A Arte de Falar Da Morte Para c - Lucelia Elizabeth Paiva

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A arte

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    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudosacadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudivel a venda, aluguel, ou quaisqueruso comercial do presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico epropriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que oconhecimento e a educao devem ser acessveis e livres a toda e qualquerpessoa. Voc pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou emqualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel."

  • Sumrio

    DedicatriaAgradecimentos1 UM POUCO SOBRE MIM...

    Era uma vez...Como Surgiu a Ideia de Falar sobre a Morte comCrianas

    2 VISITANDO ALGUNS AUTORES: O QUE ELES DIZEMSOBRE

    1. A Morte2. A Criana3. A Escola4. Literatura Infantil5. Biblioterapia

    3 BATENDO PORTA DAS ESCOLAS PARA FALAR SOBRE AMORTE

    1. Apresentao da Pesquisa2. Sobre os Livros3. Sobre as Escolas4. Sobre os Participantes5. Sobre os Encontros

    4 IN LOCO / ACHADOS1. As Escolas2. Os Livros Infantis3. Temas Relevantes Levantados Durante os Encontros4. A Criana e a Morte5. Introduo do Tema da Morte no Contexto Escolar6. A Educao para a Morte7. O Educador e a Morte8. Palavras-chave9. Os Educadores Grandes Descobertas

    5 MEU NOVO DESAFIO: ABRINDO NOVAS PORTAS6 UM POUCO DE CADA UM...

    E viveram felizes para sempre (?)REFERNCIAS BIBLIOGRFICASANEXOS

  • Luclia Elizabeth Paiva

    A arte de falar da morte para crianasA literatura infantil como recurso para abordar a morte com crianas e

    educadores

    Copyright 2011 Editora Ideias & LetrasTodos os direitos reservados editora

    Edio Digital

    Aparecida-SP2011

  • DIRETOR EDITORIALMarcelo C. Arajo

    COORDENAO EDITORIALAna Lcia de Castro Leite

    COPIDESQUEMnica ReisREVISO

    Bruna MarzulloDIAGRAMAO

    Juliano de Sousa CervelinCAPA

    Alfredo CastilloILUSTRAO DE MIOLO

    Juliana Paiva ZapparoliGiovanna Paiva Zapparoli

  • Paiva, Luclia Elizabeth A arte de falar da morte para crianas: a literaturainfantil como recurso para abordar a morte com crianas e educadores / LucliaElizabeth Paiva. Aparecida, SP: Idias & Letras, 2011.

    Todos os direitos reservados Editora Idias & Letras 2011

    Rua Pe. Claro Monteiro, 342 Centro

    12570-000. Aparecida, SP.

    Tel. (12) 3104-2000 Fax (12) 3104-2036

    Bibliografia.

    ISBN 978-85-7698-112-1 (eBook)

    1. Biblioterapia

    2. Crianas Desenvolvimento

    3. Crianas Educao

    4. Educao de crianas

    5. Educao em relao morte

    6. Literatura infantil Estudo e ensino

  • 7. Luto Aspectos psicolgicos

    8. Morte

    9. Pedagogia

    10. Professores Formao

    11. Psicologia educacional

    12. Psicologia infantil I. Ttulo.

    Palavras-chave: 1. Literatura infantil como recurso pedaggico: Educao decrianas: Educao em relao morte: Psicologia escolar e desenvolvimentohumano 370.158

    www.ideiaseletras.com.br

    [email protected]

  • Dedicatria

    minha querida e eterna av,

    madrinha de vida inteira, Maria do Carmo.A meu querido vov Manoel, com quem aprendi

    a falar da morte de uma forma suave,com quem compartilhei a vida e a morte.

    A meus queridos pais, Afonso e Anunciao,que me ampararam para que eu tivesse

    condies de trilhar meus caminhos.A minhas queridas filhas, Juliana e Giovanna,

    meus frutos, que lancei no mundo... minha eternidade!E queles que fazem parte da minha histria!

  • Agradecimentos

    So muitas as pessoas que participaram da minha histria... Minha

    gratido, pois todos foram muito importantes, cada qual com sua passagem,contribuio, de maneira pessoal e singular.

    Em especial, agradeo Prof.a Dr.a Maria Jlia Kovacs incentivar-me aacreditar nos livros infantis e acompanhar-me nesse percurso; Prof.a Dr.a MariaJlia Paes da Silva e Prof.a Dr.a Solange Aparecida Emlio, as crticas, ascontribuies e o grande apoio; Prof.a Dr.a Ana Laura Schielman e Prof.a Dr.aNely A. Nucci as ricas reflexes e participao na Banca de Defesa do Doutorado.

    Vivo com minhas histrias, ora criana, ora mulher... ora triste, ora feliz...entre sonhos e espantos, mas vou vivendo cada canto, cada momento, muitasvezes tropeando na morte que atravessa a vida, mas sempre com a esperana depoder compartilhar a vida que h na morte.

    Muito obrigada a todos que me fizeram pensar.Uma vida, uma morte: uma histria para contar!

  • 1 UM POUCO SOBRE MIM...

    Era uma vez...

    Muitas princesas entraram em meus sonhos e muitas bruxas meassustaram, mas Cinderela sempre me encantou com sua simplicidade ehumildade, sonhando com a felicidade... Branca de Neve ensinou-me a valorizara amizade... Bela Adormecida ensinou-me a acreditar no amor.

    Eu ficava muito aflita com o Lobo Mau, que sempre perseguia aChapeuzinho Vermelho e os Trs Porquinhos, mas tive o privilgio de conhecerRapunzel! Ah, Rapunzel! Com ela aprendi a arriscar-me, a jogar as tranasmesmo correndo riscos, apesar dos perigos...

    Fadas e bruxas sempre me acompanharam na vida, e as histrias fazemparte de minha vida desde minha meninice.

    Lembro-me de minha irm, seis anos mais velha que eu, muitoestudiosa, lendo histrias da coleo O Mundo da Criana (1954) para mim. Eeu... viajava em meus pensamentos e em minha imaginao em cada histriaque ela contava.

    Hoje, fico pensando na criana aprisionada em mim mesma, buscandouma magia, encanto ou feitiaria que me fizesse destrancar minhas amarras.

    Nunca me esqueo da pacincia de minha irm (e de suas reclamaes)cada vez que eu pedia para contar-me a linda histria de Rapunzel, mais umavez, como se fosse a primeira vez... Ela sempre me perguntava: Essa, denovo?. E eu sempre tentava convenc-la de que seria a ltima vez...

    Mas minha irm no foi a nica a coroar-me com histrias. Minha avmaterna, a minha eterna dona Maria do Carmo, apesar de analfabeta muitosbia! , sempre tinha uma histria para contar. Quando dormamos juntas, elasempre me contava histrias de santos era muito catlica! ou episdios desua vida. Cresci ouvindo suas histrias da lavoura, dos lobos que, ainda muitojovem, enfrentava quando guiava seu rebanho. Eu ficava boquiaberta ouvindominha av, com aquele sotaque portugus que por vezes no me deixavaentender alguma palavra, mas eu no a interrompia. Eu ficava imaginando acoragem dela.

    Apesar de tmida, calada, tola, eu desejava um dia ser igualzinha minha av: uma mulher muito boa, cheia de vida e, por isso mesmo, cheia dehistrias... Histrias encantadoras!

    E foi assim que eu aprendi a apreciar as histrias: contos maravilhosos ehistrias de vida. Saboreava cada palavra, levando, para dentro de mim, aaventura da vida, em minha imaginao. Com isso, sempre valorizei as histrias.Acho que o fato de ouvir tantas histrias me incentivou a apreci-las e a cont-

  • las.J bem crescidinha, durante um processo de psicoterapia pessoal (incio

    da dcada de 1980), deparei-me com Soprinho (Almeida, 1971), que me soprouum desejo de adentrar a floresta e descobrir os mistrios que nela existem.

    E, a partir de ento, eu percebi o quanto a histria infantil poderia servircomo facilitadora para olhar os meus fantasmas.

    Apaixonei-me mais ainda pelos livros infantis e passei a olh-los comuma curiosidade diferente: como passatempo e tambm como meio para fazerpensar, repensar, refletir... Achei maravilhosa a experincia e, da em diante,sempre que considerava vivel, utilizava esses livros como facilitadores (emprocessos teraputicos com meus pacientes, no consultrio e no hospital). Passeitambm a us-los para abordar temas especficos com meus sobrinhos e filhas,pois a histria infantil faz parte do universo da criana, facilita sua compreenso.E assim aconteceu!

    Comecei a desempenhar meu papel de contadora de histrias com meusobrinho, quando eu estava no final da faculdade. Aproveitava as histrias parafalar de assuntos difceis com ele. Inclusive sobre a morte. Mas, naquela poca,eu nem imaginava que, um dia, eu estaria aqui, levando esse assunto para omundo.

    Quando trabalhava no Pronto Socorro e nas Unidades de TerapiaIntensiva do Instituto Central do Hospital das Clnicas/FMUSP (final da dcada de1980), atendia a vrias crianas, vtimas de trauma (acidentes, quedas,ferimentos por arma de fogo etc.). No era um PS infantil e, por isso, as crianasacabavam se deparando com um ambiente ainda mais assustador.

    Eu oferecia livros a elas, contava-lhes histrias. Esse era, portanto, uminstrumento que no s facilitava nossa relao, mas tambm possibilitava pormeio das histrias falar de suas dores emocionais. Dessa maneira, acabavaselecionando algumas histrias especficas que me auxiliavam em algumasocasies. Foi a que me aproximei da coleo Estrias para Pequenos eGrandes, de Rubem Alves, descobrindo A operao de Lili. Utilizava muito esselivro para falar das dificuldades de estar doente, internado e passar porprocedimentos mdicos mais invasivos e dolorosos, como cirurgias.

    Fui percebendo que, em algumas ocasies, os livros de Rubem Alvescabiam para falar das dores com os adultos tambm. E foi assim!

    Caminhei pelas estradas das livrarias, no cantinho das crianas,principalmente, e descobri tesouros!

    J com minhas filhas, Juliana e Giovanna, aprimorei-me. Elas sempregostaram de ouvir minhas histrias, mesmo j crescidas. Era hbito,principalmente na hora de dormir, ler algumas histrias. Sempre foramestimuladas tambm com os vrios vdeos da Disney, que contavam as histriasclssicas. E, com as histrias de livros e de filmes, conversvamos muito sobre

  • sentimentos e dificuldades... a vida e a morte.Com elas, pude constatar que os livrinhos eram teis para enfrentar os

    diversos momentos da vida. Talvez eles tenham nos ajudado a enfrentar muitasde nossas dificuldades.

    Minhas filhas colaboram muito para o meu trabalho, pois criaram ohbito de ler (de tudo!) e me auxiliam encontrando histrias interessantes, tantoem livros como em filmes. So duas meninas encantadoras e muito sensveis!

    Claro, continuei utilizando as histrias tambm como puro passatempo,para viajar com a imaginao.

    Surpreendo-me relembrando minha histria. Pois , mais uma vezconstato a importncia das diversas histrias: histria de vida, histria vivida,histria inventada... histria pensada, no pensada, lembrada, relembrada...Enfim, qualquer tipo de histria que nos faa pensar, imaginar, criar, sonhar.

