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Escritos à margem: a presença de escritores de periferia na cena literária contemporânea Paulo Roberto Tonani do Patrocínio

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Escritos à margem: a presença de escritores de periferia na cena literária contemporânea

Paulo Roberto Tonani do Patrocínio

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Sumário 1. Introdução 2. Literatura Marginal, uma literatura feita por minorias 3. O “cânone marginal” 3.1. Orestes Barbosa, um olhar sobre a cidade noturna 3.2. Antônio Fraga, o Mangue como abrigo 3.3. João Antônio, o jogo de transitar pela cidade 4. Hip-Hop e Literatura Marginal, por uma pedagogia própria 4.1. A presença do RAP na Literatura Marginal 5. Uma leitura de três casos e uma possibilidade 5.1. Ferréz 5.2. Allan Santos da Rosa 5.3. Sérgio Vaz 5.4. Marcelino Freire (uma possibilidade) 6. Entre os Marginais e os Intelectuais, uma leitura não conclusiva 7. Referências Bibliográficas

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1.

Introdução

Inicio com uma cena:

Um homem – também poderia ser uma mulher; importa dizer que esse

personagem é marginalizado, e talvez negro, como quase todos os homens e mulheres

pobres marginalizados o são – transita de forma acanhada em uma superfície branca.

Em princípio sente um desconforto ao caminhar, o branco fere seus olhos e,

principalmente, não se sente seguro. Sabe que, para percorrer tal superfície com

maior familiaridade, necessita de códigos distintos, signos formulados por sujeitos

que se diferem dele e, principalmente, por instituições às quais não pertence. No

entanto, ao recordar que já havia estado ali inúmeras vezes acompanhando por um

guia, um condutor que feria o branco do ambiente com elementos negros – talvez tão

negros quanto a sua possível pele negra –, passa a sentir mais confiança. Além disso,

se agora está transitando sozinho pela superfície branca, sem a companhia do guia,

isso é resultante de sua própria vontade, de seu desejo declarado de também poder

selar a brancura de todo o espaço com os caracteres. Há uma diferença nessa nova

visita, sozinho, não necessita seguir o condutor sussurrando o que será estampado na

superfície. Mas, o personagem – devemos lembrar que ele talvez seja negro, mas é

certamente marginalizado – sabe que havia uma relação de troca com seu guia. Uma

dependência mútua. Por ser conhecedor dos signos necessários para a transformação

da superfície branca em um tecido discursivo, o condutor servia como porta-voz,

fazendo representar em complexos caracteres as angústias e desejos do nosso

personagem. Também dizer que esse nosso personagem está sozinho é, de certa

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forma, um equívoco. Lançando o olhar pela imensidão branca, ele percebe vultos

difusos, que transitam também de forma tímida. Vistos de longe, não é possível

identificar características de singularidade nos vultos. Nosso personagem, mesmo

forçando o olhar em busca de um foco mais revelador, só percebe que os vultos

também vagam sozinhos e são, em sua maioria, negros. Os vultos aos poucos

abandonam sua forma difusa e ganham contornos mais delimitados, possuindo

fisionomias próprias. Isto ocorre devido à progressiva aproximação que nosso

personagem realiza em direção aos vultos e vice-versa. Tal aproximação desencadeia

na constituição de um grupo coeso, e um observador distraído poderia dizer, sem

titubear, que o processo ocorreu como um fenômeno natural. No entanto, na

construção de um olhar mais apurado sobre o evento, será possível constatar que

negociações, acertos e discórdias, são travadas. Agora, em grupo, os vultos, que não

mais são vultos, mas, sim, sujeitos que buscam, cada qual a sua maneira e com os

mecanismos disponíveis, traçar com signos negros os seus caminhos em uma terra de

brancura plena. E, por mais que o resultado do ato de cravar tais elementos na

brancura – ato que podemos denominar de escrita – aponte para a potência criadora

do sujeito que o executou, ainda permanecem em grupo. E, dessa forma, percebemos

que não era o simples desejo de percorrer sozinhos a brancura de uma página em

branco o que motivou o abandono do guia, mas, sobretudo, a necessidade de produzir

seu próprio discurso.

A cena descrita acima tem sido encenada em nossa literária há pouco mais de

uma década. Desde o surpreendente sucesso de Cidade de Deus, de Paulo Lins,

publicado em 1997, diferentes autores residentes em bairros periféricos, favelas e

conjuntos habitacionais – em sua maioria autores negros – buscam expressar em

forma de criação literária, seja em prosa ou poesia, o cotidiano de uma expressiva

camada de nossa sociedade: as populações marginalizadas. A presença desses autores

em nossa série literária não pode ser lida como um dado isolado, mas, sim, como a

conformação de um grupo específico que deseja se fixar no seio de uma estrutura

hegemônica.

Ao tomar a publicação do romance de Paulo Lins como possível marco

inaugural desse fenômeno, desejo ler o texto do autor de Cidade de Deus enquanto

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produto discursivo que une testemunho e ficção, resultando em um novo olhar sobre a

escalada da violência nas favelas do Rio de Janeiro. Decerto, o plano temático

apresentado não é inaugurado por Paulo Lins; há tempos, diversos discursos,

sobretudo jornalísticos, empenham-se em indexar as razões do crescimento e

proliferação de quadrilhas de varejistas de drogas nas favelas. O diferencial de Lins é

o seu ponto de observação, a possibilidade de narrar os fatos a partir de sua

experiência de ex-morador da localidade, produzindo “uma experiência artística

incomum” – como observou Roberto Schwarz, em resenha publicada no Caderno

Mais do jornal Folha de São Paulo, em 7 de setembro de 1997. A singularidade de

Cidade de Deus provém da constatação da origem do discurso, da percepção de que o

local de enunciação é o mesmo do objeto. Sobrepostas as duas esferas, é criado um

espaço de conjunção entre sujeito e objeto. Ao apresentar-se como ex-morador da

favela por ele romanceada, Paulo Lins passa a ser “personagem, ator, agente que se

situa naquele mesmo espaço físico, arquitetônico e simbólico de exclusão de que

fala” (Resende, 2002, p. 158), como destacou com grande propriedade Beatriz

Resende, em Apontamentos de crítica cultural.

O caminho aberto por Paulo Lins está sendo percorrido por inúmeros autores

de periferia. Reginaldo Ferreira da Silva – mais conhecido por seu pseudônimo:

Ferréz – é o exemplo mais bem-sucedido desse empenho em estruturar um discurso a

partir do próprio referencial, formando uma compreensão das fraturas marginalizadas

da sociedade fora dos espaços centrais de saber e poder. O êxito de Ferréz deve ser

medido não apenas na expressiva vendagem de seus livros, fator que revela o alcance

de seu discurso, mas, principalmente, em sua contribuição na formação de um grupo

de autores da periferia, a chamada Literatura Marginal. Residente no Capão Redondo,

bairro da periferia de São Paulo, Ferréz é autor de dois romances, Capão Pecado

(2000) e Manual prático do ódio (2003), um livro infanto-juvenil Amanhecer

esmeralda (2005), um livro de contos, Ninguém é inocente em São Paulo (2006),

atuou como organizador dos três volumes especiais da Revista Caros Amigos

dedicados à produção literária da periferia: Caros amigos/Literatura marginal – a

cultura da periferia, que resultou em um livro organizado pelo próprio autor, lançado

pela Editora Agir, em 2005. Por fim, também é importante destacar que Ferréz

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fundou, em 2008, uma editora independente, destinada unicamente à publicação de

autores periféricos cuja comercialização é baseada em preços populares, a Editora

Literatura Marginal/Selo Povo.

Desse elenco de ações e publicações do autor, uma das mais relevantes é a

atuação do autor na produção e divulgação dos suplementos literários da Revista

Caros Amigos. Além do alcance da distribuição dos três volumes, com uma tiragem

de 30.000 exemplares, foi através destes suplementos que diferentes autores

periféricos, a convite do próprio Ferréz, puderam publicar seus escritos e ganharem

visibilidade. Ao reunir escritores de diferentes periferias do Brasil, as três edições

especiais podem ser lidas como um importante marco na formação e estruturação

desse grupo de autores, fundando um espaço próprio. A formação desse espaço não

repousa apenas na articulação entre vozes que outrora estavam dispersas, mas,

igualmente, na estruturação de uma argumentação em favor da existência de um

conjunto de autores periféricos que cobra para si um lugar na cena literária

contemporânea. Tal argumentação é apresentada nos manifestos que abrem cada

publicação. No primeiro suplemento especial, Literatura Marginal – A cultura da

periferia, publicado em 2001, no “Manifesto de abertura: Literatura Marginal”,

Ferréz apresenta a publicação como “O significado do que colocamos em suas mãos

hoje é nada mais do que a realização de um sonho que infelizmente não foi vivido por

centenas de escritores marginalizados deste país” (Ferréz, L.M.-I, p.3) E, na

argumentação proposta pelo autor, o papel da publicação é preservar uma memória e

uma cultura que não encontra espaço nos discursos hegemônicos que buscam apagar

tais referências populares/marginais:

Jogando contra a massificação que domina e aliena cada vez mais os assim chamados por eles de “excluídos sociais” e para nos certificar de que o povo da periferia/favela/gueto tenha sua colocação na história e não fique mais quinhentos anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de sua própria cultura, a Caros Amigos/Literatura Marginal vem para representar a autêntica cultura de um povo composto de minorias, mas em seu todo uma maioria. (Idem, Ibidem)

Não se trata apenas de uma busca pela inserção no espaço literário, mas,

também de utilizar a literatura enquanto veículo de um discurso que almeja uma

representatividade política para um grupo silenciado.

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Mas estamos na área, e já somos vários, e estamos lutando pelo espaço para que no futuro os autores do gueto sejam também lembrados e eternizados. Neste primeiro ato, mostramos as várias faces da caneta que se manifesta na favela, pra representar o grito do verdadeiro povo brasileiro. (Idem, Ibidem)

Representar, na concepção de Ferréz, designa a representatividade política dos

autores em contato com os setores marginalizados. Ou seja, os escritores que

compõem esse grupo passam a ser visto como os únicos habilitados a produzirem

uma literatura sobre a periferia. Tal noção, reforçada de diferentes formas pelos

autores da Literatura Marginal, passa a nortear a formação política do grupo. No

entanto, no segundo suplemento especial, Literatura Marginal – A cultura da

periferia, publicado em 2002, após apresentar uma breve definição do grupo – “A

Literatura Marginal, sempre é bom frisar, é um literatura feita por minorias, sejam

elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à margem dos núcleos centrais do

saber e da grande cultura nacional, ou seja, os de grande poder aquisitivo”, Ferréz

busca relacionar a Literatura Marginal a outros autores do passado, como Plínio

Marcos e João Antônio, ato que podemos ler como a formação de um cânone, assim

como a outras definições de Marginal:

Também não vamos nos esquecer que em São Paulo, no gueto da Boca do Lixo, e no Rio de Janeiro, nas rebarbas da geração Paisandu e do elitismo etílico de Ipanema, se fazia um certo cinema marginal, na periferia dos grupos de vanguarda do cinema novo. Desse tempo também é o manifesto “Seja Marginal, Seja Herói”, de Hélio Oiticica”(Ferréz, L.M.-II, p. 2).

Este aspecto mencionado por Ferréz merece uma análise mais atenta no desejo

de localizar as especificidades que o termo/conceito marginal pode adquirir para cada

grupo cultural (autores de periferia e cineastas atuantes fora de um circuito

estabelecido) e nas diferentes áreas das ciências humanas (sociologia e crítica

literária). Um primeiro aspecto a ser delimitado é iniciar a busca por um possível

significado e os diferentes usos que este termo/conceito recebeu não apenas no campo

dos estudos literários, mas, igualmente, nos estudos de cultural. Podemos dizer que

ser marginal é, antes de tudo, se colocar, ou ser colocado, em uma posição antagônica

a algo. O emprego do termo já traz em si uma forte carga metafórica que se baseia em

categorias territoriais. Além disto, o dado antagônico revela a formação de um jogo

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de oposições, na qual o marginal surge enquanto elemento contrário ao centro. A

potência deste modo de leitura, que se baseia na existência de elementos estanques,

oferece uma visibilidade ímpar para a compreensão e análise do cenário cultural e

literário no qual parecem duelar tais sujeitos discursivos.

No entanto, a ocupação deste espaço não é decerto um ato simples. Em outros

termos, ser marginal é não ocupar de modos distintos um mesmo centro. Pois, é

importante recordarmos que não ser o centro pode ser um ato político performático,

propondo um posicionamento que deve ser lido como uma forma de resistência;

assim como pode ser a definição de um conjunto de textos não centrais, que a partir

de critérios hierarquizantes são denominados de marginais.

Neste último caso, vale destacar como exemplo a coletânea de crônicas

Marginália, de Lima Barreto. A classificação dos escritos que compõem a publicação

enquanto marginais obedece a critérios formados pelo próprio autor, como podemos

observar na crônica “A questão dos poveiros”: “Organizei assim uma ‘marginália’ a

esses artigos e notícias. Uma parte vai aqui (...) Ei de publicá-la um dia” (Barreto,

p.32, 1956). O termo marginália, na acepção de Lima Barreto, designa um método de

elaboração que consiste em “anotações à margem”, assim como reflexões produzidas

em forma de artigo para a veiculação em jornais. É interessante notar a existência de

uma demarcação baseada na temporalidade para a classificação desta marginália, o

efêmero passa a orientar a recolha dos textos. A efemeridade da crônica, uma vez que

está ligada ao tempo presente do processo de escrita, abordando no calor do momento

os acontecimentos e registrando-os em letra de fôrma, parece também determinar a

marginalidade do texto. Nestes termos, a natureza do texto, sobretudo a sua estrutura,

passa a ser o índice necessário para a definição de uma literatura marginal, como

sinalizou Lima Barreto.

Ao receberem a denominação de marginália, os textos passam a ocupar outro

espaço no próprio conjunto da obra, formando, assim, uma estrutura hierarquizada.

Nesse sentido, não estamos lidando com uma literatura marginal, mas, sim,

marginalizada, para citar o termo empregado por Arnaldo Saraiva, no livro:

Literatura Marginalizada. Publicado em 1975, o estudo de Saraiva problematiza o

desprezo da teoria literária em relação a produtos discursivos populares e interroga os

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limites e possibilidades do campo disciplinar dos estudos de literatura frente a estes

objetos. Importante destacar que Arnaldo Saraiva define enquanto marginal as

literaturas populares, principalmente de cordel, devido o silêncio dos críticos frente a

este objeto, que a transforma em um objeto posto a margem e um sistema literário

que a desqualifica e apenas repete a mesma história literária dos cânones oficiais: “A

literatura dita popular, antiga ou recente, tem sido a maior vítima dos muitos e vários

censores que têm existido ao longo da sua história – e que obviamente não

desapareceram com o 25 de Abril” (1975, p. 106). Na citação é evidente o aspecto

datado da análise. Hoje, com a já consagrada recepção dos Estudos Culturais, a

classificação de uma literatura enquanto marginal devido a sua origem popular, soa

como algo quase anacrônico. No entanto, é partir desse olhar contemporâneo que os

questionamentos do crítico português ganham novo relevo, devido a sua originalidade

na abordagem de um campo que no período era pouco explorado. Além disso, em sua

análise a designação “literatura marginal” não assinala um julgamento pejorativo,

antes pretende “favorecer a incorporação no espaço da verdadeira “literatura” de

inúmeros textos que eram ou são colocados “à margem” dela, não importa se por

injúria, por preconceito, por censura ou por ignorância, desta forma marcando “a

provisoriedade e artificialidade do fenômeno da marginalização literária”.(Idem, p.

108)

A provisoriedade e a artificialidade, na leitura de Arnaldo Saraiva, são duas

características de um fenômeno de marginalização que é impulsionado pelo fato

destes objetos serem preteridos pela crítica. Ao ser alçada à categoria de objeto, tais

manifestações literárias deixarão de ocupar a margem.

O questionamento acerca dos limites e possibilidades do termo marginal para

denominarmos parte da produção literária não é novo. Em ensaio publicado no livro

Crítica literária em nossos dias e a literatura marginal, lançado em 1981, Robert

Ponge interroga: “A partir do momento que se fala em marginal (pessoa, corrente

literária, etc), levanta-se a questão: o que é a marginalidade? Onde começa? Onde

termina? Está à margem de quê? De quem?”(Ponge, 1981, p. 137). O leque de

questões apresentado pelo crítico problematiza não apenas a aplicação do conceito,

mas, principalmente, sua definição. Reconhecendo que a utilização do termo marginal

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é na maioria das vezes de fundo impressionista, sem rigor teórico, na qual predomina

a aplicabilidade indiscriminada do termo, Ponge propõe uma definição sintética que

repousa na afirmação de que a Literatura Marginal é aquela que aparece à classe

dominante como sendo outra, não lhe pertencendo. (Idem, p. 139.). E, a partir dessa

breve definição, o autor busca sua aplicação em possíveis vertentes da Literatura

Marginal retirados de literatura francesa, sendo eles: (a) a literatura de mulheres em

revolta, que congrega nomes como Hélène Cixous e Victoria Thérame, designando

não apenas a existência de um grupo de autoras que escreveram sobre mulheres, mas,

principalmente, o aparecimento de uma proposta centrada no feminino; (b) A

literatura proletarizante, que segundo o próprio Robert Ponge, é uma proposta de

escrita que fala dos proletários e através deles, entre os escritores que merecem

destaque podemos citar Joseph Benoit, Louise Michel e Louis Montagut; e, por fim,

o autor também sinaliza para a existência de uma proposta literária marginal que pode

ser denominada como (c) A literatura de indivíduos marginalizados, caracterizada

enquanto uma literatura de minorias nacionais ou centrada em formas de

representação de sujeitos desviantes da norma burguesa, como hippies, beatniks,

drogados, misfits ou homossexuais.

A delimitação proposta pelo autor, mesmo que fixada em exemplos recolhidos

da literatura francesa, é rentável para observar o sentido político agonístico que

orienta o olhar do crítico. Nesses termos, passa a ser denominada enquanto marginal

não apenas a literatura que está à margem, mas aquela que se coloca à margem

enquanto proposta de intervenção literária que busca lançar uma sombra na

modelação do sujeito burguês. É importante notar que nos três eixos classificatórios

propostos pelo autor, todos se baseiam na estruturação de um discurso que se quer

contrário a um modelo forjado pela sociedade, seja no corte de gênero, de classe ou

de padrão de comportamento.

Por outro lado, Sérgius Gonzaga, em artigo publicado no mesmo livro,

expande o conceito de Literatura Marginal ao propor uma caracterização que não se

baseia apenas em uma apreciação do caráter político das obras. O autor propõe uma

leitura historicista acerca da utilização do conceito e, principalmente, de sua

acomodação para nomear parte significativa da literatura produzida na década de

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1970. Desse posto de vista, a marginalidade surge em decorrência da própria estrutura

política do período.

A euforia do milagre tornou suspeita qualquer forma de debate cultural e o letrado perdeu o respaldo das classes médias que apoiavam seu discurso populista. Neste instante, a condição marginal oferece uma resposta. Após a desilusão, o escritor começava a se ver como um sujeito fora do processo social, ou então descobria-se falando em nome dos sujeitos marginalizados pela expansão interna do capitalismo. (Gonzaga, 1981, p.147)

O intelectual perde o respaldo da classe média e busca amparo nos marginais,

identificando neste ato de aproximação uma possível saída para o impasse sobre a sua

atuação. No entanto, não é apenas um ato de solidariedade, mas de construção de uma

identidade e de projeto, ligando sua condição de escritor à condição dos sujeitos

marginalizados pelo avanço de um processo modernizador autoritário.

Contudo, mesmo que o autor aponte para a existência de um marco político

que orienta a constituição deste projeto de ligação entre intelectuais e marginais, é

igualmente colocado em destaque a existência de uma postura marginal no exercício

da linguagem e na escolha dos objetos. Por esse viés, além do sentido político, a

definição de literatura marginal acaba por alcançar também a própria dimensão

estética do texto literário. Dito isto, o autor apresenta uma espécie de esquema que

esquadrinha três vertentes que lidam com o conceito de forma distinta: os marginais

da editoração, os marginais da linguagem e os marginais por apresentarem a fala

daqueles setores excluídos dos benefícios do sistema.

Interessa-me, sobretudo, esta última categoria. Pois, a partir da leitura

produzida pelo autor, torna-se rentável estabelecer as possíveis aproximações e os

distanciamentos entre esta manifestação da década de 1970 e a produzida na

contemporaneidade. Em outras palavras, é possível observar como é operado uso do

termo marginal para denominar a proposta de autores que se empenharam em

representar os setores mais baixos da sociedade – ainda que não sejam eles mesmos

marginais – e a consequente adaptação deste termo para designar a literatura

produzida por autores ligados à periferia – esses, sim, marginais.

No elenco dos autores marginais da década de 1970 que buscavam apresentar

sua produção enquanto ferramenta de uma denúncia da condição de vida dos setores

excluídos do milagre o nome de maior destaque é João Antônio. Seja pelo volume de

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sua obra, pelo vulto de sua fortuna crítica ou pelo papel de porta-voz do grupo, João

Antônio figura como autor exemplar de um tipo de literatura que, nos dizeres de Flora

Süssekind, “opta por negar-se enquanto ficção e afirmar-se como

verdade”(Süssekind, 2004, p. 99). A busca pela verdade surge como uma forma de

resposta aos mecanismos repressivos vigentes no período. A prosa fica ancorada ao

jornalismo e o utiliza como uma espécie de modelo, atribuindo à literatura a função

de relatar e retratar sujeitos/personagens em condições inenarráveis à grande

imprensa. Na leitura de Sérgius Gonzaga, é a escolha dos protagonistas, situações e

cenários que permite a denominação deste conjunto de textos enquanto marginais.

Embora alguns dos autores dessa tendência autodefinam-se como maditos, não pairam acima ou abaixo do organismo social, como queriam os malditos do romantismo europeu. Sua rebeldia dá-se no momento em que tentam enquadrar, no corpus artístico, as frações eliminadas do processo de produção capitalista.(Gonzada, op. cit., p. 151).

O conto-notícia de João Antônio ou o romance-reportagem de José Louzeiro,

para citar outro escritor de destaque no período, podem ser acionados como os casos

mais representativos desta busca pelo realismo. Nesses, o leitor passa a travar contato

direto com temas emblemáticos de uma realidade social marcada pela desigualdade.

Crianças desvalidas, crimes chocantes, bandidos, malandros e prostitutas são os

principais personagens de um cenário que descortina um retrato que se quer próximo

da realidade. O empenho destes autores em retratar certos aspectos da sociedade

brasileira, oferecendo maior destaque a um conjunto invisível de sujeitos da periferia

urbana, resulta também na construção de um posicionamento político que lança mão

da escrita como veículo de denúncias. No entanto, para consolidar esta experiência

literária foi necessário também construir uma imagem própria para o escritor, afirmar

sua dupla proximidade com o tema, “que parecia oscilar entre marginalidade

semelhante à dos personagens que representava e o heroísmo de um “Robin Hood” de

classe média que se imaginava sempre ao lado ‘dos fracos e oprimidos’”(Süssekind,

op. cit., p. 99).

Leitura semelhante foi produzida por Ana Cristina Cesar, no ensaio “Malditos

marginais hereges”, reunido no livro Escritos no Rio, acerca da postura dos escritores

empenhados em retratar o povo marginalizado: “A intenção é construir a identidade

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de escritor com o povo a partir da própria vida do escritor ( ou de dados bem

selecionados dessa vida). De um escritor que, supostamente, não é consagrado, que

ganha concursos mas é esnobado ou explorado pelas editoras.”(Cesar, 1993, p.111).

De forma sintética, Ana Cristina Cesar alcança uma leitura possível do ato

performático realizado pelos escritores que se empenham em operar enquanto

representantes do povo, seus porta-vozes. O exame crítico produzido por Ana Cristina

Cesar tem como objeto uma coletânea de contos publicada em formato de revista e

comercializada em bancas de jornal. Coordenada por João Antônio, a coletânea

congrega os índices que podem ser tomados como característicos da produção

literária da década de 1970 que narrava os marginais. Com uma apresentação gráfica

inspirada em revistas periódicas de notícias, a publicação traz no topo a expressão

“Extra”, seguida da sentença: “Realidade Brasileira”. No centro, em letras garrafais,

temos a adjetivação dos autores: “Malditos escritores!”. Para completar o jogo de

inspiração com as revistas de notícias e alardear ainda mais a busca pelo realismo

factual, na capa os escritores são retratados em fotografias 3x4 com expressões sérias,

remetendo claramente às imagens de presos fichados pela polícia. Na apreciação de

Ana Cristina Cesar, o empenho em produzir tal efeito estético revela o desejo destes

autores de enfatizar sua proximidade com o objeto narrado. O escritor maldito é

apresentado enquanto um marginal, semelhante aos seus personagens, como observa

a crítica:

Num golpe de mestre, ficou construída a identidade de classe entre o “nosso povo” e o “escritor típico do misere cultural”. Quem melhor para fazer literatura sobre este povo? Para narrá-lo, representá-lo, expressá-lo, dar-lhe voz? Se defeitos há nessa literatura, a culpa será do misere: a rapidez do trabalho, a angústia do momento, a exigüidade geral, os dias que correm, a pobreza do nosso jornalismo, a censura, a ineficiência dos concursos, e até a falta de intimidade maior entre as pessoas e os lugares, o pouco perambular pelas ruas. São fraquezas contingentes. Haverá talento e honestidade e busca sincera do povo. (Idem, p. 112)

A leitura desta publicação revela aspectos importantes acerca do projeto

literário proposto por estes escritores. É visível o uso de um tom messiânico, no qual

o exercício da escrita ficcional abre espaço para uma forma de intervenção que se

baseia na revelação de uma realidade social oculta. No entanto, como destacou Ana

Cristina Cesar, tal realidade é observada e desvelada por um olhar solidário que busca

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na miséria e na marginalidade fonte de inspiração, mas não a contesta. Em outras

palavras, o escritor maldito – que se quer marginal e semelhante aos personagens que

povoam seus escritos – alimenta-se da miséria do outro, mas não lança um olhar

crítico frente à matéria narrada. Nas palavras de Ana Cristina Cesar:

Intenção do narrador: levar o leitor a compadecer-se das vítimas, revoltar-se contra o inimigo e os carrascos. Comover o leitor, sacudi-lo, identificá-lo à situação. Culpar e chocar, se necessário. Arrancar o leitor de suas frescuras e introduzi-lo a este mundo “mais real”.(Idem, p. 115)

Mesmo que colada na leitura da já citada revista, os apontamentos da autora

podem ser utilizados como índices exploratórios desta vertente literária marginal.

Contudo, a adoção do termo marginal para nomear parte da produção literária da

década de 1970 é resultante da observação da existência de um eixo temático

predominante nas obras. Os autores proclamam a marginalidade enquanto identidade

artística, acionando uma postura crítica acerca do fazer literário.

No caso dos autores contemporâneos, a utilização do termo marginal assume

nova nuances. É importante notar que para os autores da periferia, a utilização desta

categoria condiciona o seu uso enquanto um importante lócus identitário que

possibilita a afirmação de uma postura política. No entanto, é perceptível que para

estes sujeitos periféricos o termo marginal designa um fenômeno social urbano.

Como observa João Camilo Penna, no artigo “Estado de exceção”:

esta população não é de fato excluída ou pura e simplesmente marginalizada. Trata-se, em sua grande maioria, de cidadãos respeitadores da lei, que trabalham, que veem as mesmas novelas da TV, e que têm opiniões e ambições semelhantes, senão idênticas, a toda a população brasileira.(Penna, 2007, p. 191)

Compreender a marginalidade apenas na perspectiva socioeconômica se torna

insuficiente. Posto que estes sujeitos, em diferentes graus, são consumidores e

atuantes na esfera pública. A marginalidade não é apenas uma marca passiva que se

fixa no sujeito, um desígnio social que nunca será rompido ou obtliterado, mas, sim,

uma posição que estabelece o sujeito fora de um centro, com o qual este mantém

relações orgânicas e dinâmicas. Mesmo que, na perspectiva dos autores pertencentes

ao movimento, ser marginal seja estar situado à margem, residir na periferia e

pertencer a um setor socioeconômico específico que dificulta seu acesso aos direitos

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sociais mínimos, esta posição de distanciamento de um centro não impede o acesso

ao centro. Dessa forma, antes de uma compreensão socioeconômica para o fenômeno

da marginalidade, a definição utilizada pelos autores se baseia em critérios espaciais,

localizando no próprio território as marcas de uma vivência periférica.

É possível identificar alguns pontos de convergência entre a definição de

marginal proposta por esses autores periféricos e a compreensão que esse termo

possui para o grupo de artistas que igualmente o utilizaram na década de 1960/70

como signo identitário. Há uma clara intencionalidade estética no uso do termo

marginal em artistas como Hélio Oiticica, conforme observa Frederico Oliveira

Coelho, em seu estudo Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado. Cultura

marginal no Brasil dos anos 60 e 70. De acordo com Coelho, na década de 1960 e

1970 o movimento artístico marginal que utiliza como veículo a literatura, o cinema,

a arte e imprensa, relacionava o termo a sua forma de atuação, propondo uma relação

marginalizada frente ao mercado consumidor e às práticas culturais dominantes. Ou

seja, a marginalidade era utilizada no cenário cultural como categoria que

representava setores sociais desviantes ou não pertencentes aos grupos beneficiados

pelo regime militar pós-64. O marginal, que poderia designar tanto os moradores de

favelas, desempregados, retirantes nordestinos e bandidos, simbolizava para estes

artistas o não pertencimento às estruturas sociais hegemônicas e autoritárias,

representando a não integração ao modelo de modernização conservadora perpetrado

pelo Estado de forma autoritária e excludente. A leitura produzida por Heloisa

Buarque de Hollanda torna mais clara a intencionalidade do grupo de artistas da

década de 1960 e 1970 ao adotar tal terminologia: “A marginalidade é tomada não

como saída alternativa, mas no sentido de ameaça ao sistema; ela é valorizada

exatamente como opção de violência, em suas possibilidades de agressão.”(Hollanda,

1980, p. 68)

Pensando-se no sentido atribuído ao termo marginal na contemporaneidade, é

possível perceber uma possível correlação com as atribuições produzidas na década

de 1960-70. A maior distinção entre os dois grupos se dá na própria origem social dos

pertencentes. Hoje é o sujeito pertencente à margem que utiliza esse termo como

referência e não, como no passado, o artista oriundo de outro estrato social que busca

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nos setores marginalizados uma forma de atuação artística e política que possibilite a

criação de uma performance de contestação. No entanto, ainda que a constituição dos

sujeitos discursivos seja distinta, o signo da marginalidade ainda permite a formação

de um discurso de resistência que se fixa no confronto a uma determinada norma

estabelecida, seja ela estética ou ética.

O movimento contemporâneo de autores oriundos de bairros populares, aqui

denominado de Literatura Marginal, é muitas vezes também denominado de

Literatura Periférica. Periferia – termo amplamente utilizado pelos músicos do Hip

Hop, como no belo RAP do grupo Racionais MC’s: “Periferia é periferia em qualquer

lugar” – apresenta, assim como margem, uma clara compreensão espacial para a

definição do grupo. São periféricos e marginais aqueles não pertencentes ao centro,

que estão fora do espaço hegemônico. A adoção desses dois termos revela a feição

política que esse movimento possui e a sua relação com esses territórios

negligenciados e quase esquecidos: não centrais. Contudo, proponho a utilização do

conceito Marginal e Marginalidade para operar minhas leituras e análises. Dessa

forma, recuso a ideia de exclusão social, identificando neste conceito uma perversa

noção etnocêntrica, que concebe os territórios periféricos como não pertencentes à

cidade e, principalmente, como detentores de uma população não atuante na esfera

pública da cidade. A Literatura Marginal, e todo o movimento Hip-Hop que aglutina

inúmeros jovens da periferia, revelam justamente uma ideia contrária à de exclusão,

afirmando o poder de articulação e contestação desses sujeitos. A opção por nomear

tais sujeitos e territórios como marginais deriva, em primeiro lugar, da constatação de

que é este o conceito utilizado pelos próprios autores do movimento que pretendo

analisar. Além disso, a noção de marginalidade apresenta uma importante

ambiguidade, amplamente trabalhada nos textos que serão analisados, significando

tanto o sujeito que atua fora das grandes cadeias hegemônicas e centrais como,

principalmente, os sujeitos em conflito com a lei. O marginal, nesse sentido, tanto é o

trabalhador assalariado que reside na periferia, quanto o jovem varejista do

narcotráfico.

Ao assumirem este termo como signo identitário, os autores marginais

instauram uma espécie de cisão na produção literária nacional, demarcando um

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terreno específico de produção e de atuação. Cria-se, nesse sentido, um discurso

minoritário centrado na estruturação de ações que visam o estabelecimento de uma

nova representação dos setores periféricos. A separação, que em princípio obedece a

critérios de seleção dos autores pertencentes ao movimento literário, é descrita por

Ferréz como um ato de apropriação, como podemos observar no trecho abaixo,

recolhido do texto-manifesto “Terrorismo Literário”, assinado por Ferréz e publicado

na coletânea Literatura Marginal, talentos da escrita periférica, organizada pelo

mesmo autor e publicada pela Editora Agir:

Cansei de ouvir: - Mas o que cês tão fazendo é separar a literatura, a do centro e a do gueto. E nunca cansarei de responder: - O barato já tá separado há muito tempo, só que do lado de cá ninguém deu um gritão, ninguém chegou com a nossa parte, foi feito todo um mundo de teses e de estudos do lado de lá, e do cá mal terminamos o ensino dito básico. Sabe o que é mais louco? Neste país você tem que sofrer boicote de tudo que é lado, mas nunca pode fazer o seu, o seu é errado, por mais que você tenha sofrido você tem que fazer por todos, principalmente pela classe que quase conseguir te matar, fazendo você nascer na favela e te dado a miséria como herança. (Ferréz, 2005, p. 13)

A argumentação apresentada por Ferréz como resposta à recorrente crítica da

“separação” entre literatura do centro e do gueto, busca amparo em uma

temporalidade não demarcada, mas suficientemente representativa de sua existência:

“já tá separado há muito tempo”. A estratégia adotada pelo autor é afirmar esta

separação. Não são criadas formas de inclusão, mas, ao contrário, são estabelecidos

espaços de aglutinação de vozes que possam delimitar uma produção literária deste

grupo silenciado. Cria-se, nesse sentido, um discurso minoritário que se ergue no

interstício social originado pela desigualdade.

Para compreender a especificidade deste desejo de diferenciação da margem,

se faz necessário formar um referencial teórico que possibilite lançar novas luzes

sobre esta disputa discursiva. Os conceitos “pedagógico” e “performático”,

formulados por Homi K. Bhabha a partir de sua análise sobre a formação das nações

modernas, são úteis para vislumbrar a particularidade destes discursos marginais

frente à pretensa fala hegemônica da nação. A leitura produzida por Bhabha está

amparada nas formulações de Benedict Anderson e Ernest Renan que destacam a

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nação enquanto um aparato discursivo, cujo objetivo é construir uma “comunidade

imaginada”, para citar a expressão de Anderson. No entanto, não se trata de lançar

esta proposta de leitura da nação enquanto uma perspectiva teórica que substitui as

clássicas análises baseadas em categorias políticas específicas e análises centradas na

historiografia, mas, sim, ler tais aparatos discursivos da nação como

estratégias complexas de identificação cultural e de interpelação discursiva que funcionam em nome do povo ou da nação e tomam sujeitos imanentes e objetos de uma série de narrativas sociais e literárias.(Bhabha, 1998, p. 199)

Seguindo os passos de Bhabha, é possível observar que estes autores, ao

formularem um discurso estruturado a partir do signo da diferença, instauram uma

rasura na escrita homogeizante da nação. O ato performático, nesse sentido, é

observado na existência deste discurso contrário e, principalmente, na eclosão de uma

escrita que rompe com a homogeneidade proposta pelos discursos pedagógicos.

Como teoriza Homi K. Bhabha:

O pedagógico funda sua autoridade narrativa em uma tradição do povo, descrita por Poulantzas como um momento de vir a ser designado por si próprio, encapsulado numa sucessão de momentos históricos que representa uma eternidade produzida por autogeração. O performativo intervém na soberania da autogeração da nação ao lançar uma sombra entre o povo como imagem e sua significação como um signo diferenciador do Eu, distinto do Outro ou Exterior.(Bhabha, 1998, p. 209)

Na conceituação proposta pelo crítico, as nações modernas são fundadas por

uma autoridade narrativa que almeja produzir um discurso homogeneizante e

conciliador das diferenças internas. O resultado deste recurso baseado na narração é a

adoção de uma proposta pedagógica nacionalista que consiste na absorção e

esvaziamento dos elementos antagônicos presentes no interior da nação. Contudo, o

pressuposto apresentado por Bhabha também busca identificar as performances

narrativas que incidem no movimento oposto, ou seja, os discursos formados no

desejo de rasurar a pretensa fala pedagógica e lançar uma sombra no discurso

hegemônico. Tais operações discursivas são nomeadas pelo autor como performáticas

ou performativas. Pois são discursos em ato que interrompem a noção de tempo

empregada pela estrutura pedagógica da nação, que se baseia na autogeração, e

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apontam para um significado de povo não heterogêneo. Estes pólos discursivos

surgem como elementos conflitantes e será

a tensão entre o pedagógico e o performativo (...) na interpelação narrativa da nação converte a referência a um “povo” – a partir de qualquer que seja a posição política ou cultural – em um problema de conhecimento que assombra a formação simbólica da autoridade nacional. (idem, p.207)

Por este turno, a simples existência de um discurso performativo produz um

abalo na produção narrativa pedagógica, instaurando uma instabilidade na estrutura

discursiva que objetiva a conciliação dos opostos, como avalia Homi K. Bhabha:

As contra-narrativas da nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras – tanto reais quanto conceituais – perturbam aquelas manobras ideológicas através das quais “comunidades imaginadas” recém identidades essencialistas. (idem, p. 209)

Estes sujeitos periféricos, empenhados em produzir um discurso próprio, mais

do que produzir uma fala que entre em conflito com a narrativa pedagógica, estão

primeiramente empenhados em consolidar uma proposta discursiva específica sobre a

margem. Nesse sentido, é possível constatar não apenas o empenho destes autores em

afirmar a diferença da periferia frente a outros setores da sociedade através do texto

literário, mas, igualmente, a partir de um complexo empreendimento cultural que

utiliza linguagem, música, arte, vestimentas, etc. À literatura são acrescidas outras

manifestações culturais e sociais que também objetivam uma imagem própria baseada

na diferença social. Ou seja, o movimento/grife 1 da Sul, criado por Ferréz; a

realização da Semana de Arte Moderna da Periferia, organizada por Sérgio Vaz e

outros poetas da Cooperativa Cultural da Periferia, a Cooperifa; a criação da Edições

Toró, idealizada por Allan Santos da Rosa, são alguns dos muitos exemplos de

articulação destes autores periféricos no desejo de constituição de espaços próprios

voltados exclusivamente para a reflexão sobre os setores marginalizados. Tais

elementos ressoam como um mecanismo de intervenção social que almeja a criação

de uma identidade própria em oposição aos grupos sociais pertencentes ao centro. A

leitura produzida por Homi K. Bhabha oferece novas luzes a esta questão:

Cada vez mais, o tema da diferença social emerge em momentos de crise social, e as questões de identidade que ele traz à tona são agonísticas; a identidade é reinvindicada a partir de uma posição de marginalidade ou em

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uma tentativa de ganha o centro: em ambos os sentidos, ex-cêntrica. (Idem, p. 247)

No caso específico da Literatura Marginal, e das diferentes ações

desencadeadas pelos autores pertencentes a este movimento, percebemos a

reivindicação de uma cultura própria e cerceada aos espaços marginais. A noção que

orienta tal perspectiva cultural se baseia em uma ideia de cultura essencialista e

definidora dos sujeitos residentes em favelas e bairros periféricos, como destaca Érica

Peçanha, em Vozes marginais na literatura: “A ideia essencialista de uma cultura da

periferia, defendida pelos escritores estudados, e exclusiva dos moradores das

periferias, pressupõe um mundo à parte.”(Peçanha, 2009, p. 56)

Tal concepção de cultura, mesmo que equivocada e ultrapassada, recebe uma

conotação política agonística ao propor uma hierarquização entre culturas, almejando

o estabelecimento de uma rígida separação entre a cultura periférica – leia-se também

de rua – e a cultura do centro – leia-se também burguesa.

Os signos criados para conformar essa identidade cultural periférica agonística

revelam o intento em realçar a diferença social destes setores marginalizados.

Favelas, conjunto habitacionais e bairros de subúrbio surgem como espaços exteriores

à urbe, não dialógicos e antagônicos ao centro. Tal rigidez do discurso busca

fundamentar um movimento de oposição à configuração social estabelecida através

de reunião de posturas e falas que buscam romper com a conciliação.

Com o objetivo de localizar a operação destes mecanismos discursivos é

necessário propor um modo de leitura que não se baseie apenas no texto literário e

que possibilite colocar em relevo o próprio movimento que o discurso opera, tratando

a literatura como um veículo de intervenção social. Dessa forma, os pressupostos

teóricos dos Estudos Culturais serão acionados com este intuito. Além disso, através

deste referencial teórico será possível ler e analisar as diferentes produções culturais

marginais sem recorrer a instrumentais hierárquicos e excludentes. Tendo como ponto

de partida o desejo de apresentar um olhar crítico sobre as representações da margem

e, principalmente, acerca da periferia enquanto produtora de signos culturais e

discursivos, é fundamental para a realização deste exame utilizar um corpus teórico

que auxilie a análise de discursos tão heterogêneos e contrastantes do ponto de vista

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formal. Não se trata de formular um novo conceito de literatura, mas, sim, de utilizar

novas ferramentas para empreender um olhar que revele a especificidade de cada

manifestação cultural analisada, abandonando assim uma percepção que se baseie

apenas nos valores estéticos das obras.

Ao optar por não realizar apenas uma leitura estética destes discursos, coloco

em destaque uma compreensão ética destas manifestações. Certamente, para o pleno

resultado deste empreendimento crítico se faz necessário recorrer a uma noção mais

ampla de cultura, objetivando não somente dar voz a estes sujeitos, mas utilizar um

método de análise desses discursos que possibilite a emergência destas vozes outrora

silenciadas. Além disso, ao utilizar as definições e teorias formuladas por

pesquisadores dos Estudos Culturais irei compreender as produções discursivas dos

autores marginais em uma relação mais ampla com a sociedade, identificando os

diálogos que tais textos possuem não apenas com a produção literária contemporânea,

mas, igualmente em uma perspectiva política e social. Posto que, conforme observa

Douglas Kellner, em A cultura da mídia,

Os Estudos Culturais britânicos situam a cultura no âmbito de uma teoria da produção e reprodução social, especificando os modos como as formas culturais serviam para aumentar a dominação social ou para possibilitar a resistência e a luta contra a dominação. A sociedade é concebida como um conjunto hierárquico e antagonista de relações sociais caracterizadas pela opressão das classes sociais, sexos, raças, etnias e estratos sociais subalternos. Baseando-se no modelo gramsciano de hegemonia e contra-hegemonia, os estudos culturais analisam as formas sociais e culturais “hegemônicas” de dominação, e procura forças “contra-hegemônicas” de resistência e luta. (Kellner, 2001, p. 47-48)

Nessa perspectiva, os produtos discursivos marginais serão analisados como

manifestações contra-hegemônicas, resultantes de um esforço em produzir uma

imagem própria sobre a vivência marginalizada. O modelo teórico adotado, nesse

sentido, busca um relacionamento direto entre as manifestações culturais, Estado,

economia, sociedade e vida diária.

O principal desafio no tocante à elaboração das análises foi estabelecer qual

corpos que seria acionado para compor minha leitura. Mesmo que o principal objetivo

seja ler a constituição deste grupo de autores da periferia, buscando estabelecer os

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possíveis contornos estéticos e éticos destes escritos formados a partir da égide

“Literatura Marginal”, é necessário definir quais autores e obras serão selecionadas.

A principal dificuldade foi propor uma relação de autores que fosse

representativa dentro de um grande volume de publicações. Afinal, no breve período

de uma década, despontaram diferentes autores marginais no cenário literário

brasileiro. Os nomes são muitos e propor uma apresentação de todos aqui, nesta

introdução, seria exaustivo e pouco auxiliaria o desenvolvimento de minha reflexão.

Importa dizer que a Literatura Marginal ganhou as ruas e becos da periferia e reúne

um considerável número de sujeitos periféricos. O nome mais conhecido e de maior

destaque é Ferréz, a este podemos adensar Allan Santos da Rosa e Sérgio Vaz. Os três

autores serão objeto de uma leitura específica desta Tese. Mas, ao selecionar estes

autores como referência, estou igualmente excluindo outros, como Ademiro Alvez de

Sousa, mais conhecido pelo pseudônimo de Sacolinha e Alessandro Buzo. Graduado

em Letras e morador da periferia paulistana, Sacolinha é autor de Graduado em

marginalidade (2005) e 85 letras e um disparo (2007). Através de sua atuação no

Projeto Cultural Literatura no Brasil, o autor participa de diferentes eventos com o

objetivo de difundir a leitura nas periferias. Alessandro Buzo, ativista do movimento

Hip-Hop e morador do Itaim Paulista, é autor de quatro livros de forma independente.

Guerreira (2007), recém publicado pela Global Editora, sua última produção, narra a

trajetória de uma jovem no submundo das drogas e prostituição.

Além de exame centrado na obra de Sérgio Vaz, Ferréz e Allan Santos da

Rosa, também serão criadas propostas de leitura dos três volumes do suplemento

literário Literatura Marginal – A cultura da periferia, assim como dos textos que

posteriormente foram compilados na antologia Literatura Marginal – talentos da

escrita periférica. Soma-se a estes produtos, outras publicações lançadas por editoras

independentes, como a Edições Toró, e o acompanhamento dos blogs mantidos pelos

autores.

É importante ressaltar que paralelo a este movimento de articulação cultural

da periferia através da literatura temos observado a proliferação de obras literárias e

fílmicas, não produzidas por sujeitos da periferia, que buscam examinar estes espaços

marginalizados. A margem, este território quase esquecido e muitas vezes invisível da

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cidade, surge na contemporaneidade como um precioso território a ser explorado.

Seja pelo olhar do próprio marginal, que agora abandona a posição de objeto para

figurar como sujeito do próprio discurso; ou por autores não pertencentes à margem

que, movidos pelo crescente interesse do mercado editorial, repetem as ideias e os

preceitos formados pela Literatura Marginal, é inegável que a periferia urbana ocupa

hoje, paradoxalmente, um espaço central na produção discursiva brasileira. Vale

lembrar que processo semelhante ocorreu com a chamada Literatura de Cárcere. João

Camillo Penna, no artigo “Estado de exceção”, identifica as implicações do “boom”

da Literatura do Cárcere:

(...) a literatura carcerária em particular, e a antes insipiente literatura de testemunho em geral, no Brasil, surge na seqüência da abertura do espaço de visibilidade que o problema carcerário obteve a partir do massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992. O nefando episódio da crônica paulistana, quando 111 presos, segundo dados oficiais, foram executados em selvagem carnificina pela polícia militar, com suas terríveis implicações de violência policial sistêmica, demonstrou claramente que a população carcerária brasileira vive de fato sob um estado de sítio permanente, completamente fora do regime regular de cidadania que é seu direito constitucional.(Penna, 2007, p. 184)

Na leitura de João Camillo Penna, o Massacre do Carandiru tem uma “função

ontológica, constitutiva, de produzir sujeitos”(Idem, p. 188). Dessa forma, os textos

produzidos em decorrência do Massacre são instrumentos de subjetivação,

favorecendo a constituição de sujeitos. No entanto, além do claro intento ético destes

discursos, é igualmente perceptível um sentido mercadológico. O “boom” da

Literatura do Cárcere foi resultante da incessante busca das editoras por presidiários

que testemunharam o Massacre do Carandiru que pudessem oferecer seus

testemunhos aos leitores. Esses produtores, nesse sentido, ambicionavam repetir o

sucesso mercadológico de Estação Carandiru, de Draúzio Varela.

Dessa forma, exame semelhante pode ser realizado no tocante ao empenho de

casas editoriais em publicar escritos de autores da periferia, sendo perceptível o

interesse de grupos editoriais nesses autores, observando nesse tipo de produção

literária um importante nicho mercadológico. Exemplar, nesse sentido, é a criação do

selo Literatura Periférica da Global Editora, responsável pela publicação dos livros de

Alessandro Buzo, Sacolinha, Allan Santos da Rosa e Sérgio Vaz. Além do inegável

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empenho da Editora Aeroplano em se constituir enquanto espaço de veiculação de

obras produzidas sobre a periferia urbana e por sujeitos pertencentes a este espaço,

destacando para estas obras o selo Tramas Urbanas. Selo responsável pela publicação

da autobiografia de Alessandro Buzo, Favela toma conta, em 2008; e pelo

lançamento de Cooperifa, antropofagia periférica, de Sérgio Vaz, em 2007.

Revela-se, assim, não apenas uma orientação ética na publicação destes textos

e na produção de obras cinematográficas e televisivas sobre estes setores da

sociedade, mas, sobretudo, mercadológica. Não se trata de elaborar uma exasperada

crítica dos meios de comunicação de massa e das grandes corporações editoriais que

promovem tais discursos, mas compreender tal fenômeno cultural e comercial como

um substrato da própria sociedade brasileira. Dessa forma, vale questionar: o que

move esse olhar da Literatura Marginal em direção à periferia? Responder este breve

e inquietante questionamento é um dos meus objetivos.

Mesmo que este questionamento seja um possível elemento norteador de

minhas análises, o resultado de minhas observações não se destina a configurar um

rígido estudo sobre a Literatura Marginal. Meu objetivo não é compor um tratado

acerca do tema e muito menos desejo construir um modelo de leitura que esgote o

tema. Ao contrário, minhas leituras e análises são direcionadas a ensaiar formas de

contato com este objeto, utilizando para isso diferentes propostas teóricas e

possibilidades de leitura. Os capítulos podem ser vistos como pontos de ancoragem

ao objeto, resultando em uma visão prismática sobre a Literatura Marginal. Os

capítulos, dessa forma, podem ser lidos de forma autônoma, e quando colocados em

conjunto, na articulação das teorias utilizadas, oferecem uma perspectiva mais ampla

sobre o tema.

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2.

Literatura Marginal, uma literatura feita por minorias.

A Literatura Marginal, sempre é bom frisar, é uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou sócio-econômicas.

Ferréz, Literatura Marginal: talentos da escrita periférica.

Na primeira edição de Capão pecado, publicada em 2000, em um texto de

abertura do romance – uma espécie de epígrafe – Ferréz traça um movimento de

aproximação ao bairro em que reside:

Universo Galáxias Via-láctea Sistema solar Planeta Terra Continente americano América do Sul Brasil São Paulo São Paulo Zona Sul Santo Amaro Capão Redondo Bem-vindos ao fundo do mundo (Ferréz, 2000, p13)

O ponto de partida para alcançar o “fundo do mundo” é o mais geral possível,

o universo. O objetivo não é, definitivamente, ser universal; busca-se algo específico.

A trajetória traçada abre diferentes camadas, rompendo territórios. O percurso é

semelhante a um jogo de escalas, com um movimento em abismo, buscando seu fim.

Lendo o texto facilmente relacionamos o movimento do autor às conhecidas

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26

matrioshkas - bonecas russas que são colocadas uma dentro da outra, da maior até a

menor, todas com o mesmo ornamento e cores. Mas a semelhança com o tradicional

brinquedo russo é restrita ao movimento operado pelo texto, posto que não

encontramos dentro da série menor uma reduplicação reduzida. A cada nova

descoberta realizada pelo autor, ao romper as camadas territoriais, nos deparamos

com um território em diferença. Ser o fundo do mundo, como o autor denominou o

bairro em que reside e que serve de palco para a narrativa que será iniciada, não é

simplesmente o ponto de chegada, mas, sim, a representação material de uma

condição de extrema marginalização. O exercício de busca por uma profundidade, tal

qual um fenômeno de mise en abyme realizado por Ferréz afirma a territorialidade do

texto em duas perspectivas: primeiro enquanto cenário do romance, focando o Capão

Redondo, bairro da periferia da Zona Sul de São Paulo, como espaço em que será

representado o texto ficcional; e, na segunda possibilidade de análise, afirma o

território em um sentido político, apresentando o romance enquanto produto

discursivo originário do “fundo do mundo” – espaço marginalizado por excelência,

na leitura do autor. Capão Redondo: este é o elemento final a ser descortinado por um

olhar em profundidade lançado por um sujeito marginal.

A verticalidade apresentada no texto, centrando um olhar sobre a periferia

urbana, pode ser tomada como uma característica fundadora da Literatura Marginal.

A afirmação da territorialidade do texto, seja em uma perspectiva ficcional –

utilizando-o como cenário da narrativa – ou enquanto lócus identitário –

apresentando o autor enquanto residente da periferia ficcionalizada – é um dos

principais elementos que possibilita o estabelecimento de contornos mais nítidos para

a identificação desse movimento literário que reúne na contemporaneidade inúmeros

autores de periferia.

A Literatura Marginal, com o seu acentuado discurso baseado em um

princípio socioeconômico e territorial, instaura em nossa série literária um novo

molde para a apreensão de obras literárias. Ao cobrar para si um exame fundado em

estruturas sociais, expressando como principal diferenciação a origem periférica de

seus produtores discursivos, o grupo de autores que se agrupam sob o título de

Marginal não utilizam como primeiro elemento catalisador um pacto estético. Ao

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contrário de outros movimentos, o topos da linguagem, ou outros elementos e

recursos literários, não surge como índice de aproximação dos autores. Não

presenciamos neste movimento a formação de um grupo que almeja defender, ou

rechaçar, determinado elemento estético, como é possível observar nas vanguardas

modernistas das primeiras décadas do Século XX. Na estruturação desse novo grupo,

o estético foi colocado em segundo plano, não é negligenciado, mas é suprimido pela

importância conferida à ética. A ética passa a nortear a seleção dos autores que

poderão compor o movimento, tendo como principal premissa a origem marginal. Ser

residente de um dos inúmeros bairros de periferia que circundam os poucos bairros

centrais dos grandes centros urbanos do país é o primeiro elemento que conta. Se é

inovador o critério de formação do movimento, o mesmo não pode ser dito em

relação a seu modus operandi.

A Literatura Feminina, ou Feminista, assim como a Literatura Negra, ou

Afrobrasileira, podem ser tomadas como exemplos de estruturação discursiva que

busca a valorização do sujeito da enunciação amparado no princípio ético. Tais

movimentos literários possuem como fundamento identificar o sujeito na situação

que descreve, como objeto do conhecimento que propõe recortar, a partir de sua

particularidade, seja de gênero (gen der) ou raça. Um exame das estratégias

discursivas fundadas por estes dois grupos, ambos minorias – em consonância com os

autores marginais – auxilia na construção de uma leitura mais ampla da Literatura

Marginal.

Marginal, Feminista ou Afrobrasileira, na perspectiva que almejo oferecer a

estes movimentos, não são apenas adjetivos alocados à palavra Literatura, são, em seu

sentido mais amplo, a demarcação de uma territorialidade no âmbito da produção

discursiva. A adjetivação, nesse sentido, perpassa pela busca de uma esfera de

legitimação, delimitando os espaços fronteiriços entre a produção discursiva que

exprime os desejos de um sujeito opressor – que pode ter a feição do gênero

masculino, ou do branco, e em alguns casos de ambos – e a produzida por um grupo

minoritário. Construir tal fronteira na esfera literária é apenas transplantar os

confrontos de gênero e racial para o discurso literário, transformando-o também em

espaço de contestação e disputa política. As vozes que criticam o estatuto homogêneo

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28

do discurso literário buscam alargar conquistas que garantam espaços para as

diferenças e para a autonomia. Ao fixarem um hífen após o termo Literatura,

impresso na visível separação de um discurso hegemônico, sentenciando a pretensa

igualdade do discurso utópico-romântico que a época moderna forjou, estes grupos

atuam em favor de uma igualdade em diferença, nas especificidades de gênero, raça e

classe.

Na Literatura Feminista, identificada como uma produção literária gendrada, a

prática literária é transformada em um espaço de construção simbólica, estruturando

um discurso sobre e do gênero minoritário. O feminino passa a ser concebido como

uma construção cultural, e não um dado ofertado pela natureza. Os discursos sobre o

feminino, em uma lógica feminista, perpassam por uma discussão sobre a sua posição

na sociedade e, principalmente, na utilização dessa estrutura como referência em sua

atuação social. Do ponto de vista teórico, a Literatura Feminina busca a formação de

um espaço próprio dentro do universo da literatura mundial mais ampla, em que a

mulher seja o sujeito do discurso e possa a partir de um ponto de vista e de um sujeito

de representação próprios, que sempre constituem um olhar da diferença, construir

sua própria representação. Não se trata de oferecer uma percepção mais afetiva,

delicada, sutil, reservada, frágil ou doméstica no âmbito da literatura, mas, sim, de

constituir-se enquanto sujeito discursivo, livrando-se da silenciosa posição de objeto.

A Literatura Negra possui como fundamento a defesa por um discurso que

possibilite a assunção do negro enquanto sujeito histórico, rompendo com a

representação produzida pelo branco, concebida em alguns casos como opressora e

baseada apenas no exotismo comparatista racista. Maria Conceição Evaristo de Brito,

em Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade, identifica a produção

literária de autores negros como a “construção de um discurso capaz de explicitar o

negro, sua inserção no mundo, os seus sentimentos, as suas particularidades como

sujeito da história”(Brito, 1996, p. 41). A defesa pela emergência de uma voz negra

na literatura possui como referência a possibilidade de produzir um discurso que

representa um sistema de pensamento específico. Na leitura de Conceição Evaristo,

em consonância com os principais movimentos que buscam consolidar a literatura

negra no Brasil, o exercício da escritura negra resulta no afloramento de uma

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29

cosmogonia própria, negra, através da representação. A linguagem, símbolos,

memórias e interpretação do mundo, seriam os vetores que confluem para a

consolidação de um corpus negro, conflitante com a visão branca sobre o negro. No

entanto, mesmo estabelecendo um recorte racial para a apreensão de obras literárias, a

Literatura Negra não se baseia apenas em uma referência étnica, mas busca construir

um conceito mais abrangente, a uma implicação mais profunda, que é a de ser, a de se situar conscientemente negro na escritura. Estamos falando de uma literatura em que seus produtores se propõem consciente e politicamente criar um discurso, uma escrita que parta do “eu negro”, sujeito que se inscreve e escreve negro e não que represente o negro.(Idem, Ibidem).

Não se trata apenas de estabelecer uma fronteira racial na produção literária

nacional, mas, sim, de consolidar um espaço de representação dentro de uma série

hegemônica. O discurso literário passa a ser concebido como uma prática que

favorece a construção cultural de um grupo marginalizado. Valoriza-se a voz negra,

mas, sobretudo, a voz negra em contato com a sua cultura e história, livrando-a do

papel de objeto.

