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Sinopse

Causa mortis: coração partido. Às vésperas de completar 16 anos, Aubrie

Eagan tem tudo que uma adolescente pode desejar. Ela vive em uma casa linda

com os pais, o irmão caçula e um adorável cachorro na tranquila Half Monn Bay,

na belíssima costa da Califórnia, faz parte da bem-sucedida equipe de mer-

gulho de plataforma da Pacific Crest High School, tem um grupo de melhores

amigas daquelas para toda a vida e está apaixonada pelo lindo Jacob Ficher, es-

trela do time de atletismo da escola. Mas quando, no que deveria ser o jantar

mais romântico de todos os tempos, ele diz para Brie as quatro palavras que ne-

nhum garoto jamais deveria falar para a namorada – “Eu não te amo” –, o cora-

ção da menina literalmente racha em duas partes. Em A catastrófica história de

nós dois, a autora Jess Rothenberg traça com muita sensibilidade e humor a

trajetória de Brie após a morte... e antes do destino final.

Morrer não foi uma experiência agradável para Brie. Afinal, seu coração

partiu de verdade. Além do órgão em dois pedaços que seu pai, Daniel, um car-

diologista de renome mundial, estuda obsessivamente na tentativa de entender

como a filha morreu, dentro do peito da adolescente há um vazio penetradoapenas por uma dor imensa. Jacob era seu primeiro amor, o menino dos beijos

mais deliciosos do mundo, a promessa de uma paixão perfeita, que não termina-

ria como tantas outras histórias. Mas, como Brie logo aprende, a morte está longe

de ser o fim. O lado de lá é bem parecido com o de cá e tem até sua pizzaria favo-

rita, a Pedacinho do Céu, onde Brie costumava ir com a família e pode, agora,

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passar a eternidade comendo sua pizza preferida. Mas a Pedacinho do Céu do

além é diferente. Lá é um lugar onde outros mortos, todos jovens, ficam à espera

de que algo aconteça, algo que nem eles sabem o que é.

Também é lá que Brie conhece Patrick, a alma penada residente, um

garoto de 17 anos com um visual no melhor estilo Tom Cruise no filme Top gun,

atraente, inteligente e irritante. Patrick dá a adolescente o manual M&E – Morto

& Enterrado, com tudo que ela precisa saber sobre a nova fase, mas Brie não quer

aceitar qualquer tipo de ajuda. A jovem está processando as diversas perdas que

sofreu, sobretudo a vida que deixou para trás e a que deveria ter tido, e vivenci-

ando a primeira das cinco etapas do luto: a negação, que será inevitavelmente

seguida por raiva, barganha, tristeza e aceitação. E é esse caminho difícil, ponti-

lhado por muitos erros e grandes descobertas, que o leitor é convidado a com-

partilhar com Brie, dos mergulhos do topo da Golden Gate Bridge, em São Fran-

cisco, caminho para os mortos visitarem o mundo dos vivos, ao horror ao ver suafamília esfacelada, incapaz de lidar com a morte prematura da menina; da triste-

za de não poder estar com Emma, Sadie e Tess, suas grandes amigas, à raiva que

sente por Jacob, para ela o grande culpado pela situação em que se encontra.

 Jess Rothenberg aborda com delicadeza ímpar a rebeldia de uma adoles-

cente morta, explorando com vívida imaginação o universo após a morte, seus

perigos e tentações. Com mão segura, ela mostra como Brie fica determinada a se

vingar de Jacob e a mudar o passado, e como pela chance de salvar o casamento

dos pais a jovem arrisca sua alma imortal e tudo que ainda pode ter, mesmo no

além. Sempre recheado de referências pop, tema no qual Brie é uma expert e di-

vidido em capítulos que levam nomes de grandes sucessos musicais, sobretudo

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da década de 1980, A catastrófica história de nós dois é leitura obrigatória para

quem quer rir e se emocionar com uma tocante jornada de autoconhecimento e

entender um pouco mais sobre perda e recomeços.

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“O amor é um piano jogado do quarto andar em alguém que está nolugar errado, na hora errada.”  

 –  ANI DIFRANCO

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Parte I

DAS CINZAS ÀS CINZAS

Capítulo 1

 don’t you (forget about me) 

Sempre existe aquele cara que te pega. Não como o irmão do seu

melhor amigo, que te dá àquela chave de braço. Nem a criança de quem

você toma conta que gruda na sua perna.

Estou falando de uma coisa épica, que transforma a sua vida.

Aquela coisa do tipo “não consigo comer, dormir, fazer o dever de casa,

parar de sorrir, pensar em outra coisa que não seja o sorriso dele”.  Tipo

Wesley e Buttercup. Harry e Sally. Elizabeth Bennet e Mr. Darcy. O tipo

de relação de que falam todas as suas músicas preferidas dos anos 1980,

tipo “Must Have Been Love”, “Take My Breath Away”, “Eternal Flame” –  

aquelas que você cantava com as melhores amigas numa noite de sábado

usando a escova de cabelo como microfone.

Aquele tipo de relação de que você ouviu falar lendo o diário da sua

irmã mais velha, que ela descrevia sempre que saía com o namorado, e

que você espera, reza e implora que aconteça com você, mas que quando

acontece você fica completa e totalmente maluca, perde a noção da

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realidade ou qualquer lembrança de como as coisas eram antes

de ele  entrar na sua vida e destruir tudo.

O amor é mesmo sorrateiro. Ele se instala no minuto em que você

vira a cabeça para conferir se seu bumbum está bonito naquela calça

 jeans nova. No segundo em que você se desconcentra pensando na pro-

va, ou em quem ficou com quem na festa de 15 anos da sua melhor ami-

ga, no fato de não ter conseguido o papel principal na peça do colégio (te

odeio, Maggie Elliot) e por isso ter que interpretar a Cinderela, quando

todo mundo sabe que o personagem da bruxa é muito melhor.

Até que, de repente, você acorda um dia e se dá conta da verdade:

aquele garoto  —   um garoto que você conhece desde sempre e nunca

imaginou que pudesse ser um namorado em potencial; um garoto que

você nunca achou bonitinho; um garoto que é meio idiota e sempre usa a

mesma camiseta de skate; um garoto que é obcecado por O senhor dos

anéis  e pela tatuagem de dragão que vai fazer na perna quando tiver 18

anos —  vira, de repente, a única coisa em que você consegue pensar .

O problema é que se apaixonar não tem nada de “divertido”. Não.

Na maior parte do tempo você simplesmente fica enjoada, louca, nervosa

e ansiosa com a possibilidade de tudo acabar de uma maneira terrível e

sua vida ser arruinada por completo. E adivinha? É exatamente isso que

acontece.

 Tudo bem, é, ele tem um cheiro incrível. E, é verdade, você se derre-

te toda vez que ele manda um torpedo dizendo “Boa noite”, e, é isso

mesmo, os olhos dele são tãaaao azuis. E, sim, ele pega na sua mão no

caminho para a aula de geometria e entende seus segredinhos estranhos

e faz você rir tanto que o refrigerante espirra pelo seu nariz na frente de-

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le, mas você não liga, apesar de ser a coisa mais constrangedora do pla-

neta. E, sim, é verdade, quando ele te beija o resto do mundo desapare-

ce, seu cérebro desliga completamente e você só consegue sentir aqueles

lábios, e nada mais importa.

E, sim, ele diz que você é linda e, de repente, você é.

Mas atenção: isso tudo é uma enorme confusão e um pesadelo gi-

gante, e está prestes a explodir bem na sua cara e você não  faz a menor

ideia de onde está se metendo. O amor não é um jogo. As pessoas cortam

as orelhas por causa desse troço. Se jogam da Torre Eiffel, vendem tudo

que têm e se mudam para o Alasca para viver com ursos-pardos, são

comidas vivas por lá, sem ninguém por perto para escutar seus gritos de

socorro. É isso mesmo. Se apaixonar é quase a mesma coisa que ser en-

golida viva por um urso-pardo.

Pode acreditar em mim, eu sei.

Porque, não sei se cheguei a comentar… mas aconteceu comigo.

Não, não estou dizendo que fui comida viva por um urso-pardo. O que

aconteceu comigo foi muito, muito pior.

Eu tinha 15 anos quando morri de coração partido. Isso não é ne-

nhum mito ou lenda urbana, não. Estou falando de Morte por Coração

Partido, de verdade. Não, eu não me matei. Não, não fiz greve de fome.

Não peguei pneumonia vagando aos prantos pelas ruas debaixo de chu-

va, ao estilo Razão e sensibilidade , apesar de ser meio obcecada pela Ka-

te Winslet. Não, fiz bem como antigamente. Meu coração, literalmente,

SE PARTIU AO MEIO.

Eu sei. Também não achava que uma pessoa pudesse morrer disso

de verdade. Mas sou a prova viva (bem, não exatamente viva ). Mesmo

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que a maioria das pessoas ache que a culpa da minha morte repentina

tenha sido o sopro no coração com que nasci. Mesmo que crescer com

isso não tenha sido um sofrimento tão grande assim e eu tenha sido

sempre perfeitamente saudável  —  nunca precisei tomar remédios ou fi-

car sem praticar esportes ou coisas do gênero. Na verdade, eu era o ex-

tremo oposto disso.

Eu era forte. Enérgica. Meio levada. Até fui escolhida para fazer par-

te da equipe de mergulho do ensino médio da minha escola quando ain-

da estava no sétimo ano.

Não que isso importasse.

No fim das contas, meu coração se partiu mesmo assim.

Meu nome era Brie. Isso, feito o queijo. É engraçado, todo mundo

sempre acha que meus pais eram, tipo assim, apaixonados por queijo —  

tendo uma filha chamada Brie e um filho chamado Jack  — , mas meu

nome era, na verdade, Aubrie, e o do meu irmão, Jackson.

 Tudo ia maravilhosamente bem para mim no ano em que morri. Eu

morava no lugar mais lindo do planeta, no norte da Califórnia. O lugar

chamava-se Half Moon Bay, uma cidadezinha litorânea aninhada entre

florestas de sequoias e a acidentada costa do Pacífico, 45 quilômetros ao

sul de São Francisco. A praia era, literalmente , o quintal da minha casa.

Eu tinha a família perfeita: mamãe, papai, Jack e Hamloaf (nos-

so basset hound ).

Eu tinha melhores amigas perfeitas: Sadie Russo, Emma Brewer e

 Tess Hoffman.

E tinha o namorado perfeito: astro do atletismo, vice-representante

de turma, o Mais Gato dos Gatos, Jacob Fischer.

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Antes de morrer, eu tinha tudo e mais um pouco.

Eu era feliz .

Mas tudo isso mudou na noite de 4 de outubro de 2010  –  quandosenti uma dor lancinante no peito e tive um colapso na mesa de um res-

taurante, sentada de frente para o Jacob.

A noite da qual nunca acordei.

Simples assim. BUM. Fim da linha. Jogo encerrado. Nada a receber.

Era o fim de uma vida.

Minha  vida.

Nas duas primeiras horas depois da minha morte, acho que pensei

que finalmente estivesse prestando contas por todos os anos correndo,

mergulhando, escalando árvores, subindo e descendo as colinas de São

Francisco de bicicleta em velocidades absurdas. Meu coração devia ser

mais fraco do que todos pensavam que fosse. Afinal, devia haver algo

muito, muito errado comigo. Alguma coisa que nem o meu pai tinha sido

capaz de prever. (E ele é um cardiologista internacionalmente conhecido.)

Meu último suspiro aconteceu numa segunda-feira. Um dia da se-

mana nada ruim para se partir, na verdade, já que todo mundo já está

de péssimo humor desde a noite de domingo. Quero dizer, pelo menos

não arruinei grandes planos de uma noite de sexta ou de sábado, certo?Não sou legal?

Depois de alguns dias, os vizinhos começaram a deixar todo tipo de

coisa na varanda da minha casa. Cozidos, quiches, pode escolher. Al-

guém até deixou um peru, totalmente dia de Ação de Graças, recém-

saído do forno, quase explodindo de tão fresco. Acho que é isso que se

faz quando alguém morre: as pessoas deixam uma porção de comida na

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porta para que o restante da família não se esqueça de comer. Pena que

ninguém lembrou que lá em casa todo mundo era vegetariano. Bem, me-

nos o Hamloaf. (Aposto que ele comeu muito bem naquela noite.)

 Jack resolveu se encarregar de conferir a varanda todas as manhãs,

principalmente porque Hamloaf tinha o hábito de comer tudo que via pe-

la frente. Meu irmão era legal assim, sempre tomando a frente sem que

ninguém precisasse pedir. Jack só tinha 8 anos quando eu morri e, ape-

sar de eu não ter certeza se ele entendia o motivo de eu não estar mais

ali, era grandinho o bastante para entender que eu não ia voltar.

Ah, o rosto dele. Olhos verdes, grandes, o cabelo escuro ondulado,

como o meu. Ele ainda tinha uma covinha na bochecha esquerda  —  ab-

solutamente adorável quando ria, coisa que fazia bastante.

Meu irmão e eu éramos melhores amigos desde o segundo em que

minha mãe e meu pai chegaram em casa da maternidade e ele dormiu

nos meus braços. Tem uma foto nossa na geladeira  –  ele, todo enroladi-nho num cobertor azul, de gorro, e eu, com meu pijama de Scooby-Doo,

o cabelo preso em marias-chiquinhas bagunçadas. Daquele dia em dian-

te, viramos companheiros. Camaradas. Éramos inseparáveis. Ele era o

único capaz de me vencer no Lig 41.

Meu funeral foi horrível, é claro, mas acho que a parte mais difícil

foi ver o Jack olhando para o vazio.

Ele não chorou. Não precisava.

O colégio inteiro compareceu. A sra. Brenner, minha professora lou-

ra e bonita que morava do outro lado da rua desde que eu tinha 6 anos,

1 Tipo de jogo de tabuleiro que consiste em um tabuleiro bilateral e vertical com fichas vermelhas e azuis. Suas regras

assemelham-se ao jogo da velha. Fabricado no Brasil pela empresa de manufatura de brinquedos Estrela.

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ficou o tempo todo do lado da minha mãe, segurando a mão dela. Meu

pai estava de blazer cinza e usava a gravata que eu dei para ele de ani-

versário de 40 anos  —  com estampa de elefantes rosa e roxos. O rosto

dele estava duro, cansado, e dava para ver pelas olheiras que não dormia

havia dias. Estava sentado do lado direito da mamãe, com o braço em

volta dela. Ele segurava com força, como se tivesse medo de largar. Como

se ela pudesse se quebrar em pedaços.

Ou talvez como se ele  pudesse.

Eu não consegui deixar de observar minha mãe, em particular. A

maneira como ela encarava um arranjo de flores do outro lado da sala. O

 jeito como a pele dela parecia rachada, como se a tristeza de me perder

tivesse aberto caminho pelos poros. O esmorecido aroma do seu perfume

de rosas, resistindo no espaço entre nós.

Mamãe .

Passei os olhos pela multidão, pensando em como era surreal estar

diante de tanta gente. Prestando atenção em todos os detalhes e me per-

guntando por que tantas daquelas pessoas, que mal se preocupavam em

me dar bom-dia quando eu estava viva, estavam ali.

Aaron Wilsey, um garoto que fez aula de geografia comigo no sétimo

ano, que nunca fazia o dever de casa e desenhava tubarões no caderno a

aula toda. Lexi Rhodes, que tinha começado a usar delineador preto no

primeiro dia do nono ano. Mackenzie Carter, que começara com essa his-

tória de Jesus alguns verões antes e nunca mais voltara atrás. Eu me

perguntei se ela acreditava que eu estava com ele agora. Perguntei-me se

pensar nisso fazia com que se sentisse melhor.

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Centenas de adolescentes, amigos, pais e professores ocupavam as

fileiras do auditório da Pacific Crest High School, onde eu tinha acabado

de começar o penúltimo ano do ensino médio. Então, lembrei: o meu não

era o primeiro velório que acontecia ali. Era o segundo .

O primeiro foi de uma menina poucos anos mais velha que eu,

chamada Larkin Ramsey, que morreu num incêndio provocado por uma

vela que ela acendeu no próprio quarto. Eu não falava com Larkin havia

pelo menos dois anos quando ela morreu, mas nossas famílias se reveza-

vam na carona para o colégio quando nós éramos pequenas, e eu e ela

éramos bem amigas nessa época (brincávamos juntas no jardim, andá-

vamos de patins depois da aula, esse tipo de coisa). Ela tinha um lindo

cabelo preto e me ensinou a fazer trança embutida, coisa que aumentou

meu charme no quarto ano em mais ou menos 39 por cento.

Depois, quando ela estava no nono ano e eu no sétimo, tivemos

uma briga por causa de alguma coisa idiota que nem sei mais o que era e

nos afastamos. Eu comecei a mergulhar e ela começou a se interessar

por fotografia, e só. Quando finalmente entrei no ensino médio, ela já ti-

nha se tornado apenas mais um rosto no corredor amontoado de gente.

Isso me entristecia, lembrar das coisas divertidas que fazíamos jun-

tas quando éramos crianças. Mas acho que a verdade é que às vezes

amigos vão embora e outros entram na nossa vida como acessórios demoda —  uns numa estação, outros na próxima.

Mais ou menos como namoradas, não é, Jacob?  

Lembro da manhã em que fiquei sabendo da Larkin. Nosso técnico

tinha convocado o time para um treino às 6 horas da manhã e eu tinha

acabado de terminar um mergulho  –   um giro quase perfeito saindo de

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um trampolim a 3 metros de altura. Algumas das minhas companheiras

de equipe estavam cochichando enlouquecidamente na porta do vestiá-

rio, então cruzei a piscina nadando e saí para ver o que era. Ainda sentia

a adrenalina no meu corpo quando tirei a touca de natação e comecei a

me secar com a toalha.

 —  E aí, Mo, o que é que está acontecendo? As Cyclones amarelaram

do nosso encontro, é isso?

Os olhos dela me diziam que eu não estava nem perto.

 —  Houve um incêndio, ontem à noite —  disse ela. —  Uma garota dosegundo ano morreu.

Eu parei de me secar, a toalha pendurada na mão.

 —  Quem? Quem morreu?

Ela colocou a mão no meu ombro e as outras meninas me encara-

ram.

 —  Ela era sua amiga de infância, acho. Larkin Ramsey.

Ainda me lembro da sensação no meu estômago quando as pala-

vras saíram da boca da Morgan. Ainda me lembro das gotas geladas de

água rolando pelas minhas costas como se fossem lágrimas.

Minha amiga de infância .

Larkin Ramsey .

 Todos nós fomos ao funeral como uma família. Quem imaginaria,

alguns anos antes, que estaríamos ali novamente —  dessa vez por minha

causa?

As mesmas lâmpadas brancas estavam penduradas em todo o audi-

tório, e uma foto enorme do meu rosto —  devia ter pelo menos uns 3 me-

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traduzi um episódio inteiro de Friends  para o espanhol e cantei “Smelly

Cat” (“Gato Maloliente” ) para a turma. Ela cantou um pouquinho da mú-

sica e todo mundo riu, até meus pais.

Na verdade, todas as histórias eram engraçadas. Todas as lembran-

ças, doces. Por um segundo foi quase possível esquecer que aquilo era

um velório. Eu não tinha a sensação   de que alguém morrera. Não era

mórbido, deprimente ou assustador. Na verdade, era meio divertido ouvir

o quanto as pessoas gostavam de mim. Lembro de me sentir boba por ter

me preocupado com isso, por ter achado que seria difícil assistir. Mas o

clima estava leve. Como se fosse uma comemoração ou uma festa.

E, ali, eu era a estrela .

Depois, Sadie, Emma e Tess se levantaram. Vi as três caminharem

até o palco de mãos dadas. Todas pareciam tão jovens. Tão vivas.

Sadie, baixinha, bonita e de cabelo escuro, estava usando o anel do

humor que eu tinha dado para ela no aniversário de 13 anos. O cabelo

louro de Emma estava preso para trás e os olhos da minha amiga esta-

vam inchados de tanto chorar. Tess, o cabelo ruivo bagunçado e cheia de

sardas, segurava um lírio branco na mão esquerda.

Minha flor preferida.

Era louco ver as três juntas sem mim, como se, de alguma maneira,

o universo estivesse desequilibrado. Nossas iniciais juntas diziam BEST.

Quando éramos pequenas, meu pai costumava nos chamar de As Quatro

 Temíveis. Agora, nosso quarteto estava desfalcado.

Elas não tinham como saber que eu estava ali no palco, assistindo,

a alguns metros de distância. Querendo dizer para elas que ia ficar tudo

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bem, mesmo que eu não tivesse tanta certeza. Mas os mortos não falam,

afinal de contas.

Minhas amigas se entreolharam e respiraram fundo. E Sadie come-

çou a cantar. Sozinha. Uma voz linda.

I will remember you. Will you remember me?  

Don’t let your life pass you by. Weep not for the mem ories .

Ela hesitou por um segundo na palavra memories , a voz de soprano

tremendo. Então, Emma e Tess se juntaram a ela, e as três deram os

braços. Minhas melhores amigas no mundo inteiro. A harmonia daquele

trio de coração partido ecoando no total silêncio do auditório.