    Certo dia, durante meu curso de Mestrado (no Hospital do Cncer),quando tentava entender como o mdico lida com esta to instigante inimiga etraioeira, a morte, assistindo a uma aula da disciplina Psicologia da Morte, daProf. Maria Jlia Kovcs, no Instituto de Psicologia da USP, tive a oportunidadede apresentar-lhe meus livros. Tantos livros infantis que falavam de tudo: da vidae da morte, de perdas, diferenas, mudanas e sentimentos... Meus tesouros!Nessa oportunidade, com grande entusiasmo, ela me incentivou a transformarseu uso na produo de conhecimento.

    E foi assim que tudo comeou. E quero mostrar um pouco do que pudedescobrir com eles. Esses meus tesouros tm um brilho prprio, uma riquezasingular.

    E, por essa estrada afora, tentarei falar um pouco deste meu caminho.Um caminho que estranho, mais uma vez. Alis, eu, como Maria, personagemdo livro A Corda Bamba (Nunes, 1982), sempre resolvi espiar com muitacuriosidade o que se passava em outros lugares e, assim, fui abrindo muitasportas estranhas e diferentes em minha vida. Portas de dentro e de fora, da frentee dos fundos. Sempre muito curiosa e at audaciosa.

    E mais uma vez sinto-me uma estrangeira em terra estranha, onde nose partilham a mesma cultura, os mesmos valores; onde no se fala a mesmalngua...

    Senti-me assim quando, no incio de minha vida profissional, aventurei-me no hospital geral: a casa do mdico! (Isso faz tempo. Na poca em quealguns poucos psiclogos trilhavam esse mesmo caminho. E, hoje, depois demais de 20 anos, temos a Psicologia Hospitalar como especialidade!)

    Lembro-me que, em 1988, ao ingressar por concurso pblico no InstitutoCentral do Hospital das Clnicas da Faculdade de Medicina da Universidade deSo Paulo, escolhi o Pronto Socorro e as UTI s para construir meu percurso

  • profissional no contexto hospitalar.Comecei a descobrir nos pacientes e familiares/acompanhantes, o

    material/ contedo que seria possvel desenvolver em termos de trabalho nessesespaos. No era e nunca foi um trabalho fcil.

    Naquela poca, fui compreender melhor a rotina e os valores a partir dasobras de Foucault (1987, 1989). Existe uma histria, uma cultura por trs de tudoisso que vivenciamos e que assistimos no cotidiano hospitalar inclusive aforma como as relaes so estabelecidas.

    A partir de minha vivncia, enquanto participante desse contexto,comecei a sentir certo incmodo ao me deparar com as crticas que se faziamaos profissionais mais diretamente ligados aos pacientes, principalmente figurado mdico. Fala-se muito a respeito da frieza e indiferena do contextohospitalar, nas relaes interpessoais, principalmente na relao que seestabelece com o paciente.

    Chamo aqui de paciente no somente o paciente em si, mas seusfamiliares, que tambm devem ser vistos assim, uma vez que esto passando porum processo de adoecimento, s que um adoecimento diferente, que se d peloprocesso da perda real ou pela possibilidade de perda.

    Diante desse cenrio eu quis entender o porqu desse distanciamento,dessa indiferena na relao profissional-paciente. Podia entender claramente osmecanismos de defesa presentes nessa relao, mas isso no era o suficiente.Decidi, ento, tentar entender no Mestrado esses mecanismos advindos danecessidade de se defender do sofrimento vivenciado na relao mdico-paciente.

    Durante o curso de Mestrado (Paiva, 2000), estudei os mdicos em suarelao com pacientes com cncer avanado e em fase terminal. Procureianalisar, utilizando um questionrio e uma entrevista, as atitudes dos mdicos emrelao doena, ao doente, famlia, morte e a seu percurso durante suaformao acadmica e profissional. Observei que, apesar de todos os mdicosentrevistados trabalharem com pacientes com cncer avanado e em faseterminal, nem todos, na verdade, suportavam esse contato e relataramdificuldades pessoais e/ou limitaes para enfrentar tais situaes.

    Quanta dor e quanta morte encontrei em meus entrevistados. Quedificuldade e quanto sofrimento vivenciado nessa relao!

    Pensei muito na formao do mdico e em seu despreparo paratrabalhar com a vida e a morte, nas situaes que mobilizam tantos sentimentos,como a impotncia, por exemplo.

    Foi pensando na formao do mdico e, depois, ampliando essequestionamento para a formao de todos os profissionais de sade que sedeparam com as vrias mortes em seu cotidiano que passei a me questionarcomo ns, de modo geral, lidamos com essa questo.

  • Os profissionais so treinados/ preparados para curar e salvar curar ador fsica de quem sofre , mas no so preparados para lidar com angstias,dores e sofrimentos emocionais advindos do sofrimento fsico.

    Essa relao de troca existe no prprio contato humano e, por mais quese tente fugir dela, ela existe por si e em si.

    A partir dessa compreenso, fiquei imaginando quanto os profissionais desade so mal preparados para lidar com essas mortes, com todo esse sofrimentoe essa dor e buscam, em sua profisso, encontrar uma poo mgica. No aencontram! Apenas enfrentam mais sofrimento, muitas vezes, sentindo-sefracassados.

    Um sofrimento solitrio, engolido, calado, sufocado, no compartilhado...Pensei, ento, se estavam conscientes da escolha profissional que

    fizeram, se tinham conscincia do que iriam encontrar e com o que lidariam aolongo da trajetria e vida profissional, e em muitos momentos pareceu-me queno!

    Diante disso, deduzi que a problemtica seria anterior. Acredito que anecessidade maior esteja em lidar com essas questes (dores, morte esofrimento) ao longo da vida, para uma escolha profissional mais madura e maisconsciente. E no s nisso, mas tambm nas nossas outras escolhas, ao longo davida.

    Pensar a morte repensar a vida!Acredito que isso sugira uma possvel mudana de cultura.Conclu, portanto, que a melhor forma de se encarar o sofrimento, a vida

    e a morte, poder falar das angstias que acompanham essas questes, olh-lasde frente, desvend-las e revel-las. Mas como fazer isso, se falar desses temas proibido?

    Ilustrarei esse desafio com uma passagem interessante atravs do olharde uma menina de 12 anos em relao a um livro infantil.

    Certa noite, em 2004, estvamos minhas filhas Juliana e Giovanna,com 12 e 9 anos na poca, respectivamente e eu numa grande livraria de SoPaulo. Enquanto procurava alguns livros que precisava comprar, minhas filhassaboreavam alguns livros no cantinho da criana.

    De repente, Juliana apareceu com um livro indito. Disse-meentusiasmada: Mame, mame, esse livro deve te interessar... ele fala demorte!. O livro era Sadako e os Mil Pssaros de Papel (Coerr, 2004). Ela quisque eu o comprasse e o leu rapidamente, achando-o muito bonito, embora triste.A menina, personagem central, morre no final da histria.

    O livro baseia-se na histria verdica de Sadako, uma menina vigorosa eatltica, nascida em Hiroshima, que contraiu leucemia, decorrente dos efeitostardios da radiao da bomba atmica. Aborda o diagnstico, o tratamento e amorte da menina, assim como o envolvimento de familiares e amigos durante o

  • tratamento e aps sua morte. Com muita sensibilidade, essa histria nos traz alenda japonesa dos pssaros de papel (tsuru), que diz que, se uma pessoa doentedobrar mil pssaros, os deuses lhe concedero a graa de ter seu desejo atendidoe a tornaro saudvel novamente. O livro descreve como a menina enfrentou suadoena e tratamento at sua morte e como seus familiares e amigos fecharamum ciclo na elaborao do luto.

    Foi muito interessante o comentrio que Juliana fez ao pedir o livroemprestado para lev-lo escola e sugeri-lo aos professores. Pensou que seriaum livro interessante a ser adotado pela escola, pois podia abranger vriasdisciplinas (para alunos da 6 srie):

    Portugus/Literatura pela prpria prtica da leitura e interpretao. Histria por abordar a questo da Segunda Guerra Mundial e da

    bomba atmica lanada em Hiroshima, no Japo. Cincias por falar sobre leucemia (um tipo de cncer surgido,

    neste caso, como efeito da bomba atmica), seus sintomas, tratamento,possibilidades de cura.

    Filosofia pela reflexo que poderia ser feita sobre a vida e a morte,a morte de uma adolescente, a participao da famlia e dos amigos noenfrentamento e no processo de doena e morte, assim como no ps-morte.

    Artes pela possibilidade de se reproduzir o pssaro de papel emOrigami.

    Enfim... essa foi a articulao espontnea de Juliana na poca.Entusiasmada, levou o livro escola e o apresentou professora de

    Portugus/ Literatura.Depois de alguns dias, Juliana veio bastante desapontada com a resposta

    de sua professora. Eis seu relato: A professora disse que o livro bom, bonito,mas que no poderia ser adotado, pois era muito triste. A menina morre no final.

    Juliana questionou-me por que as pessoas no falam das coisas queincomodam... Por que no se fala das coisas tristes, se elas existem? Ser que sefalssemos dessas coisas no seria mais fcil enfrent-las, pensar em solues?.

    Conversamos a respeito disso, mas fiquei sem uma resposta exata paradar minha filha, uma vez que esse o panorama que encontro em meucotidiano profissional. Esses so tambm os meus questionamentos comopsicloga. Por isso, estou aqui, tecendo reflexes, estudando, buscando respostasou refletindo sobre minhas inquietaes...

    Mais uma vez deparei-me com a ideia de calar e ocultar o feio e otriste... Fazer de conta que isso no existe... Mais uma vez o fazer de conta...Logo, deduz-se que mais fcil engolir os medos e nos colocarmos debaixo dascobertas, cobrindo-nos at a cabea, deixando apenas uma frestinha por ondeespionar a invaso das bruxas...

    Pois bem, esse pode ser um exemplo do quanto as pessoas esto

  • distanciadas daquilo que, de to perto, nos aflige.Pergunto-me ento: Ser que as pessoas esto dispostas a encontrar

    caminhos para sua falta de preparo para discutir temas que consideram difceisde serem abordados com crianas e jovens (temas esses to complexos que nosassustam ao invadirem nosso cotidiano)? De que adianta dizer que no fomospreparados para essa tarefa? Ser que, realmente, existe a disponibilidade paraesse possvel preparo?

    Ao longo de 15 anos, deparei-me com esse questionamento enquantopercorria os corredores dos hospitais, assistindo ao sofrimento de pessoas e aosofrimento dos profissionais que cuidavam desses doentes.

    Embora o sofrimento s se evidencie no discurso do doente afinal aomdico no sobra tempo para sofrer , nas entrevistas que realizei com mdicosque lidam com a morte ou sua possibilidade em seu cotidiano profissional,ficou muito claro o quanto eles acumulam de sofrimento e justificam que setornaram frios e distantes (como so acusados) pela falta de preparo para lidarcom doentes em situaes nas quais a morte uma possibilidade quase semprecerta (Paiva, 2000).

    Atualmente, j se pensa em maneiras de preparar o profissional desade ao longo de sua formao acadmica. No entanto, ressalto que tal preparodeve acontecer ao longo da vida inteira, uma vez que as vrias mortes fazemparte de nossa existncia enquanto seres humanos (justamente para que sejapreservado o humano).

    Por isso, entro neste estudo, que busca alternativas ao preparo doscuidadores, para que possam acolher os questionamentos advindos de sereshumanos de todas as idades, inclusive de nossos pequenos, nos vrios contextos desuas vidas.