Seja através de um recorte de gênero ou de raça, os grupos minoritários que

instauram um elemento de distinção no seio da série literária hegemônica buscam

pensar o Outro sob o prisma da diferença. Não são mais sujeitos desviantes de uma

norma, de um modelo universal, mas como indicador de outras posturas possíveis,

como revelador do princípio da diversidade. Vera Queiroz, em Crítica literária e

estratégias de gênero, amparada nas concepções teóricas de Michel Foucault e

Jacques Derrida, apresenta de forma clara a mudança epistemológica realizada na

segunda metade do século XX que favoreceu a emergência de vozes outrora sulcadas

por uma concepção iluminista de sujeito universal que impossibilitava a constituição

desses sujeitos marginalizados:

O estudo sobre as relações entre poder e saber, entre o conhecimento, o sujeito e a verdade na passagem da episteme clássica para a moderna [ realizada por Michel Foucault a partir da leitura de Marx, Nietzsche e Freud] fundou um novo paradigma na compreensão do sujeito das ciências humanas, a partir do qual as noções de profundidade (quanto ao saber) e de origem (com relação à verdade) estão abaladas; a descontinuidade e a dispersão, ao invés da linearidade e da homogeneidade, são as forças motrizes dos acontecimentos e da história; a concepção de sujeito, a partir da época moderna – na verdade, esse seria um traço distintivo capital na

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passagem do sujeito clássico ao moderno – passa a estar relacionada às formações discursivas que regulam saberes e os poderes, de modo a inscrever-se também como objeto de práticas interpretativas plurais que, longe de conferir-lhe essência, inserem-no na cadeia discursiva reguladora dos objetos e das coisas, de que se torna doravante parte. (Queiroz, 1997, p. 104)

A conquista do poder discursivo reflete não apenas os resultados das lutas

empreendidas por um grupo específico, mas, igualmente, uma importante mudança

teórica no pensamento moderno. Atrelada à nova compreensão do sujeito, concebido

agora em sua pluralidade rizomática, em contraposição ao sujeito detentor de uma

raiz cultural única e não contraditória, é empreendida uma sutil modificação dos

sistemas de pensamento e, principalmente, de valorização dos objetos discursivos e

de arte. Tal modificação teórica, sobretudo no campo dos estudos literários,

estruturou uma nova concepção acerca do texto literário, analisando-o a partir de um

suporte que faça emergir um debate sobre a sua natureza. Vera Queiroz, tomando

como referência a análise de Heidrun K. Olinto acerca do itinerário da crítica literária

ao longo do século XX e a reavaliação sistemática dos modelos teóricos e críticos que

conferem ao literário sua legitimidade, observa que

no multifacetado espectro de visões ( e de versões) que configuram hoje os diversos modelos e as diferentes teorias, o que parece consensual é a perda de privilégio da imanência do(s) sentido(s) no próprio texto, compreendido na perspectiva de um conjunto amplo de relações dialógicas e contextuais, em que se problematizam tanto o leitor (em suas diversas personae de leitor fictício, real, implícito, histórico, crítico), como pólo constitutivo de significações, quanto as rígidas configurações do objeto literário, na medida em que esse estatuto – o literário – será definido como tal na perspectiva do recorte que o fundamenta. (Queiroz, op. cit., p. 12-13)

Na leitura de Vera Queiroz não apenas a obra literária passou a ser analisada

enquanto parte de um sistema mais amplo e complexo de práticas textuais, avaliando

a função e o valor da obra em relação a contextos culturais historicamente

específicos, como a própria reavaliação da figura do leitor e o estatuto ideológico das

posições dos sujeitos envolvidos nas práticas avaliativas e judiativas inerentes às

atividades interpretativas também foram, igualmente, analisadas fora de um circuito

autotélico. Tais mudanças operaram uma nova interrogação ao campo dos estudos

literários, levando à “substituição da eterna pergunta – o que é literatura? Por outra –

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o que é considerado literário, quando, em que circunstâncias, por quem e por

quê?”(Olinto, 1993, p. 09) como observou como grande pertinência Heidrun K.

Olinto, no ensaio “Letras na página/palavras no mundo. Novos conceitos sobre

estudos de literatura”. Nessa leitura vemos o progressivo abandono de uma crítica

literária ancorada em teorias de cunho formalistas, centradas unicamente no texto

literário, e o sucessivo avanço de formulações teóricas que utilizam extratos de

abordagem do discurso literário baseadas em reflexões pragmáticas, colocando em

voga exames centrados em esferas extraliterárias.

No entanto, mesmo com o fortalecimento de um horizonte teórico que

fundamenta a leitura crítica na busca por uma relação entre texto e seu entorno social,

político e cultural, os críticos literários que se debruçaram sobre os textos da

Literatura Marginal de forma recorrente expressaram a insuficiência dos estudos

literários frente ao objeto, como demonstra a leitura de Fernando Villaraga Eslava, no

artigo “Literatura marginal”:

Enfim, a visita panorâmica ao salão da tímida e polêmica recepção crítica da literatura marginal indica que ainda não se achou as chaves necessárias para uma leitura capaz de reconhecer as especificidades e os sentidos de suas expressões, que falta (re)definir os itens fundamentais que ainda devem orientar a indagação hermenêutica de suas heterogêneas escritas. (Eslava, 2004, p. 49).

Segundo Fernando V. Eslava, é necessário criar formas de abordagem dos

textos da Literatura Marginal que possam alinhavar um exame que coloque em relevo

as especificidades dessa produção, relacionando o aspecto literário e estético a sua

forma de enunciação política e ética. O desafio, seguindo esse raciocínio, é

empreender uma leitura crítica do objeto literário a partir de experiências estéticas

distintas dentro de um mesmo movimento. A leitura de Ângela Maria Dias apresenta

questionamentos semelhantes ao avaliar que

muito se tem discutido sobre a perplexidade da crítica diante [da Literatura Marginal e de] seu estatuto indefinido entre testemunho de uma condição social, biografia de uma experiência subjetiva e criação intencionalmente ficcional e/ou literária, bem como sobre o estranhamento causado pelo seu acento de língua coletiva, arrebanhando vozes e versões de uma comunidade, no intuito de formar o mosaico de uma língua geral. (Idem, p. 14)

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Os apontamentos apresentados por Ângela Dias, formados a partir de sua

análise da coletânea Literatura Marginal: talentos da escrita periférica, são precisos

ao perceber o caráter multifacetado da escrita produzida pelos autores reunidos sob o

título de marginais. Ampliando o foco de análise e debruçando-se sobre os três

suplementos Literatura Marginal – A cultura da periferia, publicados pela Revista

Caros Amigos, que apresentam os textos que posteriormente foram selecionados e

reunidos na coletânea supracitada, é possível observar com mais força a constituição

de um amplo espectro de linguagens e estilos que clamam uma origem comum. Se

estabelecermos uma leitura das três edições em conjunto, além de percebermos a

ampliação do conceito Literatura Marginal, será possível observarmos uma sutil

mudança de estilo e manejo da linguagem por parte dos autores. No Ato I – primeira

edição do suplemento lançado em 2001 - os textos publicados são explicitamente

formados a partir de um desejo de denúncia e exame crítico da realidade da periferia

urbana. Á exceção de Erton Moraes, com a fábula A peregrinação da mosca

varejeira, os textos possuem como foco as margens urbanas e os problemas sociais

que assolam estes territórios. Além disso, é perceptível a presença de autores que

mantém estreitas relações com a cultura Hip-Hop, utilizando a escrita como veículo

de divulgação dos seus principais conceitos norteadores, como operam: Cascão, em A

conscientização e Consciência; Ferréz, em Os inimigos não levam flores; ATrês, em

A.C. em qualquer lugar e Garret, em Sonhos de um menino de rua. Nos exemplos

citados é possível observar a presença de um discurso próprio da cultura Hip-Hop no

texto literário. Nestes a escrita é construída com o claro intento do engajamento e da

denúncia, além da explicita referência ao movimento, como ocorre em A

conscientização. Além disso, outro claro elemento de união dos contos e crônicas

publicados no Ato-I é a utilização do aparato literário como mecanismo de reflexão

sobre o próprio entorno, utilizando bairros populares, favelas e conjunto habitacionais

como palco preferencial das narrativas ficcionais. Seja no conto de Paulo Lins, que se

faz presente com Destino de artista, ou na poesia de Sérgio Vaz, presenciamos a

construção de uma literatura engajada.

Nos Atos II e III, a segunda e terceira edição do suplemento lançadas em 2002

e 2004 respectivamente, os textos literários, em sua grande maioria, continuam

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recebendo uma potencialidade política baseada na denúncia, demarcando territórios e

sujeitos da periferia com o desejo de formar uma reflexão acerca de uma condição

social baseada na vulnerabilidade. No entanto, ao lado deste engajamento vemos

também a presença de uma escrita sem a produção de apelos claros a uma tomada de

consciência por parte do leitor. Exemplo disto são os textos produzidos por alunos de

uma escola pública nas cercanias da favela da Vila Flórida, em Garulhos, com

destaque para Olhar, de autoria de Vilma: “Não te vejo/ Pois com teu olhar/

Desapareço/ Não te sinto/ Pois no teu tocar/ Desfaleço”, e Lágrimas, de Silmara

Carvalho, “No meu rosto correm/ lágrimas de um desespero/ sem fim como um grito/

inútil de folhas secas no/ jardim.”, ambos publicados no Ato II. Além destes

exemplos, é igualmente possível observar que os textos poéticos de Marco Antônio,

morador da Cidade de Deus, favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro, também fogem

a esta caracterização. Nos poemas são apresentadas as angústias de um eu lírico em

contato com as desventuras de um amor não correspondido, como em Reverso e A ti,

e sobre o ato de escrita poética, como em Manuscrito. Em seus cinco textos

publicados, Marco Antônio apresenta uma visão sobre o homem, independente do seu

lugar ou papel social, estabelecendo uma fissura no exercício crítico que almeja

ordenar de forma estanque os escritos produzidos pelo movimento a partir de uma

leitura centrada em um eixo temático marcadamente político.

Além disso, mesmo nos textos que possuem como cenário e tema central os

bairros da periferia, é possível observar a realização de um tratamento do cenário

periférico a partir de procedimentos literários mais sofisticados e inspirados em

formas canônicas da literatura. Dona Laura e Tico, autores que tiveram seus contos

publicados pelo suplemento, são exemplares neste sentido. A primeira, apresentada

como “porta-voz da sua comunidade na colônia de pescadores Z-3, em Pelotas, RS”,

participou do Ato II com o conto “Os olhos de Javair”(2002) e do Ato III com o “A

vingança de Brechó”(2004), ambos posteriormente publicados na coletânea. Nos

contos de Dona Laura é visível a busca por uma linguagem culta, com um manejo

peculiar da escrita, utilizando procedimentos que apontam para um tratamento

distinto dos personagens e situações descritas. Em “A vingança de Brechó”, para citar

apenas um exemplo que ratifica o argumento apresentado, a narração do assassinato

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de uma personagem torna clara a opção da autora por uma forma de representação

distinta da maioria dos autores reunidos no suplemento:

Rosa que nasceu no lodo tem vida curta, e nem é pela lama existente, e sim pelos olhares cobiçosos. Potira era uma semente rara, desviada da estufa. Aconteceu. O assassino, após saciar os seus instintos malignos, deixou o corpo dela à beira da cachoeira, para ser encontrado, e foi, ainda quente. (Dona Laura, L.M. III, p. 26)

Rompe-se com o realismo, não acompanhamos a ação do assassino, ocorre um

movimento oposto, o ato é apresentado em apenas um verbo: “Aconteceu”. Domina o

trecho a utilização de metáforas, ofertando para o evento narrado uma compreensão

distinta. Ao descrever a personagem como uma rosa que nasceu no lodo, a autora

estabelece uma nova perspectiva para o tema que será apresentado, afirmando que

não será o em torno que podará sua vida, mas, sim, os olhares cobiçosos lançados

sobre a rosa. Na leitura dos contos de Dona Laura é possível observar que os

personagens e o próprio cenário não são construídos através de um quadro realista,

impregnado da referência de um dado factual. Ao contrário, são personagens

construídos a partir de um exercício de escrita ficcional ancorado em modelos

consolidados da literatura.

Leitura semelhante pode ser realizada do conto “Uma noite com

Neuzinha”(2004), de Tico, autor que “nasceu e mora no Jd. Umariza, periferia de São

Paulo, é anarquista, exerce a não-posse e faz de sua vida uma atividade sem fins

lucrativos”. Com uma clara referência à literatura beatnik, Tico apresenta uma

narrativa em primeira pessoa que possui como enredo a relação entre o protagonista e

Neuzinha. O conto é aberto com o relato sobre a vista da cidade a partir de uma janela

do hospital em que Neuzinha se encontra:

Pela janela do corredor do hospital, eu observava os vitrais da igreja do outro lado da rua. Começava a anoitecer e, à medida que a luz cedia lugar ao brilho da lua e algumas lâmpadas iam sendo acesas, elas iam ganhando matizes diferentes, ficando mais bonito. Neuzinha ia gostar. (Tico, L.M. III, p. 4).

Após deixar o hospital, o personagem segue para casa, sem antes parar em um

bar:

Caminhei até a praça, peguei a rua da biblioteca desci um pouco mais e fui ao bar de dona Bina, famoso pelas alquimias etílicas, cujas fórmulas ela

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não revela a ninguém, onde há pingas e batidas feitas das misturas mais insólitas, birita para todos os gostos. A minha preferida e um dos grandes orgulhos de dona Bina é o rabo-de-galo diet. Bebi quatro desses, pedi uma lata de cerveja, paguei e saí.(Idem, Idibem)

Em oposição à fórmula recorrente dos textos de outros autores marginais, o

álcool e seu espaço por excelência, o bar, não são criticados ou denunciados como

símbolos de uma vida alienada. Ao contrário, o tom empregado pelo autor revela uma

perspectiva apologética. Leitura semelhante pode ser feita do encontro do narrador

com um grupo que se aquece envolta de uma fogueira:

Cinco homens e três mulheres fumavam maconha e bebiam, aquecendo-se junto ao fogo, que ia sendo alimentado com os caixotes de feira, galhos secos e os destroços de um sofá. Diga lá, mano! Como é que é, maluco? Tá afim de dá um doisinho? Banzaixé, saravoé! – saudei meus companheiros. Bebi uns goles de pinga e dei três ou quatro tapas no baseado. Arrastei um caco de bloco de cimento até onde pudesse sentir o calor das labaredas e me sentei. Mantive-me quase toda a noite calado. (Idem, Ibidem)

O relato do consumo das drogas e do álcool não deixa dúvida, não há espaço

para o estabelecimento de uma moral. O texto, em um sentido claramente oposto aos

outros escritos marginais, não visa orientar os leitores, o autor não é um porta-voz,

não deseja produzir um discurso capaz de formar um novo tipo de engajamento

político. Não obstante, o desfecho do conto torna mais evidente o sentido antagônico

que a presença do conto realiza no suplemento. Após avistarem um rato em meio ao

entulho e lixo amontoado nas proximidades da fogueira, os homens e mulheres atiram

incessantemente pedras em direção ao animal, tornando-o apenas “uma massa,

amarelada, cinza e vermelha”. Com o amanhecer e a fome ganhando vulto nos

corpos, o grupo, incentivado por uma “ruivinha”, decide reacender a fogueira e assar

o animal:

As tripas foram retiradas com um canivete e o que restou do cadáver foi espetado numa vareta de guarda-chuva e suspenso ali por duas forquilhas improvisadas. Eu também estava com vontade de um trampo. Ninguém tinha mais dinheiro. Enfiei novamente a mão no bolso e não encontrei nem ao menos uma moeda, apenas senti alguns grãos um tanto melados se grudarem às pontas dos dedos.

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Olhei o sol que vinha surgindo atrás dos pés de mamona e das lajes das casas e fui arremessando as sementes de mexerica no córrego, pensando se Neuzinha gostaria de carne de rato. (Idem, Ibidem)

É do próprio autor a melhor definição da função de sua arte, conforme é

descrito na nota de apresentação de Tico: “deseja com sua ficção o que acredita ser a

‘função’ de toda a arte: deleitar, despertar, espantar, emocionar, subverter”.

Claramente inspirando em Charles Bukowski, Tico não deseja que sua literatura

tenha uma ‘função’ além da própria experimentação artística, não almeja, assim, criar

uma estrutura discursiva que aponte um caminho a ser trilhado. Seu intuito, como o

próprio Tico esclareceu, é o deleite, o espanto, a subversão e a emoção. Após ler

“Uma noite com Neuzinha” e travar contato com a sua singular concepção de

literatura e com seus experimentos literários, podemos afirmar que o autor teve êxito.

Autores como Marco Antônio, Dona Laura e Tico são exceções, recebe maior

vulto a reincidência do tratamento literário da violência por parte dos outros autores.

Estes utilizam as ferramentas da literatura para o estabelecimento de uma

compreensão das estruturas sociais desiguais e para denunciar as situações de

vulnerabilidades sofridas pelos residentes em favelas e bairros de periferia. Resulta

disto a construção de uma imagem complexa para o movimento devido não apenas a

diversidade de temas abordados, mas, sobretudo, ao modo como estes são abordados

através de linguagens múltiplas e tratamentos distintos, deixando, como observou

Ângela Maria Dias no artigo já citado, a crítica literária que se ocupou destas obras

perplexa.

A fuga da perplexidade pode ser a tomada de um caminho de análise que

oriente um duplo exame, estruturando uma leitura dos textos literários da Literatura

Marginal ancorada na compreensão da dimensão política e social de sua intervenção

enquanto manifestação artística e literária. Trata-se, nesse sentido, de compreender as

heterogêneas escritas a partir de um local de enunciação homogêneo. Por este viés,

será operada uma forma de análise de possibilite a ordenação de textos tão dispares

com um mesmo aparato crítico, buscando observar quais as possíveis aproximações e

distanciamentos dentro de um mesmo conjunto.

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Mas, a tarefa do crítico não é tão simples assim. Por se tratar de um dado

novo, símbolo da insurreição dos sujeitos silenciados – para citar uma expressão

empregada por Michel Foucault - é necessário criar uma estratégia de análise que

identifique a particularidade do movimento, oferecendo um recorte específico para o

sentido social e político da presença destes autores marginais em nossa literatura. Por

este viés, é digno de nota que os primeiros estudos acadêmicos centrados na análise

especifica desses escritos tenham sido produzidos por pesquisadores da área das

Ciências Sociais, como as dissertações: Literatura Marginal: os escritores da

periferia entram em cena, de Érica Peçanha Rodrigues, defendida no Programa de

Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da Universidade de São Paulo, e depois lançada em livro pela Editora

Aeroplano, em 2009, sob o título Vozes marginais na literatura; e Cultura e

violência: autores, polêmicas e contribuições da Literatura Marginal, de Rogério de

Souza Silva, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade

de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista em 2006. Em ambos estudos,

a Literatura Marginal é analisada não apenas enquanto movimento literário, mas,

sobretudo, social. Busca-se compreender o sentido político e social da inserção destas

vozes periféricas na série literária e, igualmente, as relações que tais textos e autores

mantém com os bairros de origem. O foco da investigação, mesmo utilizando como

objeto de análise textos ficcionais e seus respectivos autores, não se restringe ao

literário, expande-se e passa a observar o seu sentido político, social e cultural. O

percurso destes estudos reflete o movimento que os próprios textos literários

realizam, utilizando o discurso literário, seja em prosa ou poesia, para a estruturação

de uma complexa rede social e formação de uma política identitária própria. Nessa

perspectiva, os autores, sobretudo os detentores de uma enunciação marcada por um

forte sentido político, passam a figurar também como objetos de análise, uma vez que

(...) é digno de nota o empenho de um número considerável de jovens das periferias urbanas em elaborar sua experiência através da palavra e dá-la a conhecer por meio de práticas discursivas associadas à tradição literária. Em tempos de profundas dúvidas e questionamentos quanto à sobrevivência das tradições literárias no futuro próximo, a opção destes jovens em construir identidades a partir da palavra escrita, (...) reclama uma reavaliação dos critérios e perspectivas com as quais nós mesmos,

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críticos literários, tendemos a ler o lugar da literatura e de nossas práticas profissionais na sociedade (Rodrigues, 2003, p. 50)

No entanto, estabelecer o viés sociológico como principal ferramenta de

análise impede a realização de uma leitura do aparato literário utilizado por estes

autores, preterindo uma compreensão do discurso que é veiculado nas obras. Desse

exercício também resulta a valorização do papel social que os escritores marginais

encenam em suas respectivas comunidades, vistos agora mais como “objetos” do que

como sujeitos do processo simbólico literário. É importante ressaltar que o enfoque

sociológico ofertado nos estudos sobre a Literatura Marginal não apresenta nenhum

equívoco, mas é insuficiente conceber os escritos produzidos no âmbito desse

movimento apenas enquanto um dado social. Paradoxalmente, o olhar do crítico,

desejoso em valorizar o ato de rebelião protagonizado pelos sujeitos marginalizados

ao utilizarem a literatura como veículo para a construção de sua identidade e

apresentação de suas ideias, abandona o exame do discurso. Desse exercício crítico

deriva uma análise que não valoriza tais autores enquanto sujeitos da enunciação,

sendo concebidos apenas como portadores de uma voz outrora silenciada. Faze-se

necessário utilizar uma clave de leitura que possibilite uma análise conjugada: ler no

texto literário a presença do sentido político e social do movimento.

É necessário, portanto, buscar novas formas de análise que coloquem em

relevo as particularidades desses textos, observando a tênue fronteira entre ficção e

testemunho de uma condição de vida marginal, e as relações que este ato de escrita

mantém com os espaços periféricos. Uma possibilidade de análise rentável, para o

caminho aqui estabelecido, é a utilização do conceito de “literatura menor” proposto

por Gilles Deleuze e Félix Guattari, a partir da leitura da obra de Franz Kafka. De

posse deste referencial, mesmo que o conceito tenha sido formado para a leitura da

obra de um autor que em nada se assemelha aos escritos produzidos na periferia

brasileira, torna-se possível conjugar os aspectos extra-literários com as

singularidades próprias a cada texto.

A utilização do conceito “literatura menor” é recorrente nas pesquisas da área

de literatura e cultura no Brasil, o caminho que aqui se abre não é inédito. Utilizam o

conceito: Luiz Eduardo Franco do Amaral, em Vozes da favela, dissertação de

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mestrado que utiliza a expressão literatura de favela para designar as recentes

produções literárias de autores oriundos destas localidades; Maria Conceição Evaristo

de Brito, em Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade, para analisar a

relação entre autor e comunidade negra no caso específico de seu objeto; Écio Salles,

em Poesia revoltada, para observar a presença de uma voz coletiva nas composições

de RAP, e Stefania Chiarelli, em Vidas em trânsito, para expor a condição peculiar da

escrita em deslocamento de Sammuel Rawet, para citar alguns. O tratamento que

pretendo oferecer ao conceito será baseado na experimentação, promovendo o atrito

entre o meu objeto e um conceito formulado para uma obra específica. Não desejo

apenas a simples denominação da Literatura Marginal como uma “literatura menor”,

emoldurando-a com este termo. Busco observar os limites e potencialidades do

emprego desta referência teórica no tratamento das obras literárias selecionadas que

compõem este movimento literário, concebendo-o como uma produção referencial de

um setor específico.

É igualmente importante destacar a percepção de um dos autores da Literatura

Marginal sobre o conceito que pretendo utilizar. No prefácio do já citado volume

Literatura Marginal: talentos da escrita periférica, Ferréz, organizador da obra,

apresenta uma clara oposição à denominação de sua produção e de seus pares como

“literatura menor”, como evidencia a passagem a seguir: “Hoje não somos uma

literatura menor, nem nos deixemos tachar assim, somos uma literatura maior, feita

por maiorias, numa linguagem maior, pois temos as raízes e as mantemos.”(Ferréz,

2005, p. 13). Decerto, em primeiro momento causa espanto utilizar um termo com

tamanha carga pejorativa para designar tais escritos e, ao menos creio eu, a crítica de

Ferréz em relação ao termo é baseada nessa apreciação. O autor, personagem

fundamental na construção do movimento, conforme explicitei anteriormente,

rechaça o uso de um conceito que em primeira leitura apresenta o estabelecimento de

uma hierarquização. De acordo com a compreensão de Ferréz, se há uma “literatura

menor”, certamente há de existir a “literatura maior” – uma equação correta. No

entanto, é importante esclarecer, o termo menor, no pensamento deleuziano, designa a

construção de uma estrutura política própria no seio de um grupo maior. Em outros

termos, ser “menor” é utilizar como estratégia de atuação um posicionamento de

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resistência. Por este viés, seguindo os passos de Deleuze e Guattari, busco examinar a

potencialidade de resistência da Literatura Marginal dentro de uma série maior. Na

formulação de Deleuze e Guattari, uma literatura menor não é, em primeira instância,

uma hierarquização de certos procedimentos literários que um grupo minoritário

realiza frente a uma série hegemônica, “mas as condições revolucionárias de toda

literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida)”(Deleuze e

Guattari, 1977, p. 28) Dessa forma, uma literatura menor é, antes de tudo, uma

proposta de agenciamento político através de uma escrita que rasura o estabelecido.

Na caracterização proposta pelos autores, uma literatura menor se constitui em

três aspectos. O primeiro é a utilização que uma minoria faz de uma língua maior,

alterando-a a partir de um procedimento marcado “por forte coeficiente de

desterritorialização”(Idem, p.25). Devemos lembrar que a análise de Deleuze e

Guattari se baseia na relação que Kafka mantinha com a língua alemã e que “o

alemão de Praga é uma língua desterritorializada, própria a estranhos usos

menores”(Idem, p. 26). O segundo aspecto apresentado se concentra na compreensão

de que na literatura menor o enunciado adquire uma potencialidade política. Posto

que, por se tratar de uma produção intimamente ligada a um grupo minoritário, fator

este que limita a emergência de inúmeras vozes, “seu espaço exíguo faz com que cada

caso individual seja imediatamente ligado à política”(Idem, Ibidem). E, por

conseguinte, o terceiro aspecto da literatura menor é o seu valor coletivo,

“precisamente porque os talentos não abundam em uma literatura menor, as

condições não são dados de uma enunciação individuada, que seria a de tal ou tal

“mestre”, e poderia ser separada da enunciação coletiva”(Idem, p. 27).

Contudo, julgo necessário estabelecer os limites para a utilização do conceito

de Deleuze e Guattari em minha análise da Literatura Marginal, sobretudo em relação

ao processo de desterritorialização da língua. Minha resistência teórica advém da

compreensão de que nos escritos dos autores marginais – seja em Ferréz, Allan

Santos da Rosa ou Sacolinha, para citar alguns – não encontramos a realização de um

choque de linguagens tal qual definido por Deleuze e Guattari. É possível observar ao

menos a utilização de uma série de expressões próprias das periferias dos grandes

centros urbanos, produzindo assim uma escrita centrada na elaboração de

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neologismos. No entanto, estabelecer uma fronteira rígida entre os espaços centrais e

as esferas marginalizadas a partir do tópico da linguagem resultaria em um

procedimento analítico que (re)produziria uma compreensão estigmatizada acerca

dessa população. O estigma se dá na busca por uma linguagem que seja própria da

periferia, esquecendo-se de que as falas produzidas nas margens são, antes de tudo,

heterogêneas e impulsionadas por grupos sociais específicos e dotados de códigos

culturais distintos. Além disso, mesmo que possamos estabelecer as marcas de uma

linguagem originada nos espaços periféricos, os códigos lingüísticos não obedecem

fronteiras espaciais rígidas. Mesmo apresentando os limites e impossibilidades de

utilização do aspecto da linguagem que o conceito apresenta ao ser aplicado na

Literatura Marginal, irei mantê-lo. Observo apenas a existência de uma outra tensão,

esta se dá no confronto entre uma expressão escrita formal e um imaginário que se

exprimiu, durantes séculos, através da oralidade.

Por este viés, o conflito entre linguagens, que na leitura de Deleuze e Guattari

acerca da obra de Kafka se baseia na oposição de línguas nacionais, na produção

discursiva da periferia brasileira se dá na encenação da disputa por um espaço de

enunciação, como observa Ferréz no prefácio, “Terrorismo literário”, do volume

Literatura Marginal:

Mas alguns dizem que sua principal característica [da Literatura Marginal] é a linguagem, é o jeito como falamos, como contamos a história, bom, isso fica para os estudiosos, o que a gente faz é tentar explicar, mas a gente fica na tentativa, pois aqui não reina nem o começo da verdade absoluta. (Ferréz, 2005, p. 12-13)

Retomando as palavras de Ferréz, uma das principais características desta

produção literária é corromper a linguagem formal, construindo uma outra linguagem

que não é mais a oralizada, e, tampouco, é um experimento marcado pela norma

cultura. É nesse interstício que a expressão literária destes autores oriundos de

bairros populares ganha mais vitalidade. No entanto, os procedimentos adotados

pelos autores para instaurar uma linguagem de rasura na estrutura literária

hegemônica são os mais variados possíveis. Se em Allan Santos da Rosa a linguagem

oral é resultante de um exercício de contato com saberes subalternizados e quase

esquecidos, revelando uma ancestralidade na expressão literária, como podemos

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perceber em Da Cabula (2006) e Zagaia (2007), nos textos literários de Ferréz, para

citar um contraponto, as gírias próprias dos rappers instauram a presença da oralidade

em sua obra. A divergência de procedimentos é resultante da própria forma de

apresentação do grupo. Não é escusado lembrar, como já foi explicitado

anteriormente, que a Literatura Marginal não se baseia em pressupostos estéticos

estanques que fixam normas literárias. Em principio, o único elemento que une as

diversas vozes contidas no grupo é a afirmação do mesmo espaço de enunciação: a

margem. Mesmo sem fundar um estatuto estético próprio, o grupo de autores que se

reúne sob o título de marginais apresentam como marca recorrente a busca por uma

linguagem que possa abarcar uma fala que se assemelha a uma expressão que se quer

própria da periferia. Explicitada esta questão, passemos a explorar a proposta de

leitura dos textos marginais a partir do conceito.

O conto “Colombo, pobrema, problemas”, de Gato Preto, publicado na

coletânea Literatura Marginal, é um bom exemplo de estruturação de um discurso

literário minoritário, oferecendo uma compreensão coletiva para trajetórias

individuais. Além disso, é perceptível o desejo de construção da realidade periférica a

partir de uma lógica maniqueísta com um visível intuito doutrinário através de uma

fala pedagógica, procedimento presente em outros textos da Literatura Marginal. Na

narrativa acompanhamos o percurso do narrador pelas ruas da localidade Colombo,

favela localizada na periferia da cidade de São Paulo. Na abertura do conto, o

narrador encontra um personagem que abandonou sua terra natal, no Nordeste, para

residir na cidade grande:

- Opa, como está, seu Chico? Como vão as coisas? Vô bem. Tabaianu muntcho...E você, Artino? Como vai as musga? Fazenu muntchu xô?”(Preto, 2005, p. 64)

Após tal diálogo, o narrador do conto, que pode ser compreendido como

próprio autor da narrativa, se dirige a outro interlocutor, possivelmente o leitor, e

comenta:

Olha lá, ali vai um dos verdadeiros guerreiros da favela. O nome dele é Francisco, os vizinhos e quem o conhece o chamam de seu Chico, tá na favela do Colombo há vários anos e ele é um dos muitos nordestinos retirantes que veio para as grandes capitais seguindo a lenda de melhores

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dias pra sua vida, e quando chega bate de cara no muro da desilusão. (Idem, Ibidem).

O trecho citado acima utiliza como referência para a apresentação do

personagem uma abordagem sociológica da trajetória de vida do mesmo, lançando

mão para tanto de uma leitura das diferentes intervenções que as macroestruturas

sociais operaram em sua vida privada. O personagem em questão, “seu Chico”, surge

também como representante de um grupo específico, pois “ele é um dos muitos

nordestinos” que migraram para o sudeste, abandonando a terra natal. Procedimento

semelhante também é empreendido para compreender/justificar o consumo de drogas

por parte de um jovem da favela:

Porra, tá foda, a maioria dos moleque tá tudo envolvido com a porra da droga, esse aí é um dos que estão complicados (...) Aí: só tem cinco anos que eu vi esse moleque, inocente, era do colégio pra casa, hoje tá acelerado, nervoso, sempre de respiração ofegante num corre-corre desesperador, é a porra do crime e sua fantasias, vários de mente inocente iludido, e nós já vimos muitos espelhos, exemplos de quem já se envolveu com cenas erradas, mas eles não tão nem aí nem tão chegando, querem nome, status, moral na quebrada. (Idem, p. 65-66).

O olhar do narrador não observa as singularidades dos personagens que

entrecortam seu percurso, mas, sim, o sentido coletivo. O jovem descrito no trecho

acima não é o único a deixar-se levar pela engrenagem do crime e das drogas,

existem vários “exemplos de quem já se envolveu com cenas erradas”, ou, como

próprio autor define, “muitos espelhos”. Os personagens passam a ser imagens

refletidas de um sujeito real. No entanto, a busca pelo real realiza-se através da visão

que o narrador apresenta sobre os personagens, sempre amparada em um

procedimento de análise que se quer sociológico. Não é o efeito estético que aponta

para o realismo da escrita, mas, sim, a presença de situações de vida que são

claramente retiradas de um dado real factual. É recorrente a utilização deste

procedimento no conto, criando uma estrutura própria. O percurso do narrador é

entrecortado por diferentes encontros, e a cada interrupção da caminhada há a

formação de um diálogo que apresenta minimamente o personagem para,

posteriormente, ser realizada a indexação deste ao universo da favela do Colombo. É

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44

com este olhar que busca formar um amplo mosaico das diferentes trajetórias sociais

da periferia, que o autor Preto [re]constrói a história de vida dos personagens.

Procedimento semelhante é apresentado por Eduardo, no conto “Algo

mudou”, publicado no suplemento Literatura Marginal, a cultura da periferia – Ato

III. O autor, que também é rapper do grupo Facção Central – grupo que ganhou

notoriedade após a proibição da exibição do vídeo-clipe da música “Isso aqui é uma

guerra”, do álbum Versos sangrentos(1999), denunciado por apologia ao crime,

segundo o Ministério Público – apresenta em sua narrativa o despertar de um

personagem e seu caminhar pelas vielas e becos de uma favela da periferia de São

Paulo:

Hoje eu acordei diferente, porra eu tô me sentindo estranho, alguma coisa mudou e eu não consigo identificar, o que é, as goteiras da brasilite tão aqui, os furos de bala dos gambé nas maderite também, e aliais eu ainda tô morando numa casa construída de maderite, ah!. Caralho deve ser isso, se pá tem pãozinho, já pensou um com manteiga, café com leite, ou talvez até leite com Nescau, que rufam os tambores, momento de expectativa, eu vou abrir o armário, armário entre aspas né?, eu vou abrir o conglomerado de caixote de feira construído pelo meu pai, 1,2,3 e...infelizmente também não é isso. (Eduardo, L.M.III. p. 20)

A relação que o autor mantém com o RAP e a cultura Hip-Hop não pode ser

descartada e será objeto de análise no próximo capítulo, no momento interessa-me

destacar como será feita a descrição da comunidade pelo narrador através de seu

caminhar, enquanto examina qual foi a mudança operada que o fez acordar diferente

naquela manhã. O narrador primeiramente observa sua residência, buscando

identificar alguma mudança. Mas, se não foi possível observar nenhuma alteração em

sua casa, pois a mesma continua sendo de madeira e com goteiras no telhado, o

personagem passa a procurar pelas vielas e becos da comunidade, interrogando-se o

que mudou naquele local.

Os pontos de ônibus tão cheio, uns esperando o ônibus que não vem, outros esmagando na lotação com capacidade para 16 com mais de 30, meus parentes, meus manos, tão indo pra cadeia, pro cemitério, as crianças continuam estudando sentadas no chão (...) Bom, os crentes tão entregando folheto, jornalzinho, tentando mais fiéis pro rebanho do pastor, tentando convencer a favela da 2ª vinda, tudo normal (...) A trilha sonora do inferno continua a mesma, muito rap, alguns cantando a real sem tremer, sem pagar, cumprindo a missão (Idem, p. 21)

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O olhar do narrador, centrado no exame de seu em torno na busca por um

índice que revele qual foi a mudança realizada em sua comunidade, passa a

apresentar a partir de sua perspectiva o cotidiano da comunidade, colocando em

relevo os elementos que a constitui. No entanto, não é realizada apenas a simples

descrição. De forma recorrente, estruturando inclusive um modelo de narrativa, após

apresentar os elementos do cotidiano da favela ( os ônibus lotados, os evangélicos na

rua, a música do RAP ) é formado exame destes elementos. Dessa forma, se o RAP é

descrito como a trilha sonora do inferno e é exaltado por “cantar a real sem tremer”,

os ônibus lotados são objetos de uma apreciação no seu sentido reverso, formando

uma denúncia de sua precariedade.

O desfecho do conto é esclarecedor do objetivo do autor ao apresentar a

narrativa, após percorrer toda a extensão da comunidade e perceber que nada foi

alterado, o personagem aproxima-se do retrovisor de um carro e descobre que a

mudança foi realizada nele próprio. Não no seu aspecto físico, mas em seu

comportamento:

Falando em espelho de carro, que Audi muito louco só o Robocop deve dá uns 500 conto, se for o que tem MD então, ou aquele de 2 CDs, tô feito, a fita é o seguinte: vou esperar o dono de campanha, faca, boy, caralho é isso, infelizmente é isso mesmo, descobri o que mudou, a mudança tá no meu coração, ele foi petrificado, arrancaram o amor e injetaram o ódio, agora o sangue que ele bombeia pro meu cérebro vem contaminado por um sentimento de “vingança” por tudo de ruim que eu vivo e vejo. (Idem, Ibidem).

A grande mudança operada no personagem é o surgimento de um sentimento

de “vingança”. A mudança é repentina, ocorrendo de forma abrupta e difícil de ser

percebida. No entanto, tal desejo de vingança que se instala no peito do personagem e

passa a guiar suas ações poderia também se fazer presente como resultado de seu

caminhar pela comunidade. Ao travar contato com a realidade do seu bairro,

examinando-a com mais atenção na busca por algo distinto, os elementos cotidianos

se tornam mais gritantes, ganham uma visibilidade maior. A situação de

vulnerabilidade apresentada no conto surge como elemento causador da violência do

furto. O desejo de arrombar o carro, munido com uma faca na espera do proprietário,

surge com alarde para personagem. É uma mudança brusca, causa espanto ao

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personagem/narrador, mas, de acordo com o desfecho do conto, a opção pelo crime é

um caminho quase natural. Os elementos que potencializaram tal transformação

foram descritos em sua precariedade rotineira, inalterados, o desejo de vingança,

como o próprio autor afirma, foi despertado “por tudo de ruim que eu vivo e vejo”.

Nos textos analisados acima, Gato Preto e Eduardo apresentam o exercício

literário como veículo de uma orientação. O tom empregado nos textos, estruturado

em uma linguagem direta, visa orientar os jovens de periferia, dotando-os de um

ethos próprio. O objetivo, claramente ancorado em um engajamento através da

literatura, aponta para o desejo de formar um povo que se configura de forma

anômala, espraiado nas margens urbanas. A formação deste povo marginalizado se dá

na sua ficcionalização, empreendendo para isso o resgate de elementos reais e fatos

concretos. Nesta articulação entre ficção e realidade, o povo é reinventado,

favorecendo a construção identitária a partir de um discurso de afirmação. A leitura

realizada por Deleuze acerca do projeto político do cinema do terceiro mundo, em A

imagem-tempo, pode ser utilizada como um índice de análise das formas de

agenciamento realizadas pelos autores da Literatura Marginal:

É preciso que a arte, particularmente a arte cinematográfica, participe dessa tarefa: não dirigir-se a um povo suposto, já presente, mas contribuir para a invenção de um povo. No momento em que o senhor, o colonizador proclama ‘nunca houve um povo aqui’, o povo que falta é um devir, ele se inventa, nas favelas e nos campos, ou nos guetos, com novas condições de luta para as quais uma arte necessariamente política tem que contribuir. (Deleuze, 2005, p. 259-260)

Inventar um povo, nos termos de Deleuze, não é, necessariamente, a

construção de uma imagem do povo a partir do próprio artista, tampouco é abandonar

a realidade para rearticular este povo em devir, criando uma ficção deste povo. O

povo inventado, a partir da arte menor, é fruto de um duplo movimento, operado a

partir de uma ficcionalidade.

Resta ao autor a possibilidade de se dar ‘intercessores’, isto é, de tomar personagens reais e não fictícias, mas colocando-as em condição de ficcionar por si próprias, de ‘criar lendas’, ‘fabular’. O autor dá um passo no rumo de suas personagens, mas as personagens dão um passo rumo ao autor: duplo devir. A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca pára de atravessar a fronteira que separa seu assunto

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privado da política, e produz, ela própria enunciados coletivos. (Idem, p. 264)

A fala coletiva da Literatura Marginal, que para setores da crítica literária foi

concebida como um elemento perturbador do exercício crítico, a partir do referencial

teórico deleuziano emerge como signo diferenciador da proposta política da arte

menor. A singularidade desta enunciação se dá na possibilidade de [re]articular

elementos ficcionais e reais, construindo uma produção literária que se baseia na

fronteira entre o privado e o público. A enunciação coletiva, observada por Deleuze

em sua análise das formas de agenciamento do cinema do terceiro mundo, se faz

presente na produção literária marginal a partir da indexação de personagens e

espaços geográficos reais no campo ficcional. Em princípio, tal procedimento pode

ser lido como um exercício etnográfico, uma vez que a demarcação do território

periférico, assim como a construção de personagens, se assemelha aos seus pares

factuais, facilitando assim a indicação de uma simples transposição de elementos

reais para o terreno literário ficcional. No entanto, este procedimento favorece a

construção de um novo olhar sobre o espaço marginal, e, por conseguinte, a

observação crítica deste território e de seu povo. A produção desta articulação entre

real e ficcional se dá em ato, no constante diálogo que o texto literário busca manter

com o espaço representado.

Dessa forma, estes índices de realidade, que podem ser o território e/ou

sujeitos, obedece a um intuito específico: cita-se a realidade na ficção para formar

uma abordagem politizada da marginalidade. É com este intuito, por exemplo, que

Gato Preto, no conto “Colombo, pobrema, problemas”, constrói seu percurso

ficcional pela favela do Colombo. Para a realização de um agenciamento, as histórias

privadas se tornam públicas não apenas pelo exercício crítico do autor, mas pela

própria abordagem crítica que o narrador imprime em sua análise sobre a intervenção

das ações políticas, originárias de uma macroestrutura, na trajetória pessoal dos

personagens. A enunciação coletiva, nesse sentido, surge como resultante da própria

estrutura textual do conto. As histórias narradas são edificadas não apenas pelo

próprio narrador do conto, mas pela intervenção dos próprios personagens/sujeitos na

narrativa. Além disso, por optar em compreender a marginalidade a partir de uma

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clave centrada na macroestrutura, Gato Preto possibilita também que seu exercício

seja ativado em outras localidades. Favorecendo assim a construção de uma imagem

unívoca para diferentes espaços e/ou sujeitos periféricos.

Decerto, uma manifestação literária nascente faz-se a partir dos elementos

temáticos que estão ao seu entorno. Tal escolha de cenário deriva, primeiramente, da

emergência de tornar público aspectos que outrora eram apenas examinados por

intelectuais não pertencentes aos extratos marginais. No entanto, a reincidência da

periferia como cenário na Literatura Marginal visa, na minha leitura, a uma

abordagem crítica de uma realidade concreta.

Tal forma de agenciamento político através da literatura é possível ser

encontrada no conto “Tentação”, de Alessandro Buzo, publicado em Literatura

marginal, talentos da escrita periférica. A narrativa é iniciada com a descrição de

uma cena: “Na roda da fogueira que nunca cresce e nunca se apaga estão Matraca,

Coelho e Cezinha, eles comentam com sobre Júnior com saudades...”(Buzo, 2005, p.

105) Após esta descrição, utilizando uma narração em flash-back, a narrativa

concentra-se na trajetória do personagem que é rememorado pelos amigos. A história

de Júnior é tratada de forma linear, mas há o efeito de suspensão, provocado pela

cena descrita na abertura do conto. Dessa forma, acompanhamos a trajetória do

personagem questionando quando será relatada a sua morte. É com tal premissa que o

narrador enumera, sem estender-se, os principais aspectos de sua infância e

adolescência.

Foi uma criança comum de favela, que corre descalça por ruas de terra, que solta pipa, brincou de pião, bolinha de gude, esconde-esconde e os primeiros beijos numa garota foi brincando de beijo, abraço ou aperto de mão. O Tijuco Preto [nome da favela que serve de cenário à narrativa] até hoje em pleno 2004 tem sua rua principal sem asfalto. (Idem, idem. Grifo meu)

Mesmo que de forma simplificada, a articulação entre ficção e realidade

favorece a criação de uma forma de agenciamento. Ao apresentar o cenário do conto

em sua materialidade contemporânea, dado este sem nenhuma relevância para a

economia da narrativa, o autor aponta para a necessidade de recriação de um olhar

para as condições físicas da periferia. Narra-se não apenas a ficção de um jovem de

uma favela, mas a historicidade de todo um espaço marginalizado. Nesse sentido, a

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49

própria trajetória do personagem confunde-se com a de outros sujeitos. A afirmação

da ausência de um dado intrínseco ao personagem, pois é descrito como “uma criança

comum da favela”, torna a história privada do personagem em uma história coletiva.

Deleuze, no ensaio “Literatura e vida”, apresenta uma definição do fazer literário das

minorias que é útil para a análise que realizo: “Embora remata a agente singulares, a

literatura é agenciamento coletivo de enunciação”(Deleuze, 1997, p. 14-15). É com

este tom coletivo que o narrador aponta os elementos constituintes da opção do jovem

pelo tráfico de drogas: “Como estava com dezessete anos não conseguiu emprego

nenhum, a fase do Exército quebra as penas de vários jovens”(Buzo, op. cit., p. 106,

Grifo meu) O desfecho, por sua reincidência, seja na ficção ou na realidade, é

conhecido: sem dinheiro e sem oportunidades seguras, o personagem passa a assaltar

e atuar como varejista do comércio de drogas, acabando morto ainda adolescente pela

polícia. Fechando o conto, o narrador retoma a imagem apresentada na abertura: “Na

rodinha em volta da fogueira todos lembram dele com saudades e são unânimes, ele

não era do crime, caiu em tentação.”(Idem, p. 107).

Exemplo semelhante pode ser observado em outro conto de Alessandro Buzo,

Toda brisa tem o seu dia de ventania, publicado no Ato I da Literatura Marginal e

posteriormente selecionado para compor a coleção Literatura Marginal, talentos da

escrita periférica. O conto é aberto com a indicação: “O Itaim Paulista dorme. É noite

no último bairro da Zona Leste de São Paulo.”(Buzo, 2005, p101). Após a

apresentação do cenário – descrito como o último bairro do extremo leste da cidade,

revelando sua condição de margem, distante de um centro – temos descrição do

personagem protagonista da narrativa:

Se for verdade que todo paulistano é viciado em trabalho, André é um destes maníacos. Que acredita na força do trabalho, que acredita estar no caminho certo, que acredita que um dia a vida dura vai melhorar, mas até chegar esse dia não se cansa de trabalhar. Pula da cama às cindo da madrugada todo dia e só volta da lida com a lua no céu.(Idem, Ibidem).

Tal qual no conto analisado anteriormente, o personagem também é apontado

como um sujeito semelhante aos demais. Não é o dado intrínseco que revela a

importância do mesmo, mas o oposto, é devido as características típicas do

personagem que o foco lhe é ofertado. O movimento realizado pela narração em

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50

terceira pessoa torna evidente a busca por um personagem representativo, posto que o

início do conto apresenta o cenário, descrevendo-o sucintamente, e em seguida

focaliza um sujeito. A escolha deriva não de sua singularidade, mas por possuir os

elementos característicos dos muitos trabalhadores residentes nos bairros de periferia

que, em semelhança ao personagem ficcional, também acreditam na força do trabalho

e que um dia a vida vai melhorar. A partir da leitura do conto podemos compreender

melhor o amplo mosaico construído pela representação das margens através da

escrita.

Ao lançar um olhar específico sobre um trabalhador, Alessandro Buzo abarca

também a representação dos sujeitos que não atuam no funcionamento do comércio

varejista de drogas ou que engrossam as perturbadoras estatísticas da violência

armada. Também são alvo da investigação destes autores os trabalhadores residentes

na periferia, os jovens sem perspectiva de futuro, as idosas empregadas doméstica e

analfabeta, enfim, o multifacetado espectro que povoa os becos e vielas dos grandes

centros urbanos. Mesmo que exista uma prevalência por relatos que ofereçam como

principal plano temático a violência provocada pelo avanço do consumo de drogas e

pela inserção dos jovens destas localidades na engrenagem do comércio de drogas, há

também espaço para a tematização de outras formas de violência para além da física e

letal.

Os apontamentos aqui empreendidos a partir da leitura de fragmentos de

textos de autores marginais incidem na constituição de uma proposta de arte

engajada, vinculada diretamente aos territórios que surgem no texto literário não

apenas como cenário, mas como local identitário. São textos formados a partir de um

princípio ético regulador. Não são, em última palavra, discursos moralistas, mas um

instrumento discursivo que busca forjar um perfil próprio para seus pares. Deleuze,

ao observar no fazer literário a possibilidade de construção de signos libertadores,

designa à literatura o papel de construção de uma nova imagem e feição para uma

coletividade:

A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem ou a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas tradições e renegações. (Deleuze, 1997, p. 14)

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Contudo, mesmo afirmando a necessidade de formular um olhar crítico

específico para o exame do discurso destes textos marginais, amparado em uma teoria

que coloque em destaque a dimensão política de sua intervenção social através do

texto, recuso a ideia de tratar a Literatura Marginal apenas como um movimento

literário. Meu olhar acerca destas publicações se torna mais amplo, tomando-as como

produtos culturais. Por este prisma, concebo tais produções como resultantes de um

complexo empreendimento cultural e político encenado nas periferias urbanas das

grandes capitais do Brasil. Na contemporaneidade temos observado o empenho de

diferentes organizações não governamentais e grupos culturais ligados à periferia em

formar uma imagem própria para si, utilizando como veículo de suas representações a

música, a fotografia e o vídeo. A Literatura Marginal, nesse sentido, não pode ser

tomado como um fenômeno isolado. Mas, no caso específico da literatura, esse

fenômeno se torna mais transgressor. Posto que não se trata somente de ter voz

própria, mas de estabelecer essa voz como meio de expressão coletiva, utilizando

para tanto um espaço do qual esses grupos foram, quase sempre, excluídos: a

literatura.

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3.

O “cânone marginal”

Em entrevista concedida a Aírton R. Oliveira, nos conta Maria Célia Barbosa

Reis da Silva, Antônio Fraga realiza uma pertinente crítica aos estudiosos de

literatura que buscam aproximar autores e práticas literárias algumas vezes

incompatíveis: “Em geral, os paralelos literários têm o grande inconveniente de

estabelecer semelhanças entre autores, extremamente inócuas ou profundamente

arbitrárias.”(Silva, 2008, p. 182). A voz de Fraga se eleva contra o exercício crítico

que, no afã da descoberta de uma suposta filiação literária, designa aproximações e

encontros que pouco refletem o desdobramento da escrita dos autores investigados.

Mas, mesmo conhecendo a crítica do autor, aceito o desafio e busco aproximá-lo de

outros escritores que, em semelhança à prática literária de Fraga, buscaram exprimir

na letra de fôrma a vivência dos sujeitos que habitam a margem. Assim, ao lado de

Fraga coloco Orestes Barbosa e João Antônio – dois escritores que, cada qual a seu

modo e em semelhança a Antônio Fraga, souberam exprimir em páginas impressas as

sutilezas das histórias encenadas por homens e mulheres que (sobre)viviam nos

espaços subalternizados da cidade.

Ao lançar um olhar específico sobre a produção literária destes autores, busco

colocar em relevo as representações formadas pelos escritores pioneiros no exercício

de fixar em prosa os sujeitos e territórios do subúrbio. Dessa forma, se na

contemporaneidade temos observado o empenho de autores marginalizados em

fundar uma proposta literária centrada no exame do cotidiano da periferia, não

podemos esquecer que tal tarefa não é inédita em nossa literatura brasileira. Orestes

Barbosa, Antônio Fraga e João Antônio serão lidos e analisados aqui como possíveis

autores de um cânone imaginário e próprio da Literatura Marginal. O exercício de

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53

aproximação que aqui realizo entre estes autores do passado e os escritores marginais

contemporâneos não é arbitrário, utilizo como fundamento as diferentes homenagens

e citações que autores da Literatura Marginal realizam em suas obras e sítios

eletrônicos. No processo de investigação deste possível cânone literário marginal foi

possível observar que, com exceção de Orestes Barbosa, os autores aqui elencados

são de diferentes formas postos em evidência e apresentados como pioneiros do

desejo contemporâneo dos autores marginais em focar preferencialmente os sujeitos e

espaços não pertencentes a um centro hegemônico. Exemplar nesse sentido é a

utilização de uma passagem de Abraçado ao meu rancor, de João Antônio, no

prefácio “Manifesto de abertura: Literatura Marginal”, assinado por Ferréz, publicado

no suplemento Literatura Marginal – A cultura da periferia ATO-I, lançado pela

Revista Caros Amigos, e posteriormente utilizado no prefácio “Terrorismo literário”,

do volume Literatura marginal, talentos da escrita periférica. O trecho de João

Antônio é acionado como uma espécie de aviso aos escritores que almejam percorrer

estes espaços subalternizados, advertindo sobre a especificidade deste ambiente e a

impossibilidade de representar tal cenário sem um mergulho na cultura e na

linguagem destes sujeitos:

Evitem certos tipos, certos ambientes. Evitem a fala do povo, que vocês nem sabem onde mora e como. Não reportem o povo, que ele fede. Não contem ruas, vidas, paixões violentas. Não se metam com o restolho que vocês não vêem humanidade ali. Que vocês não percebem vida ali. E vocês não sabem escrever essas coisas. Não podem sentir certas emoções, como o ouvido humano não percebe ultra-sons.(Antônio, L.M. I, p. 03)

A argumentação de João Antônio se confunde com a produzida pelos autores

da Literatura Marginal: melhor representam os personagens da periferia aqueles que

não apenas percorrem tais territórios, mas que possuem uma relação embrionária com

estes. A equação apresentada é simples e pode facilmente ser posta em xeque – é

possível apresentar uma série de autores que mesmo não pertencente à margem

conseguiram exprimir com qualidade tais vivências – mas tal postura, sobretudo pela

sua força política, se coaduna com o principal objetivo da Literatura Marginal: quem

melhor representa a periferia é o periférico.

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A homenagem prestada a João Antônio se estende à publicação de um texto

inédito do autor em Literatura Marginal Ato II, com o título de “Convite à vida”. No

texto, uma carta destinada a Myltainho, o autor relata sua experiência de leitura dos

romances de Machado de Assis.

Leio e releio, com calma e modos, o nosso primeiro bailarino, o safo-mor, o velho gamenho de espírito, o ferrabrás, o machucho, o bem-parido, o mais desconcertante, o elegante permanente, o mais que vitalício porque eterno Joaquim Maria Machado de Assis, o esguio de alma. (Antônio, L.M.-II, p. 17)

O trecho publicado é seguido por uma breve apresentada do autor, oferecendo

destaque para a sua prática literária em busca de uma aproximação da “gente da

periferia do capitalismo”: “Foi cronista das sinucas, das boates, dos malandros, das

prostitutas, dos meninos de rua.”(Idem, Ibidem).

Já em relação a Antônio Fraga, em texto publicado em seu blog no dia

13/06/2007, Ferréz afirma que “na Literatura Marginal, é o cara mais esquecido dessa

linha. Até João Antônio e Plínio [Marcos] tiveram mais destaque que ele. Mas se

você quer saber sobre a raiz das letras marginais tem que ler esse cara.”1. O destaque

ofertado, apresentando Fraga como autor que sustenta “a raiz das letras marginais”,

coloca em evidência um possível precursor do percurso que estes autores da

Literatura Marginal percorrem na contemporaneidade.

A formação do cânone marginal passa a ser regida por uma ordenação própria,

as homenagens realizadas unem, em alguns casos, autores com aparatos estéticos e

orientações distintas. Se é possível estabelecer a união de Antônio Fraga e João

Antônio em torno de uma mesma proposta, observando os recursos literários

utilizados na construção de uma linguagem própria, a estes dois é adensada Carolina

Maria de Jesus, autora que ingressou nas páginas da literatura a partir da publicação

de seus diários. A publicação de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, em

1960, pode ser tomada como uma das primeiras experiências de um marginalizado

confrontando-se com o código letrado. O resultado desta incursão de uma mulher

negra catadora de papel nas páginas da literatura brasileira foi o sucesso expresso no

1Ferréz, “Antônio Fraga mais marginal impossível”, disponível em http://ferrez.blogspot.com/2007/06/antnio-fraga-mais-marginal-impossvel.html. Acesso em 12 de novembro de 2009.

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número de vendas do livro, cerca de dez milhões de exemplares no mundo todo. Se

no âmbito nacional esta experiência literária causou impacto e curiosidade por parte

dos leitores em conhecer o cotidiano de uma favelada, no exterior, sobretudo nos

Estados Unidos, a recepção de Quarto de Despejo foi impulsionada pelo valor

testemunhal da obra, sendo lido não apenas como uma produção artística, mas

também como um documento que apresenta uma “verdade” sobre o Brasil. O sucesso

foi efêmero, e “o descenso do prestigio de Carolina coincide com o fim do populismo

oficial no país e com a virada política do golpe militar”(Vogt, 1983, p.206).

Se o caráter documental e testemunhal da obra de Carolina Maria de Jesus

despertou paixões no exterior, no Brasil este aspecto foi muito questionado. O crítico

literário Wilson Martins, em artigo publicado no Jornal do Brasil, no dia 23 de

outubro de 1993, afirmou que “Carolina é um produto da mão de Audálio

Dantas2”(Apud: Levine, 1996, p.22). Uma crítica mais fecunda foi realizada por

Anthony Leeds e Elizabeth Leeds, em A sociologia do Brasil urbano. Os autores

analisam que “o livro de Carolina Maria de Jesus, foi ávido, mas não criticamente,

lido pelos Brasileiros.”, e em nota explicam qual seria a leitura crítica que deveria ser

realizada:

Vários cuidados deveriam ser tomados na leitura de Carolina Maria de Jesus: a) o livro foi de maneira clara, amplamente organizado por seu descobridor, um jornalista; b) consideramos bastante possível que na verdade, o livro não tenha sido totalmente escrito por Carolina; c) o livro serviu claramente às operações da carreira do jornalista; d) Carolina não é certamente uma representante característica dos dois mil [sic] moradores de favelas no Rio de Janeiro que conhecemos, como mostramos aqui, embora seja concebível que a população das favelas de São Paulo seja diferente. É verdade que as favelas de São Paulo são menores e mais pobres que as do Rio de Janeiro. (LEEDS e LEEDS, 1978, p.87)

E de certo o livro não foi totalmente “escrito” por Carolina, pois é possível

observamos a interferência de Audálio Dantas, jornalista “descobridor” de Carolina,

no processo de “tradução” do texto manuscrito da autora para o sistema letrado. Os

questionamentos realizados por Leeds e Leeds quanto à autenticidade do testemunho

2 Jornalista de São Paulo que “descobriu” Carolina durante uma reportagem na favela em que a mesma residia.

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de Carolina são problematizados por Elzira Divina Perpétua em artigo intitulado:

“Aquém do Quarto de Despejo: a palavra de Carolina Maria de Jesus nos manuscritos

de seu diário”(Perpétua, 2003). Ao realizar uma comparação entre o manuscrito

original de Carolina e o texto publicado, Elzira observa que no texto publicado foram

realizados acréscimos, substituições e supressões. No deslocamento do discurso de

Carolina das páginas manuscritas – forma na qual a autora possuía total domínio

sobre a sua escrita – para as páginas impressas – momento em que o jornalista

Audálio Dantas rege a seleção do texto – é possível observarmos a interseção de duas

idéias distintas sobre a favela. O resultado disto é a criação de um novo espaço de

enunciação, que se fixa no cruzamento da idealização de uma escrita contra a favela,

representada por Carolina, e do desejo de uma expressão literária a favor da favela,

representada pelas supressões de Audálio Dantas.

Presenciamos, portanto, um confronto entre autor e editor em que cabe a

Audálio o papel de reconstituir textualmente a imagem da favelada idealizada, em

que os aspectos contraditórios são escamoteados. Silencia-se a voz que emerge de um

contexto periférico, utilizando para tal os mecanismos da cultura prevalecente. Tal

processo de tradução cultural resulta na construção de um discurso que revela uma

Carolina Maria de Jesus diversa, como observa Elzira Divina Perpétua: “Depois de

ler Quarto de despejo, sabemos que ele encena a vivência de uma mulher, negra e

favelada, mas não travamos contato com a imagem que Carolina produziu de si

mesma nos seus manuscritos: complexa, multifacetada, proteiforme.”(Perpétua, 2003,

80).

Mesmo que o texto dos diários de Carolina não revele sua própria feição, é

inegável o destaque que a autora recebe por parte dos autores da Literatura Marginal,

sendo, inclusive, objeto de estudo em um curso ministrado por Ferréz, como o autor

informou em seu blog:

salve rapa, bom em fevereiro vou dar um curso na casa do Zezinho lá no Parque Sto. Antônio, portanto se vocês quiserem, é só mandar um e-mail para [email protected] que é grátis. vou tentar mostrar toda a trajetória da escritora Carolina Maria de Jesus, que foi a primeira autora da favela, e tembém tenho nas mãos o primeiro livro publicado no Capão, em 1930(sic)

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57

Fora isso vou passar o video do Jeferson De e vai ter várias novidades. agente se vê.3

O elenco de escritores que formam este cânone proposto é vasto, rompendo

inclusive as amarras do Estado Nação ao incluir Máximo Gorki, apresentado por

Ferréz como “o primeiro grande escritor proletário da literatura universal.”4. Neste

olhar que se volta ao passado, impulsionado pela busca por escritores com propostas

literárias semelhantes às realizadas pelos autores marginais contemporâneos, é posto

em destaque não apenas a preferência destes autores em tematizar as vidas encenadas

nos bairros populares, mas, igualmente, a relação pessoal que tais escritores possuíam

com estes espaços marginais. Dessa forma, além de resgatar as possíveis primeiras

representações da periferia enquanto cenário literário, as homenagens aos “pioneiros”

– aqui vistas como a formação de um cânone – objetivam também lançar novas luzes

na trajetória de vida de autores oriundos de bairros de subúrbio. João Antônio,

Antônio Fraga e Carolina Maria de Jesus serão vistos e lidos pela Literatura Marginal

através deste duplo exame.