Meu Deus .

Olhei em volta.

Minha mãe começou a chorar, o corpo tremendo. Meu pai estava

tentando ser forte. De qualquer forma, lágrimas rolavam pelo seu rosto.Os braços da minha mãe em volta do Jack. Os olhos dele, vazios, olhan-

do para frente. O rosto escondido pelo cabelo. Depois das primeiras fra-

ses da música, o auditório inteiro desabou. Professores, amigos. Adoles-

centes que eu amava, que eu odiava, que eu nunca conhecera de verda-

de. Todos chorando.

Chorando por mim.

Então, eu o vi. O cabelo escuro, meio comprido, despenteado. Os

olhos lindos azuis fixos no chão de linóleo. A jaqueta velha e macia que

eu já sentira na minha pele tantas vezes. Os lábios perfeitos. Os lábios

que beijei todos os dias durante quase 11 meses. Ele estava nos fundos

do auditório, como se fosse um fantasma. Mas não era ele  o fantasma.

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Era eu .

Foi aí que perdi o controle.

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Capítulo 2

 take another little piece of my heart now, baby

Quando desci da minha maca de rodinhas no hospital e li meu

atestado de óbito —  aquele que preenchem logo depois que você morre — 

, vi onde o médico tinha anotado a hora da minha morte (20h22) e, en-

tão, três palavras que nunca vou esquecer.

Insuficiência cardíaca aguda .

 Também conhecida como falência do coração.

Não sabia disso na época, mas aquele médico estava errado. Meu

coração não falhou. Alguém fez meu coração falhar.

Primeiro, fiquei com muita raiva de mim mesma. Deveria ter sidomais cuidadosa. Deveria ter ido ao médico com mais regularidade, feito

check-ups frequentes, tomado algum remédio, ou então não ter sido tão

exigente comigo nos treinos de mergulho, como se eu fosse invencível ou

qualquer coisa do gênero. Porque no momento em que me sentei e per-

cebi que tinha morrido, eu teria feito qualquer coisa  —  qualquer coi- 

sa  mesmo  —  para ter uma segunda chance. Tive a sensação de que ti-nham mentido para mim. Todos me prometeram que eu teria uma vida

boa, saudável, normal. Meu pai  prometeu.

Mas enquanto eu observava o grupo de médicos e enfermeiros em

volta da radiografia do meu peito —  pendurada numa parede com prega-

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dores na frente de uma caixa iluminada  – , não consegui deixar de ficar

confusa.

 Todos os especialistas olhavam fixamente para ela. Sussurrando.

Apontando. Discutindo.

 —  O que está acontecendo? –  perguntei.

Ninguém me respondeu, então fui até a caixa iluminada, tentei

olhar por entre aqueles jalecos brancos e estetoscópios para ter uma vi-

são melhor de mim mesma.

Eu já tinha visto muitas radiografias de tórax (meu pai costumava

trazer as chapas para casa e perguntar a mim e ao Jack quais eram as

partes do coração), mas aquela era nova. Nenhum dos outros corações

em nenhuma das outras radiografias se parecia com o meu, agora. Al-

guma coisa, definitivamente, não estava certa.

E enquanto aquela foto do meu coração me encarava com frieza,

como um filme antipático, me dei conta de que todos estavam errados. O

sopro no meu coração não me matou.

A rachadura  no meu coração, sim.

Em um instante, a noite inteira voltou a minha cabeça, esmagando

minha memória como uma tonelada de tijolos. A força da pancada me

 jogou para trás e tentei me equilibrar segurando o braço de um dos mé-dicos, mas minha mão passou por ele e eu caí no chão. Não que ele te-

nha percebido.

De repente, lembrei da última coisa que Jacob me disse, do outro

lado da mesa. As últimas palavras que ouvi enquanto estava viva. As

quatro piores  palavras na história da língua portuguesa.

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Eu não te amo .

Isso aconteceu imediatamente antes de tudo ficar estranho, borra-

do, esverdeado. Antes de a sala desaparecer. Antes que aquela dor terrí-

vel, avassaladora, esmagadora, apertasse o meu peito, uma dor maior do

que qualquer coisa que eu já tenha sentido ou imaginado.

Levei a mão ao peito e prestei atenção. Esperei. Mas não ouvi ne-

nhuma batida. Nenhum tum-tum tum-tum familiar. Nada.

 —  Um coração não para espontaneamente assim. —  Ouvi um médi-

co dizer.

Hum, quer apostar?  

Eu teria pedido que todos se sentassem para que eu pudesse expli-

car, se tivesse tido tempo.

 Talvez, se estivessem no meu lugar naquela noite e escutassem o

que escutei, ou sentissem o que senti, compreendessem como uma morte

desse tipo é possível. Talvez então pudessem colocar os diplomas médi-

cos de lado por um segundo e pensar com o coração uma vez na vida, em

vez de usarem a cabeça.

Se fizessem isso, talvez eu não precisasse ter um perito me rasgan-

do ao meio para investigar meu interior e provar o que já estava na cara

de todo mundo, bem ali no meu raio-X. —   Vocês todos vão se sentir uns imbecis  —   falei, indo atrás dos

médicos que me empurraram na maca de rodinhas para dentro do eleva-

dor e apertaram o botão N, de NECROTÉRIO. Lugar onde ninguém gosta

de ir parar. O necrotério já é assustador em si, mas, podem acreditar em

mim, é muito mais assustador quando é para VOCÊ que todos olham, o

corpo absolutamente frio e duro —  e, ah, é, nu —  numa mesa.

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medições. Registraram todas as descobertas e conclusões. Não que nada

daquilo pudesse me ajudar.

Mas quando finalmente atravessaram minhas costelas e desencava-

ram meu coração de adolescente, acho que talvez, só talvez, tenham sen-

tido os próprios corações se partindo também.

Lá estava, exatamente como a radiografia indicava. Apesar de toda

a ciência não ser capaz de explicar. Mesmo que aquilo fosse o tipo da

coisa que só acontece em músicas românticas. Olhei por cima do ombro

do meu pai, por cima do meu cadáver, e encarei os fatos. Lá estava ele.

Meu coração .

Dormindo. Silencioso. E partido ao meio, duas metades extraordi-

nariamente iguais.

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Capítulo 3

 the cheese stands alone

Fui enterrada dois dias depois do memorial no colégio. Sabe aque-

la sensação horrível que temos quando sábado e domingo —  aqueles dois

dias perfeitos, felizes e totalmente mágicos de liberdade —  estão prestes

a acabar? Bem no momento em que o grande relógio começa a fazeraquele tique-taque torturante e você se dá conta de que nem começou a

fazer os deveres de casa?

Foi bem igual, só que cinquenta mil vezes pior. Estou falando da-

quela depressão derradeira e devastadora dos domingos.

Minha mãe tinha pedido que Sadie escolhesse para mim meu vesti-

do e meu sapato favoritos, já que ela era minha estilista desde o segundo

ano do fundamental. O vestido era lilás escuro, de algodão, salpicado de

florzinhas roxas e brancas, tinha bolsos internos escondidos e um laço

que amarrava atrás. Os sapatos eram sapatilhas pretas, simples, mas

que eu adorava porque brilhavam no sol. (Não que fossem brilhar muito

no lugar para onde eu estava indo.)

Decidiram deixar meu cabelo solto, emoldurando meu rosto. (Bem

Ofélia.) Eu quase o cortei no verão, mas agora que o via todo esparrama-

do daquele jeito, fiquei feliz por não ter feito isso. Finalmente, as meni-

nas pediram para que eu fosse enterrada com meu colar dourado, com

pingente de coração  —   um dos quatro que compramos numa lojinha

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charmosa de São Francisco, chamada Rabbit Hole, no verão antes de

começarem as aulas do ensino médio.

Lembro muito bem desse dia.

 Tínhamos discutido os resultados do nosso importantíssimo tes-

te Que princesa da Disney você é? , maravilhadas com os resultados “ci-

entificamente exatos”. 

Prova A: Sadie era, obviamente, a princesa Jasmine. Era linda e

exótica ao mesmo tempo (a mãe era israelita; além de ex-top model, para

completar), e  podia cantar “Um mundo ideal”, a música de Aladin , comoninguém.

Prova B: Emma era Aurora, de A Bela Adormecida , o que fazia todo

sentido, já que ela era a) loura, b) viciada em dormir e c) tão absoluta-

mente doce que pássaros começavam a cantar, de verdade, aonde quer

que ela fosse.

Prova C: Tess era Ariel, o que não podia ser mais perfeito, porque

seu cabelo era ruivo e ela era totalmente obcecada pelo único menino da

nossa sala chamado Eric. Sem falar que até teve um caranguejo eremita

de estimação quando era pequena. Existe coisa mais Ariel do que isso?

(Resposta: acho que não.)

E chegou a minha vez.

Prova D: Bela .

Resultado zero surpreendente, já que eu tinha gostado de dois garo-

tos de cabelos compridos e cheios desde que o Garibaldo entrara na mi-

nha vida na época da pré-escola. Eu também era a maior rata de biblio-

teca e planejava a viagem que nós quatro faríamos pela Europa antes de

entrarmos para a faculdade desde o primário.

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Quero dizer, por favor. Eu com certeza queria mais do que essa vida

do interior.

Depois de cada uma cantar a música tema da sua princesa da Dis-

ney, demos de cara com a Rabbit Hole —  literalmente um buraco no cen-

tro da Mission District que vendia todo tipo de bugigangas e roupas usa-

das, tipo luvas de renda, velhos chapéus de palha, joias antigas e bules

de porcelana. Coisas que você provavelmente nunca procura, mas com

certeza não consegue deixar para trás depois de ter visto.

Coisas como nossos colares.

Eram bastante parecidos  —  dourados, delicados, nem muito com-

pridos nem muito curtos — , mas cada um tinha um detalhe diferente. O

da Emma tinha um passarinho (como disse, passarinhos cantantes), o

da Tess, uma sereia (penduricalhos, guizos? O dela tinha vinte!), e o da

Sadie, uma estrela dourada. O maior sonho dela era ir para a Juilliard

School e se tornar uma atriz famosa, e eu tinha a sensação de que elachegaria lá. Era uma dessas pessoas que fazem com que você se sinta

incrível, só por ter o prazer de conhecê-las. Com Sadie, tudo era ilumi-

nado e fácil. Eu amava Tess e Emma como se fossem minhas irmãs, mas

minha ligação com Sadie era uma dessas coisas que a gente não sabe

descrever. Ela era muito mais do que uma melhor amiga ou uma irmã.

Era minha alma gêmea.

O meu  detalhe era um coraçãozinho dourado, porque eu era, de

longe, a mais melosa e mais romântica de nós quatro –  a única que acre-

ditava que todo mundo encontra seu par perfeito, seja lá como for.

Eu mal podia esperar  pelo final feliz. (Oh, ironia do destino.)

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um terno pequeno. Quis correr até ele. Pendurar meu irmão no ombro

como se fosse um saco de batatas, do jeito que fazia sempre, e voltar cor-

rendo para casa.

Ele começou a chorar. Meu pai se aproximou e ajudou no discurso

que ele tinha escrito para mim, intitulado: “Querida Cheddar.” (Apenas

um dos muitos apelidos relacionados a queijos que tive ao longo dos

anos.)

Olhei para eles uma última vez. Mamãe, papai e Jack. Três pati-

nhos enfileirados. Três patinhos em vez de quatro.

Baixei os olhos.

Isto está realmente acontecendo .

Um buraco do tamanho de uma menina no lugar onde eu costuma-

va estar. Um buraco do tamanho de uma menina onde deveria existir vi-

da. Um buraco do tamanho de uma menina no chão vazio, silencioso.

Meu Deus .

Eu realmente, realmente, realmente não queria entrar ali.

Mas entrei.

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Capítulo 4

 excuse me while I kiss the sky

Eu estava caindo. Caindo no tempo e no espaço, nas estrelas e no

céu, e em tudo que existe entre as coisas. Caí durante dias, semanas, e

sentia como se fossem vidas e mais vidas. Caí até esquecer que estava

caindo.

Quando pousei, o mundo me recebeu como uma cama sem fim  —  

um oceano feito de lençóis incríveis, cobertores quentinhos e travesseiros

de penas. Dormi um sono sem sonhos e sem memórias. Cruzei cidades,

montanhas, fotografias de viagens de família, aniversários, joelhos ma-

chucados, manhãs de Natal. Melhores amigas, balés, patins. Primeiros

encontros. Primeiros beijos. Primeiro amor.

Depois, em algum lugar muito profundo no meu peito, senti uma

dor latejante. Um vazio estranho. Uma dor onde, em algum lugar do pas- 

sado , ficava o meu coração.

Abri os olhos.

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Parte II

NEGAÇÃO

Capítulo 5

 the long and winding road

 T udo escuro. Tudo voando e passando por mim a milhões de qui-

lômetros por hora. Árvores, desfiladeiros e oceanos, tudo iluminado por

flashes de luz, como quando você troca os canais muito rápido. Meu ros-to estava comprimido a um vidro gelado, tudo zumbia e tremia. O assen-

to quicava, a cada topada ricocheteando no meu bumbum.

Quicando. Quicando. Quicando .

Sentei. Lentamente, desgrudei meu rosto do vidro.

Uau.

Meu corpo inteiro doía. Como se eu tivesse acabado de correr uma

meia maratona ou feito cinco aulas seguidas de aeroboxe.

 Toquei na minha bochecha e senti uma coisa molhada.

Que nojo . Será que me babei toda?  

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Esfreguei os olhos, levantei os braços bem em cima da cabeça e me

alonguei. Meu estômago reclamou quando voltei a me sentar e olhei em

volta.

 —  Última parada, cinco minutos. —  Ouvi uma voz rouca dizer atra-

vés de um alto-falante.

Olhei para cima e vi um velho num grande espelho retrovisor. Ócu-

los fundo de garrafa. Supercareca, superenrugado. Vestido com uma ca-

pa azul-marinho. Parecia ter uns 150 anos. Definitivamente, velho de-

mais para dirigir um ônibus.

Espera um segundo.

O que estou fazendo dentro de um ônibus?  

Dei uma rápida olhada. Tudo bem, estranho. Eu era a única pessoa

no ônibus. Filas e filas de bancos vazios a minha volta. Comecei a sentir

uma angústia, como se meu pulso estivesse disparado e meu coração ba-

tesse loucamente. Mas… isso não estava acontecendo. Coloquei a mão

no peito e não senti nada. Senti um vazio estranho.

 —  Hum, desculpe? —  Minha voz estava rouca, então, limpei a gar-

ganta. —  Senhor? Onde estou, por favor?

 —  Na via expressa. —  Sombras cortavam o rosto dele enquanto cor-

ríamos pela rodovia. —  Para onde estamos indo?

 —  Do Big Sur para o Coyote Point Park.

Coyote Point?   Isso era, tipo, a vinte minutos da minha casa. Olhei

pela janela e tentei entender que cenário era aquele, mas estava muito

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escuro lá fora e estávamos andando rápido demais. Limpei um pouco da

neblina que tinha embaçado o vidro, mas não ajudou.

 —  Como eu vim parar aqui?

Ele riu.

 —  Você está perguntando isso para mim? –  A voz dele meio que me

lembrava a do meu avô Frank. Doce e sarcástica. Eu não estava a fim de

piadas.

 —  Um segundo. —  Espremi os olhos e olhei novamente pela janela,

achei ter visto uma coisa familiar. Aquilo ali, lá longe, era um farol? Tal-

vez fosse Pigeon Point, onde papai nos levava para jogar frisbee. Pressio-

nei meu nariz no vidro.

É! Não é?  

Chamei o motorista do ônibus.

 —  Moço? O senhor pode me levar para casa, por favor? Não é muitolonge. Minha mãe e meu pai vão pagar, eu juro.

Ele continuou dirigindo. Não respondeu.

 —  Moço? —  Tentei me levantar para me aproximar um pouco dele,

mas o ônibus de repente fez uma curva e fui jogada de volta ao banco.

Quicando, quicando .

 Tentei novamente, avançando aos poucos.

 —  Moço? Moço, por favor.  —  Eu me agarrei nas alças dos bancos,

fui de um em um, tentando chegar lá na frente do ônibus e tentando não

tropeçar no caminho. Meus sapatos grudavam um pouco no chão, como

se alguém tivesse derramado refrigerante e nunca se preocupado em

limpar.

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Demorei um pouco, mas finalmente cheguei até o banco atrás do

dele, um pouco zonza e enjoada por causa daquele balanço todo.

 —  Desculpa —  disse de novo, agora mais alto. —  Perguntei se o se-

nhor poderia, por favor, me deixar na minha casa? É na Avenida Magel-

lan, número 11, logo depois da Cabrillo.

 —  Não tenho permissão para fazer nenhuma parada não programa-

da.

De repente, fiquei nervosa. Como eu chegaria em casa? Não tinha

telefone, dinheiro, nada.

 —  Onde está todo mundo?

Quicando, quicando, quicando .

 —  Todo mundo já saltou.

 —  Quanto tempo eu dormi?

Quicando .

 —  Muito.

 —  Por que o senhor não me acordou?

 —  Não tenho nada a ver com isso.  —  Ele alcançou o microfone. —  

Última parada, dois minutos. —  Um guincho agudo saiu do alto-falante.

Eu me encolhi, tapando os ouvidos.Continuamos em silêncio, a noite passando, até que senti o ônibus

diminuir a marcha e andar mais devagar. Os pneus cantaram quando

entramos num estacionamento com chão de pedrinhas, uma luz neon

brilhando à nossa frente. Finalmente, o ônibus parou. Deixou escapar

um longo suspiro, como se fosse uma última respiração, até se acomodar

na vaga.

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Esfreguei mais um pedaço do vidro embaçado e tentei ler o sinal

neon, que me parecia estranhamente familiar.

Espera. O quê?  

Em um instante, minha cabeça começou a rodar e paisagens, sons

e cheiros me rodearam de maneira esmagadora. Um furacão de dor avas-

saladora, quente, estrelas cadentes e buracos negros sem fim. Gargalha-

das e lágrimas, ecos dos gritos de um menino chamando meu nome

atravessavam uma estrada enevoada coberta de restos de motocicletas.

Velas, claustrofobia, terra, fogo e lama atravessando as rachaduras do

chão.

Segurei minha cabeça. Senti como se meu cérebro fosse explodir.

Cavando.

Me deixem sair daqui .

Arranhando.

Socorro .

Unhando.

Por favor .

Silêncio. Inércia. O nada. A escuridão.

Sem fim .A voz do velho interrompeu o vazio, me trazendo de volta.

 —  Chegamos. Todo mundo para fora.

Engoli o choro, tremendo. O fogo e a dor desapareceram na mesma

velocidade com que chegaram.

 —  Onde estou? —  sussurrei.

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Em lugar nenhum. Estou em lugar nenhum .

 —   Última parada.  —   Ele puxou uma alavanca amarela com um

grunhido.

Senti um sopro de ar frio quando a porta do ônibus foi aberta, o

cheiro conhecido do mar se misturando ao de flores do campo. Só que

agora aparecia um elemento novo. Uma espécie de poeira. Cruzei os bra-

ços e desejei ter um casaco.

Não, meu moletom. O de estampa de pinguins .

Eu ainda tinha uma pergunta, mas algo me dizia que não gostaria

da resposta.

 —  Senhor?

Seus olhos embaçados se fixaram nos meus e eu respirei profun-

damente, nervosa.

 —  O que é a última parada?

Ele fez um gesto afirmativo em direção à porta aberta.

 —  Bem-vinda à vida eterna.

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Capítulo 6

 ooh, heaven is a place on earth

Océu. (Mais ou menos?) Não tenho muita certeza do que esperava

dessa história toda de Vida após a morte , mas certamente achei que teria

algo a ver com nuvens fofinhas, cachoeiras enormes, filhotinhos

de golden retrievers  e galopes em cima de um lindo cavalo o tempo todo.

Mas não.

Saltei do ônibus e observei os arredores. Tudo bem, definitivamente

não era a Terra. Quero dizer, era como se fosse. Parecia a Terra. Até ti-

nha gosto de terra, por mais estranho que isso pareça. Só que era muito,

muito mais doce, como se o ar fosse feito de xarope ou de milk-shake.

Hamloaf, acho que não estamos mais no Kansas .

Mas, enquanto olhava o ônibus ir embora  –   quando realmente co-

mecei a me dar conta de que estava sozinha de verdade num estaciona-

mento assustador, sem um casaco ou telefone, sem um amigo no mundo

 – , comecei a sentir algo mais enterrado debaixo de toda aquela doçura

deliciosa. Uma coisa azeda e cheia de decadência. Um gosto disfarçado.

Então, entendi o que era.

O ar cheirava a flores mortas.

Não, rosas  mortas.

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Como as flores do meu velório. Exatamente as mesmas que estavam

espalhadas sobre o do meu túmulo depois de me mandarem para debai-

xo da terra.

