analisar o álbum do rapper norte-
americanos Ice-Cube, Death Certificate, observa a presença deste mesmo discurso
pedagógico:
O álbum é muito moralista e politicamente radical; diz aos negros que “larguem a bebida” e está sempre atacando os negros vendidos e os enquadrados, como o Tio Tomás. Um rap, “Look Who’s Burnning”, adverte sobre as doenças veneras, e no álbum todo aconselha-se a fazer sexo seguro. Embora antes Ice Cube se recusasse a censurar o uso da droga, agora, talvez seguindo a linha da Nation of Islam, ataca o uso da droga na comunidade e avisa aos negros de que o que está em jogo é a sobrevivência deles. (Kellner, op. cit., p. 243)
Na leitura de Kellner o apelo explícito à construção de uma conscientização
sobre a situação dos negros e marginalizados é compreendido como um discurso
moralista. O empenho em formar uma nova reflexão sobre as condições de
subalternidade de uma significativa parcela da população, utilizando-se para isso da
virulência das batidas eletrônicas e falas preenchidas por xingamentos, na perspectiva
que pretendo ofertar, deve ser lido como um ato político. Conscientes da necessidade
de criação de ferramentas que possibilitem a obliteração do funcionamento da
perversa máquina de destruição que é abastecida pelos corpos dóceis dos negros
viciados e arrebatados pelo apelo consumista da sociedade da informação, os rappers,
entre eles os Racionais MC’s, utilizam suas músicas e letras com este intento. A
análise de Ecio Salles destaca este aspecto da atuação política dos artistas
pertencentes ao universo Hip-hop:
(...) o rapper demonstra uma grande preocupação com os destinos de sua comunidade e de seu povo. Ressalta-se que o tempo imperativo dos verbos reforça a idéia de endereçamento a um ouvinte específico, localizável – aquele a quem se destina o conselho, e que precisa se transformar para que todo o resto possa ser transformado. (Salles, op. cit., p. 67)
Ou seja, contra a estrutura cíclica e perversa de uma vivência pontuada pela
violência cotidiana em suas diferentes dimensões é estruturada uma apreciação sobre
esta realidade, subordinando o discurso a uma função política primeira que norteará
os versos rítmicos proferidos com voracidade pelos artistas.
110
4.1 A presença do RAP na literatura marginal
Não é mais motivo de alarme nos depararmos com estudos produzidos por
pesquisadores da área de estudos literários que elegem a música como objeto de
análise. Tanto nos Departamentos de Letras das Universidades brasileiras quanto nas
estrangeiras, é perceptível o empenho de diferentes críticos literários em formarem
novas compreensões sobre a textualidade poética presente nas canções. Amparados
em pressupostos teóricos formados à luz dos Estudos Culturais, disciplina crítica que
auxilia a produção de uma reflexão que rompe com possíveis estatutos hierárquicos
estanques, tais estudiosos buscam um tratamento interdisciplinar destes produtos
discursivos culturais. No caso específico da Música Popular Brasileira, a própria
convergência entre tais práticas discursivas e poéticas torna o terreno a ser
investigado menos distanciado; como destaca José Miguel Wisnik, ao salientar os
diferentes poetas que igualmente atuaram no campo musical:
A partir do momento em que Vinícius de Moraes, poeta lírico reconhecido desde a década de 30, migrou do livro para a canção, no final dos anos 1950 e início de 1960, a fronteira entre poesia escrita e poesia cantada foi devassada por gerações de compositores e letristas leitores dos grandes poetas modernistas como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Manuel Bandeira, Mário de Andrade ou Cecília Meireles. (Wisnik, 2001, p. 183-4)
Em texto de apresentação de uma série de ensaios que estruturam análises
sobre a relação entre música e literatura, Júlio Diniz organiza com propriedade o
percurso traçado pelos primeiros críticos literários que elegeram a música como
objeto de estudo:
Do hoje clássico Balanço da bossa e outras bossas de Augusto de Campos, lançado em 1968, passando pela contribuição de críticos e pesquisadores da área de literatura e linguagem, como Heloísa Buarque de Hollanda, Affonso Romano de Sant’Anna, Silviano
111
Santiago, Luiz Tatit, José Miguel Wisnik, Fred Góes, Cláudia Neiva Matos, entre outros, a crítica acadêmica ganhou força com a entrada em cena de grupos de pesquisa comprometidos com um projeto interdisciplinar de investigação sobre novas formas de pensar o diálogo entre música popular e literatura. (Diniz,2001, p. 215)
O elenco formado por Júlio Diniz estabelece uma espécie de genealogia dos
estudos de literatura e música, apontando para o percurso que este tipo de abordagem
percorreu na crítica literária brasileira. A análise que pretendo oferecer para a
presença de uma manifestação musical específica – o RAP – em um movimento
literário igualmente específico – a Literatura Marginal – é, em diferentes aspectos,
devedora destes estudos pioneiros, sobretudo das reflexões ancoradas nos Estudos
Culturais. Dessa forma, em consonância com as reflexões produzidas por Heloísa
Buarque de Hollanda, Fred Góes e Cláudia Neiva Matos, para citar alguns exemplos,
também buscarei observar a presença de uma poética cantada em uma produção
literária. No entanto, o exercício que aqui será realizado aponta para um movimento
oposto, uma vez que meu empenho crítico será direcionado para a constatação de
elementos da poética cantada em um aparato escrito. Ou seja, pretendo observar a
presença do RAP nas manifestações literárias. O desenho metodológico que proponho
é resultante da simples constatação de que o RAP exerce grande influência sobre as
produções literárias periféricas e, sobretudo, nos autores pertencentes ao movimento.
Além disso, se historicizarmos ambos os processos a partir de uma leitura temporal
linear, perceberemos que o RAP – assim como os outros elementos constituintes da
cultura Hip-Hop – é uma manifestação cultural anterior ao surgimento dos primeiros
escritos literários marginais.
Se formarmos uma leitura atenta dos diversos produtos discursivos publicados
sob o título de Literatura Marginal, ou Literatura Periférica, perceberemos um
expressivo número de autores9 que participam diretamente da cultura Hip-Hop, seja
9 No primeiro suplemento Literatura Marginal – A cultura da periferia, publicado pela Revista Caros Amigos, em agosto de 2001, dos 10 autores reunidos na publicação, ao menos 6 possuem uma relação direta com o movimento Hip-Hop, sendo eles Alessandro Buzo, autor residente no Itaim Paulista que promove eventos e festas com jovens rappers, como o Favela toma conta e o Suburbano no centro; ATrês, MC do grupo Outraversão; Sérgio Vaz, poeta fundador da Cooperifa e criador do Sarau Rap; Jocenir, autor do livro Diário de um detento, publicação que leva o mesmo nome do RAP musicado
112
como rappers ou ativistas do movimento, oferecendo, assim, ao movimento literário
uma feição própria. O texto literário, em consonância ao tratamento político oferecido
ao RAP, se torna para estes autores formados pela cultura Hip-Hop um instrumento
pedagógico de formação de uma consciência própria do leitor. Seja através de uma
estrutura maniqueísta rígida ou com um discurso claramente ancorado na poética
formadora do RAP, os autores marginais utilizam a literatura como um veículo de
intervenção social através do texto. Seja na poesia ou na prosa, o texto literário é o
invólucro de um discurso político determinado em construir uma reflexão que
fornecerá os elementos necessários ao leitor para a observação crítica de uma
realidade específica.
Além da utilização do aparato crítico formado pelo RAP em textos literários, é
igualmente possível identificar na postura dos autores marginais a influência do
discurso de contestação do movimento Hip-Hop. Estes, em semelhança aos rappers,
apresentam-se como detentores de um saber sobre a realidade da periferia urbana.
Alçados à missão de portar as vozes de uma massa silenciosa que habita espaços
marginalizados, estes autores são agora realizadores de uma complexa trama que
envolve produção literária, ativismo social e formas distintas de associativismo.
No caso específico da produção literária, é possível destacarmos diferentes
autores que utilizam a linguagem escrita para a formação de um texto literário que se
aproxima da estrutura rítmica de uma letra de RAP. Exemplo deste uso da linguagem
literária pode ser visto no texto de Gato Preto, publicado no suplemento Literatura
Marginal e posteriormente reunido na coletânea organizada por Ferréz. Em “A Bahia
que Gil e Caetano não cantaram”, Gato Preto estrutura um texto poético pautado por
um antagonismo de classe que almeja denunciar as condições de vulnerabilidade e
miséria vivenciada por um extensa parcela da população da Bahia. O tom agonístico
se faz presente não apenas em uma operação centrada na oposição de classes, mas,
igualmente, na relação que o autor mantém com outros elementos da cultura da
região.
Iludidos,vê só quem chegou
por Racionais MC’s, do qual Jocenir é co-autor em parceria com Mano Brown; Cascão, MC do grupo Trilha Sonora do Gueto e, por fim, Ferréz, que também já gravou um cd de RAP,, o álbum “Determinação”.
113
Pode me chamar de Gato Preto, o invasor. Vou mostrar a Bahia que Gil e Caetano nunca cantaram Bahia regada a sangue real Que jorra com intensidade com intensidade em época de Carnaval Falo do pescador que saí às três da manha Pedindo força a Iemanjá e Iansã Sai cortando as águas do mar da vida Querendo pescar uma solução, uma saída A Bahia da guerreira baiana que chora Que travou uma luta e perdeu na batalha seu filho pra droga Bahia do ser que vive de migalhas, esmolas E água sem cloro no seu rosto jorra.(Preto, 2005, p. 51)
Além da estrutura rítmica do texto poético, podemos também destacar como
elemento que evidencia a presença da cultura Hip-Hop no fazer literário do autor a
sua opção por lançar um olhar específico sobre as situações de marginalidade e
vulnerabilidade vivenciadas por homens e mulheres. Tal qual uma letra de RAP, o
texto literário de Gato Preto busca denunciar a desigualdade social, colocando em
relevo episódios protagonizados pelo sujeitos residentes na periferia urbana. A opção
do autor, como evidencia o título, é narrar os aspectos e histórias que não fazem parte
de uma imagem corriqueira da Bahia. Acompanhando os versos não nos deparamos
com a descrição da alegria tão festejada do carnaval baiano, o olhar ofertado pelo
autor é outro. É neste novo olhar, descortinando uma visão já estabelecida, que será
cantada uma Bahia que, na percepção de Gato Preto, não se faz presente na leitura de
Gilberto Gil e Caetano Veloso sobre a Bahia. O texto emerge como uma resposta,
uma fala que rasura uma série de discursos que incidem na oferta de uma imagem
idílica da Bahia.
Bahia da queda dos morros, barraca dos Alagados Bahia do descaso, descamisados, desabrigados Falo da venda do voto, do voto comprado ACM domina com chicote na mão e dinheiro do lado A noite foi fria, só que agora o sol está quente O que não esquenta é o coração dessa gente Quem não se revolta contra a ordem predatória ACM domina com chumbo, moeda e palmatória (...) Não falo da beleza, da Barra, Pituba, Pelô De praias lindas, de Porto Seguro, Ilhéus, Salvador
114
Da praça Castro Alves, Mercado Modelo, Elevador Da história de Mãe Menininha, Mãe Dulce e Dona Cano Não falo da moça bela nas ondas do mar que Caymmi narrou Relato o sofrimento da escravidão, do negro nagô Da política perversa que o meu povo escravizou Lembro da lavadeira, do lavrador Do Velho Chico e do pescador Falo da prostituição infantil que aumentou Da Bahia que o cartão-postal nunca mostrou A Bahia do mercado informal, do camelô Essa é a Bahia que Bethânia nunca cantou
Vem conhecer a Bahia, sou um guia diferente Mostro a verdadeira cara da nossa gente Vai ver que não é só Carnaval, praia e acarajé Vai ver o que é não ter alimento e manter-se de pé Bahia de Todos os Santos? Besteira Olho meu povo se alimentando de restos de feira (Idem, ibidem)
O próprio autor afirma que não fala da beleza, não cita os personagens e
lugares que habitam um consciente coletivo que foi formado por diferentes discursos
culturais. De Caetano Veloso à Maria Bethânia, passando por Dorival Caymmi e
Gilberto Gil, todos auxiliaram na construção dessa Bahia. Agora, parece clamar Gato
Preto, é necessário um novo olhar, mostrar uma outra Bahia. Sintomático desse
exercício de representação que elege uma nova percepção sobre o mesmo espaço são
os versos que antecedem o final do texto:
Turista, pega a câmera, vamos passar no farol Mas não no Farol da Barra, do trânsito Preparem-se, a visão é triste, causa espanto Olhos famintos, pés descalços, pretos e brancos Numa frase infeliz ouvi dizer que a Bahia é de todos os santos.(Idem, p. 56)
Tal postura crítica, fundada na denúncia social e na descrição da miséria
vivenciada nas favelas e bairros populares, é uma marca incontestável do RAP e do
discurso de contestação da cultura Hip-Hop. Gato Preto lança mão destas
características para estruturar um texto poético que objetiva apontar a desigualdade e
o racismo na Bahia. O objetivo do autor, isto é claro, é não apenas denunciar estes
aspectos, mas, igualmente, criticar a imagem de idílio que se faz presente em
115
diferentes discursos. Surge no texto de Gato Preto uma outra versão, acionando
personagens, situações e espaços que outrora foram esquecidos ou silenciados.
O movimento operado aponta para a criação de uma cosmogonia própria,
elegendo não apenas uma outra perspectiva de narrar, mas, também uma série de
signos que surgem como oposição. Em “Faveláfrica”, uma poesia longa publicada
inicialmente no suplemento Literatura Marginal Ato - III e depois reunida na
coletânea com o mesmo título, Gato Preto incide neste exercício de confronto entre
elementos antagônicos ao elencar os “antídotos” para diferentes “venenos”. O jogo
formado pelo autor tem uma estrutura binária que nomeia os sujeitos negros enquanto
antídotos e surge como encerramento de um texto que apresenta os aspectos
negativos da escravidão brasileira. Resulta deste olhar maniqueísta a oferta aos
bairros periféricos a função de preservar os elementos culturais de uma ancestralidade
negra e as formas de resistência desta população negra residente nestes locais.
Veneno X Antídoto Hitler X Martim Luther King Mussolini X Mahatma Gandhi Pinochet X Malcom X W. Bush X Marcus Garvey (Preto, 2005, p. 62)
Devota-se aos sujeitos históricos que atuaram em defesa de grupos
minoritários, sobretudo aqueles empenhados na causa negra, um sentido de oposição.
Dessa forma, na estrutura lógica oferecida, contra o “veneno” sempre existirá um
“antídoto”. Encerrando a listagem, reforçando o lugar de enunciação do sujeito
autoral e o seu papel político enquanto autor, Gato Preto coloca-se como antídoto a
Antônio Carlos Magalhães. A leitura de Ângela Dias, no artigo “A estratégia da
revolta: literatura marginal e construção da identidade”, acerca do texto de Gato
Preto, reforça minha análise:
O texto acaba em prosa, na medida em que vai ficando cada vez mais tomado pela argumentação da tese que desenvolve, e conclui com uma enumeração em que o autor contrapõe uma série de nomes históricos opostos por um “X”. A lista é bastante heterogênea, pejada de anacronismos, mas explicita o maniqueísmo que o autor pretende sublinhar; tanto que é começada pela dupla “veneno x antídoto” e termina, localmente, com o contraste “Antônio Carlos Magalhães X Altino Gato Preto”. Mais que a obviedade do arranjo, meio desajeitado, importa considerar, da perspectiva em questão, que embora mantenha um
116
tom agressivo, o autor tempera a promessa do revide com a constatação da “Falta de orgulho, auto-estima baixa, preconceito” atuais. (Dias, 2006, p. 16)
As aproximações entre RAP e texto literário, nos caso específico dos autores
da Literatura Marginal, resultam de uma compreensão da estrutura poética das letras
fundamentada na interpretação do próprio significado da sigla RAP: “Rhythm And
Poetry”. É com esta leitura que Sergio Vaz, poeta fundador da Cooperifa, organiza,
em parceria com a Organização Não Governamental Ação Educativa, o projeto
Poesia das Ruas. De acordo com Sergio Vaz, conforme definido em seu blog,
www.colecionadordepedras.blogspot.com:
O Projeto Poesia das Ruas é um sarau dirigido a rimadores e rimadoras do Rap. É um espaço para o exercício da criação poética. Sem música, MCs declamarão suas letras, compartilhando talento literário. O objetivo, nesse sentido, é buscar,através da oralidade, um incentivo para a criação poética. Rap é ritmo e poesia (rythman and poetry)10 ”
No entanto, mesmo sem o suporte musical, veiculada apenas no terreno da
escrita, a poesia destes autores é definida como letras de RAP. Soninha M.A Z.O,
apresenta em Duas gerações sobrevivendo no gueto, publicação que divide a autoria
com Raquel Almeida, diversos textos poéticos que são definidos como RAP:
“Saudade de um tempo bom”, “Um jovem da periferia”, “Direito a defesa” e “Bico
sujo”. Como elemento de união destes textos é possível destacar a estrutura rítmica
dos versos e seu conteúdo político, seja pela denúncia ou pelo tom pedagógico que
almeja conscientizar os leitores. A apresentação do texto enquanto RAP, uma espécie
de advertência ao leitor, pressupõe um novo tipo de tratamento do texto literário no
ato da escrita e, igualmente, no ato de leitura. Na recepção do texto poético o leitor
estrutura uma forma de leitura que irá privilegiar a entonação musical que é própria
do RAP. Dessa forma, será o cantar falado que passará a pautar a leitura. Além da
forma, os textos de Soninha M.A Z.O também apresentam como eixo temático os
elementos preferenciais de diferentes rappers, como podemos observar em “Um
jovem da periferia”:
10 Acessado em 18 de julho de 2009 em http://colecionadordepedras.blogspot.com/2009/03/sarau-rap.html.
117
Noite paulistana, lua prateada no céu Cenário dos amantes, mas não na torre de Babel Aqui embaixo, o cenário é diferente de se vê Não é o Morumbi com suas mansões E seus carros importados A visão aqui é outra, é esgoto a céu aberto Passando por debaixo dos barracos Na burguesia, os playboys pelos homens são guardados E na periferia pelos homens enquadrados No passado errei E achei que pelos meus erros eu paguei Mas não foi bem assim A lei não se esqueceu de mim Me deixe ser livre Na cadeia ninguém vive Quero cuidar da minha família Eu já paguei o que devia Me deixe ser livre Na cadeia ninguém vive Quero cuidar de minha família Dentro da lei eu já paguei o que devia (Soninha MAZO, 2008,p. 26)
A autora, em consonância com outros grupos de RAP, inicia seu texto poético
a partir da descrição de um cenário que revela uma cisão social, representada pelas
mansões do Morumbi e os barracos com esgoto a céu aberto. O tema central do texto
é a apresentação da trajetória de um jovem da periferia e a sua passagem pela cadeia.
Pontuado por um tom pedagógico e pela denúncia, o discurso busca descrever o
cotidiano da cadeia e a reação do personagem ao saber que deverá retornar ao
presídio para o cumprimento do restante da pena:
Lembro bem, minha mãe e a família desesperada E eu atrás das grades não podia fazer nada Mas eu fiz um juramento, vou mudar e melhorar Não fico nunca mais atrás das grades a chorar Hoje tô fortão, tô firmão, mudei minha vida Me casei e sou pai de um lindo garotão Orgulhoso de mim mesmo Eu digo: O pesadelo acabou! Nem desconfiava que ele apenas começou Desde aquela cena passaram-se seis anos E hoje uma carta na minha casa chegou O carimbo do judiciário me informava
118
Que a promotoria apelou Alegando que eu não paguei o que devia a sociedade E por incompetência do sistema Estou prestes a perder minha liberdade (Idem, p. 27)
Se Gato Preto e Soninha MAZO utilizam a escrita como suporte de um
discurso claramente amparado em uma estrutura rítmica musical, no qual o RAP
surge como referência para a construção de uma poética própria, é possível
observarmos também exemplos de textos publicados por autores/rappers que
primeiramente foram musicados e vice-versa. Os textos de Eduardo, rapper do grupo
Facção Central, publicados na coletânea Literatura marginal: talentos da escrita
periférica, foram antes musicados por seu grupo de RAP. Dessa forma, “Aqui ela não
pode voar”, “No fim não existem rosas”, “O que os olhos vêem” e “O homem
estragou tudo”, os quatro textos publicados são letras de RAPs reunidos no álbum
duplo “Direto do campo do extermínio”, do grupo Facção Central, lançado em 2003.
Em “No fim não existem rosas”, Eduardo Dum-Dum constrói um texto poético que
tematiza com fortes cores de denúncia social as condições de pobreza e abandono que
muitos idosos vivenciam. Estruturado a partir de um claro antagonismo de classe, o
texto de Eduardo lança luzes sobre a trajetória de um homem nordestino abandonado
pela família na velhice.
Outro dia um tiozinho, com a lata de cimento, decepcionado com a vida dividia seus lamentos. Envés de tá na cadeira de balanço com charuto, tá com um carrinho de pedreiro cheio de entulho. Foi o chamado pião que o patrão escraviza, sem férias, registro, aposentadoria. Outro tênis que usaram até gastar a sola, igual papel higiênico usado jogaram fora. (Eduardo, 2005, p.26)
Neste caso, é importante comparar versões e suportes, destacando as
particularidades de cada tipo de enunciação. Assim, na versão musicada de “No fim
não existem rosas”, a poética do RAP é entoada sem fúria e com pausas, apresentando
um ritmo não acelerado, contrastando com a maioria das músicas RAP. O eixo
temático da letra, centrada na apresentação de uma velhice pautada pelo abandono,
incide de forma clara na construção musical, na qual a estrutura vocal utilizada pelo
119
rapper e as batidas eletrônicas em um compasso pouco usual devido sua lentidão
refletem uma possível melancolia. O registro musical reforça e amplia o aspecto que
é denunciado na letra do RAP. O versos são cantados/falados com exatidão pelo
rapper, oferecendo maior destaque para a precisão das palavras e, sobretudo, nos
adjetivos utilizados para descrever a situação do personagem.
Movimento oposto é realizado com a poesia “Aqui ela não pode voar”, na
qual a versão musical, devido a inserção de uma série de elementos inspirados no
gospel americano, apaga a força que a poesia possui em sua versão escrita.
No céu que a pólvora encobre as estrelas, ela não pode voar, no chão minado com trincheiras e soldados, ela não pode voar. Sua assas estão manchadas de vermelho, tem hematomas das correntes no cativeiro, no olhar um rio de lágrima, com um navio de desespero. Na sua estrada estilhaço de granada, corpos entre quatro velas, bala perdida da polícia e outra criança morta na favela. No campo de extermínio, ela não vai fazer seu ninho, porque suas pernas estão enterradas em um cemitério clandestino. (Idem, Ibidem)
Todo o texto poético se baseia na apresentação dos elementos que impedem a
presença da paz, representada por uma pomba branca, nos bairros periféricos dos
grandes centros urbanos. A metáfora é subentendida, pois em nenhum momento o
símbolo da paz é nomeado. Mas, mesmo assim, é um clichê. Contudo, mesmo
lançando mão de um símbolo recorrente, o texto mapeia com precisão alguns dos
principais entraves sociais que fomentam as muitas manifestações que a violência
pode assumir nestes bairros. Há nestas descrições uma denúncia que se constrói a
partir da justaposição de termos, adjetivos e signos que aludem a um conflito armado.
O céu encoberto por pólvoras, rio de lágrimas, corpos entre quatro velas, cemitério
clandestino e campo de extermínio, este último também é o título do álbum, são
apenas alguns dos termos utilizados para explicitar por que a paz não se faz presente
neste espaço. No entanto, na versão musicada do texto, lançada inclusive antes de
publicação na coletânea já referida, perde-se a potência dos termos empregados
devido o tratamento musical oferecido. Cantado em capela, sem a utilização de
qualquer instrumento musical, os versos são abrandados e suavizados, acompanhando
o próprio ritmo empregado na vocalização. Recheada de longos exercícios vocais que
aludem o gospel americano, com o emprego descontínuo entre tons graves e agudos,
120
a versão musicada do texto apaga lentamente a potência da denúncia que o texto
oferece; pois não é criada uma base rítmica que reforce o teor da poesia.
No mesmo álbum o tema da paz é retomado, na primeira faixa do Disco 2, a
partir da leitura da poesia “A paz é uma pomba branca”, cujo autor é Ferréz – que
participa da faixa lendo seu texto. A faixa inicia com um fundo musical formado por
um piano, seguida da fala de Eduardo: “Aí, Ferréz, a pergunta é uma só, mano. Por
que a tríade: paz, periferia e guerra?”. Ferréz responde: “As respostas que eu tenho, e
que a maioria tem, geralmente são ilusões. Mas eu vou tentar falar de paz, periferia e
até de guerra.” Eduardo comenta: “Firmão, trura, é com você. O campo de
concentração tá te ouvindo.”. E, a partir deste ponto, domina a faixa a leitura que
Ferréz realiza de seu texto:
A paz é uma pomba branca. Se uma criança pobre soprar, suas asas não se mexem. Se um detento a segurar, sentirá seu peso como se fosse chumbo. Se uma senhora aposentada a acolher em seus braços não sentirá o calor. Se um desempregado olhar bem em seus olhos nela não verá alegria. Se um professor a estudar, aos seus alunos não poderá ensinar. Se um menino ou menina desse grande Brasil periferia a olhar voando, não saberá o que ela significa. A paz é uma pomba branca. Que apesar de tudo ainda continua voando. E todos a vêem, Mas só quem merece realmente a conhece. Paz só a quem merece. E aos que não, Guerra. (Ferréz e Eduardo, “A paz é uma pomba branca”)
Ao contrário dos outros exemplos recolhidos, o texto de Ferréz, mesmo
presente em um álbum de RAP, não é formado a partir dos recursos rítmicos que o
estilo possui. O autor parte de uma descrição em prosa para apresentar uma percepção
própria sobre a paz através do exame metafórico de seu maior símbolo, a pomba
branca. O texto é irregular e não apresenta um eixo lógico. No início da poesia são
enumeradas as diversas impossibilidades de contato direto com a paz e no desfecho
do texto é sentenciado que poucos de fato conhecem a paz. Conhecer a paz é uma
possibilidade restrita a poucos, “paz só a quem merece. E aos que não, Guerra”. Se
aceitarmos a leitura dada pelo autor, em que só “quem merece realmente a conhece”,
121
a paz é algo que as crianças da periferia não são merecedoras. Pois, como o próprio
texto descreve, “Se um menino ou menina desse grande Brasil periferia a olhar
voando, não saberá o que ela significa.”. Excetuando esse possível equívoco, a
inserção desta poesia no álbum reforça a relação que o RAP mantém com a Literatura
Marginal.
Outros exemplos podem ser acionados. O RAP “Brasil com P”, do rapper
Gog, é um deles. Lançado primeiramente no álbum CPI da Favela, de 2000, e depois
publicado no suplemento literário Literatura Marginal da revista Caros Amigos, o
texto de Gog é um lúcido exercício de experimentação literária baseado na aliteração.
Pesquisa publicada prova Preferencialmente preto Pobre prostituta pra polícia prender Pare pense por quê? Prossigo Pelas periferias praticam perversidades Pm's Pelos palanques políticos prometem prometem Pura palhaçada Proveito próprio Praias programas piscinas palmas Pra periferia Pânico pólvora pa pa pa Primeira página Preço pago Pescoço peitos pulmões perfurados Parece pouco Pedro Paulo Profissão pedreiro Passatempo predileto Pandeiro Preso portando pó passou pelos piores pesadelos Presídio porões problemas pessoais Psicológicos perdeu parceiros passado presente Pais parentes principais pertences Pc Político privilegiado preso parecia piada Pagou propina pro plantão policial Passou pelo porta principal Posso parecer psicopata Pivô pra perseguição Prevejo populares portando pistolas Pronunciando palavrões Promotores públicos pedindo prisões Pecado pena prisão perpétua
122
Palavras pronunciadas Pelo poeta irmão..(Gog, 2004, p. 13)
“Brasil com P” é um fecundo exemplo da força poética do RAP. Mesmo
utilizando como suporte a música, formato primeiro em que o texto foi veiculado,
predominava na construção rítmica oferecida as palavras pronunciadas pelo poeta,
para citar o próprio autor. Seja na primeira versão do RAP, lançado em 2001, ou na
regravação, com a participação da cantora Maria Rita, lançada em 2009, a batida
eletrônica característica e as melodias criadas pelos instrumentos musicais ficam
subordinados ao poder vocal do rapper que entoa com precisão e violência os versos.
A potência poética de Gog possibilita a formação de uma esclarecedora representação
do Brasil a partir da aliteração em consonância. Polícia, Pólvora, Periferia., Pobre,
Preto, Prostituta, Propina: os termos se completam e formam uma espécie de mosaico
da sociedade. A estrutura formada pelo rapper também se baseia no exame de
elementos antagônicos, em semelhança a muitas letras de RAP. Em poucos versos e
utilizando apenas substantivos e adjetivos começados pela letra P, Gog mescla uma
contundente denúncia social das diferenças e desigualdades entre periferia e centro.
Outro exemplo deste diálogo entre suportes, eliminando as fronteiras entre
escrita e música, pode ser destacado no texto “Judas”, de Ferréz, lançado primeiro
em sua versão literária no suplemento da Revista Caros Amigos e posteriormente
musicado no álbum “Determinação”, do próprio autor, em 2005. Aqui o movimento
operado é oposto. Antes da veiculação em seu formato musical, o RAP foi publicado
enquanto texto.
A relação que o RAP mantém com a Literatura Marginal pode ser explicada,
em parte, pela própria atuação que Ferréz exerceu na construção do movimento,
sendo um dos principais articulares do movimento de autores oriundos da periferia de
São Paulo e responsável pela publicação de diferentes autores, primeiro em uma
revista literária de grande circulação e depois em livro. A proximidade do autor com
o RAP, e a cultura Hip-Hop, vai além da gravação de um álbum solo de RAP e pode
123
ser percebida na própria apresentação visual de seu primeiro romance, Capão pecado.