No entanto, se no tocante aos dados biográficos e na escolha da temática

preferencial dos escritos é possível destacar e enumerar as semelhanças entre os

“autores do cânone marginal” e os contemporâneos, o mesmo exercício não pode ser

realizado acerca da forma literária empregada e do sentido político. Ao cotejar

propostas literárias tão díspares nos procedimentos estéticos e com estruturas formais

tão distintas, não estou em uma incessante busca das origens destes discursos e dos

olhares pioneiros sobre a margem. Mesmo que João Antônio e Antonio Fraga

ocupem um espaço privilegiado no cânone literário sugerido pelos autores da

Literatura Marginal, conforme observei acima, estes escritores e Orestes Barbosa não

serão lidos como principais influenciadores dos escritos marginais contemporâneos.

A eleição que os autores da Literatura Marginal fazem de João Antônio e Fraga como

pioneiros obedece mais a razões políticas que literárias. A homenagem – semelhante

ao recorrente recurso que João Antônio realizava em seus livros ao dedicar seus

3 Disponível em http://ferrez.blogspot.com/2004_12_01_archive.html, acessado em 18 de março de 2007. 4 Ferréz, “O primeiro da Literatura Marginal”, disponível em http://ferrez.blogspot.com/2007/06/o-primeiro-da-literatura-marginal.html. Acesso em 12 de outubro de 2009.

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58

escritos a Afonso Henriques de Lima Barreto “o pioneiro, consagro” – deve ser

compreendida como um ato performático, uma intervenção política através do texto.

Ao resgatarem tais escritores, a Literatura Marginal enumera na série literária

hegemônica uma filiação própria, selecionando seus pares a partir de critérios não

apenas literários.

Mas, se há semelhanças entre estes dois grupos, também é possível destacar as

diferenças. Como primeiro indício de distinção, podemos dizer que ao contrário dos

autores da Literatura Marginal, não encontramos uma representação majoritariamente

maniqueísta, pedagógica e didática destes setores nas obras de João Antônio e Fraga.

Segundo, mesmo sendo autores de origem popular, Fraga e João Antônio não

construíram suas trajetórias literárias através de uma ação política que tinha como

principal argumento uma produção literária voltada para os espaços marginalizados,

tal qual os autores contemporâneos atuam.

Ao propor tal leitura não estou incorrendo no equivoco de realizar um

exercício anacrônico, sublevando as camadas do tempo sem precisar as condições

reais destas produções. A inserção de Orestes Barbosa neste elenco de autores,

mesmo sem observar qualquer menção ao seu nome por parte dos autores da

Literatura Marginal, resulta da constatação de que o exercício literário do autor,

sobretudo na crônica, se coaduna com a proposta de João Antônio e Antônio Fraga.

Além de possuir uma origem popular, o autor utilizou os morros, bairros de subúrbio

e as celas de prisões como palco primeiro de seus escritos. Além disso, recuperar e

rediscutir estas representações da cidade, principalmente dos lados noturnos da

cidade, possibilita a construção de uma percepção plural da margem.

3.1

Orestes Barbosa, um olhar sobre a cidade noturna

Em Bambambã!, livro de crônicas sobre os personagens da marginalia

carioca, publicado em 1923, Orestes Barbosa apresenta sua predileção pela cidade

noturna: “Há, sem dúvida, duas cidades no Rio. A misteriosa é a que mais me

encanta”(Barbosa, 1993, p. 115). Tal encantamento é de fácil compreensão. Nascido

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59

em uma família de poucas posses, o autor conheceu ainda criança a pobreza e,

conseqüentemente, travou contato com os tipos que anos mais tarde povoariam seus

escritos. “Aos dois anos de idade”, escreveu Orestes em crônica publicada em fins da

década de 1940, “dormia na rua, em virtude de ação de despejos contra os

pais”(Didier, 2005, p.33). O episódio, que determinará fortemente a trajetória do

futuro jornalista, resultou da saída do pai da Polícia - um impulso tomado sem pesar

as conseqüências. Sem ocupação fixa, Caetano Barbosa, pai do autor, não encontra

provimentos para sustentar a família. A saída buscada pelo pequeno Orestes foi

utilizar a rua como forma de sobrevivência. “Tudo se passa na rua, esse vasto e

impreciso território onde vivem os órfãos da sorte. Entre 1902 e 1905, dos 9 aos 12

anos, cresce solto, numa mistura de liberdade e abandono.”(Idem, p.32) Do período

ficará na memória do autor o fascínio pelos jornais, artigo predileto para o comércio.

Vende as notícias impressas aos gritos, lutando por atenção e, principalmente, pelo

freguês. A rotina dura, vencendo a fome a cada dia, será lembrada por Orestes sem

ressentimentos, narrando inclusive com humor fatos vivenciados na rua. Exemplo

disso é a crônica “Notas sintéticas”, publicada em 1949, em que narra o diálogo que

travou com um guarda civil após ser encontrado dormindo na rua. Conhecedor da lei,

Orestes sabia que se o guarda agisse com rigor deveria efetuar seu recolhimento.

Dormir na rua, de acordo com o código penal de 1905, era crime de vadiagem. Mas,

com sagacidade e presença de espírito, o menino, segundo narra Orestes anos mais

tarde, “fez ver ao guarda que dormindo não oferecia perigo. Que os criminosos não

dormem – que quem dorme já está preso pelo sono”(Idem, p. 35)

É com essa leveza que Orestes Barbosa desvela uma outra cidade,

apresentando ao leitor uma massa de personagens que vivem na penumbra, ocupando

espaços ocultos e, como o próprio autor denomina, misteriosos. O jornalista cumpre o

seu papel, informa, noticia. Ávido por histórias percorre as ruas, quer saber sobre os

crimes e levar o leitor ao êxtase com os relatos. Há um sentido sensacionalista na

feitura do texto. Mas, esse aspecto não é uma marca do autor, mas, sim, do período.

Os jornais, quase sem exceção, davam grande destaque aos crimes passionais e temas

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60

de impactos5. Apostavam nesse tipo de matéria com a certeza da vendagem. José do

Patrocínio Filho, em prefácio da primeira edição de Bambambã!, intitulado “O

cronista da Casa Silenciosa”, defende o sensacionalismo presente nas crônicas de

Orestes observando que

(...) não é tão fácil, como pode parecer, penetrar nos grande cotidianos cariocas. A ardilhosa mediocridade que, já de há muito, neles se instalou, repele, sempre, com hostilidade e êxito, todos os valores novos que possam vir fazer-lhes sombra. Aos debutantes como Orestes Barbosa, só resta, pois, o recurso de entrarem para os pequenos jornais recém fundados, que vivem freqüentemente da difamação e do escândalo e nos quais, por uma paga incerta, além de precária, fazem, às vezes, sem comer, o homem do miolo de outro de que fala Daudet...(Patrocínio Filho, 1993, p. 16)

Orestes segue o fluxo, nesse ponto não se difere dos demais colegas de

profissão, acompanha a corrente jornalística que busca de forma incansável o assunto

chocante. Sua marca de distinção no texto é a escrita rápida, a sentença miúda, o

parágrafo curto. Telegráfico, sem grandes elucubrações, o cronista fixa em crônicas a

rapidez do cotidiano carioca. O estilo, que era chamado de puxa-puxa ou picadinho,

ficou conhecido como marca autoral de Orestes6. Com uma agilidade peculiar na

escrita, descortina uma cidade pouco conhecida e oferece ao leitor uma leitura própria

sobre o Rio de Janeiro. A crônica “Fisionomia Policial da Cidade”, publicada em

abril de 1920, é um exemplo desse olhar sobre a cidade noturna. Distrito a distrito,

Orestes Barbosa elabora um percurso pela cidade.

O 3º Distrito é o contrabando.

5 Em Passeio Público – O Chão de Estrelas de Orestes Barbosa, de Roberto Barbosa, é possível localizar um exemplo que sintetiza o caráter sensacionalista dos jornais do período, além de narrar a estréia de Orestes na imprensa. Segundo nos relata Roberto Barbosa, ao chegar na redação do jornal notícia da castração de homem por sua mulher em um ataque de fúria devido uma traição, todos se perguntavam como deveriam tratar o caso, foi nesse momento que o jovem Orestes, que trabalhava na revisão, disse sem titubear: “Cortou o mal pela raiz!”(Barbosa, 1994, p. 7). A solução dada ao caso resultou em uma manchete de primeira página, marcando o seu debute na imprensa carioca. 6 Carlos Didier observa que o estilo de Orestes será copiado por inúmeros cronistas:

A maioria gosta e muitos vão copiar. Zeca Patrocínio fez restrições à prosa que sentiria o efeito da pressa jornalística. Por causa dela, Silvio Terra, dublê policial e repórter do crime, põe o cronista a alcunha de ‘Salta Pocinhas’. Segundo ele, quem lê faz os movimentos de quem pula poças d’água: passa por cima de uma, passa por cima de outra. Essas interrupções tornariam a leitura cansativa. A expressão salta-pocinhas existe e designa o homem afetado, justamente em seu modo de andar. A inovação e a fama têm seu preço. O másculo e valente repórter paga por elas. (Didier, 2005, p.189)

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61

As hospedarias misteriosas, a “intrujice”, o “paco”...

No 3º Distrito o crime anda calado e rente à parede – o malandro usa bonet – é geralmente estrangeiro e humilde com a polícia. (Orestes, 1920, Apud Didier, Idem, p. 129).

O fragmento, além de tornar evidente a lúcida utilização por parte do autor da

estratégia de uma escrita rápida, apresenta Orestes como conhecedor dos meandros da

marginália, capaz de identificar os sujeitos que habitam esses espaços. Não é um

simples passeio pela cidade, é um roteiro do crime, a fisionomia de uma outra urbe.

Mas, deixando esses distritos que sabem ler, passemos ao 7º e ao 8º e o leitor está na favela... Agora é que são elas. O “Corneta Gira” foi morto, é verdade, o “Cardozinho” está condenado a 24 anos, mas depois das 10 horas, se o leitor reside na rua Oito de Dezembro, apostamos que não sobe o ainda e sempre morro da Favela. É gente de respeito. Polícia ali obedece. (Idem, Idem)

O texto é uma visita, oferece ao leitor um contato próximo com o narrado, na

companhia de Orestes ficamos íntimos da marginália. Nosso guia oferece proteção,

sabe penetrar nas ruelas, percorre com leveza e agilidade os contornos soturnos da

cidade criminosa. Mas, não podemos esquecer, não pertence em essência a esse

mundo. É um jornalista, seu contato com a cidade noturna é ligeiro, busca o

fundamental para poder contar. Se há encantamento, há também distanciamento, tem

que cumprir o seu papel: narrar a um leitor ávido por conhecer as engrenagens da

outra urbe. Orestes é uma ligação entre as duas cidades, um caminho necessário para

alcançar ambos espaços, uma esquina.

Armando Gens e Rosa Maria Gens, na apresentação da segunda edição de

Bambambam!, intitulada “O taquígrafo das esquinas”, utilizam a esquina como

imagem que melhor representa a obra de Orestes Barbosa e sua própria trajetória de

vida. Na leitura dos pesquisadores, o autor constrói um novo enfoque ao temário da

literatura do início do século XX que via na rua como veio literário promissor ao

dedicar-se especialmente às esquinas. Nesse sentido, são as esquinas que oferecem a

Orestes a matéria ficcional. “É lá, no cruzamento, no canto, na dobra que o cronista se

posta.”(Gens e Gens, 1993, p. 10) As esquinas, esses territórios freqüentados por

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62

malandros e boêmios, espaços facetados, propensos a práticas escusas e a encontros

amorosos, é o ponto de observação do autor, um espaço que possibilita compreender

a dinâmica da cidade noturna. Além disso, a esquina pode ser igualmente uma

alegoria de sua obra, “já que o escritor opera na junção do erudito com o popular, sem

cair no exagero da altivez do dândi ou no paternalismo populista.”(Idem, Idem).

Orestes fica nesse ponto, na esquina, na interseção entre as duas cidades, observando

os mistérios de uma para contar para a outra.

Quando penetra com maior densidade na cidade misteriosa o faz com os olhos

abertos, pronto para registrar o funcionamento desse outro mundo. Sabendo que é

impossível compreender a totalidade, empenha-se em registrar as pequenas

engrenagens que impulsionam esse espaço noturno. Por partes, contando breves

histórias, apresentando malandros e mulheres do vício, consegue compor um amplo

mosaico da marginália carioca da década de 1920.

Como repórter policial, entre fins da década de 1910 e início da década de

1920, travou contato com os pequenos delitos, as histórias de amor seladas pelo crime

e os assassinatos vultosos. Mas, será a partir da experiência no cárcere que Orestes

Barbosa ganhará fama do cronista do submundo e da prisão. O episódio de sua prisão

revela uma marca importante do espírito do autor, dono de uma escrita voraz e

determinada, não se expressa em meias palavras, mas, sim, de forma direta e cortante.

A valentia, por assim dizer, causou a Orestes um breve período na cadeia. Devido a

inflamadas crônicas em defesa do filho de Euclides da Cunha, Manoel Afonso da

Cunha, publicadas no jornal A Folha, o diretor do Grêmio Literário Euclydes da

Cunha, Francisco Venâncio Filho, move um processo contra Orestes Barbosa,

acusando-o de injuria e difamação. Da ação resultou para o autor a condenação de

dois meses em prisão celular, convertida em encarceramento com trabalho, e multa de

trezentos mil-reis. O grau mínimo previsto no Código Penal.(Didier, op. cit., p. 163).

Da experiência no cárcere, o autor regressou com as crônicas que compõem o

livro Na prisão, publicado em 1922. O sucesso do livro foi tamanho que a primeira

edição, com mil exemplares, esgotou em apenas uma semana, selando o autor como o

conhecedor dos meandros do crime. “A cadeia”, observa Carlos Didier, “dá a Orestes

Barbosa seu primeiro livro de prosa. Onde muitos veriam o tormento, ele enxerga a

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63

oportunidade.”(Idem, p. 188). A oportunidade a que se refere seu biografo é a de se

tornar o primeiro autor a estruturar um vasto exame dos personagens e histórias da

prisão.

Poucos são os historiadores dos presídios. Ernesto Senna tratou do assunto em “Através do Cárcere”, João do Rio em “A Alma Encantadora das Ruas”. A oportunidade que se abriu para Orestes é fruto dessa escassez. A força de sua narrativa vem do distanciamento em relação à condição do condenado. O cronista escreve como se não padecesse as aflições da masmorra.(Idem,Idem)

Dessa forma, mesmo habitando o palco em que se desenrolam as histórias que

povoam as crônicas, o autor não apresenta um relato de sua vivência na cadeia, mas,

sim, lança luz sobre os sujeitos que o cerca, trazendo à tona as histórias dos crimes

praticados pelos detentos. Pois, como o próprio Orestes Barbosa observou em crônica

publicada durante a sua temporada na prisão, “um homem, depois de alguns anos de

polícia, passa a ser um romance ambulante e é assim que existem histórias compridas

capazes de gerar pesadelos nos temperamentos mais plácidos do mundo”(Didier, op.

cit., p. 166). O cronista quer conhecer esses romances ambulantes, sujeitos que

habitam a prisão, seja na qualidade de carcereiro ou encarcerado. Por isso, não apenas

entrevista os companheiros de cárcere, quase os interroga, questionando sobre os

crimes cometidos. Quer saber detalhes, o que o move é sua curiosidade de repórter, a

necessidade de conhecer o fato para poder contar. No entanto, não é uma vivência na

cadeia com distanciamento, na verdade, como narra Carlos Didier, “Orestes Barbosa

simpatiza com alguns criminosos. Faz camaradagem com Eutachio do Carmo que

matou a faca, em 1920, Luiz Gonzaga Jayme, juiz de direitos, ex-chefe de Polícia,

senador por Goiás.”(Idem, p. 168)

As histórias e personagens são muitas, o material não cabe em um único livro

e Bambambã!, segundo livro de crônicas do autor, nasceu da necessidade de narrar os

casos restantes. Em comum com o primeiro livro, Bambambã! também reúne textos

publicados anteriormente na imprensa carioca. O título do livro é uma gíria. Ao

contrário que possa parecer, não é uma onomatopéia que reproduz o som de tiros,

mas, sim, um termo que designa o sujeito valente, bom de briga, o bamba. Ou, como

desejou denominar Orestes, o Bambambã.

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64

É possível dividir o livro em duas partes distintas, a primeira com crônicas

sobre os sujeitos da prisão. Textos possivelmente remanescentes do período em que o

autor frequentou o cárcere. A segunda parte rompe os muros da cadeia e mostra um

cronista que percorre os meandros da cidade, travando contato com a temida favela,

os rituais de “macumba” e discutindo as mudanças do modus operanti da

malandragem carioca.

Bambambã! apresenta um Orestes Barbosa mais atento à dinâmica do cárcere,

interessado não apenas em narrar os episódios, mas em apresentar a vivência nesse

espaço. A crônica “Na cidade do punhal e da gazua” é um exemplo desse novo

empenho do autor. No texto é apresentada uma similitude entre a cadeia e a cidade do

Rio de Janeiro. A Casa de Detenção é vista como uma cidade, que reproduz as

diferenças e hierarquizações da cidade que se expande fora dos muros de concreto.

Na leitura atenta de Orestes, “a casa de Detenção é uma cidade entregue ao ilustre

coronel Meira Lima. Tem comércio, tem autoridades, política, clubs chics e bagunças

– tem amores e até literatura emocional.(Barbosa, 1993, p.45)

A semelhança perpassa também um caráter sociológico, caracterizando o

conjunto prisional como um Rio de Janeiro em miniatura, reproduzindo as diferentes

áreas e bairros da cidade.

Há palacetes nobres – os salões 1 e 2 . É Flamengo e Botafogo. Há casas de menor vulto, com moradores igualmente importantes: a primeira e a terceira galerias, nas quais vivem dois condenados em cada prisão. A primeira e a terceira galerias equivalem à Tijuca e Vila Isabel. A segunda galeria, de um lado é Mangue, Catumbi e Ponta do Caju – do outro lado é Saúde, Madureira e Favela. Gente pesada... Na segunda galeria onde se destaca, pelo número, a ladroagem, há, ao vivo, o Rio criminoso. Em cada cubículo moram dez, vinte, trinta e às vezes quarenta homens. (Idem, ibidem).

Na distinção geográfica, em semelhança à cidade, surge na percepção de

Orestes a hierarquização da cadeia:

Antes do despertar do bairro chegam o leiteiro, o padeiro e o jornaleiro. O leiteiro só vai a Botafogo, Flamengo, Tijuca e Vila Isabel – os salões, a primeira e a terceira galerias. A Favela não bebe leite.

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65

O jornaleiro e o padeiro, entretanto, correm a cidade toda. As casas despertam. (Idem, ibidem).

Ao estabelecer a correspondência entre a cadeia e a cidade, Orestes Barbosa

aproxima o leitor da dinâmica própria da Casa de Detenção. Criado o efeito de

similitude, o leitor, estrangeiro nesse espaço, consegue fluir com maior desenvoltura

dentro dos muros do cárcere, visualizando com maior clareza o cotidiano precário dos

detentos. Mas não é apenas um simulacro a leitura produzida por Orestes. A cidade

cárcere, na percepção do autor, surge como um organismo independente,

reproduzindo as instituições e organismos que compõem a cidade formal. A presença

da autoridade, política e bagunças reafirma a visão de um território independente da

cidade, detentor de suas próprias leis e, principalmente, de seus habitantes peculiares.

Na leitura de Bambambã! travamos contato com os mais diversos tipos. Desde

de malandros que utilizam a lábia como uma ginga rápida para surrupiar os otários

até os detentos mais temidos da época. Há uma predileção de Orestes pelos tipos

divertidos, contadores de casos inverossímeis recheados de trapaças malandras. Na

crônica “Afonso Coelho”, nome de um malandro falsificador que nessa arte era uma

celebridade, como o próprio autor definiu, travamos contato com a breve biografia do

sujeito. Partindo da notícia de seu assassinato, resultante de uma querela com a

amante, Orestes Barbosa faz um balanço da trajetória do criminoso, apresentando-o

como o criminoso mais popular do Brasil, depois de Carletto. Além da fama, o

falsário também acumulou riqueza. Até que “um dia, porém, o homem do cavalo

branco deixou de roubar”(Orestes, op. cit., p. 39). Com o dinheiro das falcatruas

comprou um sítio e formou família em Friburgo. Mesmo afastado do crime, a polícia

manteve observação sobre o bandido. E, devido um derrama de notas falsas, a polícia

convoca Afonso Coelho para depor. Acham que ele está envolvido no caso. Mas o

malandro nega a autoria e, em uma fala repleta de sinceridade, revela que se

aparecesse um negócio não hesitaria em pegar. Surpresos com a honestidade do

suspeito, os policiais questionam: “Mas você, Afonso, não teme ficar um dia

irremediavelmente perdido nos artigos do Código Penal?” E, como escreveu Orestes

na crônica, “Afonso Coelho sorriu e disse: Qual, Exa. Os artigos do Código Penal são

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66

como essas bóias luminosas que existem nas baías: o bom navegador passa entre

elas...”(Idem, p. 40)

A fala do malandro apresenta uma síntese da malandragem. Na declaração

visualizamos o sentido desviante da ginga malandra, que confunde e ilude otários e

igualmente o código penal. A crônica estabelece uma homenagem póstuma, há um

encantamento pelo sujeito. Prática semelhante é realizada por Orestes na crônica que

apresenta os feitos de João de Brito Fernandes, o João Maluco. Descrito como “um

moloque muito alto e muito magro, cor de chocolate, com os olhos esbugalhados,

como se estivesse sempre vendo uma assombração.”(Idem, p. 41). O interesse de

Orestes pelo malandro é perceptível na apresentação de suas práticas: “Esperto, com

as suas conversas consegue ir vivendo bem, até na prisão onde aplica partidos, isto é,

usa de meios e modos para tudo obter. A sua última conquista foi a liberdade.”(Idem,

Ibidem). O partido aplicado pelo malandro foi a encenação de uma moléstia incurável

na época, a tuberculose. Com a ajuda de seu tipo físico, João Maluco, como nos conta

Orestes, transformou uma gripe em uma tuberculose pulmonar. Não foi preciso

muito esforço, bastou mudar o passo e falar menos. A moléstia encenada foi

diagnosticada pelo médico da Casa de Detenção, resultando em sua transferência para

o Hospital São Sebastião. O desfecho da história é o esperado:

Quando João Maluco entrou na ambulância, parecia um defunto. As pernas como dois varapaus, o pescoço embrulhado num pano preto de guarda-chuva e a tosse, aquela tosse de comover... Dentro de 15 minutos a ambulância voltou à Detenção com o chaufeur desolado. Este, ao passar pelo largo do Estácio, teve necessidade de diminuir a marcha por causa de um bond. Um garotinho disse, na calçada da igreja ao chauffeur: - Ó moço, a porta está aberta! João Maluco ficara logo ali pela altura do morro de São Carlos – a zona da sua predileção e para a qual voltava graças ao seu talento teatral (Idem, p. 42-43)

Mas, não é apenas de partidos que vivem os malandros. Eles utilizam outros

meios para trabalhar – pois, como observa o autor, o malandro é “o homem que vive

misteriosamente, trabalhando a seu modo, porque malandro quer dizer esperto, sabido

e não ocioso como erradamente se supõe”(Idem, p. 103) – quando não consegue seu

objetivo pela fala gingada da gíria, recorre à força física. Orestes Barbosa procura

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67

compreender essa dinâmica da malandragem e, principalmente, a constituição de um

perfil simbólico desses personagens. Na crônica “As armas”, o autor observa que

“com a evolução da cidade, o malandro largou a bombacha, a botina de salto alto, o

chapéu desabado e a moca – bengala de grossura ostensiva, como também usavam os

policiais.”( Idem, p. 99). E constata: “O ideal do malandro hoje é uma pistola para-

bellum”. Se há o abandono da indumentária que o transformou em personagem típica

de um Rio de Janeiro noturno e misterioso, tal fato se deu pelo impulso da

modernidade. O malandro romântico, tipo que será idealizado nas décadas futuras,

parece não pertencer a essa nova configuração da cidade. Se a cidade evoluiu, o

malandro, na leitura de Orestes, acompanhou esse movimento. A evolução se dá na

aquisição de uma nova arma, um pistola, arma implacável que insere no malandro em

um novo marco temporal. A para-bellum é o ideal dos malandros por favorecer uma

nova marca de seus atos, uma escrita:

Ouvi certa vez do Patola, que está condenado, a descrição do assassinato de um espanhol, na ponta do Caju:

- Dei-lhe o primeiro tiro, ele desceu. Aí baixei fogo nele, a para-bellum parecia uma máquina de escrever. Despejei-lhe os 24 na cabeça. (Idem, p. 101)

De máquina letal à máquina de escrever, sentenciando uma nova escrita no

corpo da vítima, a pistola, como narra Orestes, era um desejo dos malandros dos

malandros:

Vinte e quatro tiros. Ele falava com volúpia do valor da arma. Em volta do Patola estavam outros criminosos – todos de olhos

cobiçosos, sonhando com a máquina de escrever. (Idem, Ibidem)

Armando Gens e Rosa Maria de Carvalho Gens, na apresentação já citada,

elaboram uma interessante leitura dessa passagem:

A relação ente tiros e letras, pistola e máquina de escrever não deixa dúvidas. A pistola dava ao criminoso o poder de escrever a sentença e a morte, simultaneamente, no corpo da vitima, já que com a faca, no máximo, conseguiria uma inscrição. (Gens e Gens, op. cit. P. 11)

A descrição do assassinato revela esse novo malandro, agora afeito ao Rio

moderno. O abandono da navalha revela o possível fim de uma era, um período

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68

marcado pela formação de um imaginário que se fará presente em diferentes

representações sobre esse tipo urbano, seja na música, na literatura ou no cinema.

Orestes Barbosa, devido o seu evidente encantamento por esses personagens da

margens, será um dos responsáveis pela consolidação desse imaginário.

3.2

Antônio Fraga, o Mangue como abrigo.

Desabrigo, título da marcante novela de Antônio Fraga, pode ser também um

termo referencial para pensarmos na trajetória de seu autor em suas andanças pela

cidade do Rio de Janeiro e, posteriormente, seu exílio, como denominou sua biografa,

em Queimados, na Baixada Fluminense. Fruto da união de dois militantes

anarquistas, Justino Antônio Fernandes e Waldemira Moreira Fraga, Antônio Fraga

nasceu em julho de 1916, na Cidade Nova, na Rua Senador Eusébio. De sua infância

pouco se conhece. Segundo relata Maria Célia Barbosa Reis da Silva, em seu texto

crítico-biográfico sobre Antônio Fraga, dos primeiros anos de vida o autor recorda

apenas dois episódios que servem como uma espécie de gênese do exercício literário

que irá desenvolver anos mais tarde. O primeiro, narrado em entrevista ao Jornal O

Globo na edição de 08 de dezembro de 1978, remete aos cinco anos de vida do autor

e a um brinquedo recém adquirido: uma lata de goiabada fixada em um cabo de

vassoura. O ‘lata-ciclo’, como Fraga denomina, chamou a atenção de uma criança que

passava pela rua com seu velocípede. Bem vestida e com cabelo alinhado, o menino,

filho de uma família rica, mostra interesse pelo singelo brinquedo de sucatas.

Realizam uma troca e juntos brincam. E, como nos conta Maria Célia,

Ficam amigos e, no dia de seu aniversário, Pedro convida Antônio para sua festa. Waldemira [ mãe de Fraga] veste-o com um terninho de marinheiro que, do baú de roupas, sai com cheiro de naftalina. A mãe zelosa penteia-o e leva-o até a porta da casa de Pedro. Pelas fissuras das lembranças infantis, a casa é uma mansão com um jardim cheio de estátuas, lago artificial e grama amparada. O pequenino está subindo no convés da mansão, quando surge uma senhora elegante que, de forma

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brusca e grosseira, lhe pergunta o que está fazendo lá. Ela chama o filho e repreende-o por ter convidado aquela ‘coisa’. Antônio, humilhado e cheio de ódio, desce as escadas e caminha de volta para casa, rasgando a roupa e passando terra no corpo.(Silva, 2008, p. 42).

O segundo episódio, contado por sua biografa com a mesma riqueza de

detalhes, possui final semelhante. Antônio acompanhando a mãe e o irmão mais

novo, visita a casa de uma madame. A mãe, transformada em costureira após a

separação do marido, adentra a casa para tirar medidas e ofertar tecidos. As crianças

ficam sentadas em um banco do quintal.

De dentro da casa, surge uma menina de cabelo louro, longo e cacheado, com vestido amarelo enfeitado de renda. A menina, exalando alfazema, aproxima-se deles e senta-se ao lado de Antônio. A troca de olhares e o toque de mão selam uma cumplicidade amorosa que dura aproximadamente quarenta minutos de uma tarde de março de 1931. (...) A chegada das mães quebra o encanto. Antônio segue a mãe e o irmão, não antes de ouvir a mãe de Marla repreendê-la por conversar com o filho da costureira.(Silva, op. cit., p. 41).

Esses incidentes, únicos recolhidos pelo autor de sua infância, nutrem o rancor

e o desprezo pelas camadas mais altas que acompanhará Fraga ao longo de sua vida.

Recuperados pela memória, são utilizados como referência, um marco inicial, de uma

trajetória de vida relacionada diretamente com as camadas mais baixas.

E, se sua infância é composta de apenas dois retalhos reunidos pela

justificativa de sua preleção pela marginália em virtude do menosprezo pela classe

alta, a juventude e a vida adulta de Fraga será pontuada pela vivência direta na

margem. Através de ocupações efêmeras, biscates variados que revelam uma

trajetória ímpar, o autor reunirá as experiências que posteriormente serão impressas

em sua obra. Dentre as muitas atividades – professor de crianças e adultos no interior

de Minas Gerais, lavrador em Nova Iguaçu, lanterninha de cinema, auxiliar de

cozinha no Hotel Glória e redator-chefe da Rádio Vera Cruz – podemos destacar

duas por razões distintas. Uma por ser a única ocupação formal que o autor teve ao

longo de toda a sua vida, funcionário da Legião Brasileira de Assistência. E a

segunda ocupação, como vendedor de quinquilharias e siris no Mangue, é digna de

nota por ser o marco inicial da escritura de uma mitologia pessoal do autor enquanto

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intelectual marginal e o recolhimento da matéria-prima que, dez anos depois, em

1945, ele usa na criação de sua primeira novela: Desabrigo. A partir desse contato

inicial, como observa Maria Célia, “a sorte está lançada. Fraga-texto reflete-se no

texto-Fraga. Vida e obra. Autor, texto e leitor do mundo em total interação, à procura

de editores e leitores que o efetivem enquanto texto através da leitura”. (Silva, op. cit.

45).

Com um andar torto e ziguezagueante, razão pela qual foi apelidado de

Cobrinha, Fraga percorria o Mangue oferecendo toda a sorte de bugigangas

necessárias ao pedaço. Além da subsistência, com a atividade adquiriu a experiência

necessária para expressar em linguagem literária a vida de um mundo que tem na

prostituição e nas artimanhas da malandragem sua fonte de recursos. É explícita a

relação entre esse período de convívio e a posterior criação da novela Desabrigo.

Exemplo disso é a utilização de seu apelido para nomear um dos personagens que

habitam as páginas do texto: cobrinha7.

Efetivar o texto através da leitura é, decerto, um dos principais objetivos de

todo escritor, senão o único. Mas, Antônio Fraga vai além, não almeja apenas

constituir-se enquanto autor a partir do consumo do Outro. Sua escrita aponta para

um movimento mais complexo e denso do exercício literário, quer constituir a vida

enquanto literatura, buscando reunir em páginas impressas a energia vital do vivido.

Desabrigo é o resultado de um exercício de busca desse objetivo. Na novela, Antônio

Fraga constrói uma obra em ato ao narrar os episódios envolvendo os personagens

desabrigo, cobrinha, miquimba, etc. A novela narra-se, revelando o cotidiano dos

malandros e prostitutas do Mangue sob o olhar de quem lá vive. Não é apenas uma

representação, é um contínuo exercício de busca de uma linguagem que possa

abranger toda a oralidade e a ginga dos personagens factuais. Fraga revela pleno

conhecimento da impossibilidade de realização desse ato. Seu texto tangencia os

limites da representação, explora as escolhas e leva o leitor ao diálogo, informando-o

7 Os nomes dos personagens tal qual na novela de Antônio Fraga, serão citados aqui sem a utilização de letras maiúsculas. Em Desabrigo, todos os nomes próprios, personagens ficcionais ou de escritores citados nos pontos de vista, são transcritos com as iniciais em letras minúsculas. Tal exercício estético, na minha leitura, resulta de um desejo do autor em produzir uma representação de um dos setores mais marginalizados da cidade, o Mangue, de forma coletiva. Ao eliminar a utilização de letras maiúsculas da inicial dos nomes próprio, Fraga apresenta todos os personagens de forma equiparada, sem hierarquização.

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sobre os possíveis caminhos e advertindo sobre as armadilhas do percurso. A inserção

de diferentes “Ponto de Vista” – fragmentos de textos de autores que debatem o fazer

literário ao longo da novela – revela esse intento da obra em ato, a construção de um

discurso como resultante de um contínuo debate sobre a sua própria feitura. O

primeiro “Ponto de Vista” atribuído ao escritor Campos de Carvalho – apresentado no

texto da novela sem as iniciais em maiúsculas – debate a funcionalidade da

linguagem literária na construção de um novo paradigma da literatura brasileira:

Entendem eles que para nos emanciparmos do jugo português devemos, o quanto antes, emanciparmos da língua lusitana a nossa língua, e o melhor de o fazer será abrigarmos no idioma novo toda forma de linguagem chula, de calão, de barbarismo e de sujeira em que, desgraçadamente, sempre foi fértil o linguajar do povo. Em ver de clássicos, dos puristas, dos Camões e caterva dos séculos passados, falem e pontifiquem os malandros, os analfabetos, os idiotas, as prostitutas e a ralé mais baixa (Fraga, 1999, p.21-2. Grifo meu)

Inseridos de forma abrupta, sem relação direta com a economia do texto

literário-ficcional, os “Ponto de Vista” são aberturas textuais que incidem em uma

reflexão sobre a obra, produzindo um diálogo entre autor, leitor e escrita. Na citação

de Campos de Carvalho não somos informados sobre a identidade do grupo a quem o

autor denomina como “eles”. Sabemos apenas que há aqueles que defendem a

utilização do linguajar do povo como premissa para a constituição de uma língua

própria, longe da subordinação e do jugo português. O próprio posicionamento do

autor do comentário não é explicito, tornando-se dúbia a opinião de Campos de

Carvalho sobre o tema. Mas, isso pouco importa. O importante, se assim podemos

dizer, é observar o diálogo que tal comentário realiza com a própria obra e,

principalmente, com a proposta literária de Antônio Fraga. A indeterminação do

“eles”, pronome que indica os sujeitos favoráveis à adoção de uma linguagem

literária que se quer próxima da falada pelas camadas mais baixas, é atenuada pela

certeza da presença de Fraga nesse grupo. Como analisa Giovanna Ferreira Dealtry,

em No fio da navalha:

Se não fica claro qual é a posição adota por Campos de Carvalho, é, no entanto, óbvio ao leitor de Desabrigo que esta é a postura defendida por Antônio Fraga. A independência cultural passa necessariamente pela construção de uma nova língua inclusiva da “ralé mais baixa”. (Dealtry, 2003, p. 96).

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Mesmo sendo obvia sua posição, Fraga abre espaço para a apresentação de

opiniões contrárias. Não é uma concessão, mas a realização de um debate que

possibilita o desenvolvimento da obra. O terceiro “Ponto de Vista”, atribuído ao

“grande estilista professor doutor josé guerreiro murta”(Fraga, op. cit., p. 25), é um

exemplo de compreensão antagônica. No fragmento citado travamos contato com

uma crítica à utilização de gírias na literatura brasileira ao afirmar que “se o calão

invadisse a literatura honesta (sic), o nobre ofício de escritor tornar-se-ia desprezível

e ajudaria a corromper os costumes”(Idem, ibidem).

Devo acrescentar à fala do grande estilista professor doutor a compreensão de

que a inserção de gírias na literatura representa um ato de violência contra a norma

culta. Além de corromper os costumes, a fala da ralé mais baixa corrompe também as

regras gramaticais construídas para dar corpo a uma linguagem escrita. Ao adotar

como principal elemento da linguagem literária formas e expressões oriundas da

oralidade, Antônio Fraga cria um novo paradigma que possa abarcar a especificidade

da língua falada. Códigos distintos reunidos pela habilidade de um escritor que soube

manipular com precisão elementos da oralidade na linguagem literária. Como

exemplo, cito os trechos que abrem a novela:

cobrinha entrou no boteco e botando dois tistas no balcão pediu pro coisa - Dois de gozo Coisada atendeu à la minuta Largou no copo talagada e pico de água-que-passarinho-não-topa e sem tirar a botuca da cara do cobrinha empurrou o getulinho - Tou promovendo a bicada Depois de enrustir o nicolau e derramar o gole do santo cobrinha mandou o lubrificante guela abaixo Já desguiava quando pulga mordeu atrás da orelha e ele falou pra dentro “Quero ser mico catar bagana e coisa e loisa se nessa coisa do coisa não tem coisa” (...)(Fraga, op. cit., p. 19).

O manejo da linguagem causa estranheza. A ausência de pontuação cria um

ritmo diferente de leitura. Somos levados pela sonoridade e pelas gírias a penetrar em

um ambiente distinto. O ápice desse efeito é a cacofonia realizada por Fraga ao

descrever a fome alucinógena do personagem cobrinha que o levou a comer a própria

mão: “Se uma mão fosse um mamão como seria bom Ah como seria bom se uma mão

fosse um mamão”(Idem, p. 35).

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Ter Antônio Fraga como guia não é fácil. Não apenas pela presença das gírias

e ausência de pontuação, mas porque adentramos no Mangue guiados por um autor

revestido por uma máscara. No lugar do intelectual marginal temos a construção de

um personagem responsável pela narrativa. É evêmero, personagem-procurador de

Fraga, quem recebe a legitimação para representar o Mangue. evêmero-efêmero, a

semelhança entre os termos é proposital. A distinção é apenas resultante de um

problema de dicção do autor. “Ele é efêmero porque tem consciência de sua

transitoriedade e das circunstâncias do relato do qual faz parte, tanto da enunciação

quanto do enunciado.”(Silva, op. cit., p. 66). E se torna evêmero por carregar consigo

a marca de uma fala própria, como atesta o trecho da novela que apresenta suas

observações sobre o fazer literário:

Bem fei que nam he módica empreza querer alguém introduzir neotericas llingoagem no commercio das letras Diram orthographos e outras caftas de philologos que em se tratando de lingoagem antiguidade he pofto Iffo porém me nam molefta Se consultarmos authores inda em ufo hemos de topar nelles coufas que affi escrevem em seus abufos de defufo. (Fraga, op. cit., p. 43)

A escrita copia a fala. evêmero nos parece fadado a expressar-se, ainda que na

linguagem escrita, com a mesma incorreção da oralidade. Não é um ato restrito, mas

parte de um projeto maior, como o próprio personagem-autor define:

...vou escrever ele todo em gíria para arreliar um porrilhão de gente Os anatoles vão me esculhambar Mas se me der na telha usar a ausência de pontuação ou fazer preposições ir parar na quirica das donzelinhas cheias de nove-horas ou gastar a sintaxe avacalhada que dá gosto do nosso povo não tenho de modo nenhum que dar satisfações a qualquer sacanocrata não acha? (Fraga, 1999, p. 23).

Os annatoles citados pelo personagem é uma explícita referência a Anatole

France, escritor francês que, na leitura de Fraga-evêmero, representa o fazer literário

rebuscado e longe do contato com a linguagem popular. A crítica aqui apresentada se

dá pelo presumido encantamento do intelectual burguês pelo submundo da

marginália. A presença de Annatole France na novela não se dá apenas na indicação

de um modelo literário a ser combatido, mas, também, é o próprio Anatole um

personagem da ficção fragiana. No texto, transfigurado no personagem anatole

frango, o escritor francês é um dos muitos visitantes do Mangue. evêmero que transita

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pelo território da malandragem e prostituição na busca por desabrigo, malandro que

fora hospitalizado após receber uma navalhada de cobrinha, encontra annatole em

companhia de uma prostituta francesa. Após o encontro, annatole decide acompanhar

evêmero em sua busca por desabrigo.

Com fina ironia, Fraga apresenta annatole como um personagem encantado

pelo Mangue mas, por outro lado, distante desse universo. “Parece que saímos dum

outro mundo não?”, pergunta annatole a evêmero, para prosseguir em sua leitura,

“Que ambiente antinatural! E que linguajar! Se você não traduzisse o patuá daquela

decaída juro que não haveria entendido patavina do que ela narrou acerca do amásio”

(Idem, p. 32). E ao arguir se evêmero pretendia escrever algo sobre o Mangue e seus

personagens, anatole recebe uma resposta enfurecida de evêmero: “Vocês beletristas

são gozadissímos! Olham tudo na vida como motivo pra um conto Não suportam o

ambiente – como é mesmo o palavrão? – antinatural em que vivem essas criaturas e

querem encarcerá-las num mundo de papel!”(Idem, ibidem).

Fraga, através de seu procurador evêmero, destila do encantamento do escritor

burguês pelo mundo dos marginália o visível preconceito. A crítica se dá ao desejo de

transportar os elementos do “ambiente antinatural” para a literatura, encarcerando

esses sujeitos em um mundo de papel com regras formais alheias ao seu universo.

Coloca-se em confronto duas formas distintas de incorporação desse ambiente à

literatura. A primeira, representada por annatale frango, visa examinar esse universo

através de um olhar estrangeiro que produzirá uma nova regência à linguagem falada

e aos eventos presenciados. Já evêmero, encarnando o projeto de Antônio Fraga,

postula uma proposta literária distinta, buscando na especificidade da linguagem a

fórmula motriz para a produção de sua literatura. A inscrição dos personagens em um

mundo de papel, na proposta de evêmero, se justifica pelo desejo de perpetuação de

um imaginário e de uma linguagem. Dessa forma, antes de encarcerar os personagens

nas estruturas formais literárias, evêmero busca criar uma forma de registro que

possibilite que estes sujeitos possam expressar-se por si só.

Ao produzir uma escrita pontuada pelo uso de gírias, “mandando para as

quinquilhas as preposições”, evêmero/Fraga inscreve nas regras formais da literatura

uma proposta de expressão que abriga a originalidade da linguagem da malandragem.

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Resulta desse complexo exercício estético um contato direto com a linguagem chula,

garantindo aos personagens da novela uma fala fincada no interstício entre a

oralidade e a escrita. Não se trata de realizar uma cópia da linguagem da

malandragem, como observou João Antônio – escritor que afirma pertencer à mesma

filiação de Fraga – em entrevista à Maria Célia da Silva:

Fraga descobriu uma coisa, disso eu sou admirador e de certa forma pertenço a essa família, digamos assim, que havia muita expressão na linguagem da chamada malandragem carioca, brasileira, uma força de expressão já pronta artisticamente. Bem, isso não quer dizer que, se ele colocasse um gravador na mesa da sinuca ou num botequim, fosse fazer uma obra de arte. (...) Ele ia apenas fazer uma gravação, no máximo jornalística. (...) Esse poder de captação do Fraga só pôde ser exercido porque ele não era visitante, nem um turista daquele ambiente, ele não era um diletante, ele era também parte deles.

Na leitura de João Antônio, a relação que Fraga mantém com a linguagem não

se baseia em uma simples cópia, uma reprodução mimética da fala da malandragem.

O que Fraga realiza é uma operação maior, uma captação, como João Antônio

denomina, da linguagem oral para a forma escrita. Nas palavras do escritor discípulo,

o êxito dessa ação só é alcançado porque o autor não é um visitante do ambiente que

visa representar. Mas, sim, mantém com o Mangue uma relação direta, observando e

vivenciando esse espaço.

Transpor a oralidade para a escrita é uma forma de dar vida aos personagens,

assegurando aos sujeitos desse espaço marginalizado uma nova forma de

imortalidade. É com esse reconhecimento da necessidade de construir uma estrutura

escrita que possa abarcar a especificidade de um cotidiano quase perdido que

evêmero se debruça sobre a máquina de escrever e inicia sua obra. A urgência da

escrita surge em decorrência da consciência do fim de uma época. Escrever não será

encarcerar os personagens em um mundo de papel. Mas ofertar uma nova

possibilidade de vida. E, dessa forma, seguindo pelos territórios em que os

malandros, marginais e prostitutas se refugiam, evêmero percebe com assombro o

surgimento de um novo tempo:

Evêmero andando pelas ruas do mangue (agora o mangue acabou) andando pelos escuros da fala (a lapa acabou) passando pela praça onze ( praça onze acabou) procurando os irmãos dele

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- Cadê a sara saracura o coisa o miquimba o velho bonzão da cuíca o rio de janeiro do meu tempo que não é o tempo do senhor luiz edmundo8?(Fraga, op. cit., p. 50)

Em sua busca pelos personagens/sujeitos desaparecidos pela formação de um

novo tempo – um tempo impulsionado pela modernização conservadora de um

Estado autoritário – evêmero segue perguntando pelos malandros e “todas as

prostitutas minhas irmãs”(Idem, ibidem). Sua busca é encerrada quando

uma voz que vinha passando e que se chamava verbo respondeu pra ele: -Teu mano desabrigo vai ficar toda a vida no xadrez e eu acho melhor que em vez de tar berrando aí feito um bezerro tu faça alguma coisa Ele foi encanado por ajudar um pilantra como você que tava se devorando pra se conservar. (Idem, p. 51).

A ordem é dada, evêmero precisa agir. Deve isso a desabrigo, preso por ajudar

cobrinha – que faminto comia a própria mão, achando que era um mamão, para se

conservar. Mas o que fazer, como frear o presente? É um novo tempo, uma era

galopante. A temporalidade muda, tudo se torna mais rápido, fugidio: ágil.

Metralhadoras pipocavam na imaginação dele ‘É preciso fazer qualquer coisa – um esbregue danado de medonho ou uma revolução’ Bombas explodiam arrebentavam quebravam casas matavam sacanocratas ensaguentavam o horizonte como um novo sol ‘É preciso fazer alguma coisa – agir agir agir...”(Idem, ibidem).

Nada apresenta segurança. A esperança de um novo sol é desfeita por surgir já

ensanguentado pelas bombas que explodem e arrebentam as casas. Resta agir.

Despiu o paletó (metralhadora metratrabalhadoras metralhadoras ) arregaçou as mangas da camisa (metralhadoras metratrabalhadoras metralhadoras ) e metralhou na reminton

“Cobrinha entrou no botco e botando dois tistas no balcão pediu pro coisa

- Dois de gozo Coisada atendeu à la minuta (...) (Idem, ibidem).

A ação é a escrita. evêmero, ao metralhar na reminton, re-escreve o início da

novela. Um ciclo se inicia, uma espiral que manterá vivo o Mangue, a Lapa e a Praça

XI. Se antes da ação esses espaços tinham acabado, colocados a baixo por uma norma

higienista que buscava ocultar os elementos desviantes, na escritura eles surgem

8 Referência ao escritor Luiz Edmundo, autor de O Rio de Janeiro do meu tempo.

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novamente. Única saída possível, a escrita freia o progresso autoritário e cria uma

nova temporalidade. Os personagens se tornam imortais em uma linguagem própria.

Estão agora aguardando um novo visitante – o leitor – que, em companhia dos

malandros e prostitutas, vivenciará um cotidiano perdido, como analisa Giovanna

Dealtry:

As metralhadoras giratórias remetem, pelo olhar do leitor, a uma nova construção narrativa em que o infinitivo “agir, agir, agir” transforma-se em “gira, gira, gira”. Revolve-se parcialmente o enigma: perpetua-se pela escrita e pela leitura o movimento. Dessa forma, o texto de Desabrigo ganha sentido mais amplo quando abordado dentro de uma análise que incluiu o papel do leitor. (Dealtry, op. cit., 2009.)

O leitor se torna encarregado da perpetuação de tudo o que fora destruído,

cúmplice de uma tarefa maior. Através da leitura os personagens se tornaram

imortais. Desabrigo, como observa Maria Célia, “abriga na literatura o linguajar

popular, a prosa espontânea e, por vezes, a construção rebuscada de gírias, extraídas

das falas das pessoas do “pedaço”, recurso do qual Fraga, no Brasil, é

percussor.”(Silva, op. cit., 182-3). O fim de Desabrigo representa um retorno – “o

eterno retorno”, é o título de seu último capítulo. O fim aponta para um re-começo.

Ao abrir as páginas da novela, o leitor possibilitará que o cotidiano do Mangue seja

novamente encenado.

3.3

João Antônio, o jogo de transitar pela cidade.

À semelhança de Orestes Barbosa e Antônio Fraga, João Antônio também

possui uma trajetória pessoal que se confunde com a de seus personagens. Na

infância morou em Presidente Altino, um bairro operário da zona oeste de São Paulo.

Na juventude exerceu diferentes ocupações: Office-boy, contador, bancário e depois

redator publicitário. Neste percurso de tempo ingressou no curso de Jornalismo da

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Faculdade Casper Líbero. O ingresso no ambiente universitário abriu novas frentes de

trabalho e, principalmente, experiências, como nos conta Vima Lia Martin: “É nessa

fase que começa a frequentar simultaneamente bares e sinucas com assiduidade e a

produzir literatura. A convivência que ele fazia questão de cultivar com jogadores,

prostitutas e boêmios será decisiva na concepção de seus textos.”(Martin, 2008, p. 19)

Dono de uma prosa peculiar, em que estrutura com fluidez expressões típicas

do cotidiano de personagens que sobrevivem em esferas noturnas da cidade, João

Antônio figura como um dos autores mais importantes do intento em construir nas

páginas de nossa literatura uma morada própria para os sujeitos marginalizados. Em

seus livros ganham vida os malandros, prostitutas, leões-de-chácara, pivetes, a raia

miúda, ou, como o próprio autor sempre descrevia esse grupo, a curriola. Mas, claro,

também há espaço para os pequenos trabalhadores. Esses, igualmente habitantes de

uma margem urbana, povoam as páginas em menor número. Mas, quando entram em

cena, sua presença oferece interrogações, questionamentos distintos sobre a condição

de vulnerabilidade e marginalidade que vivenciam. Dois contos em especial oferecem

esse olhar: “Busca” e “Afinação da arte de chutar tampinhas”. Ambos foram

publicados em Malagueta, Perus e Bacanaço, livro de estreia de João Antônio,

lançado em 1963.

“Busca”, o conto de abertura da publicação, tem como narrador-protagonista

Vicente, um homem solteiro que trabalha como chefe de solda em uma oficina e

divide a sua residência com a mãe e a irmã. O conto é estruturado a partir do

caminhar do personagem pelas ruas de São Paulo, momento no qual o mesmo faz

uma espécie de balanço de sua trajetória de vida. O caminhar é apresentado como um

ato oposto à estagnação, mover-se é impedir uma paralisia. Uma imagem em especial,

apresentada no início do conto, orienta a percepção do leitor acerca do personagem e

principalmente sobre o desejo de ganhar as ruas em passos desleixados: o limo nas

paredes de um tanque de lavar roupas. Tal imagem surge como um signo

representativo da fixação, do não movimento. “Quando voltasse”, afirma o

personagem, “daria um jeito no tanque. As manchas verdes sumiriam.”(Antônio,

1982, p. 11). E, após andar pelas ruas, o personagem retorna para casa e apresenta

como último pensamento a imagem do limo: “Lembrei-me que precisava passar uma

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escova no tanque”(Idem, p. 16). Há uma circularidade na narrativa, o ciclo se fecha e

a ordem se mantém. O limo do tanque serve como metáfora da própria vivência do

personagem. Dessa forma, como observa Vima Lia Martin, o personagem “demonstra

saber, de alguma maneira, que em vez de tirar o limo do tanque é preciso é tirar o

limo da sua própria vida.”(Martin, op. cit., p. 77).

Em “A afinação da arte de chutar tampinhas”, conto que apresenta um

personagem também residente em um bairro proletário e que igualmente experimenta

cotidianamente um sentimento de conflito acerca de sua trajetória de vida, o autor

funda um sentido de resistência frente às estruturas sociais hegemônicas ao oferecer

um protagonista que possui como principal habilidade chutar tampinhas. Nesse

sentido, João Antônio tece com sutileza a transformação de um ato casual,

representativo de um caminhar sem rumo e pressa, em uma atividade dotada de um

empenho único. A afinação dessa nova arte, para utilizar como referência a

construção do personagem, designa um ato contrário à aceleração do tempo moderno,

como observa Vima Lia Martin:

Se, num primeiro momento, podemos pensar na relação profunda que esse ato guarda com a prática do futebol, esporte popular que encantava o narrador na infância e já juventude, também é possível derrivar outros sentidos desse ato. No universo das relações entre trabalho e capital, em que a especialização é uma marca – ainda que falaciosa – do avanço e do progresso, especializar-se na “arte de chutar tampinhas” é uma afronta aos valores dominantes. Sabemos que no mundo do “time is money”, a “arte” e a “beleza” só adquirem valor enquanto mercadorias e, desse ponto de vista, nada pode ser mais ultrajante do que a mania contraproducente do narrador, que parece atender tão somente a uma necessidade subjetiva (Idem, p. 81)

Na análise da crítica, o personagem se insere em uma sociedade marcada por

uma temporalidade movida pela aceleração da modernidade a partir de sua negação.

Especializar-se em chutar tampinhas é um ato de afronta a uma estrutura social

marcada pela necessidade de produzir bens consumíveis, desprezando os valores

dominantes.

Nessa perspectiva, em ambos os contos, João Antônio utiliza personagens que

revelam um desconforto em relação ao mundo burguês. Seja pela urgência em mover-

se e apagar o limo que reflete seu estado de inércia na sociedade ou pelo empenho em

especializar-se em um ato que contradiz a urgência da sociedade moderna, como

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80

chutar tampinhas. São personagens que, mesmo inseridos na estrutura social

dominante através de sua força de trabalho, buscam colocar-se à margem desses

processos, buscando alternativas de evasão.

No entanto, esse desejo de colocar-se à margem da sociedade, negando os

princípios norteadores que definem em essência a estrutura burguesa dominante –

como o trabalho assalariado e as relações familiares tradicionais – é potencializado

no momento em que o autor move seu olhar para os malandros e sujeitos em conflito

com a lei. Em princípio, é possível afirmar que a escrita de João Antônio move-se em

direção a esse grupo social, buscando representá-los em seu cotidiano, construindo

diversificadas fisionomias desses sujeitos, deixando para um segundo plano os relatos

ficcionais que oferecem como protagonistas personagens inseridos em uma estrutura

formal, que podemos denominar de trabalhadores ou, para citar um gíria dos

malandros, “otários”. As páginas dos livros de João Antônio passam a ser uma

galeria de tipos residuais, marginalizados pela sociedade que aparentemente abriga e protege os ‘otários’, os malandros – jogadores de sinuca, gigolôs, prostitutas, viradores, praças, dedos-duros, artistas decadentes, leões de chácara – não possuem os mesmos bens; as regras que antes permitiam e incentivavam, agora excluem e proíbem, aos malandros, até o direito aos mesmos objetivos. (Durigan, 1983, p. 216).

A prevalência dos malandros em relação aos otários nos contos de João

Antônio revela o intento em formar um exame de um símbolo maior de uma

resistência, um ato de insubordinação em relação aos domínios de uma estrutura

social que privilegia os elementos que estes sujeitos colocam em xeque. Dessa forma,

se os personagens dos contos anteriormente citados vivenciam a angústia de um

desejo não realizado de abandono das estruturas burguesas, os malandros designam a

sua total recusa.

Movido pelo desejo de apresentar personagens em completa afronta às normas

sociais, João Antônio constrói um olhar peculiar acerca da margem urbana paulistana

e carioca. Seus personagens, em essência, são sujeitos do submundo, que se

esgueiram pelas margens da cidade, vivendo da “viração” – ou seja, virando-se,

buscando alternativas – para suprir as necessidades mais urgentes. A análise de Jesus

Antonio Durigan sobre a obra de João Antônio lança uma oportuna percepção sobre o

tipo de ação que os malandros desenvolvem com o objetivo da sobrevivência:

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81

O saber sobreviver, tomar dinheiro dos “otários”, implica, então, na presença de uma falta, na existência de uma necessidade real (pobreza), que para ser suprimida exige do malandro todo um ‘saber especializado’, oposto ao saber da competência capitalista, e que só será adquirido através de um processo prático de aprendizagem, o da vida. (Idem, p. 217).

O conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”, que dá título ao volume de estreia do

autor, é exemplar desse tipo de aprendizagem ao narrar as desventuras de três

malandros na noite paulistana. No conto, três personagens, cada qual em uma idade

específica, representando três momentos da existência humana, atravessam a cidade

em busca de um jogo de sinuca oportuno, em que possam concretizar o desejo de um

ganho vultoso o bastante para apaziguar as necessidades imediatas. A cidade, nessa

perspectiva, se abre como um campo de possibilidades, um terreno atrativo que

possibilita o fluxo por suas engrenagens. Tal qual uma mesa de sinuca, a cidade ao

longo da travessia dos personagens também tem suas regras. Bolas moventes,

Bacanaço, Perus e Malagueta percorrem o asfalto/tecido com táticas próprias,

evitando determinados espaços, recuando frente armadilhas semelhantes às caçapas e

buscando ‘otários’ que serão, esses sim, encaçapados pela picardia dos malandros. Do

jogo estabelecido com a cidade resultam episódios que revelam a necessidade de um

aprendizado próprio para o estabelecimento do percurso por suas ruas e avenidas.

O conto inicia com Bacanaço e Perus em uma sinuca no bairro da Lapa. Sem

dinheiro, os dois malandros buscam diferentes passatempos para afugentar a fome:

simulam uma briga, jogam palitinhos, contam casos da malandragem e vantagem

sobre seus atos, transformando esses atos em verdadeiras histórias de valentia. Com a

entrada de Malagueta na sinuca ambos identificam no velho malandro uma

oportunidade de ganho e sugerem: “Quer jogo, parceiro velho?”(Antônio, op. cit, p.

109). Como resposta, Malagueta recua e nada diz. Após nova investida dos dois

malandros e perceber que ambos estavam sem dinheiro, Malagueta oferece uma

alternativa: “A gente se junta, meus. Faz marmelo e pega os trouxas”(Idem, p. 110). É

estabelecido um pacto e juntos, presumem, são mais fortes. Parceiros em busca de

trouxas, cada qual uma necessidade, os três em busca da oportunidade.

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A partir desse ponto, a narrativa passa a apresentar a cidade a partir dos olhos

dos malandros. Com um narrador em terceira pessoa, o conto é um mapeamento da

cidade, identificando e hierarquizando os bairros. Dividido em seis partes, cada qual

nomeada por um bairro visitado pelos três malandros, o conto [re]constrói a cidade

através do estabelecimento de um olhar que em alguns momentos se configura como

estrangeiro ao ambiente e em outros revela grande familiaridade com o território

percorrido. O percurso pelo bairro da Barra Funda revela o sentimento de não

pertencimento dos personagens ao ambiente, como é possível observar na passagem

abaixo através do uso de um discurso indireto livre pelo narrador:

Vai-e-vem gostoso de chinelos bons de pessoas sentadas balançavam-se nas calçadas, descansando.

Com suas ruas limpas e iluminadas e carros de preço e namorados namorando-se, roupas todo-dia domingueiras – aquela gente bem dormida, bem vestida e tranquila dos lados bons das residências da Água Branca e dos começos de Perdizes. Moços passavam sorrindo, fortes e limpos, nos bate-papos da noite quente. Quando em quando, saltitava o bulício dos meninos com patins, bicicletas, brinquedos caros e coloridos.