Ainda podia ouvir o som abafado dos caules espinhosos batendo na

madeira do meu caixão de carvalho quando as flores pousavam, uma a

uma, em cima de mim. Podia me lembrar do jeito que o cheiro começou a

se transformar ao longo das horas, dos dias, das semanas que tinham

passado.

Enjoativo, podre, doce .

Quanto mais eu pensava, mais me dava conta de que o gosto estava

em toda parte. Na minha língua, no meu nariz, na minha garganta –  me

sufocando com a ideia da morte, do apodrecimento das pétalas de rosa.

Fiquei com vontade de vomitar, apesar de não ter nada no estômago.

Não importava.

Vomitei do mesmo jeito.

 Tossi e engasguei, me revirei no asfalto, pedrinhas e poeira entran-

do nos meus olhos, cabelos e pulmões, até que a única coisa que pude

fazer foi abraçar meus joelhos e esperar que aquilo tudo passasse. Todas

as partes do meu corpo doíam, e era como se o universo inteiro estivesse

explodindo dentro do meu crânio, ou como se meu corpo estivesse sendo

partido ao meio para que pudesse ser reconstruído de dentro para fora.

Recriando uma imagem distorcida de mim.

Nem todos os homens e cavalos do rei conseguirão juntar Brie outra

vez .

Quando o pior passou, tudo que podia fazer era ficar ali deitada no

chão, quase perdendo os sentidos, passeando numa mistura estranha

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de flashbacks . A maneira como a ponta do nariz do Jack levantava

quando ele sorria. O jeito como Hamloaf sempre arfava e soltava pum

enquanto dormia. Arfpum. Arfpum. O Pacífico, frio, verde e constante.

Era como se eu estivesse em todos os lugares e em lugar nenhum

ao mesmo tempo. Tinha 12 anos e andava na autoestrada no conversível

vermelho do papai, cantando “God Only Knows”, dos Beach Boys. Aos 9,

tomando banho nos irrigadores com Sadie, Emma e Tess, rindo enquan-

to Hamloaf corria atrás da gente no jardim, mordendo nossos biquínis.

Aos 15 anos, andando de bicicleta com Jacob até a praia, na última noite

do verão. A noite em que ele segurou meu rosto nas mãos e disse que me

amava.

Uma lufada súbita de calor me forçou a abrir os olhos, e eu pisquei

várias vezes, sentindo as pupilas dilatando e contraindo. Por um momen-

to, tudo ficou preto. Mas, em seguida, um brilho suave vermelho come-

çou a abrir caminho na minha direção, como um par estranho de mãos,

fazendo sinais para que eu as seguisse. Finalmente, do outro lado do es-

tacionamento, meus olhos se fixaram na origem da luz: um conhecido

letreiro neon, piscando e iluminando a escuridão.

Espremi os olhos quando o mundo voltou ao foco. Então, li:

Pedacinho do Céu 

 —  Ahn?  —  Minha garganta parecia arranhada, cheia de cinzas.  —  

A pizzaria ?

Fiquei ali, deitada no asfalto um tempo, hipnotizada pelo brilho fan-

tasmagórico do neon que se formara a minha volta. Aquele lugar era a

pizzaria preferida da minha família desde sempre. Uma tradição dos Ea-

gan durante anos e anos, apesar de o chão azulejado ser meio nojento e

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as mesas um pouco estreitas, coisas dos anos 1970  —   tudo laranja lis-

trado de marrom, com rachaduras tapadas milhares de vezes com fita

adesiva.

Não era a melhor pizza do sul de São Francisco.

Era a melhor pizza de toda a Costa Oeste dos Estados Unidos . Tal-

vez do mundo.

E como ficava na rua do outro lado do oceano, cerca de 240 metros

acima do nível do mar, a vista era incrível. Ou, como meu pai costumava

dizer, “celestial”. 

Isso é só um pesadelo , disse para mim mesma. Estou na minha ca- 

ma, totalmente segura, totalmente embarcada no sono. Hamloaf está do

meu lado. Jack no final do corredor. Está tudo bem .

Mas por que esse pesadelo maluco? Eu devo ter comido alguma coi-

sa estragada. Talvez a prova de História esteja se aproximando. Talvez eu

tenha me esquecido de passar fio dental.

Então eu me lembrei.

Jacob. Briguei com Jacob .

Enfiei as mãos nos bolsos.

Vazios .

Olhei em volta, freneticamente, procurando um orelhão.

Tenho que ligar para ele. Sei que se arrependeu. Sei que ele não quis

dizer … 

Meu estômago soltou um ronco esquisito, descontrolado, e inter-

rompeu meu pensamento. Caramba. Acho que estava com mais fome do

que imaginava. Devagar, bem devagar, consegui me levantar. Coloquei

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um pé na frente do outro, caminhando até aquela porta de vidro conhe-

cida. Cada passo me afastava da minha velha vida na terra. Um passo

mais distante dos meus amigos e da minha família, mais perto da luz

vermelha, radiante, neon.

 Tentei não pensar no assunto.

Quando cheguei bem perto, olhei pela janela. Olhando do lado de

fora, o lugar parecia o de sempre. O chão quadriculado cheio de racha-

duras, mal iluminado, ventiladores de teto barulhentos, a pintura ama-

rela descascando, um milhão de caixas de pizza empilhadas nos fundos.

 Tentei ignorar o fato de que a mesa preferida da minha família estava va-

zia, apesar de quase poder vê-los ali sentados. Lembrei da gargalhada da

minha mãe enquanto meu pai e Jack atiravam pacotinhos de açúcar de

um lado para outro na mesa.

Lágrimas fizeram meus olhos arderem e olhei para baixo, para mi-

nhas sapatilhas.

Logo vou me encontrar com eles. Logo, logo, vou para casa .

Eu não tinha certeza de que queria entrar, mas como meu estôma-

go roncava e minhas opções eram limitadas, me pareceu a melhor coisa

a fazer. E o cheiro de pizza recém-saída do forno estava me matando.

Sem trocadilhos.

Respirei fundo, empurrei as portas de vidro e entrei. Quase imedia-

tamente, o cheiro de molho de tomate, de massa torrada e mussarela

derretida tomou conta de mim. Uau, que delícia. Respirei o perfume da-

quele lugar, deixei que ele me aquecesse.

Hum, nham-nham nham-nham.

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Na mesa à minha direita, vi uma menina que parecia ter a minha

idade folheando uma revista Cosmo . Ela era uma mistura da Avril Lavig-

ne com modernidades de São Francisco: cabelo encaracolado louro com

mullet2 despenteado, óculos grossos pretos, os mais incríveis do mundo,

e o braço completamente tomado de pulseiras cor-de-rosa que chacoa-

lhavam toda vez que ela virava uma página.

Tchec . Tchec .

Revirei os olhos.

Do outro lado da mesma mesa estava um garoto com suéter deHarvard, que parecia alguns anos mais novo que Jack. O rosto dele  —  

completamente afogado em sardas —  estava grudado num Nintendo DS,

parecia estar numa espécie de transe. Não consegui deixar de sentir pe-

na, vendo aqueles dedinhos apressados no teclado. Cinco ou seis anos

era muito pouca idade para um ser humano acabar num lugar como

aquele.

Mas eu tinha 15.

Do outro lado do salão, uma menina de chapéu florido estava con-

centrada num livro com pinta de romance barato e, três mesas depois,

um menino com uniforme de futebol americano conversava com uma ga-

rota de cabelo roxo que usava uma gargantilha de tachas e batom preto.

Bom, esquisito .

Nunca tinha visto nenhum deles. Não reconheci um rosto sequer,

apesar de ter sido frequentadora assídua daquele lugar a minha vida in-

teira. Eu me senti meio esquisita observando um ambiente cheio de es- 2 Estilo de corte de cabelo muito usado na década de 80. Curto na frente, em cima e nos lados, mas comprido atrás. Ex Tipo

Chitãozinho & Chororó.

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tranhos, principalmente porque nenhum deles pareceu notar a minha

presença. Andei até uma mesa menor no canto do salão, onde alguém

tinha esquecido uma Magic 8 Ball3. Sorri.

Pelo menos ALGUMAS coisas nunca mudam.

A família que gerenciava o estabelecimento tinha um dom para co-

lecionar objetos  —  abajures, cinzeiros, baleiros, quadros estranhos, ca-

beças de coelho com chifres de veado grudados nelas — , todo tipo de bu-

giganga. Ao longo dos anos, a pizzaria se tornara um santuário de velha-

rias que ninguém queria, mas também não jogava fora. Era meio incrível.

Encarei a bola mágica e fiz a única pergunta que me ocorreu.

Já posso voltar para casa?  

Peguei a bola e a balancei gentilmente, atenta ao pequeno prisma

de plástico que se mexia dentro do líquido azul borbulhante. Depois de

um segundo, uma resposta apareceu no pequeno visor transparente.

NÃO CONTE COM ISSO.

Coloquei a bola de volta na mesa, com menos cuidado dessa vez.

Dane-se. Bolas mágicas são uma idiotice .

De repente, me senti invisível. Esquecida. Como se o universo esti-

vesse fazendo uma brincadeira de muito mau gosto comigo, apesar de eu

não ter feito nada para merecer isso. Fechei os olhos, rezando para que

alguém –  qualquer pessoa –  entrasse por aquela porta e me levasse para

casa, para que aquele pesadelo terrível chegasse ao fim.

 —  Quero ir para casa. Quero encontrar a Sadie. Quero passar o res-

to dos meus dias fazendo a prova mais difícil de Álgebra II. Quero estar

3 Brinquedo que lê a sorte.

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em qualquer lugar, menos aqui —  implorei silenciosamente ao universo.

 —  Por favor.

Mas, quando abri os olhos, o garotinho ainda jogava video-game. As

pulseiras ainda chacoalhavam. O Jogador de Futebol ainda tentava con-

quistar a Dama Gótica.

Achei que o chão estivesse se abrindo debaixo de mim.

Na verdade, desejei  que estivesse.

O chiado de uma televisão me tirou do transe de autopiedade e

olhei na direção dos fundos do restaurante, perto de uma pilha gigantes-

ca de caixas de pizza.

No canto —  os coturnos gastos chutando uma pequena mesa qua-

driculada —  um menino de uns 16 anos, ocupado com um controle re-

moto velho, estava tentando mudar o canal da TV.

Nossos olhos se encontraram por uma fração de segundo e senti

um ligeiro estremecimento nos ombros, como se eu tivesse passado por

uma nuvem de estática. Os olhos dele eram escuros  —  nem castanhos

nem verdes — , como se ainda não tivessem decidido de que cor queriam

ser. Ele era bronzeado, como bom californiano, um bronzeado que só se

consegue depois de vários verões surfando. O cabelo era castanho-escuro

e bem curtinho, um misto de corte militar e do corte daquele garoto

do Crepúsculo  (o lobisomem, não o vampiro).

Prestei atenção nele um tempo, tentando descobrir o que me pare-

cia tão familiar. Coturnos, certo. Jeans lavado e camiseta desbotada cin-

za, certo. Óculos de aviador pendurados na gola, certo. Mas o mais im-

pressionante de tudo: a jaqueta. Couro marrom antigo, bolsos aparentes,

punhos sanfonados… até lapela de pele falsa.

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Então me toquei. Não era o rosto que eu reconhecia, era a roupa!

Esse garoto era totalmente anos 1980. Totalmente piloto de combate. To-

talmente Tom Cruise em Top Gun , também conhecido como o MELHOR

FILME DE TODOS OS TEMPOS. Tentei disfarçar a risada, me sentindo

uma idiota. Uma música começou a tocar dentro da minha cabeça e não

consegui me impedir de cantar em silêncio.

Hiiighway … tooo the … danger zone!  

Mas aí vi a cicatriz.

Profunda e feia, ela começava no topo da mão, ia até o pulso e de-saparecia sob a manga.

Eca .

 —   Todas as almas novas precisam fazer o check-in  no balcão.  —  

Uma voz feminina interrompeu repentinamente meu karaokê mental.

Eu me virei e vi uma asiática de cabelo grisalho sentada num ban-

quinho atrás do balcão. Estava diante de um jogo de palavras cruzadas e

usava óculos vermelhos apoiados bem no meio do nariz.

 —  Nome? —  Agora ela olhava diretamente para mim, a voz entre o

tédio e a irritação.

Olhei para a esquerda, depois para a direita. Ninguém mais ali pa-

receu se preocupar. Ela estava, definitivamente, falando comigo.

 —  Hum, Brie Eagan?

 —  Você está atrasada.

 —  Estou?

Ela apontou para um relógio na parede que, aparentemente, estava

parado.

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 —  Desculpa.

A Senhora das Palavras Cruzadas acenou para mim.

 —  Não tem problema. Venha aqui. Papelada. E você pode me ajudarcom as palavras cruzadas.

Meu estômago roncou novamente, agora mais alto que antes. Olhei

de novo para o cara meio Tom Cruise, que trocou o controle remoto por

um pedaço de pizza aparentemente delicioso.

Ahh, o que é isso? Alcachofra com tomate seco?  

Ele ficou me encarando enquanto mordia devagar  —  e deliberada-

mente —  um grande pedaço de massa.

Nhoc. Nhoc. Nhoc .

A Senhora das Palavras Cruzadas pigarreou para mim de seu lugar

no balcão.

 —  Primeiro, você assina, depois pode comer.

Uau. Ela leu meus pensamentos?  

Saí da mesa e caminhei devagar até o balcão, um pouco irritada.

Puxei um banco e me sentei, depois observei a mulher, que pegou uma

pasta branca novinha e então escreveu meu nome nela. Suas mãos eram

tão pálidas que pude ver as veias debaixo da pele quando ela retirou um

papel de dentro do armário, colocou sobre a pasta e empurrou para mim.

 —  Só preciso que você preencha isso.

 —  Acho que talvez tenha havido algum engano.

Ela me encarou, sem piscar.

 —  Duvido.

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 —  Mas isso está errado. Estou me sentindo bem.

Ela riu.

 —  Você e todo mundo aqui. Agora, papelada.Cruzei os braços e travei o maxilar, sentindo minha criança interior

de 5 anos prestes a se apresentar.

 —  Eu. Não. Tenho. Caneta.

Ela apontou para a minha mão direita.

 —  Você. Tem. Sim.

Antes que eu pudesse argumentar, me dei conta de que era verda-

de, eu tinha uma caneta. Na minha mão, pronta para usar. Quase caí do

banco.

Como foi que isso veio parar aqui?!  

E quer saber o mais estranho de tudo? Eu conhecia aquela caneta.

Não é possível .

Era a mesma caneta que eu tinha no terceiro ano. Quando era ain-

da mais idiota do que hoje e ficava tão animada na véspera do dia de

compras do material escolar que não conseguia dormir.

A caneta era branca em cima e azul-turquesa em baixo, e tinha seis

(seis!) opções de cores, dependendo do botão que você apertasse. Davaaté para apertar dois ao mesmo tempo e misturar os tons. (Eu sei .) Para

uma nerd do terceiro ano que passava o verão inteiro treinando a assina-

tura, era uma maravilha absoluta.

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Deixei a caneta em cima da mesa numa sexta-feira, mas quando

procurei por ela na segunda seguinte, tinha desaparecido. Estamos fa-

lando de uma verdadeira tragédia grega no ensino fundamental.

Então, de maneira bem suspeita, Chloe Lutz  —   uma menina que

usava marias-chiquinhas todos os dias, pelo amor de Deus  —  apareceu

com uma caneta semelhante (e com isso quero dizer idêntica) alguns dias

depois.

Até tu, Chloe?  

Eu sabia que ela tinha roubado. Emma, Sadie e Tess sabiam. Masdedurar não era uma opção, porque nossa professora, a sra. Arden, ti-

nha uma atitude muito severa em relação a dedos-duros. Quis confron-

tar Chloe no recreio, mas achei que seria má ideia considerando que: a)

ela era mais alta que eu e b) era faixa marrom no caratê.

Acabei passando o resto do ano vendo Chloe usar e abusar dos

meus preciosos botões coloridos. Vermelho! Não, azul! Ah, isso não é di-

vertido?

Isso, Chloe Lutz, claro que é divertido. Obviamente foi por isso que

comprei essa caneta .

Agora, tantos anos depois, aqui estou eu, numa pizzaria fajuta em

Half Moon Bay, morta desde segunda-feira, segurando a mesma Caneta

Mais Legal do Mundo.

MUITO estranho .

Olhei para o pedaço de papel na minha frente. Apertei o botão verde

e comecei a responder as perguntas.

NOME: Aubrie Elizabeth Eagan.

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DATA DE NASCIMENTO: 1°- de novembro de 1994.

DATA DE MORTE:

Fiz uma pausa e olhei para a Senhora das Palavras Cruzadas, quetinha voltado para seu passatempo, o rosto contorcido de concentração.

Passei para a próxima pergunta.

CAUSA DA MORTE:

Parei novamente, mordendo a parte interna do lábio. Depois de al-

guns segundos, rabisquei a resposta.

Garoto malvado que merece sofrer.

Abaixo, havia: PAIS, IRMÃOS, ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO, OU-

TROS.

Ah, Hamloaf. Queria que você estivesse aqui para morder essa mu- 

lher que está me obrigando a preencher este formulário idiota .

Mais coisas para escrever depois de listar o restante da minha famí-

lia.

PASTA DE AMENDOIM OU GELEIA: Pasta de amendoim (extracro-

cante)

CAFÉ OU CHÁ: Chai  

Depois, na última linha:DESEJOS, SONHOS, SORVETE FAVORITO:

E fui tomada por uma lembrança.

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Capítulo 7

 your love is better than ice cream

 Jacob Fischer e eu nos conhecemos quando eu tinha 4 anos e ele

5, mas, de alguma forma, conseguimos não conversar de verdade até eu

ter 11 e ele, 12. Quando éramos pequenos, tudo que eu sabia sobre ele

era que era um “garoto típico” (monstros, caubóis e peidos, meu Deus).Era barulhento e bagunceiro, sempre subindo nos brinquedos que a mãe

da Sadie montava para a gente depois do colégio. Um desses meninos

que você odiaria ter ao seu lado em restaurantes, aviões etc.

Crescemos. Nunca conversávamos. Não que eu pensasse nele ou

qualquer coisa do gênero. Meninos não estavam no meu radar, já que

eram criaturas nojentas com quem eu e minhas amigas basicamente não

queríamos contato. De qualquer forma, vivíamos muito ocupadas an-

dando de bicicleta e fazendo coisas muito mais legais como mergulho

(eu), ginástica olímpica (Tess) e balé (Emma e Sadie).

Isso até uma tarde de setembro, anos mais tarde, quando a irmã

mais velha do Jacob, Maya, tocou a campainha lá de casa. Fui eu que

abri a porta.

Idiota, idiota, idiota.

 —  Oi, Brie!

Maya Fischer: cabelo comprido, encaracolado, bagunçado.

Aparelho nos dentes. Argolas enormes prateadas. Crocs laranja.

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Ah, eu quero .

 —  Oi, Maya —  respondi, lambendo um pirulito de melancia. Estava

tentando fazer com que demorasse o máximo possível até chegar na par-

te do chiclete.

 —  Sua mãe está em casa?

 —  Está.

 —  Posso falar com ela?

 —  Claro. Para quê?

 —   Estou abrindo uma empresa de babás. Parei para ver se seus

pais precisam de alguém.

Inclinei o tronco um pouco além da porta.

 —  Gostei dos seus Crocs.

 —  Obrigada.

 —   Brie?  —   chamou minha mãe do alto da escada.  —   Meu amor,

quem é?

 —  É Maya Fischer! —  gritei de volta. —  Ela quer saber se você pre-

cisa de alguém para tomar conta da gente! —  Depois, caí na gargalhada e

corri para dentro.

Acabou que, coisa do destino, minha mãe e meu pai precisavam  dealguém para tomar conta do Jack e de mim naquela sexta-feira à noite.

Meu pai tinha um daqueles jantares de médicos na cidade, então minha

mãe combinou com Maya para que ela viesse naquela noite.

 —  Só preciso saber —  disse Maya —  se posso trazer meu irmão me-

nor. Disse para minha mãe que ia tomar conta dele também.

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 —  Claro! —  exclamou minha mãe. —  A gente pede uns sanduíches

do Bo-bo’s para eles. 

Fiquei obviamente mais animada com os hambúrgueres do Bo-bo’s

e com a possibilidade de assistir a Procurando Nemo  (pela octogésima sé-

tima vez) do que com Maya e o irmão, Jacob, na minha casa.

 Jacob Fischer: nada demais. Só um garoto do colégio. Só um garoto

do parquinho de quando a gente era criança.

Isso foi antes de eu saber alguma coisa sobre qualquer coisa.

Minha mãe e meu pai estavam atrasados, como sempre, quando a

campainha tocou na sexta-feira à noite. Eu estava deitada na cama, fa-

lando ao telefone com a Tess, escutando seus motivos para estar apaixo-

nada por Eric Ryan.

 —  Você viu o que ele fez na piscina, no aniversário da Bethany? Não

achou o nado de costas dele incrível?