Seja pela inserção de diferentes relatos assinados por rappers e ativistas do
movimento Hip-Hop na abertura dos capítulos ou na apresentação de dois cadernos
de fotografias que retratam o bairro que é cenário da narrativa e o autor posando com
o cenho franzido e com um gestual agressivo, fica clara a presença de elementos do
RAP e da cultura Hip-Hop na estrutura do romance. A leitura realizada por Luciana
Mendes Velloso sobre estes aspectos, no estudo Capão Pecado: sem inspiração para
cartão postal, apresenta importantes reflexões sobre este tópico:
Os textos dos outros autores parecem relatos, recados ou o que, para esta pesquisa, preferimos chamar de registro de depoimentos. Assinam a autoria: Gaspar, Mano Brown, Cascão, Outraversão, Negredo e Conceito Moral, que, em sua maioria, são integrantes de grupos de Rap, amigos de Ferréz, ativistas do movimento 1 DaSuL, todos da periferia. Na primeira leitura, indagamos sobre o que seriam esses textos que atravessam as partes constituintes do romance Capão Pecado em seus intervalos ou no entre capítulos. Já as 37 fotografias, distribuídas pelo livro em dois grandes grupos, apresentam ao leitor a região de Capão Redondo, seu espaço geográfico real, onde o enredo é circunscrito, suas mazelas, seus moradores e placas indicativas, além do escritor Ferréz e integrantes do movimento 1DaSul. As fotografias parecem não só relatar a região de Capão Redondo, como também indagar sobre sua realidade, sua condição e o anonimato próprio das regiões menos favorecidas. Ao mesmo tempo, questionam sobre seu lugar no objeto literário Capão Pecado.(Velloso, 2007, p. 14)
A postura do autor se confunde com a de um rapper, as mãos que mimetizam
uma arma, o rosto parcialmente coberto pelo capuz de um agasalho esportivo, os
movimentos largos que buscam preencher espaços e a expressão típica de um
124
sujeito/personagem ligado aos espaços marginalizados: “Me tomaram tudo, menos a
rua”. A imagem, uma das muitas que preenchem a primeira edição do romance – na
nova edição, lançada pela Editora Objetiva, as fotografias foram suprimidas – não
deixa dúvidas quanto a relação que o autor mantém com a cultura Hip-Hop. No
entanto, é possível identificar não apenas os elementos exteriores na construção deste
romance, mas, igualmente, a formação de um texto que se quer coletivo. Os
depoimentos de diferentes rappers, quase sempre abrindo os capítulos, podem ser
tomados como uma espécie de vinheta de abertura alocada em um intervalo. Mesmo
que o suporte seja a escrita e o romance seja o gênero eleito para dar corpo ao relato
que construiu, Ferréz estabelece um diálogo ao longo do livro com rappers e ativistas
do movimento Hip-Hop, com destaque para a participação de Mano Brown, líder do
grupo Racionais MC’s.
Soma-se a isto a utilização do campo literário como espaço de contestação,
denúncia e formação de uma pedagogia própria, tal qual o RAP realiza com a música.
Dessa forma, é possível afirmar que as aproximações entre estes dois movimentos
não se limita apenas na utilização do texto literário para a veiculação de um texto
formado a partir dos elementos característico da poesia RAP, mas, sim, o próprio
texto surge como veículo de divulgação de uma doutrina específica.
Notícias jugulares, de Dugueto Shabazz, pseudônimo de Sharif Abdull Al
Hakim, nome adotado por Ridson após sua conversão ao islamismo, em 2005, pode
ser tomado como uma dos melhores exemplos deste tipo de escrita que utiliza como
válvula motriz a potência poética do RAP. O autor participou do terceiro volume do
suplemento Literatura Marginal, publicado pela Caros Amigos, com o poema “Plano
senzala”, posteriormente reunido na coletânea Literatura marginal, junto com os
textos “Epidemia” e “Fósforo”. Nos três textos encontramos um vigor poético
empenhado na formação de um exame das condições sociais da população negra e
periférica. Os três longos poemas utilizam assonâncias e aliterações, em versos
combinados por rimas, algumas regulares e outras não. Mas, o que mais chama
atenção na leitura destes três poemas é a busca por uma interpretação da sociedade a
partir de uma memória histórica da opressão negra. Dessa forma, conforme observou
Ângela Maria Dias, o autor relaciona a vivência da espoliação periférica em uma
125
abordagem “prioritariamente étnica da interpretação da violência”(Dias, op. cit., p.
15). Em “Plano senzala”, publicado antes de sua conversão ao islamismo e, devido a
isto, leva a assinatura de Ridson, o autor cria uma espécie de marco conceitual para
representar os espaços subalternizados da sociedade: o plano senzala. Os versos que
abrem a poesia apresentam uma leitura peculiar acerca da sociedade, na qual a
divisão territorial do sistema carcerário é acionado como modo de interpretação desta:
“Barraco é cela, cadeia é favela / viela é corredor, quarteirão é pavilhão e vice-versa /
Que história é essa? Interminável era / Mais de cinco séculos de plano Senzala se
completam”(Ridson, 2005, p. 72).
Em “Notícias jugulares”, Ridson, agora com o pseudônimo de Dugueto
Shabazz, reúne uma série de contos, crônicas e poesias que possuem como elemento
comum a denúncia social e a temática negra. Abre a publicação o interessante
“Manifesto jugular”, no qual é explicitada a relação que o autor mantém com a
cultura hip-hop. O manifesto apresenta a publicação como
o fio da percepção autodidata lendo as entrelinhas subliminares dos becos, dos loucos, das fitas, dos putos, tiros, drogas, olhos, gritos, costurando uma colcha de retalhos de fatos fudidos, seja para desbaratinar o frio indiferente de São Paulo para quem dorme na calçada ou para cobrir quem morre na calçada.”(Shabazz, 2006, p. 13)
O texto, nesse sentido, é apresentado como resultante de um olhar voltado
para os espaços marginalizados recolhendo os fatos e organizando-os. É um olhar
próprio, autodidata, como o próprio Dugueto afirma no manifesto. Mas, não é uma
experiência literária que se aproxima de uma ordem estética dominante, cria-se uma
outra forma para dar luz a este projeto. Pois, como é explicitado no texto, “não
falamos português, não. Nosso latim é afrofavelizado.”(Idem). Não é apenas o
empenho em afirmar-se enquanto negro, mas, principalmente, apresentar-se como
negro e favelado. O discurso passa a apontar para este movimento de autoafirmação,
valorizando seu próprio espaço (favela) e seu grupo étnico (negro). Deseja-se que
com isto formar uma nova identidade para um setor representativo da sociedade,
almeja-se que os leitores possam igualmente compartilhar deste novo movimento:
Agora, ei você! Que saliva nitroglicerina e aspira pólvora em carreirinhas poluindo suas balas de raiva, sangue do meu sangue, sangue bom. Vamos! Se esperarmos, vacilamos. FECHADOS E FORMADOS, reforçando as fileiras que vão daí da tua quebrada e passam por Afeganistão, Iraque,
126
Cuba e Venezuela. É loco. Periferia é periferia em qualquer lugar e tem gente sofrendo opressão, racismo, favelização do espírito e flagelo do mundo todo. Antigamente quilombos, hoje periferia. Somos a INTERNACIONAL PALMARINA e Notícias Jugulares é uma carta de convocação. Somos todos um vem com a gente soldado, abandona essa fita que não traz retorno positivo pra favela e vem. Você é nosso melhor reserva, mas precisamos de você firmão e fortão, entendeu?!! (Idem, p. 15)
No manifesto o livro é descrito como uma convocação, enquanto que o
próprio manifesto realiza este ato: “Agora, ei você!(...) precisamos de você firmão e
fortão, entendeu?!!.”. O leitor é convocado para, primeiro, abandonar “a fita que não
traz retorno positivo pra favela” – leia-se, o crime e as drogas – e, igualmente, temos
a convocação ao leitor para a composição de um grupo que resgatará a luta ancestral
de Zumbi dos Palmares – a Internacional Palmarina – na defesa pela periferia. Pois,
antigamente quilombo, hoje periferia, como o próprio texto afirma. A proposta é
semelhante à doutrina formada pelo Hip-Hop e propagada pelo RAP, descrita como a
versão escrita desta:
Aqui é a versão escrita dessa gambiarra que nós chamamos de música, que faz coro a bandidos, incita a tensão racial e põe o submundo em evidência. Dessas páginas voam tiros e rasgam scratches. As questões periféricas agora são centrais, jugulares. E serão viscerais. (Idem, Ibidem)
A Literatura, na acepção oferecida por Dugueto, surge como suporte de um
discurso específico, semelhante ao uso que muitos jovens fazem da música RAP. Seja
na música ou na literatura, autores como Dugueto, Soninha M.AZO, Eduardo, Gato
Preto, Ferréz, entre outros, mas o mesmo teor político domina o discurso. Surge como
força primeira o desejo de apresentar uma perspectiva própria para o cenário que
envolve o autor, é necessário denunciar o estado das coisas, esclarecer os próprios
pares, alertar os leitores/ouvintes sobre os mecanismos perversos da máquina de
destruição que suga cada vez os jovens pelas suas engrenagens. Não é uma escrita
sem compromisso. É uma literatura engajada, preenchida por histórias recolhidas de
uma realidade próxima e por palavras de ordem. Aos três elementos que formam a
cultura Hip-Hop, estes autores adicionaram a Literatura.
127
5.
Uma leitura de três casos e uma possibilidade
Nos capítulos anteriores estabeleci um olhar sobre a Literatura Marginal no
desejo de colocar em destaque os possíveis elementos de união destas vozes
periféricas que se apresentam na cena literária brasileira a partir de uma escrita
pautada no agenciamento político e na denúncia de uma realidade social marcada pela
vulnerabilidade. Dessa forma, além de propor um referencial teórico que possibilite
estruturar uma análise que abarque a especificidade deste tipo de discurso, também
experimentei focar as semelhanças entre esta escrita e o movimento Hip-Hop. No
entanto, meu olhar se fixou apenas no acompanhamento e leitura das obras em seu
sentido coletivo, objetivando estabelecer os contornos mais nítidos deste movimento
de autores de periferia.
Neste capítulo proponho um exame em um percurso oposto a partir da leitura
da obra de três autores específicos: Ferréz, Allan Santos da Rosa e Sérgio Vaz. Ou
seja, irei travar um contato com casos singulares no desejo de identificar as possíveis
marcas de uma escrita e movimento que se quer plural. Por este viés será possível
localizar os principais recursos estéticos e, principalmente, as propostas de
intervenção social e política que cada autor propõe. Os três autores, cada qual a seu
modo, além de produzirem uma literatura que apresenta os possíveis índices de
análise dos elementos constituintes da Literatura Marginal, também criaram formas
de associativismo cultural que incidem na formação de um discurso minoritário e
aglutinador de vozes dissonantes. Os três casos elencados aqui congregam as duas
dimensões que o movimento procurar produzir, uma literatura engajada e o
engajamento através de intervenções sociais que utilizam a literatura como veículo.
Além desta leitura, que será baseada no exercício de localização das
semelhanças e diferenças, também faço uma análise da obra de Marcelino Freire,
128
escritor pernambucano que não é “essencialmente” marginal, mas que produziu
importantes representações sobre estes setores na contemporaneidade. Ao acionar um
autor que figura em um espaço fronteiriço - é aclamado pela Literatura Marginal,
mas não é um deles - desejo apresentar a obra de Marcelino Freire como uma
possibilidade de representação da periferia que se torna rentável mesmo sem a
necessidade da produção de um discurso pedagógico e formador do leitor.
3.1
Ferréz
Reginaldo Ferreira da Silva, morador do Capão Redondo, Zona Sul de São
Paulo, saiu de cena em meados do ano 2000, no seu lugar tomou forma Ferréz,
escritor engajado e principal articulador do movimento literário que reúne escritores
residentes na periferia dos grandes centros urbanos. Com o pseudônimo, Reginaldo
forja uma espécie de simbiose de dois líderes populares do passado: Virgulino
Ferreira e Zumbi dos Palmares. Desta união resulta o escritor do cenho franzido e
cara de poucos amigos.
Narrada dessa forma, a apresentação do autor se assemelha a de um
personagem retirado das histórias em quadrinhos, um herói que cumpre um destino já
traçado. Isto é proposital. O autor é um leitor empenhado destas publicações e dono
de uma coleção invejável de títulos. Além desta formação, ao estabelecermos uma
leitura atenta da obra de Ferréz, é possível identificarmos a presença de outros
elementos da cultura pop, sobretudo do cinema americano, em sua escrita. No
entanto, o que mais chama atenção em sua produção é o diálogo que este mantém
com a cultura Hip-Hop, principalmente o RAP. Não obstante, em seu primeiro
romance, Capão pecado, publicado em 2000, é possível localizar uma série de
elementos desta cultura, como as diferentes citações de grupos de RAP; a participação
de ativistas e músicos através de depoimentos que interligam capítulos e partes do
romance – com destaque para o músico Mano Brown, líder do grupo Racionais MC’s
– além dos encartes com fotografias que registram o autor com uma postura típica de
um rapper.
129
A influência da cultura Hip-Hop não repousa apenas no gestual ou nas
diferentes citações a grupos e músicos de RAP, esta vai além e determina também a
estratégia de atuação política do autor. O maior exemplo disto é a formação do 1 da
Sul, movimento popular criado pelo autor que reúne ações comunitárias e a
comercialização de produtos voltados para a população residente nos bairros
populares. O projeto foi concebido enquanto um movimento social que objetivava
fortalecer os elos comunitários da região do Capão Redondo. O nome 1 da Sul,
conforme o próprio autor apresenta em seu blog, “vem da ideia de todos sermos 1, na
mesma luta, no mesmo ideal, por isso somos todos 1 pela dignidade da Zona Sul.”11.
No início, conforme examina Erica Peçanha, “o movimento, que existiu de maneira
organizada até o primeiro semestre de 2005, pretendia atuar como uma posse de Hip-
Hop, desenvolvendo atividades culturais e sociais (como shows beneficentes e
doações de alimentos para famílias das favelas da região), e projetos de criação de
bibliotecas comunitárias.” (Peçanha, 2009, 76). O termo posse é pertencente à cultura
Hip-Hop e designa a consolidação de um determinado território enquanto palco
primeiro das ações e projetos de um grupo de adeptos desta cultura. Apoderar-se de
uma área, ser literalmente dono de uma região, transformando-a em uma posse do
movimento, este é o principal objetivo deste tipo de ação. Além deste objetivo, em
1999, o 1 da Sul passou a atuar como uma espécie de marca, ou melhor, “o nome da
grife e da loja que Ferréz criou no centro do Capão Redondo e que comercializa
chaveiros, canecas, adesivos e roupas no estilo Hip-Hop (moletons e camisetas com
estampas de grafite, trechos de letras de rap ou de livros).”(Idem, Idem) Também
vamos localizar a presença desta marca nos três suplementos Literatura Marginal, da
Revista Caros Amigos, indicando que a publicação é igualmente uma ação do
movimento. Seja enquanto movimento social ou grife destinada aos moradores da
localidade, o 1 da Sul reúne diferentes elementos e características que podem ser
concebidos enquanto influência da cultura Hip-Hop. Os diferentes itens
comercializados, principalmente as peças de vestuário, são claramente
confeccionados ao gosto dos adeptos do Hip-Hop, como as toucas de lã, os casacos
volumosos com capuz, as calças largas e camisas com grandes estampas. Além disso,
11 In: www.ferrez.blogspot.com , acessado em 19 de julho de 2008.
130
a ideia de construir uma marca própria da periferia reproduz uma postura política
formada no Hip-Hop, que aponta para a consolidação de mecanismos de
sobrevivência próprios e sem a intermediação de agentes e atores não pertencentes à
cultura, à raça negra e ao bairro. A postura de valorização de elementos outrora
negligenciados, como o próprio bairro, deixa de ser signo de inferiorização do sujeito
residente para passar a objeto de valorização e formador de uma identidade própria.
Ferréz, em seu blog, apresenta com clareza os objetivos da marca:
O desafio é ser a marca oficial do bairro, tendo como ponto de vista uma resposta do Capão Redondo para toda violência que nele é creditada, fazendo os moradores terem orgulho de onde moram e consequentemente lutarem para um lugar melhor, com menos violência gratuita e mais esperança. Seis anos depois do escritor Ferréz ter criado a marca oficial do Capão Redondo, muitos estão deixando marcas como, Nike, Forum e Adidas de lado e usando algo que realmente tem a ver com a nossa gente, com a nossa cultura. O símbolo: o emblema da 1DASUL tem como idéia ser um brasão do nosso povo, desde que invadiram o Brasil os descendentes de portugueses sempre tiveram seus brasões reais, porque? Porque o brasão tem sentido de unidade e traz a idéia de um povo que se une para lutar pela preservação da sua cultura. Assim eles venciam as batalhas porque dividiam agente. assim como os europeus em geral, mas nós descendentes de escravos nunca tivemos um símbolo sobre nossa linhagem, o símbolo da 1DASUL em forma de fênix e com o número 1 em destaque é uma forma de termos nosso próprio brasão, e ele tem esse sentido, de juntar a periferia. Por isso, quando por a 1DASUL no corpo saiba que você está também usando uma idéia de mudança, você está somando para a auto estima do nosso povo. Do gueto para o gueto.12
O objetivo da marca, como o próprio autor define, é valorizar o bairro, criando
para os moradores da localidade um símbolo de identificação. Parte-se da necessidade
de construir uma forma de representação própria, condizente com a cultura da
periferia. Legados à condição de marginais – noção que surge não como denúncia,
mas como termo identitário – os membros desta filia formada pelo 1 da Sul não
buscam uma inserção nas formas de representação hegemônicas e totalizantes, mas,
sim, operam na construção de uma identidade a partir de seus próprios símbolos.
Interessante notar que a justificativa desta ação está amparada nos modelos que são
negados, critica-se o não pertencimento a esta forma de representação, mas o mesmo 12 Disponível em www.ferrez.blogspot.com/oqueeo1dasul. Acessado em 14 de março de 2009.
131
mecanismo é utilizado, agora voltado para um grupo específico: os sujeitos
periféricos. O uso do brasão – símbolo hierarquizante que delimita um grupo e, por
este turno, exclui outros – é justificado pelo possível poder de união e fortalecimento,
este “traz a idéia de um povo que se une para lutar pela preservação da sua cultura.”.
Mesmo que o objetivo seja a comercialização de produtos, o resultado desta troca
comercial atinge o âmbito social, político e cultural. Beneficia o proprietário e criador
da marca, claro, mas também favorece uma nova possibilidade de vínculo com o local
e uma nova forma de atuação política. Se outrora a escolha de uma peça de vestuário
era um ato banalizado, agora, com a formação desta proposta de intervenção através
de uma marca, vestir-se com uma camiseta que traz estampadas e símbolos que
aludem a um bairro de periferia, virou um ato político.
Ter o próprio brasão é apenas um dos muitos elementos criados com o desejo
de fortalecer uma identidade própria, este empenho passa também pela literatura. É
no solo da produção literária que Ferréz irá atuar de forma decisiva no fomento de um
amplo debate acerca da representatividade das populações marginalizadas nesta.
Valida a discussão uma série de pressupostos que afirmam o caráter pouco
democrático do consumo da literatura e, sobretudo, de sua produção. Desnecessário
dizer que pelas periferias do Brasil, seja na área urbana ou rural, são poucas as ofertas
que favorecem que um sujeito se torne leitor, o que dirá deste se constituir enquanto
autor.
Para uma melhor compreensão acerca do papel de Ferréz na literatura
brasileira contemporânea e sobre a sua produção literária, não é possível estabelecer
uma leitura estanque e isolada de sua obra. Ao nos debruçarmos sobre seus escritos
temos que analisá-los em diálogo com a cultura Hip-Hop, a formação de movimentos
sociais comunitários e com sua postura política que congrega estas duas instâncias de
mobilização social. Mesmo que estes aspectos pertençam a uma esfera extraliterária,
eles estão presentes de forma clara na obra do autor. Poder-se-ia definir tal percurso
de análise como uma opção, no entanto, este olhar que rompe as barreiras das páginas
de um livro e busca dialogar a obra com a trajetória do autor é condição sine qua non
neste estudo. Com isto, corre-se o risco de formar um exame amparado no
biografismo, narrando apenas o caminho trilhado pelo escritor durante sua formação.
132
Contudo, mesmo que a leitura da obra em seu formato isolado resulte em
apontamentos assertivos sobre o autor, no caso específico de Ferréz, e de outros
autores marginais, é insuficiente este tipo de análise. Nesse sentido, minha leitura
buscará traçar o mesmo percurso que o autor estabeleceu ao longo de sua produção
literária, partindo do texto impresso para propor um debate político e social acerca da
periferia urbana.
Tais dados biográficos, avultados pelo perfil socioeconômico do autor, sempre
marcaram a recepção da obra de Ferréz. Além disso, estes dados foram determinantes
para a publicação de seu primeiro romance, Capão pecado. Vale citar que
anteriormente, em 1997, com o patrocínio da empresa na qual trabalhava, Ferréz
publicou Fortaleza da solidão, publicação que reunia suas poesias concretas. A
publicação, que teve pouca tiragem e distribuição do próprio autor, hoje está
esgotada. No entanto, conforme observa Erica Peçanha, “Capão Pecado – ao
contrário de Fortaleza da Desilusão, cujo lançamento sequer foi noticiado pela
imprensa – movimentou o interesse de um periódico de grande circulação antes
mesmo de ser editado.” (Peçanha, op. cit., p. 205)
O interesse jornalístico pela publicação pode ser explicado pela forma como
Ferréz apresentava seu romance, entrelaçando elementos ficcionais com eventos
ocorridos na própria localidade em que residia. A matéria mencionada por Érica
Peçanha foi publicada na Folha de São Paulo, em 06 de Janeiro de 2000. No texto é
destacado o caráter pouco usual de uma produção literária que constrói a periferia no
campo ficcional e também é construída pelo seu território. O subtítulo da matéria,
“Desempregado do Capão Redondo escreve romance baseado em histórias
verdadeiras de um dos bairros mais violentos de SP; livro, sem editora, está pronto,
mas o autor muda trechos quando algum personagem morre na vida real”, reforça o
sentido documental do texto e o engajamento do autor através de sua produção. A
partir da visibilidade ofertada pela entrevista, Ferréz foi procurado pela editora
Labortexto, hoje já extinta, que publicou seu romance no mesmo ano.
Se o interesse pela publicação foi impulsionado pelo perfil social e
engajamento político do autor, o sucesso comercial desta, que obtive uma ampla
vendagem, principalmente se considerarmos os diferentes entraves decorrentes da
133
distribuição deficitária, também obedece a este processo. Seja pelo elaborado projeto
editorial, com os já citados encartes de fotografias, ou pela estrutura narrativa que
busca mimetizar o cotidiano da periferia, Capão pecado entrou no circuito
percorrendo o caminho inaugurado por Paulo Lins, com o romance Cidade de Deus.
Desde a publicação de Cidade de Deus, em 1997, uma série de autores trilhou um
caminho semelhante ao preconizado por Lins, rompendo a silenciosa posição de
objeto, para em seu lugar, emergir na posição de enunciador do próprio discurso.
Decerto Ferréz é o exemplo mais bem sucedido deste empenho em estruturar um
discurso a partir do próprio referencial, formando uma compreensão das fraturas
marginalizadas da sociedade fora dos espaços centrais de saber e poder. O êxito de
Ferréz deve ser medido não apenas na expressiva vendagem de seus livros, fator que
revela o alcance de seu discurso, mas, principalmente, em sua contribuição na
formação de um grupo de autores da periferia, a chamada Literatura Marginal. O
ápice deste empenho pode ser aferido na publicação dos três suplementos literários
Literatura Marginal, assim como na criação da Editora Literatura Marginal/Selo
Povo, editora destinada unicamente a publicação de autores periféricos.
São muitas as semelhanças entre Cidade de Deus e Capão pecado. Ambos
foram escritos a partir do olhar de dentro, através da experiência adquirida pelos
respectivos autores durante a vivência enquanto moradores da localidade que serve de
palco da narrativa. Além disso, são textos encarcerados no empenho em reconstruir
na ficção o cotidiano da periferia. Beatriz Resende, em Apontamentos de crítica
cultural, sintetiza este novo molde de representação literária observando que ao se
apresentar como ex-morador da favela por ele romanceada, Paulo Lins passa a ser
“personagem, ator, agente que se situa naquele mesmo espaço físico, arquitetônico e
simbólico de exclusão de que fala.”(Resende, 2002, p. 158). Valendo-se da
experiência marginal, Ferréz e Paulo Lins apresentam a favela a partir de um outro
olhar. A favela não é abordada por um intelectual estrangeiro, mas pelo próprio
sujeito marginal. O marginalizado, enquanto excluído do lugar da produção de
conhecimento, busca reverter a sua posição silenciosa de objeto e tornar-se sujeito do
(auto)conhecimento e da escrita. Mas, conforme identificou Érica Peçanha, tais
134
semelhanças podem ser identificadas como influência, tal qual a pesquisadora
identificou em sua análise:
Com João Antonio, Ferréz se identificou porque, já nos anos 1970, o autor se tornou conhecido por tematizar o subúrbio e as práticas sociais das classes populares. Na “literatura marginal” de Plínio Marcos descobriu a classificação que considerou adequada para caracterizar seus textos e de outros escritores oriundos da periferia. E no romance Cidade de Deus, o calhamaço que despertou interesse da crítica e do público ao ficcionalizar situações de violência e criminalidade, o escritor se inspirou para escrever Capão Pecado. (Peçanha, 2006, p. 106)
Dessa forma, se foi a publicação do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins,
que inaugurou este novo perfil autoral, Capão Pecado, de Ferréz, o fortaleceu. No
entanto, arrisco dizer que as aproximações entre os dois textos repousam apenas nas
semelhanças resultantes das condições de produção e pela intencionalidade de
reproduzir no campo ficcional situações retiradas de um cotidiano marcado pela
violência. Se avançarmos na análise destes dois romances, ofertando mais atenção à
estrutura textual e à intencionalidade política de cada autor, vamos observar com mais
propriedade as diferenças entre os dois romances.
Já foi afirmado por Beatriz Resende que a construção narrativa de Paulo Lins,
“criada dentro da excluída Cidade de Deus, não é jamais didática ou explicitamente
engajada, não aponta caminhos. Mas é a sua escritura, ela mesma, a sua existência,
que é um caminho.”(Resende, 2002, p.159). Na leitura de Beatriz Resende, a
vingança contra a marginalidade se realiza através da escrita e, sobretudo, através do
testemunho. Acredito que devemos problematizar melhor estas afirmações. Concordo
com a autora que a elaboração discursiva de Lins é, antes de tudo, uma posição crítica
que subverte os padrões literários estabelecidos. A subversão destes padrões se dá
pela própria existência da escritura de Lins, pelo próprio ato do marginalizado de
romper a figuração silenciosa de objeto e apresentar-se como sujeito da enunciação
que investiga sua própria condição social. A publicação dos textos de Ferréz e da
coletânea Literatura Marginal obedecem esta mesma leitura.
Contudo, o engajamento político de Lins é perceptível na forma como o autor
estrutura seu romance, centrando a narração no relato do crescimento do crime
organizado na favela Cidade de Deus. No decorrer da narrativa as histórias pessoais
135
vão se tornando cada vez mais fugidias, refletindo assim a escalada vertiginosa da
violência em Cidade de Deus. Se, na primeira parte do romance, trecho que
representa os anos 60, o narrador imprime um ritmo mais detalhado e minucioso ao
acompanhar à formação do conjunto habitacional, na segunda e terceira partes do
livro, que aludem às décadas de 1970 e 1980 respectivamente, a narrativa se torna
mais fragmentada e difusa, incapaz de oferecer respostas à escalada da violência.
Assim é que personagens surgem e desaparecem na mesma página e acompanhamos
a proliferação de gerações cada vez mais novas ligadas ao tráfico.
O que chama atenção é a afirmação da territorialidade do romance, enquanto signo de identificação social, em um momento em que há uma esmagadora predominância de narrativas que se esmeram em problematizar exatamente o contrário, ou seja, sua impossibilidade.(Tavares, 2001, p. 144)
A forma adotada por Lins se baseia na denúncia da condição de
vulnerabilidade sofrida por toda uma localidade. A insistência em criar uma prosa que
se debruça unicamente sobre personagens pertencentes a uma região conflagrada pela
violência e criminalidade pode ser lida como um desejo de revelar uma realidade
pouco conhecida, ofertando cores para episódios e histórias que pouco freqüentavam
a literatura brasileira. Por este viés, mesmo que não seja explicitamente engajada ou
pedagógica, a prosa de Paulo Lins possui uma potência política ao formar um longo
exame do surgimento e consolidação das quadrilhas armadas empenhadas no
comércio varejista de drogas na favela por ele romanceada.
Em Ferréz o movimento operado aponta em um sentido oposto. Mesmo que o
autor afirme que sua inspiração para a elaboração de seu primeiro romance foi o texto
de Paulo Lins, Capão Pecado é uma espécie de compêndio de ensinamentos e
preceitos morais recolhidos por um autor conhecedor das armadilhas e percalços da
periferia. O tom explicitamente pedagógico domina a escritura do romance, da
mesma forma que a estrutura maniqueísta ordena os personagens construídos ao
longo do texto. Tais características são facilmente explicadas pela relação que o autor
mantém com a cultura Hip-Hop, principalmente o RAP, conforme examinado no
capítulo anterior, e a presença deste tom pedagógico, que almeja apresentar
136
ensinamentos e conscientizar o leitor, é a transposição de uma característica de um
discurso poético-musical para o âmbito da literatura.
Capão Pecado apresenta como protagonista Rael, jovem residente no Capão
Redondo, palco privilegiado da narrativa. Ao longo do romance, através de Rael,
travamos contato com os diferentes tipos sociais da periferia: o jovem empenhado na
melhoria da vida pelo trabalho, o assaltante temido pela violência de seus atos, o
nordestino desempregado e alcoólatra, a doméstica negra explorada pela patroa
branca, o pastor evangélico, o jovem desempregado e alienado, etc. Tais sujeitos são
expostos no texto segundo um rígido maniqueísmo, no qual não sobram críticas
pontuais acerca das posturas concebidas como errôneas – como o consumo de drogas,
a prática de assaltos, o alcoolismo e a alienação política – e, na mesma lógica, os
personagens que trilham caminhos que são facilmente lidos como exemplares são
emoldurados a partir de um tom exultante de suas ações – a assiduidade ao trabalho, o
envolvimento em ações de cunho social e comunitário e a presença na rotina escolar.