    Acredito que, ao se adentrar o universo infantil com abertura para esseacolhimento, poderemos repensar aspectos pertinentes morte, perdas e luto,tecendo reflexes, partilhando experincias e sentimentos nesse exerccio deconvivncia.

    Para isso, elegi a literatura infantil como meio de intermediar essasreflexes e compartilhamento de opinies, sentimentos e emoes.

    Acredito que a literatura infantil mobilize tambm vrias emoes denossas crianas internas, trazendo tona bruxas e fadas que habitam nossointerior.

    Fadas e bruxas trazem-nos, cada qual com seu potencial, encantos efeitios que podem transformar-nos e ajudar-nos a encontrar respostas (nemsempre to mgicas) para enfrentarmos nosso universo ameaador.

    Contar contos de fadas, histrias de vida... de vida e de morte... Encontrarsempre nelas o final feliz, nem que seja a felicidade de encontrar a dor doce dasaudade!1

  • Como Surgiu a Ideia de Falar sobre a Morte com Crianas

    No passado, de acordo com o livro A Histria da Morte no Ocidente(Aris, 1977), a morte era um evento pblico e social, ou seja, fazia parte da vidade todos, inclusive contava com a participao de crianas nesse evento.

    Atualmente, a morte colocada do lado de fora da vida, entretanto, elaest muito prxima. Basta nos depararmos com a violncia que encontramos nasmetrpoles, envolvendo assaltos, sequestros, acidentes e o anonimato.Observamos tambm o medo aterrorizador das guerras e dos ataques terroristasem outros pases divulgados diariamente pelos meios de comunicao.

    Se olharmos com ateno a questo da sade, notaremos mudanas queocorreram com os avanos da Medicina. Hoje, os idosos tm uma sobrevidamaior; os pacientes acometidos por algum tipo de doena crnica, como ocncer, por exemplo, tm uma chance de cura e/ou de viver por mais tempo.Alm disso, indivduos soropositivos para o HIV , que antes eram vistos comocondenados, hoje passam a ter uma vida muito mais prxima do normal, por umtempo considervel, inclusive com chances de constituir famlia.

    Por outro lado, temos como consequncia muitos jovens e crianas quej perderam algum parente prximo ou at mesmo os pais vtimas do cncer ouda AI DS. Perguntamo-nos: Como a morte trabalhada com essas crianas ecom esses jovens?

    No caso da AI DS, h muitas crianas e jovens cujos pais sosoropositivos, e em muitos casos eles prprios so soropositivos para a doena etm que viver com essa condio, embora ainda no estejam preparados paraenfrent-la. Muitas crianas e jovens vivem e convivem com a doena, tendosempre a morte como uma possibilidade muito presente, alm de terem que lidarcom o luto de pais, amigos e parentes nessas condies.

    Penso nas crianas que sofrem o estigma de conviver com essa tarjapreta da orfandade da AI DS. Como constroem seu percurso e como lidam coma perda do(s) pai(s) por causa de uma doena que, socialmente, vista comoresultado de uma vida promscua?

    Comecei a refletir sobre a formao do indivduo e, ento, a percorrer aseguinte linha de pensamento: seria interessante que as vrias mortes com asquais a criana se depara em seu dia a dia pudessem ser trabalhadas, para queela fosse preparada desde cedo a enfrentar esse tema. Nesse contexto, o termomorte adquire um conceito bem mais amplo, abrangendo no s a morte fsicacomo tambm as mortes simblicas, envolvendo perdas, dores e frustraes.

    Ao longo da infncia, a criana, muitas vezes, se depara no s com amorte de seu bichinho de estimao ou de uma pessoa importante, mas tambmcom a separao dos pais (morte de uma famlia constituda), a dor da diferena

  • (sofrimento decorrente do fato de ser diferente) ou a impossibilidade deconseguir algo. Tais frustraes, dores, perdas e mortes provocam sofrimento edores psquicas e, algumas vezes, levam a mudanas e reformulaes na vida dacriana.

    Portanto, parto da premissa de que, com adultos que saibamcompreender essas vrias mortes, provavelmente a criana estaria mais bempreparada para enfrentar perdas. Alm disso, poderia elaborar o processo de lutocom mais facilidade e, provavelmente, tambm conseguiria se relacionarmelhor com as situaes inevitveis, sendo capaz de encarar a morte como algoque faz parte do processo do viver.

    Ao longo de meu percurso profissional, como psicloga hospitalar,sempre me chamaram a ateno a questo da onipotncia mdica e a posturafria e distante que os mdicos adotam para lidar com seus pacientes, mostrando-se muitas vezes apressados, sem tempo, com uma linguagem prpria, s vezesno compreendida.

    No Mestrado, ao estudar como acontece a relao do mdico comsituaes de morte, constatei o sentimento de impotncia diante de umprognstico da impossibilidade de cura e a frustrao que esse paciente poderiarepresentar para o mdico. De modo geral, esses profissionais demonstraramdificuldades emocionais para lidar com a finitude e com os limites da Medicina,reclamaram de uma formao acadmica voltada para a cura e o despreparopara lidar com uma gama de sentimentos e aspectos psicolgicos que estopresentes na situao de no cura (Paiva, 2000).

    A partir dessas constataes, em relao aos mdicos e a outrosprofissionais de sade, comecei a me questionar sobre o preparo dos profissionaisda rea da educao para lidar com situaes de morte, perdas e luto, uma vezque, culturalmente, pensa-se que a morte no faz parte do contexto da educao.

    Durante o processo de seleo para o Doutorado, fui questionada sobremeu projeto, tendo como argumento a questo de que os profissionais da rea deeducao no esto voltados para a problemtica da morte nem so preparadospara lidar com o tema. Ouvi que a escola no um espao no qual se queirasaber de conflitos dessa ordem. Tive a impresso de que meu projeto no erabem-vindo, embora tivesse sido aprovado, e de que seria melhor pesquisarquestes mais pertinentes educao e que pudessem trazer resultados maissignificativos e proveitosos. No me atrevi a discutir tal questionamento, decididefender meu projeto.

    A morte faz parte do cotidiano de todos ns, inclusive de nossas crianas.Cabe aqui lembrar que, atualmente, a morte invade nossa vida repentinamente,sem nos pedir licena, sem aviso prvio, sem controle, sem formas de proteo efaz parte de nossa vida pessoal. a morte escancarada (Kovcs, 2003). Isso vivenciado por todos e cada um de ns nas ruas violncia, homicdios,

  • acidentes etc. , nos meios de comunicao jornais, rdios etc. e dentrode nossas casas nos noticirios da TV , nas cenas de violncia fsica e social,nas cenas de acidentes, homicdios, guerras, atentados. E esses eventos no tmhorrio certo para acontecer e/ou serem exibidos, em qualquer hora do dia ou danoite, para qualquer um, de qualquer idade. A morte invade nossos lares, e no hreflexo a respeito. Desse modo, corremos o risco de sermos impregnados pelador e pelo sofrimento, dando a impresso de que isso natural e faz parte davida. Podemos encarar essa situao como uma banalizao da morte. E, assim,continuamos a jornada, sem falar sobre a morte, sem elaborar o tema. Pareceque somos obrigados a engolir a morte sem digeri-la.

    A morte est presente, inclusive, nos desenhos animados dos quais ascrianas tanto gostam. A ideia mgica da imortalidade aparece quando, porexemplo, o Pica-Pau atropelado por um trem, fica completamente estendidono cho como folha de papel e, em questo de instantes, toma sua forma originale sai por a aprontando das suas... Ou nas aventuras de Tom e Jerry , aoexplodir uma bomba na boca do Tom, Jerry fica totalmente chamuscado e logose recupera para novas investidas contra seu rival... Ou os dolos de filmes, comoo James Bond ou Indiana Jones, que passam por tantas aventuras, enfrentandosituaes de perigo inusitadas e saem ilesos, ainda fazendo amor com lindasmulheres. A est a ideia de imortalidade.

    Atualmente, com os joguinhos eletrnicos, a criana enfrenta situaese/ou batalhas nas quais consegue driblar a morte. Ganha bnus por suas brilhantesestratgias para combater seus inimigos e recompensada, ao passar de nvel,adquirindo vidas extras.

    Por um lado, vemos a banalizao da morte e, por outro, a imortalidade.Assim fica fcil continuar negando a morte e viver a vida fazendo de conta queela est longe de ns, que s acontece com os outros.

    Diante do cenrio no qual vivemos, assistindo a tantas mortes a cada dia,em todo e qualquer lugar, esta deixa de ser uma questo isolada e individual epassa a ser coletiva, para adultos, velhos, jovens e crianas. No resta dvida deque todos ns nos sentimos vulnerveis.

    No posso deixar de mencionar aqui o quanto o mundo ficousensibilizado quando, dia aps dia, foram veiculadas nos jornais, rdios e canaisde televiso a notcia e cenas da morte do grande dolo brasileiro da Frmula 1,Airton Senna, falecido em 1994. Ele era dolo de homens, mulheres, jovens,velhos e crianas. Morava no corao de cada um de ns. Esse dolo no eraimortal. Ele morreu. Para ns, restaram as lembranas.

    Entre muitas outras notcias veiculadas pelos meios de comunicaoesto o famoso e fatdico 11 de setembro em 2001, que chocou o mundo e odeixou mais vulnervel, e, mais recentemente (em 2006 e 2007), acidentesareos que deixaram muitas famlias desestruturadas em seu sofrimento

  • inesperado. O inesperado torna-se ento presente: cenas de destruio, morte,perdas, dor, sofrimento e desespero so vistas por todos, inclusive pelas crianas.

    A indignao surgiu em vrios ambientes: nas casas, no trabalho, nasescolas... Todos querem entender o porqu da necessidade de guerras e conflitosarmados. Todos querem saber sobre as falhas que provocaram os desastresareos. De quem a culpa pela morte de tantos inocentes. Todos querem falarsobre isso, pois a possibilidade de morrer tornou-se presente.

    Pois bem, mais uma vez questiono: Qual o espao da morte em nossavida? Existe um espao especfico para a morte? Quem o responsvel paratrabalhar com a morte? Existe algum preparo para enfrent-la?

    Particularmente, acredito que a morte est na vida, em todos os lugares,a qualquer momento, enquanto realidade ou possibilidade, ou lembrana, oumanifestao de perdas, ou ausncia, ou... ou... ou..

    Enfatizo a importncia de se dar voz queles que perdem. Enfatizo anecessidade da escuta e do acolhimento a todos os possveis sentimentos emanifestaes relacionados s vrias mortes.

    Corr, Doka e Kastenbaum (1999) valorizam a escuta ativa e a atenoespecial como formas de acolhimento, facilitadoras no enfrentamento da morte.No entanto, reforam que o enfrentamento individual, variando de pessoa parapessoa. Por isso, um assunto que implica esforos individuais e sociais parasuperar perdas e desafios arrostados durante o processo de morte.

    Priszkulnik (1992) afirma: A criana est disposta a saber a verdadesobre a morte, tanto que indaga sobre ela de vrias maneiras. Muitas vezes, oadulto que teme falar sobre o assunto (p. 496).

    Ricardo Azevedo (2003) diz que:

    falar sobre a morte com crianas no significa entrar em altasespeculaes ideolgicas, abstratas e metafsicas nem em detalhesassustadores e macabros.