(O que foi que eu disse? Totalmente Ariel.)

Ouvi minha mãe dizer “oi” para eles lá embaixo. Ouvi a porta bater

quando Maya e Jacob entraram e fizeram o tour básico pela casa. Ouvi a

porta da garagem ranger enquanto abria e fechava quando mamãe e pa-

pai saíram para o jantar.

Finalmente, quando desci, encontrei Maya jogada no sofá, assistin-do The Real World  e meu irmão de 4 anos sentado no carpete, brincando

com LEGO. Maya se virou quando entrei na sala.

 —  Oi, Brie! —  Grande sorriso. —  Você está com fome? —  Ela confe-

riu o relógio. —  Os hambúrgueres devem chegar já, já.

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 —  Oi —  respondi. —  Valeu. Que bom. —  Fui até Jack e agachei ao

lado dele. —  E aí, Jackson Hole, fazendo o quê?

 Jacob estava do lado do meu irmão, também brincando com LEGO.

Você pode imaginar: eu, meio gordinha, cabelo meio frisado, com

um short e óculos de armação roxa três vezes maior do que meu rosto.

Ele, alto (tudo bem, para um garoto de 12 anos, gente), cabelo castanho

encaracolado, uma sarda à direita na ponta do nariz, dentinho quebrado.

Só um garoto. Só um garoto de camiseta de skatista. Só um garoto

com camiseta de skatista brincando com LEGO. Ele não olhou para mime não tomou conhecimento da minha existência. Apesar de estar

na minha  casa. No carpete da minha  sala. Brincando com meu  irmão

mais novo. Argh, típico garoto das cavernas.

 —  Estou fazendo uma nave espacial  —  respondeu Jack, orgulhoso.

Ergueu um amontoado de LEGOs que parecia mais um dinossauro do

que uma nave.

Eu ri.

 —  Boa ideia, Jack. Talvez eu faça uma estação espacial do Wendy’s

para os astronautas poderem pedir um picolé quando pousarem na lua.

 Jacob riu e fez uma careta.

 —  Um sorvete Ben and Jerry seria melhor.

Virei para ele, olhos arregalados.

Como assim? Você se atreve a rir da minha escolha de sobremesa?  

 —  Hum, me desculpe —  falei — , mas picolé é muito melhor.

 —  Não mesmo —  disse Jacob. Os olhos dele encontraram os meus.

 —  Nada é melhor que sorvete de cereja.

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E foi assim que, BUM, estava feito.

A paixão perversa, terrível, ameaçadora, encontrara sua próxima ví-

tima.

Se eu soubesse, naquele momento, que aquele era o garoto —  aque-

le, cheio de dentes, cabeludo, querendo ser skatista — aquele  era o garoto

que cresceria e partiria meu coração além da possibilidade de conserto,

talvez eu tivesse ficado lá em cima, falando no telefone com a Tess. Tal-

vez eu tivesse ido dormir cedo. Talvez eu tivesse implorado para meus

pais me levarem com eles  —   mesmo que aqueles jantares de médicos

fossem as coisas mais chatas do mundo.

Mas eu não sabia. Não podia  saber. Então, em vez disso, encolhi os

ombros como se não desse a mínima e disse alguma coisa genial do tipo:

 —  É. Tanto faz.  —  E fui em frente, construindo minha estação es-

pacial do Wendy’s. 

E, na sequência, me apaixonei louca, total e completamente por ele.

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Capítulo 8

 only the good die young

Uma semana se passara. Uma semana desde que deixei de existir.

Uma semana desde que deixei o universo e aterrissei numa outra e es-

tranha dimensão da minha cidade, com a mesma roupa e amaldiçoada a

comer pizza por toda a eternidade.

Até que não era uma maldição tão ruim assim, na verdade. Ali, a

pessoa poderia comer pizza o dia inteiro, todos os dias, e nunca engordar

um grama. Sadie morreria de inveja.

 —  Você vai comer isso?

Uau, ele fala .Assisti, surpresa, o cara com a jaqueta de couro caminhar até a

minha mesa e se sentar. Ele bocejou e coçou a cabeça. Depois, pegou um

pedaço da minha pizza vegetariana.

 —  Não consigo ver uma coisa boa indo para o lixo.

 —  À vontade —  falei, assumindo minha identidade de princesa Bela

da Disney.

 —  Eca, vegetariana? —  disse ele, examinando um pedaço de berin-

 jela. —  Você é chata assim?

 —  Melhor reclamar com meus pais.  —  Dei de ombros.  —  Eles me

educaram para ser vegetariana.

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 —  Jura? —  Ele olhou para mim com pena. —  Uau. Meus pêsames.

 —  Valeu —  respondi.

 —  Então —  disse ele, em meio a mordidas desapontadas  — , permi-ta-me ser o primeiro a lhe dar as boas-vindas ao Mundo do Além, moci-

nha.

Mundo do Além?

Ele estendeu a mão.

 —  Meu nome é Patrick. Alma perdida residente.

Apertei a mão dele.

 —  E você é?

 —  Brie.

Ele me encarou como se eu tivesse um pepperoni gigante grudado

no rosto.

 —  Seu nome é Brie? Tipo… o queijo?

Revirei os olhos.

 —  Meu Deus, até parece que eu nunca escutei isso.

 —  Obrigado  —   disse ele, com um meio-sorriso.  —   Me orgulho da

minha originalidade.

Ficamos uns instantes em silêncio e me flagrei encarando as outras

pessoas do salão. Então, me veio um pensamento. O Jogador de Futebol.

A Dama Gótica. A Garota das Pulseiras. O Garoto do Nintendo. Patrick.

Até mesmo eu .

 Todos nós, com exceção da Senhora das Palavras Cruzadas, éramos

 jovens.

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 —  Você parece confusa —  disse ele.

Como era observador!  

Eu me inclinei para frente e baixei a voz. —  Quem são essas pessoas?

Ele deu de ombros.

 —  Você sabe. Nada além de mortos comuns.

 —   Mas, tipo assim, cadê os velhos ? Onde foram parar todos os

adultos?

 —  Hum… —  Ele coçou a cabeça. —  Provavelmente num restaurante

mais caro? —  Novamente aquele meio-sorriso.

Encarei o garoto.

 —  Você é sempre assim tão charmoso?

 —  Você é sempre assim tão linda?

 —   Muito engraçado. Agora, sério, o que todo mundo está fazendo

aqui? O que você está fazendo aqui?

Ele deu de ombros novamente.

 —  Eu não sou especialista em nada. Alguns deles —  apontou para o

Garoto do Nintendo —  estão completamente fora de contato com a reali-

dade. Outros  —   sinalizou em direção à Garota das Pulseiras  —   estão

aqui há gerações. No meu  caso, eu gosto muito de pizza. Cada um segue

no seu tempo, faz o que gosta  —  disse ele.  —   Tem muita diversão por

aqui. —  Piscou e sorriu para mim. —  Falando nisso, quer se divertir um

pouco?

Ah, LEGAL.

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Ergui uma sobrancelha.

 —  E a que tipo de diversão você estaria se referindo?

Ele levantou as mãos, se defendendo. —  Ei, mocinha, vamos manter as coisas permitidas para menores,

tudo bem? Primeiro, porque existem crianças no recinto. Segundo, por-

que a gente acabou de se conhecer. Então, vamos continuar assim, sain-

do com outras pessoas, deixando as coisas se desenvolverem de maneira

natural, certo? —  Ele balançou a cabeça e assobiou. —  Caramba, parece

que não importa o que eu faça, as meninas não resistem a mim.

Senti meu rosto corar com vários tons de vermelho. Não dava para

acreditar naquele garoto. Ele estava falando sério? Não podia ser.

Podia?  

Limpei a garganta, sem jeito, e tentei pensar em alguma coisa para

dizer.

 —  Então, há quanto tempo mesmo você disse que estava aqui?  —  

Minha voz saiu aguda, num misto de burro com doninha.

Ele riu.

 —  Eu não disse.  —  Depois, pegou outro pedaço da minha pizza e

comeu em três dentadas.

 —   Impressionante  —   comentei.  —   Você devia competir profissio-

nalmente.

 —  Garotos precisam comer.

Empurrei o restante da pizza na direção dele.

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 —  Pode comer tudo. Eu, com certeza, já comi o suficiente para a vi-

da toda.

Ele fez uma pausa, olhando fixamente para mim.

 —  A vida toda é muito tempo. Talvez mais do que você imagina.

Eu não tinha certeza do que ele queria dizer, então fiquei em silên-

cio.

 —  Falando de vida e morte… —  O tom dele ficou reticente. —  O que

aconteceu com você?

 —  Como assim?

 —  Você sabe. De que você morreu?

Senti um aperto no peito.

 —  Não quero falar sobre isso.

 —  Ah, vai —  disse ele. —  Não precisa ficar tímida. Eu não mordo. —  

Mastigou com bastante força e sorriu. —  Quero dizer, só um pouquinho.

Eca. Meninos são TÃO nojentos.

 —  Olha.  —   Pus uma mecha de cabelo atrás da orelha.  —   Vamos

mudar de assunto, tá?  —  Olhei para a Senhora das Palavras Cruzadas,

debruçada sobre a mesma cruzadinha que tentava resolver havia dias.

 —  Nove letras —  murmurou para si mesma. —  Pode servir de cober-tura de pizza. Berinjela? Cogumelo? —  Começou a apagar, ferozmente.

 —  Almôndega! —  Patrick girou o corpo. —  Tenta almôndega!

A Senhora das Palavras Cruzadas parou de apagar e, depois de con-

tar as letras, soprou um beijo do outro lado do salão.

 —  Obrigada, meu amor.

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 —   Meu amor?  —   sussurrei, incrédula.  —   Parece que alguém tem

uma paixonite.

 —  O que foi que eu disse?  —  Ele fez uma pose.  —  Ela ama minha

 jaqueta.

Revirei os olhos.

 —  Com certeza.

Meus pensamentos vagaram e por um segundo não consegui deixar

de pensar na minha mãe e no meu pai. Em como tentávamos fazer as

palavras cruzadas do New York Times   juntos todos os domingos de ma-

nhã, comendo waffles com banana. Em como eles sempre deixavam que

 Jack e eu ajudássemos com algumas respostas. Bem, com as mais fá-

ceis, mas deixavam.

De repente, olhei para Patrick.

 —  Você tem algum telefone para me emprestar?

 —  Por quê? Precisa ligar para o namorado?

 —  Deus me livre —  falei, cruzando os braços. —  Para sua informa-

ção, quero chamar um táxi.

Patrick debruçou-se na mesa, se aproximando.

 —  Ah, é? E para onde você pensa que vai?

 —  Para casa —  respondi, segura. —  Vou para casa.

 —  Peraí. —  Ele baixou a fatia de pizza. —  Você não está falando sé-

rio, está?

 —  Ela   —   apontei para a Senhora das Palavras Cruzadas  —   disse

que minha papelada levaria alguns dias para ser processada, ou qual-

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 —  Eca! —  Joguei um pedaço de massa nele. —  Por favor, poupe-me

dos detalhes sórdidos.

 —  Tem certeza? —  Ele fez uma pausa. —  Você realmente não sabe o

que está perdendo.

Balancei a cabeça.

 —   Tudo bem… —  Mas, antes de fechar novamente o zíper, Patrick

enfiou a mão dentro da jaqueta e pegou um livrinho. Jogou-o na minha

direção, e ele caiu na minha frente, fazendo barulho. —  Você tem alguma

pergunta? —  perguntou ele. —  Este livro tem respostas.

Dei uma olhada mais de perto. Passei meus dedos sobre a capa mo-

le, com as seguintes letras douradas:

O Manual M&E 

 —  M&E? —  eu disse.

Ele riu.

 —  Morto & Enterrado , o manual. A única literatura necessária daqui

para frente.

Abri lentamente a capa, virei as páginas e cheguei na descrição dos

capítulos.

Capítulo 1: Você Está Aqui. E Agora? 

Eu gostaria de voltar para casa, isso sim .

 —  Eu sei que não parece importante  —  disse Patrick.  —  Mas pode

acreditar, tem bastante informação útil aí. Algumas ótimas ideias para

ocupar o tempo.  —   Ele lançou uma azeitona no ar e acompanhou sua

aterrissagem no chão.  —  O tempo engana muito, Cheetos. A gente tem

que aprender a se distrair.

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Hesitei.

Cheetos?  

Papai e Jack eram os únicos que tinham permissão para usar ape-lidos relacionados a queijo. E, às vezes, melhores amigas. Mas só.

 —  O problema com o tempo —  continuou ele, antes que eu pudesse

impedir  —   é que às vezes ele é demais.  —  Apontou para o livro.  —   O

M&E realmente nos ajuda a se ajustar.

 —  Se ajustar? —  Uma sensação desconfortável começou a abrir es-

paço no meu estômago. —  Se ajustar a quê?

 —  Faça um favor a si mesma e leia o livro. —  Ele sorriu. —  Porque,

pode acreditar, você vai ser testada.

Alguma coisa nos olhos dele me fazia duvidar se estava falando sé-

rio. Na verdade, ele só podia  estar brincando.

Certo?   —  Com certeza  —  disse eu, na esperança de que ele percebesse o

sarcasmo no meu tom de voz. —  Mal posso esperar para meter a cara ne-

le.  —   Enfiei o livro no bolso do meu vestido, mas, no último segundo,

deixei-o cair debaixo da mesa, aos meus pés. Tossi para encobrir o baru-

lho do livro caindo no linóleo.

Ops! O que houve?  

Eu não diria ao meu querido sr. Almôndega que não tinha a menor

intenção de ler aquele livro idiota, assim como não tinha a menor inten-

ção de ficar por ali mais tempo do que já tinha ficado.

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 —  Uau! —  De repente, Patrick pareceu impressionado. —  Você deve

ser o pior caso que eu vejo desde que o New Kids On The Block se desfez.

 Talvez mais ainda.

 —  Pior caso de quê?  —  Dei um peteleco numa migalha na direção

dele. Acertei em cheio.

 —  Na verdade, é meio bonitinho.

Senti que estava começando a ficar realmente irritada.

 —  Eu não sou bonitinha.

 —  Pensando bem  —  disse ele, rindo  — , você me lembra um pouco

alguém. Devem ser seus olhos.

Fiz uma careta.

 —  Ah, é? Quem?

 —  Cleópatra.

 —  Por que cargas d’água eu lembro a Cleópatra? 

 —  Não sei… —  Ele parou de falar. —  Talvez seja porque ela era, vo-

cê sabe, a Rainha da Negação.

Cruzei os braços.

 —  Eu não  estou em negação.

 —  Falou como uma novata de Fase Um. —  Ele se escondeu debaixo

da mesa por um instante. Quando voltou, jogou o M&E na minha frente.

 —  Boa tentativa, aliás.

Droga .

 —  Não que você possa fazer alguma coisa —  continuou ele. —  Pode

acreditar, já vi muita gente feito você cruzando essas portas.

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Fiz uma pausa.

 —  Você não sabe de nada a meu respeito.

 —  Brie. —  O quê? —  Estava ficando cansada daquela lenga-lenga.

Patrick ficou em silêncio.

 —  Você sabe por que está aqui?

A pergunta me pegou de surpresa. Senti uma coceirinha na ponta

do nariz. Outra nos cantos dos olhos.

Não chore. Não chore .

Fiz que sim com a cabeça.

 —  Ah? —  disse ele. —  E por que?

Quem esse garoto pensa que é? Ele me conhecia havia cinco minu-

tos e agia como se fosse um especialista no assunto.

O assunto sendo eu .

 —  Sabe de uma coisa? —  falei. —  Realmente não é da sua conta. —  

Depois dessa, saí da mesa e fui até outra, do outro lado do salão, perto

da janela.

 —  Exatamente como pensei. —  Ele se levantou e foi até a máquina

de refrigerantes, onde encheu meu copo de Sprite. Depois me seguiu até

a mesa onde eu estava e puxou uma cadeira. —  Você é um caso clássico.

 —  Eu realmente preferiria ficar sozinha, se não se importa.

 —  Mentira. Você gosta de companhia. —  Ele aproximou o corpo. —  

Escuta, anjinho, o que você está sentindo agora é completamente nor-

mal. Aconteceu comigo. —  Ele pegou um guardanapo e limpou a boca.

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Não respondi. Só peguei meu refrigerante e comecei a morder o ca-

nudo. Hábito antigo.

 —  É assim —  disse Patrick. —  Vou te mostrar. —  Ele desamassou o

guardanapo, alisou-o em cima da mesa e começou a escrever. Quando

terminou, empurrou o papel na minha direção. —  Leia.

Olhei para baixo. Entre um pingo de molho de tomate e manchas de

gordura, com a caligrafia confusa totalmente de menino, estavam escri-

tas as seguintes palavras:

Negação  

Raiva  

Barganha  

Tristeza  

Aceitação  

Ele lentamente fez um círculo em volta da palavra negação, com a

caneta.

 —  Está vendo isso?

Olhei para ele, oficialmente de saco cheio da nossa conversa.

Não fale comigo .

 —  É você.

Virei o rosto, porque lágrimas quentes e raivosas começaram a rolar

pelas minhas bochechas. Limpei o rosto com as costas da mão.

 —  Você vai compreender, meu anjo  —  disse ele.  —  Um dia desses

você entende.  —  Pegou o guardanapo, dobrou-o e enfiou-o no bolso.  —  

Vou guardar isso só por segurança.

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Ficamos em silêncio por alguns minutos. Continuei a morder meu

canudo, olhos fixos no oceano.

Patrick se tocou e mudou de assunto.

 —  Então. Quase dezesseis, hein?

Fiz que sim, ainda sem olhar para ele.

 —  Quase.

 —  E está aqui há uma semana.

Fiz que sim novamente, apesar de não ter certeza. O tempo agora

estava estranho. Conseguia senti-lo passando por mim. Via o sol nascer

e morrer como sempre, mas os minutos pareciam se estender para sem-

pre. Não de maneira tediosa, como quando eu costumava ficar babando

no caderno durante as aulas de História Europeia, esperando o sino to-

car. Este lugar é meio fast-forward  e slow motion 4  ao mesmo tempo.

 —  Então, beija-flor? —  Ele sorriu, esperançoso. —  Já está se diver-tindo?

 —   Divertindo?  —   respondi imediatamente.  —  Deveria estar me di-

vertindo?

 —  Por que não? —  Ele olhou para a porta. —  É como eu disse. Você

sabe que a gente pode ir embora na hora que quiser, não sabe?

 —  Ir embora para onde?

Ele riu.

 —  O que você acha, queijo coalho? Que você vai ter que ficar aqui

comendo pizza todos os dias até o fim dos tempos?

4 Efeitos de gravação de áudio ou vídeo. Fast-forward = velocidade alta e Slow motion= velocidade quadro a quadro.

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 —  Não vi nenhum de vocês ir embora em momento algum  —  recla-

mei, olhando para a Senhora das Palavras Cruzadas.  —  É irritante ela

ser a chefe.

Ele me olhou de um jeito engraçado.

 —  Quem disse que ela é a chefe?

Não entendi. Éramos só um bando de crianças. Alguém tinha que

ser a chefe. Não?

 —  Mas se ela não é —  disse eu, lentamente — , quem é?

Ele se debruçou na mesa, se aproximando de mim como se tivesse

um segredo que não pudesse mais guardar.

 —  Você, Cheetos —  disse Patrick. —  Você é a chefe .

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Capítulo 9

 i was walking with a ghost

Minha mãe com certeza teria me matado se soubesse que eu es-

tava cruzando a Pacific Coast Highway na garupa de uma moto com os

braços em volta da cintura de um garoto que tinha acabado de conhecer.

 Teria me matado de verdade, tipo homicídio.

Mas ela não sabia. E, por mais estranho que pareça, eu não me im-

portava. Era bom esquecer de tudo que acontecera comigo, e era bom

parar de chorar. De qualquer maneira, não era como se eu pudesse fazer

alguma coisa mesmo. Isso eu aprendi rapidinho. Você pode ficar obceca-

do com a maneira como as coisas acabam —  o que você fez de errado ou

poderia ter feito diferente  – , mas não faz muito sentido. Não é como se

pudesse mudar algo. Então, sério, por que se preocupar?

E mais, a vida depois da morte era tipo, bem, divertida . Parecia

aquele lugar estranho, entre mundos, de quando você sabe que está so-

nhando, mas também sabe que ainda tem dez minutos até seu desperta-

dor tocar. (No meu caso, o alarme está programado para não tocar nun-

ca. E o sonho dura para sempre.)

No início, Patrick não queria me deixar subir na moto com ele.

 —  Hum, acho melhor não.

 —  Deixa, vai.

 —  Não.

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 —  Por que não?

 —  Porque eu não sou seu motorista, por isso.

 —  Por favor?Ele me encarou profundamente e ficou em silêncio. Tive a sensação

de que não estava para brincadeiras.

 —  Não acho uma boa ideia, tudo bem?

 —  Engraçado, porque eu acho uma excelente  ideia.