Tá certo, ce vê o Alaor tá na correria, o Panetone e o Amaral também tão dando mó trampo, mas o resto, mano, na moral, tão vacilando. Eles tinham que ouvir as ideias do Thaíde, tá ligado? “Sou pobre, mas não sou fracassado”. Falta algo pra esses manos, sei lá, preparo; eles têm que se ligá, pois se você for notar, tudo tá evoluindo e os chegado tão lá no mesmo, e não tô dizendo isso porque sou melhor não. Ce tá ligado que comigo isso não existe, mas na moral, cara, esses aí vão ser engolidos pelo sistema; enquanto eles dormem até meio-dia e fica rebolando nos salão até de manhã, os playbas estão estudando, evoluindo, fazendo cursinho de tudo que é coisa.(Ferréz, 2000, p. 117)
Além visível presença de uma grafia própria das palavras e da tentativa de
transpor para a escrita um discurso formado pela oralidade, este repleto de gíria, -
atos que podem ser interpretados como um desejo de construir um romance que
reivindica uma autenticidade testemunhal através de um recurso semelhante ao
naturalista – o trecho acima evidencia o caráter pedagógico da escrita de Ferréz. O
próprio enredo da história é construído a partir da oposição descrita no trecho
recolhido. Rael, o protagonista do romance, é descrito como um jovem regrado,
trabalhador e empenhado na sua melhora de vida. Este deposita no trabalho e na
educação formal a possibilidade de ascensão social. A leitura salvacionista da
educação, conceituação amplamente criticada pelas correntes mais progressistas no
âmbito acadêmico, surge na prosa de Ferréz como a única saída possível para a
137
consolidação de um sonho de progresso de vida pessoal e coletiva. Filho único, Rael
congrega o perfil de um filho devotado, fiel aos amigos e correto no trabalho: “Rael
dormiu tranquilamente e no dia seguinte trabalhou como sempre, atendendo os
clientes com muito carinho e atenção.”(Idem, p. 58).
A trajetória do personagem começa a ser modificada quando de sua entrada
em uma empresa de metalurgia. No novo local de trabalho, Rael se aproxima de
Paula, secretaria da empresa e namorada de Matcherros, seu melhor amigo. A partir
da ligação do protagonista com a jovem, são ofertadas ao leitor duas imagens claras
sobre o perfil de um jovem da periferia, onde Matcherros exerce o papel do sujeito
alienado e não responsável, sendo de forma recorrente retratado jogando vídeo-game
durante horas ao invés de procurar um trabalho.
Paula falava sem parar de sua relação conturbada, Rael analisava os fatos em seu interior. Era verdade que Matcherros era descendente de índios e por isso era moreno, tinha um cabelo escorrido e extremamente negro, era alto e tinha uma boa aparência... Mas era totalmente superificial e muito desinformado! Como uma coisa tão linda como aquela que estava em sua frente se apaixonara por um cara daquele jeito? O Matcherros dormia o dia inteiro, pois ficava Playstation com o Narigaz, e não estava nem aí pra nada, nem pra ninguém. Rael, de certo modo, sabia que Matcherros só namorava a Paula para poder ter algo garantido, pois de vez em quando ele ficava sem catar ninguém. (Idem, Ibidem)
O resultado do triangulo amoroso é inicialmente previsível. Desapontada com
o relacionamento que mantinha com Matcherros, Paula busca refúgio nos braços
disponíveis de Rael, este ainda tenta desvencilhar da armadilha amorosa – como todo
bom jovem de periferia, ele não quer trair o amigo, mas acaba se apaixonando. Eles
se casam e passam a morar em uma casa nos fundos da metalúrgica. Mas, de uma ora
para outra, Paula abandona Rael. Desesperado, este procura notícias da esposa e do
filho. Até que descobre que ela o largou para ficar com o patrão. Encera a história a
descrição da cena em que Rael é morto por um colega de cela, após ser preso por
invadir junto com outros bandidos a metalurgia e matar por vingança Seu Oscar, o
antigo patrão.
Em torno deste núcleo central circulam diferentes personagens, amigos de
infância, bandidos sanguinários, jovens desocupados, mães carinhosas, pais
alcoólatras, etc. Condensada em pouco mais de 170 páginas temos a tentativa de
138
retratar uma realidade marcada pela vulnerabilidade social, violência e miséria,
resultando em uma imagem que se revela mais fiel à percepção do autor sobre seu
próprio território do que um dado realista sobre este. Pois, é através da mão de Ferréz,
que filtra, hierarquiza e julga, que travamos contato com o Capão Redondo e bairros
adjacentes. A descrição da cena em que o personagem Matcherros se depara com seu
tio alcoolizado em sua casa deixa este aspecto de censura e julgamento moral bastante
evidentes:
Até aquele momento ele não havia notado a presença do seu tio, Carimbe, que se encontrava deitado sem camisa, com uma aparência horrível; enrugado, com os lábios secos e os olhos vermelhos; careca, com alguns fiapos de cabelo somente na nuca, com a calça e a bota toda suja de lama e mijo. Notou ainda catarro no travesseiro, viu a dentadura dentro do copo com água, o cigarro ainda acesso e pela metade no chão, o cinzeiro sujo, um copo de café sujo. Tudo era sujeira em sua volta. (Idem, p.120)
O texto ocupa-se de um exame minucioso da condição do personagem na cena
descrita, elencando todos os elementos que levam o leitor a definir a situação como
degradante. Mas, no modelo de representação utilizado por Ferréz não basta apenas
indicar estes índices, é necessário afirmar e condicionar o leitor para este
entendimento. O leitor não pode receber mensagens dúbias, ele tem que saber que ao
redor do personagem alcoólatra “tudo era sujeira em sua volta”.
Se Ferréz observa na própria periferia uma dualidade formada pelo
antagonismo entre uma trajetória de vida positiva e negativa, nos poucos momentos
em que a narrativa se desloca para cenários não periféricos, sobretudo quando são
apresentados os contatos dos personagens marginalizados com personagens de outras
classes sociais e residentes em bairros centrais, a perspectiva maniqueísta assume um
novo recorte. Desejoso em colocar em destaque os distintos conflitos de classe,
Ferréz utiliza um narrador que discute estes aspectos a partir da perspectiva dos
personagens:
Ele tinha nojo daqueles rostos voltados para cima, parecia que todos eles eram melhores que os outros. Se seu pai estivesse com ele, com certeza já teria dito: esquenta não filho, eles pensam que têm o rei na barriga, mas não passam dessa vida sem os bicho comê eles também. Os mesmo bicho que come nóis, como esses filhas da puta; lá embaixo fio, é que se descore que todo mundo é igual.(Idem, p.35)
139
A partir da reflexão atribuída ao personagem, ganha vulto uma representação
que busca dirimir as diferenças através do conflito. A fala do personagem, revestida
por um dado que se quer próximo da cultura popular, apresenta a semelhança entre os
sujeitos, mas reafirma a diferença social. Na verdade, em distintos momentos do
romance, esta diferença é acentuada e debatida. Como no trecho em que é narrada a
visita de Rael ao patrão de sua mãe com o intuito de receber o salário da mesma:
Chegando ao mercado de seu Halim, o pão-duro já o havia visto de longe e já estava contando o dinheiro para lhe dar. Rael se aproximou e Halim nem o cumprimentou, só entregou o dinheiro e disse que o serviço da mãe estava lhe custando muito dinheiro. Rael não responde nada, só guardou o dinheiro no bolso, disse obrigado e se retirou. Mas Halim notou algo em seu rosto, algo estranho, talvez por um momento Halim tenha visto nos olhos daquele simples menino periférico um sentimento de ódio puro e que tenha sentido por algum momento que um dia o jogo iria virar. (Idem, Ibidem)
Em Manual prático do ódio, segundo romance do autor, lançado por uma
grande editora em 2003, o antagonismo de classe ganha novos contornos e surge
como principal justificativa para a inserção dos personagens no mundo do crime. São
muitos os trechos que trazem uma perspectiva crítica sobre a desigualdade social do
Brasil, como no fragmento abaixo, que apresenta a percepção do personagem Celso
Capeta:
Era revoltado ao extremo, ultimamente não podia beber, se empolgava e vira e mexe contava as mesmas histórias, os amigos não agüentavam mais suas lembranças sobre o último emprego, falava constantemente que trabalhar para os outros hoje em dia era ser escravo moderno, só virava mixaria. Entre várias histórias falava detalhadamente sobre a época em que trabalhava como ajudante de pintor, os filhos do patrão na piscina, rindo, tomando suco de laranja ou chocolate de caixinha, a mãe dos meninos ficava lendo embaixo da árvore no jardim, os filhos eram vigiados pela empregada. Não cansava de narrar aos amigos de cerveja que o teto da garagem era enorme, muito trabalho, também o patrão yinha mais de cinco carros. Celso Capeta falava e começava a comparar a casa dos patrões com a sua, dizia alto que na casa deles tinha piscina, hidromassagem, e na sua, córrego fedorento, chuveiro com extensão queimada.”(Ferréz, 2003, p.19)
Tal forma de comparação entre distintos padrões de vida domina parte
considerável da narrativa, criando um contraponto entre a realidade dos personagens
residentes na periferia e os estabelecidos em bairros centrais e de elite. A leitura deste
140
tópico por Aline C. Xavier da Silva, em Figurações da realidade na literatura e
cinema brasileiro contemporâneos, busca uma aproximação da intencionalidade de
Ferréz ao introduzir esta leitura sociológica da realidade social brasileira:
Os personagens ponderam sobre suas condições sociais e assumem a revolta de não fazerem parte de uma sociedade que os exclui. A inserção na classe social que os excetuam, no entanto, não se dá pelo contrato social do trabalho ou pela prestação de serviço, mas por meio da relação com os objetos de consumo, relação de poder capaz de legitimar identidades como consumidores. Todas as referências a bens de consumo feitas no texto (marcas de motocicletas, de carro, de roupa) levam à reflexão sobre a ideia de que a organização social e o universo simbólico das sociedades modernas se constituem sobre a praxe do consumo, pois a forma de aquisição dos sujeitos pode determinar não só sua ambiência como seus hábitos. (Silva, 2009, p.92)
A análise construída pela pesquisadora possui sustentação teórica em recentes
estudos de sociólogos e críticos culturais, como Renato Ortiz e sua particular leitura
das regras de socialização impostas pelo consumo. Ser consumidor e cidadão, para
citar o clássico ensaio de Nestor G. Canclini, surge não como uma escolha, mas algo
necessário para a real inserção destes sujeitos/personagens na sociedade. Em uma
estrutura social formada pelos bens de consumo, estar fora do mercado consumidor,
nesta leitura, é o mesmo que estar excluído do exercício da cidadania.
Este mapeamento sociológico é realizado por Ferréz na narração da formação
de uma quadrilha de assaltantes que almeja realizar um grande assalto. Lúcio Fé,
Aninha, Neguinho da Mancha na Mão, Celso Capeta, Mágico e Rêgis, os membros
da quadrilha, estruturam um plano que renda o dinheiro necessário para uma vida
estabilizada. São movidos, antes de tudo, pelo desejo de consumo, depositando nas
ações criminosas a única forma possível para obterem o que cobiçam. No entanto, os
planos são frustrados por diferentes razões e estes não concretizam o plano. Neste
romance o sentido pedagógico também orienta o desfecho dos personagens e todos os
personagens são punidos com a prisão ou a morte.
A noção que orienta a estrutura narrativa é apresentada no próprio título da
obra, ao travar contato com as histórias dos personagens, o leitor realiza um mergulho
em um manual prático do ódio que passa a ser impulsionado pela engrenagem
perversa do crime e dos reclames televisivos que apresentam sonhos de consumo
141
inatingíveis. Neste romance, o mundo do crime e seus códigos e regras surgem
elementos que auxiliam o autor na formação de uma leitura própria sobre a realidade
social da periferia. Em semelhança a publicação anterior, Manual prático do ódio
também é fundado por uma perspectiva testemunhal. O fato do autor ser residente na
periferia e conhecer de perto o cotidiano de sujeitos que, em semelhança ao
personagens ficcionais, atuam no crime reforça o realismo do eventos narrados. Ao
menos é isso que o autor busca colocar em evidencia, como podemos detectar em seu
texto de apresentação na quarta capa do livro:
Todos os personagens deste livro existem ou existiram mas o Manual prático do ódio é uma ficção. O autor nunca matou alguém por dinheiro mas sabe entender o que isso significa – do ponto de vista do assassino. Este romance conta a história de um grupo que planeja um assalto, mas também fala de outros medos e mistérios universais, de toda essa gente que ama e odeia, em proporções explosivas.(Ferréz, 2003)
O autor deseja se aproximar do espaço narrado e do tema abordado e para
tanto se constrói enquanto personagem. Um pacto é formado, o leitor passa a
depositar maior verossimilhança no texto ao identificar um autor que se quer próximo
dos personagens ficções. Guiados pelas descrições de Ferréz, nós, leitores, passamos
a adentrar uma realidade pouco conhecida e dominada pela presença de personagens
que amam, odeiam e também matam por dinheiro. Somos advertidos que o autor sabe
o significado desta ação, mas do ponto de vista do próprio assassino. Não existe
melhor chamariz para a leitura. Esta forma de construção do autor enquanto
personagem que favoreceu, é claro, o amplo consumo da publicação. Se o público
consumidor desejado é o jovem da periferia, como de forma recorrente Ferréz e
outros autores argumentam, a abordagem da violência e as descrições de assaltos e
perseguições agradam também em cheio os leitores não familiarizados com esta
realidade.
É possível constatar uma mudança de foco operada por Ferréz a partir da
publicação de seu livro de contos, Ninguém é inocente em São Paulo. Nos contos,
Ferréz elege um novo viés como principal eixo de observação do processo de
marginalização dos sujeitos residentes na periferia. A violência ainda se faz presente,
mas ganha novos contornos e formas, sendo retratada, por exemplo, na ausência de
142
perspectivas profissionais dos jovens de periferia, tema abordado no conto “No
vaga”, ou, no cotidiano de um trabalhador que sofre com os insultos do patrão, como
no conto “Pão doce” e também através do preconceito racial, tema do conto “Fábrica
de fazer vilão”.
Este último conto, com um sofisticado recurso de corte e supressão da
narrativa, Ferréz aborda a violência policial sofrida por negros e pobres em um bar de
uma favela. A abertura do conto consiste na descrição da cena de um jovem negro,
participante do movimento Hip-Hop, indo dormir:
Tô cansado mãe, vou dormir. Estomago do carái, acho que é gastrite. Cobertor fino, parece lençol, mas um dia melhora. Os ruídos dos sons às vezes incomodam, mas na maioria ajudam. Pelo menos sei que tem um monte de barraco cheio, monte de gente vivendo. Ontem terminei mais uma letra, talvez o disco saia um dia, senão é melhor correr trecho. (Ferréz, 2006, p. 11)
O rapper, que dorme no segundo piso do bar de sua mãe, é acordado para ser
achincalhado, junto aos frequentadores do lugar, todos negros, por um policial
armado.
Acorda preto. O quê...O quê... Acorda logo. Mas o quê... Vamo logo, porra. Ai, peraí, o que tá acontecendo. Levanta logo, preto, desce pro bar (Idem, Ibidem).
Ao chegar no bar, o personagem depara-se com todos os fregueses encostados
na parede sob a mira de um policial. Insultos são proferidos pelos policiais. Os
xingamentos só cessam quando um policial informa: “É o seguinte, seus montes de
bosta, vou apagar a luz, e vou atirar em alguém.”(Idem, p. 13) . Através de frases
curtas, ofertando para a narrativa uma agilidade e brutalidade condizente ao descrito,
o narrador do conto apresenta a cena:
Então apaga a luz. O tiro acontece, eu abraço minha mãe, ela é magra como eu, ela treme como eu. Todo mundo grita, depois todo mundo fica parado, o ronco da viatura fica mais distante.
143
Alguém acende a luz. Filho-da-puta do caralho, atirou no teto, gritou alguém. (Idem, p. 13-14).
A narrativa é de extrema violência, mesmo sem as mortes que o policial
anuncia desde que entra no bar. Em poucas linhas, Ferréz aborda de forma clara e
objetiva o sofrimento que a discriminação racial causa em suas vítimas. No conto,
serão os fragmentos, os mesmos que os personagens absorvem durante a investida do
grupo de policiais, que possibilitará a descrição das cenas. O autor apresenta um
domínio pouco usual dos artifícios literários, conseguindo produzir um conto que
aborda de forma contundente o tema da violência racial sem, no entanto, criar uma
forma narrativa didática.
Os contos, como o próprio autor diz na apresentação, “são pequenos
insultos”(Idem, p. 7). Tal noção orienta os escritos. Pois, a utilização de fragmentos
como estrutura narrativa é recorrente nos contos de Ferréz. São flashs captados em
diferentes incursões ao espaço marginal. Os contos, nesta perspectiva, se assemelham
a fotografias que registram o cotidiano da periferia. Textos como “Pega ela”, “No
vaga”, “O pão e a revolução”, “Na paz do Senhor” e “O pobrema é a curtura, rapaz”
são exemplos deste exercício de demarcação de uma cena, um instante da periferia.
Sem narradores, estes contos são estruturados apenas por um diálogo. A partir da
interlocução dos personagens acompanhamos o registro da violência da favela.
Extrai-se, nesta perspectiva, os elementos que poderiam adensar o relato, restando
apenas os personagens que representam a periferia urbana. Contudo, é possível
constatar uma postura crítica dos personagens em relação ao espaço e sujeitos da
marginalidade. Todos os contos acima elencados apresentam a favela a partir de um
olhar crítico, questionando as posturas e ações dos sujeitos da periferia. Exemplar
nesse sentido é o conto “No vaga”. No conto, dois personagens conversam sobre as
diferentes ofertas de emprego e negócios, revelando as desventuras da busca por um
emprego:
E aí, encontrou? Encontrei, nada. E o negócio do purificador? Era tudo ilusão, fiz curso de três dias e depois descobri. Já sei, de porta em porta de novo (Ferréz, op. cit., p. 35)
144
O diálogo é abertamente irônico, ao passo que os personagens começam a
relatar as experiências alheias:
Pior foi o Deusdete. O que foi? Comprou uma máquina de fralda. Meu Deus, esse homem não aprende. Aprende não, não chega aquela das camisas, lembra? Lembro, sim. Fez meia dúzia de estampas e depois foi vender a máquina. O pior dos piores é fazer books. É mesmo, toda mãe acha que o filho é o mais bonito. Eles chegam a fazer curso com as meninas. Tudo mentira, até a filha zarolha da Lúcia entrou nessa. Já viu modelo zarolha? (Idem, Ibidem)
Os dois personagens lançam um olhar crítico e, em alguns momentos,
perverso sobre o próprio cotidiano e reproduzem a percepção do autor. Através destes
personagens o autor passa a orientar seus leitores, estabelecendo este desejo de
formação como um dos principais índices de leitura de sua obra.
O estatuto literário passa a receber um invólucro disciplinador, através da
escrita o autor enumera de forma clara e objetiva qual a postura social condizente
com a imagem de sujeito periférico que espera formar no ato de leitura. Este designo
rompe estilos e gêneros e atinge também a literatura infantojuvenil, com a publicação
de Amanhecer esmeralda. Neste, Ferréz, narra o cotidiano de uma menina negra da
periferia que ocupa seu dia-a-dia entre os afazeres domésticos e a escola. Filha de
uma empregada doméstica e de um operário da construção civil, a pequena
protagonista vive em um mundo escuro e sem brilho. Este aspecto é reforçado pela
opção estética em apresentar as ilustrações iniciais da publicação em preto e branco,
reafirmando o sentimento de abandono vivenciado pela personagem.
Manhã acordou cedo mais uma vez, era sexta-feira, o dia de alegria para todas as crianças que estudavam. Foi até a pequena mesa feita artesanalmente por seu pai com tábuas de caixotes e não viu nenhum embrulho. Era mais um dia sem pão. Pegou a panela onde sua mãe fazia café e olhou dentro, nada. (Ferréz, 2005, p. 9-10)
A crítica social do autor não fica refletida apenas na descrição física de um
cotidiano marcado pela carência e ausência, mas também na apresentação das
angústias de uma infância com poucas perspectivas.
145
Chegou à escola no horário certo, a turma estava pegando fogo, já estava na terceira série, talvez fosse professora, dentista, advogada, havia aprendido a sonhar, mas também a pensar com os pés no chão e não gostava disso, quando se imaginava limpando a casa de alguém por toda a vida que nem sua mãe, uma tristeza invadia seu corpo. (Idem, p. 14)
No entanto, há um pequeno gesto que produz uma mudança significativa na
vida da menina. Ao perceber que a jovem Manhã sempre vai para a escola com
roupas surradas e velhas, seu professor decide comprar um simples vestido para
presentear a aluna.
Manhã arregalou os pequenos olhos negros e pegou o pacote com delicadeza, perguntou se podia abrir e com a aprovação do professor, tirou o durex delicadamente e, ao abrir a embalagem, estendeu o vestido, com uma cor que ela não sabia o nome. (Ferréz, Idem, p. 26)
Com esse pequeno gesto tudo se transforma. O verde esmeralda do vestido
oferece luz à vida da pequena Manhã. A mudança não ocorre apenas nas vestes da
protagonista, mas, igualmente, na assimilação de uma nova compreensão de sua
origem étnica. Com o auxílio de Dona Ermelinda, a merendeira da escola, Manhã
ganha belas tranças.
Dona Ermelinda demorou uma hora para fazer as tranças. Enquanto fazia, contava sobre as raízes africanas que todos os negros tinham, contou que certamente Manhã era também descendente de uma linda rainha de algum dos reinos trazidos para cá para serem escravizados. A menina estava encantada com todas aquelas histórias, mas ficou mais ainda quando Dona Ermelinda trouxe o espelho e ela viu como haviam ficado as tranças. (Ferréz, idem, p. 30)
A partir da mudança física de Manhã, todo o seu em torno se transforma. Seu
pai, ao ver sua filha tão bela, decide reformar o barraco. Afinal, argumenta ele: “não
combinava uma menina tão bonita com um barraco tão bagunçado e sujo.”O vizinho,
por sua vez, ao perceber a pintura nova na casa de Manhã resolve também reformar
sua casa. Assim, tudo muda, ganhando cores e vida. As ilustrações, que antes eram
preto e branco, exibem agora uma exuberância de cores e até o amanhecer se tornou
esmeralda, cor representativa de uma esperança outrora escondida e empalidecida.
Na narrativa, Ferréz mescla momentos de um realismo cruel, sobretudo ao
representar a situação de desigualdade social vivenciada pela protagonista, com
146
trechos que apresentam fantasia, como evidência o final da história. Manhã é a síntese
de um desejo explicito de auto-afirmação através da identidade negra. A história narra
não apenas a mudança de uma menina, mas de toda uma comunidade. É evidente o
intento do autor em apresentar uma protagonista que possa ser espelho para os
leitores. O reflexo é de uma menina acanhada que lutava para ajeitar os rebeldes
cabelos negros é transformado em um índice maior que revela a aceitação de sua
etnia e identidade. Decerto, não é um conto de fadas. O reino virou uma favela. O
castelo dá lugar a um barraco. Os feitiços são outros, alguns mais venosos. Mas a
princesa e o cavalheiro ainda estão presentes, só que agora são negros e
marginalizados e, como em todo belo conto de fadas, saem vitoriosos no final.
Transformar. O verbo sintetiza o movimento que o autor espera que seus
textos realizem. Fora do registro ficcional, espaço em que o autor não poderia intervir
diretamente na construção de uma realidade que seja reflexo de seu desejo, Ferréz
acaba por utilizar a escrita como veículo de denúncia, principalmente em seu blog. A
transformação, nesse sentido, se torna mais palpável, sendo possível intervir
diretamente em uma realidade concreta através de um posicionamento político de
intervenção e denúncia do estado das coisas. Mesmo que seja um espaço preferencial
para divulgar novos textos literários, a agenda de eventos e novos produtos, o blog
também assume uma função de canal de denúncias, um ambiente independente que
torna possível informar seus leitores sem intermediação.
Exemplo disto é o texto publicado no dia 17 de maio de 2006, no qual são
denunciadas as incursões policiais que resultaram no assassinato sumário de ao
menos cerca de 100 “suspeitos” de integrarem uma facção criminosa da capital
paulista. Com o título “Atenção”13, o texto inicia com um apelo “a todos que
acompanham esse blog, que nos ajude a dizimar o que está acontecendo”. Os fatos
denunciados pelo escritor ocorreram como uma retaliação pela onda de ataques
cometidos pela facção criminosa que domina os presídios de São Paulo. Ataques
estes que pararam a cidade e disseminaram o pânico entre a população. Nas palavras
de Ferréz, os mortos foram alvejados pelas costas, sob a acusação de possuírem
vínculos com a organização criminosa. Mas, como evidenciou o autor no próprio
13 Disponível em www.ferrez.blogspot.com/atencao. Acessado em 25 de março de 2008.
147
texto, “nenhum deles tinha passagem, por isso apelo para que divulguem a real de que
o acordo não foi feito com o povo, o povo tá morrendo, sendo baleado pelas costas,
ao entregar pizza, ao voltar para casa. a policia covarde, treme perante o olhar do
ladrão, mas mata sem dó quem está simplismente voltando para casa.”
A denúncia ganhou destaque em diferentes jornais. Mas, tamanha visibilidade
também resultou em uma série de ameaças de morte, tendo o autor que deixar a
capital paulista para preservar sua família e sua integridade física. Com a apuração da
denúncia, foi constatada a participação da Escoderia Le Cocq, organismo não oficial
da Polícia Militar de São Paulo e da Polícia Civil, em uma série de ações sob a
orientação da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo na busca pelos
criminosos responsáveis pelos ataques realizados na capital e interior do Estado.
Denúncia semelhante foi feita pelo autor em ocasião de uma operação policial
no Complexo do Alemão, conjunto de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro.
Publicado no dia 8 de maio de 2007, o texto não possui um relato do autor enquanto
testemunha do fato delatado, mas é construído a partir das informações dadas por
leitores residentes na localidade: “recebi muitos e-mails de manos do Rio, dizendo
que a mídia não está cobrindo o que se passa realmente com os moradores do
complexo e demais comunidades, assim como também toda matéria traz só o índice
de mortos, ontem foram 4, hoje foram 8, reduzindo as vidas a meros números.”14.
Ferréz surge como porta-voz. Detentor de uma visibilidade ímpar, o autor utiliza seu
blog para tornar pública uma perspectiva que não se faz presente nos jornais que
cobriram o confronto ocorrido na localidade. O texto não apenas informa sobre o fato,
indicando o número de mortos, mas oferece uma visão própria sobre o mesmo,
revelando seu vínculo com outras áreas marginalizadas, neste caso as favelas do Rio
de Janeiro: “fiz palestra no complexo a algum tempo, os manos do hip-hop de lá
estavam tentando montar uma biblioteca comunitária, que não deu certo, pena foi que
talvez um deles esteja nas fotos. as fotos servem para mostrar o que nosso pais está se
tornando, e que futuro sombrio ainda nos aguarda.” Ao afirmar que dentre os muitos
mortos em decorrência do confronto possa estar um dos jovens militantes do Hip-Hop
14 Disponível em http://ferrez.blogspot.com/2007/08/mega-operao-no-complexo-do-alemo.html. Acessado em 26 de fevereiro de 2009.
148
que se reuniram com ele em evento na própria localidade, Ferréz cria uma leitura
própria para a trajetória dos muitos jovens negros e favelados que ingressam nas
fileiras do comércio varejista de drogas. Estes, a partir da visão do autor, são sujeitos
que sofrem uma peculiar condição de vulnerabilidade, transitando rotineiramente
entre duas possibilidades. Ocupar um dos muitos cargos e postos do tráfico não é uma
escolha, mas um caminho possível e muito atraente. Contudo, como os próprios
personagens de Ferréz e de outros autores atestam, trata-se de um caminho sem volta,
que apresenta um fim esperado. Trilhar tal percurso, em alguns casos, passa a ser o
único ato esperado por alguém que nasceu em uma estrutura familiar destruída pela
violência, sem educação e sem condições de vislumbrar um outro futuro.
Tal ponto de vista não é defendido apenas pelo autor, são muitos os discursos
veiculados em diferentes espaços que apresentam tal perspectiva. Tal forma de
análise foi previamente referendada por inúmeros estudos que buscavam explicar
alistamento de jovens de comunidades de baixa renda pelo comércio de drogas.
Tributárias desta leitura, muitas ações sociais desenvolvidas nestas localidades
utilizam como principal justificativa para o desenvolvimento de projetos de cunho
sócio-educativos a necessidade de “resgatar” estes sujeitos. Repousa de forma
implícita nesta ideia de “resgate” a percepção de que tais jovens estão legados a uma
condição de extrema vulnerabilidade social que a única saída possível é o ingresso em
ações que os colocarão em conflito com a lei. A sentença que mascara uma simplória
equação, é repetida corriqueiramente e pode ser localizada em muitos discursos.
No entanto, setores progressistas da sociedade, entre eles podemos incluir as
falas produzidas pelos autores marginais, buscam desqualificar tal argumento ao
afirmarem que os jovens residentes nos bairros periféricos não são potenciais
criminosos, mas, sim, sujeitos que transitam em um espaço fronteiriço que dividi o
mundo da ordem e o da desordem. A ideia de resgate, defendida pelos setores
conservadores, é rechaçada por apresentar uma leitura preconceituosa da periferia e,
principalmente, acerca dos sujeitos que lá residem. Contra o olhar que aponta para a
margem como um espaço propício para o surgimento de “mentes criativas prontas
para o mal”, é apresentada uma leitura crítica sobre o sistema de opressão social que
assola tais sujeitos. O argumento passa a ser baseado na denúncia de um processo de
149
marginalização social que determina a entrada destes jovens no crime. Decerto,
existem semelhanças entre os argumentos. Mas, por outro lado, as diferenças são
claramente perceptíveis.