Aqueles viviam. Malagueta, Perus e Bacanaço, ali desencontrados. O movimento e o rumor os machucava, os tocava dali. Não pertenciam àquela gente banhada e distraída, ali se embaraçavam.

(...) Um sentimento comum unia os três, os empurrava. Não eram dali.

Deviam andar. Tocassem. (Antônio, op. cit., p. 114-5)

A cidade surge em sua forma ordenada, exibindo seus bairros ricos em

contraste com os próprios personagens malandros, sujeitos evasivos, esquivos, que

cortam ruas e avenidas na “viração”, na busca por uma saída. No entanto, se no plano

físico há uma possível ordem na feição da cidade, revelando um sentido hierárquico

do seu planejamento, o mesmo não ocorre nas relações sociais que são estabelecidas

em seu território. Dois exemplos, em especial, justificam essa proximidade e inversão

das regras sociais. O primeiro, encenado dentro de uma sinuca no bairro da Água

Branca, na segunda parte do conto, apresenta um ex-policial como freqüentador

assíduo da sinuca e conhecedor em potencial das artimanhas da malandragem. Ao

chegarem na sinuca, no Bar Joana D’arc, Bacanaço, Perus e Malagueta encontram o

inspetor Lima, que mesmo aposentado ainda guardava a seriedade de seu cargo antes

do nome, acompanhado de outros jogadores no Jogo da Vida. A modalidade do jogo

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é apresentada como “o joguinho mais ladrão de quantos há na sinuca”(Idem, p. 114).

E, nas palavras do narrador, o Jogo da Vida tem as seguintes regras:

Cada um tem sua bola que é uma numerada e que não pode ser embocada. Cada um defende a sua e atira na do outro.

Cada homem tem uma bola que tem duas vidas. Se a bola cai o homem perde uma vida. Se perder as duas vidas poderá recomeçar com o dobro da casada. Mas só ganha uma vida só. (Idem, ibidem).

Devemos recordar que os três personagens estabeleceram uma parceira, estão

mancomunados. Dois entram no jogo, Perus e Bacanaço, Malagueta fica observando,

na espreita, financiando o jogo. Os outros jogadores, é claro, não sabem disso. O

ritual do artifício, a artimanha malandra, favorece os três. Ganham partidas, um

defendendo a bola do outro, até que o inspetor Lima, “que nem era malandro, nem era

um velho coió”(Idem, ibidem), percebe a parceria e com alarde afirma: “Botem fé no

que eu digo, qu’eu não sou trouxa não e nessa canoa não viajo. ‘Tá muito amarrado o

seu jogo, seu velho cara de pau. Botem fé. Eu pego marmelo neste jogo, arrumo

cadeia pros dois safados.”(Idem, ibidem).

Na passagem, João Antônio apresenta de forma perspicaz as relações de

proximidade entre o mundo da ordem e desordem. O inspetor aposentado, mesmo

compactuando com o jogo, posto que o próprio é também apostador, ao perceber a

parceria entre Perus e Bacanaço utiliza como principal referência para inibir a prática

e punir os dois malandros o elemento de coerção do mundo da ordem, a cadeia. Dessa

forma, mesmo sendo antagônicos, o mundo da ordem e da desordem sofrem

interferências múltiplas, ambos são contaminados. A análise de Vima Lia Martin

lança novos olhares sobre a questão:

A ambiguidade presente na atuação do velho Lima é emblemática da tensão entre nome e conduta que se presentifica na sociedade brasileira. O fato de o tira aposentado, que ainda sustenta influências, ser aficionados pelo jogo e vigiar a sua ocorrência no Joana d’Arc, evidencia um profundo descompasso entre norma e conduta. (...) Ao se construir como porta-voz da perspectiva “oficial” sobre o que seria a conduta ideal e, simultaneamente, como transgressor das regras que ele mesmo propaga, o ex-policial rasura as fronteiras que separam os pólos da ordem e da desordem e, de certo modo, acaba por legitimar a prática da malandragem. (Martin, op. cit., p. 141)

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Episódio que evidencia conflito semelhante é apresentado na quarta parte do

conto intitulada “Cidade”. Tal qual no relato anterior, temos um representante do

mundo da ordem, um policial, frequentador dos salões de sinuca da cidade. No

entanto, em distinção à cena do inspetor aposentado, não temos um policial que

simpatiza com o jogo e o submundo dos malandros jogadores, mas, sim, “Silveirinha,

o negro tira” que se infiltra nesse ambiente para achacar os jogadores. Perus, por ser o

mais novo e exibir sua fragilidade através da timidez evasiva, é a vitima em potencial

do policial. Inicialmente o policial atinge seu alvo pedindo propina: “Moleque, você

já pagou imposto?”(Antônio, op. cit, p. 134). A conduta do policial é de intimidação,

utilizando a força como recurso:

Azucrinava, exigia, demorava-se no exame do menino. Ali, cantava de galo, dava cartas, jogava de mão, mexia e remexia o bico, a condição de mando era sua. Infeliz algum abria o bico. Levantou-se, fez a volta a redor de Perus. Esperou a fala.(Idem, ibidem)

A fala de Perus surge tímida, um quase sussurro que demonstra sua

fragilidade, transfigurando-se em presa fácil para o negro tira. A saída encontrada por

Bacanaço para socorrer o malandro parceiro é subornar o policial, para tanto pede a

retirada de Perus e Malagueta para, assim, estabelecer o acordo:

Pediu bebida com desplante, indicou o tamborete, sentaram-se como iguais. Como colegas. O malandro e o tira eram bem semelhantes – dois bem ajambrados, ambos sapatos brilhavam, mesmo rebolado macio na fala e quem visse e não soubesse, saber não saberia quem ali era polícia, quem ali era malandro. Neles tudo sintonizava. (Idem, ibidem)

Novamente os mundos da ordem e da desordem são contaminados. Em

princípio não é possível estabelecer um choque entre essas esferas antagônicas, mas,

sim, um processo de acomodação. Contudo, desta vez, o enfoque de João Antônio se

torna mais forte, o policial ainda está na ativa e suas atitudes não deixam margem

para dúvidas, é um policial corrupto. E, como destaca Vima Lia Martin,

O ponto alto dessa passagem consiste justamente na aproximação realizada entre as duas figuras – a de Bacanaço e a de Silveirinha. A aparência, a fala e, por que não, a dissimulação e a trapaça de ambos os fazem iguais, reforçando a ideia de que a lei, na sociedade brasileira, é um mero simulacro. (Martin, op. cit., p. 147).

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A forma como o trio consegue se desvencilhar do policial corrupto serve

como uma espécie de aprendizado, travando contato com esses espaços e personagens

da cidade noturna, Bacanaço, Perus e Malagueta passam a conhecer os entraves,

meandros e armadilhas do submundo. Apreendem as informações necessárias para

formar seu percurso pela cidade. Não apenas os personagens apreendem, mas,

igualmente, o narrador.

Nos textos de João Antônio, o processo de aprendizagem se realiza duplamente: o que é desenvolvido pelos atores das histórias narradas e o que se processa ao nível do aprendizado do narrador. Enunciado e enunciação se envolvem em processos representativos, responsáveis pela organização final dos contos do autor.(Durigan, op. cit., p. 217)

É merecedor de destaque a forma como o narrador dos contos de João

Antônio se posiciona frente ao narrado. O autor lida com desenvoltura com uma

linguagem preenchida por ditos populares, gírias da malandragem, linguagem oral,

etc. O processo, por se assemelhar a um mosaico de vozes e registros da marginália,

foi classificado por Jesus Antonio Durigan como processo de bricolagem. “O

processo criativo do narrador malandro resulta e só pode ser verificado a partir de sua

capacidade de montar, do trabalho de compor um todo com partes heterogêneas e

descontextualizadas.” (Idem, p. 218)

Há uma força peculiar na linguagem do autor, revelando um experimento que

busca abarcar sentidos e emoções, como o próprio autor declara em carta enviada a

Caio Porfírio:

Sem força da linguagem, o melhor que um escritor faz é não escrever. (virar as coisas para a literatura também é ótimo exercício, coisa que escritor brasileiro tem vergonha de fazer, porque gosta mesmo é da vida literária e não de escrever) Se não tem linguagem, o escritor que trate de arrumar uma e urgentemente, porque o leitor não é obrigado a aturar prosa sem colorido, sem garra, sem sexo, sem gente, sem bucetas, caralhos, peitos, suores, etc. Fora daí, é “ismo”. Literatura tem o buraco mais embaixo.(Antônio, 2004, p. 52).

A proposta é criar uma forma de expressão literária que seja capaz de abarcar

a especificidade das gírias da malandragem e, principalmente, que seja um espaço

que possa abrigar as histórias e vivências de personagens que percorrem o submundo.

Uma linguagem que se transforma em ato político. Tal projeto ganha mais vulto

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quando o autor o apresenta no posfácio “Corpo-a-corpo com a vida” do livro

Malhação do Judas carioca, lançado em 1975:

A desconhecida vida de nossas favelas, local onde mais se canta e mais existe um espírito comunitário; a inédita vida industrial; os nossos subúrbios escondendo quase sempre setenta e cinco por cento de nossas populações urbanas; os nossos interiores – os nossos intestinos, enfim, onde estão em nossa literatura? Em seu lugar não estarão colocados os realismos fantásticos, as semiologias translúcidas, os hipermodelismos pansexuais, os supra-realismos hermenêuticos, os lambuzados estruturalismos processuais? Enquanto isso, os aspectos da vida brasileira estão aí, inéditos, não tocados, deixados para lá, adiados eternamente e aguardando os comunicadores, artistas e intérpretes. (Antônio, 1981, p. 146)

O trecho acima sintetiza o fazer literário de João Antônio e, principalmente, a

sua crítica a uma produção literária que se revela mais preocupada com a forma do

que o conteúdo. Em carta enviada em 1974 a Caio Porfírio, meses antes da

publicação do posfacio “Corpo-a-corpo com a vida”, João Antônio já apresenta o

norte conceitual de sua preleção por personagens marginalizados e por uma expressão

literária marcada pela linguagem popular:

Além do que tenho feito normalmente, ando muito interessado numa literatura que, fugindo ao gênero literário (essa coleira do capeta) seja menos literária e mais um corpo-a-corpo com a vida. Sei que isso já foi feito lá no estrangeiro – Vasco Patrolini, Truman Capote, Norman Mailer – isso não me impede de várias incursões. (Antônio, op. cit., 49).

O abandono do gênero literário não significa o abandono das técnicas

literárias. Se estabelecermos um exame da obra do autor é possível observar que após

a publicação do posfacio “Corpo-a-corpo com a vida” João Antônio passa a produzir

narrativas que se assemelham a reportagens. São contos que exibem fisionomias,

sem, necessariamente, apresentar um enredo rígido em sua estrutura narrativa. O

personagem principal, nesse sentido, passa a ser o próprio autor que percorre os

territórios multifacetados do submundo, travando contato com toda a sorte de

personagens e histórias. Casa de loucos (1976), uma reunião de textos publicados em

diferentes jornais, é o mais notório exemplo da nova investida do autor na literatura,

classificado pelo próprio como “experiências colhidas ao longo de tempos de

jornalismo”(Idem, p. 64). Com características semelhantes, Ô, Copacabana (1978)

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também apresenta contos-reportagens que possuem como principal personagem o

bairro carioca, local em que João Antônio morou durante anos até a sua morte. Por

fim, Dama do encantado, último livro inédito do autor que conta com a reunião de

crônicas, contos e ensaios do autor, pode ser compreendido como ápice desse novo

olhar sobre a literatura.

A postura combativa do autor, proclamando uma literatura em constante atrito

com a vida, rendeu uma vendagem expressiva e duras críticas, como observa Karl

Erik Shøllhammer:

Entre seus contemporâneos, João Antônio tinha um público de leitores significativo, ao mesmo tempo em que recebia um certo desprezo por parte da crítica pelo teor antiintelectual, apolítico e “populista” de seu discurso. Era chamado de autor “neonaturalista”, o que não era nada positivo, pois refletia a crítica de Lukács do romance naturalista do século XIX (Shøllhammer, 2000, p. 248).

A crítica, por mais negativa que seja, é procedente. Aprisionado em seu

empenho em produzir uma literatura viva, possível reflexo de uma realidade, João

Antônio modifica o artifício da ficção. Em seu lugar passa a vigorar o relato

jornalístico, o olhar atento sobre as ruas e as pessoas que nelas transitam. Ainda

perdura a técnica, a escrita pontuada pela linguagem da malandragem, repleta de

gírias e ditos populares. Mas, são fisionomias, retratos de sujeitos colhidos pelo autor.

No entanto, como observa Antonio Candido, será a partir desse experimento

literário que são criadas alternativas para a inserção desses sujeitos marginalizados

em nossa literatura:

Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade de dar voz, de mostrar em pé de igualdade os indivíduos de todas as classes e grupos, permitindo aos excluídos exprimirem o teor de sua humanidade, que de outro modo não poderia ser verificada. Isso é possível quando o escritor, como João Antônio, sabe esposar a intimidade, a essência daqueles que a sociedade marginaliza, pois ele faz com que existam, acima de sua triste realidade(Candido, 2004, p.11)

João Antônio figura em nossa literatura como o escritor que soube exprimir

em prosa a feição de personagens oriundos de setores marginalizados de nossa

sociedade. Travou um corpo-a-corpo não apenas com a vida, mas a vida que é

encenada nos espaços esquecidos dos nossos centos urbanos.

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88

4.

Hip–Hop e Literatura Marginal: por uma pedagogia própria

Descance o seu gatilho, descanse o seu gatilho. Entre no trem da malandragem, meu RAP é o trilho.

Racionais MC’s, Fórmula Mágica da Paz.

Corpos negros, rígidos, realizam movimentos largos, ostentam seu objetivo

de expansão, alcançar espaços antes fechados. Os punhos cerrados lançados ao ar

no ritmo constante da batida eletrônica acentua a violência já pressentida no cenho

franzido que reforça o olhar fixo. O uso de casacos volumosos, quase sempre com

capuz, aquece e oculta seus rostos e o corpo franzino. Há um aspecto teatral,

encenam um combate, figuram como vitimas e, ao mesmo tempo, vencedores.

São negros, pobres, favelados: marginalizados. Não possuem mais o gingado do

samba, a malemolência deu lugar à rigidez, reforçada pelos passos robóticos dos

dançarinos de break. A ginga é abandonada, esquecida, não há mais um sentido

desviante no trajeto que estes corpos realizam. Ao contrário, são corpos eretos que

sustentam semblantes fechados, sérios. Corpo e fisionomia expressam, em

sintonia, o mesmo teor de revolta contido nas palavras que são proferidas em ritmo

acelerado.

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Não há mais assombro, não é um fenômeno recente. O Hip-Hop com o seu

acentuado discurso de contestação tem aglutinando vozes marginalizadas não apenas

na periferia brasileira, mas igualmente em parte significativa no mundo ocidental.

Arquitetada no centro da decadência urbana norte-americana em fins dos anos 1970,

tal cultura pode ser definida como uma referência para a conformação de identidades

alternativas de jovens em bairros periféricos. Lançando mão da experiência local

como válvula motriz, inúmeros jovens produzem discursos verbais e visuais que

possuem como objetivo a auto-afirmação. Não são mais sujeitos anômalos, sem

identidade, são agora membros de uma nova filia, um grupo crescente que utiliza

como suporte discursivo as mais variadas formas de expressão. Tricia Rose, em artigo

publicado no livro Abalando os anos 90: Funk e Hip-hop, traça um elucidativo

paralelo entre a vertiginosa decadência urbana dos bairros negros e hispânicos nova-

iorquinos sofrida entre fins de 1970 e início de 1980 e o surgimento do movimento.

Na leitura de Tricia Rose, “a cultura hip-hop emergiu como fonte de formação de

uma identidade alternativa e status social para os jovens numa comunidade, cujas

antigas instituições locais de apoio foram destruídas, bem como outros setores

importantes”(Rose, 1997, p. 202). A cultura Hip-Hop emerge neste contexto como

uma resposta ruidosa proferida por uma juventude representante dos bairros

decadentes de Nova York. Através dos simbolismos desta nova cultura jovem

as descrições dos bairros negros e hispânicos foram (...) invadidas por vida, energia e vitalidade. A mensagem foi dita em alto e bom som: se ficarmos parados, aí é que estamos perdidos. E assim, enquanto essas imagens de perda e fatalidades se tornavam características definidoras, a geração mais jovem dos exilados no South Bronx estava construindo saídas criativas e agressivas para sua expressão e identificação. O novo grupo étnico que fez do South Bronx sua casa, no final dos anos 70, construiu uma rede cultural própria, que pudesse se mostrar alegre e compreensiva na era da alta tecnologia. Negros norte-americanos, jamaicanos, porto-riquenhos e outros povos do caribe, com raízes em contextos pós-coloniais, reformularam suas identidades culturais e suas expressões em uma espaço urbano hostil, tecnologicamente sofisticado e multiétnico. Enquanto os líderes municipais e a imprensa popular condenava literal e figurativamente o South Bronx, seus moradores e sua vizinhança, seus jovens habitantes negros e hispânicos, responderam à altura. (Idem, Ibidem)

Em sua leitura, Tricia Rose deposita no movimento Hip-Hop a esperança de

formação de uma política cultural que possibilite a assunção de uma identidade negra

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90

e/ou marginal com uma feição emancipatória. Ao observamos com mais atenção os

elementos constituintes desta cultura - traçando os paralelos entre o RAP, o Break e o

Graffite, os três elementos que formam a cultura - podemos compreender melhor o

tom empregado por Rose em sua análise.

O RAP, sigla do termo rhythm and poetry, é uma forma de expressão musical

baseada em batidas eletrônicas sequenciadas e uma melodia que enquadra versos

mais falados que cantados marcados pela rima. Sua origem, de acordo com Micael

Herschmann (2000) e Hermano Vianna (1997), é jamaicana e utilizava como

principal recurso os sound systems (aparelhos de som portáteis). Ao som das batidas

dos ritmos jamaicanos, os Toaster, espécie de mestres de cerimônias, ficavam

improvisando frases, discursos e rimas – versos que delatavam os problemas

socioeconômicos da comunidade, a violência, a guetificação e as péssimas condições

de vida. Em solo norte-americano, levada por Kool-Herc, a estrutura deste tipo de

festa se tornou popular e respondia aos anseios da população negra, como observa

Hermano Vianna:

No final dos anos 60, um disk-jockey chamado Kool-Herc trouxe da Jamaica para o Bronx a técnica dos famosos “sound systems” de Kingston, organizando festas nas praças do bairro. Herc não se limitava a tocar os discos, mas utilizava o aparelho de mixagem para construir novas músicas. Alguns jovens admiradores de Kool-Herc desenvolveram as técnicas do mestre. Grandmaster Flash, talvez o mais talentoso dos discípulos do DJ jamaicano, criou o scratch, ou seja, a utilização da agulha do toca-discos, arranhando [a superfície] do vinil em sentido anti-horário, como instrumento musical. Além disso, Flash entregava um microfone para que os dançarinos pudessem improvisar discursos acompanhando o ritmo da música, uma espécie de repente-eletrônico que ficou conhecido como rap. Os repentistas são chamados de rappers ou MCs, isto é, masters of cerimony.(Vianna, 1997, p. 21)

O Break, expressão corporal baseada na produção de movimentos rítmicos

que acompanham a batida da música, é uma dança de origem porto-riquenha. Os

movimentos e passos emulam uma dança robótica, estruturando uma cadência rítmica

marcada pela estratificação do corpo. De acordo com os dançarinos de break, alguns

conhecidos passos aludem ao conflito bélico do Vietnã, sobretudo as coreografias em

que os b-boys - nome dado aos dançarinos - giram o corpo no chão amparados pelas

mãos, mimetizando, assim, os helicópteros de guerra. O corpo passa a ser utilizado

como suporte de um discurso que almeja denunciar a violência e a opressão social.

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Tal qual o ocorrido com o RAP, o Break se alastrou por Nova York por volta dos

anos 70, onde ganhou força nas gangues, transformando-se em códigos de luta e

também de resistência cultural e reivindicação social. Ou seja, representando um

estilo de vida que revela uma atitude de protesto e conscientização de um grupo

marginalizado.

Ao contrário do RAP e do Break, não é possível apresentar com precisão a

origem do Graffiti. Segundo Micael Herschmann (2000), acredita-se em uma grande

influência latina devido ao expoente significativo de artistas colombianos, porto-

riquenhos, bolivianos, entre outros que trabalharam com os murais. Na década de 60

e 70, em Nova York, tal prática artística, fundamentada na utilização dos muros, trens

e quadras da cidade como suporte de um discurso de contestação, ganhou força e

notoriedade. O objetivo do Graffiti, de acordo com os próprios artistas, é alcançar o

máximo de pessoas com a manifestação, propagando um discurso crítico que visa

conscientizar o receptor da imagem. A utilização do mobiliário urbano, como uma

espécie de tela pública, revela esse intento.

O traço que une esses três elementos e, dessa forma, possibilita sua

apresentação como um movimento é o sentido de protesto, de criação de uma fala

contrária ao estabelecido, rasurando discursos hegemônicos e produzindo um

interstício entre centro e periferia.

O rap e o scratch não são elementos isolados. Quando eles aparecem nas festas de rua do Bronx, também estão surgindo a dança break, o graffiti nos muros e trens do metrô nova-iorquinos e uma forma de se vestir conhecida como estilo b-boy, isto é, a doração e uso exclusivo de marcas esportivas como Adidas, Nike, Fila. Todas essas manifestações culturais passaram a ser chamadas por um único nome: hip-hop. O rap é a música hip hop, o break é a dança hip hop e assim por diante. (Vianna, op. cit, p. 21)

Ancorada na leitura de Arthur Jafa, Tricia Rose busca relacionar os três

elementos que formam o Hip-Hop a partir de três conceitos: fluxo, estratificação e

rupturas sucessivas. Seguindo esta linha de análise, é possível observar que na cultura

Hip-Hop estes três conceitos - que por sua vez são também termos que remetem ao

movimento operado por corpos – se fazem presentes na dança, na música e na arte

gráfica. Dessa forma, Rose observa que “no graffite, as letras longas, sinuosas,

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radicais e curvas são quebradas e camufladas por repentinas rupturas no traço”(Rose,

op. cit., p. 207). No break, a dança desloca o fluxo e as rupturas sucessivas através de

imobilismos e movimentos bruscos a partir de saltos e pulos. Por fim, na música rap

o movimento de fluxo se faz presente na estrutura rítmica constante da batida

eletrônica e pelo uso de loops, séries musicais que se repetem sucessivamente, sendo

entrecortadas pelos scratchs, arranhões na superfície do disco de vinil, instaurando as

rupturas na seqüência musical. Além disso, o próprio estilo de cantar do rapper,

apresentando a gagueira como forma quase dominante, reforça a presença do

movimento de ruptura. Tais conceitos, fluxo, estratificação e ruptura, auxiliam na

composição de uma reflexão do movimento Hip-Hop em consonância com a

realidade social vivenciada pelos sujeitos fundadores desta cultura. Dito de outra

forma, o graffite, o break e o rap encenam esteticamente os mesmos movimentos

operados pelos jovens em suas respectivas comunidades.

Os efeitos do estilo e da estética sugerem caminhos afirmativos, nos quais deslocamentos e rupturas sociais profundas podem ser questionados e até mesmo constatados no terreno cultural. Deixem-nos imaginar esses princípios do hip-hop como um projeto de resistência e afirmação social: eles criam, sustentam, acumulam, estratificam, embelezam e transformam as narrativas. Mas também estão preparados para a ruptura e até encontram prazer nela, pois de fato planejam uma ruptura social. Quando essas rupturas acontecem, elas as usam de forma criativa, como se fossem organizadores de um futuro em que, para sobreviver, é necessário executar transformações repentinas no espaço tático.(Idem, ibidem).

Soma-se a isso uma nova utilização do corpo como identidade e, igualmente,

como suporte de um discurso de confronto. Em consonância com o RAP, o Break e o

Graffiti, o corpo, na cultura Hip-Hop, apresenta o mesmo sentido de expansão que o

movimento almeja. Não é mais um corpo alquebrado, vacilante, que circula pelas

periferias, mas, sim, um corpo ereto, consistente. Em outras palavras, consciente.

Conscientes de seu valor enquanto sujeitos marginalizados, utilizam o corpo como

reflexo de seu desejo de conquista. Nesse sentido, a utilização de um vestuário

baseado em roupas de alto poder aquisitivo – salvo o visível apelo consumista deste

ato – revela uma mensagem de integração, de posse e inserção, mesmo que seja ao

mercado consumidor. Écio Salles, em Poesia revoltada, ao analisar a relação entre a

música RAP e a performance artística dos rappers, observou que o mesmo teor de

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93

revolta e protesto das canções é sentido no corpo dos músicos. Ambos, música e

corpo, servem como suportes de um discurso de valorização da identidade, utilizando

para tanto todos os mecanismos possíveis.

A dança, a performance reforçam o conteúdo das letras dos raps. Em meio ao público, as notas repetitivas e opressivas, a fala grave, a postura de denúncia muitas vezes expressa por vocábulos nada sutis, tudo isso se adequa a uma dança contida, “que não autoriza sensualidade nenhuma”. Até nisso se faz sentir a diferença imposta pelo rap: ao contrário das rodas de samba, dos bailes funk, dos afoxés, das festas de soul etc..., onde o corpo executa passos frenéticos, extravasando uma alegria incontida, o público do rap acompanha o ritmo com um ligeiro balançar do corpo, ou a simulação de gestos calculados de hostilidade (apontar o dedo como se fosse uma arma, cruzar os braços, fechar a cara) ou de afirmação do seu eu (apontar para si mesmo, bater a mão fechado no peito, segurar a genitália). Gestos que contribuíram para marcar os rappers com a pecha de abusados, grosseiros. Na gíria que lhes é familiar: cheios de marra. (Salles, 2007, p. 134).

Essa postura armada, não cordial dos rappers, além de apresentar uma suposta

pecha de grosseiros, como observou Ecio Salles, é utilizada também como símbolo

identitário que busca se distinguir de outros estilos culturais da periferia.

Não há motivos para sorrisos nem para manemolência: o rapper de favela também tem que se diferenciar de outras formas de expressão surgidas no mesmo espaço, como o funk e o pagode, cuja performance tem um quê de afeminado do qual a atitude dos rappers procura distanciar-se: até agora pelo menos, o hip-hop tem sido o reino do masculino (no que esse conceito tem de mais esteriotipado). ( Salles, 2007, p. 110)

Tal performance, que não fica atrelada apenas ao MC – mestre de cerimônias

– mas também ao adepto da cultura, produz uma nova configuração do corpo negro,

com uma atitude superior, soando arrogante, mas, principalmente, não dócil. Maria

Rita Kehl, após assistir um show dos Racionais MC’s, produziu uma clara percepção

sobre essa postura:

Há uma mudança de atitude, partindo dos rappers e pretendendo modificar a auto-imagem e o comportamento de todos os negros pobres do Brasil: é o fim da humildade, do sentimento de inferioridade que tanto à elite da casa grande, acostumada a se beneficiar da mansidão – ou seja: do medo – de nossa boa gente de cor.(Kehl, appud: Salles, 2007, p. 136)

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Além de apresentar uma espécie de confronto, representada na perda da

docilidade e mansidão do corpo negro, a nova postura, conforme observou Maria Rita

Kehl, é igualmente utilizada como uma espécie de espelho para os negros da

periferia. “Olhe o espelho e tente entender” (Racionais MC’s, Vida loka II), proclama

o grupo Racionais MC’s, buscando na própria apresentação do corpo os elementos

significativos do processo de marginalização sofrido pelo negro. O corpo, nessa

leitura, é concebido como um tecido que absorve a violência sentida pelos sujeitos,

formando-os e moldando-os, como podemos perceber no trecho abaixo:

2 de Novembro era finados / E eu parei em frente ao São Luis do outro lado / E durante uma meia hora olhei um por um / E o que todas as senhoras tinham em comum: / A roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura. / Colocando flores sobre a sepultura. ("podia ser a minha mãe"). Que loucura. (Racionais MC’s; Fórmula mágica da paz)

Por reunir as marcas de uma vida marginalizada, o corpo surge como

elemento de singularização de um grupo. A pele escura e o rosto abatido pela vida

dura passam a ser os indícios utilizados pelo Hip-Hop como signos para a construção

de uma identidade própria. Exemplar desse movimento de auto-afirmação é a

abertura do RAP “A volta”, do grupo Câmbio Negro: “Sou negão, careca, da

Ceilândia, mesmo, é daí?“(Câmbio negro, A volta). Ser negro e residente da periferia,

agora, na ideologia proposta pelo Hip-Hop, principalmente através do RAP, é possuir

uma nova identidade que valoriza o que sempre foi negligenciado.

Contudo, devido a crescente presença desse estilo cultural em diferentes

discursos midiáticos – seja através da música RAP ou do próprio vestuário – é

possível perceber um esvaziamento de significados. Patrice Bollon, em A moral da

máscara(1993), produziu uma importante reflexão acerca desse processo de

apropriação dos estilos culturais. Mesmo não analisando os Rappers – posto que seu

estudo segue uma linha temporal que percorre do final do século XVIII, com os

incroyalles, aos fins dos anos 70 do século XX, com os punks – Bollon observa que

qualquer estilo cultural marginal, surgido nas ruas, ao ser abrigado pela moda

hegemônica perde seu sentido desviante e original. O sucesso, nesse sentido, revela o

esgotamento de um discurso contra-hegemônico:

Pois se esses movimentos que afetam as aparências nascem e vivem na espontaneidade, morrem também por se tornarem conscientes demais.

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Ironia da sorte, é o sucesso que provoca sua decadência. É porque eles se tornam normas, até uniformes; porque de um protesto individual fluido e contraditório, plástico e maleável, eles se transformam em ditames unívocos e determinados, sem mais a intervenção da sensibilidade individual.; em resumo, porque eles se institucionalizam, porque perdem, ao mesmo tempo que suas almas, seu valor como modo de expressão.(Bollon,1993, p. 13)

A visível institucionalização de elementos de estilo do Hip-Hop, através da

eleição do seu vestuário como estética dominante na contemporaneidade, relega-o ao

nível de puras formas vazias fomentadas por clichês publicitários.

Aliás, a moda institucional nunca se engana, ela que pilha e vampiriza o mais que pode essa invenção espontânea surgida da “rua”, da periferia, da “margem”. Como uma operação de alquimia, ela transmuta esse ignóbil em belo, e esse mau gosto em novo gosto, e em número de negócios.(Idem, Ibidem)

Em outras palavras, transforma em produto uma complexa trama de símbolos

que representa uma identidade cultural. A leitura de Patrice Bollon identifica o

movimento perpetrado pela moda no amalgama de significados de uma expressão

cultural oriunda da articulação de sujeitos periféricos. No entanto, mesmo criticando

tal processo, Bollon não estabelece um olhar sobre a recepção que os próprios

representantes destes estilos desfigurados pela “operação de alquimia” que transmuta

os elementos de um grupo cultural específico em mercadoria vazia. Tão necessário

quanto identificar tais ações da indústria da moda, é observar a reação dos sujeitos

criadores dos símbolos apropriados. Na audição do trecho final do Rap “Negro

drama”, do grupo Racionais MC’s, encontramos uma possível resposta e,

principalmente, um olhar crítico acerca deste mecanismo de adaptação e legitimação

do Hip-Hop pela moda:

Inacreditável, mas seu filho me imita/ No meio de vocês, Ele é o mais esperto/ Ginga e fala gíria, Gíria não dialeto / Esse não é mais seu/ Hó, subiu, entrei pelo seu rádio. / Tomei, você nem viu/ Nós é isso, é aquilo / O que você dizia / Seu filho quer ser preto / Ah, que ironia / Cola o pôster do 2 Pac / Aí, Que tal? Que você diz? / Sente o negro drama / Vai, tenta ser feliz. (Racionais MC’s, Negro drama, 2002).

Na fórmula apresentada pelo grupo, não é apenas a justaposição de símbolos e

a adaptação de um certo linguajar que referencia a entrada de um indivíduo no

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universo do Hip-Hop. Não se trata, nesse sentido, de ser apenas um adepto da cultura,

apresentando os elementos visuais necessários para o seu reconhecimento. Mas, sim,

possuir um ethos próprio, adquirido na vivência marginal. Pouco importa se a gíria e

a ginga mimetizam a fala e a postura do corpo negro periférico, é necessário sentir o

negro drama. Nesse caso, não está em jogo ter a aparência do Outro – esse marginal

que ocupa cada vez mais um espaço central na mídia e na moda – mas ser o Outro. O

tom jocoso do grupo aponta em direção aos brancos filhos de burgueses - os mesmos

que outrora criticavam a música e cultura da periferia - que almejam repetir a

fórmula criada pelo Hip-Hop. Na equação apresentada pelo grupo não é apenas o

empenho de um sujeito não pertencente ao universo da periferia que o habilita a

integrar tal cultura e estilo de vida. Pouco importa se a roupa portada pelo jovem

branco seja semelhante ao negro periférico, ou vice e versa, o que define o negro são

as marcas adquiridas pelo estigma e preconceito: “O drama da Cadeia e Favela/

Túmulo, sangue / Sirene, choros e vela”(Racionais Mc’s, “Negro drama”). Critica-se

o resultado vazio que o uso dos elementos exteriores adquire. Não é apenas a postura

que designa os pertencentes ao movimento Hip-Hop, mas, sobretudo, o discurso

produzido pelo rapper, como destaca Gog, no RAP “A quem possa interessar...”, do

álbum Aviso às gerações, lançado em 2006:

A quem possa interessar, proposta é mudar/ O que vem da boca, reflete sua forma de pensar / Não é apenas se vestir, investir na imagem /É traduzir, resistir, persistir na mensagem (Gog, A quem possa interessar..., 2006, grifo nosso)

Na formulação feita por Gog – nome artístico de Genival Oliveira Gonçalves,

rapper nascido em Sobradinho, cidade-satélite de Brasília – o ato discursivo surge

como um elemento maior que suprime os aspectos exteriores do movimento. A

mensagem, uma fala direta que almeja atingir os sujeitos negros e periféricos, surge

como principal objetivo deste estilo cultural. No jogo estabelecido entre a imagem e a

mensagem, valoriza-se aquilo que melhor representa um posicionamento próprio: a

fala. Nessa apreciação, ser o portador de um discurso, ser mensageiro da verdade –

para citar os termos que compõe a sigla que designa o rapper carioca M.V. Bill (Alex

Pereira Barbosa) – é o principal intento.

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Interessa-me observar quais os mecanismos utilizados pelos rappers na

produção destas mensagens de positivação sobre a periferia. Soma-se a isto, o

objetivo de buscar localizar a presença a postura crítica e de protesto do RAP na

produção literária da periferia, identificando nos textos os elementos característicos

da cultura Hip-Hop. Minha leitura será fundamentada, principalmente, na análise das

músicas do grupo Racionais MC’s, grupo da periferia de São Paulo e um dos maiores

grupos de RAP do Brasil. Por se tratar do principal grupo de RAP do Brasil e, em

consequência disto, ser referência para inúmeros outros rappers e grupos espalhados

pelas favelas e bairros de subúrbio do Brasil, ao estabelecer uma leitura atenta das

composições dos Racionais MC’s será possível observar as principais vertentes do

RAP, em sua feição nacional, enquanto discurso direcionado para a periferia.

A importância do grupo pode ser aferida na expressiva vendagem dos discos

Sobrevivendo no inferno(1997) e Nada como um dia após outro dia(2002), que

somadas ultrapassam dois milhões de cópias. Se na atualidade o RAP americano, com

poucas exceções, mais se assemelha a um apaziguador comercial de T.V. que vende

carros esportivos e mulheres semi-nuas, ao menos no Brasil ainda é possível

vislumbrar a preservação de uma doutrina ideológica e política. Uma vez que “esse

foi o caminho de pioneiros do hip-hop antes de sua transformação, nos Estados

Unidos, em um negócio multimilionário que altera o horizonte inicial e hoje participa

ativamente da indústria de entretenimento”(Silva, 2008, p. 165) É com esta matriz

ideológica, fundada em um constante trabalho de conscientização, para citar um

termo amplamente utilizado pelos adeptos da cultura Hip-Hop, que se sustenta os

Racionais MC’s. É lúcido recordar que o grupo, em quase duas décadas de existência,

mantém uma postura crítica em relação à mídia impressa e televisiva, recusando-se a

participar de programas produzidos por emissoras de T.V. aberta, as únicas exceções

são a T.V. Cultura de São Paulo e a MTV. No primeiro caso, de acordo com os

integrantes dos Racionais MC’s, estes aceitam dar entrevistas por se tratar de uma

emissora pública, sem compromisso mercadológico. Já em relação à MTV, a

justificativa é a inserção do programa Yo! MTV Raps, já extinto, voltado

especificamente para a exibição de clipes e entrevistas de rappers americanos e

brasileiros. Foi nesta emissora que o grupo protagonizou uma cena amplamente

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debatida pelos cadernos culturais dos principais jornais brasileiros ao receberem o

prêmio de Melhor vídeo-clipe do ano e de Escolha audiência, por “Diário de um

detento”. Beatriz Resende, em Apontamentos de crítica cultural, recorda de forma

sintética os principais aspectos da postura do grupo e a representatividade das falas

proferidas durante a premiação:

Na espontaneidade de suas alegrias eram, ao mesmo tempo, extremamente conscientes, sem qualquer expressão de gratidão a algum favor ou dívida com a sociedade em suas falas sempre duras. (...) A fala dos manos, veiculada pela globalizada MTV, era local, fechada em si, quase um dialeto que, aos poucos foi se popularizando, como a expressão “tá ligado”. Mano Brown, agradecendo à mãe pelo prêmio, como os astros que recebem o Oscar, dizia que a mãe já lavou muita roupa “pra playboy”. Mas o prêmio era atribuído justamente pela escolha da audiência desses assinantes da TV a cabo, os “playboys”.(Resende, 2002, p. 160-1)

No entanto, entre a denúncia da segregação social e racial e a produção de um

discurso que almeja conscientizar os jovens adeptos da cultura Hip-Hop, temos as

letras e declarações abertamente misóginas. Marca indelével do RAP norte-

americano, o sexismo machista também se faz presente nas músicas dos Racionais.

Ao menos duas composições possuem como tema o tratamento vulgar em relação ao

sexo feminino: “Mulheres vulgares”, do disco Raio-X do Brasil (1993) e “Estilo

cachorro”, do álbum Nada como um dia após o outro dia. Tal aspecto revela a

presença sutil de um aspecto contraditório no discurso do grupo. Mesmo que meu

olhar seja pontuado pela celebração do conteúdo ideológico das letras de RAP,

sobretudo pela constante tematização da violência e do racismo, é necessário destacar

que tais artistas também apresentam, em algumas composições, um discurso

machista.

Como o próprio nome do grupo indica, os Racionais MC’s se apresentam

como detentores de uma verdade, um saber que necessita ser passado aos seus pares.

Enlaçando gírias com uma fala explicitamente recolhida de textos religiosos, os

integrantes do grupo – Mano Brown, Ed Rock, Ice-Blue e KL Jay – apresentam um

olhar peculiar sobre as dinâmicas sociais da periferia, propondo aos seus ouvintes

uma saída ética frente ao funcionamento da perversa máquina da violência social.

Significativo desse intento é um trecho da música “Capítulo 4, versículo 3” – o título

faz uma clara referência ao texto bíblico, apresentando a discografia do grupo como

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uma coletânea de ensinamentos sobre o cotidiano da margem, no qual o álbum

Sobrevivendo no Inferno seria o quarto capítulo da coletânea e a faixa da composição,

por ser a terceira, seria o terceiro versículo:

Colou dois manos / Um acenou pra mim / De jaco de cetim e tênis calca jeans / Hei, Brown, sai fora nem vai, nem cola / Não vale a pena da idéia nesse tipo aí / Ontem à noite eu vi na beira do asfalto / Tragando a morte soprando a vida pro alto / Olha os cara só o pó pele e osso / No fundo do poço, mais flagrante no bolso / Veja bem ninguém é mais que ninguém / Veja bem, veja bem, eles são nossos irmãos também / Mas, de cocaína e crack, whisky e conhaque / Os manos morrem rapidinho sem lugar de destaque / Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma? Nem dá / Nunca te dei porra nenhuma / Você fuma o que vem entope o nariz / Bebe tudo que vê faça o diabo feliz / Você vai terminar tipo o outro mano lá / Que era um Preto Tipo A ninguém entrava numa / Maior estilo de calça Calvin Klein, tênis Puma / É um jeito humilde de ser no trampo e no role / Curtia um funk, jogava uma bola / Buscava a preta dele no portão da escola / Exemplo pra nós maior moral, maior ibope / Mais começo cola com os branquinhos do shopping / Aí já era / Ih! Mano outra vida, outro pique / Só mina de elite, balada vários drinques / Puta de butique, toda aquela porra sexo sem limite / Sodoma e Gomorra / Faz uns nove anos, tem uns dias atrás eu vi o mano / Você tinha que vê, pedindo cigarro pros tiozinho no ponto / Dente tudo zuado, bolso sem nenhum conto /O cara cheira mal, as tias sentem medo / Muito loco de sei lá o que logo cedo / Agora não oferece mais perigo / Viciado, doente, fudido: inofensivo. (Racionais MC’s, Capítulo 4, versículo 3. Grifo meu)

O fragmento citado utiliza como dispositivo um diálogo entre Mano Brown e

Ice-Blue – as falas deste último estão representadas em itálico. Além da evidente

qualidade musical do trecho, com destaque para o ritmo das rimas empregadas,

merece nosso foco a presença consistente do discurso político do grupo. É perceptível

a crítica ao consumo de álcool e drogas, expressa com fúria e revolta. O diálogo inicia

com a narração feita por Mano Brown de encontro com dois jovens e o aceno do

“mano de jaco de cetim, tênis e calça jeans”. O gesto receptivo e convidativo é

rechaçado por Ice-Blue, que esclarece e alerta para a conduta destes afirmando que

“não vale a penas dar idéia para esses tipo aí.” Afinal, o próprio rapper testemunhou

“ontem a noite na beira do asfalto, os manos tragando a morte e soprando a vida para

o alto”. A cena é poética e as metáforas tingem com cores vivas o consumo do crack.

Não é o realismo da cena que choca, mas o apelo realista da imagem de uma pessoa

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realizando o ato. O resultado do vício se torna visível no corpo do sujeito: “os cara só

o pó pele e osso / No fundo do poço, mais flagrante no bolso”. Contudo, observa em

resposta Mano Brown, ninguém é mais que ninguém e eles são nossos irmãos

também. A forma de diálogo obedece o princípio da dialética, na contraposição de

ideias acerca de uma mesma cena, os rappers apresentam perspectivas distintas sobre

o consumo de drogas para obterem uma conclusão. Inicialmente a postura de Mano

Brown é antagônica ao pensamento de Ice-Blue, no entanto, o confronto de

concepções resulta em uma fala que sintetiza o drama descrito na cena: estes vão

terminar “como o outro mano lá”. Na conversa ficcional – denomina-a assim mesmo

sabendo que cena semelhante é encenada cotidianamente nas periferias brasileiras – a

postura assumida por Ice-Blue revela não apenas a crítica ao consumo de drogas,

como, igualmente, o desprezo pelos consumidores. Postura formada a partir da

própria vivência, do conhecimento prévio de que o caminho das drogas só apresenta

uma direção. Direção destrutiva, que aniquila o corpo e a moral, tal qual é narrada a

condição de um jovem que, de acordo com o pensamento do rapper, era um “preto

tipo A”. A degradação de um par, que outrora era um exemplo de virtude, se dá a

partir de sua entrada em um circuito social estrangeiro, representado pelos

“branquinhos do shopping”. Duplo antagonismo, além de pertencer a um grupo social

distinto, o negro, que na composição é classificado como um “Preto Tipo A”, busca

se inserir em um território branco. A entrada neste novo espaço faz com que a

conduta do personagem da composição, explicitada como exemplar, seja esfacelada.

Nesses termos, o exemplo de negro da periferia, que ninguém entrava numa e andava

de calça Calvin Klein e tênis Puma, mas que ainda preservava um jeito humilde de

ser, é destruído pelo “outro pique”, um ritmo pertencente aos brancos burgueses, com

suas festas regadas a álcool e sexo sem limite. A destruição moral do negro é

percebida pelo corpo, um corpo viciado, doente e desleixado em contraste com sua

feição ereta de outrora. Um corpo que não oferece mais perigo, como a própria

composição evidencia. Corpo dócil, manipulado pelo álcool e pelas drogas, que

circula errante mendigando trocados. Ele agora é viciado, doente e fudido. Ou, como

sentencia o trecho: inofensivo.

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Formar um corpo que seja capaz de romper com as amarras de uma complexa

trama de desigualdade, creio que seja esse um dos objetivos do grupo Racionais

MC’s. Uma leitura atenta do álbum Sobrevivendo no inferno coloca em relevo esse

intento. Na primeira faixa, literalmente abrindo o álbum, surge como um manifesto a

regravação de “Jorge de Capadócia”, música de Jorge Ben Jor, inspirada na oração de

São Jorge Guerreiro. Além de estabelecer um diálogo com a cultura popular,

silenciado os detratores que acusam o Hip-Hop e o RAP de expressão artística e

cultural americanizada e sem relação direta com a cultura nacional, a música incide

na preocupação em manter o corpo negro e marginal fortalecido, apresentando um

discurso de auto-afirmação e autodeterminação.

Jorge sentou praça na cavalaria E eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam E nem mesmo um pensamento eles possam ter para me fazerem mal Armas de fogo Meu corpo não alcançarão Facas e espadas se quebrem Sem o meu corpo tocar Cordas e correntes arrebentem Sem o meu corpo amarrar Pois eu estou vestidos com as roupas e as armas de Jorge Jorge é de Capadócia Salve Jorge Salve Jorge Jorge é de Capadócia Salve Jorge Salve Jorge (Racionais MC’s, Jorge de Capadócia)

A oração/canção apresentada pelo grupo se baseia na construção de um corpo

forte frente aos inimigos. O fortalecimento ocorre no próprio combate, não se trata de

propor uma onipotência, mas, sim, uma defesa. Reconhecendo a necessidade de

confronto, é proposto um corpo que seja capaz de escapar das armadilhas da periferia.

Resguardados por São Jorge, o Santo Guerreiro, como popularmente o ícone religioso

católico é descrito, estes corpos periféricos poderão seguir seguros pelo território

marginal. Estão agora protegidos, não serão vitimas do fascínio das drogas e das

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ações da polícia. A proposta do grupo é clara, afinal como o próprio título do álbum

evidencia, estes desejam sobreviver no inferno. O disco como um todo pode ser lido

como uma espécie de manual para a construção de uma estratégia de sobrevivência

em um território marginalizado de um país desigual. Afinal, como denúncia a

abertura do RAP “Versículo 4, capítulo 3”:

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros. A cada 4 horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é primo preto, mais um sobrevivente...(Racionais MC’s, Capítulo 4, Versículo3)

Lido sem fundo musical, tendo apenas como interferência a introdução de

uma mesma nota após a apresentação de cada estatística, criando assim uma espécie

de sentencia do dado denunciado, o trecho revela o quanto desigual é o tratamento

ofertado pelo Estado para os jovens negros. Ser sobrevivente neste universo é o

intento, para isto é necessário estar vestido com as roupas e as armas de Jorge. Para

que os inimigos, leia-se a polícia, as vezes a única representante do Estado nas

favelas e periferias do Brasil, tenham mãos mais não os alcance.

A presença de símbolos religiosos não se restringe apenas à regravação de

“Jorge de Capadócia”, estes se fazem presente também no encarte do álbum e

disseminado em diferentes músicas. Se nos discos anteriores o grupo realizava apenas

o apontamento da presença da religião na cultura das favelas e periferias – como

podemos ver neste trecho de “Homem na estrada”, música do disco Raio-X do Brasil,

de 1993: “Um lugar onde só tinham como atração/ o bar e o candomblé pra se tomar

a benção/ Esse é o palco da história que por mim será contada./ Um homem na

estrada.” (Racionais MC’s, Homem na estrada) – a partir do disco “Sobrevivendo no

Inferno” é criado um discurso ecumênico que mescla com desenvoltura diferentes

elementos da religião católica, protestante e afro-brasileira.

A utilização de trechos do Salmo 23 no encarte do álbum produz um visível

diálogo com o título “Sobrevivendo no inferno”. Além disso, a presença do uso de

caracteres góticos, utilizados na grafia do nome do grupo e do álbum, somada à cruz

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cristã no centro da imagem, não deixa dúvidas, estamos travando contato com um

discurso amparado e formado a partir de referências religiosas. “Refrigere minha

alma e guia-me pelo caminho da justiça – Salmo 23, Cap.3”, o texto bíblico surge

como uma espécie de epigrafe. O encarte, enquanto discurso primeiro do álbum,

apresenta de forma sintética os simbolismos que estarão presentes nas letras do grupo.

Fechando o álbum, na quarta capa do encarte, o quarto capítulo do mesmo salmo

conclui o pensamento e o simbolismo: “...e mesmo que eu ande no vale da sombra e

da morte, não temerei mal algum porque tu estás comigo – Salmo 23, Capítulo 4”.

Tal qual o movimento proposto pela canção de Jorge Bem, aqui o Salmo Bíblico é

utilizado como veículo que favorece a construção de um amparo frente às ameaças as

quais os sujeitos negros e periféricos são vitimas potenciais. As letras das músicas

que compõe o álbum também trazem diferentes referências ao texto bíblico, em

especial o trecho inicial da música Versículo 4, Capítulo 3 – esta, conforme

explicitado anteriormente, utiliza-se das divisões da Bíblia Cristã para formar seu

título:

Minha palavra alivia sua dor/ Ilumina minha alma / Louvado seja o meu Senhor / que não deixa o mano aqui desandar / e nem sentar o dedo em nenhum pilantra. / Mas que nenhum filho da puta ignore a minha lei. / Racionais. Capítulo 4, versículo 3.( Racionais MC’s, Capítulo 4, versículo 3)

O discurso, agora emoldurado pela presença do tom assertivo de uma fala que

se quer próxima à produzida pelo texto religioso, apazigua a dor do outro e incide na

construção de uma orientação para a eficaz sobrevivência na periferia. Posto que,

conforme o grupo afirma na mesma faixa: “Irmão, o demônio fode tudo ao ser redor /

pelo rádio, jornal, revista e outdoor / te oferece dinheiro / conversa com calma/

contamina seu caráter / rouba tua alma / depois te joga na merda sozinho / e

transforma um Preto Tipo A num neguinho.” ( Racionais MC’s, Sobrevivendo no

inferno). A fórmula é recorrente e domina parte considerável da composição, utiliza-

se a linguagem do RAP como veículo de denúncia de um cotidiano marcado pela

miséria e desigualdade que produz uma série de armadilhas para os sujeitos residentes

nestes territórios.

Em “Vida loka parte II”, música do álbum duplo Nada como um dia após

outro dia, a religiosidade é utilizada como recurso para salvaguardar o próprio

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rapper: “Ore por nós, Pastor / lembra da gente / no culto dessa noite / Firmão, segue

quente / Admiro os crentes / Dá licença aí, mô função, mô tabela, desculpa aí”. O

pedido de oração é reforçado pela admiração que o rapper possui pelos crentes, termo

popular para designar os membros das diferentes igrejas neo-pentecostais, ressaltando

a importância desses na periferia. No entanto, para realizar a homenagem aos

“crentes” é necessário pedir um novo olhar sobre estes, “dá licença aí”, colocando em

destaque a função do discurso religioso na vida cotidiana da periferia. Além disso,

também é proposta uma semelhança entre o sujeito membro da filia criada pelo Hip-

Hop e o religioso neo-pentecostal ao afirmar que os crentes realizam “mô tabela”. A

gíria utilizada, em uma clara alusão ao futebol, apresenta a imagem de uma parceria,

um movimento em conjunto. Não é improvável a parceria, ambos, o rapper e o

crente, produzem discursos que, no mínimo, e cada qual ao seu modo, visam orientar

os jovens da periferia a partir de uma fala pedagógica. A pedagogia empregada pelo

grupo aponta para a operacionalização de uma mudança do sujeito, apontando

caminhos a serem percorridos para salvaguardar o destino destes. “Entre no trem da

malandragem, meu rap é o trilho”(Racionais MC’s, Fórmula mágica da paz). Dessa

forma, ao recorrerem às imagens religiosas, as noções de paz e justiça passam a ser

vinculadas a um princípio superior.

No álbum Nada como um dia após o outro dia – composto pelos CDs, “Chora

agora” e “Ri depois” – o desejo de mudança ganha uma estrutura cíclica. O

movimento operado pelo grupo, incidindo na apresentação de uma leitura do

cotidiano da periferia a partir de uma lógica circular – expressa no título do álbum e

no título dos dois CDs – revela o intento em apresentar uma perspectiva sobre a vida

dos sujeitos residentes em favelas e bairros periféricos fundada em um discurso de

auto-afirmação. A vinheta de abertura do “CD 1 – Chora agora” traz em seu início

uma seqüência de elementos amplamente utilizados pelos rappers brasileiros e norte-

americanos – o som de tiros e sirenes – formando uma cena que representa um

episódio recorrente nestes espaços subalternizados: o som de um carro que se

aproxima, na sequência temos o som de disparos, após um breve silêncio o ruído do

carro é retomando até se tornar inaudível, indicando que o mesmo se distancia em alta

velocidade e que os autores dos disparos fugiram; após isto, domina o áudio da

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vinheta o som característico de um despertador e o cantar de um galo, aos poucos o

ruído do despertador diminui e surge em seguida a voz de Mano Brown:

Vamos acordar, vamos acordar, porque o sol não espera. Demorou, vamos acordar. O tempo não cansa. Ontem a noite você pediu, você pediu.... uma oportunidade, mais uma chance. Como Deus é bom né não nego? Olha aí, mais um dia todo seu. Que céu azul louco hein? Vamos acordar, vamos acordar, agora vem com a sua cara, sou mais você nessa guerra. A preguiça é inimiga da vitória, o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar. Não vou te enganar, o bagulho ta doido e eu não confio em ninguém, nem em você, os inimigos vêm de graça, é a selva de pedra, eles matam os humildes demais. Você é do tamanho do seu sonho, faz o certo, faz a sua, vamo acordar, vamo acordar, cabeça erguida, olhar sincero, ta com medo de quê? Nunca foi fácil, junta os seus pedaços e desce pra arena, mas lembre-se: aconteça o que acontecer nada como um dia após outro dia. (Racionais Mc’, Sou mais você)

O ato de despertar que é invocado na vinheta indica o surgimento de um novo

dia, um novo ciclo se abre. A fala do músico incide na convocação para uma nova

jornada, insistindo na criação de uma nova perspectiva para o percurso que se abre.

“Cabeça erguida”, “sou mais você nessa guerra”, “você é do tamanho do seu sonho”,

“olha aí, mais um dia todo seu”, o tom empregado é claramente amparado em um

discurso de auto-afirmação do sujeito e é dirigido a um interlocutor presumido. O

emprego de termos no singular – você – coloca em evidência o desejo de encaminhar

o discurso diretamente ao ouvinte. A fala do rapper não oferece nenhum recurso

ritímico, não é estruturada a partir de rimas. É dito o necessário para fortalecer o

sujeito em sua caminhada, sem mediações e sem recursos estéticos. A hora é agora, é

necessário acordar, vamos acordar.

Mas, acordar para o quê? Douglas Kellner, em A cultura da mídia, ao

estruturar sua leitura do discurso político e racial presente nas produções

cinematográficas de Spike Lee e veiculadas nas letras do RAP norte-americano,

apresenta a seguinte leitura:

Estão sempre perguntando [os rappers americanos]: ‘Que horas são?’, e respondendo: ‘Hora de acordar!’ Spike Lee (...) usava constantemente a expressão “Acordem”, quase um refrão emblemático de seus filmes. (...) Hora violenta, hora de muitas vítimas, sobretudo de quem é homem, jovem e negro.

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Também é hora de fazer algo, hora de se instruir sobre o que está acontecendo, hora de pensar e atuar. (Kellner, 2001, p. 236)

Acrescento à leitura de Douglas Kellner, sobretudo amparado na análise dos

Racionais MC’s, que é hora de mudar, como evidencia a letra de “Vida Loka Parte

II” - o RAP possuí três partes, a saber: “Vida Loka (intro)” , “Vida Loka parte I”,

apresentadas de forma sequencial no disco I, e “Vida Loka parte II”, no Disco II. Ao

acompanharmos as três faixas que levam este título travamos contato com a

construção de uma espécie de conceito que sintetiza a vulnerabilidade sofrida pelos

jovens residentes em favelas, colocando em revelo as angustias, desejos e temores

destes. Especificamente em “Vida Loka parte II”, fechando a estrutura narrativa

apresentada anteriormente e formando com mais potencialidade o conceito, temos a

utilização do personagem bíblico Dimas, o bom bandido, como o pioneiro na

realização de movimento de mudança que se espera ser realizado por diferentes

jovens da periferia. A história bíblica é narrada pelos Racionais MC’s da seguinte

forma:

Enquanto Zé Povinho, Apedrejava a Cruz / Um canalha fardado, cuspiu em Jesus, Hó... Aos 45 do segundo arrependido, Salvo e perdoado, É DIMAS o bandido, É loko o bagulho, Arrepia na hora, Ó DIMAS primeiro VIDA LOKA da história. (Racionais MC’s, Vida loka parte II)

Retirada da tradição católica, posto que a denominação do bandido bíblico de

Dimas é uma construção do catolicismo, a história é adaptada à realidade das favelas

de São Paulo. O trecho é impregnado por gírias e de uma linguagem próxima à

oralidade para sintetizar a cena descrita pelos evangelhos. Na leitura do grupo, a

multidão insuflada que pedia a punição de Cristo em favor da libertação de Barrabás

é nomeada de Zé Povinho e um soldado romano é denominado de canalha fardado.

Neste processo de adaptação, a figura de Dimas passa a ser utilizada como precursor

de uma mudança desejada. Ao designarem o personagem como “primeiro vida loka

da história”, o grupo apresenta um caminho a ser trilhado. A mudança, mesmo que

realizada “aos 45 do segundo tempo”, indica um percurso a ser percorrido. Dimas

passa a ser apresentado como personagem exemplar. O bandido bom, que fora salvo e

perdoado, foi o primeiro a abandonar as estradas do crime e das drogas, vocês serão

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os próximos – diz o grupo aos seus ouvintes. Ao menos é isso que se espera, seguindo

o raciocínio do grupo. Ser o vida loka, para utilizar o termo, é frequentar este espaço

fronteiriço entre a ordem e a desordem e vivenciar as situações de vulnerabilidade

social. O grupo conhece a periferia e sabe de suas armadilhas, ao exaltarem o

percurso trilhado pelo personagem Dimas e formarem o conceito Vida loka estão

argumentando em favor de um ato de resistência frente aos desafios que a própria

periferia apresenta.

É nesta clave, almejando construir uma reflexão por parte de seus ouvintes

sobre os desafios e armadilhas que a vida nas favelas espalhadas pelas cidades do

Brasil apresenta, que o grupo lança mão de outro recurso muito utilizado nas

composições do grupo, e também presente em diferentes nas produções de outros

grupos de RAP: a narração de estórias exemplares. Narradas como histórias de

proveito e exemplo, as trajetórias de sujeitos da periferia, que em princípio poderiam

ser compreendidas como casos pontuais, são transformadas em uma complexa trama

coletiva, facilitando a pronta identificação do ouvinte com o personagem. No entanto,

é necessário esclarecer que tais trajetórias são pontuadas por um rígido maniqueísmo

que privilegia os casos de insucesso dos personagens ao ingressarem nas grossas

fileiras do comércio varejista de drogas, do assalto e do furto. Nestas músicas são

encenadas a falência dos personagens a partir da opção pelo crime. Em “Mano na

porta do bar”, música do disco Raio-X do Brasil, é apresentado o relato sobre um

jovem da periferia:

Da área uma das pessoas mais consideradas / Ele não deixa brecha, não fode ninguém / adianta vários lados sem olhar a quem / tem poucos bens, mas que nada / um Fusca 73 e uma mina apaixonada / Ele é feliz e tem o que sempre quis / uma vida humilde, porém sossegada. (Racionais Mc’s, Mano na porta do bar).

Acompanhando a narração da trajetória do “mano” percebemos uma mudança

de comportamento no personagem. Se antes ele tinha o que sempre quis,

“ultimamente andei ouvindo ele reclamar / que a sua falta de dinheiro era problema /

que a sua vida pacata já não vale a pena” (Racionais MC’s, Mano na porta do bar).