Mal sabia ele que eu morria de medo —  com M maiúsculo —  de mo-

tos desde sempre. Eram barulhentas e perigosas, e meu pai tinha me

contado mil histórias de acidentes e acidentados terríveis que ele tinha

visto na emergência do hospital. Mas meu medo real  —   meu medo de

verdade —  vinha de outro lugar. Um lugar mais profundo.

Eu não contaria para Patrick, mas a razão de eu ter tanto medo de

motos era porque, desde que me lembro, tinha um pesadelo recorrente,horrível, de estar na garupa de uma motocicleta  —   meu rosto e meus

braços para cima, para o céu mais azul e calmo do mundo  —  e, de re-

pente, BANG, tudo dava errado. O céu escurecia. O vento ficava muito

forte. Eu sentia o motorista perder o controle. E então escutava o baru-

lho de pneus cantando e metal se despedaçando. Sentia meu corpo sen-

do arrancado da moto, voando em meio a muita fumaça e calor até que,de repente, sempre no último segundo possível, eu abria os olhos e acor-

dava, sem ar.

Exatamente assim.

Era sempre o mesmo sonho. Sempre a mesma sensação de perda

de controle, falta de gravidade, nenhuma chance de sobrevivência. Além

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do fato de eu nunca ter tocado numa moto, o mais estranho era que pa-

recia que todas as vezes que eu tinha esse pesadelo era o mesmo dia do

ano: o quatro de julho.

E, às vezes, passava o dia inteiro sentindo cheiro de fumaça e óleo

queimado, mesmo durante a queima de fogos.

Mas minha fobia idiota não tinha mais a menor importância. Por-

que, seja lá como for, uma pessoa não pode morrer duas vezes.

Em outras palavras, eu não tinha mais nada a perder.

 —  Por favor? —  pedi. —  Só uma voltinha.

 —  Que parte da palavra não  você não entende?

 —  Que parte da palavra não  sua mãe não entende?

 —  Espera aí, você está fazendo de conta que é minha mãe?

 —  Talvez sim, talvez não.

Então ele abriu um sorriso e eu soube que tinha ganhado a discus-

são.

 —  Tem certeza de que não está com medo?

Fiz um sinal afirmativo.

Mentiras, mentiras, mentiras .

Ele me encarou, os olhos cheios de preocupação.

 —  E você vai continuar falando comigo, mesmo que odeie o passeio?

 —  Não vou.

 —  Não vai falar comigo?

 —  Não vou odiar.

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No final das contas, eu estava errada. Não odiei. Eu amei  o passeio.

Foi a sensação mais incrível do mundo. Até melhor do que a mistu-

ra de calma total e felicidade absoluta que eu sempre sentia na primeira

fração de segundo depois de pular do trampolim. O momento em que me

dava conta de que era livre.

Na verdade, existia um mundo inteiro esperando por mim atrás da-

quelas portas conhecidas da pizzaria —  exatamente como prometera Pa-

trick — , um mundo feito de memórias antigas e de sonhos, alguns deles

pertencentes a mim, outros não. Os cheiros eram mais evidentes. As co-

res, mais vibrantes. O chocolate tinha mais chocolate. Os dias eram mais

longos e as noites, envoltas em estrelas de um jeito que eu nunca tinha

imaginado.

O lugar inteiro era um grande jogo, tipo Escolha a sua aventura .

Dormia quando estava cansada (mesas de pizzaria são bastante confor-

táveis, na verdade), comia quando tinha fome, pulava quando tinha von-tade. Tinha um cinema na rua da pizzaria que só passava meus filmes

prediletos: Harry e Sally, Sintonia de amor, Mensagem para você, Across

The Universe  e (por favor, não me julguem) A Bela e a Fera . Tinha tam-

bém um parque aquático nas proximidades, com milhares de escorregas,

uma piscina de ondas gigantesca e o mais incrível riachinho, que eu po-

dia atravessar cochilando na minha boia o dia inteiro, enquanto flutuavae era levada pela corrente debaixo do sol.

Mas a verdadeira diversão começou quando aprendi a fazer pedidos.

Estou falando de pedidos de verdade. Tipo você fecha os olhos e imagina

a praia mais incrível do mundo, a rede mais absurdamente perfeita, e

quando abre os olhos, está tudo ali, na sua frente. Pedi um porquinho-

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da-índia. Pedi uma cavalgada por campinas verdejantes e pedi para dor-

mir sob as estrelas. Até pedi que Patrick me ensinasse a surfar  –  hilário,

considerando que na verdade ele era o menino menos surfista do mundo.

Ficamos sentados nas nossas pranchas ao amanhecer, vendo o sol nas-

cer, dourado e perfeito, cheio de paz.

A melhor parte era que todo e qualquer desejo virava realidade. E

cada um era melhor do que o outro. Preocupação era uma coisa que não

existia. Nada de problemas ou pesadelos ou confusões ou medos. Não

era vida real.

Era melhor .

Então, um dia, no meio do café da manhã  —   que nesse caso foi

milk-shake de Oreo — , Patrick me fez uma pergunta que mudou tudo.

 —  E aí, você quer se vingar dele?

Parei, no meio de um gole. Olhei para cima.

 —  Como assim? Me vingar de quem?

Ele gemeu e se jogou na mesa.

 —  Falando sério, Cleópatra. Você realmente esqueceu?

Hein? De que eu deveria me lembrar? E por que ele está me chaman- 

do de Cleópatra?  

Ele bateu a cabeça na mesa quando não respondi.

 —  Minha querida, você não para de me impressionar.

 —  Por quê?

Ele esticou o braço e pegou meu milk-shake.

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 —  Você entendeu mal  a Fase Um, garota. Realmente mal. Por sorte,

você é meio fofa quando está em negação.  —  Ele tomou um gole da mi-

nha bebida. —  Nossa, isso é BOM.

 —  Ei! —  Eu bati nele. —  Bebe a sua! —  Meus olhos passearam pela

roupa dele, como acontecia de vez em quando, e me flagrei sorrindo.

Ele me pegou olhando.

 —  O que é tão engraçado?

 —  Nada. —  Balancei a cabeça. —  Deixa para lá.

 —  Não. —  De repente, ele estava interessado. —  Pode dizer.

Mordi o lábio.

 —  É essa jaqueta.

Ele olhou para baixo.

 —  Qual é o problema com ela?

 —  Ah, nada. —  Reprimi uma risada. —  Quero dizer, você é um pilo-

to de caça. De 1982.

Ele ficou de boca aberta.

 —  Fiquei magoado. De qualquer forma, estou recebendo conselhos

de moda de uma garota vestida como um saco de batatas.

Dei um sorriso sarcástico.

 —  Você só está com inveja, porque comprei esta roupa na Sacks da

Quinta Avenida.

 —  Uau. Que coisa feia, Cheetos. Feia mesmo. —  Ele balançou a ca-

beça.  —   Seja como for, eu ia dizer uma coisa antes de você bancar

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o Esquadrão da Moda  comigo. A palavra troco  significa alguma coisa para

você?

Fiz uma pausa.

 —  Tipo vingança?

 —  Afiada feito uma faca, hoje, não é, bola de queijo?

 —   Tudo bem, chega dessas piadinhas com queijo  —   respondi.  —  

Qual é o caso da vingança?

 —  Bem —  disse ele, rindo. —  Eu só pensei que talvez você quisesse

se divertir um pouco, só isso.

 —   E contra quem, se você me permite perguntar, nós vamos nos

vingar?

 —  Ah, você sabe… o Docinho de Coco —  disse Patrick. —  O gut-gut.

Qual-é-o-nome-dele? —  O tom era debochado. Provocativo. Irritante.

 —  Hein? —  respondi, fazendo careta. —  Quem?

 —  Um segundo, já sei —  disse ele. —  Jason?

O quê?  

 —  Droga, não é isso —  resmungou ele. —  Jonah?

Espera .

 —  Jeremy?

MeuDeusdoCéu.

 —  Caramba, isso vai me deixar… 

 —   Jacob  —   sussurrei. Minha garganta fechou com um nó e uma

dor antiga e familiar  —  uma dor que eu tinha esquecido quase comple-

tamente —  voltou a se instalar lentamente no meu peito.

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 —  Isso!   —  Patrick estalou os dedos e se recostou novamente na ca-

deira. —  Graças aos céus você lembrou, Brie. Isso ia me deixar acordado

a noite inteira, com certeza.

Eu estava chocada demais para perceber seu sarcasmo.

Jacob .

Não pensava nele havia séculos. Coloquei a mão no coração. Abso-

lutamente parado.

 —  Ele meio que merece um troco, você não acha? —  disse Patrick.

O rosto de Jacob apareceu na minha mente. Os olhos. Os braços.

Os lábios. Os beijos. As palavras. As últimas palavras que ouvi na vida .

EU.

NÃO.

 TE.

AMO.

Senti um calafrio na espinha.

 —  Ei. —  Patrick se aproximou e cutucou meu braço.  —  Tudo bem

com você?

 —  Há quanto tempo…? —  Tropecei nas palavras enquanto me dava

conta da realidade. —  Há quanto tempo estou aqui?

Ele levantou as mãos e contou silenciosamente nos dedos.

 —  Pelos meus cálculos extremamente científicos… dezessete dias.

Só ISSO?

Patrick leu a expressão do meu rosto.

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 —  Parece mais, não é? —  Passou as mãos pelo cabelo escuro. —  Eu

também me sentia assim. Quando cheguei aqui.

Meu estômago ficou embrulhado de repente. Dezessete dias .

 —  O que me faz lembrar, já que fiz as contas.  —  Ele pegou um ve-

lho chapéu de caubói na prateleira em cima da gente, colocando-o na

cabeça. —  Feliz Halloween! Uhu!

Halloween?  

 —  Se isso é verdade —  sussurrei —, amanhã é meu… 

 —  Aniversário? —  Patrick terminou a frase para mim. —  Eu sei. Fe-

liz Quase 16 Anos.

Inacreditável. De alguma forma, eu tinha perdido completamente a

noção do tempo. Da minha família. Dos meus amigos. Do meu mundo.

Como posso ter esquecido meu mundo inteiro?  

Comecei a sentir a ponta dos meus dedos formigando. Um zumbido

estranho na cabeça; pequenas ondas de eletricidade na nuca, debaixo do

cabelo.

Jacob .

Ele era o motivo. ELE tinha feito isso comigo. Era culpa dele. Tudo

isso. Tudo. Mais do que tudo.

Um sentimento antigo e esquecido voltou a se insinuar devagar.

Uma coisa que eu não sentia havia algum tempo.

Eu não estava triste. Não estava só. Estava louca  de raiva.

 —  E então? —  disse Patrick.

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Encarei profundamente o garoto descabelado com cara de anjo ali

na minha frente e, pela primeira vez, sorri de leve, mas com vontade.

 —  Acabou para ele.

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Capítulo 1

 yeah I’m free, free fallin’ 

 —  Ei, Quesadilla, pode abrir os olhos agora.

 —  Sabe de uma coisa? Acho que prefiro ficar de olhos fechados.

 —  Ah, para —  disse Patrick. —  A vista é inacreditável. Você tem que

olhar para baixo.

 —  Tenho certeza de que a frase certa seria você não  tem que olhar

para baixo.

 —  Não precisa se preocupar. —  Ele riu. —  Estou bem aqui. Não vou

te soltar.

Mesmo com Patrick tentando me confortar, não consegui abrir os

olhos. Na verdade, tinha acabado de aprender que a única maneira de

voltar à Terra  –  o que significa o mundo dos vivos, dos que respiram  —  

era caindo . De um lugar muito, muito alto.

 —  Valeu —  respondi. —  Isso é tão reconfortante. Ou não.

 —  Você não acha que está sendo um pouquinho dramática?

 —  Você não acha que essa jaqueta está um pouco fora de moda?

 —  Fala sério, você não é uma espécie de atleta olímpica?  —  Ele riu.

 —  Basta pensar nisso como um mergulho realmente radical.

Deixei escapar uma tremenda gargalhada.

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 —  Certo. Até parece que é a mesma coisa.  —  Mesmo assim, eu não

podia negar que estava curiosa. Respirei fundo enquanto o vento chico-

teava meu cabelo para todos os lados. Finalmente, me atrevi a abrir os

olhos. E, quando fiz isso, quase desmaiei com a vista.

Estávamos no topo do mundo.

De alguma forma, no tempo de uma simples respiração, Patrick ti-

nha me levado para o meio das nuvens, para o ponto mais alto da ponte

Golden Gate  –  a plataforma da torre norte, quase 300 metros acima do

Pacífico. O sol estava se pondo sobre a baía, as colinas onduladas e a luz

dourada se misturando a enevoadas faixas de cor lilás. Um espesso co-

bertor de neblina se estendia em todas as direções, e do outro lado da

baía eu vislumbrei São Francisco, brilhando como um parque de diver-

sões mágico. Mais distante ainda, pequenas estrelas começavam a des-

pontar no céu.

 —  Ai. Meu. Deus .

 —  É, acho que se pode dizer isso.

 —  Isso é simplesmente… incrível .

Ele sorriu.

 —  Eu te disse.  —  A luz iluminou o rosto dele e, por um segundo,

seus olhos ficaram dourados, incendiados pelo pôr do sol da Califórnia.Certo, tudo bem. Eu estava pronta para admitir. Patrick era boniti-

nho, fofo. Não tão fofo como Jacob, rebelde de cabelos ao vento. A beleza

dele era mais certinha, de cabelo curto, estilo James Dean, tipo não-

preciso-me-esforçar-para-ser-gato.

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Ele deu um passo, se aproximando da beira do abismo, e dobrou os

 joelhos como se estivesse prestes a mergulhar para nadar.

 —  Você me desafia?

 —  Deus! —  Estendi a mão e agarrei a jaqueta, puxando-o para trás.

 —  Nem  brinca com isso!

 —  Por favor. —  Ele sorriu. —  Me chama de Patrick.

Balancei a cabeça e gemi.

 —   Jesus, estou começando a achar que meu irmão mais novo é

mais maduro que você. E ele tem 8 anos.

 —  Oito anos é mais do que o que normalmente acham que tenho. E

aí, pronta?

Ignorei-o. Dane-se que ele era bonitinho, ou que tivesse olhos que

brilhavam ao sol. Não tinha como, nem no céu nem no inferno, nem na-

quele lugar, fosse o que fosse, eu pular daquela ponte.

SEM chance .

 —  Como é que a gente veio parar aqui?  —   perguntei, procurando

outra maneira de descer.

 —  A gente voou.

 —  Voou?   —  Olhei para ele. —  Isso aqui é o quê? Um filme da Pixar? —  Bem, acho que alguém assistiu muito desenho da Disney quando

era pequena.

 —  Não existe isso —  murmurei, tentando não desmaiar ou vomitar

ou as duas coisas ao mesmo tempo. Nossa, isso era terrível. Meus dentes

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começaram a bater. Eu conseguia ouvir e sentir a vibração da ponte sob

meus pés.

Ouvi os ruídos do metal e dos cabos de suspensão, os ecos daquele

oceano profundo e assustador, em algum ponto muito, muito lá embaixo.

Não dava nem para saber a altura em que estávamos. Mergulhar de um

trampolim de 10 metros no treino depois da aula era uma coisa, mas es-

se mergulho não estava nem no mesmo CEP que eu.

Ou no mesmo sistema solar .

Ajoelhei e disse para mim mesma que deveria ficar calma. Campeãde mergulho ou não, minha cabeça rodava só de pensar em escorregar,

cair e me espatifar na baía de São Francisco numa velocidade estontean-

te, depois ir parar direto na boca de um tubarão cheio de dentes brancos

e enormes.

 —  Sabe  —   resmunguei  — , eu realmente gostaria que você tivesse

me explicado melhor essa coisa de pular da ponte antes de me trazer pa-

ra cá. Porque com certeza eu não teria vindo.

 —  Bem —  disse Patrick — , e eu gostaria que você tivesse dado uma

olhada no capítulo seis do M&E. E no capítulo doze, “Voe como se real-

mente quisesse”. Está tudo lá, Cheetos, preto no branco. Talvez alguém

devesse ter feito o dever de casa.

 —   Valeu, pai.  —   Não gostei do sermão. Mesmo sabendo que, no

fundo, ele estava certo. Talvez, se eu não tivesse ignorado aquele livro

idiota lá na pizzaria, tivesse sido capaz de encontrar alguém com poder

de verdade. Uma pessoa que me escutasse e me deixasse explicar que

tinha acontecido um erro terrível.

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Eu não devia estar aqui. Eu não devia ter morrido. Ainda não. Não

dessa maneira .

Patrick riu alto.

 —  Lembra quando eu disse que você ia ser testada? —  Ele se levan-

tou e estendeu os braços.  —   Surpresa! Chegou a hora!  —   Então viu o

pânico no meu rosto. —  Não precisa se preocupar. Dá medo na primeira

vez, mas depois fica mais fácil. E depois… —  Os olhos dele brilharam. —  

Depois começa a ficar divertido .

 —  Eu não posso fazer isso. Não posso, não posso e não posso.

 —  Crede quod habes, et habes .

 —  Em que língua você está falando, seu nerd?

Ele sorriu.

 —  Latim. “Acredite que pode, e você pode!” 

O tom dele era leve. Brincalhão. Como sempre, não ajudava.

 —  No dez.

 —  Tá, no dez. Você é uma garota engraçada, Aubrie Eagan.

 —  É Brie .

 —  Um… dois… três… 

 —  Espera, espera, espera, não precisa contar tão rápido!

 —  Quatro.

 —  Sério, para!

 —  Cinco… 

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 —  Já disse que não vou!  —  Meus joelhos começaram a amolecer e

minha visão foi tomada por aquele tom horrível de verde, o verde que

significa que você vai desmaiar em dois segundos. O barulho das ondas

quebrando lá embaixo misturado ao som dos carros me deixou de estô-

mago embrulhado.

 —  Ei, tudo bem?  —  Patrick se aproximou de mim.  —  Você parece

um pouco pálida.

 —  Tudo bem —  menti, segurando no aço com todas as minhas for-

ças, desesperada para me apegar a alguma coisa. —  Nunca me senti me-

lhor.  —  Tentei afastar o cabelo do rosto. Não que isso ajudasse grande

coisa, do jeito que ventava ali em cima. Podíamos muito bem estar no to-

po do Everest. —  Então, isso é a sua imagem perfeita do céu ou coisa do

gênero?

Ele me encarou.

 —  Agora é.

Senti meu rosto corar, apesar de estar enjoada de medo. Não fazia

ideia do que responder e resolvi dizer a coisa mais imbecil do mundo.

 —  E você, é… você vem sempre aqui? 

Meu DEUS, eu não disse isso. Quem DIZ isso?  

 —  Venho aqui sempre que preciso pensar, ou esvaziar a cabeça. —  Ele fez uma pausa. —  Ou quando a espera começa a me enlouquecer.

 —  Espera? O que você está esperando?

Ele hesitou um instante e olhou para as montanhas.

 —  Um amigo. Acho que estou esperando por um velho amigo.

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A luz do sol mudou novamente de posição, lançando um raio em

cima do punho esquerdo dele. Por um segundo não consegui não olhar

para a cicatriz. Nunca tinha realmente reparado a intensidade dela, já

que a jaqueta estava sempre cobrindo o braço todo. Mas com aquele raio

de sol  —  e como as mangas estavam um pouco puxadas  — , finalmente

pude ver melhor. Pela primeira vez vi como ela era profunda. Quase co-

mo se ele tivesse sido rasgado com um pedaço de vidro quebrado.

Não sei o que aconteceu com ele, mas não deve ter sido nada bom.

Então me dei conta de que ele sabia muitas coisas a meu respeito,

mas eu não sabia nada sobre ele. De onde vinha. Quem era. Até mesmo

como, apesar disso me deixar um pouco enjoada, ele morrera.

Patrick me flagrou olhando. Puxou as mangas o máximo que pôde

para baixo.

 —  O que aconteceu com você? —  Assim que as palavras deixaram a

minha boca, percebi que deveria tê-las guardado comigo.

 —  Acidente de moto —  disse ele. —  Eu estava dirigindo muito rápi-

do. Nada demais.

Exatamente como meu pai sempre dizia. Motocicletas são MUITO PE- 

RIGOSAS .

Baixei o rosto. —  Eu sinto muito.

 —  Não precisa. Já superei. Foi há muito tempo.

Uma rajada de vento repentina me pegou de surpresa. Perdi o fôlego

quando ela me desequilibrou e tentei me segurar.

Mas não tinha em que me segurar.

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 —  Tudo bem, acabei de mudar oficialmente de ideia  —  anunciei. —  

Acho que vou deixar pra lá essa história de vingança. A gente tem muito

tempo para dar o troco em quem quer que seja. Para que apressar uma

coisa tão boa? —  Lentamente, com muito cuidado, me apoiei na grade de

metal, tentando relaxar e pensar em coisas boas, como sorvete de coco.

Manhãs de sábado. Estar viva.  —  Então é isso, retiro o que disse. Não

quero fazer isso. Hoje não. Gostaria de voltar para a pizzaria, por favor.