Tais clivagens se tornam mais nítidas quando colocadas em atrito, produzindo
uma disputa discursiva sobre o tema. Exemplar neste sentido são as opiniões emitidas
pelo apresentador de T.V. Luciano Huck, em artigo publicado no jornal Folha de São
Paulo, em 01 de outubro de 2007, depois de sofrer um assalto a mão armada que
resultou na perda de seu relógio. Após realizar um exercício imaginativo sobre a
notícia de seu possível assassinato – “Luciano Huck foi assassinado. Manchete do
"Jornal Nacional" de ontem. E eu, algumas páginas à frente neste diário,
provavelmente no caderno policial. E, quem sabe, uma homenagem póstuma no
caderno de cultura” – Huck analisa a situação socioeconômica de seus agressores:
“Como brasileiro, tenho até pena dos dois pobres coitados montados naquela moto
com um par de capacetes velhos e um 38 bem carregado. Provavelmente não tiveram
infância e educação, muito menos oportunidades. O que não justifica ficar tentando
matar as pessoas em plena luz do dia. O lugar deles é na cadeia.”. No artigo, o
apresentador inicialmente reproduz a leitura da condição de vulnerabilidade sofrida
pelos jovens marginalizados: os assaltantes não tiveram oportunidades e, por este
motivo, ingressaram no crime. Mas, Luciano Huck não se apieda, isto não justifica
uma ação criminosa e violenta: “o lugar deles é na cadeia”. A argumentação
construída se assemelha aos impropérios proferidos pelos muitos apresentadores de
programas policias que povoam o fim de tarde das emissões televisivas dos canais
abertos. Tal qual um destes furiosos apresentadores, Huck produz uma hierarquia
entre classes e cidadãos: “Juro que pago todos os meus impostos, uma fortuna. E,
como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas de caramelo, quase recebo
balas de chumbo na testa.” O violento ato sofrido, na leitura do apresentador, se
torna ainda mais injustificável pelo reconhecimento de sua posição em uma sociedade
que afere a importância de seus membros a partir do valor de seus bens. Pagar
elevados impostos, resultado direto dos elevados ganhos recebidos pelo apresentador,
surge como principal argumento por um pedido de segurança. Além disso, no artigo o
apresentador afirma que realiza sua parte na construção de um país menos desigual e
150
que o propósito do texto não é “para colocar a revolta de alguém que perdeu o rolex,
mas a indignação de alguém que de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para
ajudar a construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e
justo e concluir --com um 38 na testa-- que o país está em diversas frentes
caminhando nessa direção, mas, de outro lado, continua mergulhado em problemas
quase "infantis" para uma sociedade moderna e justa.”
Na reflexão construída por Luciano Huck a saída seria um “salvador da
pátria”, alguém que assumiria o papel de liderança para a efetivação de uma solução
para as questões relativas à violência. “Estou à procura de um salvador da pátria.
Pensei que poderia ser o Mano Brown, mas, no "Roda Vida" da última segunda-feira,
descobri que ele não é nem quer ser o tal. Pensei no comandante Nascimento, mas
descobri que, na verdade, "Tropa de Elite" é uma obra de ficção e que aquele na tela é
o Wagner Moura, o Olavo da novela. Pensei no presidente, mas não sei no que ele
está pensando.”
O esperado “salvador da pátria” assume feições contraditórias, indicando
como possíveis postulantes ao cargo um líder de grupo de RAP da periferia, um
violento policial [felizmente] confinado no ambiente ficcional e o presidente da
república. Fica latente o tom depreciativo ao mencionar o nome de Mano Brown,
líder dos Racionais MC’s, sentenciando primeiro que ele não é este líder e nem quer
ser. De fato, na citada entrevista concedida pelo músico, logo no início, ao responder
a primeira pergunta, que versava sobre a noção de revolução presente em seus
discursos, Mano Brown define que suas falas e declarações não são formadas a partir
de uma posição de liderança de determinado grupo ou segmento e, mas, sim “como
cidadão. Não como político ou líder de nada. Eu sou um cidadão. Eu opino, eu falo o
que acho”. Não desejar ser o líder é uma posição política inesperada que revela uma
atitude não autoritária que direciona na conformação do próprio grupo o exercício da
liderança. Mano Brown, mesmo sendo líder e letrista do maior grupo de RAP
brasileiro, seguido por milhares de fãs em diferentes regiões do Brasil, símbolo
máximo da postura combativa e radical do Hip-Hop, não se veste destes artifícios,
não assume esta pecha, não lidera ninguém, não quer falar pelos outros, mas, sim,
para os outros.
151
A ampla referência realizada ao artigo assinado por Luciano Huck se justifica
não pela representatividade da percepção do apresentador acerca da desigualdade
social e da violência, mas pela resposta produzida por Ferréz em relação a tal
posicionamento. Publicado no mesmo jornal paulista, a Folha de São Paulo, dias
após a publicação do artigo de Luciano Huck, o artigo assinado por Ferréz, uma
espécie de conto/crônica sobre o cotidiano de um assaltante residente na periferia,
surgiu como uma referência para a produção um outro olhar sobre as questões
debatidas anteriormente.
Com um narrador em primeira pessoa, aspecto que reforça o sentido
testemunhal do texto, o relato inicia com a descrição de um encontro: “ELE ME olha,
cumprimenta rápido e vai pra padaria. Acordou cedo, tratou de acordar o amigo que
vai ser seu garupa e foi tomar café. A mãe já está na padaria também, pedindo
dinheiro pra alguém pra tomar mais uma dose de cachaça. Ele finge não vê-la, toma
seu café de um gole só e sai pra missão, que é como todos chamam fazer um
assalto.Se voltar com algo, seu filho, seus irmãos, sua mãe, sua tia, seu padrasto,
todos vão gastar o dinheiro com ele, sem exigir de onde veio, sem nota fiscal, sem
gerar impostos.”
O narrador – seria este o próprio autor? – apresenta a cena de forma prosaica,
não é um dado alarmante o contato e a proximidade com um assaltante. Também não
é fator de alarde o consumo por parte da família de um objeto resultante de tal prática.
Neste ponto também repousa uma leitura que justifica o ingresso do personagem no
crime. A equação foi novamente construída e o resultado é o esperado: sem
oportunidades e sem chances, a única saída que resta é o crime. Não é um dado novo,
é um aspecto reincidente na obra do autor. O fato inédito, se assim podemos
classificar, é o grande empenho de Ferréz em compreender a lógica que move o
personagem/sujeito. Ao contrário de seus textos anteriores, não presenciamos a
construção de um discurso maniqueísta e pedagógico. Ou seja, o personagem não será
punido ao final da narrativa. Além disto, todo o texto é formado através de uma
estrutura que busca apresentar uma resposta ao texto de Luciano Huck,
desconstruindo a percepção do apresentador de T. V. acerca da desigualdade social
brasileira. “Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais, mas sua mãe o
152
levava ao circo todos os anos, só parou depois que seu novo marido a proibiu de sair
de casa. Ela começou a beber a mesma bebida que os programas de TV mostram nos
seus comerciais, só que, neles, ninguém sofre por beber. Teve educação, a mesma que
todos da sua comunidade tiveram, quase nada que sirva pro século 21. A professora
passava um monte de coisa na lousa -mas, pra que estudar se, pela nova lei do
governo, todo mundo é aprovado?”
Mas, a crítica mais contundente que Ferréz apresenta não se baseia nos
argumentos de Luciano Huck, mas em um dos mais populares quadros de seu
programa televisivo. Na leitura formada por Ferréz, a oferta de um valor em dinheiro,
quantia suficiente para quitar as muitas dívidas de um trabalhador comum, está
atrelada a um ato de humilhação pública: “Era da seguinte opinião: nunca iria num
programa de auditório se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando
numa tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as dívidas, isso nunca faria, um homem
de verdade não pode ser medido por isso.” No conto/crônica, Ferréz busca a
percepção do próprio sujeito marginalizado e cria uma forma de representação que
seja capaz de revelar os pensamentos e os desejos de um personagem em conflito
com a lei. Neste jogo formado pela escrita, tão importante quanto saber a opinião de
um assaltante acerca de uma atração da T.V. é saber qual a percepção deste sobre a
desigualdade social da qual é subproduto. O autor deseja revelar ao público não
somente a justificativa para o ato criminoso, mas que o próprio ato se justifica pela
colisão de elementos tão desiguais: “Se perguntava como alguém pode usar no braço
algo que dá pra comprar várias casas na sua quebrada. Tantas pessoas que conheceu
que trabalharam a vida inteira sendo babá de meninos mimados, fazendo a comida
deles, cuidando da segurança e limpeza deles e, no final, ficaram velhas, morreram e
nunca puderam fazer o mesmo por seus filhos!”
O crime passa a ser justificado pela necessidade de sobrevivência e pela
revolta contra a desigualdade: “Estava decidido, iria vender o relógio e ficaria de boa
talvez por alguns meses.”. Soma-se a isto uma pequena ironia, que continua a apontar
para o regime das diferenças: “O cara pra quem venderia poderia usar o relógio e se
sentir como o apresentador feliz que sempre está cercado de mulheres seminuas em
seu programa.”. Não é passível de críticas a atitude e a ação do personagem, é um
153
dado corriqueiro e cotidiano. Sendo assim, é desta forma que Ferréz apresenta o
relato do momento do assalto: “O correria decidiu agir. Passou, parou, intimou,
levou.” Não cabem grandes elucubrações, juízos morais e críticas. Com a utilização
de apenas quatro verbos o autor descreve o ato para após sentenciar: “No final das
contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso,
que é sua vida, e o correria ficou com o relógio. Não vejo motivo pra reclamação,
afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.”
O texto de Ferréz obteve grande repercussão e resultou em uma ação judicial
movida pelo Ministério Público de São Paulo contra o autor, acusando-o de apologia
ao crime. Segundo a argumentação do órgão, Ferréz apresenta no seu texto – que é
uma narrativa ficcional – uma série de elementos que se coadunam com uma postura
apologética a atos criminosos. De acordo com o próprio autor, em texto publicado em
seu blog, seu depoimento prestado na Delegacia de Polícia centrava sua defesa na
afirmação de que “eram culpados todos os escritores de ficção que li até hoje, como
por exemplo Machado de Assis, Hesse, Gorki, Graciliano Ramos e etc. Afinal, fazer
literatura é um crime que todos nós cometemos juntos.”15. A postura assumida pelo
Ministério Público, talvez influenciado pelos interesses de sujeitos que se sentiram
agredidos pelo texto de Ferréz, revela um elemento instigante na construção da
recepção da obra do autor. Posto que, conforme explicitei anteriormente, grande parte
da crítica que se debruça sobre a produção contemporânea de sujeitos oriundos de
bairros populares no afã de avaliarem o texto literário a partir da presença de
elementos biográficos. Lêem o ficcional com os olhos voltados para um dado factual.
Tal modo de leitura é, em certa medida, resultante da própria postura assumida pelos
produtores do discurso, influenciando de forma decisiva a recepção de sua obra e o
posicionamento crítico frente ao texto ficcional. A reincidente afirmação de que os
elementos presentes no texto são fruto do real factual, uma recolha de histórias e
eventos de determinada localidade, transforma o produto literário em uma colcha de
retalhos que impede discernir com propriedade estes dois elementos. No entanto, não
se trata de declarar que o autor se tornou vitima de sua própria construção. A
15 Disponível em ferrez.blogspot.com/2008_06_01_archive.html. Acessado em 11 de setembro de 2008.
154
denúncia, a aceitação do processo e o julgamento de Ferréz são alguns dos episódios
de uma trama kafkaniana movida pelos elementos mais vis de nossa sociedade. Nela
localizamos facilmente o preconceito social que impulsiona o exame da causa
julgada. Pois, como o próprio Ferréz observa: “Agora cabe a mim, explicar a minha
família, que um texto [meu] fez eu ganhar uma mancha na minha vida, e explicar
também que outro texto (o do Luciano Huck) que disse que esperava a ajuda do
Capitão Nascimento, fazendo alusão a justiceiros, sequer foi mencionado.” “Um peso
e duas medidas”, como sentencia o dito popular, é a expressão que melhor define o
caso, servindo como referência de análise para destacar o tratamento dado ao caso.
Mas, em sentido oposto, também é possível identificar as diferentes vozes que se
ergueram em defesa do autor, auxiliando-o no enfrentamento do processo judicial. O
Jornal Folha de São Paulo, neste caso assumindo uma obrigação, uma vez que o
texto foi publicado em suas páginas, destacou um jornalista para acompanhar o caso
enquanto testemunha de defesa. Além deste, amigos, ativistas sociais e intelectuais
ofereceram apoio ao escritor e depuseram em sua defesa. É relevante destacar o
préstimo oferecido16 por Idelber Avelar, crítico literário que leciona em
16 Informação apresentada por Ferréz em seu blog, em texto publicado em 12/09/2008. Reproduzo
abaixo o texto integral, disponível em http://ferrez.blogspot.com/2008/09/mais-fora-no-caso-da-apologia.html , acessado em 14/09/2009.
Mais força no caso da apologia. Fala, Ferrez! É o seguinte, vou ser rápido. Sou Doutor em Literatura Latino-Americana pela Duke University, nos States, e professor na Tulane University, na cidade de Nova Orleans. Escrevi alguns livros sobre literatura. Estou mandando este email para me oferecer para depor a seu favor no processo que o MP está movendo contra você. Acompanho seu trabalho, sua obra, e tenho experiência com esse tipo de acusação. Vou deixar uns links se você quiser saber mais sobre mim. Minha página na Tulane University é esta aqui: http://www.tulane.edu/~spanport/avelar.htmMeu blog é este aqui: http://idelberavelar.com Estou nos EUA, mas pego um avião aqui, com meu dinheiro, e vou depor na hora que você quiser. É só avisar. Se quiser, pode colocar seu advogado em contato comigo também. Um abração, força e fé, Idelber Idelber, agradeço de coração, a caminhada continua, obrigado pela solidariedade, os baratos vem de onde não se espera mesmo, e agente muitas vezes não sabe o tamanho do coração de pessoas que não conhecemos, mas que acompanham nossa caminhada, isso é pra provar que não é tudo inimizade e solidão, temos muitos por nós também. Ferréz
155
Departamentos de Literatura e Cultura de universidades americanas, que se dispôs a
ser testemunha de defesa no caso. A relevância desta oferta de apoio repousa no
empenho que o crítico dispensa ao caso, chegando, inclusive, a sugerir que os custos
provenientes do deslocamento entre os Estados Unidos e Brasil ficariam a seu cargo.
O caso ainda não foi julgado. Mas, tudo leva a crer que o autor será absolvido.
Mesmo que ocorra um desfecho contrário, a pena em casos semelhantes tende a ser a
prestação de serviços comunitários. Triste ironia, o escritor engajado, símbolo de uma
ação de transformação social através da literatura e reconhecido pela sua constante
atuação em defesa de movimentos sociais independentes, poderá ter como pena a
prestação de um serviço que já realiza há tempos.
5.2 Allan Santos da Rosa
Se na análise que realizei de Ferréz busquei relacionar aspectos de sua
biografia com sua obra literária, traçando uma leitura não apenas da sua produção,
mas igualmente de sua atuação política em diferentes mecanismos de intervenção
social, o mesmo procedimento será adotado em relação a Allan Santos da Rosa.
Dessa forma, tão importante quanto saber que o autor já “trabalhou com feirante,
office-boy, operário em indústria plástica, vendedor de incensos, livros, churros,
seguros e jazigos de cemitério” – como nos informa trecho de sua apresentação
biográfica, no livro Da Cabula – é fundamental também saber que ele é Graduado em
História pela Universidade de São Paulo e Mestre em Educação pela mesma
Universidade. Estes dados não podem ser tomados a partir de um princípio
hierárquico, mesmo que tenham sido organizados por mim como elementos opostos.
Tal separação rígida é proposital e baseia-se em um senso comum que concebe um
valor de distinção às atividades profissionais regidas pelo conhecimento acadêmico e
pela formação de nível superior. Não causa espanto este tipo de concepção, haja vista
que a própria estrutura educacional brasileira utiliza como nomenclatura e
156
classificação uma espécie de escala que institucionaliza tal fundamento: Ensino
Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior.
Dito isto, poderia iniciar um percurso de análise baseada na trajetória de vida
do autor enumerando sua produção com comentários pertinentes acerca de sua
qualidade literária e concluiria que Allan Santos da Rosa é um dos poucos autores
que conseguiu romper as amarras de uma sociedade desigual e produziu importantes
textos ficcionais. Não irei fazer isso. Se, por ventura, trilhasse este caminho, o
resultado seria um exercício crítico que entraria em conflito com a toda a obra do
autor e, principalmente, com a intencionalidade explícita que seus textos trazem. Pois,
mesmo que a sociedade tenda a separar de forma rígida e hierárquica os saberes e as
ocupações profissionais, Allan Santos da Rosa aponta através de sua escrita e de suas
propostas de intervenção social e política para um tratamento diferenciado destas
questões. É na escrita do autor que se casam e entrelaçam o saber que se quer popular
e o dito conhecimento acadêmico. Ambos entram na roda, gingam uma dança bailada
e saem tripudiando dos doutores que insistem em afirmar que aqui, ali e acolá, não há
a produção de saberes. Estes lugares pobres, de chão de terra, de moleques-pés-
descalços, de zoeira de mãe ranhando da bagunça, Santos da Rosa visita com destreza
e mergulha na própria palavra que irrompe de bocas esfomeadas.
Na multifacetada produção literária do autor, que congrega poesia, prosa e
dramaturgia, o elemento de união é um tratamento da linguagem dotado de um ritmo
habilmente construído que se firma na busca por uma forma de expressão que traz em
seu bojo o desejo de contato com uma fala dita popular. Este exercício não se baseia
na simples coleta de expressões que povoam as franjas urbanas dos grandes centros,
mas, sim, no constante anseio de produzir uma forma de representação que seja capaz
de alcançar tal expressão oral. Com um manejo peculiar da linguagem e buscando
uma aproximação com as manifestações culturais da periferia, Allan não produz uma
literatura engajada em sua forma enunciativa, com apelos pedagógicos claros e
definidos.
Tal postura assumida na escrita do autor pode ser observada também na
criação da Edições Toró, uma editora independente destinada à publicação de autores
de periferia. Criada em 2005, a Edições Toró já publicou 15 livros entre poesia,
157
contos, dramaturgia e romance. Em comum, todos as publicações são assinadas por
autores residentes em bairros não centrais e possuem como tema preferencial o
cotidiano da periferia. No alto do sítio eletrônico da editora -
http://www.edicoestoro.net/ - temos a postagem um verso que oferece algumas pistas
sobre a editora: “Despenca toró, despenca. Lágrima safada, suor cabreiro, saliva
calorenta.”. Os livros podem ser tomados como gotas de uma enxurrada crescente que
avança em passos firmes na direção de um tratamento específico da arte, trazendo nas
palavras as cores de um engajamento político local. Nas palavras de Allan Santos da
Rosa, o nome do projeto “vem da chuva que alaga ruas e barracos e porque chegou a
hora de fazer chover livros”. Este depoimento foi recolhido da reportagem publicada
na Revista Época, em 18 de setembro de 2007. Nesta mesma reportagem o autor
apresenta uma instigante definição e destino dos livros lançados pela editora: “livro
pra quem não sabe ler”. Apesar do aparente paradoxo, as publicações editadas pela
Toró favorecem este objetivo. Os títulos lançados, sem exceção, recebem um
tratamento editorial específico, provocando um diálogo entre a forma de apresentação
e o plano temático, resultando na criação de uma identidade própria para cada livro.
Além disto, há um formato artesanal que orienta a concepção dos livros, tornando-os
exemplares únicos. Mesmo que a reprodução das páginas dos exemplares seja técnica
e industrial, a tipologia empregada, na maioria das vezes, é oriunda da caligrafia de
Silvio Diogo. A originalidade deste projeto editorial utiliza a ousadia como fuga da
falta de recursos e torna o livro um objeto mais próximo do público-alvo da editora.
O livro, enquanto objeto, fica mais próximo
do público desejado.
A imagem ao lado foi recolhida do
livro Um presente para o gueto, do Fuzzil,
lançado em 2007. Nela é possível identificar
algumas das características do projeto gráfico
e editorial mencionadas anteriormente. Além
disto, este livro tem como diferencial o fato
de todos exemplares serem acompanhados por
giz de cera, criando uma espécie de convite à
158
intervenção do leitor no próprio livro. O resultado deste convite transforma a
publicação em uma obra que se quer aberta ao diálogo com o leitor, favorecendo a
interferência deste. Para tanto, a diagramação das páginas foi realizada com o intento
de oferecer espaços a serem preenchidos e ocupados pelo próprio leitor.
Ao lado temos a reprodução de uma página do livro Vão, de Allan Santos da
Rosa, lançado em 2005, a primeira publicação da
editora. Na imagem é possível observar a
utilização da caligrafia de Silvio Diogo como
tipografia, recurso que será repetido de diferentes
formas em outras publicações. Nesta imagem
também é possível identificarmos a utilização da
tipologia típica do grafite, arte gráfica que
compõe a cultura Hip-Hop, no título do poema.
Aos não iniciados, a grafia altamente estilizada,
acentuando o efeito itálico, torna a leitura do
termo quase impossível. Mas, devemos lembrar o
instigante intento da Editora, ela se destina a
produzir livros para pessoas que não sabem ler.
Ou seja, tem como público alvo um grupo específico que dialoga com outras formas
de leitura e detentora de outros códigos interpretativos. O grafite, forma artística
predominante nas ruas dos grandes centos urbanos, passa a ocupar um lugar de
destaque na publicação, favorecendo a identificação entre o público leitor esperado –
leia-se os jovens de periferia – e o livro – objeto e produto ainda pouco difundido nos
becos e vielas.
Pela Edições Toró, Allan Santos da Rosa publicou Vão(2005), Da
Cabula(2006) e Morada(2007), sendo que Da Cabula foi publicado posteriormente
pela Global Editora na Coleção Literatura Periférica. Além destes, o autor também
assina Gazaia(2007), texto infato-juvenil, lançado pela DCL. Neste livro, em forma
de cordel, a rima contundente de Allan Santos da Rosa explora toda a dimensão da
periferia, produzindo um olhar pontual sobre os diversos problemas sociais que
atingem seus residentes com uma poética singular. O objetivo do projeto é facilmente
159
perceptível: apresentar para o público infanto-juvenil uma narrativa que concilia os
principais elementos formadores das manifestações culturais presentes na periferia
em sua estrutura formal ao abordar a trajetória de uma família migrante sob a ótica de
um jovem. Dessa forma, as sextilhas dos mestres cordelistas da tradição nordestina –
ou seja, a estrutura rítmica dos versos em seis estrofes – é a forma estética adotada
para dar vida a um jovem negro que trava constantemente contato com manifestações
da cultura negra, como a capoeira. É importante ressaltar que o cordel está presente
não apenas na linguagem utilizada pelo autor, mas, igualmente, nas ilustrações.
Utilizando tinta nanquim sobre papel, o ilustrador Marcelo D’Salete produz desenhos
que se assemelham com as tradicionais xilogravuras do cordel. Resulta deste
complexo empreendimento estético uma obra que visa formar o leitor infanto-juvenil
não apenas no plano narrativo, mas, igualmente, na apresentação de elementos
culturais muitas vezes negligenciados e esquecidos.
Tal qual seus pares factuais, o personagem título é um jovem negro residente
em uma favela que enfrenta desde tenra idade as dificuldades provenientes de uma
sociedade desigual. Residindo em Diadema, filho de presidiário, o menino passa seus
dias nas brincadeiras de rua e travando contato com as armadilhas da periferia:
Pros bacanas ceguetas Garotos são marginais Correndo atrás de pipa Competindo com pardais Bolso vazio sem vintém Alvo de dicas mortais Crime é caminho fácil Da rua para o ringue Vem garruchas e metrancas No lugar do estilingue Da fantasia pro fatal Às vezes nem se distingue (Rosa, 2007, p.6)
Mas, o menino Zagaia não é engolido pela perversa máquina que assola as
periferias urbanas do Brasil. E, novamente reproduzindo uma cena da realidade, o
protagonista ainda criança começa a trabalhar como feirante. Sofrendo com o
preconceito do patrão, abandona o emprego e coleciona uma série de outras
atividades:
160
Passou por outros perreios Carrancas dando esporro Serviu mesa, deu panfleto Costurou meia e gorro Mas dentro algo atazanando Algo pedia socorro Zagaia então concluiu: Patrão é sempre urubu Observando lá de cima O contratado jururu Que dá vigor e saúde Comendo como gabiru (Idem, p. 17)
Após a constatação da exploração, Zagaia decide tentar a sorte na capital. São
Paulo surge como um espaço de desolação e abandono. Em suas andanças pela cidade
percebe toda a sorte de contradição e desigualdade:
Gente com dez agasalhos Outros sem lençol nem fronha Doutor falando difícil Só embromando pamonha Meninas de doze, treze Esperando a cegonha
Viu mansões com coberturas Portas de pau e tramelas A tevê tão leviana Seus arranjos e seqüelas Viu fiéis clamar por Deus Não largando suas velas. (Idem, p. 23)
A periferia surge como cenário de uma história que não é singular, mas, ao
contrário, é encenada cotidianamente nas margens da sociedade. Zagaia é claramente
retirado de um dado real factual e transposto para as páginas ficcionais com o intento
de favorecer a identificação dos leitores. É possível estabelecer um paralelo entre esta
proposta de literatura com as tendências pedagógicas mais liberais, sobretudo com o
pensamento do educador Paulo Freire, pois nos dois casos observamos uma indicação
de intervenção social através do texto, tendo como fio condutor o debate e a
discussão da realidade social que cerca os jovens, resultando na formação dos sujeitos
da periferia através de saberes populares muitas vezes não abordados em publicações
do gênero. A análise de Maria Tereza Carneiro Lemos, no estudo “A (de)missão do
161
intelectual”, apresenta de forma clara a postura dos autores da Literatura Marginal em
relação à cultura da periferia:
Esses grupos à margem são localmente enraizados e orgânicos, e mantendo relações de simbiose com o entorno imediato, criam também relações cotidianas que desenvolvem espontaneamente e à contracorrente, uma cultura própria, resistente, constituindo um alicerce para a produção de uma política. (Lemos, 2007, p. 126)
As práticas sociais e culturais periféricas apresentam uma particularidade em
sua atuação política. Por não estarem no centro, este discurso é dotado de uma
autonomia própria adquirida pela legitimidade proveniente de uma postura
independente, conquistada a duras penas pela situação de escassez e abandono em
que vivem essas comunidades. A liberdade e a criatividade, nesse sentido, é fruto da
posição de contestação da fala hegemônica.
Estar fora do centro também favorece a construção de um novo ponto de
observação – “o olhar de dentro” como corriqueiramente é denominado – que
favorece a emergência de uma representação própria que, em alguns casos, entra em
choque com o olhar produzido pelo sujeito não pertencente ao espaço. Morada, livro
assinado por Allan Santos da Rosa em co-autoria com fotógrafo Guma, é um exemplo
bem sucedido deste “olhar de dentro”. O livro, como o próprio Santos da Rosa define,
“é de fotos. Texto é mero convidado. A nutrição do livro é a luz natural, o equilíbrio
gingante da lente de Guma.”(Rosa e Guma, p. 11, 2007). Mas, parafraseando o autor,
o livro é de fotos e o texto é um convidado que estabelece um precioso diálogo com
estas. Texto e foto produzem um exame poético da destreza arquitetônica dos mestres
de obras que equilibram com tijolo e cimento o abrigo dos sonhos de uma infinidade
de homens, mulheres e crianças que habitam as franjas urbanas dos grandes centros
urbanos. Na publicação, é literalmente o “olhar de dentro” que guia o leitor em uma
visita às casas, adentrando não a intimidade dos moradores, mas o interior de um
espaço que constantemente é representado pelo “olhar de fora” como resultado direto
de uma condição econômica vulnerável.
As lentes de Guma capturam a relação que os moradores possuem com suas
casas, pondo em evidência os pequenos gestos e as marcas deixadas pelas mãos que
as construíram e ordenaram. O movimento é expansivo, não se fixa nos interiores,
162
caminha junto aos residentes percorrendo os becos e vielas, ladeiras e descampados,
córregos e pontes armadas. A morada passa a ser também o espaço de fora da
residência, as ruelas apinhadas, a conversa no portão, o zigue-zague de crianças e a
zueira de rádiotelevisão: a rua. Pois, como observa Marcos Alvito em relação às
favelas do Rio de Janeiro,
embora seja verdade que todo espaço habitado pelo homem é um produto socialmente construído, no caso da favela isto assume uma dimensão radical. É um espaço que não somente foi construído pelo homem – termo genérico que nos bairros de classe média designa organizações privadas, como as construtoras, ou governamentais, como a companhia de eletricidade – mas também, (...)pelos homens que lá habitam, com suas própria mãos, lentamente, durante anos. Uma casa de dois pavimentos pode ser a síntese de 30, 40 anos de trabalho, enquanto o apartamento onde morro é, para mim, apenas uma escolha de acordo com minha preferências e possibilidade.(Alvito, 2001, p. 69)
A leitura de Marcos Alvito, mesmo centrada nas favelas do Rio de Janeiro,
estabelece um diálogo oportuno com a proposta de leitura apresentada no livro de
Santos da Rosa e Guma. Tanto o antropólogo quanto os autores buscam evidenciar
um aspecto intrínseco do território dos bairros periféricos e favelas brasileiras no
tocante à forma de ocupação destes. Tudo, os becos labirínticos, o emaranhado de
fios elétricos, o nó nos canos d’água, tudo isso e mais as casas, casebres e barracos
foram durante anos e anos sendo construídos, erguidos e arrumados pelos moradores
que lá residem. A casa, símbolo maior de proteção familiar em qualquer classe social,
nesses bairros é um investimento pensado, fruto do trabalho árduo e cotidiano: uma
poupança equilibrada em tijolos e cimento. Não são raros os casos em que o próprio
proprietário é o responsável pela construção, fazendo o duplo papel de morador e
mestre-de-obras, definindo ele mesmo a estrutura da casa e a dimensão dos cômodos.