Sugado pela engrenagem do consumismo, busca uma saída rápida para silenciar o

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apelo que os reclames televisivos provocavam, resultando em seu ingresso no

comércio varejista de drogas:

Ele mudou demais de uns tempos para cá / Cercado de uma pá de tipo estranho / que prometem para ele o mundo dos sonhos / ele está diferente não é mais como antes / agora anda armado a todo instante / não precisa mais dos aliados / negociantes influentes estão ao seu lado(Racionais MC’s, Mano na porta do bar).

O desfecho da estória possui um sentido pedagógico, apresentando a opção

pelo crime como um caminho que aponta para uma única saída: a morte. A descrição

da cena final é rica em imagens, revelando a precisão poética do grupo:

Você tá vendo o movimento na porta do bar / Tem muita gente indo pra lá, o que será? / Daqui apenas posso ver uma fita amarela / Luzes vermelhas e azuis piscando em volta dela / Informações desencontradas, gente indo e vindo / não tô entendendo nada, vários rostos sorrindo / ouço um moleque dizer, mais um cuzão da lista / dois fulanos numa moto, única pista / eu vejo manchas no chão, eu vejo um homem ali / é natural para mim, infelizmente / a lei da selva é traiçoeira, surpresa / hoje você é o predador, amanhã é a presa / já posso imaginar, vou confirmar / me aproximei da multidão, obtive a resposta / você viu aquele mano na porta do bar / ontem a casa caiu com uma rajada nas costas...(Racionais MC’s, Mano na porta do bar).

São muitos os exemplos que podem ser recolhidos, seja através de uma

narração em primeira pessoa, como “To ouvindo alguém me chamar”, ou em terceira

pessoa, como “Mano na porta do bar”, o desfecho da narração é o mesmo: a morte.

Não se trata de um simples recurso ficcional, mas, sim, de uma observação atenta da

realidade. Trata-se de uma opção ética, de um compromisso em falar uma verdade. O

intuito desta encenação realista que julga de forma indiscriminada os manos da

periferia é favorecer a perpetuação da passagem bíblica do novo testamento em que

Dimas, o bandido bom, alcança sua salvação. As estórias encenadas são

transformadas em uma espécie de espelho no qual o ouvinte irá prontamente mirar-se,

conhecendo previamente qual será seu desfecho ao ingressar no crime. “Dar

conselhos”, destaca Ecio Salles, “parece ser uma prerrogativa da qual [os rappers] se

investiram, e que pretendem manter.”(Salles, op. cit., p.66)

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Douglas Kellner, no trabalho já citado, ao analisar o álbum do rapper norte-

americanos Ice-Cube, Death Certificate, observa a presença deste mesmo discurso

pedagógico:

O álbum é muito moralista e politicamente radical; diz aos negros que “larguem a bebida” e está sempre atacando os negros vendidos e os enquadrados, como o Tio Tomás. Um rap, “Look Who’s Burnning”, adverte sobre as doenças veneras, e no álbum todo aconselha-se a fazer sexo seguro. Embora antes Ice Cube se recusasse a censurar o uso da droga, agora, talvez seguindo a linha da Nation of Islam, ataca o uso da droga na comunidade e avisa aos negros de que o que está em jogo é a sobrevivência deles. (Kellner, op. cit., p. 243)

Na leitura de Kellner o apelo explícito à construção de uma conscientização

sobre a situação dos negros e marginalizados é compreendido como um discurso

moralista. O empenho em formar uma nova reflexão sobre as condições de

subalternidade de uma significativa parcela da população, utilizando-se para isso da

virulência das batidas eletrônicas e falas preenchidas por xingamentos, na perspectiva

que pretendo ofertar, deve ser lido como um ato político. Conscientes da necessidade

de criação de ferramentas que possibilitem a obliteração do funcionamento da

perversa máquina de destruição que é abastecida pelos corpos dóceis dos negros

viciados e arrebatados pelo apelo consumista da sociedade da informação, os rappers,

entre eles os Racionais MC’s, utilizam suas músicas e letras com este intento. A

análise de Ecio Salles destaca este aspecto da atuação política dos artistas

pertencentes ao universo Hip-hop:

(...) o rapper demonstra uma grande preocupação com os destinos de sua comunidade e de seu povo. Ressalta-se que o tempo imperativo dos verbos reforça a idéia de endereçamento a um ouvinte específico, localizável – aquele a quem se destina o conselho, e que precisa se transformar para que todo o resto possa ser transformado. (Salles, op. cit., p. 67)

Ou seja, contra a estrutura cíclica e perversa de uma vivência pontuada pela

violência cotidiana em suas diferentes dimensões é estruturada uma apreciação sobre

esta realidade, subordinando o discurso a uma função política primeira que norteará

os versos rítmicos proferidos com voracidade pelos artistas.

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4.1 A presença do RAP na literatura marginal

Não é mais motivo de alarme nos depararmos com estudos produzidos por

pesquisadores da área de estudos literários que elegem a música como objeto de

análise. Tanto nos Departamentos de Letras das Universidades brasileiras quanto nas

estrangeiras, é perceptível o empenho de diferentes críticos literários em formarem

novas compreensões sobre a textualidade poética presente nas canções. Amparados

em pressupostos teóricos formados à luz dos Estudos Culturais, disciplina crítica que

auxilia a produção de uma reflexão que rompe com possíveis estatutos hierárquicos

estanques, tais estudiosos buscam um tratamento interdisciplinar destes produtos

discursivos culturais. No caso específico da Música Popular Brasileira, a própria

convergência entre tais práticas discursivas e poéticas torna o terreno a ser

investigado menos distanciado; como destaca José Miguel Wisnik, ao salientar os

diferentes poetas que igualmente atuaram no campo musical:

A partir do momento em que Vinícius de Moraes, poeta lírico reconhecido desde a década de 30, migrou do livro para a canção, no final dos anos 1950 e início de 1960, a fronteira entre poesia escrita e poesia cantada foi devassada por gerações de compositores e letristas leitores dos grandes poetas modernistas como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral, Manuel Bandeira, Mário de Andrade ou Cecília Meireles. (Wisnik, 2001, p. 183-4)

Em texto de apresentação de uma série de ensaios que estruturam análises

sobre a relação entre música e literatura, Júlio Diniz organiza com propriedade o

percurso traçado pelos primeiros críticos literários que elegeram a música como

objeto de estudo:

Do hoje clássico Balanço da bossa e outras bossas de Augusto de Campos, lançado em 1968, passando pela contribuição de críticos e pesquisadores da área de literatura e linguagem, como Heloísa Buarque de Hollanda, Affonso Romano de Sant’Anna, Silviano

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Santiago, Luiz Tatit, José Miguel Wisnik, Fred Góes, Cláudia Neiva Matos, entre outros, a crítica acadêmica ganhou força com a entrada em cena de grupos de pesquisa comprometidos com um projeto interdisciplinar de investigação sobre novas formas de pensar o diálogo entre música popular e literatura. (Diniz,2001, p. 215)

O elenco formado por Júlio Diniz estabelece uma espécie de genealogia dos

estudos de literatura e música, apontando para o percurso que este tipo de abordagem

percorreu na crítica literária brasileira. A análise que pretendo oferecer para a

presença de uma manifestação musical específica – o RAP – em um movimento

literário igualmente específico – a Literatura Marginal – é, em diferentes aspectos,

devedora destes estudos pioneiros, sobretudo das reflexões ancoradas nos Estudos

Culturais. Dessa forma, em consonância com as reflexões produzidas por Heloísa

Buarque de Hollanda, Fred Góes e Cláudia Neiva Matos, para citar alguns exemplos,

também buscarei observar a presença de uma poética cantada em uma produção

literária. No entanto, o exercício que aqui será realizado aponta para um movimento

oposto, uma vez que meu empenho crítico será direcionado para a constatação de

elementos da poética cantada em um aparato escrito. Ou seja, pretendo observar a

presença do RAP nas manifestações literárias. O desenho metodológico que proponho

é resultante da simples constatação de que o RAP exerce grande influência sobre as

produções literárias periféricas e, sobretudo, nos autores pertencentes ao movimento.

Além disso, se historicizarmos ambos os processos a partir de uma leitura temporal

linear, perceberemos que o RAP – assim como os outros elementos constituintes da

cultura Hip-Hop – é uma manifestação cultural anterior ao surgimento dos primeiros

escritos literários marginais.

Se formarmos uma leitura atenta dos diversos produtos discursivos publicados

sob o título de Literatura Marginal, ou Literatura Periférica, perceberemos um

expressivo número de autores9 que participam diretamente da cultura Hip-Hop, seja

9 No primeiro suplemento Literatura Marginal – A cultura da periferia, publicado pela Revista Caros Amigos, em agosto de 2001, dos 10 autores reunidos na publicação, ao menos 6 possuem uma relação direta com o movimento Hip-Hop, sendo eles Alessandro Buzo, autor residente no Itaim Paulista que promove eventos e festas com jovens rappers, como o Favela toma conta e o Suburbano no centro; ATrês, MC do grupo Outraversão; Sérgio Vaz, poeta fundador da Cooperifa e criador do Sarau Rap; Jocenir, autor do livro Diário de um detento, publicação que leva o mesmo nome do RAP musicado

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como rappers ou ativistas do movimento, oferecendo, assim, ao movimento literário

uma feição própria. O texto literário, em consonância ao tratamento político oferecido

ao RAP, se torna para estes autores formados pela cultura Hip-Hop um instrumento

pedagógico de formação de uma consciência própria do leitor. Seja através de uma

estrutura maniqueísta rígida ou com um discurso claramente ancorado na poética

formadora do RAP, os autores marginais utilizam a literatura como um veículo de

intervenção social através do texto. Seja na poesia ou na prosa, o texto literário é o

invólucro de um discurso político determinado em construir uma reflexão que

fornecerá os elementos necessários ao leitor para a observação crítica de uma

realidade específica.

Além da utilização do aparato crítico formado pelo RAP em textos literários, é

igualmente possível identificar na postura dos autores marginais a influência do

discurso de contestação do movimento Hip-Hop. Estes, em semelhança aos rappers,

apresentam-se como detentores de um saber sobre a realidade da periferia urbana.

Alçados à missão de portar as vozes de uma massa silenciosa que habita espaços

marginalizados, estes autores são agora realizadores de uma complexa trama que

envolve produção literária, ativismo social e formas distintas de associativismo.

No caso específico da produção literária, é possível destacarmos diferentes

autores que utilizam a linguagem escrita para a formação de um texto literário que se

aproxima da estrutura rítmica de uma letra de RAP. Exemplo deste uso da linguagem

literária pode ser visto no texto de Gato Preto, publicado no suplemento Literatura

Marginal e posteriormente reunido na coletânea organizada por Ferréz. Em “A Bahia

que Gil e Caetano não cantaram”, Gato Preto estrutura um texto poético pautado por

um antagonismo de classe que almeja denunciar as condições de vulnerabilidade e

miséria vivenciada por um extensa parcela da população da Bahia. O tom agonístico

se faz presente não apenas em uma operação centrada na oposição de classes, mas,

igualmente, na relação que o autor mantém com outros elementos da cultura da

região.

Iludidos,vê só quem chegou

por Racionais MC’s, do qual Jocenir é co-autor em parceria com Mano Brown; Cascão, MC do grupo Trilha Sonora do Gueto e, por fim, Ferréz, que também já gravou um cd de RAP,, o álbum “Determinação”.

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Pode me chamar de Gato Preto, o invasor. Vou mostrar a Bahia que Gil e Caetano nunca cantaram Bahia regada a sangue real Que jorra com intensidade com intensidade em época de Carnaval Falo do pescador que saí às três da manha Pedindo força a Iemanjá e Iansã Sai cortando as águas do mar da vida Querendo pescar uma solução, uma saída A Bahia da guerreira baiana que chora Que travou uma luta e perdeu na batalha seu filho pra droga Bahia do ser que vive de migalhas, esmolas E água sem cloro no seu rosto jorra.(Preto, 2005, p. 51)

Além da estrutura rítmica do texto poético, podemos também destacar como

elemento que evidencia a presença da cultura Hip-Hop no fazer literário do autor a

sua opção por lançar um olhar específico sobre as situações de marginalidade e

vulnerabilidade vivenciadas por homens e mulheres. Tal qual uma letra de RAP, o

texto literário de Gato Preto busca denunciar a desigualdade social, colocando em

relevo episódios protagonizados pelo sujeitos residentes na periferia urbana. A opção

do autor, como evidencia o título, é narrar os aspectos e histórias que não fazem parte

de uma imagem corriqueira da Bahia. Acompanhando os versos não nos deparamos

com a descrição da alegria tão festejada do carnaval baiano, o olhar ofertado pelo

autor é outro. É neste novo olhar, descortinando uma visão já estabelecida, que será

cantada uma Bahia que, na percepção de Gato Preto, não se faz presente na leitura de

Gilberto Gil e Caetano Veloso sobre a Bahia. O texto emerge como uma resposta,

uma fala que rasura uma série de discursos que incidem na oferta de uma imagem

idílica da Bahia.

Bahia da queda dos morros, barraca dos Alagados Bahia do descaso, descamisados, desabrigados Falo da venda do voto, do voto comprado ACM domina com chicote na mão e dinheiro do lado A noite foi fria, só que agora o sol está quente O que não esquenta é o coração dessa gente Quem não se revolta contra a ordem predatória ACM domina com chumbo, moeda e palmatória (...) Não falo da beleza, da Barra, Pituba, Pelô De praias lindas, de Porto Seguro, Ilhéus, Salvador

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Da praça Castro Alves, Mercado Modelo, Elevador Da história de Mãe Menininha, Mãe Dulce e Dona Cano Não falo da moça bela nas ondas do mar que Caymmi narrou Relato o sofrimento da escravidão, do negro nagô Da política perversa que o meu povo escravizou Lembro da lavadeira, do lavrador Do Velho Chico e do pescador Falo da prostituição infantil que aumentou Da Bahia que o cartão-postal nunca mostrou A Bahia do mercado informal, do camelô Essa é a Bahia que Bethânia nunca cantou

Vem conhecer a Bahia, sou um guia diferente Mostro a verdadeira cara da nossa gente Vai ver que não é só Carnaval, praia e acarajé Vai ver o que é não ter alimento e manter-se de pé Bahia de Todos os Santos? Besteira Olho meu povo se alimentando de restos de feira (Idem, ibidem)

O próprio autor afirma que não fala da beleza, não cita os personagens e

lugares que habitam um consciente coletivo que foi formado por diferentes discursos

culturais. De Caetano Veloso à Maria Bethânia, passando por Dorival Caymmi e

Gilberto Gil, todos auxiliaram na construção dessa Bahia. Agora, parece clamar Gato

Preto, é necessário um novo olhar, mostrar uma outra Bahia. Sintomático desse

exercício de representação que elege uma nova percepção sobre o mesmo espaço são

os versos que antecedem o final do texto:

Turista, pega a câmera, vamos passar no farol Mas não no Farol da Barra, do trânsito Preparem-se, a visão é triste, causa espanto Olhos famintos, pés descalços, pretos e brancos Numa frase infeliz ouvi dizer que a Bahia é de todos os santos.(Idem, p. 56)

Tal postura crítica, fundada na denúncia social e na descrição da miséria

vivenciada nas favelas e bairros populares, é uma marca incontestável do RAP e do

discurso de contestação da cultura Hip-Hop. Gato Preto lança mão destas

características para estruturar um texto poético que objetiva apontar a desigualdade e

o racismo na Bahia. O objetivo do autor, isto é claro, é não apenas denunciar estes

aspectos, mas, igualmente, criticar a imagem de idílio que se faz presente em

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diferentes discursos. Surge no texto de Gato Preto uma outra versão, acionando

personagens, situações e espaços que outrora foram esquecidos ou silenciados.

O movimento operado aponta para a criação de uma cosmogonia própria,

elegendo não apenas uma outra perspectiva de narrar, mas, também uma série de

signos que surgem como oposição. Em “Faveláfrica”, uma poesia longa publicada

inicialmente no suplemento Literatura Marginal Ato - III e depois reunida na

coletânea com o mesmo título, Gato Preto incide neste exercício de confronto entre

elementos antagônicos ao elencar os “antídotos” para diferentes “venenos”. O jogo

formado pelo autor tem uma estrutura binária que nomeia os sujeitos negros enquanto

antídotos e surge como encerramento de um texto que apresenta os aspectos

negativos da escravidão brasileira. Resulta deste olhar maniqueísta a oferta aos

bairros periféricos a função de preservar os elementos culturais de uma ancestralidade

negra e as formas de resistência desta população negra residente nestes locais.

Veneno X Antídoto Hitler X Martim Luther King Mussolini X Mahatma Gandhi Pinochet X Malcom X W. Bush X Marcus Garvey (Preto, 2005, p. 62)

Devota-se aos sujeitos históricos que atuaram em defesa de grupos

minoritários, sobretudo aqueles empenhados na causa negra, um sentido de oposição.

Dessa forma, na estrutura lógica oferecida, contra o “veneno” sempre existirá um

“antídoto”. Encerrando a listagem, reforçando o lugar de enunciação do sujeito

autoral e o seu papel político enquanto autor, Gato Preto coloca-se como antídoto a

Antônio Carlos Magalhães. A leitura de Ângela Dias, no artigo “A estratégia da

revolta: literatura marginal e construção da identidade”, acerca do texto de Gato

Preto, reforça minha análise:

O texto acaba em prosa, na medida em que vai ficando cada vez mais tomado pela argumentação da tese que desenvolve, e conclui com uma enumeração em que o autor contrapõe uma série de nomes históricos opostos por um “X”. A lista é bastante heterogênea, pejada de anacronismos, mas explicita o maniqueísmo que o autor pretende sublinhar; tanto que é começada pela dupla “veneno x antídoto” e termina, localmente, com o contraste “Antônio Carlos Magalhães X Altino Gato Preto”. Mais que a obviedade do arranjo, meio desajeitado, importa considerar, da perspectiva em questão, que embora mantenha um

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tom agressivo, o autor tempera a promessa do revide com a constatação da “Falta de orgulho, auto-estima baixa, preconceito” atuais. (Dias, 2006, p. 16)

As aproximações entre RAP e texto literário, nos caso específico dos autores

da Literatura Marginal, resultam de uma compreensão da estrutura poética das letras

fundamentada na interpretação do próprio significado da sigla RAP: “Rhythm And

Poetry”. É com esta leitura que Sergio Vaz, poeta fundador da Cooperifa, organiza,

em parceria com a Organização Não Governamental Ação Educativa, o projeto

Poesia das Ruas. De acordo com Sergio Vaz, conforme definido em seu blog,

www.colecionadordepedras.blogspot.com:

O Projeto Poesia das Ruas é um sarau dirigido a rimadores e rimadoras do Rap. É um espaço para o exercício da criação poética. Sem música, MCs declamarão suas letras, compartilhando talento literário. O objetivo, nesse sentido, é buscar,através da oralidade, um incentivo para a criação poética. Rap é ritmo e poesia (rythman and poetry)10 ”

No entanto, mesmo sem o suporte musical, veiculada apenas no terreno da

escrita, a poesia destes autores é definida como letras de RAP. Soninha M.A Z.O,

apresenta em Duas gerações sobrevivendo no gueto, publicação que divide a autoria

com Raquel Almeida, diversos textos poéticos que são definidos como RAP:

“Saudade de um tempo bom”, “Um jovem da periferia”, “Direito a defesa” e “Bico

sujo”. Como elemento de união destes textos é possível destacar a estrutura rítmica

dos versos e seu conteúdo político, seja pela denúncia ou pelo tom pedagógico que

almeja conscientizar os leitores. A apresentação do texto enquanto RAP, uma espécie

de advertência ao leitor, pressupõe um novo tipo de tratamento do texto literário no

ato da escrita e, igualmente, no ato de leitura. Na recepção do texto poético o leitor

estrutura uma forma de leitura que irá privilegiar a entonação musical que é própria

do RAP. Dessa forma, será o cantar falado que passará a pautar a leitura. Além da

forma, os textos de Soninha M.A Z.O também apresentam como eixo temático os

elementos preferenciais de diferentes rappers, como podemos observar em “Um

jovem da periferia”:

10 Acessado em 18 de julho de 2009 em http://colecionadordepedras.blogspot.com/2009/03/sarau-rap.html.

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Noite paulistana, lua prateada no céu Cenário dos amantes, mas não na torre de Babel Aqui embaixo, o cenário é diferente de se vê Não é o Morumbi com suas mansões E seus carros importados A visão aqui é outra, é esgoto a céu aberto Passando por debaixo dos barracos Na burguesia, os playboys pelos homens são guardados E na periferia pelos homens enquadrados No passado errei E achei que pelos meus erros eu paguei Mas não foi bem assim A lei não se esqueceu de mim Me deixe ser livre Na cadeia ninguém vive Quero cuidar da minha família Eu já paguei o que devia Me deixe ser livre Na cadeia ninguém vive Quero cuidar de minha família Dentro da lei eu já paguei o que devia (Soninha MAZO, 2008,p. 26)

A autora, em consonância com outros grupos de RAP, inicia seu texto poético

a partir da descrição de um cenário que revela uma cisão social, representada pelas

mansões do Morumbi e os barracos com esgoto a céu aberto. O tema central do texto

é a apresentação da trajetória de um jovem da periferia e a sua passagem pela cadeia.

Pontuado por um tom pedagógico e pela denúncia, o discurso busca descrever o

cotidiano da cadeia e a reação do personagem ao saber que deverá retornar ao

presídio para o cumprimento do restante da pena:

Lembro bem, minha mãe e a família desesperada E eu atrás das grades não podia fazer nada Mas eu fiz um juramento, vou mudar e melhorar Não fico nunca mais atrás das grades a chorar Hoje tô fortão, tô firmão, mudei minha vida Me casei e sou pai de um lindo garotão Orgulhoso de mim mesmo Eu digo: O pesadelo acabou! Nem desconfiava que ele apenas começou Desde aquela cena passaram-se seis anos E hoje uma carta na minha casa chegou O carimbo do judiciário me informava

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Que a promotoria apelou Alegando que eu não paguei o que devia a sociedade E por incompetência do sistema Estou prestes a perder minha liberdade (Idem, p. 27)

Se Gato Preto e Soninha MAZO utilizam a escrita como suporte de um

discurso claramente amparado em uma estrutura rítmica musical, no qual o RAP

surge como referência para a construção de uma poética própria, é possível

observarmos também exemplos de textos publicados por autores/rappers que

primeiramente foram musicados e vice-versa. Os textos de Eduardo, rapper do grupo

Facção Central, publicados na coletânea Literatura marginal: talentos da escrita

periférica, foram antes musicados por seu grupo de RAP. Dessa forma, “Aqui ela não

pode voar”, “No fim não existem rosas”, “O que os olhos vêem” e “O homem

estragou tudo”, os quatro textos publicados são letras de RAPs reunidos no álbum

duplo “Direto do campo do extermínio”, do grupo Facção Central, lançado em 2003.

Em “No fim não existem rosas”, Eduardo Dum-Dum constrói um texto poético que

tematiza com fortes cores de denúncia social as condições de pobreza e abandono que

muitos idosos vivenciam. Estruturado a partir de um claro antagonismo de classe, o

texto de Eduardo lança luzes sobre a trajetória de um homem nordestino abandonado

pela família na velhice.

Outro dia um tiozinho, com a lata de cimento, decepcionado com a vida dividia seus lamentos. Envés de tá na cadeira de balanço com charuto, tá com um carrinho de pedreiro cheio de entulho. Foi o chamado pião que o patrão escraviza, sem férias, registro, aposentadoria. Outro tênis que usaram até gastar a sola, igual papel higiênico usado jogaram fora. (Eduardo, 2005, p.26)

Neste caso, é importante comparar versões e suportes, destacando as

particularidades de cada tipo de enunciação. Assim, na versão musicada de “No fim

não existem rosas”, a poética do RAP é entoada sem fúria e com pausas, apresentando

um ritmo não acelerado, contrastando com a maioria das músicas RAP. O eixo

temático da letra, centrada na apresentação de uma velhice pautada pelo abandono,

incide de forma clara na construção musical, na qual a estrutura vocal utilizada pelo

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rapper e as batidas eletrônicas em um compasso pouco usual devido sua lentidão

refletem uma possível melancolia. O registro musical reforça e amplia o aspecto que

é denunciado na letra do RAP. O versos são cantados/falados com exatidão pelo

rapper, oferecendo maior destaque para a precisão das palavras e, sobretudo, nos

adjetivos utilizados para descrever a situação do personagem.

Movimento oposto é realizado com a poesia “Aqui ela não pode voar”, na

qual a versão musical, devido a inserção de uma série de elementos inspirados no

gospel americano, apaga a força que a poesia possui em sua versão escrita.

No céu que a pólvora encobre as estrelas, ela não pode voar, no chão minado com trincheiras e soldados, ela não pode voar. Sua assas estão manchadas de vermelho, tem hematomas das correntes no cativeiro, no olhar um rio de lágrima, com um navio de desespero. Na sua estrada estilhaço de granada, corpos entre quatro velas, bala perdida da polícia e outra criança morta na favela. No campo de extermínio, ela não vai fazer seu ninho, porque suas pernas estão enterradas em um cemitério clandestino. (Idem, Ibidem)

Todo o texto poético se baseia na apresentação dos elementos que impedem a

presença da paz, representada por uma pomba branca, nos bairros periféricos dos

grandes centros urbanos. A metáfora é subentendida, pois em nenhum momento o

símbolo da paz é nomeado. Mas, mesmo assim, é um clichê. Contudo, mesmo

lançando mão de um símbolo recorrente, o texto mapeia com precisão alguns dos

principais entraves sociais que fomentam as muitas manifestações que a violência

pode assumir nestes bairros. Há nestas descrições uma denúncia que se constrói a

partir da justaposição de termos, adjetivos e signos que aludem a um conflito armado.

O céu encoberto por pólvoras, rio de lágrimas, corpos entre quatro velas, cemitério

clandestino e campo de extermínio, este último também é o título do álbum, são

apenas alguns dos termos utilizados para explicitar por que a paz não se faz presente

neste espaço. No entanto, na versão musicada do texto, lançada inclusive antes de

publicação na coletânea já referida, perde-se a potência dos termos empregados

devido o tratamento musical oferecido. Cantado em capela, sem a utilização de

qualquer instrumento musical, os versos são abrandados e suavizados, acompanhando

o próprio ritmo empregado na vocalização. Recheada de longos exercícios vocais que

aludem o gospel americano, com o emprego descontínuo entre tons graves e agudos,

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120

a versão musicada do texto apaga lentamente a potência da denúncia que o texto

oferece; pois não é criada uma base rítmica que reforce o teor da poesia.

No mesmo álbum o tema da paz é retomado, na primeira faixa do Disco 2, a

partir da leitura da poesia “A paz é uma pomba branca”, cujo autor é Ferréz – que

participa da faixa lendo seu texto. A faixa inicia com um fundo musical formado por

um piano, seguida da fala de Eduardo: “Aí, Ferréz, a pergunta é uma só, mano. Por

que a tríade: paz, periferia e guerra?”. Ferréz responde: “As respostas que eu tenho, e

que a maioria tem, geralmente são ilusões. Mas eu vou tentar falar de paz, periferia e

até de guerra.” Eduardo comenta: “Firmão, trura, é com você. O campo de

concentração tá te ouvindo.”. E, a partir deste ponto, domina a faixa a leitura que

Ferréz realiza de seu texto:

A paz é uma pomba branca. Se uma criança pobre soprar, suas asas não se mexem. Se um detento a segurar, sentirá seu peso como se fosse chumbo. Se uma senhora aposentada a acolher em seus braços não sentirá o calor. Se um desempregado olhar bem em seus olhos nela não verá alegria. Se um professor a estudar, aos seus alunos não poderá ensinar. Se um menino ou menina desse grande Brasil periferia a olhar voando, não saberá o que ela significa. A paz é uma pomba branca. Que apesar de tudo ainda continua voando. E todos a vêem, Mas só quem merece realmente a conhece. Paz só a quem merece. E aos que não, Guerra. (Ferréz e Eduardo, “A paz é uma pomba branca”)

Ao contrário dos outros exemplos recolhidos, o texto de Ferréz, mesmo

presente em um álbum de RAP, não é formado a partir dos recursos rítmicos que o

estilo possui. O autor parte de uma descrição em prosa para apresentar uma percepção

própria sobre a paz através do exame metafórico de seu maior símbolo, a pomba

branca. O texto é irregular e não apresenta um eixo lógico. No início da poesia são

enumeradas as diversas impossibilidades de contato direto com a paz e no desfecho

do texto é sentenciado que poucos de fato conhecem a paz. Conhecer a paz é uma

possibilidade restrita a poucos, “paz só a quem merece. E aos que não, Guerra”. Se

aceitarmos a leitura dada pelo autor, em que só “quem merece realmente a conhece”,

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121

a paz é algo que as crianças da periferia não são merecedoras. Pois, como o próprio

texto descreve, “Se um menino ou menina desse grande Brasil periferia a olhar

voando, não saberá o que ela significa.”. Excetuando esse possível equívoco, a

inserção desta poesia no álbum reforça a relação que o RAP mantém com a Literatura

Marginal.

Outros exemplos podem ser acionados. O RAP “Brasil com P”, do rapper

Gog, é um deles. Lançado primeiramente no álbum CPI da Favela, de 2000, e depois

publicado no suplemento literário Literatura Marginal da revista Caros Amigos, o

texto de Gog é um lúcido exercício de experimentação literária baseado na aliteração.

Pesquisa publicada prova Preferencialmente preto Pobre prostituta pra polícia prender Pare pense por quê? Prossigo Pelas periferias praticam perversidades Pm's Pelos palanques políticos prometem prometem Pura palhaçada Proveito próprio Praias programas piscinas palmas Pra periferia Pânico pólvora pa pa pa Primeira página Preço pago Pescoço peitos pulmões perfurados Parece pouco Pedro Paulo Profissão pedreiro Passatempo predileto Pandeiro Preso portando pó passou pelos piores pesadelos Presídio porões problemas pessoais Psicológicos perdeu parceiros passado presente Pais parentes principais pertences Pc Político privilegiado preso parecia piada Pagou propina pro plantão policial Passou pelo porta principal Posso parecer psicopata Pivô pra perseguição Prevejo populares portando pistolas Pronunciando palavrões Promotores públicos pedindo prisões Pecado pena prisão perpétua

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122

Palavras pronunciadas Pelo poeta irmão..(Gog, 2004, p. 13)

“Brasil com P” é um fecundo exemplo da força poética do RAP. Mesmo

utilizando como suporte a música, formato primeiro em que o texto foi veiculado,

predominava na construção rítmica oferecida as palavras pronunciadas pelo poeta,

para citar o próprio autor. Seja na primeira versão do RAP, lançado em 2001, ou na

regravação, com a participação da cantora Maria Rita, lançada em 2009, a batida

eletrônica característica e as melodias criadas pelos instrumentos musicais ficam

subordinados ao poder vocal do rapper que entoa com precisão e violência os versos.

A potência poética de Gog possibilita a formação de uma esclarecedora representação

do Brasil a partir da aliteração em consonância. Polícia, Pólvora, Periferia., Pobre,

Preto, Prostituta, Propina: os termos se completam e formam uma espécie de mosaico

da sociedade. A estrutura formada pelo rapper também se baseia no exame de

elementos antagônicos, em semelhança a muitas letras de RAP. Em poucos versos e

utilizando apenas substantivos e adjetivos começados pela letra P, Gog mescla uma

contundente denúncia social das diferenças e desigualdades entre periferia e centro.

Outro exemplo deste diálogo entre suportes, eliminando as fronteiras entre

escrita e música, pode ser destacado no texto “Judas”, de Ferréz, lançado primeiro

em sua versão literária no suplemento da Revista Caros Amigos e posteriormente

musicado no álbum “Determinação”, do próprio autor, em 2005. Aqui o movimento

operado é oposto. Antes da veiculação em seu formato musical, o RAP foi publicado

enquanto texto.

A relação que o RAP mantém com a Literatura Marginal pode ser explicada,

em parte, pela própria atuação que Ferréz exerceu na construção do movimento,

sendo um dos principais articulares do movimento de autores oriundos da periferia de

São Paulo e responsável pela publicação de diferentes autores, primeiro em uma

revista literária de grande circulação e depois em livro. A proximidade do autor com

o RAP, e a cultura Hip-Hop, vai além da gravação de um álbum solo de RAP e pode

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123

ser percebida na própria apresentação visual de seu primeiro romance, Capão pecado.

Seja pela inserção de diferentes relatos assinados por rappers e ativistas do

movimento Hip-Hop na abertura dos capítulos ou na apresentação de dois cadernos

de fotografias que retratam o bairro que é cenário da narrativa e o autor posando com

o cenho franzido e com um gestual agressivo, fica clara a presença de elementos do

RAP e da cultura Hip-Hop na estrutura do romance. A leitura realizada por Luciana

Mendes Velloso sobre estes aspectos, no estudo Capão Pecado: sem inspiração para

cartão postal, apresenta importantes reflexões sobre este tópico:

Os textos dos outros autores parecem relatos, recados ou o que, para esta pesquisa, preferimos chamar de registro de depoimentos. Assinam a autoria: Gaspar, Mano Brown, Cascão, Outraversão, Negredo e Conceito Moral, que, em sua maioria, são integrantes de grupos de Rap, amigos de Ferréz, ativistas do movimento 1 DaSuL, todos da periferia. Na primeira leitura, indagamos sobre o que seriam esses textos que atravessam as partes constituintes do romance Capão Pecado em seus intervalos ou no entre capítulos. Já as 37 fotografias, distribuídas pelo livro em dois grandes grupos, apresentam ao leitor a região de Capão Redondo, seu espaço geográfico real, onde o enredo é circunscrito, suas mazelas, seus moradores e placas indicativas, além do escritor Ferréz e integrantes do movimento 1DaSul. As fotografias parecem não só relatar a região de Capão Redondo, como também indagar sobre sua realidade, sua condição e o anonimato próprio das regiões menos favorecidas. Ao mesmo tempo, questionam sobre seu lugar no objeto literário Capão Pecado.(Velloso, 2007, p. 14)

A postura do autor se confunde com a de um rapper, as mãos que mimetizam

uma arma, o rosto parcialmente coberto pelo capuz de um agasalho esportivo, os

movimentos largos que buscam preencher espaços e a expressão típica de um

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124

sujeito/personagem ligado aos espaços marginalizados: “Me tomaram tudo, menos a

rua”. A imagem, uma das muitas que preenchem a primeira edição do romance – na

nova edição, lançada pela Editora Objetiva, as fotografias foram suprimidas – não

deixa dúvidas quanto a relação que o autor mantém com a cultura Hip-Hop. No

entanto, é possível identificar não apenas os elementos exteriores na construção deste

romance, mas, igualmente, a formação de um texto que se quer coletivo. Os

depoimentos de diferentes rappers, quase sempre abrindo os capítulos, podem ser

tomados como uma espécie de vinheta de abertura alocada em um intervalo. Mesmo

que o suporte seja a escrita e o romance seja o gênero eleito para dar corpo ao relato

que construiu, Ferréz estabelece um diálogo ao longo do livro com rappers e ativistas

do movimento Hip-Hop, com destaque para a participação de Mano Brown, líder do

grupo Racionais MC’s.

Soma-se a isto a utilização do campo literário como espaço de contestação,

denúncia e formação de uma pedagogia própria, tal qual o RAP realiza com a música.

Dessa forma, é possível afirmar que as aproximações entre estes dois movimentos

não se limita apenas na utilização do texto literário para a veiculação de um texto

formado a partir dos elementos característico da poesia RAP, mas, sim, o próprio

texto surge como veículo de divulgação de uma doutrina específica.

Notícias jugulares, de Dugueto Shabazz, pseudônimo de Sharif Abdull Al

Hakim, nome adotado por Ridson após sua conversão ao islamismo, em 2005, pode

ser tomado como uma dos melhores exemplos deste tipo de escrita que utiliza como

válvula motriz a potência poética do RAP. O autor participou do terceiro volume do

suplemento Literatura Marginal, publicado pela Caros Amigos, com o poema “Plano

senzala”, posteriormente reunido na coletânea Literatura marginal, junto com os

textos “Epidemia” e “Fósforo”. Nos três textos encontramos um vigor poético

empenhado na formação de um exame das condições sociais da população negra e

periférica. Os três longos poemas utilizam assonâncias e aliterações, em versos

combinados por rimas, algumas regulares e outras não. Mas, o que mais chama

atenção na leitura destes três poemas é a busca por uma interpretação da sociedade a

partir de uma memória histórica da opressão negra. Dessa forma, conforme observou

Ângela Maria Dias, o autor relaciona a vivência da espoliação periférica em uma

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125

abordagem “prioritariamente étnica da interpretação da violência”(Dias, op. cit., p.

15). Em “Plano senzala”, publicado antes de sua conversão ao islamismo e, devido a

isto, leva a assinatura de Ridson, o autor cria uma espécie de marco conceitual para

representar os espaços subalternizados da sociedade: o plano senzala. Os versos que

abrem a poesia apresentam uma leitura peculiar acerca da sociedade, na qual a

divisão territorial do sistema carcerário é acionado como modo de interpretação desta:

“Barraco é cela, cadeia é favela / viela é corredor, quarteirão é pavilhão e vice-versa /

Que história é essa? Interminável era / Mais de cinco séculos de plano Senzala se

completam”(Ridson, 2005, p. 72).

Em “Notícias jugulares”, Ridson, agora com o pseudônimo de Dugueto

Shabazz, reúne uma série de contos, crônicas e poesias que possuem como elemento

comum a denúncia social e a temática negra. Abre a publicação o interessante

“Manifesto jugular”, no qual é explicitada a relação que o autor mantém com a

cultura hip-hop. O manifesto apresenta a publicação como

o fio da percepção autodidata lendo as entrelinhas subliminares dos becos, dos loucos, das fitas, dos putos, tiros, drogas, olhos, gritos, costurando uma colcha de retalhos de fatos fudidos, seja para desbaratinar o frio indiferente de São Paulo para quem dorme na calçada ou para cobrir quem morre na calçada.”(Shabazz, 2006, p. 13)

O texto, nesse sentido, é apresentado como resultante de um olhar voltado

para os espaços marginalizados recolhendo os fatos e organizando-os. É um olhar

próprio, autodidata, como o próprio Dugueto afirma no manifesto. Mas, não é uma

experiência literária que se aproxima de uma ordem estética dominante, cria-se uma

outra forma para dar luz a este projeto. Pois, como é explicitado no texto, “não

falamos português, não. Nosso latim é afrofavelizado.”(Idem). Não é apenas o

empenho em afirmar-se enquanto negro, mas, principalmente, apresentar-se como

negro e favelado. O discurso passa a apontar para este movimento de autoafirmação,

valorizando seu próprio espaço (favela) e seu grupo étnico (negro). Deseja-se que

com isto formar uma nova identidade para um setor representativo da sociedade,

almeja-se que os leitores possam igualmente compartilhar deste novo movimento:

Agora, ei você! Que saliva nitroglicerina e aspira pólvora em carreirinhas poluindo suas balas de raiva, sangue do meu sangue, sangue bom. Vamos! Se esperarmos, vacilamos. FECHADOS E FORMADOS, reforçando as fileiras que vão daí da tua quebrada e passam por Afeganistão, Iraque,

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126

Cuba e Venezuela. É loco. Periferia é periferia em qualquer lugar e tem gente sofrendo opressão, racismo, favelização do espírito e flagelo do mundo todo. Antigamente quilombos, hoje periferia. Somos a INTERNACIONAL PALMARINA e Notícias Jugulares é uma carta de convocação. Somos todos um vem com a gente soldado, abandona essa fita que não traz retorno positivo pra favela e vem. Você é nosso melhor reserva, mas precisamos de você firmão e fortão, entendeu?!! (Idem, p. 15)

No manifesto o livro é descrito como uma convocação, enquanto que o

próprio manifesto realiza este ato: “Agora, ei você!(...) precisamos de você firmão e

fortão, entendeu?!!.”. O leitor é convocado para, primeiro, abandonar “a fita que não

traz retorno positivo pra favela” – leia-se, o crime e as drogas – e, igualmente, temos

a convocação ao leitor para a composição de um grupo que resgatará a luta ancestral

de Zumbi dos Palmares – a Internacional Palmarina – na defesa pela periferia. Pois,

antigamente quilombo, hoje periferia, como o próprio texto afirma. A proposta é

semelhante à doutrina formada pelo Hip-Hop e propagada pelo RAP, descrita como a

versão escrita desta:

Aqui é a versão escrita dessa gambiarra que nós chamamos de música, que faz coro a bandidos, incita a tensão racial e põe o submundo em evidência. Dessas páginas voam tiros e rasgam scratches. As questões periféricas agora são centrais, jugulares. E serão viscerais. (Idem, Ibidem)

A Literatura, na acepção oferecida por Dugueto, surge como suporte de um

discurso específico, semelhante ao uso que muitos jovens fazem da música RAP. Seja

na música ou na literatura, autores como Dugueto, Soninha M.AZO, Eduardo, Gato

Preto, Ferréz, entre outros, mas o mesmo teor político domina o discurso. Surge como

força primeira o desejo de apresentar uma perspectiva própria para o cenário que

envolve o autor, é necessário denunciar o estado das coisas, esclarecer os próprios

pares, alertar os leitores/ouvintes sobre os mecanismos perversos da máquina de

destruição que suga cada vez os jovens pelas suas engrenagens. Não é uma escrita

sem compromisso. É uma literatura engajada, preenchida por histórias recolhidas de

uma realidade próxima e por palavras de ordem. Aos três elementos que formam a

cultura Hip-Hop, estes autores adicionaram a Literatura.

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127

5.

Uma leitura de três casos e uma possibilidade

Nos capítulos anteriores estabeleci um olhar sobre a Literatura Marginal no

desejo de colocar em destaque os possíveis elementos de união destas vozes

periféricas que se apresentam na cena literária brasileira a partir de uma escrita

pautada no agenciamento político e na denúncia de uma realidade social marcada pela

vulnerabilidade. Dessa forma, além de propor um referencial teórico que possibilite

estruturar uma análise que abarque a especificidade deste tipo de discurso, também

experimentei focar as semelhanças entre esta escrita e o movimento Hip-Hop. No

entanto, meu olhar se fixou apenas no acompanhamento e leitura das obras em seu

sentido coletivo, objetivando estabelecer os contornos mais nítidos deste movimento

de autores de periferia.

Neste capítulo proponho um exame em um percurso oposto a partir da leitura

da obra de três autores específicos: Ferréz, Allan Santos da Rosa e Sérgio Vaz. Ou

seja, irei travar um contato com casos singulares no desejo de identificar as possíveis

marcas de uma escrita e movimento que se quer plural. Por este viés será possível

localizar os principais recursos estéticos e, principalmente, as propostas de

intervenção social e política que cada autor propõe. Os três autores, cada qual a seu

modo, além de produzirem uma literatura que apresenta os possíveis índices de

análise dos elementos constituintes da Literatura Marginal, também criaram formas

de associativismo cultural que incidem na formação de um discurso minoritário e

aglutinador de vozes dissonantes. Os três casos elencados aqui congregam as duas

dimensões que o movimento procurar produzir, uma literatura engajada e o

engajamento através de intervenções sociais que utilizam a literatura como veículo.

Além desta leitura, que será baseada no exercício de localização das

semelhanças e diferenças, também faço uma análise da obra de Marcelino Freire,

Page 128: 92384545 Escritos a Margem

128

escritor pernambucano que não é “essencialmente” marginal, mas que produziu

importantes representações sobre estes setores na contemporaneidade. Ao acionar um

autor que figura em um espaço fronteiriço - é aclamado pela Literatura Marginal,

mas não é um deles - desejo apresentar a obra de Marcelino Freire como uma

possibilidade de representação da periferia que se torna rentável mesmo sem a

necessidade da produção de um discurso pedagógico e formador do leitor.

3.1

Ferréz

Reginaldo Ferreira da Silva, morador do Capão Redondo, Zona Sul de São

Paulo, saiu de cena em meados do ano 2000, no seu lugar tomou forma Ferréz,

escritor engajado e principal articulador do movimento literário que reúne escritores

residentes na periferia dos grandes centros urbanos. Com o pseudônimo, Reginaldo

forja uma espécie de simbiose de dois líderes populares do passado: Virgulino

Ferreira e Zumbi dos Palmares. Desta união resulta o escritor do cenho franzido e

cara de poucos amigos.

Narrada dessa forma, a apresentação do autor se assemelha a de um

personagem retirado das histórias em quadrinhos, um herói que cumpre um destino já

traçado. Isto é proposital. O autor é um leitor empenhado destas publicações e dono

de uma coleção invejável de títulos. Além desta formação, ao estabelecermos uma

leitura atenta da obra de Ferréz, é possível identificarmos a presença de outros

elementos da cultura pop, sobretudo do cinema americano, em sua escrita. No

entanto, o que mais chama atenção em sua produção é o diálogo que este mantém

com a cultura Hip-Hop, principalmente o RAP. Não obstante, em seu primeiro

romance, Capão pecado, publicado em 2000, é possível localizar uma série de

elementos desta cultura, como as diferentes citações de grupos de RAP; a participação

de ativistas e músicos através de depoimentos que interligam capítulos e partes do

romance – com destaque para o músico Mano Brown, líder do grupo Racionais MC’s

– além dos encartes com fotografias que registram o autor com uma postura típica de

um rapper.

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129

A influência da cultura Hip-Hop não repousa apenas no gestual ou nas

diferentes citações a grupos e músicos de RAP, esta vai além e determina também a

estratégia de atuação política do autor. O maior exemplo disto é a formação do 1 da

Sul, movimento popular criado pelo autor que reúne ações comunitárias e a

comercialização de produtos voltados para a população residente nos bairros

populares. O projeto foi concebido enquanto um movimento social que objetivava

fortalecer os elos comunitários da região do Capão Redondo. O nome 1 da Sul,

conforme o próprio autor apresenta em seu blog, “vem da ideia de todos sermos 1, na

mesma luta, no mesmo ideal, por isso somos todos 1 pela dignidade da Zona Sul.”11.

No início, conforme examina Erica Peçanha, “o movimento, que existiu de maneira

organizada até o primeiro semestre de 2005, pretendia atuar como uma posse de Hip-

Hop, desenvolvendo atividades culturais e sociais (como shows beneficentes e

doações de alimentos para famílias das favelas da região), e projetos de criação de

bibliotecas comunitárias.” (Peçanha, 2009, 76). O termo posse é pertencente à cultura

Hip-Hop e designa a consolidação de um determinado território enquanto palco

primeiro das ações e projetos de um grupo de adeptos desta cultura. Apoderar-se de

uma área, ser literalmente dono de uma região, transformando-a em uma posse do

movimento, este é o principal objetivo deste tipo de ação. Além deste objetivo, em

1999, o 1 da Sul passou a atuar como uma espécie de marca, ou melhor, “o nome da

grife e da loja que Ferréz criou no centro do Capão Redondo e que comercializa

chaveiros, canecas, adesivos e roupas no estilo Hip-Hop (moletons e camisetas com

estampas de grafite, trechos de letras de rap ou de livros).”(Idem, Idem) Também

vamos localizar a presença desta marca nos três suplementos Literatura Marginal, da

Revista Caros Amigos, indicando que a publicação é igualmente uma ação do

movimento. Seja enquanto movimento social ou grife destinada aos moradores da

localidade, o 1 da Sul reúne diferentes elementos e características que podem ser

concebidos enquanto influência da cultura Hip-Hop. Os diferentes itens

comercializados, principalmente as peças de vestuário, são claramente

confeccionados ao gosto dos adeptos do Hip-Hop, como as toucas de lã, os casacos

volumosos com capuz, as calças largas e camisas com grandes estampas. Além disso,

11 In: www.ferrez.blogspot.com , acessado em 19 de julho de 2008.

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130

a ideia de construir uma marca própria da periferia reproduz uma postura política

formada no Hip-Hop, que aponta para a consolidação de mecanismos de

sobrevivência próprios e sem a intermediação de agentes e atores não pertencentes à

cultura, à raça negra e ao bairro. A postura de valorização de elementos outrora

negligenciados, como o próprio bairro, deixa de ser signo de inferiorização do sujeito

residente para passar a objeto de valorização e formador de uma identidade própria.

Ferréz, em seu blog, apresenta com clareza os objetivos da marca:

O desafio é ser a marca oficial do bairro, tendo como ponto de vista uma resposta do Capão Redondo para toda violência que nele é creditada, fazendo os moradores terem orgulho de onde moram e consequentemente lutarem para um lugar melhor, com menos violência gratuita e mais esperança. Seis anos depois do escritor Ferréz ter criado a marca oficial do Capão Redondo, muitos estão deixando marcas como, Nike, Forum e Adidas de lado e usando algo que realmente tem a ver com a nossa gente, com a nossa cultura. O símbolo: o emblema da 1DASUL tem como idéia ser um brasão do nosso povo, desde que invadiram o Brasil os descendentes de portugueses sempre tiveram seus brasões reais, porque? Porque o brasão tem sentido de unidade e traz a idéia de um povo que se une para lutar pela preservação da sua cultura. Assim eles venciam as batalhas porque dividiam agente. assim como os europeus em geral, mas nós descendentes de escravos nunca tivemos um símbolo sobre nossa linhagem, o símbolo da 1DASUL em forma de fênix e com o número 1 em destaque é uma forma de termos nosso próprio brasão, e ele tem esse sentido, de juntar a periferia. Por isso, quando por a 1DASUL no corpo saiba que você está também usando uma idéia de mudança, você está somando para a auto estima do nosso povo. Do gueto para o gueto.12

O objetivo da marca, como o próprio autor define, é valorizar o bairro, criando

para os moradores da localidade um símbolo de identificação. Parte-se da necessidade

de construir uma forma de representação própria, condizente com a cultura da

periferia. Legados à condição de marginais – noção que surge não como denúncia,

mas como termo identitário – os membros desta filia formada pelo 1 da Sul não

buscam uma inserção nas formas de representação hegemônicas e totalizantes, mas,

sim, operam na construção de uma identidade a partir de seus próprios símbolos.

Interessante notar que a justificativa desta ação está amparada nos modelos que são

negados, critica-se o não pertencimento a esta forma de representação, mas o mesmo 12 Disponível em www.ferrez.blogspot.com/oqueeo1dasul. Acessado em 14 de março de 2009.

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131

mecanismo é utilizado, agora voltado para um grupo específico: os sujeitos

periféricos. O uso do brasão – símbolo hierarquizante que delimita um grupo e, por

este turno, exclui outros – é justificado pelo possível poder de união e fortalecimento,

este “traz a idéia de um povo que se une para lutar pela preservação da sua cultura.”.

Mesmo que o objetivo seja a comercialização de produtos, o resultado desta troca

comercial atinge o âmbito social, político e cultural. Beneficia o proprietário e criador

da marca, claro, mas também favorece uma nova possibilidade de vínculo com o local

e uma nova forma de atuação política. Se outrora a escolha de uma peça de vestuário

era um ato banalizado, agora, com a formação desta proposta de intervenção através

de uma marca, vestir-se com uma camiseta que traz estampadas e símbolos que

aludem a um bairro de periferia, virou um ato político.

Ter o próprio brasão é apenas um dos muitos elementos criados com o desejo

de fortalecer uma identidade própria, este empenho passa também pela literatura. É

no solo da produção literária que Ferréz irá atuar de forma decisiva no fomento de um

amplo debate acerca da representatividade das populações marginalizadas nesta.

Valida a discussão uma série de pressupostos que afirmam o caráter pouco

democrático do consumo da literatura e, sobretudo, de sua produção. Desnecessário

dizer que pelas periferias do Brasil, seja na área urbana ou rural, são poucas as ofertas

que favorecem que um sujeito se torne leitor, o que dirá deste se constituir enquanto

autor.

Para uma melhor compreensão acerca do papel de Ferréz na literatura

brasileira contemporânea e sobre a sua produção literária, não é possível estabelecer

uma leitura estanque e isolada de sua obra. Ao nos debruçarmos sobre seus escritos

temos que analisá-los em diálogo com a cultura Hip-Hop, a formação de movimentos

sociais comunitários e com sua postura política que congrega estas duas instâncias de

mobilização social. Mesmo que estes aspectos pertençam a uma esfera extraliterária,

eles estão presentes de forma clara na obra do autor. Poder-se-ia definir tal percurso

de análise como uma opção, no entanto, este olhar que rompe as barreiras das páginas

de um livro e busca dialogar a obra com a trajetória do autor é condição sine qua non

neste estudo. Com isto, corre-se o risco de formar um exame amparado no

biografismo, narrando apenas o caminho trilhado pelo escritor durante sua formação.

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132

Contudo, mesmo que a leitura da obra em seu formato isolado resulte em

apontamentos assertivos sobre o autor, no caso específico de Ferréz, e de outros

autores marginais, é insuficiente este tipo de análise. Nesse sentido, minha leitura

buscará traçar o mesmo percurso que o autor estabeleceu ao longo de sua produção

literária, partindo do texto impresso para propor um debate político e social acerca da

periferia urbana.

Tais dados biográficos, avultados pelo perfil socioeconômico do autor, sempre

marcaram a recepção da obra de Ferréz. Além disso, estes dados foram determinantes

para a publicação de seu primeiro romance, Capão pecado. Vale citar que

anteriormente, em 1997, com o patrocínio da empresa na qual trabalhava, Ferréz

publicou Fortaleza da solidão, publicação que reunia suas poesias concretas. A

publicação, que teve pouca tiragem e distribuição do próprio autor, hoje está

esgotada. No entanto, conforme observa Erica Peçanha, “Capão Pecado – ao

contrário de Fortaleza da Desilusão, cujo lançamento sequer foi noticiado pela

imprensa – movimentou o interesse de um periódico de grande circulação antes

mesmo de ser editado.” (Peçanha, op. cit., p. 205)

O interesse jornalístico pela publicação pode ser explicado pela forma como

Ferréz apresentava seu romance, entrelaçando elementos ficcionais com eventos

ocorridos na própria localidade em que residia. A matéria mencionada por Érica

Peçanha foi publicada na Folha de São Paulo, em 06 de Janeiro de 2000. No texto é

destacado o caráter pouco usual de uma produção literária que constrói a periferia no

campo ficcional e também é construída pelo seu território. O subtítulo da matéria,

“Desempregado do Capão Redondo escreve romance baseado em histórias

verdadeiras de um dos bairros mais violentos de SP; livro, sem editora, está pronto,

mas o autor muda trechos quando algum personagem morre na vida real”, reforça o

sentido documental do texto e o engajamento do autor através de sua produção. A

partir da visibilidade ofertada pela entrevista, Ferréz foi procurado pela editora

Labortexto, hoje já extinta, que publicou seu romance no mesmo ano.

Se o interesse pela publicação foi impulsionado pelo perfil social e

engajamento político do autor, o sucesso comercial desta, que obtive uma ampla

vendagem, principalmente se considerarmos os diferentes entraves decorrentes da

Page 133: 92384545 Escritos a Margem

133

distribuição deficitária, também obedece a este processo. Seja pelo elaborado projeto

editorial, com os já citados encartes de fotografias, ou pela estrutura narrativa que

busca mimetizar o cotidiano da periferia, Capão pecado entrou no circuito

percorrendo o caminho inaugurado por Paulo Lins, com o romance Cidade de Deus.

Desde a publicação de Cidade de Deus, em 1997, uma série de autores trilhou um

caminho semelhante ao preconizado por Lins, rompendo a silenciosa posição de

objeto, para em seu lugar, emergir na posição de enunciador do próprio discurso.

Decerto Ferréz é o exemplo mais bem sucedido deste empenho em estruturar um

discurso a partir do próprio referencial, formando uma compreensão das fraturas

marginalizadas da sociedade fora dos espaços centrais de saber e poder. O êxito de

Ferréz deve ser medido não apenas na expressiva vendagem de seus livros, fator que

revela o alcance de seu discurso, mas, principalmente, em sua contribuição na

formação de um grupo de autores da periferia, a chamada Literatura Marginal. O

ápice deste empenho pode ser aferido na publicação dos três suplementos literários

Literatura Marginal, assim como na criação da Editora Literatura Marginal/Selo

Povo, editora destinada unicamente a publicação de autores periféricos.

São muitas as semelhanças entre Cidade de Deus e Capão pecado. Ambos

foram escritos a partir do olhar de dentro, através da experiência adquirida pelos

respectivos autores durante a vivência enquanto moradores da localidade que serve de

palco da narrativa. Além disso, são textos encarcerados no empenho em reconstruir

na ficção o cotidiano da periferia. Beatriz Resende, em Apontamentos de crítica

cultural, sintetiza este novo molde de representação literária observando que ao se

apresentar como ex-morador da favela por ele romanceada, Paulo Lins passa a ser

“personagem, ator, agente que se situa naquele mesmo espaço físico, arquitetônico e

simbólico de exclusão de que fala.”(Resende, 2002, p. 158). Valendo-se da

experiência marginal, Ferréz e Paulo Lins apresentam a favela a partir de um outro

olhar. A favela não é abordada por um intelectual estrangeiro, mas pelo próprio

sujeito marginal. O marginalizado, enquanto excluído do lugar da produção de

conhecimento, busca reverter a sua posição silenciosa de objeto e tornar-se sujeito do

(auto)conhecimento e da escrita. Mas, conforme identificou Érica Peçanha, tais

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semelhanças podem ser identificadas como influência, tal qual a pesquisadora

identificou em sua análise:

Com João Antonio, Ferréz se identificou porque, já nos anos 1970, o autor se tornou conhecido por tematizar o subúrbio e as práticas sociais das classes populares. Na “literatura marginal” de Plínio Marcos descobriu a classificação que considerou adequada para caracterizar seus textos e de outros escritores oriundos da periferia. E no romance Cidade de Deus, o calhamaço que despertou interesse da crítica e do público ao ficcionalizar situações de violência e criminalidade, o escritor se inspirou para escrever Capão Pecado. (Peçanha, 2006, p. 106)

Dessa forma, se foi a publicação do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins,

que inaugurou este novo perfil autoral, Capão Pecado, de Ferréz, o fortaleceu. No

entanto, arrisco dizer que as aproximações entre os dois textos repousam apenas nas

semelhanças resultantes das condições de produção e pela intencionalidade de

reproduzir no campo ficcional situações retiradas de um cotidiano marcado pela

violência. Se avançarmos na análise destes dois romances, ofertando mais atenção à

estrutura textual e à intencionalidade política de cada autor, vamos observar com mais

propriedade as diferenças entre os dois romances.

Já foi afirmado por Beatriz Resende que a construção narrativa de Paulo Lins,

“criada dentro da excluída Cidade de Deus, não é jamais didática ou explicitamente

engajada, não aponta caminhos. Mas é a sua escritura, ela mesma, a sua existência,

que é um caminho.”(Resende, 2002, p.159). Na leitura de Beatriz Resende, a

vingança contra a marginalidade se realiza através da escrita e, sobretudo, através do

testemunho. Acredito que devemos problematizar melhor estas afirmações. Concordo

com a autora que a elaboração discursiva de Lins é, antes de tudo, uma posição crítica

que subverte os padrões literários estabelecidos. A subversão destes padrões se dá

pela própria existência da escritura de Lins, pelo próprio ato do marginalizado de

romper a figuração silenciosa de objeto e apresentar-se como sujeito da enunciação

que investiga sua própria condição social. A publicação dos textos de Ferréz e da

coletânea Literatura Marginal obedecem esta mesma leitura.

Contudo, o engajamento político de Lins é perceptível na forma como o autor

estrutura seu romance, centrando a narração no relato do crescimento do crime

organizado na favela Cidade de Deus. No decorrer da narrativa as histórias pessoais

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vão se tornando cada vez mais fugidias, refletindo assim a escalada vertiginosa da

violência em Cidade de Deus. Se, na primeira parte do romance, trecho que

representa os anos 60, o narrador imprime um ritmo mais detalhado e minucioso ao

acompanhar à formação do conjunto habitacional, na segunda e terceira partes do

livro, que aludem às décadas de 1970 e 1980 respectivamente, a narrativa se torna

mais fragmentada e difusa, incapaz de oferecer respostas à escalada da violência.

Assim é que personagens surgem e desaparecem na mesma página e acompanhamos

a proliferação de gerações cada vez mais novas ligadas ao tráfico.