 —  Detesto ter que dizer isso —  gritou Patrick, mais alto que o vento

 — , mas tem um probleminha. —  Ele se sentou do meu lado.

 —  Como assim, um probleminha? —  Senti a ponte envergar sob os

meus pés.

Respire, Brie. Basta respirar .

 —  A questão é que você não vai gostar muito disso.

 —  Fala.

 —  Bem… 

 —  Fala .

 —  Só existe um caminho de volta.

Olhei para ele por alguns segundos, depois caí na gargalhada.

 —  Ah, certo! Alguém já te disse que você é hilário?

Ele não estava sorrindo.

 —  Infelizmente —  disse, com voz culpada — , eu não estou brincan-

do.

Parei de rir.

 —  Espera. Como assim? —  É isso.

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 —  Não.

 —  Não adianta lutar contra.

 —  Vou lutar contravocê 

. —   Pode segurar a minha mão.  —  Ele estendeu o braço e pegou a

minha.

 —  Não!

 —  Brie, você tem que fazer isso.

 —  Ou o quê?

 —  Ou vai ficar morrendo de frio aqui em cima por um bom tempo.

De qualquer forma, você sabe que quer mostrar uma coisinha ou outra

para aquele seu namoradinho. E, francamente… —  Ele riu.  —  Eu tam-

bém quero.

 —  Não, não, não, eu realmente  quero. Só que, por enquanto, não —  

implorei. Se tivesse um coração, ele estaria batendo fora de controle no

meu peito. —  Não posso —  falei. —  Não estou dizendo nunca. Só hoje. —  

Esperei que ele pudesse ouvir o pânico na minha voz.  —  Por favor, Pa-

trick. Tire a gente daqui voando, ou sei lá como. Eu quero voltar para a

pizzaria.

Bum-crass-xiiii, fazia o oceano lá em baixo.

 —  Lamento, Cheesecake. —  Ele balançou a cabeça. —  Mas não fun-

ciona assim. Você já saberia disso se tivesse lido o manual. E, de qual-

quer maneira, não acredito nas suas desculpas.

 —  Ah, não? E por quê? —  perguntei.

Não brinque comigo, Anjinho, eu acabo com você .

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 —  Você está com medo.  —  Ele fez um sinal em direção à beira do

abismo.  —   Mas é hora de abandonar o ninho, passarinho. É hora de

mergulhar.

Meu Deus, ele está falando sério .

 —  Não precisa se preocupar, vou ficar com você o tempo todo.  —  

Ele riu. —  Você cai, eu caio.

Dei um passo para me afastar dele.

 —  Não se aproxime de mim.

 —  Segura minha mão.

 —  Patrick, estou falando sério.

Os olhos dele se fixaram nos meus.

 —  Segura a minha mão.

Antes que eu pudesse discutir, ele me pegou nos braços e me pren-

deu.

 —  Não! Para!

 —  Hora de abrir os olhos —  sussurrou ele, atrás de mim.

Balancei negativamente a cabeça e tentei me livrar dele.

 —  Anda, vai. Você realmente não deveria perder isso.

 —  Sua mãe  não deveria perder isso.  —  Eu estava ficando sem fra-

ses de efeito. Não que alguma vez tivesse tido alguma, para começo de

conversa.

 —  Pontas dos pés na beirinha.

 —  Vou te matar.

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 —  Um pouco tarde para isso, meu Anjo.  —  Os lábios dele se encos-

taram à minha orelha. —  Olha para baixo.

 Tentei lutar, mas era em vão. Ele era muito forte. Gritei, chorei e me

forcei a olhar.

Ah, o maior equívoco do mundo .

Não existia nada, a não ser ar. Nada além da baía sem fundo de São

Francisco, gigantesca, mortal, pronta para me engolir e despedaçar mil

vezes. Meu Deus, lá estávamos nós, tão mais alto do que eu imaginara.

Cinco centímetros .

Pressionei minhas costas contra ele.

 —  Não, não, não, não, NÃO.

Três centímetros .

Eu me debati.

Um centímetro .

Eu queria acordar. Queria acordar imediatamente. O único proble-

ma daquele cenário? Não era um pesadelo. Acordar não era uma alterna-

tiva.

Senti minhas sapatilhas escorregarem um pouco na grade de metal.

Senti o vento beijar meu rosto. —  Por favor —  gemi, agarrada à camiseta de Patrick.  —  Não faz is-

so.

 —  Não precisa ter medo —  sussurrou ele.

E então me empurrou.

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Capítulo 11

 send me an angel

 —  Cheesecake?

 —  Mais cinco minutos. Não quero acordar.

 —  Engraçado, você disse isso cinco minutos atrás.

 —  Não, mas agora é sério.

 —  Boa tentativa, Anjo, mas não vai funcionar.

 —  Você não manda em mim.

 —  Como você quiser, mocinha.

Então, um balde de água gelada foi despejado no meu rosto. Meus

olhos se abriram imediatamente.

 —  Que… 

 —  Acordando, acordando, tá na hora de levantar —  cantarolou Pa-

trick.

 —  Ai meu Deus, vou matar você! —  Dei um pulo e tentei agarrá-lo,

mas ele era muito rápido.

 —  Lá vem você de novo com esse papo de assassinato. Muita agres-

sividade reprimida. Acho que talvez fosse melhor encontrar um bom psi-

cólogo para você.

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Eu estava encharcada, com a respiração acelerada. Virei o corpo no

chão e esfreguei os olhos. Cada centímetro do meu corpo estava sendo

percorrido por arrepios.

 —  Toma, quer minha jaqueta? —  perguntou Patrick.

 —  Não quero nem que você fale comigo —  respondi. —  Você é horrí-

vel e deve ser destruído.  —  Meus olhos finalmente recuperaram o foco e

vi que estava anoitecendo. O céu estava lilás, tingido de azul, preto e

amarelo em alguns pontos, como um hematoma desbotado. Em toda

parte, lanternas de abóbora de Halloween nos encaravam, e postes de

rua emanavam uma luz fantasmagórica, iluminando casa por casa.

 —  Doce ou travessura? —  perguntou Patrick. Deu um pulo e agar-

rou um galho de árvore acima da cabeça. E começou a fazer barra.

 —  Travessura —  respondi, percebendo um portão familiar do outro

lado da rua. A porta vermelha. Paredes brancas. A entrada arborizada

onde eu costumava parar a bicicleta quase todos os dias depois do colé-

gio. —  Isso é definitivamente uma travessura.

 —  Resposta errada —  resmungou ele. —  A penalidade para isso são

várias barras de chocolate e três pacotes de M&M’S de amendoim. —  Ele

soltou o galho e caiu no chão. —  Nossa. Realmente estou fora de forma.

Mas eu não escutei o que ele disse. Estava ocupada demais tentan-

do não vomitar.

A casa de Jacob. Estávamos sentados no chão, do outro lado da

rua, em frente à casa de JACOB.

Como? Como isso era possível?  

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Em todas as explorações que fizera com Patrick, nunca tinha sido

capaz de voltar àquele lugar. No meu pedaço de céu, algumas coisas

eram diferentes do meu mundo antigo. As ruas não se conectavam exa-

tamente da maneira como me lembrava. Os nomes não batiam. Existiam

buracos, falhas. Faltavam pedaços.

Pedaços importantes .

Minha casa não estava onde deveria estar. O colégio estava mais ve-

lho, mais decadente. Até a casa de Jacob estava diferente —  como se al-

guém tivesse entrado nas minhas lembranças e bagunçado tudo que fa-

zia sentido para mim quando eu era viva.

Depois de um tempo, eu simplesmente parei de tentar encontrar as

coisas. Como se tivesse esquecido o que procurava.

Mas, agora, lá estávamos nós, de volta ao Mundo Real de Verdade

Verdadeira. Minha cabeça doía como se eu tivesse acabado de acordar de

uma concussão mortal.

Virei para Patrick.

 —  Onde a gente está? O que aconteceu?

 —  Ah, você está falando dessa porcaria de dor de cabeça? Vai pas-

sar, não precisa ficar preocupada.

 —  Não é isso. Eu quero dizer, eu e você. Aqui. Agora . Pode explicar.

 —  Com prazer. —  Ele fez uma pequena reverência. —  Essa foi a sua

primeira Queda da Graça. Espero que tenha tido um voo agradável e se

lembre de nós para todas as suas futuras viagens. Divirta-se na sua es-

tada na Terra ou em qualquer que seja seu destino final.

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 —   Queda da Graça?  —   perguntei.  —   Não tem nada

de gracioso  nisso.

Patrick sorriu.

 —  Nem todo mundo  alcança a perfeição.

Cruzei os braços. Ele não se livraria de mim facilmente.

 —   Tudo bem, tudo bem, eu peço desculpas  —  disse Patrick.  —  É

verdade que a primeira queda é meio intensa. Mas depois fica mais fácil,

e pelo menos agora a gente vai poder se divertir um pouco. Além do

mais, existem poucas coisas de que eu gosto mais do que de mexer com

quem merece.

Mas ele não estava falando sério , não consegui deixar de pen-

sar. Talvez ele tenha me ferido por medo de que eu o ferisse primeiro .

Então, em tom baixo e profundo, misturados a gargalhadas e gritos,

ruídos de quem estava se divertindo ecoaram do outro lado da rua. Vi

corpos se movendo para frente e para trás através das janelas mal ilumi-

nadas. Dançavam.

Patrick fez menção à música.

 —  Quer ir a uma festa?

De repente, fiquei angustiada.

 —  Mas eu… eu não fui convidada. 

 — Cara. —  Ele me olhou seriamente. —  A gente vai nessa festa. Eu

me vesti e tudo.

 —  Não se vestiu nada.

Ele me olhou como se eu o tivesse magoado profundamente.

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 —  Passei semanas preparando esse figurino.

 —  Ah, é? E a sua fantasia era para ser o quê? Um corte de cabelo

ruim dos anos 1980?

 —  Fiquei magoado.

Então, alguns meninos  —  meninos de verdade   —   apareceram na

entrada da casa, completamente fantasiados. Patrick riu de um garoto

da idade do Jack, vestido de lagarto.

 —  Ei, bafo de dragão —  brincou Patrick. —  Como anda o seu reflu-

xo gástrico?

Não consegui segurar a risada. A situação era inacreditavelmente

absurda. Ali estávamos nós, dois adolescentes mortos, prestes a entrar

de penetra na festa de Halloween do meu ex-namorado. Era quase de-

mais para entender. Mantive os olhos grudados na casa do outro lado da

rua.

Vou ver Jacob. Finalmente vou ver Jacob de novo .

 —  Opa —  disse Patrick, olhando preocupado para mim.  —  Pensan-

do melhor, talvez você já tenha se divertido o suficiente por hoje. —  Ficou

de pé e mudou o tom da conversa.  —  Por favor, diz para mim que você

não esqueceu o motivo da nossa visita. Isso é uma vingança. Não uma

segunda chance. Certo?Olhei para ele, mas não respondi.

 —  Estou falando sério.

 —  Tudo bem, tudo bem, entendi.

 —  Não.  —  Ele balançou a cabeça.  —   Preciso ouvir você dizer. Por

que nós estamos aqui?

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 —  Para nos vingarmos dele —  resmunguei.

 —  Não ouvi.

 —  Para dar otroco 

 nele —  respondi, um pouco mais alto. —  Eu te levo de volta para a pizzaria… 

 —  PARA DAR O TROCO NELE!

 —  Certo. —  Ele pareceu satisfeito. —  Aceito. Vou ser seu par na fes-

ta. Mesmo que a fantasia não seja muito original.

Revirei os olhos.

 —  Você tem sorte de eu ainda deixar que me vejam com você, de-

pois de me empurrar da porcaria da ponte Golden Gate.

Eu me aproximei para bater nele, mas Patrick escapou do golpe.

Nossa, como ele era rápido.

 —   Retiro o que disse  —   respondeu ele.  —   Vou ser seu antipar  na

festa. Mas é só. Não adianta inventar coisas malucas.

 —  Coisas malucas como o quê?

 —  Como ficar com ciúme quando todas as meninas da festa tenta-

rem ficar comigo.

Sorri com sarcasmo.

 —  Não se segure por minha causa, querido.

Ele fez uma pausa.

 —  Uau. Você me chamou de querido?

 —  Hum, ficou lisonjeado?

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 —   Meu Deus.  —   Os olhos dele brilharam.  —   Você realmen-

te quer  ficar comigo, não quer?

 —  O quê?  —   Soquei o braço dele com todas as minhas forças.  —  

Pode continuar sonhando, Sr. Lisonjeado.

Rá. Segura essa .

Patrick ignorou minha piada incrível e me lançou seu sorriso marca

registrada. Então, senti o chão tremer debaixo dos meus pés quando a

voz dele ecoou na minha mente, falando comigo sem dizer uma palavra.

 —  Nunca diga nunca, Anjo. Existe uma primeira vez para tudo.

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Capítulo 12

 it’s in his kiss 

Quando você gosta de alguém  —   tipo gosta  de verdade  — , o se-

gredo está na primeira vez de tudo. No primeiro olhar.

No primeiro sorriso. Na primeira dança.

No primeiro beijo .

Meu primeiro beijo não foi com Jacob Fischer.

 Tecnicamente, foi com Matt Thompson —  um garoto completamente

imbecil que conheci numa colônia de férias quando tinha 12 anos. Matt e

eu namoramos por aproximadamente 37 minutos, durante o almoço. Ele

me convidou para sair num telefone sem fio que percorreu dez mesas.Alex Grand, amigo dele, perguntou a Charlie Frazier, que perguntou a

Angela Bell, que perguntou a Rachel Goldman, que finalmente perguntou

à minha   amiga Zoe Michaelson se eu gostava dele. Eu nunca tinha se-

quer falado com o garoto, mas fiquei completamente encantada, porque

era a coisa mais romântica que já acontecera com qualquer uma das

meninas do meu grupo, então, obviamente, eu disse que sim.

Mas, quando chegou a hora da sobremesa, me dei conta de que era

muito nova para me prender a qualquer menino. Deixei Matt me beijar

uma vez, um beijo de mais ou menos dois segundos, atrás da máquina

de sorvete  —  ele estava com um pedaço enorme de cheeseburguer gru-

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dado no aparelho fixo  —   e, em seguida, terminei com ele. Não foi meu

melhor momento.

Mas não se preocupem. Meu segundo beijo compensou a experiên-

cia desastrosa.

 Totalmente.

Esse  beijo foi com o Jacob. Um beijo que eu podia reviver mil vezes

sem enjoar. Na verdade, foi assim que sobrevivi três dias no pedacinho

do céu logo que cheguei. Revivendo aquele beijo. Uma das coisas legais

do céu é que você pode reviver todos os seus momentos preferidos quan-tas vezes quiser  –   uma espécie de DVD da sua vida inteira. Pause, re- 

wind, fast-foward, slow motion , todo dia, o dia inteiro.

Àquela altura, eu já tinha revivido meu primeiro beijo com Jacob

um milhão de vezes. Era uma coisa fácil de lembrar, porque aconteceu

na noite do meu aniversário de 15 anos. Na noite da Festa de Outono do

PCH.

Emma, Sadie, Tess e eu estávamos muito animadas, porque era o

primeiro baile formal das nossas vidas. Além disso, os anos 1980 eram o

tema da festa, o que era melhor ainda. Fomos fazer compras depois da

aula na Luna (minha loja preferida) e compramos os vestidos mais lin- 

dos  do mundo. O meu era um tubinho preto, meio brilhante, com deta-

lhes dourados na bainha. Depois, nós três fomos à manicure e voltamos

para casa para meu jantar de aniversário. Papai fez meu prato favorito,

seu mundialmente famoso “espaguete especial”, e depois subimos cor-

rendo a escada até meu quarto para nos aprontarmos para a festa. Ia ser

a Melhor Noite do Mundo.

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Mamãe nos levou até o colégio às 20h30 e cruzamos o gramado em

direção ao auditório a mil por hora, descalças, rindo sem parar. (O mes-

mo auditório onde fizeram o velório para mim, diga-se de passagem. Não

que uma coisa anule a outra.) Não tínhamos acompanhantes, mas Tess

estava convencida de que o “príncipe” Eric ia finalmente convidá-la para

sair, depois de anos de paixonite, e Emma tinha detalhado seu plano na

minha casa para fazer o Aluno Novo/Estrela do Futebol, Nate Lee, dan-

çar com ela. O plano era assim:

1) Esbarrar nele. (Literalmente.)

2) Derramar ponche ou a calda do bolinho de chocolate (tinha que

ser de chocolate) na camisa dele.

3) Se candidatar para ajudá-lo a se “limpar”. 

4) Durante a caminhada até o bebedor, falar sem parar sobre a

Idiotice, com I maiúsculo, das festas de colégio. (E da Chatice, com C

maiúsculo, de perder o jogo de futebol entre Brasil e Espanha na ESPN!)

5) Voltar para o salão na hora exata em que começasse a tocar a

música romântica perfeita. (Muito obrigada, Sr. DJ.)

6) Reclamar claramente por ter sido abandonada pelas amigas. “E

bem na hora da minha música favorita!” (A fala seria acompanhada por

um ligeiro gesto de apertar o peito, fazendo com que o decote se pronun-

ciasse um pouco mais, seguido de piscada fatal de olhos.)

7) Ele pergunta: Quer dançar? Hum, não sei, quer dizer, acho que

sim .

8) Pronto. O garoto está no papo!

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No meu caso, eu estava meio que esperando que Ben Handleman

fosse finalmente me convidar para dançar. Ele tinha um cabelo encara-

colado lindo de morrer e, desde que pedira minhas anotações de Álgebra

II, eu tinha quase certeza de que gostava de mim. Ah, meninos se acham

tão enigmáticos.

 —  Com certeza o Ben é a fim de você  —  provocou Sadie enquanto

corríamos para o auditório. —  Vocês dois fazem o casal mais fofo do pla-

neta.

 —  Os óculos dele são lindos demais —  concordou Tess. —  Acho que

 já está mais do que na hora de você botar a mão no Handleman.  —  To-

das nós caímos na gargalhada, absolutamente animadas com os momen-

tos românticos e mágicos que certamente a noite nos renderia.

Então, quando vi Ben beijando Anna Clayton no meio de todo mun-

do, digamos que não tenha ficado exatamente feliz. A música estava al-

tíssima. Milhares de adolescentes conversavam em rodinhas. Milhões deluzes amarelas piscavam e brilhavam nas paredes e no teto. Acima das

nossas cabeças um globo espelhado girava  –   lançando pontinhos bri-

lhantes em forma de diamante nos nossos rostos.

E ali, bem no meio da pista de dança, Ben e Anna eram os astros

do reality Projeto Línguaway .

Fiquei arrasada.

 —  Ai, ele não te merece  —  disse Sadie, ajeitando o salto do sapato

preto com uma das mãos e se apoiando em Emma com a outra.

 —  Meninos não valem nada —  disse Emma.

 —  E você é mil vezes mais bonita que ela, é claro  —  disse Tess, me

puxando para a pista. —  Vamos!

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Dançamos durante a hora seguinte, cantando e rindo em todas as

músicas, até ouvirmos uma voz masculina no meio de “Girls Just Wanna

Have Fun”. 

 —  Oi, Brie.

Girei o corpo e dei de cara com Jacob Fischer  —  um garoto que eu

conhecia praticamente desde que nasci e que era amigo da Sadie havia

anos. Mas até ali tínhamos trocado basicamente umas três palavras a

vida inteira, então, o fato de ele estar de repente falando comigo era,

bem, estranho .

 —  Ah, oi, Jacob —  respondi, jogando o cabelo.

 —  Ui! —  gritou Tess. —  Valeu, Brie, você quase me cegou com essa

 juba.

Eu estava nervosa, era isso? Hum, Brie, controle-se. É só Jacob Fis- 

cher .

 —  Desculpa —  resmunguei. —  É esse corte novo. Acho que meu ca-

belo tem vida própria.

 —  Você está muito bonita —  gritou Jacob, mais alto que a música.

 —  O quê? —  perguntei. —  Quer dizer, valeu! Você também.

Meu Deus. Acabei de dizer que ele era bonito?!  

Ele me olhou de uma maneira estranha. Mas, antes que tivesse

chance de dizer alguma coisa, Sadie interrompeu.

 —  Jacob, você sabia que hoje é aniversário da Brie? 15 anos, baby!

Ela pegou minha mão e girou comigo.

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 —  Dia de todos os santos  —  acrescentou Emma.  —  Porque a Brie

é tão  santinha. –  As três caíram na gargalhada.

 —  Ah, é? —  perguntou Jacob. —  Legal. Parabéns, Brie.

Graças a Deus estava escuro no salão, porque juro que naquele

momento fiquei da cor de um tomate.

 —  Valeu.

E então, porque de vez em quando a vida é realmente perfeita, co-

meçou a tocar uma música lenta.

 —  Meu Deus, “It Must Have Been Love”! —  gritou Emma, aos pulos.