    Refiro-me a simplesmente colocar o assunto em pauta. Queele esteja presente, atravs de textos e imagens, simbolicamente,na vida da criana. Que no seja mais ignorado. Isso nada tem aver com depresso, morbidez ou falta de esperana. Ao contrrio,a morte pode ser vista, e isso o que ela , como uma refernciaconcreta e fundamental para a construo do significado da vida(p. 58).

    Kovcs (2003) afirma que a morte tema para ser discutido na escola

    com jovens e crianas, uma vez que vivem grande parte de suas vidas nesseespao. Essa discusso pode envolver o psiclogo escolar, alm dos profissionaisda rea de educao. Para isso, porm, necessrio que exista um preparo, o

  • que certamente no foi assunto priorizado em sua formao acadmica. De queforma, ento, isso deveria ou poderia acontecer?

    Com este estudo espero propor uma possibilidade de se trabalhar melhorcom os educadores, que tero que dar conta das vrias mortes com as quais acriana tem contato, para que ela consiga elaborar melhor e de forma maissaudvel seus lutos.

    Para isso, introduzo uma reflexo a respeito da morte enquanto fato emsi, concentro a ateno na observao da criana e dos profissionais da educaofrente morte e discuto a viabilidade de uma seleo/estudo de literatura infantilrelacionada ao tema morte.

    Dividirei os temas em captulos para melhor explorar os vrios tpicosrelacionados ao tema proposto:

    Morte Criana Escola Literatura Infantil Biblioterapia

  • 2 VISITANDO ALGUNS AUTORES: O Q UE ELES DIZEM SOBRE

    1. A Morte

    Ser este um assunto realmente necessrio?

    Afinal, por que e para que falar de um tema que pode ser to triste, quetraz e nos remete a tanto sofrimento? Por ter em si tanta dor, angstia eansiedade, a morte um tema temido e negado.

    Sem sombra de dvidas, um assunto difcil, que amedronta a todos ns(pais, educadores, profissionais da sade, velhos, jovens, crianas...), poisenvolve no s aspectos delicados de nossas fragilidades, mas tambm aignorncia de como lidar com o fim da existncia, alm de evidenciar aincapacidade de controlar os acontecimentos dessa existncia e intensificar osentimento de insegurana e vulnerabilidade que nos assola diante dodesconhecido.

    At mesmo pelo fato de ser desconhecido e de no sabermos qual seufim, a morte tambm um assunto atraente, fascinante e complexo, que geracuriosidade apesar do desconforto. Atrai e assusta. Agua a curiosidade e fazsofrer.

    Como bem diz Elias (2001), no a morte, mas o conhecimento damorte que cria problemas para os seres humanos (p. 11).

    A morte, bem sabemos, faz parte de nossas vidas, mas dela noqueremos saber, a no ser sab-la bem longe de ns. Entretanto, ela salta aosolhos diariamente, nas notcias dos jornais, divulgando informaes econscientizando-nos de nossa condio humana. Ao mesmo tempo que invade demaneira escancarada nossas vidas, sem pedir licena, interdita, pois no sequer falar dela ou pensar nela... Nota-se, assim, a conspirao do silncio.

    Diante disso, questiono: Por que no falar da morte, se uma realidadeque vivemos ao longo de nossas existncias? Ao neg-la to veementementecorremos o risco de banaliz-la, tornando-a indiferente a ns, to presente e toocultada.

    Segundo Savater (2001), a morte continua sendo o que h de maisdesconhecido. Embora se saiba quando algum est morto, ignora-se o que sejamorrer.

    No se fala sobre morte entre os grandes, imagine pensar em falar sobrea morte com os pequenos. No que curiosidade e dvidas sobre a morte noexistam nas crianas, elas esto presentes, sim. Mas a morte faz parte do rol deassuntos proibidos para crianas.

    Ironicamente, at alguns anos atrs, evitava-se falar sobre sexo ou como

  • nasciam os bebs com as crianas, e hoje no se fala sobre a morte.Atualmente, a morte passou a ser tema proibido. Desapareceu de nossa

    vista, mas no de nossas vidas, embora, muito frequentemente, fique confinadaao ambiente assptico dos hospitais (Horta,1982; Kovcs, 1992, 2003; Maranho,1987).

    Maranho (1987) diz:

    se oculta sistematicamente das crianas a morte e os mortos,guardando silncio diante de suas interrogaes, da mesmamaneira que se fazia antes quando perguntavam como que osbebs vinham ao mundo. Antigamente se dizia s crianas que elastinham sido trazidas pelas cegonhas ou mesmo que elas haviamnascido num p de couve, mas elas assistiam ao p da cama dosmoribundos s solenes cenas de despedidas (p. 10).

    Horta (1982) afirma:

    a morte no uma doena. O nascimento e a morte fazem parteda vida princpio e fim. Embora sejamos sempre levados aatribuir causas morte e, certamente, ela as tm, no podemosfugir a seu absolutismo, realidade de que a morte a condiode vida. O morrer pode, assim, assumir vrias formas de acordocom a histria do indivduo; contudo, o fenmeno da morteabarcar sempre profundas implicaes psicolgicas que nadatm a ver com a doena propriamente dita (p. 359).

    Qual a razo, ento, de excluirmos a criana dessa realidade, da qual ela

    faz parte? Qual a razo de negarmos um espao para que ela possa apreender amorte e perceber que faz parte da vida?

    Por que falar da morte?

    Ouve-se muito que a nica certeza que temos, se estamos vivos, queum dia iremos morrer... que a morte inevitvel...

    Maranho (1987) nos diz que a morte revela o carter absurdo daexistncia humana, j que interrompe radical e violentamente todo o projetoexistencial, toda a liberdade pessoal, todo o significado da vida (p. 71). Savater(2001) afirma que a certeza pessoal da morte nos humaniza, ou seja, nostransforma em verdadeiros humanos, em mortais (p. 51). Podemos dizer, ento,que a conscientizao de nossa finitude, de nossa condio humana, de nossasingularidade como mortais que nos abre a possibilidade de pensarmos emhumanizao. Como refere Torres (1999): um homem humano porque

  • mortal, e saber que mortal que o torna humano (p. 17).Se a morte faz parte da vida e se to corriqueira, por que somos

    tomados por tanto medo?Poder falar, escutar, expor dificuldades e medos, trocar opinies pode

    ser til para se pensar e refletir sobre esse tema to temido. Compartilho da ideiade Kovcs (2003) que, se houver um espao de acolhimento, no qual as pessoassintam segurana para expor opinies, ouvir, refletir, esse pode serpotencialmente gerador de transformaes e ressignificaes da vida... umespao potencialmente humanizador.

    Por essa razo, acredito que o tema morte deva ser valorizado erepensado no s no mbito da sade, mas tambm no da educao.

    O espao da morte

    A cada dia podemos dizer que somos sobreviventes da violncia etambm da morte. Dela fugimos, com a certeza de que um dia vamos encontr-la.

    Azevedo (2003) atribui a violncia de nossos dias (o individualismo, ainjustia social, o consumismo e o uso da violncia como recurso comercial decomunicao de massa) a um processo de alienao e ocultao da morte.

    A morte, alm do mistrio, traz consigo a individualidade, a solido e osentimento de impotncia, no sentido de que uma experincia nica, individual,singular, da qual no temos como fugir. possvel vencer a morte? Como?

    Benjamin (1987) afirma: nos ltimos sculos, pode-se observar que aideia da morte vem perdendo, na conscincia coletiva, sua onipresena e suafora de evocao (p. 207). Durante o sculo XIX, a sociedade burguesa, comhospitais e sanatrios, viveu em espaos depurados de qualquer morte,permitindo aos homens que fossem poupados desse espetculo, o que antes eraum episdio pblico na vida do indivduo. Hoje, a morte cada vez maisexpulsa do universo dos vivos (p. 207).

    Philippe Aris (1977), em seus estudos sobre o homem e a morte,menciona que a morte era um tema mais frequente nas conversas na IdadeMdia do que hoje, alm de ser mais presente, mais familiar e menos oculta.No que por isso fosse mais pacfica.

    Na poca medieval, os homens que morriam nas guerras ou por doenasconheciam a trajetria de sua morte. Ela era esperada no leito, numa espcie decerimnia pblica organizada pelo prprio moribundo. Todos participavam doevento, inclusive as crianas. Os rituais de morte eram cumpridos commanifestaes de tristeza e dor. O maior temor, na poca, era morrer repentina eanonimamente, sem as homenagens cabveis. Havia uma atitude familiar eprxima com a morte, por isso chamada por ries de morte domada.

  • A partir do sculo XX, houve uma profunda mudana na forma de lidarcom a morte, que foi transferida para os hospitais e passou a ocorrer de formamais solitria. Passou a ser encarada como fracasso, impotncia ou impercia.Deixou de ser um fenmeno natural (Aris, 1977; Elias, 2001; Kovcs, 1992,2003).

    O sculo XX traz a morte que se esconde, a morte vergonhosa[...] A morte no pertence mais pessoa, tira-se suaresponsabilidade e depois sua conscincia. A sociedade atualexpulsou a morte para proteger a vida. No h mais sinais de queuma morte ocorreu. O grande valor do sculo atual o de dar aimpresso de que nada mudou, a morte no deve ser percebida.A boa morte atual a que era mais temida na Antiguidade, amorte repentina, no percebida (Kovcs, 1992, p. 38).

    Hoje as coisas so diferentes. Nunca antes na histria dahumanidade foram os moribundos afastados de maneira toassptica para os bastidores da vida social; nunca antes oscadveres humanos foram enviados de maneira to inodora e comtal perfeio tcnica do leito de morte sepultura (Elias, 2001, p.30-31).

    No sculo XX h supresso do luto, escondendo-se a manifestao ou

    at mesmo a vivncia da dor [...] a sociedade no suporta enfrentar os sinais damorte (Kovcs, 1992, p. 39).

    Creio ser importante repensar a morte na formao do indivduo.Refletindo sobre o fato de que a morte faz parte da vida, necessrio preparar oser humano para a morte desde sua infncia. Entretanto, o que mais percebemosem nossa sociedade que no se fala de morte com as crianas. Para alguns,pode parecer um tanto mrbido ou mesmo cruel, mas no consigo imaginar umtrabalho sobre a morte sem a elaborao da vida que nela se encerra. Para isso, necessrio que se pense na morte e que se fale sobre ela. Dessa forma,acredito ser possvel preparar o indivduo para que viva a vida em sua plenitudee, assim, talvez, no sinta tanta necessidade de fugir da morte.

    Isso implica uma mudana de mentalidade. necessrio pensar qual olugar que a morte ocupa na existncia humana, na sociedade atual.

    A morte tambm faz parte do universo infantil

    Atualmente, a criana no participa do processo de morte e seus rituais.A meu ver, subestima-se a criana alegando-se proteg-la. Para que a crianano sofra, ns a impedimos de olhar para a realidade da vida e suas perdas. Osganhos so valorizados, e as perdas, muitas vezes, negadas. E, por causa disso,

  • reforamos a dificuldade de lidar com as vrias perdas vivenciadas ao longo davida, com os valores mais diversos: o brinquedo quebrado, o animal de estimaoque morre, o amiguinho que se mudou, a morte de algum... preciso lembrarque no podemos quantificar a dor, pois individual, singular e subjetiva.