O que chama atenção é a afirmação da territorialidade do romance, enquanto signo de identificação social, em um momento em que há uma esmagadora predominância de narrativas que se esmeram em problematizar exatamente o contrário, ou seja, sua impossibilidade.(Tavares, 2001, p. 144)

A forma adotada por Lins se baseia na denúncia da condição de

vulnerabilidade sofrida por toda uma localidade. A insistência em criar uma prosa que

se debruça unicamente sobre personagens pertencentes a uma região conflagrada pela

violência e criminalidade pode ser lida como um desejo de revelar uma realidade

pouco conhecida, ofertando cores para episódios e histórias que pouco freqüentavam

a literatura brasileira. Por este viés, mesmo que não seja explicitamente engajada ou

pedagógica, a prosa de Paulo Lins possui uma potência política ao formar um longo

exame do surgimento e consolidação das quadrilhas armadas empenhadas no

comércio varejista de drogas na favela por ele romanceada.

Em Ferréz o movimento operado aponta em um sentido oposto. Mesmo que o

autor afirme que sua inspiração para a elaboração de seu primeiro romance foi o texto

de Paulo Lins, Capão Pecado é uma espécie de compêndio de ensinamentos e

preceitos morais recolhidos por um autor conhecedor das armadilhas e percalços da

periferia. O tom explicitamente pedagógico domina a escritura do romance, da

mesma forma que a estrutura maniqueísta ordena os personagens construídos ao

longo do texto. Tais características são facilmente explicadas pela relação que o autor

mantém com a cultura Hip-Hop, principalmente o RAP, conforme examinado no

capítulo anterior, e a presença deste tom pedagógico, que almeja apresentar

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ensinamentos e conscientizar o leitor, é a transposição de uma característica de um

discurso poético-musical para o âmbito da literatura.

Capão Pecado apresenta como protagonista Rael, jovem residente no Capão

Redondo, palco privilegiado da narrativa. Ao longo do romance, através de Rael,

travamos contato com os diferentes tipos sociais da periferia: o jovem empenhado na

melhoria da vida pelo trabalho, o assaltante temido pela violência de seus atos, o

nordestino desempregado e alcoólatra, a doméstica negra explorada pela patroa

branca, o pastor evangélico, o jovem desempregado e alienado, etc. Tais sujeitos são

expostos no texto segundo um rígido maniqueísmo, no qual não sobram críticas

pontuais acerca das posturas concebidas como errôneas – como o consumo de drogas,

a prática de assaltos, o alcoolismo e a alienação política – e, na mesma lógica, os

personagens que trilham caminhos que são facilmente lidos como exemplares são

emoldurados a partir de um tom exultante de suas ações – a assiduidade ao trabalho, o

envolvimento em ações de cunho social e comunitário e a presença na rotina escolar.

Tá certo, ce vê o Alaor tá na correria, o Panetone e o Amaral também tão dando mó trampo, mas o resto, mano, na moral, tão vacilando. Eles tinham que ouvir as ideias do Thaíde, tá ligado? “Sou pobre, mas não sou fracassado”. Falta algo pra esses manos, sei lá, preparo; eles têm que se ligá, pois se você for notar, tudo tá evoluindo e os chegado tão lá no mesmo, e não tô dizendo isso porque sou melhor não. Ce tá ligado que comigo isso não existe, mas na moral, cara, esses aí vão ser engolidos pelo sistema; enquanto eles dormem até meio-dia e fica rebolando nos salão até de manhã, os playbas estão estudando, evoluindo, fazendo cursinho de tudo que é coisa.(Ferréz, 2000, p. 117)

Além visível presença de uma grafia própria das palavras e da tentativa de

transpor para a escrita um discurso formado pela oralidade, este repleto de gíria, -

atos que podem ser interpretados como um desejo de construir um romance que

reivindica uma autenticidade testemunhal através de um recurso semelhante ao

naturalista – o trecho acima evidencia o caráter pedagógico da escrita de Ferréz. O

próprio enredo da história é construído a partir da oposição descrita no trecho

recolhido. Rael, o protagonista do romance, é descrito como um jovem regrado,

trabalhador e empenhado na sua melhora de vida. Este deposita no trabalho e na

educação formal a possibilidade de ascensão social. A leitura salvacionista da

educação, conceituação amplamente criticada pelas correntes mais progressistas no

âmbito acadêmico, surge na prosa de Ferréz como a única saída possível para a

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consolidação de um sonho de progresso de vida pessoal e coletiva. Filho único, Rael

congrega o perfil de um filho devotado, fiel aos amigos e correto no trabalho: “Rael

dormiu tranquilamente e no dia seguinte trabalhou como sempre, atendendo os

clientes com muito carinho e atenção.”(Idem, p. 58).

A trajetória do personagem começa a ser modificada quando de sua entrada

em uma empresa de metalurgia. No novo local de trabalho, Rael se aproxima de

Paula, secretaria da empresa e namorada de Matcherros, seu melhor amigo. A partir

da ligação do protagonista com a jovem, são ofertadas ao leitor duas imagens claras

sobre o perfil de um jovem da periferia, onde Matcherros exerce o papel do sujeito

alienado e não responsável, sendo de forma recorrente retratado jogando vídeo-game

durante horas ao invés de procurar um trabalho.

Paula falava sem parar de sua relação conturbada, Rael analisava os fatos em seu interior. Era verdade que Matcherros era descendente de índios e por isso era moreno, tinha um cabelo escorrido e extremamente negro, era alto e tinha uma boa aparência... Mas era totalmente superificial e muito desinformado! Como uma coisa tão linda como aquela que estava em sua frente se apaixonara por um cara daquele jeito? O Matcherros dormia o dia inteiro, pois ficava Playstation com o Narigaz, e não estava nem aí pra nada, nem pra ninguém. Rael, de certo modo, sabia que Matcherros só namorava a Paula para poder ter algo garantido, pois de vez em quando ele ficava sem catar ninguém. (Idem, Ibidem)

O resultado do triangulo amoroso é inicialmente previsível. Desapontada com

o relacionamento que mantinha com Matcherros, Paula busca refúgio nos braços

disponíveis de Rael, este ainda tenta desvencilhar da armadilha amorosa – como todo

bom jovem de periferia, ele não quer trair o amigo, mas acaba se apaixonando. Eles

se casam e passam a morar em uma casa nos fundos da metalúrgica. Mas, de uma ora

para outra, Paula abandona Rael. Desesperado, este procura notícias da esposa e do

filho. Até que descobre que ela o largou para ficar com o patrão. Encera a história a

descrição da cena em que Rael é morto por um colega de cela, após ser preso por

invadir junto com outros bandidos a metalurgia e matar por vingança Seu Oscar, o

antigo patrão.

Em torno deste núcleo central circulam diferentes personagens, amigos de

infância, bandidos sanguinários, jovens desocupados, mães carinhosas, pais

alcoólatras, etc. Condensada em pouco mais de 170 páginas temos a tentativa de

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retratar uma realidade marcada pela vulnerabilidade social, violência e miséria,

resultando em uma imagem que se revela mais fiel à percepção do autor sobre seu

próprio território do que um dado realista sobre este. Pois, é através da mão de Ferréz,

que filtra, hierarquiza e julga, que travamos contato com o Capão Redondo e bairros

adjacentes. A descrição da cena em que o personagem Matcherros se depara com seu

tio alcoolizado em sua casa deixa este aspecto de censura e julgamento moral bastante

evidentes:

Até aquele momento ele não havia notado a presença do seu tio, Carimbe, que se encontrava deitado sem camisa, com uma aparência horrível; enrugado, com os lábios secos e os olhos vermelhos; careca, com alguns fiapos de cabelo somente na nuca, com a calça e a bota toda suja de lama e mijo. Notou ainda catarro no travesseiro, viu a dentadura dentro do copo com água, o cigarro ainda acesso e pela metade no chão, o cinzeiro sujo, um copo de café sujo. Tudo era sujeira em sua volta. (Idem, p.120)

O texto ocupa-se de um exame minucioso da condição do personagem na cena

descrita, elencando todos os elementos que levam o leitor a definir a situação como

degradante. Mas, no modelo de representação utilizado por Ferréz não basta apenas

indicar estes índices, é necessário afirmar e condicionar o leitor para este

entendimento. O leitor não pode receber mensagens dúbias, ele tem que saber que ao

redor do personagem alcoólatra “tudo era sujeira em sua volta”.

Se Ferréz observa na própria periferia uma dualidade formada pelo

antagonismo entre uma trajetória de vida positiva e negativa, nos poucos momentos

em que a narrativa se desloca para cenários não periféricos, sobretudo quando são

apresentados os contatos dos personagens marginalizados com personagens de outras

classes sociais e residentes em bairros centrais, a perspectiva maniqueísta assume um

novo recorte. Desejoso em colocar em destaque os distintos conflitos de classe,

Ferréz utiliza um narrador que discute estes aspectos a partir da perspectiva dos

personagens:

Ele tinha nojo daqueles rostos voltados para cima, parecia que todos eles eram melhores que os outros. Se seu pai estivesse com ele, com certeza já teria dito: esquenta não filho, eles pensam que têm o rei na barriga, mas não passam dessa vida sem os bicho comê eles também. Os mesmo bicho que come nóis, como esses filhas da puta; lá embaixo fio, é que se descore que todo mundo é igual.(Idem, p.35)

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A partir da reflexão atribuída ao personagem, ganha vulto uma representação

que busca dirimir as diferenças através do conflito. A fala do personagem, revestida

por um dado que se quer próximo da cultura popular, apresenta a semelhança entre os

sujeitos, mas reafirma a diferença social. Na verdade, em distintos momentos do

romance, esta diferença é acentuada e debatida. Como no trecho em que é narrada a

visita de Rael ao patrão de sua mãe com o intuito de receber o salário da mesma:

Chegando ao mercado de seu Halim, o pão-duro já o havia visto de longe e já estava contando o dinheiro para lhe dar. Rael se aproximou e Halim nem o cumprimentou, só entregou o dinheiro e disse que o serviço da mãe estava lhe custando muito dinheiro. Rael não responde nada, só guardou o dinheiro no bolso, disse obrigado e se retirou. Mas Halim notou algo em seu rosto, algo estranho, talvez por um momento Halim tenha visto nos olhos daquele simples menino periférico um sentimento de ódio puro e que tenha sentido por algum momento que um dia o jogo iria virar. (Idem, Ibidem)

Em Manual prático do ódio, segundo romance do autor, lançado por uma

grande editora em 2003, o antagonismo de classe ganha novos contornos e surge

como principal justificativa para a inserção dos personagens no mundo do crime. São

muitos os trechos que trazem uma perspectiva crítica sobre a desigualdade social do

Brasil, como no fragmento abaixo, que apresenta a percepção do personagem Celso

Capeta:

Era revoltado ao extremo, ultimamente não podia beber, se empolgava e vira e mexe contava as mesmas histórias, os amigos não agüentavam mais suas lembranças sobre o último emprego, falava constantemente que trabalhar para os outros hoje em dia era ser escravo moderno, só virava mixaria. Entre várias histórias falava detalhadamente sobre a época em que trabalhava como ajudante de pintor, os filhos do patrão na piscina, rindo, tomando suco de laranja ou chocolate de caixinha, a mãe dos meninos ficava lendo embaixo da árvore no jardim, os filhos eram vigiados pela empregada. Não cansava de narrar aos amigos de cerveja que o teto da garagem era enorme, muito trabalho, também o patrão yinha mais de cinco carros. Celso Capeta falava e começava a comparar a casa dos patrões com a sua, dizia alto que na casa deles tinha piscina, hidromassagem, e na sua, córrego fedorento, chuveiro com extensão queimada.”(Ferréz, 2003, p.19)

Tal forma de comparação entre distintos padrões de vida domina parte

considerável da narrativa, criando um contraponto entre a realidade dos personagens

residentes na periferia e os estabelecidos em bairros centrais e de elite. A leitura deste

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tópico por Aline C. Xavier da Silva, em Figurações da realidade na literatura e

cinema brasileiro contemporâneos, busca uma aproximação da intencionalidade de

Ferréz ao introduzir esta leitura sociológica da realidade social brasileira:

Os personagens ponderam sobre suas condições sociais e assumem a revolta de não fazerem parte de uma sociedade que os exclui. A inserção na classe social que os excetuam, no entanto, não se dá pelo contrato social do trabalho ou pela prestação de serviço, mas por meio da relação com os objetos de consumo, relação de poder capaz de legitimar identidades como consumidores. Todas as referências a bens de consumo feitas no texto (marcas de motocicletas, de carro, de roupa) levam à reflexão sobre a ideia de que a organização social e o universo simbólico das sociedades modernas se constituem sobre a praxe do consumo, pois a forma de aquisição dos sujeitos pode determinar não só sua ambiência como seus hábitos. (Silva, 2009, p.92)

A análise construída pela pesquisadora possui sustentação teórica em recentes

estudos de sociólogos e críticos culturais, como Renato Ortiz e sua particular leitura

das regras de socialização impostas pelo consumo. Ser consumidor e cidadão, para

citar o clássico ensaio de Nestor G. Canclini, surge não como uma escolha, mas algo

necessário para a real inserção destes sujeitos/personagens na sociedade. Em uma

estrutura social formada pelos bens de consumo, estar fora do mercado consumidor,

nesta leitura, é o mesmo que estar excluído do exercício da cidadania.

Este mapeamento sociológico é realizado por Ferréz na narração da formação

de uma quadrilha de assaltantes que almeja realizar um grande assalto. Lúcio Fé,

Aninha, Neguinho da Mancha na Mão, Celso Capeta, Mágico e Rêgis, os membros

da quadrilha, estruturam um plano que renda o dinheiro necessário para uma vida

estabilizada. São movidos, antes de tudo, pelo desejo de consumo, depositando nas

ações criminosas a única forma possível para obterem o que cobiçam. No entanto, os

planos são frustrados por diferentes razões e estes não concretizam o plano. Neste

romance o sentido pedagógico também orienta o desfecho dos personagens e todos os

personagens são punidos com a prisão ou a morte.

A noção que orienta a estrutura narrativa é apresentada no próprio título da

obra, ao travar contato com as histórias dos personagens, o leitor realiza um mergulho

em um manual prático do ódio que passa a ser impulsionado pela engrenagem

perversa do crime e dos reclames televisivos que apresentam sonhos de consumo

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inatingíveis. Neste romance, o mundo do crime e seus códigos e regras surgem

elementos que auxiliam o autor na formação de uma leitura própria sobre a realidade

social da periferia. Em semelhança a publicação anterior, Manual prático do ódio

também é fundado por uma perspectiva testemunhal. O fato do autor ser residente na

periferia e conhecer de perto o cotidiano de sujeitos que, em semelhança ao

personagens ficcionais, atuam no crime reforça o realismo do eventos narrados. Ao

menos é isso que o autor busca colocar em evidencia, como podemos detectar em seu

texto de apresentação na quarta capa do livro:

Todos os personagens deste livro existem ou existiram mas o Manual prático do ódio é uma ficção. O autor nunca matou alguém por dinheiro mas sabe entender o que isso significa – do ponto de vista do assassino. Este romance conta a história de um grupo que planeja um assalto, mas também fala de outros medos e mistérios universais, de toda essa gente que ama e odeia, em proporções explosivas.(Ferréz, 2003)

O autor deseja se aproximar do espaço narrado e do tema abordado e para

tanto se constrói enquanto personagem. Um pacto é formado, o leitor passa a

depositar maior verossimilhança no texto ao identificar um autor que se quer próximo

dos personagens ficções. Guiados pelas descrições de Ferréz, nós, leitores, passamos

a adentrar uma realidade pouco conhecida e dominada pela presença de personagens

que amam, odeiam e também matam por dinheiro. Somos advertidos que o autor sabe

o significado desta ação, mas do ponto de vista do próprio assassino. Não existe

melhor chamariz para a leitura. Esta forma de construção do autor enquanto

personagem que favoreceu, é claro, o amplo consumo da publicação. Se o público

consumidor desejado é o jovem da periferia, como de forma recorrente Ferréz e

outros autores argumentam, a abordagem da violência e as descrições de assaltos e

perseguições agradam também em cheio os leitores não familiarizados com esta

realidade.

É possível constatar uma mudança de foco operada por Ferréz a partir da

publicação de seu livro de contos, Ninguém é inocente em São Paulo. Nos contos,

Ferréz elege um novo viés como principal eixo de observação do processo de

marginalização dos sujeitos residentes na periferia. A violência ainda se faz presente,

mas ganha novos contornos e formas, sendo retratada, por exemplo, na ausência de

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perspectivas profissionais dos jovens de periferia, tema abordado no conto “No

vaga”, ou, no cotidiano de um trabalhador que sofre com os insultos do patrão, como

no conto “Pão doce” e também através do preconceito racial, tema do conto “Fábrica

de fazer vilão”.

Este último conto, com um sofisticado recurso de corte e supressão da

narrativa, Ferréz aborda a violência policial sofrida por negros e pobres em um bar de

uma favela. A abertura do conto consiste na descrição da cena de um jovem negro,

participante do movimento Hip-Hop, indo dormir:

Tô cansado mãe, vou dormir. Estomago do carái, acho que é gastrite. Cobertor fino, parece lençol, mas um dia melhora. Os ruídos dos sons às vezes incomodam, mas na maioria ajudam. Pelo menos sei que tem um monte de barraco cheio, monte de gente vivendo. Ontem terminei mais uma letra, talvez o disco saia um dia, senão é melhor correr trecho. (Ferréz, 2006, p. 11)

O rapper, que dorme no segundo piso do bar de sua mãe, é acordado para ser

achincalhado, junto aos frequentadores do lugar, todos negros, por um policial

armado.

Acorda preto. O quê...O quê... Acorda logo. Mas o quê... Vamo logo, porra. Ai, peraí, o que tá acontecendo. Levanta logo, preto, desce pro bar (Idem, Ibidem).

Ao chegar no bar, o personagem depara-se com todos os fregueses encostados

na parede sob a mira de um policial. Insultos são proferidos pelos policiais. Os

xingamentos só cessam quando um policial informa: “É o seguinte, seus montes de

bosta, vou apagar a luz, e vou atirar em alguém.”(Idem, p. 13) . Através de frases

curtas, ofertando para a narrativa uma agilidade e brutalidade condizente ao descrito,

o narrador do conto apresenta a cena:

Então apaga a luz. O tiro acontece, eu abraço minha mãe, ela é magra como eu, ela treme como eu. Todo mundo grita, depois todo mundo fica parado, o ronco da viatura fica mais distante.

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Alguém acende a luz. Filho-da-puta do caralho, atirou no teto, gritou alguém. (Idem, p. 13-14).

A narrativa é de extrema violência, mesmo sem as mortes que o policial

anuncia desde que entra no bar. Em poucas linhas, Ferréz aborda de forma clara e

objetiva o sofrimento que a discriminação racial causa em suas vítimas. No conto,

serão os fragmentos, os mesmos que os personagens absorvem durante a investida do

grupo de policiais, que possibilitará a descrição das cenas. O autor apresenta um

domínio pouco usual dos artifícios literários, conseguindo produzir um conto que

aborda de forma contundente o tema da violência racial sem, no entanto, criar uma

forma narrativa didática.

Os contos, como o próprio autor diz na apresentação, “são pequenos

insultos”(Idem, p. 7). Tal noção orienta os escritos. Pois, a utilização de fragmentos

como estrutura narrativa é recorrente nos contos de Ferréz. São flashs captados em

diferentes incursões ao espaço marginal. Os contos, nesta perspectiva, se assemelham

a fotografias que registram o cotidiano da periferia. Textos como “Pega ela”, “No

vaga”, “O pão e a revolução”, “Na paz do Senhor” e “O pobrema é a curtura, rapaz”

são exemplos deste exercício de demarcação de uma cena, um instante da periferia.

Sem narradores, estes contos são estruturados apenas por um diálogo. A partir da

interlocução dos personagens acompanhamos o registro da violência da favela.

Extrai-se, nesta perspectiva, os elementos que poderiam adensar o relato, restando

apenas os personagens que representam a periferia urbana. Contudo, é possível

constatar uma postura crítica dos personagens em relação ao espaço e sujeitos da

marginalidade. Todos os contos acima elencados apresentam a favela a partir de um

olhar crítico, questionando as posturas e ações dos sujeitos da periferia. Exemplar

nesse sentido é o conto “No vaga”. No conto, dois personagens conversam sobre as

diferentes ofertas de emprego e negócios, revelando as desventuras da busca por um

emprego:

E aí, encontrou? Encontrei, nada. E o negócio do purificador? Era tudo ilusão, fiz curso de três dias e depois descobri. Já sei, de porta em porta de novo (Ferréz, op. cit., p. 35)

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O diálogo é abertamente irônico, ao passo que os personagens começam a

relatar as experiências alheias:

Pior foi o Deusdete. O que foi? Comprou uma máquina de fralda. Meu Deus, esse homem não aprende. Aprende não, não chega aquela das camisas, lembra? Lembro, sim. Fez meia dúzia de estampas e depois foi vender a máquina. O pior dos piores é fazer books. É mesmo, toda mãe acha que o filho é o mais bonito. Eles chegam a fazer curso com as meninas. Tudo mentira, até a filha zarolha da Lúcia entrou nessa. Já viu modelo zarolha? (Idem, Ibidem)

Os dois personagens lançam um olhar crítico e, em alguns momentos,

perverso sobre o próprio cotidiano e reproduzem a percepção do autor. Através destes

personagens o autor passa a orientar seus leitores, estabelecendo este desejo de

formação como um dos principais índices de leitura de sua obra.

O estatuto literário passa a receber um invólucro disciplinador, através da

escrita o autor enumera de forma clara e objetiva qual a postura social condizente

com a imagem de sujeito periférico que espera formar no ato de leitura. Este designo

rompe estilos e gêneros e atinge também a literatura infantojuvenil, com a publicação

de Amanhecer esmeralda. Neste, Ferréz, narra o cotidiano de uma menina negra da

periferia que ocupa seu dia-a-dia entre os afazeres domésticos e a escola. Filha de

uma empregada doméstica e de um operário da construção civil, a pequena

protagonista vive em um mundo escuro e sem brilho. Este aspecto é reforçado pela

opção estética em apresentar as ilustrações iniciais da publicação em preto e branco,

reafirmando o sentimento de abandono vivenciado pela personagem.

Manhã acordou cedo mais uma vez, era sexta-feira, o dia de alegria para todas as crianças que estudavam. Foi até a pequena mesa feita artesanalmente por seu pai com tábuas de caixotes e não viu nenhum embrulho. Era mais um dia sem pão. Pegou a panela onde sua mãe fazia café e olhou dentro, nada. (Ferréz, 2005, p. 9-10)

A crítica social do autor não fica refletida apenas na descrição física de um

cotidiano marcado pela carência e ausência, mas também na apresentação das

angústias de uma infância com poucas perspectivas.

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Chegou à escola no horário certo, a turma estava pegando fogo, já estava na terceira série, talvez fosse professora, dentista, advogada, havia aprendido a sonhar, mas também a pensar com os pés no chão e não gostava disso, quando se imaginava limpando a casa de alguém por toda a vida que nem sua mãe, uma tristeza invadia seu corpo. (Idem, p. 14)

No entanto, há um pequeno gesto que produz uma mudança significativa na

vida da menina. Ao perceber que a jovem Manhã sempre vai para a escola com

roupas surradas e velhas, seu professor decide comprar um simples vestido para

presentear a aluna.

Manhã arregalou os pequenos olhos negros e pegou o pacote com delicadeza, perguntou se podia abrir e com a aprovação do professor, tirou o durex delicadamente e, ao abrir a embalagem, estendeu o vestido, com uma cor que ela não sabia o nome. (Ferréz, Idem, p. 26)

Com esse pequeno gesto tudo se transforma. O verde esmeralda do vestido

oferece luz à vida da pequena Manhã. A mudança não ocorre apenas nas vestes da

protagonista, mas, igualmente, na assimilação de uma nova compreensão de sua

origem étnica. Com o auxílio de Dona Ermelinda, a merendeira da escola, Manhã

ganha belas tranças.

Dona Ermelinda demorou uma hora para fazer as tranças. Enquanto fazia, contava sobre as raízes africanas que todos os negros tinham, contou que certamente Manhã era também descendente de uma linda rainha de algum dos reinos trazidos para cá para serem escravizados. A menina estava encantada com todas aquelas histórias, mas ficou mais ainda quando Dona Ermelinda trouxe o espelho e ela viu como haviam ficado as tranças. (Ferréz, idem, p. 30)

A partir da mudança física de Manhã, todo o seu em torno se transforma. Seu

pai, ao ver sua filha tão bela, decide reformar o barraco. Afinal, argumenta ele: “não

combinava uma menina tão bonita com um barraco tão bagunçado e sujo.”O vizinho,

por sua vez, ao perceber a pintura nova na casa de Manhã resolve também reformar

sua casa. Assim, tudo muda, ganhando cores e vida. As ilustrações, que antes eram

preto e branco, exibem agora uma exuberância de cores e até o amanhecer se tornou

esmeralda, cor representativa de uma esperança outrora escondida e empalidecida.

Na narrativa, Ferréz mescla momentos de um realismo cruel, sobretudo ao

representar a situação de desigualdade social vivenciada pela protagonista, com

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trechos que apresentam fantasia, como evidência o final da história. Manhã é a síntese

de um desejo explicito de auto-afirmação através da identidade negra. A história narra

não apenas a mudança de uma menina, mas de toda uma comunidade. É evidente o

intento do autor em apresentar uma protagonista que possa ser espelho para os

leitores. O reflexo é de uma menina acanhada que lutava para ajeitar os rebeldes

cabelos negros é transformado em um índice maior que revela a aceitação de sua

etnia e identidade. Decerto, não é um conto de fadas. O reino virou uma favela. O

castelo dá lugar a um barraco. Os feitiços são outros, alguns mais venosos. Mas a

princesa e o cavalheiro ainda estão presentes, só que agora são negros e

marginalizados e, como em todo belo conto de fadas, saem vitoriosos no final.

Transformar. O verbo sintetiza o movimento que o autor espera que seus

textos realizem. Fora do registro ficcional, espaço em que o autor não poderia intervir

diretamente na construção de uma realidade que seja reflexo de seu desejo, Ferréz

acaba por utilizar a escrita como veículo de denúncia, principalmente em seu blog. A

transformação, nesse sentido, se torna mais palpável, sendo possível intervir

diretamente em uma realidade concreta através de um posicionamento político de

intervenção e denúncia do estado das coisas. Mesmo que seja um espaço preferencial

para divulgar novos textos literários, a agenda de eventos e novos produtos, o blog

também assume uma função de canal de denúncias, um ambiente independente que

torna possível informar seus leitores sem intermediação.

Exemplo disto é o texto publicado no dia 17 de maio de 2006, no qual são

denunciadas as incursões policiais que resultaram no assassinato sumário de ao

menos cerca de 100 “suspeitos” de integrarem uma facção criminosa da capital

paulista. Com o título “Atenção”13, o texto inicia com um apelo “a todos que

acompanham esse blog, que nos ajude a dizimar o que está acontecendo”. Os fatos

denunciados pelo escritor ocorreram como uma retaliação pela onda de ataques

cometidos pela facção criminosa que domina os presídios de São Paulo. Ataques

estes que pararam a cidade e disseminaram o pânico entre a população. Nas palavras

de Ferréz, os mortos foram alvejados pelas costas, sob a acusação de possuírem

vínculos com a organização criminosa. Mas, como evidenciou o autor no próprio

13 Disponível em www.ferrez.blogspot.com/atencao. Acessado em 25 de março de 2008.

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texto, “nenhum deles tinha passagem, por isso apelo para que divulguem a real de que

o acordo não foi feito com o povo, o povo tá morrendo, sendo baleado pelas costas,

ao entregar pizza, ao voltar para casa. a policia covarde, treme perante o olhar do

ladrão, mas mata sem dó quem está simplismente voltando para casa.”

A denúncia ganhou destaque em diferentes jornais. Mas, tamanha visibilidade

também resultou em uma série de ameaças de morte, tendo o autor que deixar a

capital paulista para preservar sua família e sua integridade física. Com a apuração da

denúncia, foi constatada a participação da Escoderia Le Cocq, organismo não oficial

da Polícia Militar de São Paulo e da Polícia Civil, em uma série de ações sob a

orientação da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo na busca pelos

criminosos responsáveis pelos ataques realizados na capital e interior do Estado.

Denúncia semelhante foi feita pelo autor em ocasião de uma operação policial

no Complexo do Alemão, conjunto de favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro.

Publicado no dia 8 de maio de 2007, o texto não possui um relato do autor enquanto

testemunha do fato delatado, mas é construído a partir das informações dadas por

leitores residentes na localidade: “recebi muitos e-mails de manos do Rio, dizendo

que a mídia não está cobrindo o que se passa realmente com os moradores do

complexo e demais comunidades, assim como também toda matéria traz só o índice

de mortos, ontem foram 4, hoje foram 8, reduzindo as vidas a meros números.”14.

Ferréz surge como porta-voz. Detentor de uma visibilidade ímpar, o autor utiliza seu

blog para tornar pública uma perspectiva que não se faz presente nos jornais que

cobriram o confronto ocorrido na localidade. O texto não apenas informa sobre o fato,

indicando o número de mortos, mas oferece uma visão própria sobre o mesmo,

revelando seu vínculo com outras áreas marginalizadas, neste caso as favelas do Rio

de Janeiro: “fiz palestra no complexo a algum tempo, os manos do hip-hop de lá

estavam tentando montar uma biblioteca comunitária, que não deu certo, pena foi que

talvez um deles esteja nas fotos. as fotos servem para mostrar o que nosso pais está se

tornando, e que futuro sombrio ainda nos aguarda.” Ao afirmar que dentre os muitos

mortos em decorrência do confronto possa estar um dos jovens militantes do Hip-Hop

14 Disponível em http://ferrez.blogspot.com/2007/08/mega-operao-no-complexo-do-alemo.html. Acessado em 26 de fevereiro de 2009.

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que se reuniram com ele em evento na própria localidade, Ferréz cria uma leitura

própria para a trajetória dos muitos jovens negros e favelados que ingressam nas

fileiras do comércio varejista de drogas. Estes, a partir da visão do autor, são sujeitos

que sofrem uma peculiar condição de vulnerabilidade, transitando rotineiramente

entre duas possibilidades. Ocupar um dos muitos cargos e postos do tráfico não é uma

escolha, mas um caminho possível e muito atraente. Contudo, como os próprios

personagens de Ferréz e de outros autores atestam, trata-se de um caminho sem volta,

que apresenta um fim esperado. Trilhar tal percurso, em alguns casos, passa a ser o

único ato esperado por alguém que nasceu em uma estrutura familiar destruída pela

violência, sem educação e sem condições de vislumbrar um outro futuro.

Tal ponto de vista não é defendido apenas pelo autor, são muitos os discursos

veiculados em diferentes espaços que apresentam tal perspectiva. Tal forma de

análise foi previamente referendada por inúmeros estudos que buscavam explicar

alistamento de jovens de comunidades de baixa renda pelo comércio de drogas.

Tributárias desta leitura, muitas ações sociais desenvolvidas nestas localidades

utilizam como principal justificativa para o desenvolvimento de projetos de cunho

sócio-educativos a necessidade de “resgatar” estes sujeitos. Repousa de forma

implícita nesta ideia de “resgate” a percepção de que tais jovens estão legados a uma

condição de extrema vulnerabilidade social que a única saída possível é o ingresso em

ações que os colocarão em conflito com a lei. A sentença que mascara uma simplória

equação, é repetida corriqueiramente e pode ser localizada em muitos discursos.

No entanto, setores progressistas da sociedade, entre eles podemos incluir as

falas produzidas pelos autores marginais, buscam desqualificar tal argumento ao

afirmarem que os jovens residentes nos bairros periféricos não são potenciais

criminosos, mas, sim, sujeitos que transitam em um espaço fronteiriço que dividi o

mundo da ordem e o da desordem. A ideia de resgate, defendida pelos setores

conservadores, é rechaçada por apresentar uma leitura preconceituosa da periferia e,

principalmente, acerca dos sujeitos que lá residem. Contra o olhar que aponta para a

margem como um espaço propício para o surgimento de “mentes criativas prontas

para o mal”, é apresentada uma leitura crítica sobre o sistema de opressão social que

assola tais sujeitos. O argumento passa a ser baseado na denúncia de um processo de

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marginalização social que determina a entrada destes jovens no crime. Decerto,

existem semelhanças entre os argumentos. Mas, por outro lado, as diferenças são

claramente perceptíveis.

Tais clivagens se tornam mais nítidas quando colocadas em atrito, produzindo

uma disputa discursiva sobre o tema. Exemplar neste sentido são as opiniões emitidas

pelo apresentador de T.V. Luciano Huck, em artigo publicado no jornal Folha de São

Paulo, em 01 de outubro de 2007, depois de sofrer um assalto a mão armada que

resultou na perda de seu relógio. Após realizar um exercício imaginativo sobre a

notícia de seu possível assassinato – “Luciano Huck foi assassinado. Manchete do

"Jornal Nacional" de ontem. E eu, algumas páginas à frente neste diário,

provavelmente no caderno policial. E, quem sabe, uma homenagem póstuma no

caderno de cultura” – Huck analisa a situação socioeconômica de seus agressores:

“Como brasileiro, tenho até pena dos dois pobres coitados montados naquela moto

com um par de capacetes velhos e um 38 bem carregado. Provavelmente não tiveram

infância e educação, muito menos oportunidades. O que não justifica ficar tentando

matar as pessoas em plena luz do dia. O lugar deles é na cadeia.”. No artigo, o

apresentador inicialmente reproduz a leitura da condição de vulnerabilidade sofrida

pelos jovens marginalizados: os assaltantes não tiveram oportunidades e, por este

motivo, ingressaram no crime. Mas, Luciano Huck não se apieda, isto não justifica

uma ação criminosa e violenta: “o lugar deles é na cadeia”. A argumentação

construída se assemelha aos impropérios proferidos pelos muitos apresentadores de

programas policias que povoam o fim de tarde das emissões televisivas dos canais

abertos. Tal qual um destes furiosos apresentadores, Huck produz uma hierarquia

entre classes e cidadãos: “Juro que pago todos os meus impostos, uma fortuna. E,

como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas de caramelo, quase recebo

balas de chumbo na testa.” O violento ato sofrido, na leitura do apresentador, se

torna ainda mais injustificável pelo reconhecimento de sua posição em uma sociedade

que afere a importância de seus membros a partir do valor de seus bens. Pagar

elevados impostos, resultado direto dos elevados ganhos recebidos pelo apresentador,

surge como principal argumento por um pedido de segurança. Além disso, no artigo o

apresentador afirma que realiza sua parte na construção de um país menos desigual e

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150

que o propósito do texto não é “para colocar a revolta de alguém que perdeu o rolex,

mas a indignação de alguém que de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para

ajudar a construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e

justo e concluir --com um 38 na testa-- que o país está em diversas frentes

caminhando nessa direção, mas, de outro lado, continua mergulhado em problemas

quase "infantis" para uma sociedade moderna e justa.”

Na reflexão construída por Luciano Huck a saída seria um “salvador da

pátria”, alguém que assumiria o papel de liderança para a efetivação de uma solução

para as questões relativas à violência. “Estou à procura de um salvador da pátria.

Pensei que poderia ser o Mano Brown, mas, no "Roda Vida" da última segunda-feira,

descobri que ele não é nem quer ser o tal. Pensei no comandante Nascimento, mas

descobri que, na verdade, "Tropa de Elite" é uma obra de ficção e que aquele na tela é

o Wagner Moura, o Olavo da novela. Pensei no presidente, mas não sei no que ele

está pensando.”

O esperado “salvador da pátria” assume feições contraditórias, indicando

como possíveis postulantes ao cargo um líder de grupo de RAP da periferia, um

violento policial [felizmente] confinado no ambiente ficcional e o presidente da

república. Fica latente o tom depreciativo ao mencionar o nome de Mano Brown,

líder dos Racionais MC’s, sentenciando primeiro que ele não é este líder e nem quer

ser. De fato, na citada entrevista concedida pelo músico, logo no início, ao responder

a primeira pergunta, que versava sobre a noção de revolução presente em seus

discursos, Mano Brown define que suas falas e declarações não são formadas a partir

de uma posição de liderança de determinado grupo ou segmento e, mas, sim “como

cidadão. Não como político ou líder de nada. Eu sou um cidadão. Eu opino, eu falo o

que acho”. Não desejar ser o líder é uma posição política inesperada que revela uma

atitude não autoritária que direciona na conformação do próprio grupo o exercício da

liderança. Mano Brown, mesmo sendo líder e letrista do maior grupo de RAP

brasileiro, seguido por milhares de fãs em diferentes regiões do Brasil, símbolo

máximo da postura combativa e radical do Hip-Hop, não se veste destes artifícios,

não assume esta pecha, não lidera ninguém, não quer falar pelos outros, mas, sim,

para os outros.

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151

A ampla referência realizada ao artigo assinado por Luciano Huck se justifica

não pela representatividade da percepção do apresentador acerca da desigualdade

social e da violência, mas pela resposta produzida por Ferréz em relação a tal

posicionamento. Publicado no mesmo jornal paulista, a Folha de São Paulo, dias

após a publicação do artigo de Luciano Huck, o artigo assinado por Ferréz, uma

espécie de conto/crônica sobre o cotidiano de um assaltante residente na periferia,

surgiu como uma referência para a produção um outro olhar sobre as questões

debatidas anteriormente.

Com um narrador em primeira pessoa, aspecto que reforça o sentido

testemunhal do texto, o relato inicia com a descrição de um encontro: “ELE ME olha,

cumprimenta rápido e vai pra padaria. Acordou cedo, tratou de acordar o amigo que

vai ser seu garupa e foi tomar café. A mãe já está na padaria também, pedindo

dinheiro pra alguém pra tomar mais uma dose de cachaça. Ele finge não vê-la, toma

seu café de um gole só e sai pra missão, que é como todos chamam fazer um

assalto.Se voltar com algo, seu filho, seus irmãos, sua mãe, sua tia, seu padrasto,

todos vão gastar o dinheiro com ele, sem exigir de onde veio, sem nota fiscal, sem

gerar impostos.”

O narrador – seria este o próprio autor? – apresenta a cena de forma prosaica,

não é um dado alarmante o contato e a proximidade com um assaltante. Também não

é fator de alarde o consumo por parte da família de um objeto resultante de tal prática.

Neste ponto também repousa uma leitura que justifica o ingresso do personagem no

crime. A equação foi novamente construída e o resultado é o esperado: sem

oportunidades e sem chances, a única saída que resta é o crime. Não é um dado novo,

é um aspecto reincidente na obra do autor. O fato inédito, se assim podemos

classificar, é o grande empenho de Ferréz em compreender a lógica que move o

personagem/sujeito. Ao contrário de seus textos anteriores, não presenciamos a

construção de um discurso maniqueísta e pedagógico. Ou seja, o personagem não será

punido ao final da narrativa. Além disto, todo o texto é formado através de uma

estrutura que busca apresentar uma resposta ao texto de Luciano Huck,

desconstruindo a percepção do apresentador de T. V. acerca da desigualdade social

brasileira. “Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais, mas sua mãe o

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levava ao circo todos os anos, só parou depois que seu novo marido a proibiu de sair

de casa. Ela começou a beber a mesma bebida que os programas de TV mostram nos

seus comerciais, só que, neles, ninguém sofre por beber. Teve educação, a mesma que

todos da sua comunidade tiveram, quase nada que sirva pro século 21. A professora

passava um monte de coisa na lousa -mas, pra que estudar se, pela nova lei do

governo, todo mundo é aprovado?”

Mas, a crítica mais contundente que Ferréz apresenta não se baseia nos

argumentos de Luciano Huck, mas em um dos mais populares quadros de seu

programa televisivo. Na leitura formada por Ferréz, a oferta de um valor em dinheiro,

quantia suficiente para quitar as muitas dívidas de um trabalhador comum, está

atrelada a um ato de humilhação pública: “Era da seguinte opinião: nunca iria num

programa de auditório se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando

numa tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as dívidas, isso nunca faria, um homem

de verdade não pode ser medido por isso.” No conto/crônica, Ferréz busca a

percepção do próprio sujeito marginalizado e cria uma forma de representação que

seja capaz de revelar os pensamentos e os desejos de um personagem em conflito

com a lei. Neste jogo formado pela escrita, tão importante quanto saber a opinião de

um assaltante acerca de uma atração da T.V. é saber qual a percepção deste sobre a

desigualdade social da qual é subproduto. O autor deseja revelar ao público não

somente a justificativa para o ato criminoso, mas que o próprio ato se justifica pela

colisão de elementos tão desiguais: “Se perguntava como alguém pode usar no braço

algo que dá pra comprar várias casas na sua quebrada. Tantas pessoas que conheceu

que trabalharam a vida inteira sendo babá de meninos mimados, fazendo a comida

deles, cuidando da segurança e limpeza deles e, no final, ficaram velhas, morreram e

nunca puderam fazer o mesmo por seus filhos!”

O crime passa a ser justificado pela necessidade de sobrevivência e pela

revolta contra a desigualdade: “Estava decidido, iria vender o relógio e ficaria de boa

talvez por alguns meses.”. Soma-se a isto uma pequena ironia, que continua a apontar

para o regime das diferenças: “O cara pra quem venderia poderia usar o relógio e se

sentir como o apresentador feliz que sempre está cercado de mulheres seminuas em

seu programa.”. Não é passível de críticas a atitude e a ação do personagem, é um

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dado corriqueiro e cotidiano. Sendo assim, é desta forma que Ferréz apresenta o

relato do momento do assalto: “O correria decidiu agir. Passou, parou, intimou,

levou.” Não cabem grandes elucubrações, juízos morais e críticas. Com a utilização

de apenas quatro verbos o autor descreve o ato para após sentenciar: “No final das

contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso,

que é sua vida, e o correria ficou com o relógio. Não vejo motivo pra reclamação,

afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.”

O texto de Ferréz obteve grande repercussão e resultou em uma ação judicial

movida pelo Ministério Público de São Paulo contra o autor, acusando-o de apologia

ao crime. Segundo a argumentação do órgão, Ferréz apresenta no seu texto – que é

uma narrativa ficcional – uma série de elementos que se coadunam com uma postura

apologética a atos criminosos. De acordo com o próprio autor, em texto publicado em

seu blog, seu depoimento prestado na Delegacia de Polícia centrava sua defesa na

afirmação de que “eram culpados todos os escritores de ficção que li até hoje, como

por exemplo Machado de Assis, Hesse, Gorki, Graciliano Ramos e etc. Afinal, fazer

literatura é um crime que todos nós cometemos juntos.”15. A postura assumida pelo

Ministério Público, talvez influenciado pelos interesses de sujeitos que se sentiram

agredidos pelo texto de Ferréz, revela um elemento instigante na construção da

recepção da obra do autor. Posto que, conforme explicitei anteriormente, grande parte

da crítica que se debruça sobre a produção contemporânea de sujeitos oriundos de

bairros populares no afã de avaliarem o texto literário a partir da presença de

elementos biográficos. Lêem o ficcional com os olhos voltados para um dado factual.

Tal modo de leitura é, em certa medida, resultante da própria postura assumida pelos

produtores do discurso, influenciando de forma decisiva a recepção de sua obra e o

posicionamento crítico frente ao texto ficcional. A reincidente afirmação de que os

elementos presentes no texto são fruto do real factual, uma recolha de histórias e

eventos de determinada localidade, transforma o produto literário em uma colcha de

retalhos que impede discernir com propriedade estes dois elementos. No entanto, não

se trata de declarar que o autor se tornou vitima de sua própria construção. A

15 Disponível em ferrez.blogspot.com/2008_06_01_archive.html. Acessado em 11 de setembro de 2008.

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denúncia, a aceitação do processo e o julgamento de Ferréz são alguns dos episódios

de uma trama kafkaniana movida pelos elementos mais vis de nossa sociedade. Nela

localizamos facilmente o preconceito social que impulsiona o exame da causa

julgada. Pois, como o próprio Ferréz observa: “Agora cabe a mim, explicar a minha

família, que um texto [meu] fez eu ganhar uma mancha na minha vida, e explicar

também que outro texto (o do Luciano Huck) que disse que esperava a ajuda do

Capitão Nascimento, fazendo alusão a justiceiros, sequer foi mencionado.” “Um peso

e duas medidas”, como sentencia o dito popular, é a expressão que melhor define o

caso, servindo como referência de análise para destacar o tratamento dado ao caso.

Mas, em sentido oposto, também é possível identificar as diferentes vozes que se

ergueram em defesa do autor, auxiliando-o no enfrentamento do processo judicial. O

Jornal Folha de São Paulo, neste caso assumindo uma obrigação, uma vez que o

texto foi publicado em suas páginas, destacou um jornalista para acompanhar o caso

enquanto testemunha de defesa. Além deste, amigos, ativistas sociais e intelectuais

ofereceram apoio ao escritor e depuseram em sua defesa. É relevante destacar o

préstimo oferecido16 por Idelber Avelar, crítico literário que leciona em

16 Informação apresentada por Ferréz em seu blog, em texto publicado em 12/09/2008. Reproduzo

abaixo o texto integral, disponível em http://ferrez.blogspot.com/2008/09/mais-fora-no-caso-da-apologia.html , acessado em 14/09/2009.

Mais força no caso da apologia. Fala, Ferrez! É o seguinte, vou ser rápido. Sou Doutor em Literatura Latino-Americana pela Duke University, nos States, e professor na Tulane University, na cidade de Nova Orleans. Escrevi alguns livros sobre literatura. Estou mandando este email para me oferecer para depor a seu favor no processo que o MP está movendo contra você. Acompanho seu trabalho, sua obra, e tenho experiência com esse tipo de acusação. Vou deixar uns links se você quiser saber mais sobre mim. Minha página na Tulane University é esta aqui: http://www.tulane.edu/~spanport/avelar.htmMeu blog é este aqui: http://idelberavelar.com Estou nos EUA, mas pego um avião aqui, com meu dinheiro, e vou depor na hora que você quiser. É só avisar. Se quiser, pode colocar seu advogado em contato comigo também. Um abração, força e fé, Idelber Idelber, agradeço de coração, a caminhada continua, obrigado pela solidariedade, os baratos vem de onde não se espera mesmo, e agente muitas vezes não sabe o tamanho do coração de pessoas que não conhecemos, mas que acompanham nossa caminhada, isso é pra provar que não é tudo inimizade e solidão, temos muitos por nós também. Ferréz

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Departamentos de Literatura e Cultura de universidades americanas, que se dispôs a

ser testemunha de defesa no caso. A relevância desta oferta de apoio repousa no

empenho que o crítico dispensa ao caso, chegando, inclusive, a sugerir que os custos

provenientes do deslocamento entre os Estados Unidos e Brasil ficariam a seu cargo.

O caso ainda não foi julgado. Mas, tudo leva a crer que o autor será absolvido.

Mesmo que ocorra um desfecho contrário, a pena em casos semelhantes tende a ser a

prestação de serviços comunitários. Triste ironia, o escritor engajado, símbolo de uma

ação de transformação social através da literatura e reconhecido pela sua constante

atuação em defesa de movimentos sociais independentes, poderá ter como pena a

prestação de um serviço que já realiza há tempos.

5.2 Allan Santos da Rosa

Se na análise que realizei de Ferréz busquei relacionar aspectos de sua

biografia com sua obra literária, traçando uma leitura não apenas da sua produção,

mas igualmente de sua atuação política em diferentes mecanismos de intervenção

social, o mesmo procedimento será adotado em relação a Allan Santos da Rosa.

Dessa forma, tão importante quanto saber que o autor já “trabalhou com feirante,

office-boy, operário em indústria plástica, vendedor de incensos, livros, churros,

seguros e jazigos de cemitério” – como nos informa trecho de sua apresentação

biográfica, no livro Da Cabula – é fundamental também saber que ele é Graduado em

História pela Universidade de São Paulo e Mestre em Educação pela mesma

Universidade. Estes dados não podem ser tomados a partir de um princípio

hierárquico, mesmo que tenham sido organizados por mim como elementos opostos.

Tal separação rígida é proposital e baseia-se em um senso comum que concebe um

valor de distinção às atividades profissionais regidas pelo conhecimento acadêmico e

pela formação de nível superior. Não causa espanto este tipo de concepção, haja vista

que a própria estrutura educacional brasileira utiliza como nomenclatura e

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classificação uma espécie de escala que institucionaliza tal fundamento: Ensino

Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior.

Dito isto, poderia iniciar um percurso de análise baseada na trajetória de vida

do autor enumerando sua produção com comentários pertinentes acerca de sua

qualidade literária e concluiria que Allan Santos da Rosa é um dos poucos autores

que conseguiu romper as amarras de uma sociedade desigual e produziu importantes

textos ficcionais. Não irei fazer isso. Se, por ventura, trilhasse este caminho, o

resultado seria um exercício crítico que entraria em conflito com a toda a obra do

autor e, principalmente, com a intencionalidade explícita que seus textos trazem. Pois,

mesmo que a sociedade tenda a separar de forma rígida e hierárquica os saberes e as

ocupações profissionais, Allan Santos da Rosa aponta através de sua escrita e de suas

propostas de intervenção social e política para um tratamento diferenciado destas

questões. É na escrita do autor que se casam e entrelaçam o saber que se quer popular

e o dito conhecimento acadêmico. Ambos entram na roda, gingam uma dança bailada

e saem tripudiando dos doutores que insistem em afirmar que aqui, ali e acolá, não há

a produção de saberes. Estes lugares pobres, de chão de terra, de moleques-pés-

descalços, de zoeira de mãe ranhando da bagunça, Santos da Rosa visita com destreza

e mergulha na própria palavra que irrompe de bocas esfomeadas.

Na multifacetada produção literária do autor, que congrega poesia, prosa e

dramaturgia, o elemento de união é um tratamento da linguagem dotado de um ritmo

habilmente construído que se firma na busca por uma forma de expressão que traz em

seu bojo o desejo de contato com uma fala dita popular. Este exercício não se baseia

na simples coleta de expressões que povoam as franjas urbanas dos grandes centros,

mas, sim, no constante anseio de produzir uma forma de representação que seja capaz

de alcançar tal expressão oral. Com um manejo peculiar da linguagem e buscando

uma aproximação com as manifestações culturais da periferia, Allan não produz uma

literatura engajada em sua forma enunciativa, com apelos pedagógicos claros e

definidos.

Tal postura assumida na escrita do autor pode ser observada também na

criação da Edições Toró, uma editora independente destinada à publicação de autores

de periferia. Criada em 2005, a Edições Toró já publicou 15 livros entre poesia,

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contos, dramaturgia e romance. Em comum, todos as publicações são assinadas por

autores residentes em bairros não centrais e possuem como tema preferencial o

cotidiano da periferia. No alto do sítio eletrônico da editora -

http://www.edicoestoro.net/ - temos a postagem um verso que oferece algumas pistas

sobre a editora: “Despenca toró, despenca. Lágrima safada, suor cabreiro, saliva

calorenta.”. Os livros podem ser tomados como gotas de uma enxurrada crescente que

avança em passos firmes na direção de um tratamento específico da arte, trazendo nas

palavras as cores de um engajamento político local. Nas palavras de Allan Santos da

Rosa, o nome do projeto “vem da chuva que alaga ruas e barracos e porque chegou a

hora de fazer chover livros”. Este depoimento foi recolhido da reportagem publicada

na Revista Época, em 18 de setembro de 2007. Nesta mesma reportagem o autor

apresenta uma instigante definição e destino dos livros lançados pela editora: “livro

pra quem não sabe ler”. Apesar do aparente paradoxo, as publicações editadas pela

Toró favorecem este objetivo. Os títulos lançados, sem exceção, recebem um

tratamento editorial específico, provocando um diálogo entre a forma de apresentação

e o plano temático, resultando na criação de uma identidade própria para cada livro.

Além disto, há um formato artesanal que orienta a concepção dos livros, tornando-os

exemplares únicos. Mesmo que a reprodução das páginas dos exemplares seja técnica

e industrial, a tipologia empregada, na maioria das vezes, é oriunda da caligrafia de

Silvio Diogo. A originalidade deste projeto editorial utiliza a ousadia como fuga da

falta de recursos e torna o livro um objeto mais próximo do público-alvo da editora.

O livro, enquanto objeto, fica mais próximo

do público desejado.

A imagem ao lado foi recolhida do

livro Um presente para o gueto, do Fuzzil,

lançado em 2007. Nela é possível identificar

algumas das características do projeto gráfico

e editorial mencionadas anteriormente. Além

disto, este livro tem como diferencial o fato

de todos exemplares serem acompanhados por

giz de cera, criando uma espécie de convite à

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intervenção do leitor no próprio livro. O resultado deste convite transforma a

publicação em uma obra que se quer aberta ao diálogo com o leitor, favorecendo a

interferência deste. Para tanto, a diagramação das páginas foi realizada com o intento

de oferecer espaços a serem preenchidos e ocupados pelo próprio leitor.

Ao lado temos a reprodução de uma página do livro Vão, de Allan Santos da

Rosa, lançado em 2005, a primeira publicação da

editora. Na imagem é possível observar a

utilização da caligrafia de Silvio Diogo como

tipografia, recurso que será repetido de diferentes

formas em outras publicações. Nesta imagem

também é possível identificarmos a utilização da

tipologia típica do grafite, arte gráfica que

compõe a cultura Hip-Hop, no título do poema.

Aos não iniciados, a grafia altamente estilizada,

acentuando o efeito itálico, torna a leitura do

termo quase impossível. Mas, devemos lembrar o

instigante intento da Editora, ela se destina a

produzir livros para pessoas que não sabem ler.

Ou seja, tem como público alvo um grupo específico que dialoga com outras formas

de leitura e detentora de outros códigos interpretativos. O grafite, forma artística

predominante nas ruas dos grandes centos urbanos, passa a ocupar um lugar de

destaque na publicação, favorecendo a identificação entre o público leitor esperado –

leia-se os jovens de periferia – e o livro – objeto e produto ainda pouco difundido nos

becos e vielas.

Pela Edições Toró, Allan Santos da Rosa publicou Vão(2005), Da

Cabula(2006) e Morada(2007), sendo que Da Cabula foi publicado posteriormente

pela Global Editora na Coleção Literatura Periférica. Além destes, o autor também

assina Gazaia(2007), texto infato-juvenil, lançado pela DCL. Neste livro, em forma

de cordel, a rima contundente de Allan Santos da Rosa explora toda a dimensão da

periferia, produzindo um olhar pontual sobre os diversos problemas sociais que

atingem seus residentes com uma poética singular. O objetivo do projeto é facilmente

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perceptível: apresentar para o público infanto-juvenil uma narrativa que concilia os

principais elementos formadores das manifestações culturais presentes na periferia

em sua estrutura formal ao abordar a trajetória de uma família migrante sob a ótica de

um jovem. Dessa forma, as sextilhas dos mestres cordelistas da tradição nordestina –

ou seja, a estrutura rítmica dos versos em seis estrofes – é a forma estética adotada

para dar vida a um jovem negro que trava constantemente contato com manifestações

da cultura negra, como a capoeira. É importante ressaltar que o cordel está presente

não apenas na linguagem utilizada pelo autor, mas, igualmente, nas ilustrações.

Utilizando tinta nanquim sobre papel, o ilustrador Marcelo D’Salete produz desenhos

que se assemelham com as tradicionais xilogravuras do cordel. Resulta deste

complexo empreendimento estético uma obra que visa formar o leitor infanto-juvenil

não apenas no plano narrativo, mas, igualmente, na apresentação de elementos

culturais muitas vezes negligenciados e esquecidos.

Tal qual seus pares factuais, o personagem título é um jovem negro residente

em uma favela que enfrenta desde tenra idade as dificuldades provenientes de uma

sociedade desigual. Residindo em Diadema, filho de presidiário, o menino passa seus

dias nas brincadeiras de rua e travando contato com as armadilhas da periferia:

Pros bacanas ceguetas Garotos são marginais Correndo atrás de pipa Competindo com pardais Bolso vazio sem vintém Alvo de dicas mortais Crime é caminho fácil Da rua para o ringue Vem garruchas e metrancas No lugar do estilingue Da fantasia pro fatal Às vezes nem se distingue (Rosa, 2007, p.6)

Mas, o menino Zagaia não é engolido pela perversa máquina que assola as

periferias urbanas do Brasil. E, novamente reproduzindo uma cena da realidade, o

protagonista ainda criança começa a trabalhar como feirante. Sofrendo com o

preconceito do patrão, abandona o emprego e coleciona uma série de outras

atividades:

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Passou por outros perreios Carrancas dando esporro Serviu mesa, deu panfleto Costurou meia e gorro Mas dentro algo atazanando Algo pedia socorro Zagaia então concluiu: Patrão é sempre urubu Observando lá de cima O contratado jururu Que dá vigor e saúde Comendo como gabiru (Idem, p. 17)

Após a constatação da exploração, Zagaia decide tentar a sorte na capital. São

Paulo surge como um espaço de desolação e abandono. Em suas andanças pela cidade

percebe toda a sorte de contradição e desigualdade:

Gente com dez agasalhos Outros sem lençol nem fronha Doutor falando difícil Só embromando pamonha Meninas de doze, treze Esperando a cegonha

Viu mansões com coberturas Portas de pau e tramelas A tevê tão leviana Seus arranjos e seqüelas Viu fiéis clamar por Deus Não largando suas velas. (Idem, p. 23)

A periferia surge como cenário de uma história que não é singular, mas, ao

contrário, é encenada cotidianamente nas margens da sociedade. Zagaia é claramente

retirado de um dado real factual e transposto para as páginas ficcionais com o intento

de favorecer a identificação dos leitores. É possível estabelecer um paralelo entre esta

proposta de literatura com as tendências pedagógicas mais liberais, sobretudo com o

pensamento do educador Paulo Freire, pois nos dois casos observamos uma indicação

de intervenção social através do texto, tendo como fio condutor o debate e a

discussão da realidade social que cerca os jovens, resultando na formação dos sujeitos

da periferia através de saberes populares muitas vezes não abordados em publicações

do gênero. A análise de Maria Tereza Carneiro Lemos, no estudo “A (de)missão do

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161

intelectual”, apresenta de forma clara a postura dos autores da Literatura Marginal em

relação à cultura da periferia:

Esses grupos à margem são localmente enraizados e orgânicos, e mantendo relações de simbiose com o entorno imediato, criam também relações cotidianas que desenvolvem espontaneamente e à contracorrente, uma cultura própria, resistente, constituindo um alicerce para a produção de uma política. (Lemos, 2007, p. 126)

As práticas sociais e culturais periféricas apresentam uma particularidade em

sua atuação política. Por não estarem no centro, este discurso é dotado de uma

autonomia própria adquirida pela legitimidade proveniente de uma postura

independente, conquistada a duras penas pela situação de escassez e abandono em

que vivem essas comunidades. A liberdade e a criatividade, nesse sentido, é fruto da

posição de contestação da fala hegemônica.

Estar fora do centro também favorece a construção de um novo ponto de

observação – “o olhar de dentro” como corriqueiramente é denominado – que

favorece a emergência de uma representação própria que, em alguns casos, entra em

choque com o olhar produzido pelo sujeito não pertencente ao espaço. Morada, livro

assinado por Allan Santos da Rosa em co-autoria com fotógrafo Guma, é um exemplo

bem sucedido deste “olhar de dentro”. O livro, como o próprio Santos da Rosa define,

“é de fotos. Texto é mero convidado. A nutrição do livro é a luz natural, o equilíbrio

gingante da lente de Guma.”(Rosa e Guma, p. 11, 2007). Mas, parafraseando o autor,

o livro é de fotos e o texto é um convidado que estabelece um precioso diálogo com

estas. Texto e foto produzem um exame poético da destreza arquitetônica dos mestres

de obras que equilibram com tijolo e cimento o abrigo dos sonhos de uma infinidade

de homens, mulheres e crianças que habitam as franjas urbanas dos grandes centros

urbanos. Na publicação, é literalmente o “olhar de dentro” que guia o leitor em uma

visita às casas, adentrando não a intimidade dos moradores, mas o interior de um

espaço que constantemente é representado pelo “olhar de fora” como resultado direto

de uma condição econômica vulnerável.