Assisti, apavorada, aos pares se formando em toda parte e olhei em

volta procurando alguém, qualquer um , para dançar comigo, apesar de

ter um menino plantado na minha frente. Levei uns 36 segundos para

me dar conta de que não tinha nenhum pretendente, e resolvi sumir dali

o mais rápido possível.

 —  Acho que vou comer alguma coisa… 

 —  Quer dançar? —  disse Jacob de repente.

Nós quatro o encaramos, de olhos esbugalhados, queixo caído, pa-

ralisadas. Acho que até babei um pouquinho.

 —  Claro!  —  Sadie finalmente deixou escapar com um gritinho, me

empurrando para os braços dele. —  Ela quer! Ela quer!

 —  Uau! —  gritei, me apoiando nos ombros dele em busca de apoio.

Em segundos, minhas amigas tinham desaparecido milagrosamente na

pista de dança. Emma abandonou o plano de ataque e agarrou a mão de

Nate, levando-o para longe dos amigos do futebol. Tess se esgueirou por

trás de Eric e deu um beijo no rosto dele. Sadie foi até a mesa do ponche

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para conversar com Dr. O’Neil, por quem era loucamente apaixonada

apesar de ele ter 30 anos e dois filhos.

 —  AimeuDeus, isso é tão constrangedor… —  resmunguei, confusa e

desequilibrada nos braços do Jacob.

Ele riu e me ajudou a recuperar o equilíbrio.

 —  Legais, essas suas amigas.

 —  Nem me fale… —   Balancei a cabeça e olhei Jacob diretamente

nos olhos.

E de repente, BAM. Antes mesmo de me dar conta do que tinha

acontecido, A Pegada Ameaçadora tinha me fisgado completamente. De

repente, eu não conseguia mais desviar os olhos.

E ele também não.

Hum, um segundo .

O que é que estava acontecendo ali? Jacob Fischer não era meu ti-

po. (Quero dizer, não que eu realmente soubesse qual era meu tipo,

mas…) Primeiro, ele fazia o gênero skatista. Segundo, quando foi que

aprendeu a falar? Terceiro, ele nem era tão gato assim.

 —  Brie? —  disse ele, os olhos ainda grudados em mim.

Engoli em seco .

 —  Oi?

Bem, ele tinha um cabelo fofo. E um sorriso talvez, digamos assim,

meio lindo. E tinha ficado tão, bem, alto .

 —  Vamos dançar? —  disse ele.

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 —  Dançar? —  sussurrei, meus olhos brilhando mais a cada segun-

do.

 Tudo bem, tudo bem. Admito. Eu tinha ficado completamente apai-

xonada por ele no primário. Absolutamente apaixonada.

Mas ele tinha perdido a chance! O quê? Ele achava que eu ia ficar

esperando para sempre, como se fosse um bichinho de estimação? Nunca!  

 —  Hum, isso foi um sim? —  perguntou ele, se mexendo de maneira

estranha.

Jacob Fischer acabara de me tirar para dançar! Duas vezes !

 Tentei me lembrar da estratégia da Emma. Primeiro passo, esbarrar

nele? Bom, missão cumprida. Já consegui isso, graças às minhas amigas

incríveis. Qual era o próximo passo? Piscada fatal? Chamar atenção para

o decote? Olhei para baixo.

Hum. Eu não tinha muito decote para mostrar… 

De repente, percebi que minha única opção seria usar o que tinha.

No caso, um monte de cabelo. Então, dei uma ligeira olhada em volta pa-

ra ter certeza de que não tinha ninguém na linha de tiro e balancei a ca-

beça da maneira mais charmosa que consegui. Dessa vez deu certo.

Porque Jacob sorriu .

 —  Claro —  respondi, dando de ombros. —  Acho que uma dancinha

não vai me matar.

(Mal sabia eu.)

A música lenta mais perfeita na história do universo continuava

ecoando suavemente pelas caixas de som.

It must have been love, but it's over now … 

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Ele pegou a minha mão.

It must have been love, but I lost it somehow … 

De repente, o auditório inteiro desapareceu. Tess, Sadie e Emma.

Sumiram .

Professores e acompanhantes.

Sumiram .

E todos os outros adolescentes dentro daquele auditório.

Sumiram .

Naquele momento, só existia ele. E eu. E um milhão de luzinhas

piscando e brilhando enquanto a gente dançava, as mãos dele na minha

cintura, as minhas nos ombros dele.

E quando a música terminou, a gente continuou dançando.

Amo Jacob. Estou apaixonada por ele. Meu Deus, eu o amo .

Ele desviou o olhar, encarou o chão.

 —  Brie? Eu estava me perguntando uma coisa.

Se você pode pegar minhas anotações de História para segunda- 

 feira? Se pode pegar carona para casa depois da festa? Se eu poderia pa- 

rar de pisar no seu pé? Meu Deus, será que estou pisando no pé dele?!  

Baixei o rosto no momento em que ele se inclinou para a frente e

nossas cabeças se chocaram.

 —  Ai! —  gritamos. As mãos dele abandonaram minha cintura e as

minhas os ombros dele.

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Parabéns, Brie. Ótima maneira de estragar um momento perfeito .

 —  Cara —  disse Jacob, passando a mão na testa. —  Não sabia que

você era boa de cabeçada.

AiMeuDeus. Morri de vergonha .

Ele sorriu.

 —  Talvez você devesse pensar na possibilidade de se candidatar pa-

ra as Olimpíadas.

A piada me pegou de surpresa. Ri e relaxei um pouco.

 —  É, eu devia fazer isso.

Ele colocou as mãos em volta da minha cintura novamente. Olhou

para mim com aqueles olhos profundos, lindos, azuis até não poder

mais. Começou a tocar outra música.

Sometimes you picture me, I’m walking too far ahead … 

 —  Então… —  falei, tomando coragem. —  O que você queria pergun-

tar?

If yo u fall I will catch you, I’ll be waiting, time after time … 

 Jacob sorriu. Estendeu o braço, tocou no meu rosto e disse cinco

palavras perfeitas.

 —  Se eu posso te beijar.

E aí ele me beijou.

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Capítulo 13

 r-e-s-p-e-c-t, find out what it means to me

 —  Oque é aquilo? Ponche?  —   Patrick apontou para um copo

cheio de um líquido que parecia Sprite tingido com corante vermelho-

sangue.  —  Olhou a sala lotada dos Fischer.  —  Seu amigos realmente…

se superaram .

 —  Você é tão esnobe… —  respondi. —  Desculpa se isso não corres-

ponde aos padrões da sua amada pizzaria.  —  Circulei pela sala, feliz e

zonza. Não porque estivesse bêbada. Mas porque pela primeira vez não

precisava me preocupar em conversar com gente que não conhecia. Não

tinha que me estressar por não ser a garota mais popular do ambiente,

nem pensar se era legal o bastante para ter sido convidada, para começo

de conversa. Isso era lindo. Ninguém podia me ver. Ninguém podia me

escutar. Para eles, eu já tinha ido embora havia muito tempo.

O engraçado das festas de colégio é que, normalmente, ninguém se

diverte de verdade. Menos naquela. Naquela festa eu estava me divertin-

do mais que todo mundo.

Procurei para ver se Emma, Tess e Sadie estavam ali, mas não vi

nenhuma delas.

Provavelmente ainda estão sofrendo, de luto. Diferente de ALGUMAS

 pessoas .

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Vários amigos do Jacob estavam ali, além de um monte de gente

que eu não conhecia e que deviam ser convidados da Maya. Vi os dois

melhores amigos dele, Will e Milo, dupla que Sadie sempre chamava de

clave de sol e clave de fá. Estavam vestidos de zumbis  –   o que parecia

perfeito, dadas as personalidades dos dois. A casa inteira estava coberta

de enfeites de Halloween. O corredor da frente, coberto de teias de ara-

nha, e a sala tinham se transformado numa versão realmente engraçada

do Massacre da serra elétrica , com carne de hambúrguer e ketchup em

toda parte. O jardim estava totalmente às escuras, fora a luz fraca da

piscina, decorada com globos oculares brilhantes flutuando.

Não posso mentir, em alguns momentos a emoção daquilo tudo to-

mava conta de mim; e eu ficava triste de repente, pensando nos tempos

em que a gente se beijava no sofá, ou ia nadar com a família na piscina,

ou se agarrava no quarto dele enquanto os pais achavam que a gente es-

tava fazendo dever de casa. Mas fiz de tudo para não me prender à parte

triste. Não fazia sentido. A proposta da noite era diversão. Era ver Jacob

e fazê-lo provar do próprio remédio.

Apontei para uma pilha de dentes de vampiro de plástico, dispostos

como brindes da festa.

 —  Legal! —  Tentei pegar, mas minha mão atravessou a mesa. Olhei

desafiadoramente para Patrick. —  Seria melhor para você se eu pudessecolocar um desses.

 —  Por quê?

 —  Porque eu poderia morder você .

 —  Anjo, por favor.  —   Ele inclinou a cabeça para trás, expondo o

pescoço. —  Não se sinta acanhada.

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Eu me aproximei.

 —  Vou morder.

 —  Morde.Nossos olhos se encontraram e, por uma fração de segundo, ne-

nhum dos dois desviou o olhar. Eu me aproximei do pescoço dele, mas

parei.

O que estou fazendo?  

Ele percebeu minha hesitação.

 —  Não está com sede, no final das contas? Acho que vou ter que

procurar outras vampiras para oferecer meu pescoço.  —  Ele vasculhou

rapidamente a sala. —  Ela, por exemplo.

Virei o rosto e não acreditei na garota para quem ele apontava.

 —   Anna Clayton? Por que todos os meninos do planeta são a fim

dela? Ela nem é tão bonita!

 —   Pode parar  —   Patrick levantou as mãos.  —   Pode se acalmar,

Bruxa do Queijo. Foi só uma observação. Não precisa ficar toda maluca

por causa disso.

 —  Sua mãe é que não precisa ficar maluca… 

Então, ouvi um barulho em outro cômodo. —  Caramba. Isso não pode ser coisa boa.

 —  Graças a Deus —  disse ele. —  Talvez finalmente a festa fique in-

teressante.

Seguimos os outros pelo corredor até a cozinha, onde algumas pes-

soas tentavam quebrar um boneco de Frankenstein. Vi Maya aparecer

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com a cara irritada, mas, por estranho que pareça, o irmão não estava

em lugar nenhum. Por um segundo, considerei a possibilidade de subir

correndo as escadas para checar o quarto dele, mas então me dei conta

de que seria bem melhor flagrá-lo no meio de um grupo. Assim ele ficaria

publicamente constrangido.

Muito, MUITO melhor .

 —  Então, precisamos lembrar as regras mais uma vez?  —  pergun-

tou Patrick. —  Você se lembra do que eu ensinei? Basta a intenção. Não

funciona a não ser que você esteja absolutamente concentrada.

 —  Podemos repassar essa parte da concentração? —  falei, sarcásti-

ca.

Ele cruzou os braços.

 —  Você claramente não precisa mais da minha ajuda.  —  Ele se vi-

rou e saiu da cozinha.

 —  Não, para, não vai embora! —  gritei. —  Você é muito sensível. Eu

só estava brincando.

Patrick me encarou, sorrindo. Seu olhar me pegou de surpresa. O

 jeito que a camisa se ajustava ao corpo dele. O jeito como o cabelo escu-

ro emoldurava os olhos profundos. O jeans apertado… 

Ele estava meio, hum, sexy. Quero dizer, para um garoto morto.

Tudo bem, muito obrigado , a voz dele ecoou dentro da minha cabe-

ça. Você também não está nada mal .

Congelei, completamente mortificada por ele ter ouvido aquilo. Ain-

da não estava acostumada a compartilhar meus pensamentos com outra

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Abri caminho no grupo, invisível, silenciosa. Jacob. Meu Jacob. Os

olhos cansados. Tristes. E apesar de estar rodeado por gente que conhe-

cia –  gente que se importava com ele e entendia pelo que passara recen-

temente – , parecia só. Perdido.

Senti minha raiva se desfazendo.

Ele sente falta de mim .

Brie, não faça isso .

Mas, e se for verdade?  

O que isso muda?  

Talvez esteja arrependido .

É bom que ele esteja arrependido .

Abri a boca, mas não disse nada. Senti o cheiro da colônia dele. Só

um pouquinho.

Nossa, como é gostoso esse perfume .

Quis que ele me abraçasse. Que me dissesse que ia ficar tudo bem.

Que tudo isso não passava de um sonho ruim e que ficaríamos juntos

novamente. Talvez para sempre.

Você não está se concentrando .

Não posso fazer isso .

Ele não te ama .

Cala a boca, Patrick .

Eu me aproximei, as pontas dos dedos a centímetros do casaco do

 Jacob, pequenos raios de energia saindo deles. Os pelos dos meus bra-

ços e do meu pescoço em pé, tomados de eletricidade.

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Milo e Will o alcançaram antes de mim.

 —  E aí, cara —  disse Milo. —  Tudo bem? Estamos te esperando há

mais de uma hora.

 —  Mandei mil torpedos  —  disse Will.  —  Tudo bem com você? Não

está com a cara nada boa.

 Jacob balançou a cabeça.

 —  Eu… eu precisava de espaço. Não estava no clima de festa. Não

queria que a Maya fizesse isso. Pedi para ela cancelar.

Will e Milo trocaram olhares preocupados.

 —  Tudo bem, tudo bem —  disse Will. —  As pessoas estão se diver-

tindo.

 Jacob fez que sim, os olhos ainda fixos no chão.

Pobre Jacob. Está sozinho. Ninguém entende o que está passando.

Ninguém, a não ser eu .

 —  Você esteve com ela, hoje? —  perguntou Milo.

Congelei.

Ela?  

Eu me virei para encarar Patrick, caso eu não tivesse entendido di-

reito.

 —  Do que ele está falando?

Patrick simplesmente balançou a cabeça e se afastou.

 —  Não pergunte isso para mim.

Eu me virei para os três rapazes.

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 —  Ela ainda está muito chateada? —  perguntou Will, baixinho.

 —  Está. —  Jacob fez que sim com a cabeça. —  Não para de chorar.

Senti como se uma dose letal de veneno tivesse sido injetada naminha corrente sanguínea e lentamente abrisse caminho até o meu tó-

rax.

 —  Ela? Quem é ela ? —  Encarei Jacob. —  De quem você está falan-

do?  —   Se meus olhos pudessem desmaterializar alguém, ele teria se

transformado numa pilha de cinzas no chão. Eu ainda não entendia por

que terminara comigo tão de repente. Será que existia outra pessoa otempo todo? Outra garota? Uma garota de quem ele gostava mais do que

de mim?

De repente, uma parede de fogo e fumaça cheia de lava quente apa-

receu no meio do cômodo, me forçando a dar um passo atrás.

Brie! Cuidado!  

Eu preciso saber. Preciso saber quem ela é .

Você precisa se concentrar .

Não. NEM se atreva a falar comigo. Eu preciso ouvir. Preciso ouvir o

Jacob dizendo isso .

 —  É realmente um saco, cara  —  disse Milo, balançando a cabeça.

 —  Mas acho legal vocês dois se ajudarem nisso.

Se ajudarem?  

Lá estava eu, praticamente pronta para perdoá-lo. Pronta para fazer

o que fosse preciso para voltar me arrastando pelo tempo e pelo espaço,

por outro mundo de existência para poder estar com ele de novo. Mas is-

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so? Isso era demais. Uma dor terrível renasceu dentro de mim, dilace-

rando meu peito.

Patrick estava na minha cabeça: Concentração. Use a concentração .

Que se dane .

Ótimo. Isso. Canalize!  

 —  É —  disse Jacob, passando as mãos no cabelo.  —  Ela está bem.

Isso tudo foi muito difícil para ela.

Como você OUSA? Difícil para ELA? Não está esquecendo alguém?

Meus punhos estavam cerrados. Fumaça irradiava da minha pele.

Eu estava pegando fogo.

Agora. Vá agora .

Abri caminho entre Will e Milo.

 —  Uau —  disse Will, dando um passo atrás. —  Cara, você sentiu is-

so?

 —  Caramba, que coisa estranha —  disse Milo. O rosto pálido.

Eu estava a 8 centímetros do rosto de Jacob. Os olhos dele estavam

confusos. Ele olhava através de mim, mas havia algo ali. Uma pista, por

menor que fosse, de reconhecimento. Era tudo de que eu precisava.

Você o pegou .

 —  Brie? —  sussurrou Jacob, alto o bastante para que eu o escutas-

se. Pude sentir o desconforto das batidas do coração dele. Em pânico.

Pulsando. Vivo.

Deve ser bom .

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Eu me aproximei ainda mais, diminuindo o espaço entre nós. Laba-

redas azuis e cor de laranja atravessavam a minha pele. Ele arregalou os

olhos. Então, com a leveza de uma pluma, passei meus lábios no rosto

dele. Levemente.

 —  Isso, sou eu —  sussurrei.

Concentração . Patrick ainda estava comigo. Pude sentir os olhos de-

le em mim.

 —  Jacob, cara, é sério, tá tudo bem com você? —  Milo tremia.

O resto da festa percebeu que alguma coisa estava acontecendo. Al-

guém desligou o som. Jacob estava de pé no meio do cômodo, como se

tivesse visto um fantasma. Não sei se visto, mas com certeza escutado

um.

Vi os olhos dele vasculhando o ambiente. As palmas das mãos sua-

vam, e eu sabia que estava com medo.

Bem feito .

Mas eu ainda não tinha terminado. Ainda precisava tirar um peso

do meu peito.

 —  A culpa é sua —  sussurrei no ouvido dele, agora mais alto.

Num instante, o sangue sumiu do rosto de Jacob.

 —  Quem quer que esteja fazendo isso, não é engraçado!  —   gritou

ele. As pessoas na sala ficaram em silêncio. Todos os olhos voltados para

ele.

 —   Calma, cara, está tudo bem  —   disse Milo, tentando acalmá-lo.

Pegou Jacob pelo braço.  —  Vem, vamos lá fora para você pegar um ar

fresco.

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Agora. Ele está nas suas mãos. Agora .

Aguentei firme e me aproximei ainda mais. Devagar, passei meus

braços em volta da cintura dele. Senti seu corpo inteiro tensionar com o

meu toque.

Então, sussurrei três palavras perfeitas no ouvido dele. Três pala-

vras que eu escondera desde aquela noite.

 —  Você me matou .

Ele começou a gritar.

E não parou até que todo mundo tivesse ido embora.

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Capítulo 14

 

 nothing compares 2 u

Patrick e eu descemos lentamente a rua, lado a lado sob a luz do

luar. O ar era um misto do perfume do oceano e eucalipto da floresta.

Não tínhamos um destino específico em mente. Eu só sabia que íamos

em direção ao norte, para longe da casa de Jacob, rumo à cidade. Anda-mos muito tempo sem dizer nada.

 —   Foi impressionante  —  ele finalmente quebrou o silêncio.  —   Eu

não tinha certeza de que você era capaz, Queijo Ralado.

Forcei um sorriso.

 —  Eu fui incrível, devo dizer.Mesmo assim, não conseguia afastar a sensação de que as coisas

não tinham acontecido como deviam. Por um lado, sabia que deveria me

sentir muito bem por ter assustado Jacob daquele jeito. E sabia que de-

veria sentir alívio, sensação de missão cumprida. Afinal, eu fiz com que

ele parecesse um doido na frente da maior parte do colégio e de uma

porção de amigos de Standford da irmã dele.

Nada disso fazia a menor diferença. Eu ainda estava presa àquele

lugar idiota e ainda muito longe de chegar em casa. Acho que parte de

mim esperava que Jacob tivesse sofrido uma mudança súbita. Que talvez

ele tivesse se dado conta do tamanho da besteira que fizera. De como ti-

nha sido idiota para jogar fora alguém como eu.

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Mas isso não acontecera.

Na verdade, ele só pensava nela. Em outra garota. Alguém mais bo-

nita, mais engraçada, divertida, e, quem eu quero enganar, provavelmen-

te mais peituda do que eu jamais seria. Alguém que o conquistara de um

 jeito que eu nunca seria capaz. Alguém que, eu não conseguia me impe-

dir de desejar, partiria seu coração exatamente como ele partira o meu.

 —  O amor é um saco, não é? —  falou Patrick.

Fiz que sim.

 —  É. Um saco.

Ele passou o braço em volta dos meus ombros.

 —  Vai passar. Eu quis dizer, essa sensação. Antes que perceba, vo-

cê vai esquecer que ele existe.

Parei de andar.

 —  E se eu não quiser esquecer?

Caí de joelhos. Eu fora tão idiota de acreditar que ele me amava.

Estive tão errada de pensar que aparecer na festa de Halloween da irmã

dele mudaria o que tinha acontecido entre nós. Que provaria alguma coi-

sa. Não existia nada que eu pudesse ter feito diferente. Nada que eu pu-

desse alterar. As letras no meu túmulo não eram temporárias. Haviam

sido cravadas para durar para sempre.

AUBRIE ELIZABETH EAGAN 

AMIGA. FILHA. ANJO.

PARA SEMPRE EM NOSSOS CORAÇÕES.