    Nunes, Carraro, Jou e Sperb (1998) afirmam que quem lida comcrianas deveria ter uma preocupao em como falar de morte com elas. Mas oadulto, em geral, adota uma atitude de negar a explicao sobre a morte e,muitas vezes, tenta afast-la magicamente, procurando minimizar o significadoque a morte pode ter como fora ativa no desenvolvimento cognitivo, emocionale social da criana, o que acaba prejudicando seu desenvolvimento.

    Sobre isso, Elias (2001) fala:

    Nada mais caracterstico da atitude atual em relao morteque a relutncia dos adultos diante da familiarizao das crianascom os fatos da morte. Isso particularmente digno de nota comosintoma de seu recalcamento nos planos individual e social. Umavaga sensao de que as crianas podem ser prejudicadas leva ase ocultar delas os simples fatos da vida que tero que vir aconhecer e compreender. Mas o perigo para as crianas no estem que saibam da finitude de cada vida humana, inclusive de seupai, sua me e da prpria vida; de qualquer maneira as fantasiasinfantis giram em torno desse problema, e o medo e a angstia queo cercam so muitas vezes reforados pelo poder intenso de suaimaginao. A conscincia de que normalmente tero uma longavida pela frente pode ser, em contraste com suas perturbadorasfantasias, realmente benfica. A dificuldade est em como se falas crianas sobre a morte, e no no que lhes dito. Os adultos queevitam falar a seus filhos sobre a morte sentem, talvez no semrazo, que podem transmitir a eles suas prprias angstias.

    [...]As reaes dos filhos dependem da idade e da estrutura da

    personalidade, mas o efeito profundamente traumtico que talexperincia pode ter neles me faz acreditar que seria salutar paraas crianas que tivessem familiaridade com o simples fato damorte, a finitude de suas prprias vidas e a de todos os demais.Sem dvida, a averso dos adultos de hoje em transmitir scrianas os fatos biolgicos da morte uma peculiaridade dopadro dominante da civilizao nesse estgio. Antigamente, ascrianas tambm estavam presentes quando as pessoas morriam.Onde quase tudo acontece diante dos olhos dos outros, a mortetambm tem lugar diante das crianas (p. 25-26).

  • Os adultos costumam dizer que morte no assunto para crianas,

    porque triste, como desculpa de que querem proteg-las. Mas, na verdade, nsno sabemos como abordar esse tema com as crianas. Para nos protegermos denossa prpria ignorncia e por recear as possveis reaes das crianas,preferimos evitar o assunto, fazendo de conta que a morte no faz parte douniverso infantil.

    A morte a nica situao que no temos como evitar em nossas vidas,um dia acontecer fatalmente. Portanto, no falar sobre o assunto, ou seja,proteger a criana, poder dificultar seu entendimento sobre o ciclo da vida.

    Aberastury (1984) explica que as crianas expressam seu temor morte, na maior parte das vezes, atravs da linguagem no verbal. Aincompreenso dessa linguagem por parte dos adultos e a falta de respostas sperguntas feitas pelas crianas provocam dor e solido. Muitas vezes, o adultomente para a criana por acreditar que a est protegendo do sofrimento ou porpensar que a criana seja incapaz de compreender uma explicao verbal sobreo que est ocorrendo.

    Muitas vezes, diante desse cenrio de desentendimento, o adultotambm no consegue captar as angstias da criana que podem se manifestarpor meio de sintomas ou dificuldades de conduta.

    Falar dessa morte no criar a dor nem aument-la; aocontrrio, a verdade alivia a criana e ajuda a elaborar a perda.H verdades muito difceis de aceitar para o adulto; por isso, aomentir est delegando esta parte infantil na criana. Se os adultosmentem ou ocultam a verdade criana, esta deixa de acreditarneles e pode no voltar a perguntar, circunstncia que poderiaacarretar consigo uma inibio do impulso epistemolgico.

    A criana sente uma terrvel confuso e um desoladosentimento de desesperana, criado porque j no tem a quemrecorrer.

    Quando o adulto se nega a esclarecer verbalmente a morte,atravanca-se o primeiro momento de elaborao do luto, que aaceitao de que algum desapareceu para sempre. Verses comoa do cu incrementam o anelo de seguir o destino do objetoperdido, entravando no s a elaborao do luto, mas todo oprocesso de conhecimento.

    Crianas percebem fatos que o adulto lhes oculta. Isso ocorrecom crianas muito pequenas e com crianas maiores. Muitasvezes o adulto no percebe porque a criana nem sempre oexpressa atravs de palavras. Em troca, recorre linguagemmmica ou no verbal porque no dispe ainda de outra.

  • Entretanto, os maiores, que em sua atividade cotidiana falamfluentemente, tambm apelam, s vezes, para jogos, desenhos oummica para expressar fantasias dolorosas (Aberastury, 1984, p.129).

    Abramovich (1999) afirma:

    Tantas espcies de vida, tantas possibilidades de morte...

    fundamental discutir com a criana, de modo verdadeiro, honesto,aberto, como isso acontece e como poderia no acontecer...Compreender a morte como um fechamento natural de um ciclo,que no exclui dor, sofrimento, saudade, sentimento de perda... Etambm discutir a morte provocada de modo irresponsvel,leviano, segundo a lei do mais forte, profundamente injusta, decivilizaes, de culturas, de crenas, de bichos, plantas, pessoas...De tudo e todos que fazem parte do mundo e que deixam de fazerpor razes no humanas, no solidrias, nem progressistas (p. 113-114).

    Afinal, a morte faz parte da existncia humana e, a cada dia, ns nos

    deparamos com essa possibilidade.

    2. A Criana

    A criana e a experincia com a morte

    A criana criativa, imaginativa e tem uma curiosidade natural que a fazdescobrir o mundo, a vida e seus mistrios. Para tudo busca um porqu, nohavendo diferena em relao morte. Dessa forma, conforme cresce, elaadquire novos conhecimentos e aprende atravs da explorao de seu mundo.

    Desde cedo a criana vivencia situaes que lhe permitem criar umanoo da morte. Percebe as coisas a sua volta, mas muitas vezes se sente confusaem suas percepes. Portanto, evitar a questo da morte com a criana negaruma realidade. Isso pode ser muito prejudicial, uma vez que deixa a crianaconfusa, por no ter com quem confirmar suas percepes (Kovcs, 1992).

    Kastenbaum e Aisenberg (1983) citam que, de acordo com vriospsiclogos do desenvolvimento, a criana at os dois anos no tem nenhumacompreenso da morte devido a sua incapacidade de apreenso de qualquerconcepo abstrata. Entretanto, sugerem que h muitos modos pelos quais amente, nos primeiros anos de vida, entra em contato com a morte. Afirmam quecrianas muito pequenas j podem ficar impressionadas ao se verem expostas morte. Embora seja possvel ainda no possuir condies cognitivas para

  • entender a morte, as percepes relativas mesma podem produzir forte eduradouro impacto sobre elas.

    Torres (1999) cita Maurer (1974) ao afirmar que antes dos dois anos acriana intui a morte por intermdio de sua experincia de dormir e acordar, oque permite a percepo do ser e do no ser (Mazorra & Tinoco, 2005a;Torres, 1999).

    So trs os componentes bsicos do conceito de morte: universalidade,no funcionalidade e irreversibilidade (Kovcs, 1992; Nunes et al., 1998;Priszkulnik, 1992; Riely, 2003; Schonfeld, 1996; Velasquez-Cordero, 1996).

    A universalidade tem a ver com a compreenso de que todos os seresvivos (plantas, bichos e pessoas), sem exceo, um dia, morrero. Ou seja, amorte um evento inevitvel. A no funcionalidade caracteriza-se porcompreender que, na morte, todas as funes vitais cessam: a pessoa no respira,no se mexe, no pensa, no sente absolutamente nada. No corpo, nada maisfunciona. J a irreversibilidade a capacidade de perceber que quem morre, novolta mais. A morte no temporria. No se morre s um pouquinho. Noexiste uma mgica que faa a pessoa desmorrer (Kovcs, 1992; Nunes et al.,1998; Schonfeld, 1996; Torres, 1999; Velasquez-Cordero, 1996).

    Para a criana, a morte no apenas um desafio cognitivo para seupensamento, mas tambm um desafio afetivo (Torres, 1999).

    Essa autora fez um estudo sobre a aquisio do conceito de morte pelascrianas, de acordo com os estgios estabelecidos por Jean Piaget (1987, 1996):

    Aponta as seguintes diferenas para cada estgio:

    1. Perodo Sensrio-motor: crianas de 0 a 2 anos (antes da aquisio dalinguagem)

    O conceito de morte no existe. A morte percebida como ausncia e falta. A morte corresponde experincia do dormir e acordar: percepo

    do ser e no ser.

    2. Perodo Pr-operacional: crianas de 3 a 5 anos As crianas compreendem a morte como um fenmeno temporrio e

    reversvel. No entendem como uma ausncia sem retorno. Atribuem vida morte, ou seja, no separam a vida da morte. No

    distinguem os seres animados dos inanimados. Entendem a morte ligada imobilidade.

    Apresentam pensamento mgico e egocntrico. So autorreferentes,e, para elas, tudo possvel.

    Compreendem a linguagem de modo literal/concreto.

    3. Perodo Operacional: crianas de 6 a 9 anos

  • Apresentam uma organizao em relao a espao e tempo. Distinguem melhor os seres animados dos inanimados. Entendem a oposio entre a vida e a morte, compreendendo a morte

    como um processo definitivo e permanente. Compreendem a irreversibilidade damorte.

    H uma diminuio do pensamento mgico, predominando opensamento concreto.

    Ainda no so capazes de explicar adequadamente as causas damorte.

    Conseguem apreender o conceito de morte em sua totalidade: emrelao no funcionalidade, irreversibilidade e inevitabilidade da morte.

    4. Perodo de Operaes Formais: crianas de 10 anos at aadolescncia

    O conceito de morte, devido ao pensamento formal, torna-se maisabstrato. J compreendem a morte como inevitvel e universal, irreversvel epessoal.

    As explicaes so de ordem natural, fisiolgica e teolgica (Torres,1999).

    Vrios outros autores tambm descrevem a compreenso infantil damorte, baseando-se no desenvolvimento cognitivo da criana, a partir da teoriapiagetiana (Bromberg, 1997; Grollman, 1990; Kovcs, 1992, 2003; Nunes et al.,1998; Priszkulnik, 1992; Velasquez-Cordero, 1996).

    Torres (1999), assim como Bowden (1993), alerta para o fato de que aaquisio do conceito de morte pelas crianas no est somente correlacionada idade. Depende tambm de aspectos social, psicolgico, intelectual e daexperincia de vida.

    Portanto, pode-se afirmar que a criana percebe a morte de formadiferente do adulto, de acordo com faixa etria e condies cognitivas.

    A criana tambm fica enlutada

    Antes de tratar do luto infantil, importante falar sobre como seestabelecem as relaes iniciais da criana. Para isso, baseio-me em referncias Teoria de Apego, de John Bowlby (1989, 1990, 1995), amplamenteapresentadas pelos estudiosos do assunto luto. Bowlby foi um psiquiatra britnico,o primeiro pensador sobre o desenrolar do apego e das perdas, que desenvolveuseus estudos a partir de observaes realizadas com crianas separadas de suasmes durante um longo tempo.