A imagem aparentemente caótica, reveladora de uma visível precariedade urbana e
arquitetônica se compararmos com o ordenamento dos bairros abastados dos centros
urbanos, resulta diretamente do trabalho coletivo de seus moradores. Tal diferença
serviu de mote para a constante classificação destes territórios marginalizados como
elementos estranhos à urbe. Seja a favela labiríntica ou o conjunto habitacional que
perde seu ordenamento original a partir da intervenção de cada morador (batendo
uma laje, fazendo um puxadinho ou abrindo uma fresta na parede pra brisa entrar),
estes locais são espaços em transformação, pulsando a vida dos que lá residem. Um
163
visitante pouco familiarizado pode assustar-se com a feição deste resultado. É de
Zuenir Ventura, em Cidade partida, uma definição que entra em completo choque
com a proposta do livro de Santos da Rosa e Guma. Na narração de sua primeira
visita à favela de Vigário Geral, localidade que o jornalista visitou durante os meses
de pesquisa e apuração para a publicação do livro, Zuenir estranha a proximidade
física que o local possui do Centro e a sua distância social: “A meia hora da zona sul,
a trinta quilômetros do centro do Rio, eu estava em outro mundo”(Ventura, 1994, p.
55). Forma-se uma hierarquia entre espaços, na qual o centro surge como referência e
padrão de um tipo de ocupação do solo que deve ser replicado em diferentes partes da
cidade. A análise de Zuenir, “o olhar de fora”, tem como principal movimento
comparar as duas realidades, assustando-se com a precariedade do local visitado:
“Nessa parte central da favela predominam casas de alvenaria; os barracos ali são
raros. Mas as paredes de tijolos aparentes, sem acabamento, dão a impressão de um
bairro inacabado”(Idem, idem). De fato é um bairro inacabado, em processo, cuja
montagem e feitura fica subordinada a possibilidade de recursos dos próprios
residentes. Na leitura de Zuenir Ventura, a falta de “uma mão de tinta”, ou um
“reboco pra selar a infiltração”, ofusca a “parede erguida” e “laje batida”.
A relação que estes moradores possuem com as casas é pautada pela
liberdade, como observa Santos da Rosa no ensaio de abertura do livro: “Morar nas
bordas da cidade é sonhar abrir uma birosca na entrada, colada no portão. Planejar um
comércinho pra aliviar a carga, remediar a prata.”(Rosa, op. cit., s/p). Dessa liberdade
e invenção é construída não apenas a morada, mas uma afinidade própria com o
território/espaço.
164
Como pergunta Santos da Rosa, “O sangue, em cartório se lavra?”. A questão,
resultante da licença poética do autor em diálogo com a imagem capturada e
enquadrada por Guma, sempre irá resultar em uma negativa. Não, somos inclinados a
responder, não há contratos que possam equivaler ao pertencimento construído pelo
paulatino esforço do erguer muros, abrir janelas e pregar portas.
Poesia e fotografia travam uma conversa que tematiza o cotidiano destes
moradores. Texto e imagem tentam enlaçar o dado intrínseco desta realidade,
focalizando não a miséria, mas a ginga dançada para se esquivar dela. No entanto,
sabemos que nem tudo são flores. Pois, morar nas franjas da cidade também
é a zonzeira e o necrotério dos pronto-socorros, açougues de avental branco, com três vigias pra cada médico. É tremer a bela chuva, com esgoto transbordando e se exalando, se convidando pra visitar o mocó. O bueiro metralhando as narinas. Há quem chegue a passar o papel higiênico no ar, querendo limpar a brisa. Córguinhos: a saliva cariada da cidade. Aluga alaga aluga alaga. Tábua, tomba, tauba, taba.(Idem, s/p)
O trecho acima foi retirado do ensaio de abertura, assinado por Santos da
Rosa. Nele o autor faz referência à constante visita das viaturas policiais nestes
bairros, aos alagamentos e às valas a céu aberto, elementos típicos de inúmeras
favelas e bairros de subúrbio. Estes dados não são omitidos, mas foram preteridos
165
pelo olhar dos autores. É uma escolha que determina toda a publicação. Não se trata
de omitir estes dados, mas de buscar oferecer um tratamento diferenciado. Não há a
denúncia ou uma crítica social centrada na produção de um paralelismo entre os
bairros ricos e os territórios periféricos. Ao contrário, fotografias e textos ficam
fixados na margem urbana para lançar luzes sobre os elementos de positivação destes
locais.
Esta forma de representar a periferia pode ser tomada como uma característica
da obra de Allan Santos da Rosa, que o coloca na contra-mão de uma enxurrada de
obras literárias de autores marginais que tematizam a violência através de uma
denúncia. Os contos “Chão” e “Pérola”, publicados na coletânea Literatura marginal:
talentos da periferia, organizada por Ferréz, podem ser tomados como exemplos
disto. Ambos textos ficcionais demarcam cenas de um cotidiano inspirado na
periferia sem, no entanto, assumirem um tom abertamente pedagógico ou doutrinário.
Na publicação, os dois contos quando colocados lado a lado com outros escritos de
autores marginais surgem como elementos de dissonância, instaurando uma ruptura
com o modelo majoritário da Literatura Marginal. Pois, mesmo que o cenário das
narrativas seja a periferia e os personagens marginalizados, a forma como este
cenário se abre para o trânsito dos protagonistas é visivelmente diversa.
Em “Pérola”, conto que narra o trajeto de uma mãe até presídio em que seu
filho está preso, talvez seja o melhor exemplo deste modo de representar pouco usual
entre os autores periféricos. Em poucas páginas Santos da Rosa pontua com uma série
de metáforas a angústia e a ansiedade desta mulher, lançando uma perspectiva que
busca a aproximação da matéria narrada, tornando-a ainda mais humana.
A noite de sexta pra tantos é de balada, de TV, de samba. Pra Pérola é de trampo e expectativa. Sacola nova que semana passada a de lona arrembentou. Trinta cruzeiros de nicotina. O cascalho faz falta mas deixa-lo sem guarida não rima com seu instinto. Salada de cenoura, peixe e um bolo de fubá...que é preferência dele desde de pequeno. Já virou meia-noite, o lance é dormir umas quatro horas , antes de levantar e embarrigar a pia, servir as cumbucas de plástico e embrulhar sem miséria. Ainda decidir se tem apetite pra levar aquilo. “Como o safado teve coragem de me pedir isso?” Deitar que amanhã é dia de sorrisos salgados, na CDP 1 de Osasco.(Rosa, 2005, p. 95)
166
O narrador não estabelece julgamentos, assim como não cabe formar um
exame sobre o que determinou a prisão do personagem. Interessa apenas oferecer a
perpectiva de Pérola. O detento, personagem também central da narrativa, só é focado
pelos olhos da mãe. O movimento construído fica centrado no exame desta relação
familiar. Mas, há um efeito de suspensão, um dado fica latente. A indefinição da
personagem em atender a um pedido do filho, e principalmente censurar tal pedido,
movimenta toda a narrativa. Dessa forma, o conto passa a ser estruturado pelo
percurso da personagem no trajeto de sua casa até o presídio e pelas recorrentes
referências ao pedido do filho. Seguindo a personagem somos levados a um caminho
próprio, percorrido por uma infinidade de outras mulheres: “Terceiro busão. As
meninas lá no fundo, que se conhece da espera, da chuva, da dor gêmea, desse
estopim no peito que nunca estoura.”(Idem, idem). É com este movimento de leveza
ao descrever o peso de uma rotina marcada pela aflição de ter um ente preso que
Santos da Rosa descreve as muitas paradas da “Via Crúcis” de Pérola. Através da
personagem passamos a conhecer o mundo que se forma em torno do presídio:
“Pérola chega, dá abraços, faz um tempo e vai comer alguma coisa no mercado das
kombis remendadas, capengas apoiadas nos botijões, das brasílias e dos chevettes.
Cafés, lanchinhos. Aluga-se sutiã, chinelo, calça, vestido: dois e cinqüenta
cada.”(Idem, ibidem). De dentro das grades o tom empregado na descrição se torna
mais seco, conciso: “Lentamente, avançam. Chega o momento de cruzar a primeira
tranca, mas ainda não há alegria. (...) A revista no cômodo gelado: senhoras, moças,
crianças. Nuas. Serão três cocorinhas”(Idem, p. 98) Conforme adentra os corredores e
passa pelas revistas, Pérola fica cada vez mais apreensiva. O segredo pode ser
descoberto a qualquer momento. O pedido do filho, algo censurável, será revelado.
Falta pouco para o esperado encontro, mas antes é necessário a revista íntima: “A
terceira abaixada e o pânico. Eletricidade bufando, chamando nas veias, no preso da
respirada, na cabeça tonelada. Mas nada sai da vagina. “Podem levantar”.
Alívio.”(idem, Idem). O segredo é parcialmente revelado, ela leva algo para o filho
no interior de seu corpo. Se há críticas morais e julgamentos sobre o pedido do filho,
estes ficam a cargo da própria protagonista, que em uma atitude dúbia, semelhante a
qualquer mãe, acaba cedendo frente à insistência do filho. O narrador apenas informa
167
tais posturas e posicionamentos, mantendo-se também isento de um olhar mais crítico
sobre a conduta dos personagens. Mas o alívio dura pouco, pois, encerrando o conto,
temos a descrição de uma última imagem: “No primeiro clac da tranca de repente
toca o aparelho, cantando dentro da mulher”(Idem, Ibidem). É este o fechamento do
conto, tornando o dado oculto como elemento central da narrativa. Tal encerramento
incide na criação de um efeito de suspensão que possibilita especular o que ocorreu
com a personagem após o celular tocar dentro de seu corpo e perguntar qual o destino
dela depois de descoberto seu plano? O silêncio que impera no final do conto não
limita a fabulação sobre o ocorrido, mas impede que o narrador conduza a descrição
de um evento que favoreceria a construção de um exame moralizante do episódio. A
inexistência de uma descrição destes elementos em sua conformação pormenorizada
favorece que a denúncia receba um novo tratamento, tornando-a ainda mais cáustica.
Santos da Rosa trata dos aspectos relacionados a um cotidiano marcado pela
desigualdade social e dominado por situações de vulnerabilidade sem construir uma
denúncia social que almeja conscientizar o leitor através de um apelo direto a uma
intervenção na realidade retratada. Tal característica pode ser facilmente observada na
peça Da Cabula – Istória pa tiatru, publicada pela Edições Toró, em 2006, e
posteriormente lançada na Coleção Literatura Periférica da Editora Global, em 2008.
A peça, que ainda não teve uma montagem completa, narra a história de uma
empregada doméstica, Filomena da Cabula, que após se demitir do trabalho, em
virtude do patrão negar auxílio ao seu desejo de se alfabetizar, passa a trabalhar
como camelô no Centro de São Paulo. Neste texto, Santos da Rosa apresenta uma
série de simbolismos para representar o cotidiano de uma personagem que trava uma
batalha inglória para conseguir conciliar seu trabalho árduo e cansativo com as tarefas
escolares que recebe no curso de alfabetização. Em um único ato, dividido em 13
cenas, o autor articula uma série de indícios e significados sobre a condição de
vulnerabilidade desta personagem negra e idosa.
No entanto, antes de iniciar a leitura da peça torna-se rentável observar a
relação que tal produção literária mantém com a produção acadêmica do autor. Uma
vez que o tema central de Da Cabula é a alfabetização de jovens e adultos, tema que
também norteou a pesquisa de Mestrado de Allan Santos da Rosa que resultou na
168
Dissertação: Imaginário, Corpo e Caneta: Matriz Afro-brasileira em Educação de
Jovens e Adultos, defendida em 2009. Neste estudo, o autor busca investigar como se
dá a relação entre a matriz afro-brasileira e o processo de Educação de Jovens e
Adultos, observando os possíveis diálogos entre um saber ancestral e a cultura letrada
apresentada nos bancos escolares. Com esta questão norteadora, Santos da Rosa
acompanhou as aulas e ministrou diversas oficinas no CIEJA (Centro de Integração e
Educação de Jovens e Adultos) Campo Limpo, debatendo com o corpo docente e
estudantes a vivência e a memória negra no Brasil, com o desejo de entender mais
sobre as
brechas e seivas da razão sensível, do pensamento racional que se nutre dos outros adubos e colheitas que o corpo como um todo oferece, pralém do monopólio da mente, essa que é dádiva e sanha nossa, mas juntando o namoro dela com os sentidos, com a mitologia, com a experiência.(Rosa, 2009, p. 12)
A peça, nesse sentido, passou a influenciar de forma decisiva o trabalho
acadêmico, servindo de leitmov intelectual para a pesquisa. Em Da Cabula
abundam letras que refletem elementos e vivências sentidos em sala de aula em EJA e que se entrelaçam a objetivos muito semelhantes que trouxe para meus estudos na pós-graduação: compreender e alimentar as abordagens educativas que considerem a força de elementos importantíssimos na história da população afro-brasileira e que podem ser de contribuição inestimável para toda a população que se enreda pelas instituições escolares.(Idem, p. 11)
Mais do que buscar determinar qual olhar emergiu primeiro ao se debruçar
sobre o tema - se o acadêmico influenciado pelos estudos de pós-graduação ou o
poético que coloriu com sutileza o cotidiano de uma personagem negra analfabeta –
resgatar a fala do autor sobre a contribuição que sua obra literária exerceu sobre seu
trabalho acadêmico nos auxilia analisar a obra.
A começar pela escolha do nome da personagem, Filomena da Cabula, temos
uma referência direta a uma ancestralidade afro-brasileira. De acordo com Nei Lopes,
em Kitabu – o livro do saber e do espírito negro-africanos, Cabula “é uma confraria
de irmãos devotados à invocação das almas, de cada um dos kimbula, os espíritos
congos que metem medo. Também se dedica à comunicação com eles por meio da
kambula, o desfalecimento, a síncope, o transe enfim.” (Lopes, 2005, p. 248).
169
Filomena é integrante desta confraria, participa deste ritual religioso que evoca um
espírito através do qual se comunica. No entanto, a comunicação entre personagem e
entidade ocorre de forma diferenciada na ficção de Santos da Rosa. Não é um rito que
conclama o espírito, ou a síncope que favorece o transe, mas é o desfalecimento. A
entrega do corpo da personagem à entidade ocorre quando esta adormece sobre o
caderno escolar. A cena se repete diversas vezes na peça, Filomena chega cansada do
trabalho e tenta iniciar os exercícios passados por sua professora. Sentada, com a
lição amparada em uma pequena mesa, a personagem luta para se concentrar.
Entregue à exaustão, ela adormece e entra em cena uma nova personagem, Flores
Vermelhas, uma entidade que passa a escrever em um gigantesco papiro as palavras
que escaparam de Filomena. A personagem repete em diferença o mesmo gesto que
seus ancestrais realizaram em tempos não muito remotos, devota a uma entidade a
possibilidade de comunicação entre mundos. Através de Flores Vermelhas, Filomena
passa a transitar entre o mundo dos letrados, mesmo estando ainda com os pés
fincados em um mundo sem letras. A utilização de uma pedra de búzios como na
encadernação da primeira edição, publicada pela Edições Toró, reforça a presença da
temática da religiosidade afro-brasileira na peça. O Búzios, peça de um ritual
divinatório presente em diferentes religiões africanas e da diáspora negra, surge na
capa como um amuleto que estrutura a publicação, dando ao livro um suporte
diferenciado. Sua presença não é apenas um acréscimo que ornamenta a apresentação
do livro, mas, sim, é um elemento que entra em diálogo com a estrutura textual da
obra de Santos da Rosa.
170
Conforme mencionei anteriormente, o tema central da peça é o desejo da
personagem alfabetizar-se, dominar a linguagem escrita e poder transitar com
desenvoltura em um mundo controlado por estes signos. A primeira Cena registra o
momento em que os patrões de Filomena debatem sobre esse desejo. Calvino, o
patrão, descrito como grande incentivador da cultura brasileira, expõe sua opinião
após a esposa revelar a vontade que a empregada possui em saber soletrar a palavras:
Adelaide – Calvino, ela quer aprender a ler, quer saber de contrato, viajar em estória, em livro. (O marido mastiga, tom de desdém, fala alto, quer ser ouvido lá longe por Filomena.) Calvino – Como era o nome daquele barão?...Duque?...Que cozinhou as orelhas do escravo fujão...Ca...não, esse era outro. Como que chamava mesmo?...Ah, tu não sabes de nada, fica só de novelinha e butique. Não se interessa pelo conhecimento, pela cultura. (Enche a boca com nova garfada.) Deixa, nome é detalhe. Teve um amigo de vovô, papai que contou: o negão lá queria ler, essa mesma conversa aí...Ele arrancou as pálpebras do cabra, faca afiadinha, não mandou ninguém, não: foi e fez...Ué, não queria ver a luz? Então, ficou arregalado noite e dia.(Rosa, 2008, p. 22).
A partir da fala do patrão de Filomena, o autor instaura uma fissura entre
classes. O resgate da história de um escravo que desejava ser alfabetizado e teve
como punição ficar “arregalado noite e dia” – imagem dominada por simbolismos –
possibilita compreender em qual posição social o autor busca retratar a personagem.
Inconformada com a postura do patrão, Filomena decide pedir demissão. Sem
trabalho e sem residência, a personagem fecha a compra de uma casa em um bairro
de periferia e passa a trabalhar como camelô no centro de São Paulo. Tal mudança é
saudada pela personagem como uma espécie de alforria.
Anteontem a professora ditou sobre as negras forras: saíam da coleira do dono, compravam a própria liberdade e depois a alforria do marido e da filharada. Falou que elas tramavam quilombos na rua, vendendo tudo quanto é coisa, comida no tabuleiro... Eu sou uma negra forra?... É, pelo menos já larguei a íngua daquela casa-grande...(Idem, p.35).
Entre os autores da Literatura Marginal é recorrente o estabelecimento de uma
comparação entre a escravidão e a condição de marginalidade que os negros sofrem
na contemporaneidade. No entanto, em Allan Santos da Rosa a busca por esta
similitude é diferenciada, ocorrendo através de uma fala da própria personagem. É
171
Filomena quem traça os paralelos entre sua condição e a das negras forras,
identificando as possíveis semelhanças. O discurso, neste caso, assume um outro
feitio, não é uma denúncia de uma situação de vulnerabilidade social que busca
amparo em uma estrutura social do passado, mas, sim, é a própria construção
identitária da personagem que se fixa em um modelo de resistência ancestral.
Filomena questiona se ela própria pode ser uma negra forra, tentando primeiro
compreender seu lugar social. Ela não encontra uma resposta assertiva, mas destaca
que ao menos já cumpriu o primeiro ritual para ser uma negra forra: abandonou “a
íngua daquela casa-grande”.
Mas, o texto de Santos da Rosa não estabelece apenas o movimento de retorno
ao passado para a compreensão do presente. Mesmo que a ancestralidade seja um
signo marcante na peça, através de diferentes cenas temos a inserção de um olhar
específico acerca da periferia em sua conformação contemporânea. As elaboradas
demarcações que o autor apresenta ao longo do texto teatral revelam, além da visível
preocupação em coordenar a encenação da peça, sua percepção sobre a cidade e,
especificamente, acerca da vida nos bairros periféricos de um grande centro urbano.
Principalmente nas cenas em que Filomena retorna do trabalho, temos a descrição
pontual das características físicas e sociais do bairro da personagem, indicando com
detalhes o transitar dos passantes, o alarido de vozes e o emaranhado de casas:
Rua da casa de Filomena. Cansadíssima, Filomena se arrasta para sua casa. Caminha entre rapazes jogando bola, que param a movimentação para ela passar. Anda entre postes repletos de pipas e fitilhos, entre moças e senhoras paradas no portão, entre sinuqueiros de boteco. Lua cheia desponta no alto. (Idem, p. 39)
No trecho acima é possível observar com mais clareza a destreza da
linguagem de Santos da Rosa nas diversas marcações que apresenta. O estilo
fragmentado, indicando aspectos de forma isolada, índices que reunidos apresentam
um mosaico que congrega personagens e gestos próprios de um bairro de periferia, é
resultante primeiramente da necessidade de montar a cena. No entanto, o autor busca
também um tratamento da marcação que possibilite a visualização do narrado,
recorrendo a mecanismos literários que se sustentam na prosa, dotando de cores a
descrição da cena. Recurso semelhante pode ser observado no trecho abaixo:
172
Rua da casa de Filomena. Postes e fios elétricos repletos de pipas e rabiolas. Rapaziada com chaves de fenda mexe em motos e automóvel, testando barulhos mais e mais potentes. Um boteco com um pagode malemolente e gente batendo dominó. Moças sapateando, bebendo cerveja e ligadas nos moços das motos. Um homem passa com buzina de mão e cesto anunciado cocadas, sem ganhar atenção. Passa uma patrulha militar, lerda, encarando a todos, bem devagar. Acenam discretos pras moças, oferecem escolta e pra impressionar saem em disparada repentina, cantando pneus.(Idem, p. 47)
De modo semelhante, o autor pulveriza em cena uma série marcações que
almejam dar conta da realidade social de um bairro periférico. Os postes com pipas
presas, os ruídos da rua, a movimentação de pessoas nos bares, as vizinhas no pé da
porta e a visita de uma viatura policial, são esses os elementos que compõem um
cenário inspirado em uma rua de uma localidade marginalizada. Visualizar este
turbilhão de personagens, ações e sons em um palco é uma tarefa delicada, tornando-
se quase impossível encenar as marcações que o autor indica no texto. Mas, por outro
lado, podemos ler Da Cabula como uma novela, retirando do texto teatral a
obrigatoriedade de sua encenação. Por este novo viés, será possível debruçar-se sobre
o exame da própria linguagem do autor, destacando a forma como o mesmo descreve
o cenário e, principalmente, realiza os apontamentos acerca dos movimentos do
bairro em que Filomena reside. Tal possibilidade de leitura não resulta apenas da
impossibilidade de encenação da cena descrita, mas, igualmente, da forma como o
autor pontua as marcações, lançando mão de uma prosa poética fragmentada. Ou seja,
mesmo quando temos as marcações de uma cena com poucos personagens e fixada na
descrição de um episódio específico, o texto de Santos da Rosa se torna poético. A
Cena 8, que retrata Filomena se deparando com o corpo de um jovem negro estirado
na rua de sua casa, apresenta este dado com mais força. Abre a cena uma marcação
direcionada à personagem: “Canto de galo. Na rua, Filomena caminha com seu
brochura e com uma marmita debaixo do braço”. Em poucas linhas o autor determina
com precisão a temporalidade em que a cena ocorre. Em seguida, temos a
apresentação de um monólogo: “Filomena – Bem embaladinha, forrada com muito
jornal e pano de prato, pra não esfriar e nem vazar minha mistura.”. O início é
corriqueiro, um dado do cotidiano da personagem que reforça a sua condição social.
173
Após, o texto apresenta outra marcação, agora com a descrição do cenário e do
encontro de Filomena com o corpo de um jovem negro:
Na vila, ao fundo, o cenário é de postes com pipas enroladas nos fios. Pessoas caminhando rumo ao serviço, ao ponto de ônibus. Filomena se depara com um cadáver adolescente, negro, estirado no chão. Duas pessoas já tinham passado por cima do rapazinho sem lhe dar atenção. Uma outra parou, se benzeu e logo se retirou. Filomena se curva sobre o menino. Filomena – Inda dá pra ver a vontade de sorrir do moleque...isso aqui é buraco de bala...ó o tamaninho da criança...não devia chegar nem no meu cotovelo. (Filomena chora. Vai pro ponto de ônibus. Fala alto) Filomena – Ê rinha tirana, essa vida...Filomena da Cabula devia era lançar lá na Dadivosa uma banca funerária, vender caixão.
A aparente tranqüilidade do início da cena é desfeita pelo encontro com o
corpo do jovem. Se alguns passantes mostram tranquilidade com o episódio, não
dando atenção ao fato de um cadáver estar estirado no chão, Filomena se curva sobre
o menino. A personagem busca analisar o rosto do jovem e fica chocada com a pouca
idade do mesmo.
A reação de Filomena em relação ao ocorrido transita entre a indignação e o
sarcasmo, duas características peculiares da mesma. Santos da Rosa construiu uma
personagem complexa, que apresenta um humor caustico na abordagem das
diferenças e desigualdades sociais. As falas da personagem são sustentadas em um
difícil exercício de elaboração da linguagem que não repousa na simples transferência
dos elementos da oralidade para o texto teatral, mas, sim, na formação de um
experimento que possibilite que Filomena possa se expressar sem a utilização de
recursos que denotem sua posição social. A Cena 5, que apresenta um monólogo da
personagem em conflito com as regras lingüísticas, reforça este aspecto:
Filomena – E essas regras humilhando?...Vou entender nunca...Só serve pra arrochar com a cabeça da gente. Se escrevo “as faca” não tá na cara que é mais de uma faca? Já tô falando “as”. Mas não, tem que meter um S lá no fim da outra palavra, obrigação de complicar. E as letra?! Tem cada praga indecisa: já vim H? Tem vez que silencia, fica lá só de enfeite. Outra hora vem e chia. Depois chega rouco. Dobra a língua. Vich...Nem comento do J e do G, do X, do C...Vou tentar não passar do chão da linha, não tremer o lápis.(Idem, p. 40)
O trecho acima coloca em relevo a atuação do autor enquanto alfabetizador e
pesquisador na área de educação, ofertando à personagem uma possibilidade de fala
174
que expresse sua relação com a escrita. O monólogo proporciona uma compreensão
das regras gramaticais a partir de uma nova percepção. Com um humor refinado, a
cena debate um choque de saberes. A leitura introduzida pela personagem apresenta
uma perspectiva crítica que se fundamenta em um saber popular e não letrado. A não
aceitação das regras, “essas regras que humilham”, não é apenas um dado que reflete
a dificuldade de Filomena em transitar por um mundo de códigos diferenciados. Tal
recusa e crítica revelam a interstício entre o saber letrado e o conhecimento popular,
criando uma espécie de fissura entre dois pólos quase antagônicos. Conciliar estes
espaços, o acadêmico/letrado e o popular/marginalizado é um dos objetivos do
trabalho de Santos da Rosa. Ao nos debruçarmos sobre seus escritos, ações e estudos,
podemos afirmar que se o autor tem obtido êxito. Mesmo ainda existindo
antagonismo entre estes saberes, textos como Da Cabula, Morada e a própria Edições
Toró podem ser tomados elos de ligação entre eles.
5.3 Sérgio Vaz
Geoge Yúdice, em A conveniência da cultura, traça uma instigante análise
acerca da diversificado papel que a cultura pode assumir no mundo contemporâneo,
podendo ser utilizada como produto mercadológico, espaço de investimento
financeiro do setor empresarial e, até mesmo, como mecanismo de integração social
de populações marginalizadas. Em relação a este último uso da cultura, o autor
apresenta uma série de exemplos que corroboram com sua premissa, na qual indica
que um espaço de mobilizição social e cultural pode ser determinante para a criação
de uma nova estrutura urbana em territórios antes marcados pela desagregação
territorial. Dois casos em especial chamam a atenção de Yúdice, o primeiro é Bilbao,
cidade espanhola desgastada pela falência do modelo estrutural pós-industrial e pela
recorrente associação que a cidade possui com o terrorismo. De acordo com o autor,
líderes empresariais e o poder municipal somaram esforços para a criação de um
175
plano de revitalização urbano fundado em uma infra-estrutural cultural que teria
como ponta de lança a instalação do Museu Guggenhim.
Ao investir num museus com a marca distintitva da grandiosidade estilística de Frank Gehry, os líderes da cidade instalaram o magnetismo necessário para atrair atividades que “dariam vida”, citando a frase de Manuel Castells: “Justamente com a inovação tecnológica, uma extraordinária atividade urbana emergiu (...) fortalecendo a tessitura social de bares, restaurantes, encontros casuais na rua etc. Que dão vida ao lugar”(Yúdice, 2006, p. 39)
O outro exemplo é recolhido da realidade brasileira e trata da criação do
Grupo Cultural Oludum em Salvador, na Bahia. Na leitura de Yúdice, movimento
semelhante foi observado no processo de revitalização do Pelourinho, local histórico
de tráfico de escravos que foi transformado em uma espécie de centro cultural a céu
aberto e espaço central do turismo na cidade. Ambos exemplos apresentam como
característica principal a utilização da cultura como válvula motriz no processo de
revitalização de espaços urbanos tido/lidos como deteriorados. Contudo, no caso
específico do Pelourinho, o desenvolvimento cultural que envolveu o famoso grupo
musical afro-brasileiro resultou no irônico deslocamento dos antigos residentes
pobres que habitavam as ladeiras que foram despejados e transferidos para a periferia
da cidade.
De uma forma ou de outra, em ambos os casos temos a utilização de
mecanismos culturais em espaços urbanos específicos que serviram como pontos de
irradiação para a construção de uma nova identidade. Seja em Bilbao que passou a
exibir seu status de cidade que dialoga o arrojamento arquitetônico impulsionado pela
instalação do Museus Guggenheim com a tradição de um mobiliário que traz as
marcas de seu passado, ou no Pelourinho que exalta as tradições afro-brasileiras
através da música e da culinária, a cultura se faz presente como elemento formador de
uma nova visualidade para a cidade.
Os saraus literários realizados em um bar de periferia, na divisa entre as
cidades de São Paulo e Taboão da Serra, podem ser lidos nesta mesma clave, na qual
a cultura emerge como ferramenta para a produção de renovação da localidade.
Nesse sentido, a Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), criada por Sérgio Vaz,
a exemplo das iniciativas citadas acima, também é uma iniciativa que almeja criar
176
uma nova identidade para um espaço marcado pela deterioração urbana. Além disso,
a utilização de um bar como palco dos eventos que o grupo organiza semanalmente
deve ser analisado como um ato de apropriação que dialoga de forma direta com o
mobiliário urbano do em torno imediato. O bar, conhecido como Bar do Zé Batidão,
se transforma em um Centro Cultural que recebe todas noites de quarta-feira um
considerável número de visitantes que se aglutinam para ler, ouvir e sentir poesia. A
atitude demonstra uma forma de atuação política do grupo que utiliza como estratégia
de ação as ferramentas disponíveis. Ao transformar o Bar do Zé Batidão em Centro
Cultural, a Cooperifa revela uma proposta de intervenção política e cultural que busca
uma ligação com a própria localidade.