As lentes de Guma capturam a relação que os moradores possuem com suas

casas, pondo em evidência os pequenos gestos e as marcas deixadas pelas mãos que

as construíram e ordenaram. O movimento é expansivo, não se fixa nos interiores,

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caminha junto aos residentes percorrendo os becos e vielas, ladeiras e descampados,

córregos e pontes armadas. A morada passa a ser também o espaço de fora da

residência, as ruelas apinhadas, a conversa no portão, o zigue-zague de crianças e a

zueira de rádiotelevisão: a rua. Pois, como observa Marcos Alvito em relação às

favelas do Rio de Janeiro,

embora seja verdade que todo espaço habitado pelo homem é um produto socialmente construído, no caso da favela isto assume uma dimensão radical. É um espaço que não somente foi construído pelo homem – termo genérico que nos bairros de classe média designa organizações privadas, como as construtoras, ou governamentais, como a companhia de eletricidade – mas também, (...)pelos homens que lá habitam, com suas própria mãos, lentamente, durante anos. Uma casa de dois pavimentos pode ser a síntese de 30, 40 anos de trabalho, enquanto o apartamento onde morro é, para mim, apenas uma escolha de acordo com minha preferências e possibilidade.(Alvito, 2001, p. 69)

A leitura de Marcos Alvito, mesmo centrada nas favelas do Rio de Janeiro,

estabelece um diálogo oportuno com a proposta de leitura apresentada no livro de

Santos da Rosa e Guma. Tanto o antropólogo quanto os autores buscam evidenciar

um aspecto intrínseco do território dos bairros periféricos e favelas brasileiras no

tocante à forma de ocupação destes. Tudo, os becos labirínticos, o emaranhado de

fios elétricos, o nó nos canos d’água, tudo isso e mais as casas, casebres e barracos

foram durante anos e anos sendo construídos, erguidos e arrumados pelos moradores

que lá residem. A casa, símbolo maior de proteção familiar em qualquer classe social,

nesses bairros é um investimento pensado, fruto do trabalho árduo e cotidiano: uma

poupança equilibrada em tijolos e cimento. Não são raros os casos em que o próprio

proprietário é o responsável pela construção, fazendo o duplo papel de morador e

mestre-de-obras, definindo ele mesmo a estrutura da casa e a dimensão dos cômodos.

A imagem aparentemente caótica, reveladora de uma visível precariedade urbana e

arquitetônica se compararmos com o ordenamento dos bairros abastados dos centros

urbanos, resulta diretamente do trabalho coletivo de seus moradores. Tal diferença

serviu de mote para a constante classificação destes territórios marginalizados como

elementos estranhos à urbe. Seja a favela labiríntica ou o conjunto habitacional que

perde seu ordenamento original a partir da intervenção de cada morador (batendo

uma laje, fazendo um puxadinho ou abrindo uma fresta na parede pra brisa entrar),

estes locais são espaços em transformação, pulsando a vida dos que lá residem. Um

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visitante pouco familiarizado pode assustar-se com a feição deste resultado. É de

Zuenir Ventura, em Cidade partida, uma definição que entra em completo choque

com a proposta do livro de Santos da Rosa e Guma. Na narração de sua primeira

visita à favela de Vigário Geral, localidade que o jornalista visitou durante os meses

de pesquisa e apuração para a publicação do livro, Zuenir estranha a proximidade

física que o local possui do Centro e a sua distância social: “A meia hora da zona sul,

a trinta quilômetros do centro do Rio, eu estava em outro mundo”(Ventura, 1994, p.

55). Forma-se uma hierarquia entre espaços, na qual o centro surge como referência e

padrão de um tipo de ocupação do solo que deve ser replicado em diferentes partes da

cidade. A análise de Zuenir, “o olhar de fora”, tem como principal movimento

comparar as duas realidades, assustando-se com a precariedade do local visitado:

“Nessa parte central da favela predominam casas de alvenaria; os barracos ali são

raros. Mas as paredes de tijolos aparentes, sem acabamento, dão a impressão de um

bairro inacabado”(Idem, idem). De fato é um bairro inacabado, em processo, cuja

montagem e feitura fica subordinada a possibilidade de recursos dos próprios

residentes. Na leitura de Zuenir Ventura, a falta de “uma mão de tinta”, ou um

“reboco pra selar a infiltração”, ofusca a “parede erguida” e “laje batida”.

A relação que estes moradores possuem com as casas é pautada pela

liberdade, como observa Santos da Rosa no ensaio de abertura do livro: “Morar nas

bordas da cidade é sonhar abrir uma birosca na entrada, colada no portão. Planejar um

comércinho pra aliviar a carga, remediar a prata.”(Rosa, op. cit., s/p). Dessa liberdade

e invenção é construída não apenas a morada, mas uma afinidade própria com o

território/espaço.

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Como pergunta Santos da Rosa, “O sangue, em cartório se lavra?”. A questão,

resultante da licença poética do autor em diálogo com a imagem capturada e

enquadrada por Guma, sempre irá resultar em uma negativa. Não, somos inclinados a

responder, não há contratos que possam equivaler ao pertencimento construído pelo

paulatino esforço do erguer muros, abrir janelas e pregar portas.

Poesia e fotografia travam uma conversa que tematiza o cotidiano destes

moradores. Texto e imagem tentam enlaçar o dado intrínseco desta realidade,

focalizando não a miséria, mas a ginga dançada para se esquivar dela. No entanto,

sabemos que nem tudo são flores. Pois, morar nas franjas da cidade também

é a zonzeira e o necrotério dos pronto-socorros, açougues de avental branco, com três vigias pra cada médico. É tremer a bela chuva, com esgoto transbordando e se exalando, se convidando pra visitar o mocó. O bueiro metralhando as narinas. Há quem chegue a passar o papel higiênico no ar, querendo limpar a brisa. Córguinhos: a saliva cariada da cidade. Aluga alaga aluga alaga. Tábua, tomba, tauba, taba.(Idem, s/p)

O trecho acima foi retirado do ensaio de abertura, assinado por Santos da

Rosa. Nele o autor faz referência à constante visita das viaturas policiais nestes

bairros, aos alagamentos e às valas a céu aberto, elementos típicos de inúmeras

favelas e bairros de subúrbio. Estes dados não são omitidos, mas foram preteridos

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pelo olhar dos autores. É uma escolha que determina toda a publicação. Não se trata

de omitir estes dados, mas de buscar oferecer um tratamento diferenciado. Não há a

denúncia ou uma crítica social centrada na produção de um paralelismo entre os

bairros ricos e os territórios periféricos. Ao contrário, fotografias e textos ficam

fixados na margem urbana para lançar luzes sobre os elementos de positivação destes

locais.

Esta forma de representar a periferia pode ser tomada como uma característica

da obra de Allan Santos da Rosa, que o coloca na contra-mão de uma enxurrada de

obras literárias de autores marginais que tematizam a violência através de uma

denúncia. Os contos “Chão” e “Pérola”, publicados na coletânea Literatura marginal:

talentos da periferia, organizada por Ferréz, podem ser tomados como exemplos

disto. Ambos textos ficcionais demarcam cenas de um cotidiano inspirado na

periferia sem, no entanto, assumirem um tom abertamente pedagógico ou doutrinário.

Na publicação, os dois contos quando colocados lado a lado com outros escritos de

autores marginais surgem como elementos de dissonância, instaurando uma ruptura

com o modelo majoritário da Literatura Marginal. Pois, mesmo que o cenário das

narrativas seja a periferia e os personagens marginalizados, a forma como este

cenário se abre para o trânsito dos protagonistas é visivelmente diversa.

Em “Pérola”, conto que narra o trajeto de uma mãe até presídio em que seu

filho está preso, talvez seja o melhor exemplo deste modo de representar pouco usual

entre os autores periféricos. Em poucas páginas Santos da Rosa pontua com uma série

de metáforas a angústia e a ansiedade desta mulher, lançando uma perspectiva que

busca a aproximação da matéria narrada, tornando-a ainda mais humana.

A noite de sexta pra tantos é de balada, de TV, de samba. Pra Pérola é de trampo e expectativa. Sacola nova que semana passada a de lona arrembentou. Trinta cruzeiros de nicotina. O cascalho faz falta mas deixa-lo sem guarida não rima com seu instinto. Salada de cenoura, peixe e um bolo de fubá...que é preferência dele desde de pequeno. Já virou meia-noite, o lance é dormir umas quatro horas , antes de levantar e embarrigar a pia, servir as cumbucas de plástico e embrulhar sem miséria. Ainda decidir se tem apetite pra levar aquilo. “Como o safado teve coragem de me pedir isso?” Deitar que amanhã é dia de sorrisos salgados, na CDP 1 de Osasco.(Rosa, 2005, p. 95)

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O narrador não estabelece julgamentos, assim como não cabe formar um

exame sobre o que determinou a prisão do personagem. Interessa apenas oferecer a

perpectiva de Pérola. O detento, personagem também central da narrativa, só é focado

pelos olhos da mãe. O movimento construído fica centrado no exame desta relação

familiar. Mas, há um efeito de suspensão, um dado fica latente. A indefinição da

personagem em atender a um pedido do filho, e principalmente censurar tal pedido,

movimenta toda a narrativa. Dessa forma, o conto passa a ser estruturado pelo

percurso da personagem no trajeto de sua casa até o presídio e pelas recorrentes

referências ao pedido do filho. Seguindo a personagem somos levados a um caminho

próprio, percorrido por uma infinidade de outras mulheres: “Terceiro busão. As

meninas lá no fundo, que se conhece da espera, da chuva, da dor gêmea, desse

estopim no peito que nunca estoura.”(Idem, idem). É com este movimento de leveza

ao descrever o peso de uma rotina marcada pela aflição de ter um ente preso que

Santos da Rosa descreve as muitas paradas da “Via Crúcis” de Pérola. Através da

personagem passamos a conhecer o mundo que se forma em torno do presídio:

“Pérola chega, dá abraços, faz um tempo e vai comer alguma coisa no mercado das

kombis remendadas, capengas apoiadas nos botijões, das brasílias e dos chevettes.

Cafés, lanchinhos. Aluga-se sutiã, chinelo, calça, vestido: dois e cinqüenta

cada.”(Idem, ibidem). De dentro das grades o tom empregado na descrição se torna

mais seco, conciso: “Lentamente, avançam. Chega o momento de cruzar a primeira

tranca, mas ainda não há alegria. (...) A revista no cômodo gelado: senhoras, moças,

crianças. Nuas. Serão três cocorinhas”(Idem, p. 98) Conforme adentra os corredores e

passa pelas revistas, Pérola fica cada vez mais apreensiva. O segredo pode ser

descoberto a qualquer momento. O pedido do filho, algo censurável, será revelado.

Falta pouco para o esperado encontro, mas antes é necessário a revista íntima: “A

terceira abaixada e o pânico. Eletricidade bufando, chamando nas veias, no preso da

respirada, na cabeça tonelada. Mas nada sai da vagina. “Podem levantar”.

Alívio.”(idem, Idem). O segredo é parcialmente revelado, ela leva algo para o filho

no interior de seu corpo. Se há críticas morais e julgamentos sobre o pedido do filho,

estes ficam a cargo da própria protagonista, que em uma atitude dúbia, semelhante a

qualquer mãe, acaba cedendo frente à insistência do filho. O narrador apenas informa

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tais posturas e posicionamentos, mantendo-se também isento de um olhar mais crítico

sobre a conduta dos personagens. Mas o alívio dura pouco, pois, encerrando o conto,

temos a descrição de uma última imagem: “No primeiro clac da tranca de repente

toca o aparelho, cantando dentro da mulher”(Idem, Ibidem). É este o fechamento do

conto, tornando o dado oculto como elemento central da narrativa. Tal encerramento

incide na criação de um efeito de suspensão que possibilita especular o que ocorreu

com a personagem após o celular tocar dentro de seu corpo e perguntar qual o destino

dela depois de descoberto seu plano? O silêncio que impera no final do conto não

limita a fabulação sobre o ocorrido, mas impede que o narrador conduza a descrição

de um evento que favoreceria a construção de um exame moralizante do episódio. A

inexistência de uma descrição destes elementos em sua conformação pormenorizada

favorece que a denúncia receba um novo tratamento, tornando-a ainda mais cáustica.

Santos da Rosa trata dos aspectos relacionados a um cotidiano marcado pela

desigualdade social e dominado por situações de vulnerabilidade sem construir uma

denúncia social que almeja conscientizar o leitor através de um apelo direto a uma

intervenção na realidade retratada. Tal característica pode ser facilmente observada na

peça Da Cabula – Istória pa tiatru, publicada pela Edições Toró, em 2006, e

posteriormente lançada na Coleção Literatura Periférica da Editora Global, em 2008.

A peça, que ainda não teve uma montagem completa, narra a história de uma

empregada doméstica, Filomena da Cabula, que após se demitir do trabalho, em

virtude do patrão negar auxílio ao seu desejo de se alfabetizar, passa a trabalhar

como camelô no Centro de São Paulo. Neste texto, Santos da Rosa apresenta uma

série de simbolismos para representar o cotidiano de uma personagem que trava uma

batalha inglória para conseguir conciliar seu trabalho árduo e cansativo com as tarefas

escolares que recebe no curso de alfabetização. Em um único ato, dividido em 13

cenas, o autor articula uma série de indícios e significados sobre a condição de

vulnerabilidade desta personagem negra e idosa.

No entanto, antes de iniciar a leitura da peça torna-se rentável observar a

relação que tal produção literária mantém com a produção acadêmica do autor. Uma

vez que o tema central de Da Cabula é a alfabetização de jovens e adultos, tema que

também norteou a pesquisa de Mestrado de Allan Santos da Rosa que resultou na

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Dissertação: Imaginário, Corpo e Caneta: Matriz Afro-brasileira em Educação de

Jovens e Adultos, defendida em 2009. Neste estudo, o autor busca investigar como se

dá a relação entre a matriz afro-brasileira e o processo de Educação de Jovens e

Adultos, observando os possíveis diálogos entre um saber ancestral e a cultura letrada

apresentada nos bancos escolares. Com esta questão norteadora, Santos da Rosa

acompanhou as aulas e ministrou diversas oficinas no CIEJA (Centro de Integração e

Educação de Jovens e Adultos) Campo Limpo, debatendo com o corpo docente e

estudantes a vivência e a memória negra no Brasil, com o desejo de entender mais

sobre as

brechas e seivas da razão sensível, do pensamento racional que se nutre dos outros adubos e colheitas que o corpo como um todo oferece, pralém do monopólio da mente, essa que é dádiva e sanha nossa, mas juntando o namoro dela com os sentidos, com a mitologia, com a experiência.(Rosa, 2009, p. 12)

A peça, nesse sentido, passou a influenciar de forma decisiva o trabalho

acadêmico, servindo de leitmov intelectual para a pesquisa. Em Da Cabula

abundam letras que refletem elementos e vivências sentidos em sala de aula em EJA e que se entrelaçam a objetivos muito semelhantes que trouxe para meus estudos na pós-graduação: compreender e alimentar as abordagens educativas que considerem a força de elementos importantíssimos na história da população afro-brasileira e que podem ser de contribuição inestimável para toda a população que se enreda pelas instituições escolares.(Idem, p. 11)

Mais do que buscar determinar qual olhar emergiu primeiro ao se debruçar

sobre o tema - se o acadêmico influenciado pelos estudos de pós-graduação ou o

poético que coloriu com sutileza o cotidiano de uma personagem negra analfabeta –

resgatar a fala do autor sobre a contribuição que sua obra literária exerceu sobre seu

trabalho acadêmico nos auxilia analisar a obra.

A começar pela escolha do nome da personagem, Filomena da Cabula, temos

uma referência direta a uma ancestralidade afro-brasileira. De acordo com Nei Lopes,

em Kitabu – o livro do saber e do espírito negro-africanos, Cabula “é uma confraria

de irmãos devotados à invocação das almas, de cada um dos kimbula, os espíritos

congos que metem medo. Também se dedica à comunicação com eles por meio da

kambula, o desfalecimento, a síncope, o transe enfim.” (Lopes, 2005, p. 248).

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Filomena é integrante desta confraria, participa deste ritual religioso que evoca um

espírito através do qual se comunica. No entanto, a comunicação entre personagem e

entidade ocorre de forma diferenciada na ficção de Santos da Rosa. Não é um rito que

conclama o espírito, ou a síncope que favorece o transe, mas é o desfalecimento. A

entrega do corpo da personagem à entidade ocorre quando esta adormece sobre o

caderno escolar. A cena se repete diversas vezes na peça, Filomena chega cansada do

trabalho e tenta iniciar os exercícios passados por sua professora. Sentada, com a

lição amparada em uma pequena mesa, a personagem luta para se concentrar.

Entregue à exaustão, ela adormece e entra em cena uma nova personagem, Flores

Vermelhas, uma entidade que passa a escrever em um gigantesco papiro as palavras

que escaparam de Filomena. A personagem repete em diferença o mesmo gesto que

seus ancestrais realizaram em tempos não muito remotos, devota a uma entidade a

possibilidade de comunicação entre mundos. Através de Flores Vermelhas, Filomena

passa a transitar entre o mundo dos letrados, mesmo estando ainda com os pés

fincados em um mundo sem letras. A utilização de uma pedra de búzios como na

encadernação da primeira edição, publicada pela Edições Toró, reforça a presença da

temática da religiosidade afro-brasileira na peça. O Búzios, peça de um ritual

divinatório presente em diferentes religiões africanas e da diáspora negra, surge na

capa como um amuleto que estrutura a publicação, dando ao livro um suporte

diferenciado. Sua presença não é apenas um acréscimo que ornamenta a apresentação

do livro, mas, sim, é um elemento que entra em diálogo com a estrutura textual da

obra de Santos da Rosa.

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Conforme mencionei anteriormente, o tema central da peça é o desejo da

personagem alfabetizar-se, dominar a linguagem escrita e poder transitar com

desenvoltura em um mundo controlado por estes signos. A primeira Cena registra o

momento em que os patrões de Filomena debatem sobre esse desejo. Calvino, o

patrão, descrito como grande incentivador da cultura brasileira, expõe sua opinião

após a esposa revelar a vontade que a empregada possui em saber soletrar a palavras:

Adelaide – Calvino, ela quer aprender a ler, quer saber de contrato, viajar em estória, em livro. (O marido mastiga, tom de desdém, fala alto, quer ser ouvido lá longe por Filomena.) Calvino – Como era o nome daquele barão?...Duque?...Que cozinhou as orelhas do escravo fujão...Ca...não, esse era outro. Como que chamava mesmo?...Ah, tu não sabes de nada, fica só de novelinha e butique. Não se interessa pelo conhecimento, pela cultura. (Enche a boca com nova garfada.) Deixa, nome é detalhe. Teve um amigo de vovô, papai que contou: o negão lá queria ler, essa mesma conversa aí...Ele arrancou as pálpebras do cabra, faca afiadinha, não mandou ninguém, não: foi e fez...Ué, não queria ver a luz? Então, ficou arregalado noite e dia.(Rosa, 2008, p. 22).

A partir da fala do patrão de Filomena, o autor instaura uma fissura entre

classes. O resgate da história de um escravo que desejava ser alfabetizado e teve

como punição ficar “arregalado noite e dia” – imagem dominada por simbolismos –

possibilita compreender em qual posição social o autor busca retratar a personagem.

Inconformada com a postura do patrão, Filomena decide pedir demissão. Sem

trabalho e sem residência, a personagem fecha a compra de uma casa em um bairro

de periferia e passa a trabalhar como camelô no centro de São Paulo. Tal mudança é

saudada pela personagem como uma espécie de alforria.

Anteontem a professora ditou sobre as negras forras: saíam da coleira do dono, compravam a própria liberdade e depois a alforria do marido e da filharada. Falou que elas tramavam quilombos na rua, vendendo tudo quanto é coisa, comida no tabuleiro... Eu sou uma negra forra?... É, pelo menos já larguei a íngua daquela casa-grande...(Idem, p.35).

Entre os autores da Literatura Marginal é recorrente o estabelecimento de uma

comparação entre a escravidão e a condição de marginalidade que os negros sofrem

na contemporaneidade. No entanto, em Allan Santos da Rosa a busca por esta

similitude é diferenciada, ocorrendo através de uma fala da própria personagem. É

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Filomena quem traça os paralelos entre sua condição e a das negras forras,

identificando as possíveis semelhanças. O discurso, neste caso, assume um outro

feitio, não é uma denúncia de uma situação de vulnerabilidade social que busca

amparo em uma estrutura social do passado, mas, sim, é a própria construção

identitária da personagem que se fixa em um modelo de resistência ancestral.

Filomena questiona se ela própria pode ser uma negra forra, tentando primeiro

compreender seu lugar social. Ela não encontra uma resposta assertiva, mas destaca

que ao menos já cumpriu o primeiro ritual para ser uma negra forra: abandonou “a

íngua daquela casa-grande”.

Mas, o texto de Santos da Rosa não estabelece apenas o movimento de retorno

ao passado para a compreensão do presente. Mesmo que a ancestralidade seja um

signo marcante na peça, através de diferentes cenas temos a inserção de um olhar

específico acerca da periferia em sua conformação contemporânea. As elaboradas

demarcações que o autor apresenta ao longo do texto teatral revelam, além da visível

preocupação em coordenar a encenação da peça, sua percepção sobre a cidade e,

especificamente, acerca da vida nos bairros periféricos de um grande centro urbano.

Principalmente nas cenas em que Filomena retorna do trabalho, temos a descrição

pontual das características físicas e sociais do bairro da personagem, indicando com

detalhes o transitar dos passantes, o alarido de vozes e o emaranhado de casas:

Rua da casa de Filomena. Cansadíssima, Filomena se arrasta para sua casa. Caminha entre rapazes jogando bola, que param a movimentação para ela passar. Anda entre postes repletos de pipas e fitilhos, entre moças e senhoras paradas no portão, entre sinuqueiros de boteco. Lua cheia desponta no alto. (Idem, p. 39)

No trecho acima é possível observar com mais clareza a destreza da

linguagem de Santos da Rosa nas diversas marcações que apresenta. O estilo

fragmentado, indicando aspectos de forma isolada, índices que reunidos apresentam

um mosaico que congrega personagens e gestos próprios de um bairro de periferia, é

resultante primeiramente da necessidade de montar a cena. No entanto, o autor busca

também um tratamento da marcação que possibilite a visualização do narrado,

recorrendo a mecanismos literários que se sustentam na prosa, dotando de cores a

descrição da cena. Recurso semelhante pode ser observado no trecho abaixo:

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Rua da casa de Filomena. Postes e fios elétricos repletos de pipas e rabiolas. Rapaziada com chaves de fenda mexe em motos e automóvel, testando barulhos mais e mais potentes. Um boteco com um pagode malemolente e gente batendo dominó. Moças sapateando, bebendo cerveja e ligadas nos moços das motos. Um homem passa com buzina de mão e cesto anunciado cocadas, sem ganhar atenção. Passa uma patrulha militar, lerda, encarando a todos, bem devagar. Acenam discretos pras moças, oferecem escolta e pra impressionar saem em disparada repentina, cantando pneus.(Idem, p. 47)

De modo semelhante, o autor pulveriza em cena uma série marcações que

almejam dar conta da realidade social de um bairro periférico. Os postes com pipas

presas, os ruídos da rua, a movimentação de pessoas nos bares, as vizinhas no pé da

porta e a visita de uma viatura policial, são esses os elementos que compõem um

cenário inspirado em uma rua de uma localidade marginalizada. Visualizar este

turbilhão de personagens, ações e sons em um palco é uma tarefa delicada, tornando-

se quase impossível encenar as marcações que o autor indica no texto. Mas, por outro

lado, podemos ler Da Cabula como uma novela, retirando do texto teatral a

obrigatoriedade de sua encenação. Por este novo viés, será possível debruçar-se sobre

o exame da própria linguagem do autor, destacando a forma como o mesmo descreve

o cenário e, principalmente, realiza os apontamentos acerca dos movimentos do

bairro em que Filomena reside. Tal possibilidade de leitura não resulta apenas da

impossibilidade de encenação da cena descrita, mas, igualmente, da forma como o

autor pontua as marcações, lançando mão de uma prosa poética fragmentada. Ou seja,

mesmo quando temos as marcações de uma cena com poucos personagens e fixada na

descrição de um episódio específico, o texto de Santos da Rosa se torna poético. A

Cena 8, que retrata Filomena se deparando com o corpo de um jovem negro estirado

na rua de sua casa, apresenta este dado com mais força. Abre a cena uma marcação

direcionada à personagem: “Canto de galo. Na rua, Filomena caminha com seu

brochura e com uma marmita debaixo do braço”. Em poucas linhas o autor determina

com precisão a temporalidade em que a cena ocorre. Em seguida, temos a

apresentação de um monólogo: “Filomena – Bem embaladinha, forrada com muito

jornal e pano de prato, pra não esfriar e nem vazar minha mistura.”. O início é

corriqueiro, um dado do cotidiano da personagem que reforça a sua condição social.

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Após, o texto apresenta outra marcação, agora com a descrição do cenário e do

encontro de Filomena com o corpo de um jovem negro:

Na vila, ao fundo, o cenário é de postes com pipas enroladas nos fios. Pessoas caminhando rumo ao serviço, ao ponto de ônibus. Filomena se depara com um cadáver adolescente, negro, estirado no chão. Duas pessoas já tinham passado por cima do rapazinho sem lhe dar atenção. Uma outra parou, se benzeu e logo se retirou. Filomena se curva sobre o menino. Filomena – Inda dá pra ver a vontade de sorrir do moleque...isso aqui é buraco de bala...ó o tamaninho da criança...não devia chegar nem no meu cotovelo. (Filomena chora. Vai pro ponto de ônibus. Fala alto) Filomena – Ê rinha tirana, essa vida...Filomena da Cabula devia era lançar lá na Dadivosa uma banca funerária, vender caixão.

A aparente tranqüilidade do início da cena é desfeita pelo encontro com o

corpo do jovem. Se alguns passantes mostram tranquilidade com o episódio, não

dando atenção ao fato de um cadáver estar estirado no chão, Filomena se curva sobre

o menino. A personagem busca analisar o rosto do jovem e fica chocada com a pouca

idade do mesmo.

A reação de Filomena em relação ao ocorrido transita entre a indignação e o

sarcasmo, duas características peculiares da mesma. Santos da Rosa construiu uma

personagem complexa, que apresenta um humor caustico na abordagem das

diferenças e desigualdades sociais. As falas da personagem são sustentadas em um

difícil exercício de elaboração da linguagem que não repousa na simples transferência

dos elementos da oralidade para o texto teatral, mas, sim, na formação de um

experimento que possibilite que Filomena possa se expressar sem a utilização de

recursos que denotem sua posição social. A Cena 5, que apresenta um monólogo da

personagem em conflito com as regras lingüísticas, reforça este aspecto:

Filomena – E essas regras humilhando?...Vou entender nunca...Só serve pra arrochar com a cabeça da gente. Se escrevo “as faca” não tá na cara que é mais de uma faca? Já tô falando “as”. Mas não, tem que meter um S lá no fim da outra palavra, obrigação de complicar. E as letra?! Tem cada praga indecisa: já vim H? Tem vez que silencia, fica lá só de enfeite. Outra hora vem e chia. Depois chega rouco. Dobra a língua. Vich...Nem comento do J e do G, do X, do C...Vou tentar não passar do chão da linha, não tremer o lápis.(Idem, p. 40)

O trecho acima coloca em relevo a atuação do autor enquanto alfabetizador e

pesquisador na área de educação, ofertando à personagem uma possibilidade de fala

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174

que expresse sua relação com a escrita. O monólogo proporciona uma compreensão

das regras gramaticais a partir de uma nova percepção. Com um humor refinado, a

cena debate um choque de saberes. A leitura introduzida pela personagem apresenta

uma perspectiva crítica que se fundamenta em um saber popular e não letrado. A não

aceitação das regras, “essas regras que humilham”, não é apenas um dado que reflete

a dificuldade de Filomena em transitar por um mundo de códigos diferenciados. Tal

recusa e crítica revelam a interstício entre o saber letrado e o conhecimento popular,

criando uma espécie de fissura entre dois pólos quase antagônicos. Conciliar estes

espaços, o acadêmico/letrado e o popular/marginalizado é um dos objetivos do

trabalho de Santos da Rosa. Ao nos debruçarmos sobre seus escritos, ações e estudos,

podemos afirmar que se o autor tem obtido êxito. Mesmo ainda existindo

antagonismo entre estes saberes, textos como Da Cabula, Morada e a própria Edições

Toró podem ser tomados elos de ligação entre eles.

5.3 Sérgio Vaz

Geoge Yúdice, em A conveniência da cultura, traça uma instigante análise

acerca da diversificado papel que a cultura pode assumir no mundo contemporâneo,

podendo ser utilizada como produto mercadológico, espaço de investimento

financeiro do setor empresarial e, até mesmo, como mecanismo de integração social

de populações marginalizadas. Em relação a este último uso da cultura, o autor

apresenta uma série de exemplos que corroboram com sua premissa, na qual indica

que um espaço de mobilizição social e cultural pode ser determinante para a criação

de uma nova estrutura urbana em territórios antes marcados pela desagregação

territorial. Dois casos em especial chamam a atenção de Yúdice, o primeiro é Bilbao,

cidade espanhola desgastada pela falência do modelo estrutural pós-industrial e pela

recorrente associação que a cidade possui com o terrorismo. De acordo com o autor,

líderes empresariais e o poder municipal somaram esforços para a criação de um

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175

plano de revitalização urbano fundado em uma infra-estrutural cultural que teria

como ponta de lança a instalação do Museu Guggenhim.

Ao investir num museus com a marca distintitva da grandiosidade estilística de Frank Gehry, os líderes da cidade instalaram o magnetismo necessário para atrair atividades que “dariam vida”, citando a frase de Manuel Castells: “Justamente com a inovação tecnológica, uma extraordinária atividade urbana emergiu (...) fortalecendo a tessitura social de bares, restaurantes, encontros casuais na rua etc. Que dão vida ao lugar”(Yúdice, 2006, p. 39)

O outro exemplo é recolhido da realidade brasileira e trata da criação do

Grupo Cultural Oludum em Salvador, na Bahia. Na leitura de Yúdice, movimento

semelhante foi observado no processo de revitalização do Pelourinho, local histórico

de tráfico de escravos que foi transformado em uma espécie de centro cultural a céu

aberto e espaço central do turismo na cidade. Ambos exemplos apresentam como

característica principal a utilização da cultura como válvula motriz no processo de

revitalização de espaços urbanos tido/lidos como deteriorados. Contudo, no caso

específico do Pelourinho, o desenvolvimento cultural que envolveu o famoso grupo

musical afro-brasileiro resultou no irônico deslocamento dos antigos residentes

pobres que habitavam as ladeiras que foram despejados e transferidos para a periferia

da cidade.

De uma forma ou de outra, em ambos os casos temos a utilização de

mecanismos culturais em espaços urbanos específicos que serviram como pontos de

irradiação para a construção de uma nova identidade. Seja em Bilbao que passou a

exibir seu status de cidade que dialoga o arrojamento arquitetônico impulsionado pela

instalação do Museus Guggenheim com a tradição de um mobiliário que traz as

marcas de seu passado, ou no Pelourinho que exalta as tradições afro-brasileiras

através da música e da culinária, a cultura se faz presente como elemento formador de

uma nova visualidade para a cidade.

Os saraus literários realizados em um bar de periferia, na divisa entre as

cidades de São Paulo e Taboão da Serra, podem ser lidos nesta mesma clave, na qual

a cultura emerge como ferramenta para a produção de renovação da localidade.

Nesse sentido, a Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), criada por Sérgio Vaz,

a exemplo das iniciativas citadas acima, também é uma iniciativa que almeja criar

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176

uma nova identidade para um espaço marcado pela deterioração urbana. Além disso,

a utilização de um bar como palco dos eventos que o grupo organiza semanalmente

deve ser analisado como um ato de apropriação que dialoga de forma direta com o

mobiliário urbano do em torno imediato. O bar, conhecido como Bar do Zé Batidão,

se transforma em um Centro Cultural que recebe todas noites de quarta-feira um

considerável número de visitantes que se aglutinam para ler, ouvir e sentir poesia. A

atitude demonstra uma forma de atuação política do grupo que utiliza como estratégia

de ação as ferramentas disponíveis. Ao transformar o Bar do Zé Batidão em Centro

Cultural, a Cooperifa revela uma proposta de intervenção política e cultural que busca

uma ligação com a própria localidade.

O Sarau é uma iniciativa que remonta o ano de 2001, quando Sérgio Vaz em

parceria com outros poetas e amigos organizaram um evento tinha como finalidade a

criação de um espaço em que poetas pudessem ler seus escritos. No início, como nos

conta o próprio autor, o grupo não tinha muita clareza do que significava um Sarau:

Enquanto discutíamos sobre o assunto surgiu a palavra sarau, e ninguém sabe por que, até porque a palavra era estranha a todos nós. Acho que todos já tinham ouvido esta palavra, mas conhecer o significado a fundo, acho que ninguém conhecia. Outro dia eu li que no Brasil, entre o final do século XIX e no início do século XX, o sarau era o evento mais elegante da sociedade e só os seres iluminados que tinham gosto por música e literatura e que não precisavam se preocupar com dinheiro, podiam se dar ao luxo de promovê-lo em seus amplos e belos salões. (...) Sem saber de nada disso, eu e o Pezão, numa fria noite de outubro de 2001, criamos na senzala moderna chamada periferia o Sarau da Cooperifa, o movimento que anos mais tarde iria se tornar um dos maiores e mais respeitados quilombos culturais deste país. (Vaz, 2008, p. 89)

Na apresentação de Sérgio Vaz, o Sarau da Cooperifa assume uma função

social específica, o espaço de confraternização de poetas e leitores é associado a um

local de resistência, um quilombo cultural. Esta definição revela um sentido político

mais amplo, indicando o evento como um pólo de construção cultural que almeja

dialogar diretamente com uma memória coletiva.

Contudo, mesmo que ação desenvolvida pelo poeta seja emoldurada por uma

postura política ativa, que assume uma feição de resistência através da prática

cultural, o objetivo do grupo não é a criação de um espaço pedagógico voltado para o

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177

resgate de jovens. Tal postura assumida fica mais clara na justificativa que Sérgio

Vaz oferece para a realização de Saraus na Fundação C.A.S.A. (Fundação Centro de

Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), órgão ligado à Secretaria de Estado e

da Defesa da Cidadania do Governo de São Paulo que substituiu a antiga Fundação

Estadual de Bem Estar do Menor (FEBEM):

Povo lindo, povo inteligente, Dias atrás fui fazer umas oficinas/poesias na Fundação Casa (Unidade de Abaeté), dentro do projeto Arte na Casa, coordenado pela Ação Educativa que foi uma das experiências poéticas mais bacana que já tive: a poesia atravessando muros. E a coisa foi tão impactante que nesta segunda-feira os internos e os funcionários vão fazer um sarau nos módulos I e II com poemas produzidos por eles. Não é da hora? Desta vez vou apenas como convidado para assistir o milagre da poesia, mas se deixarem também quero ler um poema e comungar a palavra que anda se espalhando em nossos corações. A Poesia não salva, mas também não mata, e se não liberta, pelo menos ilumina. Eu que sou poeta e vivo no banco dos réus, não tenho moral pra julgar ninguém, e acredito que no Brasil já tenha juízes demais, e infelizmente, justiça de menos. Não vou mudar o mundo, mas o mundo também não vai me mudar. Muito amor, Sérgio Vaz Vira-lata da literatura17

A postura assumida por Vaz rompe com a recorrente utilização da cultura

como mecanismo de intervenção social que possibilita o resgate de jovens em

conflito com a lei ou em situação de vulnerabilidade social. Nos grandes centros

urbanos do Brasil são incontáveis as iniciativas de Organizações Não

Governamentais, ou até mesmo de Programas vinculados a Órgãos Governamentais,

que apresentam diferentes projetos sociais que utilizam a cultura como proposta de

intervenção para “salvar as crianças e jovens” da criminalidade. Seja através da

música, da dança ou da leitura, ou até mesmo do esporte, tais ações apresentam como

premissa a ideia de que seu público alvo, as crianças e adolescentes marginalizados,

estão a um passo do ingresso nas diversas manifestações que a violência urbana pode

assumir. E, dessa forma, a oferta de programas e projetos culturais apresentam uma

17Disponível em http://colecionadordepedras.blogspot.com:80/2009/03/sarau-na-fundacao-casa.html. Acessado em 11 de outubro de 2009.

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saída, são uma possibilidade de resgate social desta significativa parcela da

sociedade. A leitura e justificativa apresentada por Sérgio Vaz aponta para outra

direção. De acordo com o poeta, a realização de um Sarau dentro dos muros de uma

casa que abriga adolescentes em conflito com a lei não tem como objetivo “salvar” os

participantes. Busca-se com a iniciativa a oferta de uma nova visão de mundo, uma

vez que a literatura “não salva, mas também não mata, e se não liberta, pelo menos

ilumina”. Adentrar os muros da Fundação CASA, que em muitos aspectos se

assemelha a um cárcere, e ler poesias para um grupo de adolescentes que estão

privados de sua liberdade passa a ser lido como um ato que busca valorizar o grupo e

trabalhar a auto-estima dos jovens, criando mecanismos para que eles possam se

expressar através do texto poético. Não se objetiva com isso a formação de novos

poetas, mas, sim, a utilização da poesia como forma de expressão em um grupo

silenciado pelos muros.

A postura assumida por Sérgio Vaz ecoa em diferentes grupos culturais da

periferia que também concebem a criação de iniciativas culturais voltadas

especialmente para jovens de áreas periféricas como ações que objetivam a

valorização da identidade e não apenas como forma de resgate social do público

atendido. Em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, com o título que

reproduz a fala de um jovem ator de periferia “Teatro não é ‘Projeto Social de

Resgate’”, no dia 18 de outubro de 2008, Pierre Santos, integrante do Nós do Morro,

apresenta um discurso que sintetiza a posição assumida pelo grupo teatral do qual faz

parte: “Uma coisa que sempre me incomodou é que o jornalista já vai nos entrevistar

sabendo o que quer ouvir. Por exemplo, que, se eu não fosse do teatro, seria do bicho

(integrante do comércio varejista de drogas)”. A posição do jovem ator rompe com a

leitura dominante que estes projetos recebem da mídia, identificando tais ações como

propostas de resgate da cidadania. A crítica a este tipo de leitura objetiva obliterar a

noção paternalista que orienta a recepção das ações culturais destes grupos e

favorecer a constituição de uma análise dos resultados a partir do mérito artístico. O

teatro, a poesia e a música, nesse sentido, não são vistos como mecanismos de

redenção dos jovens, mas, sim, como instrumentos de profissionalização e expressão,

como define Eugênio Lima, integrante do grupo teatral Bartolomeu: “Nosso discurso

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é pela auto-representação, pela legitimidade na encenação. Eu não outorgo a ninguém

o direito de contar a minha história. Ninguém vai contar para mim o que é que eu

sinto, o que é ser negro em São Paulo.”

Auto-representação, este é o objetivo da Cooperifa, criar mecanismos para que

os sujeitos marginalizados que participam dos saraus possam se expressar através da

poesia. Soma-se a isto um importante trabalho de construção identitária e valorização

da auto-estima que tem como base uma espécie de lema que é entoado na abertura do

sarau: “Povo lindo, povo inteligente”. Por mais simples que seja a saudação de

abertura, expressões que o próprio Sérgio Vaz utiliza como abertura de seus textos

publicados no blog, a definição criada pelos participantes do evento ataca de modo

frontal o olhar preconceituoso que se direciona à margem. Contra a argumentação de

que nas periferias reside uma massa feia e que necessita da oferta de conhecimento,

os poetas da periferia gritam que são membros de um povo lindo e inteligente.

Tais aspectos reunidos apontam para a construção de um olhar que busca

valorizar a periferia e trabalhar a auto-estima dos participantes, como define Vaz:

Um dos nossos maiores orgulhos não é a formação de novos poetas e escritores, mas a formação de novos leitores escritores. Gente que se apegue ao livro pelo prazer da leitura e ao fortalecimento do senso crítico, não como um meio de vida. E através desse conhecimento adquirir coragem e humildade para voltar à escola, ou ingressar nas universidades, como muitos fizeram na Cooperifa.(Vaz, op.cit., p.168)

A valorização da auto-estima repousa também na criação de estratégias de

reconhecimento do próprio grupo, como o Prêmio Cooperifa, que tem como

finalidade prestigiar os poetas, mas que também “se estendesse para pessoas da

comunidade e para todos aqueles que direta ou indiretamente ajudassem a periferia a

se tornar um lugar melhor para viver.”(Idem, p. 184).

Não apenas o sarau desempenha a função de valorização da auto-estima, a

própria poesia de Vaz apresenta este mesmo aspecto. Seus poemas, que em sua

grande maioria podem ser classificados como aforismos, revelam a presença de um

poeta que tangencia entre a escrita engajada e a reflexão sobre cenas do cotidiano. Os

textos, nesse sentido, não possuem como tema central a periferia e tão pouco são

baseados em uma denúncia da situação de desigualdade social. Mesmo que estejam

presentes em sua poesia questões relativas à violência, racismo e marginalização,

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180

Sérgio Vaz também versa sobre questões relativas à vida conjugal, elege musas de

inspiração e se debruça sobre aspectos que não estão relacionados diretamente à

periferia, resultando em uma obra múltipla. Em Colecionador de pedras, livro que

reúne a produção do autor ao longo de vinte anos, tal característica fica mais evidente

ao congregar textos com temas díspares em uma mesma publicação. No entanto,

quando aborda as questões sociais relativas à periferia, o autor apresenta um humor

peculiar, como em “Viagem”:

Quatro jovens Morreram na chacina Do fim da rua. Conforme a notícias, Dois deles tinham passagem. Os outros dois Foram assim mesmo... Clandestinamente.(Vaz, 2007, p. 62)

A utilização da ironia e a inserção de um dado inesperado que instaura um

novo rumo no poema também podem observados em “Pé de pato”:

Bruno matou a mãe matou o pai os irmãos os avós os vizinhos. Matou todo mundo de saudade Quando foi pra faculdade(Idem, p. 92)

A escrita de Vaz é claramente orientada pela poesia modernista,

predominando o verso livre. Além disso, o autor apresenta diferentes citações e

referências a poetas do nosso modernismo, como Carlos Drummond de Andrade,

Manoel Bandeira e Cecília Meireles. O próprio título da publicação, “Colecionador

de pedras”, pode ser lido como uma homenagem ao clássico poema “No meio do

caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. O poeta periférico, seguindo os passos

do poeta canônico, também se depara com pedras no meio de seu caminho e a melhor

alternativa é colecioná-las. O cânone da poesia brasileira surge como inspiração do

poeta e também como objeto de homenagem, como podemos identificar no poema

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“Banquete lírico”, um pequeno jogo com ar infantil que relaciona o desejo de

consumir poesia à vontade de comer:

Ontem faminto Almocei um livro de Neruda Com molho lírico à Cecília, Bebi toda a poesia do Quintana E, de sobremesa, Drummond – delícia! Ainda belisquei uns sonetos do Vinícius Enquanto esperava o jantar, Clairce. De nada adiantou: A fome só fez aumentar. (Vaz, 2007, p.41)

No entanto, a maior aproximação que o autor ensaia com a tradição literária é

a realização da Semana de Arte Moderna da Periferia, com uma explicita alusão à

Semana de 22. O evento, organizado em novembro de 2007, reforça o caráter de

apropriação cultural do grupo e a busca de uma relação dialógica entre as

manifestações culturais marginalizadas

com as hegemônicas. A noção norteadora

da Semana é a criação de um espaço para

a veiculação das produções culturais de

artistas da periferia dentro da própria

periferia. Em semelhança à Semana de 22,

o material de divulgação do evento

também se baseia na apresentação de uma

árvore. Mas, a apropriação que o grupo

realiza do símbolo insere uma sutil

diferença, no lugar da árvore seca e com

poucos galhos, como criado por Di

Cavalcanti, os artistas periféricos

apresentam um baobá frondoso e repleto

de frutos. A utilização do vermelho para demarcar os frutos favorece uma associação

ao sangue, símbolo máximo da violência urbana que assombra as periferias. De uma

forma ou de outra, a imagem do cartaz dialoga diretamente com o sentido que o

evento buscava ofertar às manifestações culturais da periferia, compreendendo estes

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182

espaços marginalizados como pólos de uma rica produção cultural que recebe pouca

visibilidade.

Pastiche e apropriação, esses são os conceitos que podem ser utilizados para

interpretar o evento. Pois, conforme explica Sérgio Vaz, o grupo reunido na

idealização e realização da Semana tinha como principal norte a postura política e

artística assumida pelos intelectuais paulistas de 1922: “comer a arte enlatada

produzida pelo mercado que nos enfiam goela abaixo, e vomitar uma nova versão

dela, só que desta vez na versão da periferia. Sem exotismos, mas carregada de

engajamento”(Vaz, 2008, p. 235). O sentido antropofágico ainda se faz presente e

surge como ato norteador da postura dos artistas, mas o diálogo que se almeja

estabelecer é outro. Para os poetas da Cooperifa não é a relação entre a cultura

nacional e a cosmopolita que emerge como elemento de debate do fazer artístico. Ao

contrário, o foco se torna local e possui um endereço específico: os bairros

marginalizados, as ladeiras das favelas e os conjuntos habitacionais. A antropofagia

irá orientar o contato desse artista periférico, oriundos destes espaços, com a arte

produzida no centro.

Além da proposta de evento e da utilização da antropofagia como conceito

norteador das ações, Sérgio Vaz também produziu um Manifesto da Antropofagia

Periférica. Em semelhança aos documentos elaborados por grupos de vanguarda, o

texto assinado pelo coordenador da Cooperifa também é baseado no tom assertivo

direcionado em dois movimentos: a favor e contra.

Manifesto da Antropofagia periférica A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros. A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula. Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha. A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.

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183

Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do cinema real que transmite ilusão. Das Artes Plásticas, que, de concreto, quer substituir os barracos de madeiras. Da Dança que desafoga no lago dos cisnes. Da Música que não embala os adormecidos. Da Literatura das ruas despertando nas calçadas. A Periferia unida, no centro de todas as coisas. Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala. Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala. É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que armado da verdade, por si só exercita a revolução. Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona. Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural. Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado. Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles ? “Me ame pra nós!”. Contra os carrascos e as vítimas do sistema. Contra os covardes e eruditos de aquário. Contra o artista serviçal escravo da vaidade. Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada. A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor. É TUDO NOSSO! Sérgio Vaz Cooperifa (Vaz, 2008, 246-250)

A antropofagia oswaldiana é agora reeditada, mas repetida em diferença. Na

versão periférica do Manifesto não cabe para interrogar: “Tupi or not tupi - This is the

question”. Pois, não é ponto de debate aventurar-se no questionamento sobre a

linguagem e a acomodação de ideias e propostas estéticas em solo nacional. No

entanto, Sérgio Vaz realiza uma espécie de homenagem a este trecho do Manifesto

assinado por Oswald ao escrever: “Miami pra eles? “Me ame pra nós!”. O jogo que o

autor estabelece é semelhante ao movimento criado por Oswald, ambos utilizam

princípios de uma tradução cultural para reforçarem os aspectos que defendem em

seus manifestos. Sérgio Vaz aponta sua crítica ao consumo de uma cultura e de uma

arte pausterizada e enlatada, sem engajamento.

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184

No Manifesto é possível identificar o desejo de compreensão da cultura

popular, ou melhor, a periférica, por parte destes autores da margem. Predomina neste

aspecto uma percepção essencialista da cultura, observando os artistas de periferia

enquanto produtores uma arte própria, não contaminada pelas estruturas

hegemônicas. Além disso, a escrita, o fazer literário, assume uma feição política de

intervenção direta na realidade social e cultural. “A Arte que liberta não pode vir da

mão que escraviza.”, a sentença, presente duas vezes no Manifesto, reafirma o claro

intento em elaborar uma arte engajada e, principalmente, fora dos espaços

hegemônicos de poder, local por excelência do predomínio das forças políticas que

atiraram estes poetas periféricos à margem.

“Ser Poeta não é escrever poemas, é ser poesia”, escreve Sérgio Vaz. Esta é

uma das melhores definições que podemos oferecer ao próprio Sérgio Vaz. Seu

trabalho apresenta uma interessante combinação de ativismo social e criação literária,

no qual estes aspectos estão intrinsecamente ligados. Sua postura política é crítica e

assertiva ao denunciar a marginalização cultural que atinge a massa residente nos

bairros pobres de São Paulo, mas, por outro lado, sua escrita poética, combinada com

os projetos que desenvolve, revela um posicionamento romântico em suas ações,

indicando nos pequenos gestos a concretização de uma grande mudança. O simples

ato de enviar aos céus um pequeno fragmento poético preso em um balão de gás, na

visão de Sérgio Vaz, é o ato máximo de liberdade da escrita e de contato da poesia

com o público. Este pequeno gesto repetido por cinco centenas de pessoas em frente a

um bar de periferia pode também orientar uma nova visão sobre a vida das pessoas

que lá residem. “A poesia no ar”, nome que essa performance recebeu, corta um céu

negro no movimento de expansão de um grupo de poetas que faz parte de um “Povo

lindo” e de um “Povo inteligente”, como destaca Vaz: “A poesia no ar é só o aviso

que o nosso pequeno exército marcha corajosamente sobre a terra, contra tudo e

contra todos, mas sem esquecer o sorriso no rosto e os punhos cerrados. Somos nós

por nós”(Idem, p. 227).

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185

3.4

Marcelino Freire (uma possibilidade)

“Um jabuti do povo”, assim é saudado Marcelino Freire na primeira página do

jornal Boletim do Kaos, publicação idealizada e coordenada por Alessandro Buzo,

fazendo uma referência ao Prêmio Jabuti concedido ao autor no ano de 2006, na

categoria Conto por Contos Negreiros. A denominação dada pelo jornal, uma

publicação mensal destinada a veiculação de matérias sobre literatura e cultura da

periferia, busca uma aproximação do escritor pernambucano aos espaços

marginalizados. Importante reforçar que o intento da manchete não é forçoso e que de

fato Marcelino Freire trilhou um percurso de produção que se assemelha aos dos

autores da Literatura Marginal. Esta espécie de homenagem ao autor não fica restrita

apenas ao jornal editado por Alessandro Buzo. Podemos destacar também o Prêmio

Cooperifa lhe foi concedido pelos poetas participantes do Sarau da Cooperifa, sarau

este que Marcelino frequenta com certa regularidade. Estes dados podem ser vistos

como pontos de interseção entre autor e os escritores periféricos, que apontam para

uma possível similitude que é reforçada pela recorrente declaração do próprio

Marcelino Freire ao afirmar que também é “Literatura Marginal”. Ou seja, também

faz parte desta filia que se firma enquanto movimento literário no desejo de inserção

em um espaço tradicionalmente ocupado por uma elite letrada.

Tal desejo de afirmar uma semelhança é facilmente observado na escolha do

plano temático dos contos de Marcelino Freire, que de forma freqüente aborda

personagens e ambientes recolhidos de um cotidiano marcado pela marginalização.

No entanto tal proximidade se restringe ao plano temático, as formas adotadas pelo

autor para dar vida aos seus personagens marginais podem ser tomadas possibilidades

que apontam em um sentido inverso. O exemplo mais profícuo para pensarmos nestas

diferenças é o livro Contos negreiros.

Sem propor mocinhos e vilões explicitamente, Marcelino Freire compõe um

sarcástico mosaico de nossa sociedade ao focar personagens negros em seu livro

Contos negreiros, publicado em 2005. Através de seus dezesseis contos – ou cantos,

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186

como o próprio autor os denomina – travamos contato com breves relatos, quase

instantâneos, que revelam a situação de exclusão vivenciada por uma parcela

significativa de nossa população. O olhar de Marcelino Freire privilegia a encenação

dos conflitos sociais, avultados pelo recorte racial, nos espaços simbólicos centrais. O

conto “Curso Superior”, no qual um jovem negro narra seu temor ao ingressar na

universidade, pode ser tomado como exemplo deste empenho em construir uma

observação da situação do negro em uma espaço antagônico, revelando contrastes e

diferenças:

O meu medo é entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom de matemática fraco no inglês eu que nunca gostei de química geografia e português o que é que eu faço agora hein mãe não sei.

O meu medo é o preconceito e o professor ficar me perguntando o tempo inteiro por que eu não passei por eu não passei por que eu fiquei olhando aquela loira gostosa o que é que eu faço se ela me der bola hein mãe não sei.(Freire, 2005b, 97)

O discurso do personagem se estrutura na afirmação de uma diferença que

potencializa o preconceito e a exclusão. O que se denuncia é justamente a não

diluição destas marcas. Ou seja, independentemente do espaço e do lugar ocupado,

este personagem sempre será segregado, como o término do conto evidencia:

O meu medo é a situação piorar e eu não conseguir arranjar emprego nem de faxineiro nem de porteiro nem de ajudante de pedreiro e o pessoal dizer que o governo já fez o que pôde já pôde o que fez já deu sua cota de participação hein mãe não sei.

O meu medo é que mesmo com diploma debaixo do braço andando por aí desiludido e desempregado o policial me olhe de cara feia e eu acabe fazendo uma burrice sei lá uma besteira será que eu vou ter direito a uma cela especial hein mãe não sei. (ibidem, 98)

A forma adotada por Marcelino Freire para encenar estas convergências entre

espaços e culturas rompe com a opção de construção de um reflexo mimético das

situações cotidianas, prevalecendo o enlevo de uma escrita marcada pela

musicalidade de uma oralidade negra. É igualmente nesta clave que Freire propõe a

denominação de seus escritos como Cantos, estabelecendo uma referência à forma

rítmica de sua escrita, como podemos observar no fragmento abaixo:

Zé, essa é boa. O que danado a gente vai fazer em Lisboa? Bariloche e Shangri-lá? Traslados para lá. Para cá. Travessia de barco pelos Lagos

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Andinos? Nunca tinha ouvido falar em Viña Del Mar. Valparaíso. A gente não devia sair do lugar.

Quem já viu se aventurar na Ilha do Cipó? Ilha do Marajó? Itacaré? Fugir de dentada de jacaré? O que você quer, homem? Sem dinheiro, chegar aonde? Não tem sentido. Oklahoma, nos Estados Unidos. É delírio. Peregrinar até as múmias do Egito (Freire, op.cit, 67).

O trecho compõe o início do conto/canto “Caderno de Turismo”. Nele

podemos observar a tentativa do autor em estruturar um texto em prosa que possua a

cadência de uma escrita poética com uma métrica regular. A oralidade ganha ares de

musicalidade, o canto surge como única maneira de expressar um cotidiano

protagonizado por personagens historicamente excluídos do domínio da escrita.

Marcelino Freire adota uma linguagem que reflete e realça a presença do negro em

nossa cultura, conciliando no exercício da escrita a musicalidade popular com a

cultura letrada. Ou seja, o autor aceita e apropria-se da convenção que concebe a

música como uma forma genuína de expressão deste grupo. No entanto, não se trata

de construir um discurso essencialista da cultura, mas, sim, de oferecer ao negro

novas formas de resistência. Em Contos negreiros, presenciamos a busca do autor por

uma alteridade através da forma narrativa e da linguagem. Aos personagens de Freire

parece ter restado somente a possibilidade de cantar, narrar:

Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar para a mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta? (ibidem, 80).

O fragmento foi recolhido do conto/canto “Totonha”, nome da personagem

que estrutura um discurso centrado na negação à cultura letrada. Decerto, causa

estranheza chocar-se com uma fala que se opõe ao saber escolar, identificando-o

como um ato de subordinação. “Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O prefeito

que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber ler o que assinou. Eu é que não vou

baixar a minha cabeça para escrever. Ah, não vou (ibidem, 81).”

Não baixar a cabeça é resistir ao domínio de um saber branco? Manter-se fora

da cultura letrada é preservar um determinado saber ancestral? As respostas para estas

questões não são afiançadas pelo autor e muito menos pela personagem. Contudo, é

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perceptível a presença de uma dualidade, como podemos observar na passagem

abaixo, retirada do mesmo conto:

Capim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico? Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso.Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba? (ibidem, 79).

A forma adotada pelo autor para tematizar o conflito de saberes, privilegiando

o discurso direto, rompe com qualquer traço paternalista e, igualmente, não pode ser

caracterizado como simples denúncia. Presenciamos a criação de um discurso que se

sustenta na afirmação da diferença da personagem, seu analfabetismo ganha status de

resistência. Ao estruturar o conto a partir da fala da própria personagem, Freire

instaura uma nova dimensão do tema, oferecendo aos leitores uma percepção que se

quer próxima do objeto representado, neste caso, uma mulher negra que reside no

Vale do Jequitinhonha. A utilização do discurso direto visa alcançar o objeto, busca

representar este Outro a partir de seu próprio referencial. O processo de construção

discursiva de Freire almeja produzir uma fala que objetiva compreender as situações

narradas a partir da lógica do sujeito representado.

Recurso semelhante é adotado no conto/canto “Nação Zumbi”, texto que

relata a amargura de um homem ao ver desfeito o seu plano de vender o próprio rim.

“E o rim não é meu? Logo eu que ia ganhar dez mil, ia ganhar. Tinha até marcado

uma feijoada pra quando eu voltar, uma feijoada. (...) E o rim não é meu, saravá?

Quem me deu não foi Aquele-Lá-de-Cima, meu Deus, Jesus e Oxalá?”(ibidem, 53).

Ao focar a narrativa a partir do olhar do homem que deseja comercializar seus órgãos,

Marcelino Freire abandona os possíveis traços demagógicos que poderiam aflorar no

texto ficcional para, em seu lugar, formar uma outra compreensão para o evento

representado. Ou seja, somos levados a experimentar a situação desumana que é

narrada a partir da percepção do principal protagonista do ato. A opção por este foco

narrativo amplia a sensação de amargura presente no relato, posto que vivenciamos a

partir da leitura do relato a sensação de total exclusão sofrida pelo personagem.

Por que não cuidam eles deles, ora essa? O rim não é meu ou não é? Até um pé eu venderia e de muleta eu viveria. Na minha. Um olho enxerga pelos dois ou não enxerga? Se é pra livrar minha barriga da miséria até

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cego eu ficaria. Depois eu ia ali na ponte, ao meio-dia, ganhar mais dinheiro. Diria que foi um acidente, que esses buracos apareceram de repente, em cima do meu nariz. Quem quer ver a agonia de um doente, assim, infeliz, hein, companheiro?(ibidem, 54)

Na perspectiva adotada por Marcelino Freire, o corpo, este espaço exíguo de

exercício do poder, surge não apenas como uma moeda de troca comercial, mas,

principalmente, como uma esfera que reproduz estruturas sociais excludentes. Além

de tematizar uma situação de extrema miséria, o autor explora a falta de domínio do

personagem sobre o seu próprio corpo, oferecendo uma compreensão para o narrado

duplamente violenta, como podemos observar no desfecho do conto: “Meu rim ia

salvar uma vida, não ia salvar? Diz, não ia salvar? Perdi dez mil, e agora? A polícia

na minha porta, vindo pra cima de mim. Puta que pariu, que sufoco! De inveja, sei

que vão encher meu pobre rim de soco (ibidem, 55).”

Se a forma narrativa de Freire não favorece a construção de uma denúncia da

miséria sofrida por negros, o desfecho do conto faz emergir uma crítica maior que só

é perceptível por ser encenada por um discurso ficcional proferido pelo próprio

sujeito que a vivencia. A opção por utilizar o discurso direto em contos que

tematizam situações limites produzidas pela miséria é, de certa forma, recorrente em

Marcelino Freire. É perceptível o empenho do autor em estruturar um discurso que se

quer próximo do objeto, abandonando uma posição de observador para, em seu lugar,

experimentar, mesmo que de forma ficcional, a percepção dos sujeitos

marginalizados. No conto “Muribeca”, do livro Angu de Sangue, coletânea de contos

publicada em 2000, a utilização deste procedimento igualmente favorece a percepção

das condições de miséria e exclusão a partir da lógica do Outro. É nesta clave que o

autor narra o cotidiano de uma catadora de lixo assombrada com a possibilidade de

perder sua única fonte de renda: os restos retirados de um aterro sanitário.

Lixo? Lixo serve pra tudo. A gente encontra a mobília da casa, cadeira pra pôr uns pregos e ajeitar e sentar. Lixo pra poder ter sofá, costurado, cama, colchão. Até televisão.

É a vida da gente o lixão. E por que é que agora querem tirar ele da gente? O que é que eu vou dizer pra crianças? Que não tem mais brinquedo? Que acabou o calçado? Que não tem mais história, livro, desenho?

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E o meu marido, o que vai fazer? Nada? Como ele vai viver sem as garrafas, sem as latas, sem as caixas? Vai perambular pela rua, roubar pra comer? (Freire, 2005a, 23)

Expresso na excludente letra de fôrma, o discurso da personagem fere a

dignidade humana ao revelar aspectos degradantes da condição de miséria. No

entanto, como observa João Alexandre Barbosa,

Marcelino Freire evita traços demagógicos de uma denúncia porque o que se denuncia, a condição miserável de quem encontra no lixo uma estratégia de sobrevivência, não é um objeto distanciado, mas um mundo de atividades que se parecem com as humanas e por onde ainda é possível reconhecer a existência de seres que restaram por entre as desigualdades sociais (Barbosa, 2005, 14).