    A teoria do apego nos auxilia a entender a tendncia dos seres humanosde estabelecer fortes laos afetivos com outros, assim como a compreender a

  • forte reao emocional que ocorre quando esses laos afetivos so ameaadosou rompidos. Assim, podemos entender o impacto de uma perda sobre a pessoa eo comportamento humano decorrente dessa perda. Para Bowlby, tais laossurgem de uma necessidade de segurana e proteo, iniciam-se cedo na vida,so dirigidos a poucas pessoas especficas e tendem a durar por uma grandeparte do ciclo vital (Worden, 1998, p. 19).

    Bowlby (1989, 1990, 1995) conceitua o comportamento de apego comoqualquer forma de comportamento que resulta em uma pessoa alcanar emanter proximidade com algum outro indivduo claramente identificado,considerado mais apto para lidar com o mundo. Esse autor afirma que o apego instintivo, uma necessidade bsica do ser humano para seu desenvolvimento uma funo biolgica. Aponta para o fato de que a primeira relao humana deuma criana fundamental na formao de sua personalidade.

    O apego infantil desenvolvido no primeiro ano de vida. Aos trs meses,o beb j responde me de modo diferente: sorri, balbucia e segue-a com oolhar ou seja, apresenta uma discriminao perceptual. Mas essecomportamento ainda no a prova de comportamento de apego. Ocomportamento de apego observado quando a criana reage sada da me deseu ambiente e se comporta de modo a manter a proximidade com ela. Acriana busca no s satisfao, mas tambm segurana. Isso acontece por voltados seis meses.

    A intensidade e consistncia com que se manifesta o comportamento deapego varivel: pode ser de origem orgnica (fome, fadiga, doena einfelicidade) e ambiental (algo que cause alarme) (Bowlby, 1990).

    Em seus estudos, Bowlby enumerou cinco respostas que levam aocomportamento de apego, denominadas comportamento mediador de apego:chorar, sorrir, seguir, agarrar-se, sugar e uma sexta resposta que seria chamarsua me (mais tarde, at gritando o nome dessa me).

    Afirma que, a partir do terceiro ano de vida, a criana muito maiscapaz de aceitar a ausncia temporria da me. Esse sentimento de seguranaest condicionado a alguns fatores:

    As figuras subordinadas devem ser familiarizadas (de preferncia acriana deve t-las conhecido junto com a me).

    A criana deve ser saudvel e no estar assustada. A criana deve saber onde est a me e confiar que pode reatar

    contato com ela a curto prazo (Bowlby, 1990).

    Bowlby (1989) refora que um trao do comportamento de apego aintensidade da emoo que o acompanha. Se tudo vai bem, h satisfao e umsenso de segurana; se a relao est ameaada, existe cime, ansiedade e raiva;se houver uma ruptura, pode ocorrer dor e depresso.

  • Quanto aos distrbios emocionais, o autor enfatiza dois fatores ambientaisde maior importncia na primeira infncia. O primeiro a morte da me ouuma separao prolongada. O segundo a atitude emocional da me para com ofilho: como ela lida com ele ao aliment-lo, desmam-lo, treinar o controle dosesfncteres e outros aspectos do cuidado materno corriqueiro.

    Bowlby (1995) distingue trs modelos de apego:

    1. Apego Seguro: o indivduo se sente confiante de que seus pais estarodisponveis, oferecendo resposta e ajuda caso se depare com alguma situaoameaadora. Este fato o encoraja a explorar o mundo.

    2. Apego Ansioso: o indivduo se mostra incerto quanto disponibilidadede resposta ou ajuda por parte dos pais, caso necessrio, tendendo ansiedadeem caso de separao, ficando grudado e ansioso na explorao do mundo.

    3. Apego Evitativo: o indivduo no tem nenhuma confiana de quereceber resposta e ajuda quando procurar cuidado. Sente a rejeio comocerta. Procura viver sem o amor e a ajuda dos outros, tentando tornar-seemocionalmente autossuficiente.

    A criao de um padro de apego seguro depende no somente dascaractersticas pessoais da me, mas tambm de um contexto maior de suafamlia.

    Bowlby (1995) afirma que a privao prolongada dos cuidados maternospode trazer efeitos graves e de longo alcance sobre a personalidade de umacriana pequena e, consequentemente, sobre toda a sua vida futura.

    Aponta trs tipos de experincias que podem produzir uma personalidadeincapaz de afeio e delinquente em algumas crianas:

    1. Falta de qualquer oportunidade para estabelecer ligao com umafigura materna nos primeiros trs anos de vida.

    2. Privao por um perodo limitado (mnimo de trs e mais de seismeses) nos primeiros trs ou quatro anos.

    3. Mudana de uma figura materna por outra durante o mesmo perodo.

    Sobre a questo do apego na infncia, Berthould (1998) afirma que, apartir dos trs anos, a criana capaz de explorar melhor seu ambiente,aventurando- se a ficar por mais tempo longe de sua figura de apego. Almdisso, relaciona-se com um maior nmero de pessoas, conhecendo-as, e passa ademonstrar maior interesse por outras crianas. Dessa forma, a ausncia dafigura materna tolerada mais facilmente, contanto que esteja com pessoasconhecidas ou de sua confiana. Diz ainda que, por volta dos seis anos, a crianapassa a demonstrar outras formas de manifestao do padro de apego emfuno de expectativas sociais, quando incentivada a agir com mais

  • maturidade. Nesta fase, a criana expande seus vnculos afetivos (na escola, comprofessores, amiguinhos) e j no sente tanta necessidade da presena dos pais,exceto quando se encontra em situaes que envolvem mais estresse. No entanto,a criana poder sentir-se segura apenas com a certeza de que seus pais estaroacessveis no caso de ela necessitar deles. importante salientar que essasalteraes so gradativas, de acordo com o desenvolvimento da criana. Osadolescentes j se sentem capazes de ficar sozinhos, menos ansiosos na ausnciados pais, sem necessitar da presena deles.

    Nessa fase, outras espcies de vnculos, que no o apego, soestabelecidas: de amizade, companheirismo, atrao sexual, paixo, amor;vnculos passageiros e duradouros, que tambm do sentido nossa existncia.

    Luto infantil

    A criana, da mesma forma que o adulto, vai passar por processos deluto. O processo de luto infantil tem uma durao subjetiva mais extensa, umavez que sua noo de tempo est se organizando (Priszkulnik, 1992).

    Torres (1999), citando Bowlby, afirma que a criana capaz de enlutar-se tanto quanto o adulto, identificando trs etapas principais no processo naturaldo luto infantil:

    1. Protesto: a criana no acredita que a pessoa esteja morta e luta pararecuper-la; chora, agita-se e busca qualquer imagem ou som que personifique apessoa ausente.

    2. Desespero e desorganizao da personalidade: a criana comea aaceitar o fato de que a pessoa amada realmente morreu; o anseio por sua voltano diminui, mas a esperana de sua satisfao esmorece. No grita mais, torna-se aptica e retrada, porm isso no significa que tenha esquecido a pessoamorta.

    3. Esperana: a criana comea a buscar novas relaes e a organizar avida sem a presena da pessoa morta.

    Priszkulnik (1992) afirma que a criana passa por uma fase mais oumenos longa de idealizao do ente querido. Chama de sobreinvestimento. Issoprecede o desinvestimento, que permite:

    1. A introjeo do objeto perdido sob a forma de lembranas, palavras,atos, modos de ser comuns ao morto e a si mesmo.

    2. O investimento afetivo de um novo objeto (desenvolvimento de umnovo amor). Essa no uma tarefa fcil, pois exige que a criana aceite que aausncia da pessoa morta (um ser querido) ser para sempre, definitiva.

  • Raimbault (1979) afirma que o processo de luto necessita de um perodode tempo relativamente longo para passar da fase de sobreinvestimento(idealizao do morto) para a fase de desinvestimento (a introjeo do objetoperdido, sob a forma de lembranas, palavras, atos...) at atingir a fase deinvestimento afetivo em um novo objeto (a possibilidade de aceitar uma novafigura de afeto).

    As reaes da criana perda e separao vo depender de vriosfatores: a relao que a mesma tinha com a pessoa que morreu; a causa e ascircunstncias da situao de perda (repentina ou no, violenta); o que contadopara a criana e as oportunidades que so oferecidas para ela falar e perguntar;relaes familiares aps a perda (mudana de padro de relacionamento epermanncia com pai/me sobrevivente); padres de relacionamento da famliaanteriores perda (Bromberg, 1997, 1998a, 1998b).

    Sensao de insegurana, de abandono, medo de perder outroente querido, raiva, culpa, fantasia que foi responsvel pela perdaso alguns dos sentimentos, fantasias e reaes que podem estarpresentes nesta vivncia, que exige a elaborao de um processode luto para sua significao e integrao vida (Mazorra &Tinoco, 2005b, p. 13).

    Chavis e Weisberger (2003), citados por Berns (2003-2004), definem

    perda como a ausncia de algo ou algum importante dentro do universo pessoal.Quando crianas enfrentam situaes de perda, evidentemente experimentammedo, ansiedade e muitas outras reaes de pesar, dor e desgosto. Crianas quesofreram perdas importantes sentem medo de serem devoradas pela intensidadede seus sentimentos. Os pais e outros adultos significativos desempenham papelimportante nesse momento da vida da criana, e a forma como eles a acolhemem seu sofrimento influencia diretamente o modo como a criana enfrenta aexperincia de perda.

    Worden (1998) aponta para o fato de que as crianas entre cinco e seteanos so muito vulnerveis, pois atingiram um desenvolvimento cognitivosuficiente para compreender a morte, mas possuem muito pouca capacidade delidar com ela. Afirma que o luto de uma perda na infncia pode ser revivido emmuitos momentos da vida adulta, quando este for reativado por outros fatosimportantes da vida. Essa uma forma de elaborao da perda ocorrida nainfncia.

    Bernstein e Rudman (1989), citados por Berns (2003-2004), referiram-sea outros adultos significativos como adult guides, um termo aplicado a algumque oferece conselho e direo saudveis.

    Com certeza, a presena de uma pessoa cuidadora na forma de um adultguide nem sempre compensar as perdas especficas. Entretanto, isso pode

  • diminuir o isolamento e o sentimento de solido decorrentes das perdas.O adult guide tem a difcil tarefa de enxergar o momento favorvel para

    tornar-se companheiro da criana e exercer a funo de cuidador, propiciando-lhe acolhimento para enfrentar seus sentimentos, curar sua dor e renovar suaesperana no futuro.

    No entanto, em algumas ocasies, adultos especialmente adultosenlutados no esto/so bem preparados para ajudar a criana porque, muitasvezes, no conseguem elaborar suas prprias perdas. Para ajudar a criana aenfrentar adequadamente suas questes de perdas, adult guides necessitam deinformao. Isso inclui clareza nas percepes das crianas, compreenso eentendimento de separao e perda (Berns, 2003-2004).

    Outro ponto importante tambm relacionado situao de luto so asreaes da criana diante de situaes de crise ao longo da vida.

    Para ajudar a criana no processo de luto necessrio:

    1. Promover comunicao aberta e segura dentro da famlia,informando a criana sobre o que aconteceu.

    2. Garantir que ter o tempo necessrio para elaborar o luto.3. Disponibilizar um ouvinte compreensivo toda vez que sentir saudade,

    tristeza, culpa e raiva.4. Assegurar que continuar tendo proteo (Torres, 1999).