O Sarau é uma iniciativa que remonta o ano de 2001, quando Sérgio Vaz em
parceria com outros poetas e amigos organizaram um evento tinha como finalidade a
criação de um espaço em que poetas pudessem ler seus escritos. No início, como nos
conta o próprio autor, o grupo não tinha muita clareza do que significava um Sarau:
Enquanto discutíamos sobre o assunto surgiu a palavra sarau, e ninguém sabe por que, até porque a palavra era estranha a todos nós. Acho que todos já tinham ouvido esta palavra, mas conhecer o significado a fundo, acho que ninguém conhecia. Outro dia eu li que no Brasil, entre o final do século XIX e no início do século XX, o sarau era o evento mais elegante da sociedade e só os seres iluminados que tinham gosto por música e literatura e que não precisavam se preocupar com dinheiro, podiam se dar ao luxo de promovê-lo em seus amplos e belos salões. (...) Sem saber de nada disso, eu e o Pezão, numa fria noite de outubro de 2001, criamos na senzala moderna chamada periferia o Sarau da Cooperifa, o movimento que anos mais tarde iria se tornar um dos maiores e mais respeitados quilombos culturais deste país. (Vaz, 2008, p. 89)
Na apresentação de Sérgio Vaz, o Sarau da Cooperifa assume uma função
social específica, o espaço de confraternização de poetas e leitores é associado a um
local de resistência, um quilombo cultural. Esta definição revela um sentido político
mais amplo, indicando o evento como um pólo de construção cultural que almeja
dialogar diretamente com uma memória coletiva.
Contudo, mesmo que ação desenvolvida pelo poeta seja emoldurada por uma
postura política ativa, que assume uma feição de resistência através da prática
cultural, o objetivo do grupo não é a criação de um espaço pedagógico voltado para o
177
resgate de jovens. Tal postura assumida fica mais clara na justificativa que Sérgio
Vaz oferece para a realização de Saraus na Fundação C.A.S.A. (Fundação Centro de
Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), órgão ligado à Secretaria de Estado e
da Defesa da Cidadania do Governo de São Paulo que substituiu a antiga Fundação
Estadual de Bem Estar do Menor (FEBEM):
Povo lindo, povo inteligente, Dias atrás fui fazer umas oficinas/poesias na Fundação Casa (Unidade de Abaeté), dentro do projeto Arte na Casa, coordenado pela Ação Educativa que foi uma das experiências poéticas mais bacana que já tive: a poesia atravessando muros. E a coisa foi tão impactante que nesta segunda-feira os internos e os funcionários vão fazer um sarau nos módulos I e II com poemas produzidos por eles. Não é da hora? Desta vez vou apenas como convidado para assistir o milagre da poesia, mas se deixarem também quero ler um poema e comungar a palavra que anda se espalhando em nossos corações. A Poesia não salva, mas também não mata, e se não liberta, pelo menos ilumina. Eu que sou poeta e vivo no banco dos réus, não tenho moral pra julgar ninguém, e acredito que no Brasil já tenha juízes demais, e infelizmente, justiça de menos. Não vou mudar o mundo, mas o mundo também não vai me mudar. Muito amor, Sérgio Vaz Vira-lata da literatura17
A postura assumida por Vaz rompe com a recorrente utilização da cultura
como mecanismo de intervenção social que possibilita o resgate de jovens em
conflito com a lei ou em situação de vulnerabilidade social. Nos grandes centros
urbanos do Brasil são incontáveis as iniciativas de Organizações Não
Governamentais, ou até mesmo de Programas vinculados a Órgãos Governamentais,
que apresentam diferentes projetos sociais que utilizam a cultura como proposta de
intervenção para “salvar as crianças e jovens” da criminalidade. Seja através da
música, da dança ou da leitura, ou até mesmo do esporte, tais ações apresentam como
premissa a ideia de que seu público alvo, as crianças e adolescentes marginalizados,
estão a um passo do ingresso nas diversas manifestações que a violência urbana pode
assumir. E, dessa forma, a oferta de programas e projetos culturais apresentam uma
17Disponível em http://colecionadordepedras.blogspot.com:80/2009/03/sarau-na-fundacao-casa.html. Acessado em 11 de outubro de 2009.
178
saída, são uma possibilidade de resgate social desta significativa parcela da
sociedade. A leitura e justificativa apresentada por Sérgio Vaz aponta para outra
direção. De acordo com o poeta, a realização de um Sarau dentro dos muros de uma
casa que abriga adolescentes em conflito com a lei não tem como objetivo “salvar” os
participantes. Busca-se com a iniciativa a oferta de uma nova visão de mundo, uma
vez que a literatura “não salva, mas também não mata, e se não liberta, pelo menos
ilumina”. Adentrar os muros da Fundação CASA, que em muitos aspectos se
assemelha a um cárcere, e ler poesias para um grupo de adolescentes que estão
privados de sua liberdade passa a ser lido como um ato que busca valorizar o grupo e
trabalhar a auto-estima dos jovens, criando mecanismos para que eles possam se
expressar através do texto poético. Não se objetiva com isso a formação de novos
poetas, mas, sim, a utilização da poesia como forma de expressão em um grupo
silenciado pelos muros.
A postura assumida por Sérgio Vaz ecoa em diferentes grupos culturais da
periferia que também concebem a criação de iniciativas culturais voltadas
especialmente para jovens de áreas periféricas como ações que objetivam a
valorização da identidade e não apenas como forma de resgate social do público
atendido. Em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, com o título que
reproduz a fala de um jovem ator de periferia “Teatro não é ‘Projeto Social de
Resgate’”, no dia 18 de outubro de 2008, Pierre Santos, integrante do Nós do Morro,
apresenta um discurso que sintetiza a posição assumida pelo grupo teatral do qual faz
parte: “Uma coisa que sempre me incomodou é que o jornalista já vai nos entrevistar
sabendo o que quer ouvir. Por exemplo, que, se eu não fosse do teatro, seria do bicho
(integrante do comércio varejista de drogas)”. A posição do jovem ator rompe com a
leitura dominante que estes projetos recebem da mídia, identificando tais ações como
propostas de resgate da cidadania. A crítica a este tipo de leitura objetiva obliterar a
noção paternalista que orienta a recepção das ações culturais destes grupos e
favorecer a constituição de uma análise dos resultados a partir do mérito artístico. O
teatro, a poesia e a música, nesse sentido, não são vistos como mecanismos de
redenção dos jovens, mas, sim, como instrumentos de profissionalização e expressão,
como define Eugênio Lima, integrante do grupo teatral Bartolomeu: “Nosso discurso
179
é pela auto-representação, pela legitimidade na encenação. Eu não outorgo a ninguém
o direito de contar a minha história. Ninguém vai contar para mim o que é que eu
sinto, o que é ser negro em São Paulo.”
Auto-representação, este é o objetivo da Cooperifa, criar mecanismos para que
os sujeitos marginalizados que participam dos saraus possam se expressar através da
poesia. Soma-se a isto um importante trabalho de construção identitária e valorização
da auto-estima que tem como base uma espécie de lema que é entoado na abertura do
sarau: “Povo lindo, povo inteligente”. Por mais simples que seja a saudação de
abertura, expressões que o próprio Sérgio Vaz utiliza como abertura de seus textos
publicados no blog, a definição criada pelos participantes do evento ataca de modo
frontal o olhar preconceituoso que se direciona à margem. Contra a argumentação de
que nas periferias reside uma massa feia e que necessita da oferta de conhecimento,
os poetas da periferia gritam que são membros de um povo lindo e inteligente.
Tais aspectos reunidos apontam para a construção de um olhar que busca
valorizar a periferia e trabalhar a auto-estima dos participantes, como define Vaz:
Um dos nossos maiores orgulhos não é a formação de novos poetas e escritores, mas a formação de novos leitores escritores. Gente que se apegue ao livro pelo prazer da leitura e ao fortalecimento do senso crítico, não como um meio de vida. E através desse conhecimento adquirir coragem e humildade para voltar à escola, ou ingressar nas universidades, como muitos fizeram na Cooperifa.(Vaz, op.cit., p.168)
A valorização da auto-estima repousa também na criação de estratégias de
reconhecimento do próprio grupo, como o Prêmio Cooperifa, que tem como
finalidade prestigiar os poetas, mas que também “se estendesse para pessoas da
comunidade e para todos aqueles que direta ou indiretamente ajudassem a periferia a
se tornar um lugar melhor para viver.”(Idem, p. 184).
Não apenas o sarau desempenha a função de valorização da auto-estima, a
própria poesia de Vaz apresenta este mesmo aspecto. Seus poemas, que em sua
grande maioria podem ser classificados como aforismos, revelam a presença de um
poeta que tangencia entre a escrita engajada e a reflexão sobre cenas do cotidiano. Os
textos, nesse sentido, não possuem como tema central a periferia e tão pouco são
baseados em uma denúncia da situação de desigualdade social. Mesmo que estejam
presentes em sua poesia questões relativas à violência, racismo e marginalização,
180
Sérgio Vaz também versa sobre questões relativas à vida conjugal, elege musas de
inspiração e se debruça sobre aspectos que não estão relacionados diretamente à
periferia, resultando em uma obra múltipla. Em Colecionador de pedras, livro que
reúne a produção do autor ao longo de vinte anos, tal característica fica mais evidente
ao congregar textos com temas díspares em uma mesma publicação. No entanto,
quando aborda as questões sociais relativas à periferia, o autor apresenta um humor
peculiar, como em “Viagem”:
Quatro jovens Morreram na chacina Do fim da rua. Conforme a notícias, Dois deles tinham passagem. Os outros dois Foram assim mesmo... Clandestinamente.(Vaz, 2007, p. 62)
A utilização da ironia e a inserção de um dado inesperado que instaura um
novo rumo no poema também podem observados em “Pé de pato”:
Bruno matou a mãe matou o pai os irmãos os avós os vizinhos. Matou todo mundo de saudade Quando foi pra faculdade(Idem, p. 92)
A escrita de Vaz é claramente orientada pela poesia modernista,
predominando o verso livre. Além disso, o autor apresenta diferentes citações e
referências a poetas do nosso modernismo, como Carlos Drummond de Andrade,
Manoel Bandeira e Cecília Meireles. O próprio título da publicação, “Colecionador
de pedras”, pode ser lido como uma homenagem ao clássico poema “No meio do
caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. O poeta periférico, seguindo os passos
do poeta canônico, também se depara com pedras no meio de seu caminho e a melhor
alternativa é colecioná-las. O cânone da poesia brasileira surge como inspiração do
poeta e também como objeto de homenagem, como podemos identificar no poema
181
“Banquete lírico”, um pequeno jogo com ar infantil que relaciona o desejo de
consumir poesia à vontade de comer:
Ontem faminto Almocei um livro de Neruda Com molho lírico à Cecília, Bebi toda a poesia do Quintana E, de sobremesa, Drummond – delícia! Ainda belisquei uns sonetos do Vinícius Enquanto esperava o jantar, Clairce. De nada adiantou: A fome só fez aumentar. (Vaz, 2007, p.41)
No entanto, a maior aproximação que o autor ensaia com a tradição literária é
a realização da Semana de Arte Moderna da Periferia, com uma explicita alusão à
Semana de 22. O evento, organizado em novembro de 2007, reforça o caráter de
apropriação cultural do grupo e a busca de uma relação dialógica entre as
manifestações culturais marginalizadas
com as hegemônicas. A noção norteadora
da Semana é a criação de um espaço para
a veiculação das produções culturais de
artistas da periferia dentro da própria
periferia. Em semelhança à Semana de 22,
o material de divulgação do evento
também se baseia na apresentação de uma
árvore. Mas, a apropriação que o grupo
realiza do símbolo insere uma sutil
diferença, no lugar da árvore seca e com
poucos galhos, como criado por Di
Cavalcanti, os artistas periféricos
apresentam um baobá frondoso e repleto
de frutos. A utilização do vermelho para demarcar os frutos favorece uma associação
ao sangue, símbolo máximo da violência urbana que assombra as periferias. De uma
forma ou de outra, a imagem do cartaz dialoga diretamente com o sentido que o
evento buscava ofertar às manifestações culturais da periferia, compreendendo estes
182
espaços marginalizados como pólos de uma rica produção cultural que recebe pouca
visibilidade.
Pastiche e apropriação, esses são os conceitos que podem ser utilizados para
interpretar o evento. Pois, conforme explica Sérgio Vaz, o grupo reunido na
idealização e realização da Semana tinha como principal norte a postura política e
artística assumida pelos intelectuais paulistas de 1922: “comer a arte enlatada
produzida pelo mercado que nos enfiam goela abaixo, e vomitar uma nova versão
dela, só que desta vez na versão da periferia. Sem exotismos, mas carregada de
engajamento”(Vaz, 2008, p. 235). O sentido antropofágico ainda se faz presente e
surge como ato norteador da postura dos artistas, mas o diálogo que se almeja
estabelecer é outro. Para os poetas da Cooperifa não é a relação entre a cultura
nacional e a cosmopolita que emerge como elemento de debate do fazer artístico. Ao
contrário, o foco se torna local e possui um endereço específico: os bairros
marginalizados, as ladeiras das favelas e os conjuntos habitacionais. A antropofagia
irá orientar o contato desse artista periférico, oriundos destes espaços, com a arte
produzida no centro.
Além da proposta de evento e da utilização da antropofagia como conceito
norteador das ações, Sérgio Vaz também produziu um Manifesto da Antropofagia
Periférica. Em semelhança aos documentos elaborados por grupos de vanguarda, o
texto assinado pelo coordenador da Cooperifa também é baseado no tom assertivo
direcionado em dois movimentos: a favor e contra.
Manifesto da Antropofagia periférica A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros. A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula. Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha. A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.
183
Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do cinema real que transmite ilusão. Das Artes Plásticas, que, de concreto, quer substituir os barracos de madeiras. Da Dança que desafoga no lago dos cisnes. Da Música que não embala os adormecidos. Da Literatura das ruas despertando nas calçadas. A Periferia unida, no centro de todas as coisas. Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala. Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala. É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que armado da verdade, por si só exercita a revolução. Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona. Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural. Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado. Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles ? “Me ame pra nós!”. Contra os carrascos e as vítimas do sistema. Contra os covardes e eruditos de aquário. Contra o artista serviçal escravo da vaidade. Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada. A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor. É TUDO NOSSO! Sérgio Vaz Cooperifa (Vaz, 2008, 246-250)
A antropofagia oswaldiana é agora reeditada, mas repetida em diferença. Na
versão periférica do Manifesto não cabe para interrogar: “Tupi or not tupi - This is the
question”. Pois, não é ponto de debate aventurar-se no questionamento sobre a
linguagem e a acomodação de ideias e propostas estéticas em solo nacional. No
entanto, Sérgio Vaz realiza uma espécie de homenagem a este trecho do Manifesto
assinado por Oswald ao escrever: “Miami pra eles? “Me ame pra nós!”. O jogo que o
autor estabelece é semelhante ao movimento criado por Oswald, ambos utilizam
princípios de uma tradução cultural para reforçarem os aspectos que defendem em
seus manifestos. Sérgio Vaz aponta sua crítica ao consumo de uma cultura e de uma
arte pausterizada e enlatada, sem engajamento.
184
No Manifesto é possível identificar o desejo de compreensão da cultura
popular, ou melhor, a periférica, por parte destes autores da margem. Predomina neste
aspecto uma percepção essencialista da cultura, observando os artistas de periferia
enquanto produtores uma arte própria, não contaminada pelas estruturas
hegemônicas. Além disso, a escrita, o fazer literário, assume uma feição política de
intervenção direta na realidade social e cultural. “A Arte que liberta não pode vir da
mão que escraviza.”, a sentença, presente duas vezes no Manifesto, reafirma o claro
intento em elaborar uma arte engajada e, principalmente, fora dos espaços
hegemônicos de poder, local por excelência do predomínio das forças políticas que
atiraram estes poetas periféricos à margem.
“Ser Poeta não é escrever poemas, é ser poesia”, escreve Sérgio Vaz. Esta é
uma das melhores definições que podemos oferecer ao próprio Sérgio Vaz. Seu
trabalho apresenta uma interessante combinação de ativismo social e criação literária,
no qual estes aspectos estão intrinsecamente ligados. Sua postura política é crítica e
assertiva ao denunciar a marginalização cultural que atinge a massa residente nos
bairros pobres de São Paulo, mas, por outro lado, sua escrita poética, combinada com
os projetos que desenvolve, revela um posicionamento romântico em suas ações,
indicando nos pequenos gestos a concretização de uma grande mudança. O simples
ato de enviar aos céus um pequeno fragmento poético preso em um balão de gás, na
visão de Sérgio Vaz, é o ato máximo de liberdade da escrita e de contato da poesia
com o público. Este pequeno gesto repetido por cinco centenas de pessoas em frente a
um bar de periferia pode também orientar uma nova visão sobre a vida das pessoas
que lá residem. “A poesia no ar”, nome que essa performance recebeu, corta um céu
negro no movimento de expansão de um grupo de poetas que faz parte de um “Povo
lindo” e de um “Povo inteligente”, como destaca Vaz: “A poesia no ar é só o aviso
que o nosso pequeno exército marcha corajosamente sobre a terra, contra tudo e
contra todos, mas sem esquecer o sorriso no rosto e os punhos cerrados. Somos nós
por nós”(Idem, p. 227).
185
3.4
Marcelino Freire (uma possibilidade)
“Um jabuti do povo”, assim é saudado Marcelino Freire na primeira página do
jornal Boletim do Kaos, publicação idealizada e coordenada por Alessandro Buzo,
fazendo uma referência ao Prêmio Jabuti concedido ao autor no ano de 2006, na
categoria Conto por Contos Negreiros. A denominação dada pelo jornal, uma
publicação mensal destinada a veiculação de matérias sobre literatura e cultura da
periferia, busca uma aproximação do escritor pernambucano aos espaços
marginalizados. Importante reforçar que o intento da manchete não é forçoso e que de
fato Marcelino Freire trilhou um percurso de produção que se assemelha aos dos
autores da Literatura Marginal. Esta espécie de homenagem ao autor não fica restrita
apenas ao jornal editado por Alessandro Buzo. Podemos destacar também o Prêmio
Cooperifa lhe foi concedido pelos poetas participantes do Sarau da Cooperifa, sarau
este que Marcelino frequenta com certa regularidade. Estes dados podem ser vistos
como pontos de interseção entre autor e os escritores periféricos, que apontam para
uma possível similitude que é reforçada pela recorrente declaração do próprio
Marcelino Freire ao afirmar que também é “Literatura Marginal”. Ou seja, também
faz parte desta filia que se firma enquanto movimento literário no desejo de inserção
em um espaço tradicionalmente ocupado por uma elite letrada.
Tal desejo de afirmar uma semelhança é facilmente observado na escolha do
plano temático dos contos de Marcelino Freire, que de forma freqüente aborda
personagens e ambientes recolhidos de um cotidiano marcado pela marginalização.
No entanto tal proximidade se restringe ao plano temático, as formas adotadas pelo
autor para dar vida aos seus personagens marginais podem ser tomadas possibilidades
que apontam em um sentido inverso. O exemplo mais profícuo para pensarmos nestas
diferenças é o livro Contos negreiros.
Sem propor mocinhos e vilões explicitamente, Marcelino Freire compõe um
sarcástico mosaico de nossa sociedade ao focar personagens negros em seu livro
Contos negreiros, publicado em 2005. Através de seus dezesseis contos – ou cantos,
186
como o próprio autor os denomina – travamos contato com breves relatos, quase
instantâneos, que revelam a situação de exclusão vivenciada por uma parcela
significativa de nossa população. O olhar de Marcelino Freire privilegia a encenação
dos conflitos sociais, avultados pelo recorte racial, nos espaços simbólicos centrais. O
conto “Curso Superior”, no qual um jovem negro narra seu temor ao ingressar na
universidade, pode ser tomado como exemplo deste empenho em construir uma
observação da situação do negro em uma espaço antagônico, revelando contrastes e
diferenças:
O meu medo é entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom de matemática fraco no inglês eu que nunca gostei de química geografia e português o que é que eu faço agora hein mãe não sei.
O meu medo é o preconceito e o professor ficar me perguntando o tempo inteiro por que eu não passei por eu não passei por que eu fiquei olhando aquela loira gostosa o que é que eu faço se ela me der bola hein mãe não sei.(Freire, 2005b, 97)
O discurso do personagem se estrutura na afirmação de uma diferença que
potencializa o preconceito e a exclusão. O que se denuncia é justamente a não
diluição destas marcas. Ou seja, independentemente do espaço e do lugar ocupado,
este personagem sempre será segregado, como o término do conto evidencia:
O meu medo é a situação piorar e eu não conseguir arranjar emprego nem de faxineiro nem de porteiro nem de ajudante de pedreiro e o pessoal dizer que o governo já fez o que pôde já pôde o que fez já deu sua cota de participação hein mãe não sei.
O meu medo é que mesmo com diploma debaixo do braço andando por aí desiludido e desempregado o policial me olhe de cara feia e eu acabe fazendo uma burrice sei lá uma besteira será que eu vou ter direito a uma cela especial hein mãe não sei. (ibidem, 98)
A forma adotada por Marcelino Freire para encenar estas convergências entre
espaços e culturas rompe com a opção de construção de um reflexo mimético das
situações cotidianas, prevalecendo o enlevo de uma escrita marcada pela
musicalidade de uma oralidade negra. É igualmente nesta clave que Freire propõe a
denominação de seus escritos como Cantos, estabelecendo uma referência à forma
rítmica de sua escrita, como podemos observar no fragmento abaixo:
Zé, essa é boa. O que danado a gente vai fazer em Lisboa? Bariloche e Shangri-lá? Traslados para lá. Para cá. Travessia de barco pelos Lagos
187
Andinos? Nunca tinha ouvido falar em Viña Del Mar. Valparaíso. A gente não devia sair do lugar.
Quem já viu se aventurar na Ilha do Cipó? Ilha do Marajó? Itacaré? Fugir de dentada de jacaré? O que você quer, homem? Sem dinheiro, chegar aonde? Não tem sentido. Oklahoma, nos Estados Unidos. É delírio. Peregrinar até as múmias do Egito (Freire, op.cit, 67).
O trecho compõe o início do conto/canto “Caderno de Turismo”. Nele
podemos observar a tentativa do autor em estruturar um texto em prosa que possua a
cadência de uma escrita poética com uma métrica regular. A oralidade ganha ares de
musicalidade, o canto surge como única maneira de expressar um cotidiano
protagonizado por personagens historicamente excluídos do domínio da escrita.
Marcelino Freire adota uma linguagem que reflete e realça a presença do negro em
nossa cultura, conciliando no exercício da escrita a musicalidade popular com a
cultura letrada. Ou seja, o autor aceita e apropria-se da convenção que concebe a
música como uma forma genuína de expressão deste grupo. No entanto, não se trata
de construir um discurso essencialista da cultura, mas, sim, de oferecer ao negro
novas formas de resistência. Em Contos negreiros, presenciamos a busca do autor por
uma alteridade através da forma narrativa e da linguagem. Aos personagens de Freire
parece ter restado somente a possibilidade de cantar, narrar:
Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar para a mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta? (ibidem, 80).
O fragmento foi recolhido do conto/canto “Totonha”, nome da personagem
que estrutura um discurso centrado na negação à cultura letrada. Decerto, causa
estranheza chocar-se com uma fala que se opõe ao saber escolar, identificando-o
como um ato de subordinação. “Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O prefeito
que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber ler o que assinou. Eu é que não vou
baixar a minha cabeça para escrever. Ah, não vou (ibidem, 81).”
Não baixar a cabeça é resistir ao domínio de um saber branco? Manter-se fora
da cultura letrada é preservar um determinado saber ancestral? As respostas para estas
questões não são afiançadas pelo autor e muito menos pela personagem. Contudo, é
188
perceptível a presença de uma dualidade, como podemos observar na passagem
abaixo, retirada do mesmo conto:
Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso.Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba? (ibidem, 79).
A forma adotada pelo autor para tematizar o conflito de saberes, privilegiando
o discurso direto, rompe com qualquer traço paternalista e, igualmente, não pode ser
caracterizado como simples denúncia. Presenciamos a criação de um discurso que se
sustenta na afirmação da diferença da personagem, seu analfabetismo ganha status de
resistência. Ao estruturar o conto a partir da fala da própria personagem, Freire
instaura uma nova dimensão do tema, oferecendo aos leitores uma percepção que se
quer próxima do objeto representado, neste caso, uma mulher negra que reside no
Vale do Jequitinhonha. A utilização do discurso direto visa alcançar o objeto, busca
representar este Outro a partir de seu próprio referencial. O processo de construção
discursiva de Freire almeja produzir uma fala que objetiva compreender as situações
narradas a partir da lógica do sujeito representado.
Recurso semelhante é adotado no conto/canto “Nação Zumbi”, texto que
relata a amargura de um homem ao ver desfeito o seu plano de vender o próprio rim.
“E o rim não é meu? Logo eu que ia ganhar dez mil, ia ganhar. Tinha até marcado
uma feijoada pra quando eu voltar, uma feijoada. (...) E o rim não é meu, saravá?
Quem me deu não foi Aquele-Lá-de-Cima, meu Deus, Jesus e Oxalá?”(ibidem, 53).
Ao focar a narrativa a partir do olhar do homem que deseja comercializar seus órgãos,
Marcelino Freire abandona os possíveis traços demagógicos que poderiam aflorar no
texto ficcional para, em seu lugar, formar uma outra compreensão para o evento
representado. Ou seja, somos levados a experimentar a situação desumana que é
narrada a partir da percepção do principal protagonista do ato. A opção por este foco
narrativo amplia a sensação de amargura presente no relato, posto que vivenciamos a
partir da leitura do relato a sensação de total exclusão sofrida pelo personagem.
Por que não cuidam eles deles, ora essa? O rim não é meu ou não é? Até um pé eu venderia e de muleta eu viveria. Na minha. Um olho enxerga pelos dois ou não enxerga? Se é pra livrar minha barriga da miséria até
189
cego eu ficaria. Depois eu ia ali na ponte, ao meio-dia, ganhar mais dinheiro. Diria que foi um acidente, que esses buracos apareceram de repente, em cima do meu nariz. Quem quer ver a agonia de um doente, assim, infeliz, hein, companheiro?(ibidem, 54)
Na perspectiva adotada por Marcelino Freire, o corpo, este espaço exíguo de
exercício do poder, surge não apenas como uma moeda de troca comercial, mas,
principalmente, como uma esfera que reproduz estruturas sociais excludentes. Além
de tematizar uma situação de extrema miséria, o autor explora a falta de domínio do
personagem sobre o seu próprio corpo, oferecendo uma compreensão para o narrado
duplamente violenta, como podemos observar no desfecho do conto: “Meu rim ia
salvar uma vida, não ia salvar? Diz, não ia salvar? Perdi dez mil, e agora? A polícia
na minha porta, vindo pra cima de mim. Puta que pariu, que sufoco! De inveja, sei
que vão encher meu pobre rim de soco (ibidem, 55).”
Se a forma narrativa de Freire não favorece a construção de uma denúncia da
miséria sofrida por negros, o desfecho do conto faz emergir uma crítica maior que só
é perceptível por ser encenada por um discurso ficcional proferido pelo próprio
sujeito que a vivencia. A opção por utilizar o discurso direto em contos que
tematizam situações limites produzidas pela miséria é, de certa forma, recorrente em
Marcelino Freire. É perceptível o empenho do autor em estruturar um discurso que se
quer próximo do objeto, abandonando uma posição de observador para, em seu lugar,
experimentar, mesmo que de forma ficcional, a percepção dos sujeitos
marginalizados. No conto “Muribeca”, do livro Angu de Sangue, coletânea de contos
publicada em 2000, a utilização deste procedimento igualmente favorece a percepção
das condições de miséria e exclusão a partir da lógica do Outro. É nesta clave que o
autor narra o cotidiano de uma catadora de lixo assombrada com a possibilidade de
perder sua única fonte de renda: os restos retirados de um aterro sanitário.
Lixo? Lixo serve pra tudo. A gente encontra a mobília da casa, cadeira pra pôr uns pregos e ajeitar e sentar. Lixo pra poder ter sofá, costurado, cama, colchão. Até televisão.
É a vida da gente o lixão. E por que é que agora querem tirar ele da gente? O que é que eu vou dizer pra crianças? Que não tem mais brinquedo? Que acabou o calçado? Que não tem mais história, livro, desenho?
190
E o meu marido, o que vai fazer? Nada? Como ele vai viver sem as garrafas, sem as latas, sem as caixas? Vai perambular pela rua, roubar pra comer? (Freire, 2005a, 23)
Expresso na excludente letra de fôrma, o discurso da personagem fere a
dignidade humana ao revelar aspectos degradantes da condição de miséria. No
entanto, como observa João Alexandre Barbosa,
Marcelino Freire evita traços demagógicos de uma denúncia porque o que se denuncia, a condição miserável de quem encontra no lixo uma estratégia de sobrevivência, não é um objeto distanciado, mas um mundo de atividades que se parecem com as humanas e por onde ainda é possível reconhecer a existência de seres que restaram por entre as desigualdades sociais (Barbosa, 2005, 14).
Na leitura de João Alexandre Barbosa, por não ser um objeto distanciado, a
personagem possibilita a compreensão da temática abordada no conto a partir do seu
olhar, chocando o leitor com a informação de que há uma complexa rede de
indivíduos que sobrevivem neste espaço de degradação.
Marcelino Freire, ao abandonar qualquer traço paternalista e demagógico,
assume uma postura crítica e almeja dotar de cores personagens e situações que
outrora se apresentavam de forma monocromática, quase estéril. Não se trata de se
colocar como porta voz de grupos minoritários, mas, sim, de aceitar o desafio de
estruturar um discurso que busque a aproximação com estes sujeitos esquecidos e
silenciados. Os contos de Freire, principalmente os que compõem o projeto Contos
negreiros, oferecem uma resposta afirmativa aos questionamentos elaborados por
Margery Fee, no artigo “Who can whrite as Other?”:
(...) podem os grupos majoritários falar como se fossem as minorias? Os brancos como se fossem negros ou pardos, os homens como se fossem mulheres, os intelectuais como se fossem operários? Caso afirmativo, como podemos diferenciar juízos preconceituosos e reacionários, generalizações aproveitadoras, romantizações pendendo ao estereotipo, tipificações indulgentes e visões imparciais e transformadoras? (1995, 242 – tradução nossa)
Ao evidenciar que qualquer fala sobre um grupo distinto significa, antes de
tudo, um posicionamento – negativo ou afirmativo – do intelectual frente à camada
que deseja representar, Margery Fee estabelece que a única forma possível de
alcançarmos estes sujeitos é através da oferta da faculdade discursiva, dando voz aos
191
historicamente silenciados. A argumentação de Margery Fee se sustenta na
observação de que qualquer discurso acerca do Outro será estruturado a partir do
referencial do produtor do discurso.