Na leitura de João Alexandre Barbosa, por não ser um objeto distanciado, a

personagem possibilita a compreensão da temática abordada no conto a partir do seu

olhar, chocando o leitor com a informação de que há uma complexa rede de

indivíduos que sobrevivem neste espaço de degradação.

Marcelino Freire, ao abandonar qualquer traço paternalista e demagógico,

assume uma postura crítica e almeja dotar de cores personagens e situações que

outrora se apresentavam de forma monocromática, quase estéril. Não se trata de se

colocar como porta voz de grupos minoritários, mas, sim, de aceitar o desafio de

estruturar um discurso que busque a aproximação com estes sujeitos esquecidos e

silenciados. Os contos de Freire, principalmente os que compõem o projeto Contos

negreiros, oferecem uma resposta afirmativa aos questionamentos elaborados por

Margery Fee, no artigo “Who can whrite as Other?”:

(...) podem os grupos majoritários falar como se fossem as minorias? Os brancos como se fossem negros ou pardos, os homens como se fossem mulheres, os intelectuais como se fossem operários? Caso afirmativo, como podemos diferenciar juízos preconceituosos e reacionários, generalizações aproveitadoras, romantizações pendendo ao estereotipo, tipificações indulgentes e visões imparciais e transformadoras? (1995, 242 – tradução nossa)

Ao evidenciar que qualquer fala sobre um grupo distinto significa, antes de

tudo, um posicionamento – negativo ou afirmativo – do intelectual frente à camada

que deseja representar, Margery Fee estabelece que a única forma possível de

alcançarmos estes sujeitos é através da oferta da faculdade discursiva, dando voz aos

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historicamente silenciados. A argumentação de Margery Fee se sustenta na

observação de que qualquer discurso acerca do Outro será estruturado a partir do

referencial do produtor do discurso.

No entanto, Fee se esquece de que é possível criar estratégias para transformar

estas subjetividades, que emergem através do ato discursivo, em principal

sustentáculo do processo de aproximação do produtor discursivo com o Outro a ser

representado. Este é o recurso utilizado por Marcelino Freire para abordar situações

limites da miséria a partir de um viés que se quer próximo ao objeto. O jogo

empreendido por Freire se baseia na constante tentativa de se colocar no lugar do

Outro.

O resultado deste desejo de mudança de foco é, de certa forma, a construção

de um texto que propõe um novo molde para as questões abordadas. O conto “Solar

dos Príncipes” é, talvez, um dos melhores exemplos deste jogo realizado pelo autor.

No conto, é narrada de forma irônica a tentativa, por parte de um grupo de moradores

do morro do Pavão, de realização de um documentário sobre a classe média. O grupo

abandona a silenciosa posição de objeto para, em seu lugar, assumir o papel de

produtores do discurso. Encenam, nesta perspectiva, um movimento semelhante ao de

diversos grupos culturais marginais - como Nós do Morro, Central Única das Favelas

e Observatório de Favelas. No entanto, a subversão de papéis é maior. Estes não

apenas assumem a própria voz discursiva, mas a apontam no sentido oposto, indo de

encontro a um espaço estranho a sua vivência. “Quatro negros e uma negra pararam

em frente deste prédio”(Freire, 2005b, 23) Não são mais os documentaristas de classe

média que ao subirem o morro nos revelam o Outro, e, sim, são os cineastas negros,

moradores do morro do Pavão, que almejam registrar o cotidiano da classe média. “A

idéia é entrar num apartamento do prédio, de supetão, e filmar, fazer uma entrevista

com o morador” (ibidem, 24). A proposta do grupo de cineastas negros é semelhante

a dos diversos documentaristas que repetidamente invadem os morros da cidade.

Como argumenta um dos participantes do grupo: “A idéia foi minha, confesso. O

pessoal vive subindo o morro para fazer filme. A gente abre as nossas portas, mostra

as nossas panelas, merda”(idem). Muda-se o ator e o cenário, mas o projeto é o

mesmo:

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O morro tá lá, aberto 24 horas. A gente dá boas-vindas de peito aberto. Os malandros entram, tocam no nosso passado. A gente se abre como um passarinho manso. A gente desabafa que nem papagaio. A gente canta, rebola. A gente oferece a nossa coca-cola. Não quer deixar a gente estrear o porra do porteiro. É foda. Domingo, hoje é domingo. A gente só quer saber como a família almoça. Se fazem a mesma festa que a nossa. Prato, feijoada, guardanapo (ibidem, 25).

Em síntese, como exemplifica um dos personagens, o projeto do grupo é

apenas saber “como é viver com carros na garagem, saldo, piscina, computador

interligado. Dinheiro e sucesso. Festival de Brasília. Festival de Gramado.” (idem)

Buscam a mesma aproximação através do olhar que, historicamente, foi

protagonizado pelos intelectuais do “asfalto”, e, no entanto, encontram um espaço

refratário a esta aproximação. Olhar que nega a visibilidade ao Outro.

Impedidos de entrarem nos apartamentos e conhecerem os moradores do

edifício, o grupo opta por documentar o cotidiano da classe média a partir da entrada

do prédio. Alocados na rua, os cineastas negros dão início à produção do

documentário. Mas os condôminos não aceitam a presença dos documentaristas, e,

refugiados em seus lares, recorrem à polícia para expulsá-los: “Começamos a filmar

tudo. Alguns moradores posando a cara na sacada. O trânsito que transita. A sirene da

política. Hã? A sirene da polícia. Todo filme tem sirene de polícia. E tiro. Muito tiro”

(ibidem, 26). Em “Solar dos Príncipes”, os moradores do prédio de classe média não

aceitam a presença física daqueles que ensaiam descortinar a privacidade burguesa. O

que está em jogo é preservar-se do Outro, impedindo que o convívio e,

principalmente, sua própria imagem seja desvelada sob um olhar que busca investigar

seu cotidiano. Marcelino Freire, ao propor a mudança de foco e papéis que o conto

encena, nos ensina que deter o privilégio de fala, em uma sociedade discursiva, é,

antes de tudo, possuir a possibilidade de controle sobre a construção de sua própria

imagem. Subverter esses papéis sociais, mesmo que ficcionalmente, favorece a

criação de novos antagonismos e aponta para novas formas de intervenções

discursivas que podem ser protagonizadas por estes sujeitos silenciados.

Em Rasif, mar que arrebenta, a mais recente publicação do autor, lançado em

2008, Marcelino Freire investe novamente na busca por um exercício de linguagem

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que exprima a especificidade da oralidade, oferecendo aos leitores uma proposta

literária que retoma os elementos firmados na elaboração de Contos negreiros. No

entanto, em um sentido oposto ao operado em sua publicação anterior, não há uma

proposta temática unificadora dos contos. O que é preservado como marca de unidade

é uma voz autoral que em nada é alterada ao travar contato com personagens e

situações extremamente diversas. Resulta desse exercício contínuo de experimentação

da linguagem o esvaziamento dos próprios personagens. Se em Contos negreiros a

própria linguagem que o autor constrói possibilita que os personagens possam

expressar-se sem a oferta de uma voz exterior ao narrado, em Rasif o movimento é

oposto. Os personagens são agora marionetes subordinadas à destreza de uma

expressão literária que conjuga com leveza aspectos da oralidade e da escrita. A

potência do experimento ofusca as histórias e, na maioria das vezes, os personagens

se tornam efêmeros. Os contos, quase todos estruturados em primeira pessoa, exibem

personagens que se desnudam aos olhos do leitor. O movimento operado para a

realização do ato de descortinar angústias e desejos, não é fruto de um olhar que

mergulha no âmago dos personagens, mas, sim, decorrente de um desprendimento,

uma urgência em relatar sua vivência. Exibindo-se aos olhos do leitor, os personagens

revelam esboços de histórias, fragmentos narrativos retirados de um cotidiano

banalizado. Durante o percurso da leitura esses personagens surgem e se abrem,

tornando-os invasores e nós, leitores, invadidos. “O meu homem-bomba”, conto

narrado por um homem que percorre o mundo em busca de um companheiro, é

representativo desse movimento. Em um tom quase confessional, o narrador relata

seu encontro com um homem-bomba: “Sentamos juntos no mesmo ônibus. E eu que

não consigo contar como aconteceu milagre assim. Homem de Ramataim, filho de

Jeroam. No mesmo assento em que Matusalém viveria por cem anos. Meu amor

viveria ali. Para morrer e matar.”(Freire, 2008, p.32).

Nos esparsos momentos em que é realizada uma apresentação narrativa mais

detalhada dos personagens, permitindo a oferta de diferentes pontos de vista sobre o

tema analisado, o jogo estabelecido entre perspectivas antagônicas favorece a

ampliação dessas subjetividades, como ocorre no conto “Da Paz”. Narrado em

primeira pessoa, “Da Paz” é um conto curto centrado em uma personagem que teve

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seu filho assassinado. Com apenas três páginas, o conto não favorece um mergulho

detalhado na observação da situação extrema do infanticídio, mas, por outro lado, se

concentra na resistência da personagem em participar de eventos em favor da paz:

“Não vou a nenhum passeio. A nenhuma passeata. Não saio. Não movo uma palha.

Nem morta. Nem que a paz venha aqui bater na minha porta. Não abro. Não deixo

entrar. A paz está proibida. Proibida. A paz só aparece nesses horas. Em que a guerra

é transferida.”(Freire, 2008, p. 26). A recusa da paz, representada na encenação de

atos públicos, é fundamentada pela personagem no questionamento sobre a relação

entre as passeatas e a morte de seu filho: “Quem vai ressuscitar o meu filho, o

Joaquim? Eu é que não vou levar foto do menino para ficar exibindo lá embaixo.

Carregando na avenida a minha ferida. Marchar não vou, muito menos ao lado de

polícia.” (Idem, p. 27). A personagem rejeita o ato esperado, não aceita a marcha

muda, em silêncio, tornando pública sua dor, ao contrário, sua vontade é “sair

gritando. Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus. Matando todo mundo. Eu matava

todo mundo, pode ter certeza. Mas a paz é que é culpada. Sabe? A paz é que não

deixa.(Idem, p. 28). Confinada entre a recusa do ato esperado e a impossibilidade da

atitude desejada, a personagem segue um terceiro fluxo, guardando a angústia de

uma situação limite para si, longe da encenação da paz.

Em “Maracabul”, conto narrado por uma criança que sonha em receber no

Natal, das mãos do Papai Noel, uma arma de fogo, Marcelino Freire foca a narrativa

no exame das contradições de uma criança da periferia: “Toda criança quer um

revólver. Toda criança quer um revólver para brincar. Matar os amigos e correr.

Matar os índios e os ETs. Matar gente ruim.(Idem, p. 41) A arma de fogo, símbolo da

morte, não entra em contradição com o mundo infantil. Não é um choque, mais, sim,

acomodação. O revólver se torna lúdico, mantendo sua função, mas, agora, em um

sentido mais vasto, servindo também para matar os elementos do mundo infantil:

índios e ETs. É nesse confronto que o conto passa a ser estruturado, lidando com a

morte de uma infância e a infância em contato com a morte. Ambos espaços são

invadidos, contaminando-os. A contradição maior, representada pelo pedido de um

revólver ao Papai Noel, é repetida inúmeras, reafirmando um sonho infantil em

contato com a violência: “Papai Noel vai entender o meu pedido. Quero um revólver

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comprido, de cano longo.”(Idem, p. 41). “É Natal. Papai Noel daqui a pouco chegará.

Trará a arma. Nova, calibrada. De meter medo. Que tal uma pistola

automática?”(Idem, Ibidem). O desfecho da narrativa reincide no confronto entre os

dois pólos: “Mamãe, este ano eu fui um bom menino, mas ano que vem quero ficar

rico. E ter um carro-forte, um carro do ano. Juro que não estou brincando. Minha vida

de bandido tá só começando. Isso se Papai Noel não chegar atirando.”(Idem, p. 43). A

imagem que encerra o conto potencializa a ideia central da narrativa, tornando

também o símbolo infantil em um elemento contaminado pelo cotidiano de violência.

O exame detalhado das últimas publicações de Marcelino Freire revela o

empenho do autor em formar uma linguagem literária que se quer próxima da fala

popular. Desde a publicação de Angu de sangue, Marcelino vem formando um extrato

produtivo que se fundamenta na incessante busca de um experimento literário que

seja capaz de abarcar a singularidade de personagens que vivenciam situações limites

em seu cotidiano Se em Angu de sangue tal característica despontava como uma

marca autoral, revelando a gêneses de um discurso literário inovador, em Contos

negreiros tal elemento surge como recurso formador de seu projeto literário. Além do

eixo temático, centrado na apresentação de situações vivenciadas por personagens

negros, Contos negreiros também possui como característica a formação de uma

linguagem literária baseada em uma musicalidade rítmica, resultando em uma prosa

permeada por rimas de uma cadência popular. Na leitura de Rasif, mar que arrebenta,

é possível observar que Marcelino Freire transformou a originalidade de sua prosa em

uma espécie de armadilha que dificulta a emergência dos personagens, tornando-se

refém do experimento que criou.

6.

Entre os Marginais e os Intelectuais, uma leitura não conclusiva.

(...) essa questão da representação, da auto-representação, de representar Outros, é um problema.

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Gayatri Chakravorty Spivak, The post-colonial critic.

“Can the subaltern speak?”, questiona a crítica indiana Gayatri Chakravorty

Spivak em ensaio clássico que investiga as diferentes apropriações discursivas que o

Ocidente realiza do Oriente. Neste texto, Spivak, além de abordar as diversas

impossibilidades de fala dos sujeitos localizados em espaços periféricos, realiza uma

crítica das apropriações das falas oriundas dos setores subalternizados. Contrariando

as perspectivas otimistas, a critica indiana adverte sobre a impossibilidade de fala

destes sujeitos periféricos. No entanto, como observa Elizabeth Muylaert, em Devires

autobiográficos, a atualidade da escrita de si,

a resistência teórica de Spivak não se interessa em promover a constituição do sujeito marginalizado, ou seja, ‘dar voz ao subalterno’, ela insiste na impossibilidade de traduzir o discurso do subalterno para o discurso do dominador, como se esse último fosse, inquestionavelmente, o representante, por excelência, da justiça que pode ser feita às razões do oprimido. (Muylaert, 2005, p. 114).

Nessa leitura, a rejeição de Spivak em dar voz aos subalternos está calcada na

constatação de que seja como objeto – retratado na sua condição de vítima – seja na

condição de sujeito – quando recebe o benefício da fala através da qual tem ocasião

de se expressar – a sua imagem e a sua voz, em ambos os casos, já são elementos de

uma mediação própria ao código lingüístico e cultural dominantes, constituindo “uma

forma de violência epistêmica” para citar uma expressão utilizada por Spivak. Dessa

forma, a fala do subalterno, independente de sua forma enunciativa, é apropriada pela

cultura dominante.

O texto de Spivak, produzido na já longínqua década de 1980, permanece

atual e inquietante. Creio que buscar uma resposta estanque para a questão não seja o

principal objetivo do ensaio e, principalmente, não seja este o primeiro impulso dos

críticos ao se debruçarem sobre ele. Talvez, o ponto mais importante deste ensaio seja

a busca por estruturas teóricas e textuais que possam favorecer a emergência de vozes

que foram sulcadas por forças políticas dominantes. De certa forma, a recepção deste

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ensaio na América Latina foi norteada por este desejo. Ou seja, construir um

arcabouço teórico que pudesse instrumentalizar as leituras de textos produzidos por

sujeitos não pertencentes aos centros hegemônicos de poder, favorecendo, assim, um

referencial que possibilitasse colocar em relevo a condição cultural e social dos

autores dos textos. Contudo, nos chocamos com a força e a veemência com que a

critica indiana afirma que a impossibilidade de falar do subalterno, não ter voz, é a

primeira condição de sua situação política e social. Além disso, Spivak instaura uma

perspectiva inovadora em sua interpretação, quando afirma que ao intelectual resta

falar por si. O papel do intelectual, nesta leitura, é investigar o quanto seus métodos

de análise carregam privilégios institucionais e favorecem a manutenção do

subalterno como objeto e, por conseguinte, silenciado.

No entanto, vale questionar: e se os sujeitos marginalizados, alocados em seus

espaços periféricos de origem, começam a falar por si mesmo – sem a interferência

paternalista dos intelectuais – e sejam ouvidos, preferencialmente, por seus pares,

criando, assim, um campo discursivo e cultural próprio, ainda é possível apontar para

a impossibilidade de fala destes marginalizados? As incontáveis investidas de autores

marginalizados no campo literário brasileiro têm apresentado uma nova dimensão a

esta questão, trilhando um percurso, aparentemente, inovador.

Além de falarem, estes autores marginalizados desejam também exercer a

função que tradicionalmente era desempenhada por intelectuais: ser porta-voz e

orientadores das massas. No entanto, existe uma nada sutil diferença na postura

assumida pelos escritores da Literatura Marginal, pois suas produções literárias

objetivam alcançar um público do qual fazem parte. A imagem abaixo reforça este

posicionamento ideológico.

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A imagem faz parte do material de divulgação de dois produtos assinados por

Ferréz, o livro Cronista de um tempo ruim e o DVD Literatura e resistência, e

apresenta de forma clara e explicita o posicionamento político adotado pelo autor:

“Agora ninguém controla nossa história”. A postura assumida reforça o desejo deste

movimento de autores oriundos de bairros periféricos e populares de se colocarem

como porta-vozes de uma parcela da sociedade que sempre foi objeto de investigação

de outros autores e intelectuais. O DVD e o livro em questão passam a ser

caracterizados como iniciativas que retém a investida de qualquer olhar estrangeiro ao

espaço representado. Necessário afirmar que ambos produtos foram produzidos e

lançados através iniciativas criadas e conduzidas pelo próprio autor, a Editora

Literatura Marginal/Selo Povo e o 1 da Sul, configurando, assim, uma produção que

não apenas focaliza os setores marginalizados, mas que origina-se destes locais.

Controlar a própria história, nesse sentido, é determinar qual tipo de representação

será construída na feitura do discurso, é deter o domínio sobre a imagem que será

produzida através da veiculação da obra. Em outras palavras, ao se afirmarem como

autores de um discurso que almeja representar a própria vivência social, estes

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escritores periféricos estão se deslocando para uma posição que retira de cena o papel

que sempre foi assumido por intelectuais.

Em crônica publicada no volume Literatura Marginal, talentos da escrita

periférica, Preto Ghóez apresenta uma perspectiva semelhante à defendida por

Ferréz. No texto, o autor, que além de integrar o movimento literário periférico,

também ativista da cultura Hip-Hop, elabora um exame das diferentes produções

culturais, sobretudo cinematográficas, que possuem como tema central o cotidiano da

periferia. A crônica possui o sugestivo título “Cultura é poder” e inicia com o autor

resgatando sua infância, quando encontrava na casa dos vizinhos a única

possibilidade de assistir aos filmes nacionais. O tom memorialístico adotado na

abertura do texto auxilia o autor no estabelecimento de uma comparação entre as

produções fílmicas do passado e as contemporâneas, na qual é destacada a mudança

no plano temático das produções que é sintetizada em uma frase: “todo mundo quer

ser favela!”(Ghóez, 2005, p. 21). O interesse crescente em produzir um olhar sobre os

bairros periféricos e favelas dos grandes centros urbanos é analisado como uma moda

“especificamente no meio intelectual de esquerda e pequena burguesia

adjacente.”(Idem, idem). A crítica aponta não apenas o modismo criado, mas,

principalmente, o esvaziamento político destas manifestações artísticas e o olhar

deturpado que orienta tais produções:

Todo mundo quer ser perifa, quer ser favela. E assim eu vejo uma pá de maluco documentando a dureza do dia a dia da favela, uma pá de filme documentando a violência da quebrada, e neles eu vejo um bagulho que me deixa desbaratinado: a romantização do crime, do bandido, da droga, a esteriotipização de um estilo de vida, as roupas, as gírias, os loucos, as fitas.(Idem, idem)

A crônica de Preto Ghóez argumenta em favor de uma produção artística que

não se baseie em clichês e, muito menos, que reproduza estereótipos preconceituosos

sobre a população residente em favelas. Em outras palavras, o autor sabe que tal

produção artística, seja ela fílmica ou literária, será utilizada como veículo de

mediação entre o morro e o asfalto. Através do retrato ofertado pela imagem

cinematográfica é produzida uma percepção própria sobre os territórios

marginalizado que é retratado. João Camillo Penna, no ensaio “Marcinho VP (um

estudo sobre a construção do personagem)”, reflete sobre estas formas de

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representação de setores e sujeitos marginalizados através da leitura das interpelações

midiáticas que Marcio Amaro de Oliveira – falecido líder de uma quadrilha de

varejistas de drogas no Morro de Dona Marta, mais conhecido como Marcinho VP –

sofreu ao longo de sua vida. Camillo Penna elege como objeto uma série de quatro

produtos midiáticos que o transformaram em principal personagem, que passa pelos

relatos jornalísticos sobre a negociação entre o grupo liderado por Marcinho VP para

a autorizar a equipe de Spike Lee para filmarem o videoclipe “They don’t care about

us”, de Michel Jackon, e termina na publicação do romance-reportagem Abusado, de

Caco Barcellos, que trata especificamente sobre o processo de constituição e falência

da quadrilha liderada pelo mesmo. Ao fazer referência ao ensaio de João Camillo

Penna, interessa-me especificamente destacar não apenas o exemplo recolhido no

texto – o qual podemos classificar como uma forma de intervenção do intelectual que

reproduz o autoritarismo do poder central e se baseia no tratamento do sujeito

marginalizado enquanto um objeto silencioso - , mas, principalmente, desejo refletir

sobre as conclusões e caminhos apontados pelo autor na análise que o mesmo

constrói sobre a ética necessária ao intelectual.

Talvez a pergunta colocada nestes termos seja excessivamente vaga, e pudéssemos reformulá-la em termos de uma ética da representação, e de uma dívida ou pagamento devido às pessoas, locais e situações referentes que inspiram romances deste tipo. É o que a categoria jurídica de “direito de imagem” procura pensar, estabelecendo uma espécie de copyright sobre a vida, apesar dos complicados e insolúveis meandros legais que ela instaura.(Penna, 2004, p. 97)

A argumentação proposta pelo autor vai de encontro com a fala recorrente dos

moradores de áreas periféricas que são retratados em diferentes produtos midiáticos a

partir de um olhar “de fora”. Contra este freqüente exercício discursivo que se baseia

na veiculação de um olhar deturpado sobre uma realidade concreta, João Camillo

Penna vislumbra a possibilidade de instauração de uma perspectiva ética que

orientará o discurso. A ética se baseará na necessidade de compreensão que o “direito

de uso de imagem”, aparato jurídico necessário para a captura de quaisquer imagem

de um sujeito de direito, deve ser expandida para uma percepção mais ampla, na qual

o intelectual produtor do discurso deva ter a consciência que sua produção discursiva

representará uma imagem coletiva destes territórios marginalizados. Ou seja, a

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encenação ficcional que o cinema exibe, baseado na “Luz, câmera e...clichê” irá

perpetuar o estigma e o preconceito, como observa Preto Ghóez:

Daí deixa que o cinema entope de maluco que nunca foi perifa, gente que abomina a gente que mora na perifa, os papéis principais estão nos faróis, e seu controle remoto aciona o vidro que sobe e te isola do senhor dos anéis, relógios, dinheiro, rápido de mãos pro alto! Ou eu estouro a sua cara...(Idem, ibidem)

Preto Ghóez critica o consumo de imagem estereotipada da favela, que

destaca apenas o crime e a violência a partir de um traço excêntrico. O produto, nas

palavras do autor, se assemelha a um documentário da National Geographic,

centrado na exibição das marcas de uma cultura pouco conhecida. Todos querem uma

aproximação desta realidade, mas desejam que tal aproximação ofereça a segurança

necessária para o consumo. Obliterar a voz que vem “de fora”, nesse sentido, é

investir contra a orientação formada na perspectiva de um olhar não familiarizado

com o cotidiano retratado. Ao se colocarem frente aos intelectuais que comumente

exerceram o papel de porta-voz destes setores silenciados, os escritores

marginalizados buscam expressar na excludente letra de fôrma sua própria vivência.

Cultura é poder, como enfatiza o autor no título da crônica. O poder repousa

na possibilidade de construir através de um discurso cultural uma imagem própria

sobre estes espaços marginalizados. Na leitura de Preto Ghóez, o núcleo intelectual

que detém o poder através da produção cultural também cria estratégias para a

manutenção de seu status quo. Afinal, nos lembra Ghóez,

Eles nos querem onde estamos, nos querem brutos e tristes, nos darão armas e drogas e escreverão novos roteiros e farão novos filmes sobre nossas vidas em nosso habitat, mal sabem eles que o sangue já transborda da periferia, que existe mão-de-obra excedente com armas na mão, mas eles nos querem assim como melhor ator coadjuvante, não nos querem escrevendo, dirigindo, atuando, não nos querem protagonistas de nossas próprias vidas, seus filhos já confundem ficção com realidade, e eles nos querem longe de tudo, (...) sem voz, nos escuro do anonimato, eles sem o mutarelli, sem o ferréz, sem o paulo lins, (...) Mas alguns já sabem: Cultura é poder!(idem, p.23).

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Nada mais legítimo do que o próprio sujeito marginalizado, aquele que sofre

diretamente com as condições de vulnerabilidade social que uma sociedade desigual

produz, seja o autor de um discurso que aborda seu cotidiano. O discurso, nesse

sentido, para além de sua postura política, passa a ser ornamentado por uma

perspectiva testemunhal, determinando a voz oriunda dos espaços periféricos como a

verdadeira forma de representação da miséria e da violência que assola estes espaços.

Afinal, quem possui a legitimação para narrar a margem senão o próprio marginal?

Tal posicionamento ecoa de diferentes formas na Literatura Marginal e se

revela como um dado precioso para o estabelecimento de uma discussão acerca do

papel e o lugar dos intelectuais frente a estas manifestações literárias emergentes que

cobram para si um estatuto de legitimação que busca silenciar as vozes não

pertencentes à estrutura social demarcada. Necessário acrescentar que tal orientação

política não é um dado relativo apenas a este movimento literário, mas, sim, uma

espécie de orientação de grupos sociais e culturais marginalizados, que desejam falar

por si, sem a presença de mediadores. A argumentação do rapper Big Richard, na

apresentação de seu livro, Hip-hop:consciência e atitude, corrobora este aspecto:

Neste livro tenho uma preocupação muito grande em registrar parte de nossa história, o hip hop brasileiro. Cansei. Me incomoda muito ver irmãos darem subsídios a intelectuais e pesquisadores de fora de nossa realidade, que constroem grandes teses sobre nossa vida, nosso momento (...) Penso que temos que começar a transmitir a nossa versão da história, a nossa palavra pesquisada, mas muito mais do que isto, nossas histórias vividas(Richard, 2005, p. 19)

Se outrora o intelectual atuava enquanto porta-voz destes grupos, falando em

nome destes sujeitos e, dessa maneira, silenciado-os; nos parece que na

contemporaneidade não há mais espaço para este tipo de atuação, sobretudo quando

estes setores passam a “falar” e não desejam mais que o intelectual “fale” em nome

deles.

O questionamento que por hora aqui se constrói não é um fato isolado e muito

menos diz respeito apenas ao surgimento de um movimento literário organizado por

autores marginalizados. Renato Cordeiro Gomes e Isabel Margato, organizadores do

livro O papel do intelectual hoje, apresentam este debate como um reflexo direto da

crise proveniente da nova configuração sociocultural do limiar do século XXI:

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Para pensar então a reconfiguração, do papel do intelectual na contemporaneidade, há de se considerar a crise de valores universais, desencadeada pela história do século XX. O testemunho do universal torna-se cada vez mais difícil, balançando pelo relativismo dos valores, das posições político-ideológicas adotadas, num tempo de heterogeneidade, posições essas atravessadas por clivagens de gênero, raça, sexo, idade e não mais privilegiando a problemática da classe social. (Margato e Gomes, 2004, p. 10)

Esse horizonte de questões interfere de forma decisiva na tradicional imagem

que fora forjada para o intelectual ao longo da modernidade e, principalmente, no

século XX. Se ao pensarmos em propostas para o futuro da função do intelectual

percorremos um trajeto marcado por incerteza, podemos afirmar com certeza que o

modelo do passado não terá frutos. Não se trata de afirmar que dificilmente um

escritor contemporâneo virá a público e apresentará um texto incisivo com o título de

“Eu acuso”, repetindo o gesto clássico protagonizado por Zola na apresentação do

panfleto “J´accuse”, em 1898, ato que hoje é analisado como o nascimento do

intelectual. Mas, sim, se trata de avaliar que o intelectual não irá mais atuar enquanto

sujeito dotado de um saber privilegiado que possibilitará orientar as massas.

Para discutir a função e o papel do intelectual é necessário resgatar o

pensamento do filósofo italiano Antonio Gramsci e, principalmente, o conceito de

“intelectual orgânico”. Tal conceito, que também pode ser chamado de categoria,

emerge do desejo de desenvolver uma nova proposta educacional que tenha como

referência a classe trabalhadora e que favorecesse a criação de intelectuais na e para a

classe operária, configurando-se, assim, uma estratégia política que atingiria de forma

decisiva o autoritarismo fascista. A noção de intelectual orgânico influenciou

diretamente movimentos sociais comunitários, assim como lançou as bases para a

“Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire. A partir das ideias de Gramsci para um

sistema educacional libertário encontraram ressonância na “pedagogia crítica” de

Freire, criando um espaço de intervenção através do saber acadêmico na utilização de

estratégias de pesquisa de ação participativa, na qual o pesquisador assume um papel

social para além da coleta de dados. E, como nos recorda Maria Teresa Carneiro

Lemos, em A (De) missão do intelectual,

As ideia de Gramsci também serviram de base para a criação da “Teologia da Libertação”, importante e controversa escola na teologia da Igreja Católica, desenvolvida depois do Concílio Vaticano II. Ela

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fundamenta-se na situação social humana, tendo se desenvolvido intensamente durante as décadas de 60 e 70, quando se expandiu de forma especial na América Latina, entre os jesuítas, sendo uma das orientações para o movimento das Comunidades Eclesiais de Base. (Lemos, 2007, p. 128)

É inegável a influência do pensamento de Gramsci na formação e organização

de frentes políticas populares no Brasil, reunindo em diálogo padres, professores,

líderes sindicais e intelectuais na luta contra o autoritarismo e em benefício dos

setores populares. No contexto dos anos 1980, impulsionados pelos ares da liberdade

renascida pela abertura política, estes líderes políticos ligados à classe trabalhadora e

marginalizada desenvolveram um papel de suma importância na formação dos

próprios líderes comunitários, sujeitos emergentes na disputa política e participantes

ativos das reivindicações que faziam. Nesse sentido, a espécie de ciclo de formação

do intelectual orgânico, tal qual concebido por Gramsci, se fecha e surge em cena não

o intelectual burguês aliado às massas, mas o intelectual oriundo das massas, como o

próprio filósofo conceituou:

Uma das mais marcantes características do todo o grupo social que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos.(Gramsci, 1978, p. 8)

Com a elaboração simultânea dos próprios intelectuais orgânicos populares,

ou marginais, qual será o papel assumido pelos intelectuais burgueses? Decerto, a

função de porta-voz da sociedade, tradicionalmente encarnada pelo intelectual

escritor, se deslocou de forma progressiva para o ideólogo jornalista, criando uma

segmentariedade na prática discursiva. Não são mais sujeitos iluminados que se

debruçam sobre os temas caros da estrutura social e política, no lugar destes tomou

lugar o especialista, profissional centrado no debate acerca de um tema específico.

Para além da própria existência da função do especialista, a prática intelectual, na

contemporaneidade, passa por uma reorientação devido a emergência de vozes

marginalizadas que passam a ocupar o espaço que outrora era posse do intelectual.

No entanto, é necessário esclarecer que não se trata de afirmar o fim da função

do porta-voz da sociedade, tradicionalmente encarnada pelo intelectual escritor, mas,

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principalmente, interrogar qual a nova forma de engajamento que o intelectual

escritor deve engendrar frente a estes sujeitos marginalizados. Se o debate aqui

proposto surge em decorrência de uma série de produtos literários contemporâneos, o

pensamento crítico ocidental há muito produz interrogações acerca desta questão.

Exemplo disto é a conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, em 1972,

intitulada “Os intelectuais e o poder”. No diálogo, Foucault já anunciava a

necessidade de aparecimento de uma nova forma de engajamento do intelectual, não

mais como aquele que dizia a verdade aos que ainda não a viam e em nome dos que

não podiam dizê-la:

Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte desse sistema de poder, a ‘idéia’ de que eles são agentes da ‘consciência’ e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco de lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento; na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso. (Foucault, 1979, p.71)

Na leitura de Foucault, a existência de um sistema de poder próprio ao

exercício intelectual subordina a “fala das massas”, inferiorizando-as frente ao

discurso científico e acadêmico. Nesta concepção, pouco importa se o intelectual “se

coloca um pouco na frente ou um pouco ao lado” das massas, pois, independente da

posição assumida, seja negando ou não o papel de porta-voz dos desejos dos grupos

socialmente marginalizados, o discurso intelectual figura como detentor de um poder

de verdade dotado de uma aura unívoca. No entanto, Foucault esclarece que

Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento. Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia, é a própria verdade. (Foucault, 1979, p.14)

Tais reflexões entre Deleuze e Foucault emergem a partir de um debate sobre

a relação entre prática e teoria, colocando em cena não apenas questionamentos

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acerca do papel do intelectual, mas, sobretudo, a estruturação de um novo conceito de

representação. É nesta clave que Deleuze lembra que foi o seu interlocutor que teria

sido o primeiro a denunciar a “indignidade de falar pelos outros”:

A meu ver, você [Foucault] foi o primeiro a nos ensinar – tanto em seus livros quanto no domínio da prática – algo fundamental: a indignidade de falar pelos outros. Quero dizer que se ridicularizava a representação, dizia-se que ela tinha acabado, mas não se tirava a conseqüência desta conversão ‘teórica’, isto é, que a teoria exigia que as pessoas a quem ela concerne falassem por elas próprias. (Idem, p. 72)

Silenciar-se frente aos grupos marginalizados - que no caso específico do

diálogo entre Foucault e Deleuze eram os prisioneiros - foi a medida necessária para

possibilitar a emergência destas vozes. A conversão teórica que nos fala Deleuze

comporta não apenas a fala dos sujeitos silenciados, mas, igualmente, a insurreição de

saberes locais, esquecidos e inferiorizados perante a ciência. Contudo, tal perspectiva

teórica foi claramente deturpada, favorecendo a compreensão, para uma parcela de

intelectuais, que o papel a ser assumido frente a estes grupos marginalizados deveria

ser passivo, favorecendo o retorno a fala viva do sujeito dominado. Não se trata, pois,

de simplesmente ouvir deslumbrado a pureza da diferença através destas vozes, mas

de analisar os mecanismos do poder discursivo que, ao filtrar a fala destes sujeitos,

desqualificam-na. O intelectual deve, antes de mais nada, ser crítico de suas próprias

condições de trabalho que, de modo muito concreto, por seus regulamentos e

hierarquias acabam por assimilar estas vozes e estes saberes e, dessa forma, levá-los

ao silêncio.

Contudo, tais prerrogativas não devem ser compreendidas como um postulado

teórico que argumenta pelo silêncio do intelectual, como esclarece Daniela Versiani a

partir das reflexões de Foucault acerca do tema:

Tratar apenas do deslindar dos processos que levam estas subjetividades à exclusão e ao silenciamento, ainda que obviamente seja por si só tarefa tão árdua quanto necessária, é também, contudo, de alguma forma, pôr-se à margem desses processos. Se Foucault estava certo quanto à indignidade de falar pelos outros, esta afirmativa não deveria, contudo, servir de justificativa para que o intelectual contemporâneo se perpetue à margem desse processo, seja pela ingênua suposição de que a alternativa à recusa em assumir uma postura partenalista – falar pelos outros – seja única e exclusivamente a indiferença, seja pelo interesse em preservar a sua própria autoridade mantendo a não-autoridade de outras vozes. (Versiani, 2004, p. 80)

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Já não é mais suficiente dedicar-se apenas à análise dos processos de exclusão

e marginalização dos sujeitos silenciados, é necessário elaborar estratégias de

inclusão dessas subjetividades no próprio ato discursivo do intelectual. O intuito deste

investimento não é produzir uma fala autorizada, mas, sim, elaborar conceitos e

procedimentos que impeçam que a fala do intelectual figure no lugar do discurso do

Outro marginalizado.

Nesse diapasão, é impositivo considerar o impasse criado pela desconfiança na figura do intelectual como porta-voz da “verdade de todos”, quando se trata de recuperar sua função crítica. A opção pela defesa dos direitos dos pequenos grupos, pela luta contra focos particulares do poder, corre o risco de gerar um descompromisso do intelectual com o conjunto da sociedade, de limita-lo a uma ação sempre autoreferenciada. (Gomes e Margato, op. cit., p. 10)

Ou seja, como Deleuze questiona: “Então, como chegar a falar sem dar

ordens, sem pretender representar algo ou alguém, como conseguir fazer falar aqueles

que não têm esse direito, e devolver aos sons o seu valor de luta contra o

poder?”(Deleuze, 1992, p.56). Responder tal questionamento é, decerto, uma tarefa

tão árdua quanto retirar o poder da verdade das formas hegemônicas. No entanto,

seguindo os passos de Deleuze, é possível vislumbrar uma saída - ou, como o

próprio autor conceitua: uma linha de fuga – a partir do tratamento do próprio ato

discursivo: “Sem dúvida é isso, estar na própria língua como um estrangeiro, traçar

para a linguagem uma espécie de linha de fuga”(Idem, ibidem). Ser estrangeiro na

própria língua é produzir uma espécie de gagueira que possibilite rachar as palavras e

estruturar enunciados não hierárquicos. Falar assumindo todos os tons, sem desejar de

forma ilusória elaborar um discurso que se quer semelhante ao do Outro, tampouco

uma fala que coloque em elevo a diferença do intelectual frente ao marginalizado. A

análise de Deleuze sobre Godard pode ser tomada como uma referência para

pensarmos a questão:

De certo modo, trata-se sempre de ser gago. Não ser gago em sua fala, mas ser gago da própria linguagem. Geralmente, só dá para ser estrangeiro numa outra língua. Aqui, ao contrário, trata-se de ser um estrangeiro em sua própria língua. (...) É essa gagueira criativa, essa solidão que faz de Godard uma força.(Idem, p. 52).

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A gagueira surge como uma possibilidade de minar as estruturas sólidas do

discurso e favorecer a emergência de uma fala não impositiva. Sem dar ordens, o

intelectual produz um discurso que figura em um espaço intersticial, não é uma fala

que representa e, muito menos, é a atitude silenciosa e omissa de apenas deixar o

Outro falar. Tão importante quanto refletirmos acerca de uma teoria que favoreça a

aplicação de métodos que não oblitere a emergência das vozes que outrora eram

silenciadas, é propor uma forma de atuação intelectual que se baseie em um princípio

ético.

Falar com os operários e não ser um patrão falando, como alcançar esta forma

de linguagem que rasura as formas de poder? Heloisa Buarque de Hollanda e Maria

Tereza Carneiro Lemos, a partir de questionamentos semelhantes aos aqui

apresentados, apontam para o estabelecimento de “parcerias” entre intelectuais e

marginalizados como a solução para esta intrincada questão. Ambas autoras utilizam

a publicação de Cabeça de porco, livro que denuncia as misérias provocadas pelo

avanço do comércio varejista de drogas nas periferias dos grandes centros urbanos do

Brasil, como um resultado bem sucedido.

No artigo “Intelectuais X marginais”, Heloisa Buarque analisa a necessidade

de criação de novas abordagens das novas vozes discursivas no cenário cultural

brasileiro: “Hoje, parece que alguma coisa de bastante diferente está no ar e que

vamos ter que repensar, com radicalidade, nosso papel como intelectuais tanto no

campo social, como no campo acadêmico e artístico”(Hollanda, 2007). O algo novo

que a autora percebe no ar é materializado nas inovadoras propostas da cultura Hip-

Hop e de tantas outras manifestações artísticas originárias nas periferias das grandes

cidades. No movimento operado por Heloisa Buarque a proposta de repensar o papel

do intelectual não é meramente abstrair-se do debate e excluir-se da vida política e

artística. Tampouco, a crítica deseja apenas “ouvir” o que as vozes que emergem têm

a dizer. Segundo a autora, as produções artísticas e culturais da periferia, ao elaborar

um discurso crítico sobre a sua própria experiência, passam a exercer o papel que

outrora fora designado ao intelectual. Mas, vale questionar, qual deve ser o lugar a ser

ocupado pelo intelectual hoje no tocante ao diálogo com estes movimentos, discursos

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e produtos culturais periféricos? Heloisa Buarque de Hollanda apresenta uma

possibilidade de solução, observando que

A sugestão de que a periferia e os movimentos que defendem a interpelação da propriedade intelectual fechada e superprotegida no modelo norte-americano, com seu corolário necessário, o investimento na noção de saber compartilhado, possa afinal dissolver velhas equações corporativas em novas maneiras de fazer política.(Hollanda, op. cit.)

Segundo a autora, o exercício de repensar o papel do intelectual produzirá

uma nova forma de engajamento, alterando a posição do intelectual frente aos grupos

marginalizados. Nesse sentido, há uma recusa pela função de porta-voz destes

sujeitos, colocando-se à frente. Impossibilitado de falar pelo Outro, pois agora ele

possui voz, resta ao intelectual exercer a função de co-autor dos processos

simbólicos. É nesta perspectiva que Heloisa saúda a publicação de Cabeça de porco:

É verdade que as partes escritas por cada um são assinadas, não produzindo, portanto, um tipo de autoria coletiva, mas colaborativa. O livro não desafina na passagem de um autor para outro, que aparecem intercalados na estrutura narrativa do livro. Um caso de saber compartilhado com igual peso para cada uma das partes, cada autor oferecendo sua dicção e sua competência específicas em pé de igualdade, em que a autoria é menos importante do que o conjunto polifônico do trabalho, que é precisamente de onde esta obra tira sua maior força e valor(Idem, ibidem).

Na proposta de Heloisa Buarque o intelectual não mais irá figurar como

representante das esferas silenciadas, nem se cala frente à eminência de vozes

excluídas. A solução apresentada se materializa na busca por um espaço de fronteira,

no qual a voz do intelectual será somada ao discurso que provém das margens,

reconhecendo o novo cenário cultural em que está inserido. No entanto, a autora não

percebe que o simples deslocamento de posição, figurando agora ao lado e não mais

na posição de liderança do processo, sobretudo no exemplo citado, não impede uma

atitude paternalista e condescendente do intelectual. Em Cabeça de porco é

perceptível uma distinção discursiva entre os autores, de um lado figura uma fala

testemunhal formada a partir da experiência marginal, personificada nos escritos de

MV Bill e Celso Athayde, estes negros, favelados e atuantes no movimento Hip-Hop;

no pólo oposto, isolado em um gabinete, Luiz Eduardo Soares produz elaboradas

análises sociológicas a partir dos relatos dos rappers. A forma colaborativa, que tanto

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impressionou Heloisa Buarque de Hollanda, se desfaz pela própria estrutura textual

do livro. A colaboração, por assim dizer, na verdade, é dos marginalizados para com

o intelectual, oferecendo em cores vivas histórias para serem indexadas em uma

rigorosa análise sociológica. A fórmula é redundante e cansativa, após os relatos

surge a fala conclusiva de Luiz Eduardo Soares descortinando o breu e orientando

nossas compreensões. Se nesta estrutura não há o ato de silenciamento do

marginalizado, no entanto fica clara a subordinação destas falas ao discurso científico

e acadêmico.

Análise semelhante à de Heloisa Buarque de Hollanda é engendrada por

Maria Tereza Carneiro Lemos acerca do livro Cabeça de porco, em A (de)missão do

intelectual. Segundo a autora, a postura assumida por Luiz Eduardo Soares ao

colaborar com os dois ativistas do movimento Hip-Hop o fez abandonar a posição de

“tradutor” – aquele que marca um lugar de relativa abertura da voz dos silenciados –

para figurar como um “colaborador” destes sujeitos.

Não é mais possível conceber o intelectual que reflete e ‘indica’ o caminho, mas, pelo contrário, tornou-se claro que hoje o intelectual age organizado, intervindo, criando. De forma muito diferente do intelectual modernista, hoje, ele não é mais um vanguardista, não profecia em relação ao futuro, não antecipa a história. (Lemos, 2007, p. 109)

Certamente, é possível identificar no ato protagonizado por Luiz Eduardo

Soares a tentativa de abandono das rígidas formas acadêmicas. Lançar-se de encontro

a novas experiências sociais, políticas e culturais, certamente é assumir o risco de

intervir de uma nova forma na sociedade.

No entanto, é necessário observar que, no caso específico de Luiz Eduardo

Soares e sua intervenção junto a M.V. Bill e Celso Athayde, a posição de retaguarda,

com o intelectual perfilado ao lado dos marginais, resulta em não favorecer a

ascensão dos próprios marginais como uma vanguarda.

Não estou propondo a constituição de duas esferas antagônicas, intelectuais e

marginais, mas, antes de tudo, busco discutir quais as reais possibilidades de contato

com este Outro marginalizado. Sem dúvida, como observa Deleuze,

O artista não pode senão apelar para um povo, ele tem necessidade dele no mais profundo de seu empreendimento, não cabe a ele cria-lo e nem o poderia. A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à escravidão, à infâmia,

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à vergonha. Mas o povo não pode ocupar-se de arte. Como poderia criar para si e criar a si próprio em meio a abomináveis sofrimentos?(Deleuze, op. cit., 214-5)

Se o questionamento de Deleuze se refere a uma provável impossibilidade de

criação artística – e de formas de pensamento crítico, arrisco acrescentar – do povo

frente aos seus sofrimentos abomináveis, é igualmente possível interrogar se há

condições reais do intelectual falar sobre estes sofrimentos do povo? Não se trata

apenas de buscar uma legitimação para a voz marginalizada que agora se ergue e

passa a proclamar uma verdade, mas que discutir as potencialidades deste ato de

insurreição.

Ler a produção literária destes autores é também observar o desenvolvimento

destas estratégias políticas. Mais do que mapear obras e tecer comentários sobre

traços de estilo, ao centrarmos um olhar exclusivo sobre a Literatura Marginal

devemos observar as nuances discursivas e saber compreender o funcionamento de

um amplo espectro de ações e propostas sociais que utiliza o literário como recurso.

No entanto, aqui está em questão não somente o processo de construção do

sujeito marginalizado, mas das mediações efetuadas na passagem desse discurso para

outras camadas da sociedade. O desejo de se constituir enquanto movimento

autônomo, sem a interferência de elementos exteriores à periferia, pode ser facilmente

questionado pelas relações que alguns autores mantém com editoras não vinculadas

ao mesmo projeto político e social, como nos fala Alfredo Bosi acerca da obra de

João Antônio:

Sei que o termo “marginal” é fonte de equívocos; sei que, na sociedade capitalista avançada, não há nenhuma obra que, publicada, se possa dizer inteiramente marginal. O seu produzir-se, circular e consumir-se acabam sempre, de um modo ou de outro, caindo no mercado cultural, dragão de mil bocas, useiro e vezeiro em recuperar toda sorte de malditos. (Bosi, 2002, 238)

O comentário de Alfredo Bosi lança um dado irônico sobre o uso do termo

marginal que também pode ser utilizado como índice de análise da própria estratégia

discursiva destes autores. Como ser marginal e afirmar-se como pertencente de um

mundo à parte que se estrutura como substrato direto das ações empreendidas por

sujeitos sociais das classes abastadas e, por outro lado, estar inserido nesta mesma

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estrutura? É importante ressaltar que a constituição deste sujeito autoral periférico

mais do que residir somente na enunciação ou na recepção do discurso, está no

próprio processo dialógico e transitivo. Mais do que destituir qualquer poder de

verdade da fala destes autores ou simplesmente negar a viabilidade desta

argumentação da autenticidade de uma cultura e/ou literatura marginal, ao afirmar

este aspecto pretendo apresentar uma nova perspectiva ao debate. Uma vez que o

sujeito à margem – seja o morador da favela, em uma perspectiva nacional, ou o

latino-americano, em uma perspectiva global – sempre será composto não por um

discurso de unicidade e pureza, mas, sim, pelo hibridismo. Por tanto, mesmo que

suplantado da apresentação da postura política adotada, estes autores estão de forma

recorrente estabelecendo formas de apropriação e adaptação. Ao aceitarem o

financiamento de grandes fundações privadas – como a Itaú Cultural –, ao

participarem de programas televisivos – como o Fantástico da T.V. Globo – e ao

publicarem em editoras de grande circulação – como a Global Editora e a Editora

Objetiva – estes autores estão inseridos em um processo através do qual se demanda

uma revisão de seus próprios sistemas de referência, normas e valores, pelo

distanciamento de suas regras habituais ou “inerentes” de transformação. Dessa

forma, ambivalência e antagonismo acompanham cada ato desta espécie de tradução

cultural.

Além disso, é possível afirmar que ao estarem fixados na margem, estes

autores periféricos correm o risco de perderem, justamente, a capacidade

metaforizante das margens em contraposição ao centro. De fato, a transformação de

uma condição de vulnerabilidade social em um elemento de construção identitária,

seja através da delimitação destes territórios marginais em palco das narrativas ou na

elaboração discursiva que argumenta por uma autenticidade cultural, é uma posição

de confronto. Agora, são autores oriundos da periferia que se apresentam como vozes

unívocas da marginalidade, silenciando assim qualquer contra-narrativa produzida

por intelectuais pertencentes aos núcleos tradicionais de saber. Trata-se, portanto, de

uma questão com a qual estes e futuros autores terão que lidar. No entanto, a contínua

investigação acerca da violência nos espaços periféricos terminará por esvaziar a

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capacidade de sensibilização do leitor ou, pelo contrário, a dramatização desses

aspectos permitirá ao morador dessas áreas um novo olhar sobre si mesmo?

Se os autores estiverem corretos, os potenciais leitores destas produções

literárias – leia-se os residentes nos bairros marginalizados – utilizarão tais narrativas

como espelhos de uma realidade concreta, mirando-se nos exemplos apresentados no

texto ficcional. O princípio norteador deste argumento é o desejo de conscientizar o

leitor, fazendo descortinar uma verdade que o texto oferece.

O texto literário surge como um mecanismo pedagógico. Espera-se com a

disseminação deste discurso voltado primeiramente para o leitor periférico a

produção de uma nova identidade cultural e a criação de uma nova postura destes

sujeitos. A força pedagógica destes discursos marginais de rasura está repousada na

autoridade que a origem periférica oferece ao autor do discurso, utilizando sua

experiência de autor/sujeito marginal para formar e doutrinar os receptores do

discurso. Diferentes autores da Literatura Marginal – sobretudo aqueles vinculados à

cultura Hip-Hop – produzem narrativas centradas na apresentação de trajetórias

sociais exemplares, seja pela exaltação ou negação. Narradas como histórias de

proveito e exemplo, as trajetórias de sujeitos da periferia, que em principio poderiam

ser compreendidas como casos pontuais, são transformadas em uma complexa trama

coletiva, facilitando a pronta identificação do leitor com o personagem. Estas

narrativas são pontuadas por um rígido maniqueísmo que privilegia a abordagem dos

casos de insucesso, encenando a falência destes personagens a partir da opção pelo

crime. Dessa forma, o exercício de auto-representação destes sujeitos é duplamente

político e engajado, além de formar uma compreensão própria para sua vivência, tal

compreensão é utilizada como um veículo disciplinar e formador de seus pares. A

literatura, neste caso, emerge como veículo de um discurso pedagógico e

conscientizador do leitor. Tal qual uma letra de RAP, os contos, os romances e as

poesias, são utilizados como recursos discursivos que objetivam a divulgação de uma

pedagogia própria e voltada exclusivamente para o jovem negro periférico. A

performance – a fala em ato que rompe com os paradigmas estabelecidos e fere a

pretensa homogeneidade da nação – é uma performance pedagógica que, mesmo

contendo todos os elementos que podem ser caracterizados como um discurso

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performativo, para citar o termo empregado por Homi K. Bhabha para classificar os

discursos se opõem à fala homogeneizante da nação, pode igualmente ser

denominado como uma fala pedagógica.

Mesmo que alguns mecanismos de intervenção política deste movimento

sejam semelhantes a uma série de discursos facilmente relacionados à estruturas

hegemônicas, o principal ato de rasura e intervenção que estes autores promovem é a

sua própria inserção na série literária enquanto autores. É a própria existência de um

amplo movimento literário organizado que reúne autores de origem periférica um ato

inédito. O estranhamento em grande parte vem da presença de autores negros e

vindos da favela no âmbito da cultura letrada, que exige regras e condutas específicas.

Diferentemente da música popular que, de certa forma, é uma constante cultural das

camadas populares, a escrita se impõe como um valor de exclusão e de

hierarquização frente às elites econômicas. Contudo, mesmo que possamos afirmar o

ineditismo deste movimento, os autores buscam um ponto de ancoragem próprio ao

formarem uma espécie de cânone literário marginal. A suposta filiação reivindicada

engloba autores que exerceram o papel de mediadores entre a margem e o centro,

sabendo transitar entre estes dois pólos, assim como a primeira autora favela:

Carolina Maria de Jesus.

Excluindo os vetores sociais e políticos, a linguagem assume um importante

papel na formação do movimento. Obviamente, desde o modernismo torna-se estéril

discutir sobre a linguagem no âmbito da correção estilística. No entanto, é

interessante notar a importância que a linguagem adquire na feitura dos escritos

marginais. Por um lado, ela aproxima o leitor de uma possível verossimilhança com

espaços desconhecidos, por outro lado, ela transgride, não mais em uma atitude de

ruptura vanguardista, mas como interferência do sujeito periférico na fala normativa.

Não é mais possível separar a violência factual da “violência” narrativa. É como se

também a gramática, a língua culta fosse violentada.

Corromper a língua significa torná-la aberta a uma nova rede de significados

que escapam ao leitor tradicional. Como questiona Foucault, em A ordem do

discurso, “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de

seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?”(Foucault,

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1996, p.11). O perigo coloca-se como sinal de negação à ordem dominante que se

estabelece discursivamente. O outro enquanto sujeito nomeado pelo mesmo ou

incapacitado de se definir na língua do dominador não adquire existência própria. A

subversão da ordem disciplinar imposta pela língua abre caminhos para que a

alteridade possa se impor no território do mesmo, alterando o código lingüístico com

uma linguagem que busca [re]criar as gírias e expressões que se avultam no espaço da

periferia. A linguagem marginal surge como uma forma de expressão

intrinsecamente ligada à cultura da favela, expressar-se literariamente nesta

linguagem é tentar preservar tal manifestação, como afirmar Ferréz no manifesto

“Terrorismo Literário”:

E temos muito para proteger e a mostrar, temos nosso próprio vocabulário que é muito precioso, principalmente num país colonizado até os dias de hoje, onde a maioria não tem representatividade cultural e social, na real, nego, o povo num tem nem o básico para comer, e mesmo assim, meu tio, a gente faz por onde ter uns barato para agüentar mais um dia.(Ferréz, 2005, p. 11)

Tão importante quanto conquistar o espaço territorial é igualmente centralizar o

poder discursivo, construindo, literalmente, um território narrativo que seja capaz

de abarcar sua própria linguagem. “O poder de narrar”, afirmar Edward Said, “ou

de impedir que se formem ou surjam outras narrativas, é muito importante para a

cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre ambos.”

(Said, 1995, p.13). “Me tomaram tudo, menos a rua.”, afirma Ferréz, no texto de

legenda de uma das fotos da primeira edição do romance Capão pecado. A rua

torna-se princípio identitário, lugar que não pode ser tomado porque é também

discurso de onde nascem as narrativas marginais. O vínculo entre rua e discurso é

reafirmado, ou seja, a junção entre território e sujeito apresenta-se como uma

forma de construção de uma identidade inscrita no território da periferia. No

entanto, tal proposta de construção identitária, que se faz através de um

agenciamento político que utiliza a literatura como veículo, também é alvo de

críticas, observando na afirmação do vínculo do sujeito autoral com a margem um

exercício que potencializa uma leitura centrada unicamente na exaltação biográfica

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do autor, como destacou Fernando Bonassi, em evento organizado no SESC

Consolação, como parte da Mostra Artística do Fórum Cultural Mundial:

Eu acho a expressão literatura marginal um massacre, a pior coisa é os textos ficarem sob essa égide. É típico da má crítica essa leitura sociológica que não se apega aos detalhes literários e se prende à experiência social. Isso não me interessa, eu tenho horror às interpretações sociológicas dos autores, isso desqualifica a literatura por causa da experiência social. A literatura não é expressão de um grupo social, é originalidade. Não vi ninguém elogiar o Ferréz pela qualidade do texto dele, falam mais do fato dele ser pobre e do hip-hop. Tem sido devastador ser marginal, os instrumentos de abordagem são ultrapassados, a ideia de marginalidade empobrece a nossa obra. Estamos falando de urbanidade, eu gosto mais de pensar assim, mesmo porque ninguém chamou o Graciliano Ramos de marginal pela pobreza apresentada em Vidas secas(Apud, Peçanha, 2009, p. 114-5)

A argumentação de Fernando Bonassi se baseia na recepção que os críticos

literários, leia-se também os leitores, realizam destes escritos marginais. A crítica

do autor se fixa na recorrente forma de apresentação destes autores, que utiliza

critérios sociológicos para analisar a obra literária. Na percepção do autor, ao

estabelecer a exaltação da presença destes autores na cena literária a partir de uma

análise que lança mão de categorias sociológicas, é colocado em detrimento o

valor literário presente nestas obras. Em outras palavras, Bonassi espera uma

leitura da Literatura Marginal a partir de propostos teóricos e metodológicos

unicamente ligados à Crítica Literária. Nesta perspectiva, o que importa analisar é

o texto literário e não o produtor do discurso.

A perspectiva de Bonassi se torna mais reveladora no momento em que lemos seu

posicionamento em diálogo com a sua trajetória de vida, mesmo que isso não

agrade o autor. Nascido em uma família de operários e residente no Bairro da

Moca, Bonassi não é, em essência – termo delicado –, um marginal e, muito

menos, filho de uma família abastada. Ele se fixa na fronteira, no espaço

intersticial entre a afirmação de uma condição de vida marginalizada e a exaltação

de um padrão econômico burguês. É neste local de divisão que o autor busca

produzir uma obra que seja lida unicamente pela sua qualidade literária, sem

lançar mão da produção de um discurso baseado na afirmação de sua infância e

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juventude no subúrbio de São Paulo. Em outras palavras, o autor quer ser lido por

seu mérito literário.

A postura de Fernando Bonassi nos auxilia a pensar as propostas políticas da

Literatura Marginal sob outra perspectiva. Não estariam estes autores promovendo

um certo sensacionalismo em torno da miséria e do crime. A construção identitária,

sob este prisma, se assemelha à construção de um personagem. Os autores periféricos,

principalmente Ferréz, lançam mão de uma série de artifícios para afirmarem sua real

ligação com os setores marginalizados. Resulta deste empenho uma postura dúbia,

que pode ser lida com uma proposta política inovadora no uso da literatura como

forma de subjetivação e, em outra perspectiva, favorece a identificação de

mecanismos discursivos que atentam para o uso da periferia e do crime através de um

oportunismo sensacionalista.

No entanto, se apagarmos estas marcas sociais da Literatura Marginal sobrará

apenas um compêndio de textos que pouco traduz o ineditismo da postura destes

autores. Silenciar esta voz que agora se ergue entre os becos e vielas de diferentes

favelas, obrigando-a a não demarcar seu próprio território em um solo

tradicionalmente hierárquico e excludente – aqui a idéia de exclusão é a que melhor

define a relação entre as camadas populares e as elites letradas – seria, ao meu ver,

um posicionamento autoritário. Não restam dúvidas de que é necessário elaborar

novas maneiras de ler e travar contato com esse Outro, tomando-o não apenas como

um simples objeto a ser representado. Certamente, a melhor solução não é deixar o

marginalizado falar por si mesmo, formando um espaço discursivo amparado em um

simplório antagonismo de classe. Muito menos a melhor saída é aceitar que sejam os

intelectuais os porta-vozes deste grupo. O problema consiste em encontrar uma

solução, mas “eu acredito” – reproduzo Gayatri Chakravorty Spivak – “que enquanto

houver a consciência de que esse é um campo muito problemático, existe alguma

esperança.”(Spivak, 1990)

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