    Velasquez-Cordero (1996) enumera dez maneiras de ajudar a criana no

    enfrentamento da perda e do luto:

    1. Encorajar a criana a expressar seus sentimentos.2. Responder s perguntas com sinceridade e expressar suas emoes

    honestamente.3. Discutir a morte de forma que a criana possa entender.4. Falar com a criana de acordo com seu nvel de desenvolvimento.5. Ser paciente. Permitir que a criana repita a mesma pergunta,

    expondo sua confuso e seu medo.6. No criar expectativas.7. Sugerir caminhos para que a criana possa lembrar-se da pessoa

    (desenho, cartas...).8. Aceitar os sentimentos, percepes e reaes da criana, bem como

    diferenas de opinies, dvidas e questes.9. Indicar servios especializados, se for necessrio.10. Preparar a criana para continuar sua vida. Reforar que ela se

    sentir melhor depois de um tempo (lembrando que esse tempo diferente paracada um).

  • Worden (1998) cita quatro pontos fundamentais do luto:

    1. Aceitar a realidade da perda as crianas devem crer que a pessoaest morta e no voltar. Para tanto, devem ser adequadamente informadassobre a morte numa linguagem apropriada sua idade.

    2. As crianas devem reconhecer e trabalhar com a variedade deemoes associadas morte. (Os sentimentos da criana incluem tristeza, raiva,culpa, ansiedade e depresso. Se esses sentimentos no forem encarados, seromanifestados de outras formas como sintomas psicossomticos ou desajuste decomportamento.)

    3. Ajustar o ambiente agora sem a presena da pessoa que morreu.4. Recolocar a pessoa morta dentro da vida pessoal e encontrar caminhos

    para lembrar essa pessoa.

    Worden (1998) afirma que as crianas pedem no somente umentendimento para a morte, mas tambm um sentido para a pessoa morta emsuas vidas.

    Corr (2002), citado por Riely (2003), salienta a necessidade de sepermitir o enlutamento, estimulando a criana a falar sobre sua experincia demorte e evitar poup-la da dor. Para isso, refora a necessidade de se oferecereducao e suporte para crianas em situaes de enlutamento.

    Corr, Doka e Kastenbaum (1999) valorizam a escuta ativa e a atenoespecial como meio de facilitar o enfrentamento da morte.

    Em relao s indagaes da criana a respeito da morte, importantedeix-la fazer perguntas ou manifestar-se por meio de gestos ou brincadeiras. Acriana pode expressar sua curiosidade e seu sofrimento no s pela linguagemverbal (palavras), mas tambm por uma linguagem no verbal (jogos, gestos,desenhos...). Para o adulto, o silncio pode ser conveniente, entretanto, para acriana, pode ser muito prejudicial na medida em que seu sofrimento podepassar despercebido (Priszkulnik, 1992).

    s vezes, o adulto pode adotar uma atitude de silenciar a criana,tentando proteg-la do desconforto que a ansiedade relacionada morte provoca.Segundo a autora, importante ressaltar que a mentira no consegue negar a dorou anul-la. A verdade, ao contrrio, alivia e ajuda a aceitar o desaparecimentoda pessoa que morreu, percebendo tal fato como definitivo.

    Domingos e Maluf (2003) alertam para o fato de que o luto umaexperincia complexa, que atinge no s o indivduo como tambm a famlia e osistema social. Citando Bowlby, lembram que o vnculo tem um valor desobrevivncia. Quando h a perda da figura de vnculo, isso traz uma sensao dedesamparo, podendo desencadear uma forte ansiedade de separao, gerandopnico.

    A maior crise na vida de uma criana aquela provocada pela morte de

  • um dos pais, pois dificilmente o mundo ser o mesmo lugar seguro de antes.No luto por causa da perda de um dos pais, a criana pode:

    1. Permanecer na fantasia ligada ao progenitor morto.2. Investir a libido em atividades.3. Temer amar outras pessoas.4. Aceitar a perda e encontrar outra pessoa para amar (Bowlby, 1998a;

    Bromberg, 1997; Torres, 1999).

    Bromberg (1997, 1998a, 1998b) aponta para o fato de que o luto nocomea a partir da morte, pois as relaes prvias existentes podem influenciarna qualidade do processo do luto.

    Uma interveno planejada para promover o enlutamento em crianaspode favorecer a comunicao nas famlias e ajudar na preveno desofrimento a curto prazo subsequente perda (Bromberg, 1997).

    A perda na infncia pode tornar a pessoa mais vulnervel e maispropensa a distrbios afetivos. O luto infantil pode vir a provocar ou influenciarpossveis distrbios psicolgicos na vida adulta, entre eles excessiva utilizao deservios de sade (por causa da sade debilitada) ou aumento no risco dedistrbios psiquitricos (Bowlby, 1998b).

    Estudos realizados identificaram uma associao entre trauma nainfncia e depresso na vida adulta. Entre esses traumas, encontra-se a perda deum ou ambos os pais, por morte, separao ou abandono. No entanto, aelaborao do luto pode atenuar os efeitos deletrios decorrentes das perdas.Zavaschi, Satler, Poester, Vargas, Piazenski et al. (2002) citam estudos nos quaisforam encontrados resultados que sugerem que a ausncia da criana nos rituaisde morte (do pai ou da me) acarretou maiores ndices de depresso esentimentos de culpa. Tais achados enfatizam a importncia de apoio e permissopara que as crianas possam falar abertamente sobre sua dor com os familiaressobreviventes.

    Segundo Bowlby (1998b), aqueles que sofreram perda na infncia e,quando adultos, apresentam distrbios psiquitricos, tm maior propenso a:

    Manifestar ideias reais de suicdio. Mostrar alto grau de apego angustiado (ou superdependncia). Desenvolver condies depressivas graves, classificveis como

    psicticas.

    Bowlby (1998a) descreveu algumas reaes das crianas, relacionadas morte de um dos pais, que podem manifestar-se como:

    Angstia persistente medo de sofrer outras perdas e medo de

  • morrer tambm. Desejo de morrer com a esperana de se encontrar com o morto. Acusao e culpa persistentes. Hiperatividade expressa atravs de exploses agressivas e destrutivas. Compulso por cuidar e autoconfiana compulsiva. Euforia e despersonalizao. Sintomas identificadores. Predisposio a acidentes por parte de crianas infelizes e enlutadas

    (Bowlby, 1998a, Bromberg, 1997).

    Levando-se em considerao os pontos abordados, possvel afirmarque as condies do funcionamento familiar contribuem para a qualidade daelaborao do luto. Alm disso, fica evidente a importncia de se pensar emalternativas para que a criana possa ser amparada no enfrentamento de suasperdas pelas pessoas que dela cuidam, tanto em seu ambiente familiar, nocontexto escolar, como tambm no ambiente da sade.

    Aberastury (1984) afirma que:

    a ocultao e a mentira do adulto dificultam o trabalho de luto dacriana. Quando morre um ser querido, sua ausncia serdefinitiva. O trabalho de luto exige uma sucesso de esforos. Oprimeiro e fundamental aceitar que o ser querido j no estconosco. Mas se um grupo ou um familiar comea a ocultar essefato e recorre mentira, vai enredando-se em um emaranhadocada vez maior de ocultaes que terminam perturbandoseriamente as capacidades cognitivas de todos os seus integrantes.Quando um adulto no diz a verdade a uma criana sobre a morte,est dificultando a primeira etapa de seu trabalho de luto. Acriana no conhece muito bem como o processo da morte, masexperimenta a ausncia que ela vivencia como abandono (p. 135).

    Raimbault (1979) e Grollman (1990) tambm defendem a ideia de se

    falar da morte com as crianas de maneira clara e sincera, respondendo sperguntas, compreendendo as emoes e dando suporte para o enfrentamento aoluto.

    Para auxiliar nessa difcil tarefa, Grollman (1990) elaborou um livro queserve de guia para que os pais possam se instrumentalizar para isso: Talking aboutdeath: a dialogue between parent and child.

    Traduzido para o portugus, o ttulo do livro Voc nunca mais vaivoltar?, de autoria de C. Reitmeier e W. Stubenhofer (2004), que serve para oadulto refletir sobre a morte e o processo de luto, os sentimentos envolvidos epossveis reaes. Serve como guia orientador para conversar e auxiliar a

  • criana no enfrentamento da morte e do luto.

    3. A Escola

    A escola na vida da criana

    Podemos dizer que a escola o segundo lugar de segurana para acriana, j que o primeiro a famlia. Muitos dizem que a escola o segundo lar.

    Nos dias atuais, como o pai (antigo provedor das necessidadesfinanceiras) e a me (antiga provedora das necessidades do lar) assumem umpapel profissional e social atuantes fora do lar, as crianas comeam a ir aindabebs ou com pouca idade para a escola e ficam mais tempo l do que em casa.Hoje comum as escolas oferecerem, alm do estudo regular, atividadesextracurriculares esportes, lnguas estrangeiras, informtica, bal, teatro,msica, artes e reforo escolar... em perodo integral ou intermedirio.

    A criana vive na famlia e na escola, em meio a descobertas eaprendizados.

    Na educao infantil os professores geralmente so mulheres, chamadasde Tia uma maneira afetiva que aproxima a professora da criana. umafigura de segurana e afeto.

    Radino (2000) afirma que o professor de educao infantil representauma figura fundamental no processo de desenvolvimento da criana, prestando-se como modelo de identificao, dando continuidade relao estabelecidacom seus pais.

    A criana aprende na escola a decodificar suas percepes do mundo,atravs da aprendizagem, da leitura e da escrita. Logo, desempenha o papeleducacional de informao e tem tambm o papel de formao do indivduopara enfrentar o mundo.

    Desde a pr-escola, a professora explora o potencial da crianarespeitando seus limites, num processo de construo de saber. na interpretaodo mundo que a criana comea a compreender e a fazer a leitura deste mundo.Para isso, fundamental oferecer-lhe condies e oportunidades, estimul-la naaprendizagem, socializao e formao, alm de propiciar-lhe autonomia paraenfrentar o mundo e seu mundo, nas mais diversas situaes de conflito.

    O professor passa um tempo muito grande com a criana. s vezes, umtempo at maior do que o que a criana passa com seus pais. Tem um papelfundamental como educador da criana no somente para ensin-la, mastambm para form-la, representando, assim, um modelo de pessoa, deindivduo para a criana. Alm disso, deve desempenhar a funo de atender asnecessidades da criana em sua formao enquanto indivduo.

    Portanto, o professor deve estar atento s necessidades cognitivas e

  • intelectivas da criana, bem como suas necessidades pessoais, emocionais epsquicas. Assim, o educador acaba como um modelo para o processo deidentificao da criana e, por isso, tem a tarefa de cuidar da integridade fsica,emocional e social dessa criana, visto que a escola no se restringe transmisso de conhecimentos (Magalhes, s.d.).

    Considerando-se todas as suas funes, o professor , ao mesmo tempo,educador e formador, papel essencial na formao da criana enquantoindivduo.

    Assim, a escola pode ser vista como um centro de informao eformao do indivduo no processo de transformao da sociedade, de valores ede cidadania. um agente transformador que permite atitudes reflexivas ecrticas sobre a realidade e a humanidade. Deve tambm valorizar os aspectosafetivos, familiares, sociais, ticos e polticos para uma formao integral.