No entanto, Fee se esquece de que é possível criar estratégias para transformar
estas subjetividades, que emergem através do ato discursivo, em principal
sustentáculo do processo de aproximação do produtor discursivo com o Outro a ser
representado. Este é o recurso utilizado por Marcelino Freire para abordar situações
limites da miséria a partir de um viés que se quer próximo ao objeto. O jogo
empreendido por Freire se baseia na constante tentativa de se colocar no lugar do
Outro.
O resultado deste desejo de mudança de foco é, de certa forma, a construção
de um texto que propõe um novo molde para as questões abordadas. O conto “Solar
dos Príncipes” é, talvez, um dos melhores exemplos deste jogo realizado pelo autor.
No conto, é narrada de forma irônica a tentativa, por parte de um grupo de moradores
do morro do Pavão, de realização de um documentário sobre a classe média. O grupo
abandona a silenciosa posição de objeto para, em seu lugar, assumir o papel de
produtores do discurso. Encenam, nesta perspectiva, um movimento semelhante ao de
diversos grupos culturais marginais - como Nós do Morro, Central Única das Favelas
e Observatório de Favelas. No entanto, a subversão de papéis é maior. Estes não
apenas assumem a própria voz discursiva, mas a apontam no sentido oposto, indo de
encontro a um espaço estranho a sua vivência. “Quatro negros e uma negra pararam
em frente deste prédio”(Freire, 2005b, 23) Não são mais os documentaristas de classe
média que ao subirem o morro nos revelam o Outro, e, sim, são os cineastas negros,
moradores do morro do Pavão, que almejam registrar o cotidiano da classe média. “A
idéia é entrar num apartamento do prédio, de supetão, e filmar, fazer uma entrevista
com o morador” (ibidem, 24). A proposta do grupo de cineastas negros é semelhante
a dos diversos documentaristas que repetidamente invadem os morros da cidade.
Como argumenta um dos participantes do grupo: “A idéia foi minha, confesso. O
pessoal vive subindo o morro para fazer filme. A gente abre as nossas portas, mostra
as nossas panelas, merda”(idem). Muda-se o ator e o cenário, mas o projeto é o
mesmo:
192
O morro tá lá, aberto 24 horas. A gente dá boas-vindas de peito aberto. Os malandros entram, tocam no nosso passado. A gente se abre como um passarinho manso. A gente desabafa que nem papagaio. A gente canta, rebola. A gente oferece a nossa coca-cola. Não quer deixar a gente estrear o porra do porteiro. É foda. Domingo, hoje é domingo. A gente só quer saber como a família almoça. Se fazem a mesma festa que a nossa. Prato, feijoada, guardanapo (ibidem, 25).
Em síntese, como exemplifica um dos personagens, o projeto do grupo é
apenas saber “como é viver com carros na garagem, saldo, piscina, computador
interligado. Dinheiro e sucesso. Festival de Brasília. Festival de Gramado.” (idem)
Buscam a mesma aproximação através do olhar que, historicamente, foi
protagonizado pelos intelectuais do “asfalto”, e, no entanto, encontram um espaço
refratário a esta aproximação. Olhar que nega a visibilidade ao Outro.
Impedidos de entrarem nos apartamentos e conhecerem os moradores do
edifício, o grupo opta por documentar o cotidiano da classe média a partir da entrada
do prédio. Alocados na rua, os cineastas negros dão início à produção do
documentário. Mas os condôminos não aceitam a presença dos documentaristas, e,
refugiados em seus lares, recorrem à polícia para expulsá-los: “Começamos a filmar
tudo. Alguns moradores posando a cara na sacada. O trânsito que transita. A sirene da
política. Hã? A sirene da polícia. Todo filme tem sirene de polícia. E tiro. Muito tiro”
(ibidem, 26). Em “Solar dos Príncipes”, os moradores do prédio de classe média não
aceitam a presença física daqueles que ensaiam descortinar a privacidade burguesa. O
que está em jogo é preservar-se do Outro, impedindo que o convívio e,
principalmente, sua própria imagem seja desvelada sob um olhar que busca investigar
seu cotidiano. Marcelino Freire, ao propor a mudança de foco e papéis que o conto
encena, nos ensina que deter o privilégio de fala, em uma sociedade discursiva, é,
antes de tudo, possuir a possibilidade de controle sobre a construção de sua própria
imagem. Subverter esses papéis sociais, mesmo que ficcionalmente, favorece a
criação de novos antagonismos e aponta para novas formas de intervenções
discursivas que podem ser protagonizadas por estes sujeitos silenciados.
Em Rasif, mar que arrebenta, a mais recente publicação do autor, lançado em
2008, Marcelino Freire investe novamente na busca por um exercício de linguagem
193
que exprima a especificidade da oralidade, oferecendo aos leitores uma proposta
literária que retoma os elementos firmados na elaboração de Contos negreiros. No
entanto, em um sentido oposto ao operado em sua publicação anterior, não há uma
proposta temática unificadora dos contos. O que é preservado como marca de unidade
é uma voz autoral que em nada é alterada ao travar contato com personagens e
situações extremamente diversas. Resulta desse exercício contínuo de experimentação
da linguagem o esvaziamento dos próprios personagens. Se em Contos negreiros a
própria linguagem que o autor constrói possibilita que os personagens possam
expressar-se sem a oferta de uma voz exterior ao narrado, em Rasif o movimento é
oposto. Os personagens são agora marionetes subordinadas à destreza de uma
expressão literária que conjuga com leveza aspectos da oralidade e da escrita. A
potência do experimento ofusca as histórias e, na maioria das vezes, os personagens
se tornam efêmeros. Os contos, quase todos estruturados em primeira pessoa, exibem
personagens que se desnudam aos olhos do leitor. O movimento operado para a
realização do ato de descortinar angústias e desejos, não é fruto de um olhar que
mergulha no âmago dos personagens, mas, sim, decorrente de um desprendimento,
uma urgência em relatar sua vivência. Exibindo-se aos olhos do leitor, os personagens
revelam esboços de histórias, fragmentos narrativos retirados de um cotidiano
banalizado. Durante o percurso da leitura esses personagens surgem e se abrem,
tornando-os invasores e nós, leitores, invadidos. “O meu homem-bomba”, conto
narrado por um homem que percorre o mundo em busca de um companheiro, é
representativo desse movimento. Em um tom quase confessional, o narrador relata
seu encontro com um homem-bomba: “Sentamos juntos no mesmo ônibus. E eu que
não consigo contar como aconteceu milagre assim. Homem de Ramataim, filho de
Jeroam. No mesmo assento em que Matusalém viveria por cem anos. Meu amor
viveria ali. Para morrer e matar.”(Freire, 2008, p.32).
Nos esparsos momentos em que é realizada uma apresentação narrativa mais
detalhada dos personagens, permitindo a oferta de diferentes pontos de vista sobre o
tema analisado, o jogo estabelecido entre perspectivas antagônicas favorece a
ampliação dessas subjetividades, como ocorre no conto “Da Paz”. Narrado em
primeira pessoa, “Da Paz” é um conto curto centrado em uma personagem que teve
194
seu filho assassinado. Com apenas três páginas, o conto não favorece um mergulho
detalhado na observação da situação extrema do infanticídio, mas, por outro lado, se
concentra na resistência da personagem em participar de eventos em favor da paz:
“Não vou a nenhum passeio. A nenhuma passeata. Não saio. Não movo uma palha.
Nem morta. Nem que a paz venha aqui bater na minha porta. Não abro. Não deixo
entrar. A paz está proibida. Proibida. A paz só aparece nesses horas. Em que a guerra
é transferida.”(Freire, 2008, p. 26). A recusa da paz, representada na encenação de
atos públicos, é fundamentada pela personagem no questionamento sobre a relação
entre as passeatas e a morte de seu filho: “Quem vai ressuscitar o meu filho, o
Joaquim? Eu é que não vou levar foto do menino para ficar exibindo lá embaixo.
Carregando na avenida a minha ferida. Marchar não vou, muito menos ao lado de
polícia.” (Idem, p. 27). A personagem rejeita o ato esperado, não aceita a marcha
muda, em silêncio, tornando pública sua dor, ao contrário, sua vontade é “sair
gritando. Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus. Matando todo mundo. Eu matava
todo mundo, pode ter certeza. Mas a paz é que é culpada. Sabe? A paz é que não
deixa.(Idem, p. 28). Confinada entre a recusa do ato esperado e a impossibilidade da
atitude desejada, a personagem segue um terceiro fluxo, guardando a angústia de
uma situação limite para si, longe da encenação da paz.
Em “Maracabul”, conto narrado por uma criança que sonha em receber no
Natal, das mãos do Papai Noel, uma arma de fogo, Marcelino Freire foca a narrativa
no exame das contradições de uma criança da periferia: “Toda criança quer um
revólver. Toda criança quer um revólver para brincar. Matar os amigos e correr.
Matar os índios e os ETs. Matar gente ruim.(Idem, p. 41) A arma de fogo, símbolo da
morte, não entra em contradição com o mundo infantil. Não é um choque, mais, sim,
acomodação. O revólver se torna lúdico, mantendo sua função, mas, agora, em um
sentido mais vasto, servindo também para matar os elementos do mundo infantil:
índios e ETs. É nesse confronto que o conto passa a ser estruturado, lidando com a
morte de uma infância e a infância em contato com a morte. Ambos espaços são
invadidos, contaminando-os. A contradição maior, representada pelo pedido de um
revólver ao Papai Noel, é repetida inúmeras, reafirmando um sonho infantil em
contato com a violência: “Papai Noel vai entender o meu pedido. Quero um revólver
195
comprido, de cano longo.”(Idem, p. 41). “É Natal. Papai Noel daqui a pouco chegará.
Trará a arma. Nova, calibrada. De meter medo. Que tal uma pistola
automática?”(Idem, Ibidem). O desfecho da narrativa reincide no confronto entre os
dois pólos: “Mamãe, este ano eu fui um bom menino, mas ano que vem quero ficar
rico. E ter um carro-forte, um carro do ano. Juro que não estou brincando. Minha vida
de bandido tá só começando. Isso se Papai Noel não chegar atirando.”(Idem, p. 43). A
imagem que encerra o conto potencializa a ideia central da narrativa, tornando
também o símbolo infantil em um elemento contaminado pelo cotidiano de violência.
O exame detalhado das últimas publicações de Marcelino Freire revela o
empenho do autor em formar uma linguagem literária que se quer próxima da fala
popular. Desde a publicação de Angu de sangue, Marcelino vem formando um extrato
produtivo que se fundamenta na incessante busca de um experimento literário que
seja capaz de abarcar a singularidade de personagens que vivenciam situações limites
em seu cotidiano Se em Angu de sangue tal característica despontava como uma
marca autoral, revelando a gêneses de um discurso literário inovador, em Contos
negreiros tal elemento surge como recurso formador de seu projeto literário. Além do
eixo temático, centrado na apresentação de situações vivenciadas por personagens
negros, Contos negreiros também possui como característica a formação de uma
linguagem literária baseada em uma musicalidade rítmica, resultando em uma prosa
permeada por rimas de uma cadência popular. Na leitura de Rasif, mar que arrebenta,
é possível observar que Marcelino Freire transformou a originalidade de sua prosa em
uma espécie de armadilha que dificulta a emergência dos personagens, tornando-se
refém do experimento que criou.
6.
Entre os Marginais e os Intelectuais, uma leitura não conclusiva.
(...) essa questão da representação, da auto-representação, de representar Outros, é um problema.
196
Gayatri Chakravorty Spivak, The post-colonial critic.
“Can the subaltern speak?”, questiona a crítica indiana Gayatri Chakravorty
Spivak em ensaio clássico que investiga as diferentes apropriações discursivas que o
Ocidente realiza do Oriente. Neste texto, Spivak, além de abordar as diversas
impossibilidades de fala dos sujeitos localizados em espaços periféricos, realiza uma
crítica das apropriações das falas oriundas dos setores subalternizados. Contrariando
as perspectivas otimistas, a critica indiana adverte sobre a impossibilidade de fala
destes sujeitos periféricos. No entanto, como observa Elizabeth Muylaert, em Devires
autobiográficos, a atualidade da escrita de si,
a resistência teórica de Spivak não se interessa em promover a constituição do sujeito marginalizado, ou seja, ‘dar voz ao subalterno’, ela insiste na impossibilidade de traduzir o discurso do subalterno para o discurso do dominador, como se esse último fosse, inquestionavelmente, o representante, por excelência, da justiça que pode ser feita às razões do oprimido. (Muylaert, 2005, p. 114).
Nessa leitura, a rejeição de Spivak em dar voz aos subalternos está calcada na
constatação de que seja como objeto – retratado na sua condição de vítima – seja na
condição de sujeito – quando recebe o benefício da fala através da qual tem ocasião
de se expressar – a sua imagem e a sua voz, em ambos os casos, já são elementos de
uma mediação própria ao código lingüístico e cultural dominantes, constituindo “uma
forma de violência epistêmica” para citar uma expressão utilizada por Spivak. Dessa
forma, a fala do subalterno, independente de sua forma enunciativa, é apropriada pela
cultura dominante.
O texto de Spivak, produzido na já longínqua década de 1980, permanece
atual e inquietante. Creio que buscar uma resposta estanque para a questão não seja o
principal objetivo do ensaio e, principalmente, não seja este o primeiro impulso dos
críticos ao se debruçarem sobre ele. Talvez, o ponto mais importante deste ensaio seja
a busca por estruturas teóricas e textuais que possam favorecer a emergência de vozes
que foram sulcadas por forças políticas dominantes. De certa forma, a recepção deste
197
ensaio na América Latina foi norteada por este desejo. Ou seja, construir um
arcabouço teórico que pudesse instrumentalizar as leituras de textos produzidos por
sujeitos não pertencentes aos centros hegemônicos de poder, favorecendo, assim, um
referencial que possibilitasse colocar em relevo a condição cultural e social dos
autores dos textos. Contudo, nos chocamos com a força e a veemência com que a
critica indiana afirma que a impossibilidade de falar do subalterno, não ter voz, é a
primeira condição de sua situação política e social. Além disso, Spivak instaura uma
perspectiva inovadora em sua interpretação, quando afirma que ao intelectual resta
falar por si. O papel do intelectual, nesta leitura, é investigar o quanto seus métodos
de análise carregam privilégios institucionais e favorecem a manutenção do
subalterno como objeto e, por conseguinte, silenciado.
No entanto, vale questionar: e se os sujeitos marginalizados, alocados em seus
espaços periféricos de origem, começam a falar por si mesmo – sem a interferência
paternalista dos intelectuais – e sejam ouvidos, preferencialmente, por seus pares,
criando, assim, um campo discursivo e cultural próprio, ainda é possível apontar para
a impossibilidade de fala destes marginalizados? As incontáveis investidas de autores
marginalizados no campo literário brasileiro têm apresentado uma nova dimensão a
esta questão, trilhando um percurso, aparentemente, inovador.
Além de falarem, estes autores marginalizados desejam também exercer a
função que tradicionalmente era desempenhada por intelectuais: ser porta-voz e
orientadores das massas. No entanto, existe uma nada sutil diferença na postura
assumida pelos escritores da Literatura Marginal, pois suas produções literárias
objetivam alcançar um público do qual fazem parte. A imagem abaixo reforça este
posicionamento ideológico.
198
A imagem faz parte do material de divulgação de dois produtos assinados por
Ferréz, o livro Cronista de um tempo ruim e o DVD Literatura e resistência, e
apresenta de forma clara e explicita o posicionamento político adotado pelo autor:
“Agora ninguém controla nossa história”. A postura assumida reforça o desejo deste
movimento de autores oriundos de bairros periféricos e populares de se colocarem
como porta-vozes de uma parcela da sociedade que sempre foi objeto de investigação
de outros autores e intelectuais. O DVD e o livro em questão passam a ser
caracterizados como iniciativas que retém a investida de qualquer olhar estrangeiro ao
espaço representado. Necessário afirmar que ambos produtos foram produzidos e
lançados através iniciativas criadas e conduzidas pelo próprio autor, a Editora
Literatura Marginal/Selo Povo e o 1 da Sul, configurando, assim, uma produção que
não apenas focaliza os setores marginalizados, mas que origina-se destes locais.
Controlar a própria história, nesse sentido, é determinar qual tipo de representação
será construída na feitura do discurso, é deter o domínio sobre a imagem que será
produzida através da veiculação da obra. Em outras palavras, ao se afirmarem como
autores de um discurso que almeja representar a própria vivência social, estes
199
escritores periféricos estão se deslocando para uma posição que retira de cena o papel
que sempre foi assumido por intelectuais.
Em crônica publicada no volume Literatura Marginal, talentos da escrita
periférica, Preto Ghóez apresenta uma perspectiva semelhante à defendida por
Ferréz. No texto, o autor, que além de integrar o movimento literário periférico,
também ativista da cultura Hip-Hop, elabora um exame das diferentes produções
culturais, sobretudo cinematográficas, que possuem como tema central o cotidiano da
periferia. A crônica possui o sugestivo título “Cultura é poder” e inicia com o autor
resgatando sua infância, quando encontrava na casa dos vizinhos a única
possibilidade de assistir aos filmes nacionais. O tom memorialístico adotado na
abertura do texto auxilia o autor no estabelecimento de uma comparação entre as
produções fílmicas do passado e as contemporâneas, na qual é destacada a mudança
no plano temático das produções que é sintetizada em uma frase: “todo mundo quer
ser favela!”(Ghóez, 2005, p. 21). O interesse crescente em produzir um olhar sobre os
bairros periféricos e favelas dos grandes centros urbanos é analisado como uma moda
“especificamente no meio intelectual de esquerda e pequena burguesia
adjacente.”(Idem, idem). A crítica aponta não apenas o modismo criado, mas,
principalmente, o esvaziamento político destas manifestações artísticas e o olhar
deturpado que orienta tais produções:
Todo mundo quer ser perifa, quer ser favela. E assim eu vejo uma pá de maluco documentando a dureza do dia a dia da favela, uma pá de filme documentando a violência da quebrada, e neles eu vejo um bagulho que me deixa desbaratinado: a romantização do crime, do bandido, da droga, a esteriotipização de um estilo de vida, as roupas, as gírias, os loucos, as fitas.(Idem, idem)
A crônica de Preto Ghóez argumenta em favor de uma produção artística que
não se baseie em clichês e, muito menos, que reproduza estereótipos preconceituosos
sobre a população residente em favelas. Em outras palavras, o autor sabe que tal
produção artística, seja ela fílmica ou literária, será utilizada como veículo de
mediação entre o morro e o asfalto. Através do retrato ofertado pela imagem
cinematográfica é produzida uma percepção própria sobre os territórios
marginalizado que é retratado. João Camillo Penna, no ensaio “Marcinho VP (um
estudo sobre a construção do personagem)”, reflete sobre estas formas de
200
representação de setores e sujeitos marginalizados através da leitura das interpelações
midiáticas que Marcio Amaro de Oliveira – falecido líder de uma quadrilha de
varejistas de drogas no Morro de Dona Marta, mais conhecido como Marcinho VP –
sofreu ao longo de sua vida. Camillo Penna elege como objeto uma série de quatro
produtos midiáticos que o transformaram em principal personagem, que passa pelos
relatos jornalísticos sobre a negociação entre o grupo liderado por Marcinho VP para
a autorizar a equipe de Spike Lee para filmarem o videoclipe “They don’t care about
us”, de Michel Jackon, e termina na publicação do romance-reportagem Abusado, de
Caco Barcellos, que trata especificamente sobre o processo de constituição e falência
da quadrilha liderada pelo mesmo. Ao fazer referência ao ensaio de João Camillo
Penna, interessa-me especificamente destacar não apenas o exemplo recolhido no
texto – o qual podemos classificar como uma forma de intervenção do intelectual que
reproduz o autoritarismo do poder central e se baseia no tratamento do sujeito
marginalizado enquanto um objeto silencioso - , mas, principalmente, desejo refletir
sobre as conclusões e caminhos apontados pelo autor na análise que o mesmo
constrói sobre a ética necessária ao intelectual.
Talvez a pergunta colocada nestes termos seja excessivamente vaga, e pudéssemos reformulá-la em termos de uma ética da representação, e de uma dívida ou pagamento devido às pessoas, locais e situações referentes que inspiram romances deste tipo. É o que a categoria jurídica de “direito de imagem” procura pensar, estabelecendo uma espécie de copyright sobre a vida, apesar dos complicados e insolúveis meandros legais que ela instaura.(Penna, 2004, p. 97)
A argumentação proposta pelo autor vai de encontro com a fala recorrente dos
moradores de áreas periféricas que são retratados em diferentes produtos midiáticos a
partir de um olhar “de fora”. Contra este freqüente exercício discursivo que se baseia
na veiculação de um olhar deturpado sobre uma realidade concreta, João Camillo
Penna vislumbra a possibilidade de instauração de uma perspectiva ética que
orientará o discurso. A ética se baseará na necessidade de compreensão que o “direito
de uso de imagem”, aparato jurídico necessário para a captura de quaisquer imagem
de um sujeito de direito, deve ser expandida para uma percepção mais ampla, na qual
o intelectual produtor do discurso deva ter a consciência que sua produção discursiva
representará uma imagem coletiva destes territórios marginalizados. Ou seja, a
201
encenação ficcional que o cinema exibe, baseado na “Luz, câmera e...clichê” irá
perpetuar o estigma e o preconceito, como observa Preto Ghóez:
Daí deixa que o cinema entope de maluco que nunca foi perifa, gente que abomina a gente que mora na perifa, os papéis principais estão nos faróis, e seu controle remoto aciona o vidro que sobe e te isola do senhor dos anéis, relógios, dinheiro, rápido de mãos pro alto! Ou eu estouro a sua cara...(Idem, ibidem)
Preto Ghóez critica o consumo de imagem estereotipada da favela, que
destaca apenas o crime e a violência a partir de um traço excêntrico. O produto, nas
palavras do autor, se assemelha a um documentário da National Geographic,
centrado na exibição das marcas de uma cultura pouco conhecida. Todos querem uma
aproximação desta realidade, mas desejam que tal aproximação ofereça a segurança
necessária para o consumo. Obliterar a voz que vem “de fora”, nesse sentido, é
investir contra a orientação formada na perspectiva de um olhar não familiarizado
com o cotidiano retratado. Ao se colocarem frente aos intelectuais que comumente
exerceram o papel de porta-voz destes setores silenciados, os escritores
marginalizados buscam expressar na excludente letra de fôrma sua própria vivência.
Cultura é poder, como enfatiza o autor no título da crônica. O poder repousa
na possibilidade de construir através de um discurso cultural uma imagem própria
sobre estes espaços marginalizados. Na leitura de Preto Ghóez, o núcleo intelectual
que detém o poder através da produção cultural também cria estratégias para a
manutenção de seu status quo. Afinal, nos lembra Ghóez,
Eles nos querem onde estamos, nos querem brutos e tristes, nos darão armas e drogas e escreverão novos roteiros e farão novos filmes sobre nossas vidas em nosso habitat, mal sabem eles que o sangue já transborda da periferia, que existe mão-de-obra excedente com armas na mão, mas eles nos querem assim como melhor ator coadjuvante, não nos querem escrevendo, dirigindo, atuando, não nos querem protagonistas de nossas próprias vidas, seus filhos já confundem ficção com realidade, e eles nos querem longe de tudo, (...) sem voz, nos escuro do anonimato, eles sem o mutarelli, sem o ferréz, sem o paulo lins, (...) Mas alguns já sabem: Cultura é poder!(idem, p.23).
202
Nada mais legítimo do que o próprio sujeito marginalizado, aquele que sofre
diretamente com as condições de vulnerabilidade social que uma sociedade desigual
produz, seja o autor de um discurso que aborda seu cotidiano. O discurso, nesse
sentido, para além de sua postura política, passa a ser ornamentado por uma
perspectiva testemunhal, determinando a voz oriunda dos espaços periféricos como a
verdadeira forma de representação da miséria e da violência que assola estes espaços.
Afinal, quem possui a legitimação para narrar a margem senão o próprio marginal?
Tal posicionamento ecoa de diferentes formas na Literatura Marginal e se
revela como um dado precioso para o estabelecimento de uma discussão acerca do
papel e o lugar dos intelectuais frente a estas manifestações literárias emergentes que
cobram para si um estatuto de legitimação que busca silenciar as vozes não
pertencentes à estrutura social demarcada. Necessário acrescentar que tal orientação
política não é um dado relativo apenas a este movimento literário, mas, sim, uma
espécie de orientação de grupos sociais e culturais marginalizados, que desejam falar
por si, sem a presença de mediadores. A argumentação do rapper Big Richard, na
apresentação de seu livro, Hip-hop:consciência e atitude, corrobora este aspecto:
Neste livro tenho uma preocupação muito grande em registrar parte de nossa história, o hip hop brasileiro. Cansei. Me incomoda muito ver irmãos darem subsídios a intelectuais e pesquisadores de fora de nossa realidade, que constroem grandes teses sobre nossa vida, nosso momento (...) Penso que temos que começar a transmitir a nossa versão da história, a nossa palavra pesquisada, mas muito mais do que isto, nossas histórias vividas(Richard, 2005, p. 19)
Se outrora o intelectual atuava enquanto porta-voz destes grupos, falando em
nome destes sujeitos e, dessa maneira, silenciado-os; nos parece que na
contemporaneidade não há mais espaço para este tipo de atuação, sobretudo quando
estes setores passam a “falar” e não desejam mais que o intelectual “fale” em nome
deles.
O questionamento que por hora aqui se constrói não é um fato isolado e muito
menos diz respeito apenas ao surgimento de um movimento literário organizado por
autores marginalizados. Renato Cordeiro Gomes e Isabel Margato, organizadores do
livro O papel do intelectual hoje, apresentam este debate como um reflexo direto da
crise proveniente da nova configuração sociocultural do limiar do século XXI:
203
Para pensar então a reconfiguração, do papel do intelectual na contemporaneidade, há de se considerar a crise de valores universais, desencadeada pela história do século XX. O testemunho do universal torna-se cada vez mais difícil, balançando pelo relativismo dos valores, das posições político-ideológicas adotadas, num tempo de heterogeneidade, posições essas atravessadas por clivagens de gênero, raça, sexo, idade e não mais privilegiando a problemática da classe social. (Margato e Gomes, 2004, p. 10)
Esse horizonte de questões interfere de forma decisiva na tradicional imagem
que fora forjada para o intelectual ao longo da modernidade e, principalmente, no
século XX. Se ao pensarmos em propostas para o futuro da função do intelectual
percorremos um trajeto marcado por incerteza, podemos afirmar com certeza que o
modelo do passado não terá frutos. Não se trata de afirmar que dificilmente um
escritor contemporâneo virá a público e apresentará um texto incisivo com o título de
“Eu acuso”, repetindo o gesto clássico protagonizado por Zola na apresentação do
panfleto “J´accuse”, em 1898, ato que hoje é analisado como o nascimento do
intelectual. Mas, sim, se trata de avaliar que o intelectual não irá mais atuar enquanto
sujeito dotado de um saber privilegiado que possibilitará orientar as massas.
Para discutir a função e o papel do intelectual é necessário resgatar o
pensamento do filósofo italiano Antonio Gramsci e, principalmente, o conceito de
“intelectual orgânico”. Tal conceito, que também pode ser chamado de categoria,
emerge do desejo de desenvolver uma nova proposta educacional que tenha como
referência a classe trabalhadora e que favorecesse a criação de intelectuais na e para a
classe operária, configurando-se, assim, uma estratégia política que atingiria de forma
decisiva o autoritarismo fascista. A noção de intelectual orgânico influenciou
diretamente movimentos sociais comunitários, assim como lançou as bases para a
“Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire. A partir das ideias de Gramsci para um
sistema educacional libertário encontraram ressonância na “pedagogia crítica” de
Freire, criando um espaço de intervenção através do saber acadêmico na utilização de
estratégias de pesquisa de ação participativa, na qual o pesquisador assume um papel
social para além da coleta de dados. E, como nos recorda Maria Teresa Carneiro
Lemos, em A (De) missão do intelectual,
As ideia de Gramsci também serviram de base para a criação da “Teologia da Libertação”, importante e controversa escola na teologia da Igreja Católica, desenvolvida depois do Concílio Vaticano II. Ela
204
fundamenta-se na situação social humana, tendo se desenvolvido intensamente durante as décadas de 60 e 70, quando se expandiu de forma especial na América Latina, entre os jesuítas, sendo uma das orientações para o movimento das Comunidades Eclesiais de Base. (Lemos, 2007, p. 128)
É inegável a influência do pensamento de Gramsci na formação e organização
de frentes políticas populares no Brasil, reunindo em diálogo padres, professores,
líderes sindicais e intelectuais na luta contra o autoritarismo e em benefício dos
setores populares. No contexto dos anos 1980, impulsionados pelos ares da liberdade
renascida pela abertura política, estes líderes políticos ligados à classe trabalhadora e
marginalizada desenvolveram um papel de suma importância na formação dos
próprios líderes comunitários, sujeitos emergentes na disputa política e participantes
ativos das reivindicações que faziam. Nesse sentido, a espécie de ciclo de formação
do intelectual orgânico, tal qual concebido por Gramsci, se fecha e surge em cena não
o intelectual burguês aliado às massas, mas o intelectual oriundo das massas, como o
próprio filósofo conceituou:
Uma das mais marcantes características do todo o grupo social que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos.(Gramsci, 1978, p. 8)
Com a elaboração simultânea dos próprios intelectuais orgânicos populares,
ou marginais, qual será o papel assumido pelos intelectuais burgueses? Decerto, a
função de porta-voz da sociedade, tradicionalmente encarnada pelo intelectual
escritor, se deslocou de forma progressiva para o ideólogo jornalista, criando uma
segmentariedade na prática discursiva. Não são mais sujeitos iluminados que se
debruçam sobre os temas caros da estrutura social e política, no lugar destes tomou
lugar o especialista, profissional centrado no debate acerca de um tema específico.