    Pavoni (1989) afirma que:

    educar formar e informar. Isso significa que temos que habilitaras crianas a viverem neste mundo, felizes, sem conflitos ou,melhor ainda, aptas a enfrentarem todos os conflitos de maneira ano se desestruturarem. Isso implica que a educao deveratender a criana nas suas caractersticas presentes, apresentando-lhe, ao mesmo tempo, contedos do mundo social que lhe sejamoportunos e adequados. Para tal precisamos conhec-la bem (p.2).

    Coelho (2000b) afirma que a escola um espao privilegiado em que

    devero ser lanadas as bases para a formao do indivduo. Deve ser umespao libertrio (sem ser anrquico) e orientador (sem ser dogmtico), parapermitir que o ser em formao chegue a seu autoconhecimento e tenha acessoao mundo da cultura, que caracteriza a sociedade qual pertence.

    Por causa da importncia que a escola exerce na formao do indivduo, necessrio que seus profissionais estejam preparados para trabalhar com asnecessidades que possam surgir.

    Com essa afirmao no se pretende negar a responsabilidade da famliano processo de formao da criana. Famlia e escola devem caminhar juntaspara melhor formar a criana. A escola pode auxiliar tambm as famlias emsuas dificuldades, e o agente desse trabalho o professor, que exerce duplatarefa: de educador e formador.

    Rubem Alves (1984) faz uma reflexo diferenciando o professor doeducador. Ele diz que professor profisso, no algo que se define por dentro,por amor. Educador, ao contrrio, no profisso; vocao. E toda vocaonasce de um grande amor, de uma esperana (p. 11).

    Ainda falando dos educadores, ele diz:

  • [...] os educadores so como as velhas rvores. Possuem uma

    face, um nome, uma estria a ser contada. Habitam um mundoem que o que vale a relao que os liga aos alunos, sendo quecada aluno uma entidade sui generis, portador de um nome,tambm de uma estria, sofrendo tristezas e alimentandoesperanas. E a educao algo para acontecer neste espaoinvisvel e denso, que se estabelece a dois. Espao artesanal (op.cit., p. 13).

    Para realizar bem tal trabalho, Pavoni (1989) refora a importncia de

    se conhecer bem a criana.

    O primeiro passo nossa postura em relao criana: temosque ouvila, observ-la, esquecendo-nos de todos os conceitos epreconceitos. Costumo dizer que observo crianas como observoplantas. Fico longo tempo diante de um vaso, olhando as folhas, asflores, os galhos, a umidade da terra. Se tudo parece saudvel,continuo o tratamento que venho dando. Se, no entanto, aparecemfolhas secas, galhos apodrecidos, bichos, sinal de que algo deveser mudado (op. cit., p. 2).

    A questo da morte na escola

    A escola o segundo ambiente de socializao da criana e, como a

    famlia, tem o papel de educar a criana. Quando se fala em educar, deve-sepensar na difcil tarefa de se educar para a vida. Para isso, a escola deveapresentar versatilidade e conviver com a diversidade num trabalho cooperativo,de aprendizagem contnua.

    Torres (1999) afirma que a escola no somente um lugar deaprendizagem acadmica, ela o maior centro de intercmbio social para odesenvolvimento da criana. um lugar de desafios, mas tambm de apoio (p.139).

    Ao ampliar-se o conceito de escola, alm de ser um espao deaprendizagem, ela torna-se um espao de convivncia, onde o aluno vai tantoestabelecer relaes com os colegas quanto com os educadores. Tais relaesremetem, consequentemente, formao e rompimentos de vnculos ao longoda convivncia.

    Partindo do pressuposto de que a escola um espao de formao decidados conscientes, crticos e preparados para a vida, no deveria tambm serum espao em que se repensassem todos os aspectos constitutivos da vida e damorte, inclusive?

  • Se a escola um espao onde se discutem tanto as questes cotidianas datica e cidadania, questionando a violncia... no seria esse um espao tambmpara se falar da morte? Por que manter o silncio diante da morte se ela estpresente em nosso dia a dia?

    Pode-se fundamentar tais questes nas palavras de Maranho (1987):

    Atualmente, existe a preocupao de iniciar as crianas desdemuito cedo nos mistrios da vida: mecanismo do sexo,concepo, nascimento e de contracepo. Porm se ocultasistematicamente das crianas a morte e os mortos, guardandosilncio diante de suas interrogaes, da mesma maneira que sefazia antes quando perguntavam como que os bebs vinham aomundo (p. 10).

    Embora se evite tratar do tema morte na escola, a morte simblica est

    presente em vrias situaes dentro do contexto escolar. Podem ser vistas comomortes simblicas as situaes de mudana de srie, de classe, de professores, deamiguinhos, processos de separao, perdas financeiras... Ainda que taissituaes no envolvam uma morte concreta, elas representam perdas quepodem eliciar sentimentos semelhantes.

    So as elaboraes dessas pequenas perdas mortes simblicas quevo colaborar para elaborao de perdas maiores a morte concreta. Noentanto, elas so pouco valorizadas ou levadas em conta.

    Falar das vrias mortes simblicas ou concretas envolve troca deinformaes, bem como um compartilhar experincias, opinies, sentimentos,reflexes, dificuldades e medos... Esse compartilhar poderia proporcionar umacolhimento, o que seria altamente positivo porque o indivduo pode sentir-secom o outro em seus sentimentos, bem como identificar-se no sentimento dooutro, ou seja, no se sentir to sozinho em sua dor.

    A escola deveria, portanto, ser concebida como um espao deconvivncia e de compartilhamento de aprendizagem e de experincias de vida,representando, assim, um espao de fortalecimento e proteo que propiciasseum ambiente favorvel para romper-se o silncio, o sofrimento calado, a solido.Toda essa atmosfera envolveria a criana e lhe propiciaria o suporte necessriopara que ela elaborasse seus lutos, resultantes de suas experincias de perda.

    Entretanto, a escola, em seu comprometimento com a educao,questiona, muitas vezes, assumir tarefas e papis que antes no eram de suacompetncia, mas sim da famlia. No entanto, nos dias atuais, a criana vai maisnova para a escola e passa, praticamente, a maior parte de seu tempo l.Consequentemente, os profissionais de educao se deparam com tarefas para asquais no se sentem preparados, enquanto as famlias, muitas vezes, omitem-se,deixando essa responsabilidade a cargo dos educadores. No se deve esquecer a

  • responsabilidade da famlia na formao integral da criana. Por isso, escola efamlia devem caminhar juntas para melhor desempenharem seus papis.

    A sociedade exclui as crianas do assunto morte com a inteno deproteg-las, justificando que falar sobre a morte mrbido e no deve fazerparte do mundo infantil. Assim, parece ser errado falar da morte. No entanto,quando a criana enfrenta uma morte, ela tem dificuldade em falar sobre ela.Afinal, falar do feio e do proibido (Riely, 2003).

    Do mesmo modo como os profissionais de sade, os educadores dizemno estar preparados para a tarefa de acolhimento e reflexo sobre a morte, umavez que tal tema culturalmente considerado tabu e, consequentemente, abolidoe ocultado do cotidiano das crianas (bem como dos jovens e adultos), com ofalso propsito de proteg-las.

    Mas ser que, ao proteger a criana, no se observa a inteno primeirade proteger-se? Afinal, a morte carrega em si o mistrio da existncia, dacondio humana, ou seja, certa e inevitvel para todo e qualquer ser humano.Por ser certa e inevitvel, alm de universal, deveria haver uma maioraproximao dela para melhor conhec-la. Tal aproximao deveria ser feitapor meio da reflexo sobre a questo.

    A morte, por ser desconhecida e considerada um tabu, suscita medos:medo de sentir dor, do sofrimento, da separao das pessoas queridas...Entretanto, o maior medo o prprio medo. Por causa da falta de familiaridadecom a ideia da morte, tenta-se fugir do medo dela. Mas, quanto mais se foge,mais o medo cresce.

    O medo da morte configura-se em uma angstia humana que tanto podeparalisar o indivduo diante da vida como alavanc-lo em projetos de vida.Portanto, falar da morte falar da vida. a conscincia da morte que trazsentido vida.

    Azevedo (2003) enfatiza a necessidade de crianas e jovens aprenderema lidar com a vida, pois a morte parte inseparvel. No adianta querercamufl-la ou escond-la, pois isso seria um desrespeito inteligncia e capacidade de observao de qualquer ser humano, alm de intil.

    Kbler-Ross (1996) afirma que

    normalmente evitamos que as crianas participem da morte e domorrer, julgando que as estamos protegendo desse mal. Mas claro que as estamos prejudicando ao priv-las dessa experincia.Ao fazer da morte e do morrer um tabu e ao afastar as crianasdas pessoas que esto morrendo ou j morreram, estamosincutindo nelas um medo desnecessrio (p. 33).

    Savater (2001) sustenta que a conscincia da morte nos faz amadurecer

    pessoalmente: todas as crianas se acham imortais (p. 15). Portanto, falar sobre

  • a morte com a criana pode favorecer seu crescimento e amadurecimento,enquanto ser humano, em sua condio humana. Mas isso deve acontecerrespeitando o desenvolvimento cognitivo e afetivo da criana. Torres (1999)defende que a compreenso de morte pela criana no se faz isoladamente deoutros desenvolvimentos que ocorrem em sua vida cognitiva geral. Assim, razovel supor que a conceitualizao da morte na criana vai variar de acordocom seu nvel de desenvolvimento global (p. 40).

    Falando da morte na escola

    Atualmente, constatam-se vrias mudanas no ambiente familiar,porque as mes, que anteriormente se dedicavam mais ao lar e aos filhos, estoatuantes no mercado de trabalho, delegando a difcil tarefa de educar quase quetotalmente escola. Consequentemente, surge uma necessidade cada vez maiorde se ampliar a comunicao entre a escola e a famlia, com o objetivo decompartilhar dificuldades e conflitos, para que se possa dar um acolhimento scrianas em suas dificuldades pessoais.

    As fronteiras entre a escola e a famlia, antes separadas, hoje seconfundem. A realidade imps uma unio mais do que necessria entre pais eprofessores. Educar as novas geraes funo conjunta da famlia e daescola.2

    Para que isso possa de fato acontecer, necessrio que os educadoresestejam devidamente preparados. Isso implica conscientizar-se e lidar com suasinseguranas pessoais e possveis medos, para que possam abordar com seusalunos os assuntos considerados difceis, entre eles a morte, de forma natural emais segura, acolhendo as necessidades desses alunos.

    Kovcs (2003) afirma que no existe uma resposta para como estartotalmente preparado para lidar com o tema da morte. necessrio que exista apossibilidade de questionamento, autoconhecimento e contato com os prpriossentimentos. Pode-se dizer, ento, que essa preparao implica um aprendizado edesenvolvimento contnuos.

    Para Kovcs, a educao um espao de desenvolvimento pessoal. Aautora refora no s a importncia como tambm a necessidade de se propiciarespaos de reflexo e discusso sobre o tema da morte. Destaca a importnciade incluir-se reflexo sobre temas relacionados morte no espao da escola,desde a educao infantil at a formao profissional (Kovcs, 2003). Enfatizaque o processo reflexivo deve envolver aspectos cognitivos e afetivos,estimulando questionamentos e discusses acerca de experincias vividas,prticas profissionais e abordagens tericas sobre o tema.

    Kovcs (1992) diz: entrelaamos vida e morte durante todo o processode desenvolvimento vital. Engana-se quem acredita que a morte s um

  • problema no final da vida, e que s ento dever pensar nela (p. 2).