Para além da própria existência da função do especialista, a prática intelectual, na
contemporaneidade, passa por uma reorientação devido a emergência de vozes
marginalizadas que passam a ocupar o espaço que outrora era posse do intelectual.
No entanto, é necessário esclarecer que não se trata de afirmar o fim da função
do porta-voz da sociedade, tradicionalmente encarnada pelo intelectual escritor, mas,
205
principalmente, interrogar qual a nova forma de engajamento que o intelectual
escritor deve engendrar frente a estes sujeitos marginalizados. Se o debate aqui
proposto surge em decorrência de uma série de produtos literários contemporâneos, o
pensamento crítico ocidental há muito produz interrogações acerca desta questão.
Exemplo disto é a conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, em 1972,
intitulada “Os intelectuais e o poder”. No diálogo, Foucault já anunciava a
necessidade de aparecimento de uma nova forma de engajamento do intelectual, não
mais como aquele que dizia a verdade aos que ainda não a viam e em nome dos que
não podiam dizê-la:
Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte desse sistema de poder, a ‘idéia’ de que eles são agentes da ‘consciência’ e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento; na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso. (Foucault, 1979, p.71)
Na leitura de Foucault, a existência de um sistema de poder próprio ao
exercício intelectual subordina a “fala das massas”, inferiorizando-as frente ao
discurso científico e acadêmico. Nesta concepção, pouco importa se o intelectual “se
coloca um pouco na frente ou um pouco ao lado” das massas, pois, independente da
posição assumida, seja negando ou não o papel de porta-voz dos desejos dos grupos
socialmente marginalizados, o discurso intelectual figura como detentor de um poder
de verdade dotado de uma aura unívoca. No entanto, Foucault esclarece que
Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento. Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia, é a própria verdade. (Foucault, 1979, p.14)
Tais reflexões entre Deleuze e Foucault emergem a partir de um debate sobre
a relação entre prática e teoria, colocando em cena não apenas questionamentos
206
acerca do papel do intelectual, mas, sobretudo, a estruturação de um novo conceito de
representação. É nesta clave que Deleuze lembra que foi o seu interlocutor que teria
sido o primeiro a denunciar a “indignidade de falar pelos outros”:
A meu ver, você [Foucault] foi o primeiro a nos ensinar – tanto em seus livros quanto no domínio da prática – algo fundamental: a indignidade de falar pelos outros. Quero dizer que se ridicularizava a representação, dizia-se que ela tinha acabado, mas não se tirava a conseqüência desta conversão ‘teórica’, isto é, que a teoria exigia que as pessoas a quem ela concerne falassem por elas próprias. (Idem, p. 72)
Silenciar-se frente aos grupos marginalizados - que no caso específico do
diálogo entre Foucault e Deleuze eram os prisioneiros - foi a medida necessária para
possibilitar a emergência destas vozes. A conversão teórica que nos fala Deleuze
comporta não apenas a fala dos sujeitos silenciados, mas, igualmente, a insurreição de
saberes locais, esquecidos e inferiorizados perante a ciência. Contudo, tal perspectiva
teórica foi claramente deturpada, favorecendo a compreensão, para uma parcela de
intelectuais, que o papel a ser assumido frente a estes grupos marginalizados deveria
ser passivo, favorecendo o retorno a fala viva do sujeito dominado. Não se trata, pois,
de simplesmente ouvir deslumbrado a pureza da diferença através destas vozes, mas
de analisar os mecanismos do poder discursivo que, ao filtrar a fala destes sujeitos,
desqualificam-na. O intelectual deve, antes de mais nada, ser crítico de suas próprias
condições de trabalho que, de modo muito concreto, por seus regulamentos e
hierarquias acabam por assimilar estas vozes e estes saberes e, dessa forma, levá-los
ao silêncio.
Contudo, tais prerrogativas não devem ser compreendidas como um postulado
teórico que argumenta pelo silêncio do intelectual, como esclarece Daniela Versiani a
partir das reflexões de Foucault acerca do tema:
Tratar apenas do deslindar dos processos que levam estas subjetividades à exclusão e ao silenciamento, ainda que obviamente seja por si só tarefa tão árdua quanto necessária, é também, contudo, de alguma forma, pôr-se à margem desses processos. Se Foucault estava certo quanto à indignidade de falar pelos outros, esta afirmativa não deveria, contudo, servir de justificativa para que o intelectual contemporâneo se perpetue à margem desse processo, seja pela ingênua suposição de que a alternativa à recusa em assumir uma postura partenalista – falar pelos outros – seja única e exclusivamente a indiferença, seja pelo interesse em preservar a sua própria autoridade mantendo a não-autoridade de outras vozes. (Versiani, 2004, p. 80)
207
Já não é mais suficiente dedicar-se apenas à análise dos processos de exclusão
e marginalização dos sujeitos silenciados, é necessário elaborar estratégias de
inclusão dessas subjetividades no próprio ato discursivo do intelectual. O intuito deste
investimento não é produzir uma fala autorizada, mas, sim, elaborar conceitos e
procedimentos que impeçam que a fala do intelectual figure no lugar do discurso do
Outro marginalizado.
Nesse diapasão, é impositivo considerar o impasse criado pela desconfiança na figura do intelectual como porta-voz da “verdade de todos”, quando se trata de recuperar sua função crítica. A opção pela defesa dos direitos dos pequenos grupos, pela luta contra focos particulares do poder, corre o risco de gerar um descompromisso do intelectual com o conjunto da sociedade, de limita-lo a uma ação sempre autoreferenciada. (Gomes e Margato, op. cit., p. 10)
Ou seja, como Deleuze questiona: “Então, como chegar a falar sem dar
ordens, sem pretender representar algo ou alguém, como conseguir fazer falar aqueles
que não têm esse direito, e devolver aos sons o seu valor de luta contra o
poder?”(Deleuze, 1992, p.56). Responder tal questionamento é, decerto, uma tarefa
tão árdua quanto retirar o poder da verdade das formas hegemônicas. No entanto,
seguindo os passos de Deleuze, é possível vislumbrar uma saída - ou, como o
próprio autor conceitua: uma linha de fuga – a partir do tratamento do próprio ato
discursivo: “Sem dúvida é isso, estar na própria língua como um estrangeiro, traçar
para a linguagem uma espécie de linha de fuga”(Idem, ibidem). Ser estrangeiro na
própria língua é produzir uma espécie de gagueira que possibilite rachar as palavras e
estruturar enunciados não hierárquicos. Falar assumindo todos os tons, sem desejar de
forma ilusória elaborar um discurso que se quer semelhante ao do Outro, tampouco
uma fala que coloque em elevo a diferença do intelectual frente ao marginalizado. A
análise de Deleuze sobre Godard pode ser tomada como uma referência para
pensarmos a questão:
De certo modo, trata-se sempre de ser gago. Não ser gago em sua fala, mas ser gago da própria linguagem. Geralmente, só dá para ser estrangeiro numa outra língua. Aqui, ao contrário, trata-se de ser um estrangeiro em sua própria língua. (...) É essa gagueira criativa, essa solidão que faz de Godard uma força.(Idem, p. 52).
208
A gagueira surge como uma possibilidade de minar as estruturas sólidas do
discurso e favorecer a emergência de uma fala não impositiva. Sem dar ordens, o
intelectual produz um discurso que figura em um espaço intersticial, não é uma fala
que representa e, muito menos, é a atitude silenciosa e omissa de apenas deixar o
Outro falar. Tão importante quanto refletirmos acerca de uma teoria que favoreça a
aplicação de métodos que não oblitere a emergência das vozes que outrora eram
silenciadas, é propor uma forma de atuação intelectual que se baseie em um princípio
ético.
Falar com os operários e não ser um patrão falando, como alcançar esta forma
de linguagem que rasura as formas de poder? Heloisa Buarque de Hollanda e Maria
Tereza Carneiro Lemos, a partir de questionamentos semelhantes aos aqui
apresentados, apontam para o estabelecimento de “parcerias” entre intelectuais e
marginalizados como a solução para esta intrincada questão. Ambas autoras utilizam
a publicação de Cabeça de porco, livro que denuncia as misérias provocadas pelo
avanço do comércio varejista de drogas nas periferias dos grandes centros urbanos do
Brasil, como um resultado bem sucedido.
No artigo “Intelectuais X marginais”, Heloisa Buarque analisa a necessidade
de criação de novas abordagens das novas vozes discursivas no cenário cultural
brasileiro: “Hoje, parece que alguma coisa de bastante diferente está no ar e que
vamos ter que repensar, com radicalidade, nosso papel como intelectuais tanto no
campo social, como no campo acadêmico e artístico”(Hollanda, 2007). O algo novo
que a autora percebe no ar é materializado nas inovadoras propostas da cultura Hip-
Hop e de tantas outras manifestações artísticas originárias nas periferias das grandes
cidades. No movimento operado por Heloisa Buarque a proposta de repensar o papel
do intelectual não é meramente abstrair-se do debate e excluir-se da vida política e
artística. Tampouco, a crítica deseja apenas “ouvir” o que as vozes que emergem têm
a dizer. Segundo a autora, as produções artísticas e culturais da periferia, ao elaborar
um discurso crítico sobre a sua própria experiência, passam a exercer o papel que
outrora fora designado ao intelectual. Mas, vale questionar, qual deve ser o lugar a ser
ocupado pelo intelectual hoje no tocante ao diálogo com estes movimentos, discursos
209
e produtos culturais periféricos? Heloisa Buarque de Hollanda apresenta uma
possibilidade de solução, observando que
A sugestão de que a periferia e os movimentos que defendem a interpelação da propriedade intelectual fechada e superprotegida no modelo norte-americano, com seu corolário necessário, o investimento na noção de saber compartilhado, possa afinal dissolver velhas equações corporativas em novas maneiras de fazer política.(Hollanda, op. cit.)
Segundo a autora, o exercício de repensar o papel do intelectual produzirá
uma nova forma de engajamento, alterando a posição do intelectual frente aos grupos
marginalizados. Nesse sentido, há uma recusa pela função de porta-voz destes
sujeitos, colocando-se à frente. Impossibilitado de falar pelo Outro, pois agora ele
possui voz, resta ao intelectual exercer a função de co-autor dos processos
simbólicos. É nesta perspectiva que Heloisa saúda a publicação de Cabeça de porco:
É verdade que as partes escritas por cada um são assinadas, não produzindo, portanto, um tipo de autoria coletiva, mas colaborativa. O livro não desafina na passagem de um autor para outro, que aparecem intercalados na estrutura narrativa do livro. Um caso de saber compartilhado com igual peso para cada uma das partes, cada autor oferecendo sua dicção e sua competência específicas em pé de igualdade, em que a autoria é menos importante do que o conjunto polifônico do trabalho, que é precisamente de onde esta obra tira sua maior força e valor(Idem, ibidem).
Na proposta de Heloisa Buarque o intelectual não mais irá figurar como
representante das esferas silenciadas, nem se cala frente à eminência de vozes
excluídas. A solução apresentada se materializa na busca por um espaço de fronteira,
no qual a voz do intelectual será somada ao discurso que provém das margens,
reconhecendo o novo cenário cultural em que está inserido. No entanto, a autora não
percebe que o simples deslocamento de posição, figurando agora ao lado e não mais
na posição de liderança do processo, sobretudo no exemplo citado, não impede uma
atitude paternalista e condescendente do intelectual. Em Cabeça de porco é
perceptível uma distinção discursiva entre os autores, de um lado figura uma fala
testemunhal formada a partir da experiência marginal, personificada nos escritos de
MV Bill e Celso Athayde, estes negros, favelados e atuantes no movimento Hip-Hop;
no pólo oposto, isolado em um gabinete, Luiz Eduardo Soares produz elaboradas
análises sociológicas a partir dos relatos dos rappers. A forma colaborativa, que tanto
210
impressionou Heloisa Buarque de Hollanda, se desfaz pela própria estrutura textual
do livro. A colaboração, por assim dizer, na verdade, é dos marginalizados para com
o intelectual, oferecendo em cores vivas histórias para serem indexadas em uma
rigorosa análise sociológica. A fórmula é redundante e cansativa, após os relatos
surge a fala conclusiva de Luiz Eduardo Soares descortinando o breu e orientando
nossas compreensões. Se nesta estrutura não há o ato de silenciamento do
marginalizado, no entanto fica clara a subordinação destas falas ao discurso científico
e acadêmico.
Análise semelhante à de Heloisa Buarque de Hollanda é engendrada por
Maria Tereza Carneiro Lemos acerca do livro Cabeça de porco, em A (de)missão do
intelectual. Segundo a autora, a postura assumida por Luiz Eduardo Soares ao
colaborar com os dois ativistas do movimento Hip-Hop o fez abandonar a posição de
“tradutor” – aquele que marca um lugar de relativa abertura da voz dos silenciados –
para figurar como um “colaborador” destes sujeitos.
Não é mais possível conceber o intelectual que reflete e ‘indica’ o caminho, mas, pelo contrário, tornou-se claro que hoje o intelectual age organizado, intervindo, criando. De forma muito diferente do intelectual modernista, hoje, ele não é mais um vanguardista, não profecia em relação ao futuro, não antecipa a história. (Lemos, 2007, p. 109)
Certamente, é possível identificar no ato protagonizado por Luiz Eduardo
Soares a tentativa de abandono das rígidas formas acadêmicas. Lançar-se de encontro
a novas experiências sociais, políticas e culturais, certamente é assumir o risco de
intervir de uma nova forma na sociedade.
No entanto, é necessário observar que, no caso específico de Luiz Eduardo
Soares e sua intervenção junto a M.V. Bill e Celso Athayde, a posição de retaguarda,
com o intelectual perfilado ao lado dos marginais, resulta em não favorecer a
ascensão dos próprios marginais como uma vanguarda.
Não estou propondo a constituição de duas esferas antagônicas, intelectuais e
marginais, mas, antes de tudo, busco discutir quais as reais possibilidades de contato
com este Outro marginalizado. Sem dúvida, como observa Deleuze,
O artista não pode senão apelar para um povo, ele tem necessidade dele no mais profundo de seu empreendimento, não cabe a ele cria-lo e nem o poderia. A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à escravidão, à infâmia,
211
à vergonha. Mas o povo não pode ocupar-se de arte. Como poderia criar para si e criar a si próprio em meio a abomináveis sofrimentos?(Deleuze, op. cit., 214-5)
Se o questionamento de Deleuze se refere a uma provável impossibilidade de
criação artística – e de formas de pensamento crítico, arrisco acrescentar – do povo
frente aos seus sofrimentos abomináveis, é igualmente possível interrogar se há
condições reais do intelectual falar sobre estes sofrimentos do povo? Não se trata
apenas de buscar uma legitimação para a voz marginalizada que agora se ergue e
passa a proclamar uma verdade, mas que discutir as potencialidades deste ato de
insurreição.
Ler a produção literária destes autores é também observar o desenvolvimento
destas estratégias políticas. Mais do que mapear obras e tecer comentários sobre
traços de estilo, ao centrarmos um olhar exclusivo sobre a Literatura Marginal
devemos observar as nuances discursivas e saber compreender o funcionamento de
um amplo espectro de ações e propostas sociais que utiliza o literário como recurso.
No entanto, aqui está em questão não somente o processo de construção do
sujeito marginalizado, mas das mediações efetuadas na passagem desse discurso para
outras camadas da sociedade. O desejo de se constituir enquanto movimento
autônomo, sem a interferência de elementos exteriores à periferia, pode ser facilmente
questionado pelas relações que alguns autores mantém com editoras não vinculadas
ao mesmo projeto político e social, como nos fala Alfredo Bosi acerca da obra de
João Antônio:
Sei que o termo “marginal” é fonte de equívocos; sei que, na sociedade capitalista avançada, não há nenhuma obra que, publicada, se possa dizer inteiramente marginal. O seu produzir-se, circular e consumir-se acabam sempre, de um modo ou de outro, caindo no mercado cultural, dragão de mil bocas, useiro e vezeiro em recuperar toda sorte de malditos. (Bosi, 2002, 238)
O comentário de Alfredo Bosi lança um dado irônico sobre o uso do termo
marginal que também pode ser utilizado como índice de análise da própria estratégia
discursiva destes autores. Como ser marginal e afirmar-se como pertencente de um
mundo à parte que se estrutura como substrato direto das ações empreendidas por
sujeitos sociais das classes abastadas e, por outro lado, estar inserido nesta mesma
212
estrutura? É importante ressaltar que a constituição deste sujeito autoral periférico
mais do que residir somente na enunciação ou na recepção do discurso, está no
próprio processo dialógico e transitivo. Mais do que destituir qualquer poder de
verdade da fala destes autores ou simplesmente negar a viabilidade desta
argumentação da autenticidade de uma cultura e/ou literatura marginal, ao afirmar
este aspecto pretendo apresentar uma nova perspectiva ao debate. Uma vez que o
sujeito à margem – seja o morador da favela, em uma perspectiva nacional, ou o
latino-americano, em uma perspectiva global – sempre será composto não por um
discurso de unicidade e pureza, mas, sim, pelo hibridismo. Por tanto, mesmo que
suplantado da apresentação da postura política adotada, estes autores estão de forma
recorrente estabelecendo formas de apropriação e adaptação. Ao aceitarem o
financiamento de grandes fundações privadas – como a Itaú Cultural –, ao
participarem de programas televisivos – como o Fantástico da T.V. Globo – e ao
publicarem em editoras de grande circulação – como a Global Editora e a Editora
Objetiva – estes autores estão inseridos em um processo através do qual se demanda
uma revisão de seus próprios sistemas de referência, normas e valores, pelo
distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de transformação. Dessa
forma, ambivalência e antagonismo acompanham cada ato desta espécie de tradução
cultural.
Além disso, é possível afirmar que ao estarem fixados na margem, estes
autores periféricos correm o risco de perderem, justamente, a capacidade
metaforizante das margens em contraposição ao centro. De fato, a transformação de
uma condição de vulnerabilidade social em um elemento de construção identitária,
seja através da delimitação destes territórios marginais em palco das narrativas ou na
elaboração discursiva que argumenta por uma autenticidade cultural, é uma posição
de confronto. Agora, são autores oriundos da periferia que se apresentam como vozes
unívocas da marginalidade, silenciando assim qualquer contra-narrativa produzida
por intelectuais pertencentes aos núcleos tradicionais de saber. Trata-se, portanto, de
uma questão com a qual estes e futuros autores terão que lidar. No entanto, a contínua
investigação acerca da violência nos espaços periféricos terminará por esvaziar a
213
capacidade de sensibilização do leitor ou, pelo contrário, a dramatização desses
aspectos permitirá ao morador dessas áreas um novo olhar sobre si mesmo?
Se os autores estiverem corretos, os potenciais leitores destas produções
literárias – leia-se os residentes nos bairros marginalizados – utilizarão tais narrativas
como espelhos de uma realidade concreta, mirando-se nos exemplos apresentados no
texto ficcional. O princípio norteador deste argumento é o desejo de conscientizar o
leitor, fazendo descortinar uma verdade que o texto oferece.
O texto literário surge como um mecanismo pedagógico. Espera-se com a
disseminação deste discurso voltado primeiramente para o leitor periférico a
produção de uma nova identidade cultural e a criação de uma nova postura destes
sujeitos. A força pedagógica destes discursos marginais de rasura está repousada na
autoridade que a origem periférica oferece ao autor do discurso, utilizando sua
experiência de autor/sujeito marginal para formar e doutrinar os receptores do
discurso. Diferentes autores da Literatura Marginal – sobretudo aqueles vinculados à
cultura Hip-Hop – produzem narrativas centradas na apresentação de trajetórias
sociais exemplares, seja pela exaltação ou negação. Narradas como histórias de
proveito e exemplo, as trajetórias de sujeitos da periferia, que em principio poderiam
ser compreendidas como casos pontuais, são transformadas em uma complexa trama
coletiva, facilitando a pronta identificação do leitor com o personagem. Estas
narrativas são pontuadas por um rígido maniqueísmo que privilegia a abordagem dos
casos de insucesso, encenando a falência destes personagens a partir da opção pelo
crime. Dessa forma, o exercício de auto-representação destes sujeitos é duplamente
político e engajado, além de formar uma compreensão própria para sua vivência, tal
compreensão é utilizada como um veículo disciplinar e formador de seus pares. A
literatura, neste caso, emerge como veículo de um discurso pedagógico e
conscientizador do leitor. Tal qual uma letra de RAP, os contos, os romances e as
poesias, são utilizados como recursos discursivos que objetivam a divulgação de uma
pedagogia própria e voltada exclusivamente para o jovem negro periférico. A
performance – a fala em ato que rompe com os paradigmas estabelecidos e fere a
pretensa homogeneidade da nação – é uma performance pedagógica que, mesmo
contendo todos os elementos que podem ser caracterizados como um discurso
214
performativo, para citar o termo empregado por Homi K. Bhabha para classificar os
discursos se opõem à fala homogeneizante da nação, pode igualmente ser
denominado como uma fala pedagógica.
Mesmo que alguns mecanismos de intervenção política deste movimento
sejam semelhantes a uma série de discursos facilmente relacionados à estruturas
hegemônicas, o principal ato de rasura e intervenção que estes autores promovem é a
sua própria inserção na série literária enquanto autores. É a própria existência de um
amplo movimento literário organizado que reúne autores de origem periférica um ato
inédito. O estranhamento em grande parte vem da presença de autores negros e
vindos da favela no âmbito da cultura letrada, que exige regras e condutas específicas.
Diferentemente da música popular que, de certa forma, é uma constante cultural das
camadas populares, a escrita se impõe como um valor de exclusão e de
hierarquização frente às elites econômicas. Contudo, mesmo que possamos afirmar o
ineditismo deste movimento, os autores buscam um ponto de ancoragem próprio ao
formarem uma espécie de cânone literário marginal. A suposta filiação reivindicada
engloba autores que exerceram o papel de mediadores entre a margem e o centro,
sabendo transitar entre estes dois pólos, assim como a primeira autora favela:
Carolina Maria de Jesus.
Excluindo os vetores sociais e políticos, a linguagem assume um importante
papel na formação do movimento. Obviamente, desde o modernismo torna-se estéril
discutir sobre a linguagem no âmbito da correção estilística. No entanto, é
interessante notar a importância que a linguagem adquire na feitura dos escritos
marginais. Por um lado, ela aproxima o leitor de uma possível verossimilhança com
espaços desconhecidos, por outro lado, ela transgride, não mais em uma atitude de
ruptura vanguardista, mas como interferência do sujeito periférico na fala normativa.
Não é mais possível separar a violência factual da “violência” narrativa. É como se
também a gramática, a língua culta fosse violentada.
Corromper a língua significa torná-la aberta a uma nova rede de significados
que escapam ao leitor tradicional. Como questiona Foucault, em A ordem do
discurso, “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de
seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?”(Foucault,
215
1996, p.11). O perigo coloca-se como sinal de negação à ordem dominante que se
estabelece discursivamente. O outro enquanto sujeito nomeado pelo mesmo ou
incapacitado de se definir na língua do dominador não adquire existência própria. A
subversão da ordem disciplinar imposta pela língua abre caminhos para que a
alteridade possa se impor no território do mesmo, alterando o código lingüístico com
uma linguagem que busca [re]criar as gírias e expressões que se avultam no espaço da
periferia. A linguagem marginal surge como uma forma de expressão
intrinsecamente ligada à cultura da favela, expressar-se literariamente nesta
linguagem é tentar preservar tal manifestação, como afirmar Ferréz no manifesto
“Terrorismo Literário”:
E temos muito para proteger e a mostrar, temos nosso próprio vocabulário que é muito precioso, principalmente num país colonizado até os dias de hoje, onde a maioria não tem representatividade cultural e social, na real, nego, o povo num tem nem o básico para comer, e mesmo assim, meu tio, a gente faz por onde ter uns barato para agüentar mais um dia.(Ferréz, 2005, p. 11)
Tão importante quanto conquistar o espaço territorial é igualmente centralizar o
poder discursivo, construindo, literalmente, um território narrativo que seja capaz
de abarcar sua própria linguagem. “O poder de narrar”, afirmar Edward Said, “ou
de impedir que se formem ou surjam outras narrativas, é muito importante para a
cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre ambos.”
(Said, 1995, p.13). “Me tomaram tudo, menos a rua.”, afirma Ferréz, no texto de
legenda de uma das fotos da primeira edição do romance Capão pecado. A rua
torna-se princípio identitário, lugar que não pode ser tomado porque é também
discurso de onde nascem as narrativas marginais. O vínculo entre rua e discurso é
reafirmado, ou seja, a junção entre território e sujeito apresenta-se como uma
forma de construção de uma identidade inscrita no território da periferia. No
entanto, tal proposta de construção identitária, que se faz através de um
agenciamento político que utiliza a literatura como veículo, também é alvo de
críticas, observando na afirmação do vínculo do sujeito autoral com a margem um
exercício que potencializa uma leitura centrada unicamente na exaltação biográfica
216
do autor, como destacou Fernando Bonassi, em evento organizado no SESC
Consolação, como parte da Mostra Artística do Fórum Cultural Mundial:
Eu acho a expressão literatura marginal um massacre, a pior coisa é os textos ficarem sob essa égide. É típico da má crítica essa leitura sociológica que não se apega aos detalhes literários e se prende à experiência social. Isso não me interessa, eu tenho horror às interpretações sociológicas dos autores, isso desqualifica a literatura por causa da experiência social. A literatura não é expressão de um grupo social, é originalidade. Não vi ninguém elogiar o Ferréz pela qualidade do texto dele, falam mais do fato dele ser pobre e do hip-hop. Tem sido devastador ser marginal, os instrumentos de abordagem são ultrapassados, a ideia de marginalidade empobrece a nossa obra. Estamos falando de urbanidade, eu gosto mais de pensar assim, mesmo porque ninguém chamou o Graciliano Ramos de marginal pela pobreza apresentada em Vidas secas(Apud, Peçanha, 2009, p. 114-5)
A argumentação de Fernando Bonassi se baseia na recepção que os críticos
literários, leia-se também os leitores, realizam destes escritos marginais. A crítica
do autor se fixa na recorrente forma de apresentação destes autores, que utiliza
critérios sociológicos para analisar a obra literária. Na percepção do autor, ao
estabelecer a exaltação da presença destes autores na cena literária a partir de uma
análise que lança mão de categorias sociológicas, é colocado em detrimento o
valor literário presente nestas obras. Em outras palavras, Bonassi espera uma
leitura da Literatura Marginal a partir de propostos teóricos e metodológicos
unicamente ligados à Crítica Literária. Nesta perspectiva, o que importa analisar é
o texto literário e não o produtor do discurso.
A perspectiva de Bonassi se torna mais reveladora no momento em que lemos seu
posicionamento em diálogo com a sua trajetória de vida, mesmo que isso não
agrade o autor. Nascido em uma família de operários e residente no Bairro da
Moca, Bonassi não é, em essência – termo delicado –, um marginal e, muito
menos, filho de uma família abastada. Ele se fixa na fronteira, no espaço
intersticial entre a afirmação de uma condição de vida marginalizada e a exaltação
de um padrão econômico burguês. É neste local de divisão que o autor busca
produzir uma obra que seja lida unicamente pela sua qualidade literária, sem
lançar mão da produção de um discurso baseado na afirmação de sua infância e
217
juventude no subúrbio de São Paulo. Em outras palavras, o autor quer ser lido por
seu mérito literário.
A postura de Fernando Bonassi nos auxilia a pensar as propostas políticas da
Literatura Marginal sob outra perspectiva. Não estariam estes autores promovendo
um certo sensacionalismo em torno da miséria e do crime. A construção identitária,
sob este prisma, se assemelha à construção de um personagem. Os autores periféricos,
principalmente Ferréz, lançam mão de uma série de artifícios para afirmarem sua real
ligação com os setores marginalizados. Resulta deste empenho uma postura dúbia,
que pode ser lida com uma proposta política inovadora no uso da literatura como
forma de subjetivação e, em outra perspectiva, favorece a identificação de
mecanismos discursivos que atentam para o uso da periferia e do crime através de um
oportunismo sensacionalista.
No entanto, se apagarmos estas marcas sociais da Literatura Marginal sobrará
apenas um compêndio de textos que pouco traduz o ineditismo da postura destes
autores. Silenciar esta voz que agora se ergue entre os becos e vielas de diferentes
favelas, obrigando-a a não demarcar seu próprio território em um solo
tradicionalmente hierárquico e excludente – aqui a idéia de exclusão é a que melhor
define a relação entre as camadas populares e as elites letradas – seria, ao meu ver,
um posicionamento autoritário. Não restam dúvidas de que é necessário elaborar
novas maneiras de ler e travar contato com esse Outro, tomando-o não apenas como
um simples objeto a ser representado. Certamente, a melhor solução não é deixar o
marginalizado falar por si mesmo, formando um espaço discursivo amparado em um
simplório antagonismo de classe. Muito menos a melhor saída é aceitar que sejam os
intelectuais os porta-vozes deste grupo. O problema consiste em encontrar uma
solução, mas “eu acredito” – reproduzo Gayatri Chakravorty Spivak – “que enquanto
houver a consciência de que esse é um campo muito problemático, existe alguma
esperança.”(Spivak, 1990)
218
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Músicas Citadas
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“A quem possa interessar” – GOG (2006)
“Aqui ela não pode voar” – Facção Central (2003)
“A volta” – Câmbio Negro (1994)
“Brasil com p” – GOG (2000)
“Estilo cachorro” – Racionais MC’s (2002) “Fórmula mágica da paz” – Racionais MC’s (1997)
“Jorge de capadócia” – Racionais MC’s (1997)
“Judas” – Ferréz (2004)
“Mano na porta do bar” – Racionais MC’s (1993)
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“No fim não existem rosas” – Facção Central (2003)
“O homem na estrada” – Racionais MC’s (1993)
“O que os olhos vêem” – Facção Central (2003)
“O homem estragou tudo” – Facção Central (2003)
“Versículo 4, Capítulo 3” – Racionais MC’s (1997)
“Vida loka parte II” – Racionais MC’s (2002)
“Vida loka parte III – Racionais MC’s (2002)
Sítios Eletrônicos
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