1º DE NOVEMBRO DE 1994  –  4 DE OUTUBRO DE 2010 

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Então, eu senti. Senti de verdade. Eu não voltaria. Estava vivendo

num mundo de fantasia cheio de promessas de que um dia, de alguma

maneira, eu voltaria para minha antiga vida. Uma vida que estaria espe-

rando por mim de braços abertos. Cheia de esperança e gargalhadas, de

amor e segundas chances. Mas a verdade finalmente me alcançou, exa-

tamente como Patrick dissera que aconteceria. E não era justo.

Patrick se sentou ao meu lado. Vi-o enfiar a mão no bolso da jaque-

ta envelhecida e tirar o guardanapo amassado  —  aquele da pizzaria  — ,

onde ele escrevera uma lista de palavras. Ele puxou a tampa da sua ca-

neta com a boca e desdobrou o guardanapo. Então, sem olhar nos meus

olhos, riscou cuidadosamente a primeira palavra da lista.

Negação  

Lutei tanto para combater a raiva, as lágrimas de amargura. Mas

elas vieram mesmo assim.

 —  Por que eu? —  gritei para os céus. —  POR QUÊ?  O que foi que eu

fiz para merecer isso? Para merecer qualquer uma dessas coisas?  —  Caí

nos braços dele, aos soluços. Lágrimas quentes e raivosas saíam de mim

e aterrissavam no chão úmido e arenoso.

 —   Está tudo bem  —   disse Patrick, com voz suave e sóbria. Pela

primeira vez. —  Estou bem aqui.

Ele me deixou chorar em seu colo por não sei quanto tempo, bem

debaixo de uma árvore na beira da autoestrada. Afagou meu cabelo e me

disse que ficaria tudo bem. As estrelas estavam expostas no céu, piscan-

do e brilhando, e o chão umedecera sob nossos corpos. Senti que ele se

inclinava e abria a jaqueta. Colocou-a sobre mim e se aproximou ainda

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mais. Eu estava tão triste e com tanta raiva que mal conseguia manter

os olhos abertos, como uma criança depois de uma crise de choro.

 —  Aposto —  sussurrei —  que, em algum momento, você fez alguém

muito, muito feliz.

Se Patrick respondeu, eu não ouvi.

 Já tinha caído num sono sombrio, pesado, tempestuoso.

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Parte 3

Raiva

Capítulo 15

You ain’t nothing but a hound dog 

Nunca fui, na verdade, dessas pessoas que se lembram dos so-

nhos. Tentei de tudo, literalmente  —  diários, fitas gravadas, pedir que

minhas amigas prestassem atenção e me dissessem se eu falava dormin-do — , mas, neca, nada, zero. Fora a assustadora exceção do meu sonho

recorrente com a moto, nada realmente ficava na memória.

Mas não foi assim desta vez.

Por alguma estranha razão, nesta noite em particular, algo me dizia

que aquele sonho seria lembrado. E quando finalmente acordei no dia

seguinte –  ainda enroscada no colo de Patrick — , adivinhem?

Lembrei .

Sonhei com Hamloaf.

Ou, mais especificamente, com o dia em que Hamloaf comeu meu

bichinho de pelúcia preferido  —   uma coelha que eu chamava de Sra.

Fluff. Chorei feito louca quando subi na minha cama e não encontrei mi-

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nha adorada Sra. Fluff debaixo das cobertas, como sempre. O nariz ro-

sado e fofo. As orelhinhas cor-de-rosa. Coisa mais fofa do mundo.

Desaparecida, sem deixar rastro.

Primeiro, minha mãe e meu pai disseram que talvez eu a tivesse

deixado em algum lugar. Na casa de Sadie. Na lavanderia. Debaixo da

cama. Neguei todas as acusações. Porque eu sabia a verdade. Sra. Fluff

não estava desaparecida… Sra. Fluff fora raptada .

O caos se transformou em pandemônio quando papai percebeu

uma estranha trilha de flocos de algodão que vinha do corredor do se-gundo andar, descia a escada, entrava na sala e ia parar na portinhola

por onde Hamloaf entrava e saía. Isso. É verdade. O cachorro comeu mi-

nha coelha. Comeu o nariz rosado, gasto de tantos beijos dados por mim.

Comeu as orelhas cor-de-rosa. Comeu até os lindos olhos azuis de vidro.

(Um dos quais apareceu alguns dias depois, diga-se de passagem, um

pouco menos azul e um pouco menos brilhante.)

 —  Tudo —  sussurrei, ainda semiacordada. —  Lembro de tudo.

Lembrei da Sra. Fluff. Lembrei da barriga estufada do Hamloaf en-

quanto ele se espichava debaixo do céu estrelado, desmaiado, com a

pança cheia de coelha. Lembrei de ter tido mais raiva do que jamais sen-

tira na minha vida jovem e curta, e dos olhos doces, caninos e cheios de

remorso dele, quando me viu chorando. Lembrei de como pressionou o

nariz preto e macio no meu rosto, como se pedisse desculpas.

Então, por algum motivo, lembrei da maneira como minha mãe me

abraçou naquela noite, me dizendo que Hamloaf era só um cachorrinho.

Que ele não tinha tido intenção de me chatear. Lembro do cheiro do ca-

belo dela e do calor do robe atoalhado. Lembro de como ela fez com que

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me sentisse melhor, daquela maneira especial que ninguém no planeta

 jamais conseguiria.

Mas isso era mais que uma lembrança. Era desejo. Inesperado, su-

focante. Nós duas de mãos dadas quando eu era pequena, nossos pija-

mas idiotas nas manhãs de sábado. Era o sofrimento de magoarmos

uma a outra porque podíamos, era sermos melhores amigas e deixarmos

de ser, era a raiva e o ressentimento pelo que nenhuma das duas foi ca-

paz de defender com todas as forças, porque  —   no final das contas  —  

crianças um dia devem crescer. Esses eram os sentimentos que eu guar-

dara e enterrara numa cápsula, trancados num cofre, num lugar pro-

fundo e secreto, inviolável para qualquer pessoa. Um lugar esquecido por

mim ao longo do tempo.

Sentia falta da minha família. Sentia falta da minha mãe .

Abri os olhos inchados de choro e encarei Patrick.

 —  Anjo? —  disse ele.

 —  Quero ir para casa.

 —  Quer falar por quê?

Balancei a cabeça. Eu me espreguicei e fiquei de pé. Sentia um peso

no peito, como se um bloco de concreto tivesse se acomodado ali en-

quanto eu dormia. Mas alguma outra coisa também surgira. Um plano ,que eu não via a hora de colocar em prática.

Mas, primeiro, casa.

 —  Então.  —  Ele parecia animado, como se tentasse levantar o as-

tral. —  Pensei em te mostrar um lugar bem legal, não muito longe daqui.

 —  Eu quero ir para casa —  repeti. —  Agora .

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Ele me olhou, divertido.

 —  Está um pouco mandona, hoje, não?

 —  Se é o que você diz… Ele coçou a cabeça.

 —  O negócio é o seguinte… 

 —  O quê? —  perguntei. —  O negócio é o quê?

 —  Isso pode ser um pouco problemático —  respondeu ele.

 —  E por quê?

Ele suspirou e enfiou as mãos nos bolsos.

 —  Companheira, eu sei que você não gosta de ouvir isso, mas as

coisas são diferentes agora. Você não pode simplesmente sair fazendo

tudo que costumava fazer… 

 —  Quem disse?

 —  Sério?

Encarei-o.

 —  Estou com cara de quem está brincando?

 —  Caramba —  disse ele. —  Alguém acordou do lado errado da rua.

Ele cruzou os braços. —  Permita-me lembrá-la de que não sou seu motorista particular.

 —  Engraçado —  respondi. —  Porque eu acho que é exatamente isso

que você é.

 —  Você é realmente uma figura —  murmurou Patrick, antes de se-

gurar minha mão.

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Senti uma descarga de eletricidade atravessar meu corpo.

 —  Ai! —  gritei e puxei a mão. —  Você vai me eletrocutar?

 —  Uau  —  disse Patrick.  —   As centelhas estão rolando entre nós.Supimpa.

Esfreguei meu braço, reclamando.

 —  Ninguém diz supimpa , hoje em dia, idiota.

 —  Olha —  disse ele. —  Não desconte em mim, tá? Você tem todo di-

reito de estar revoltada, mas não se esqueça.

 —  De quê? —  respondi.

Ele chutou uma pedra grande e mandou-a para o outro lado da

rua.

 —  Não se esqueça de que sou tudo que você tem agora, certo?

As palavras arderam, mas não consegui deixar de ficar maravilhada

com o que vi. De alguma forma, Patrick fizera a pedra se mover. Com o

pé. Fizera contato com um objeto que existia no Mundo Real. Apesar

de ele  não existir. Fiquei completamente chocada.

 —  Como você fez isso?

 —  Oi? Você está me dizendo que não sabe tudo sobre estar Morto &

Enterrado ? Isso não é incrível? —  Tudo bem, tá —  gemi. —  Entendi. Desculpa.

 —  Primeiro, quero que você repita.

 —  Você é a única coisa que eu tenho —  resmunguei.

 —  Não escutei… 

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 —  Você é a única coisa que eu tenho!  –  Senti meu rosto corar.  —  

 Tá? Agora, será que você pode me mostrar como foi que você fez isso?

Ele sorriu.

 —  Primeiro, as coisas importantes. —  Ele segurou minha mão e me

puxou para perto. Antes que eu pudesse saber o que estava acontecen-

do, senti como se estivéssemos na montanha russa mais louca do mun-

do, girando no ar numa velocidade tão insana que tive vontade de vomi-

tar. Meu estômago foi parar na boca, meus pés estavam em chamas, e eu

não conseguia nem ouvir a minha voz com o barulho do vento, enquanto

gritava pedindo para ele parar.

Então, de repente, ele parou.

 —  Lar, doce lar —  disse Patrick.

Abri os olhos. Senti meu corpo inteiro tremer, em espasmos, quan-

do a inércia e a gravidade voltaram a fazer parte de mim.

 —  Nunca mais faça isso.

 —  Vou anotar seu pedido, Anjo —  disse Patrick.

Não gostava que ele me chamasse de Anjo . Assim como também

não apreciava os apelidos relacionados a queijo, nem da maneira como

ele sempre parecia arrancar informações de mim sem nunca me contar

qualquer coisa sobre ele. Mas, por enquanto, estava disposta a deixartudo isso de lado.

Porque estávamos parados na entrada da minha casa.

Avenida Magellan, número 11.

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A casa estava tomada de sombras. Todas as janelas fechadas. To-

das as cortinas fechadas. Como se quem morasse ali tivesse se mudado

havia muitos anos. Ou simplesmente deixado de se importar.

Só haviam se passado algumas semanas desde a minha morte, o

que não era muito tempo, principalmente quando pensamos nos planos

da Eternidade. Mas, ao ver como a luz do outono tingia o telhado  —  e o

 jardim enlameado, descuidado; as folhas secas em toda a sua decadên-

cia; o sussurro fantasmagórico do oceano a alguns quarteirões dali — , de

repente me pareceu que fazia muito mais tempo.

O lugar estava estranho. Alterado. Um fantasma de sua antiga apa-

rência.

Assim como eu .

Não consegui desviar o olhar.

 —  O que aconteceu aqui? —  perguntei.

 —   O que sempre acontece  —   disse Patrick.  —   Eles perderam al-

guém.

O som de uma porta sendo aberta chamou minha atenção. Um me-

nino de cabelo escuro despenteado, jeans e suéter preto saiu e desceu os

degraus, sem se importar de fechar a porta. Colocou a bola de futebol na

entrada e chutou-a com toda força na porta de metal da garagem.BAM!  

BAM!  

BAM!  

Era Jack. Em um segundo, meu corpo inteiro se arrepiou. Ele esta-

va tão perto. Era tão real . As bochechas rosadas e o nariz entupido por

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conta do ar frio do outono. Quis correr até ele, dar um abraço gigante de

urso no meu irmão. Vi quando limpou o nariz na manga do suéter. De-

pois acomodou a bola e chutou-a novamente.

BAM!

Dei um passo à frente, mas parei, percebendo a total atmosfera dic-

kensiana daquilo tudo.

 —  Ele não pode me ver.

 —  Verdade  —   respondeu Patrick.  —  O lado bom é que seu cabelo

está um pouco assustador agora, então talvez seja melhor assim.

Passei a mão nos meus cachos despenteados, tentando amansá-los,

mas parei quando me dei conta de que Patrick só estava me provocan-

do. De novo . Me preparei para discutir, como sempre, mas parei ao ouvir

a porta se abrindo mais uma vez.

 —  Jack!

A voz da minha mãe.

Então a vi, metade do corpo para fora da porta. O suéter verde, su-

permacio, que minha avó lhe dera de presente no Natal passado. Os ócu-

los de tartaruga. O rabo de cavalo escuro, ondulado. Estava um pouco

mais baixa de como me lembrava dela?

Mamãe.

Senti um aperto na garganta e arrepios na nuca. Quis correr até

ela. Quis tanto correr até ela.

 —  Jack, meu amor, por favor, não chute a porta da garagem com

tanta força. Faz muito barulho. Seu pai está tentando dormir.

 —  Dormir? —  disse eu. —  Ainda?  Que horas são?

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Deviam ser pelo menos 11 da manhã. E meu pai era do tipo que

acordava cedo. Sempre ao amanhecer, para poder encaixar uma horinha

de surfe antes de ir para o trabalho. Como ele podia ainda estar dormin-

do? Costumava ficar irritado se a gente passasse das 9 horas, mesmo

nos finais de semana.

 —  Tá. —  A voz de Jack estava distante. Como se não estivesse pres-

tando a menor atenção ou não desse a mínima. Sem olhá-la nos olhos,

baixou a bola, deu alguns passos para trás e chutou novamente. Com

mais força dessa vez.

BAM!

Mamãe balançou a cabeça. Estava irritada, dava para ver, mas não

teve forças de pedir de novo. Deixou a porta bater atrás de si quando vol-

tou para dentro de casa.

 —  Família feliz —  disse Patrick.

Ignorei-o. Fui até a entrada e me sentei bem pertinho de onde Jack

estava chutando a bola.

Jack Cheddar .

Ele era bonito. Um menino bonito, doce e triste. Faria 9 anos dali a

alguns meses. Um pensamento passou pela minha cabeça.

E se tiver se esquecido de mim?  

Ele tirou o suéter e deixou-o no chão. Sentou de pernas cruzadas

na grama, enfiou a mão no bolso e pegou um baralho. Eu lhe ensinara

várias maneiras de embaralhar no último verão. Ele estava ficando bom

nisso. Mas as mãos eram ainda muito pequenas para manejar as cartas

com maestria. Dividiu o baralho em dois, como eu lhe mostrara (com

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menos cartas fica mais fácil), mas, quando fez o movimento  –   tentando

envergar as cartas de maneira suave, fazendo um arco – , elas escorrega-

ram de seus dedos e se espalharam pela grama.

 —  Droga —  resmungou ele.

 —  De novo —  disse eu. —  Usando os dedões desta vez.

Ele repetiu exatamente os mesmos passos, mas, como da primeira

vez, as cartas se espalharam.

 —  Porcaria! —  Ele desistiu e voltou a chutar a bola de futebol.

Não há nada que eu possa fazer. Sou completamente inútil. Um total

e absoluto desperdício de espaço .

 —  Bem, não tecnicamente, já que, tecnicamente , não está ocupando

espaço nenhum —  disse Patrick. —  Já que estamos sendo técnicos.

Bati na testa com a mão.

 —  Meu Deus, você NUNCA cala a boca?

Ele sorriu.

 —  Na verdade, não.

Eu teria respondido com alguma frase inteligente, mas um grito

chamou minha atenção. Levantei e andei em direção à janela da cozinha,

para ver melhor. Lá estavam eles. Minha mãe e meu pai. Sentados um defrente para o outro na mesa. Uma xícara intocada de café diante dele,

um prato vazio e o jornal não lido diante dela. Mamãe chorava. Meu pai

estava com a cabeça enterrada nas mãos.

 —  Você tem que parar —  disse ela. —  Quanto tempo mais vai fazer

a gente passar por isso? Quanto tempo mais vai fazer Brie  passar por is-

so?

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Eu? Estão brigando por minha causa?  

 —  Eu preciso entender —  disse ele. —  Não posso esquecer enquan-

to não entender.

 —  Você está obcecado —  disse minha mãe, a voz embargada. —  Não

pode consertar as coisas. Ela morreu, Daniel. Quando você vai aceitar

isso?

 —  Não faz sentido, Katie.

 —  Ela morreu, Daniel, escute o que você está dizendo.  —  Ela se le-

vantou da mesa e levou o prato até a pia. Ligou a água quente, e a fuma-

ça começou a embaçar o vidro da janela pela qual eu espiava. Eu me

aproximei.

 —   Ela era saudável  —   prosseguiu Daniel.  —   Tínhamos tudo sob

controle. O coração estava saudável.

 —   Talvez não.  —   Minha mãe estava chorando de novo. Fez uma

pausa para secar as lágrimas. —  Talvez todos nós estivéssemos errados.

 —  Não!  —  Papai deu um soco na mesa, de repente, derrubando o

açucareiro. —  Um infarto fulminante numa menina de 15 anos? O tecido

não se rompe, simplesmente, Katie. Um coração não se parte em dois as-

sim, de repente, caramba!

 —  Calma —  disse mamãe. —  Jack pode escutar.

Meu pai respirou fundo. Parecia tentar se controlar.

 —  Minha equipe nunca viu uma coisa dessas  —  disse, esfregando

os olhos.  —  Brie pode nos ajudar a salvar outras pessoas… Fazer com

que uma coisa desse tipo não aconteça novamente.

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 —  Não é culpa sua, Daniel —  sussurrou minha mãe. —  Não é culpa

de ninguém.

 —  Aquele garoto tem alguma coisa a ver com isso.  —  Papai balan-

çou a cabeça. —  Eu sei que tem.

Você está certo, pai. Está chegando lá .

 —  E o que você vai fazer?  —  indagou minha mãe. —  Mandar pren-

der um menino de 16 anos por ter brigado com a sua filha? Ele é

uma criança , Daniel. Você viu o coração dela… —  Sua voz estremeceu. —  

Você viu com seus próprios olhos. Todos nós vimos. Não se atreva a dizerque Jacob Fischer é responsável por isso. —  Ela desmontou, aos soluços.

Mais do que você pensa .

 —  Você tem dormido no consultório há semanas.  —  Minha mãe se

virou para encará-lo, lágrimas rolando pelo rosto. —  Precisamos de você

aqui, Daniel. Jack e eu precisamos de você.

 —  E Brie? —  disse ele. —  Ela não precisa de mim?

 —  Ela MORREU! —  gritou ela, com todas as forças, os ombros tre-

mendo.

Não, não, não, por favor, não briguem, por favor, não briguem .

Quis tapar os olhos e os ouvidos —  quis sair correndo e nunca mais

voltar. Mas não consegui desgrudar da janela.

 —  Estou muito perto —  disse papai. —  Tenho uma teoria.

 —   Você tem a nós  —   soluçou minha mãe.  —   Isso não basta?  —  

 Tentou abraçá-lo, mas ele se afastou.

 —  Não. —  Meu pai ficou de pé.  —  Neste momento, não. —  Ele pe-

gou a chave do carro no balcão. —  Sou um dos maiores cirurgiões cardí-

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acos do mundo, Katie. Como você acha que isso soa ? Como você acha

que isso soa quando não tenho uma resposta para o que aconteceu com

minha própria filha?

Esse é meu pai. Sempre realista. Era o que fazia melhor, afinal. Li-

dava com fatos. Esclarecia a verdade. As pessoas vinham de todas as

partes do país —  até do mundo — , em busca de sua ajuda. Não ter sido

capaz de reviver a mim, sua própria filha, devia estar enlouquecendo-o.

Mamãe era diferente. Era a artista da família. O espírito livre. Ensi-

nava desenho no Instituto de Arte de São Francisco. Quando os dois se

conheceram, as diferenças os fortaleciam. Agora, elas estavam separan-

do-os.

 —  Estão precisando de mim no hospital —  disse papai.

 —  Nós precisamos de você aqui —  disse minha mãe.

Parem, parem, por favor, não briguem, não por minha causa. Eu sinto

muito .

 —  Vou tentar não chegar tarde.

 —  E o jantar? —  perguntou minha mãe, com amargura. —  É o ani-

versário dela, Daniel. Você vai mesmo trabalhar até tarde?

Congelei. Meu aniversário . Olhei para Patrick.

 —  Dezesseis —  disse ele. —  Parabéns, Brie.

Meu pai suspirou.

 —  Vou fazer o possível.

 —  O possível não é o suficiente.

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 —  Eu tenho que fazer isso, Kathryn. —  A voz dele estava fria. Rai-

vosa. Eu não me lembrava da última vez em que chamara minha mãe

pelo nome.

Ela saiu enfurecida da cozinha.

 —  Faça o que você quiser. Dane-se.

Corri da janela da cozinha para o jardim. Desci os degraus da va-

randa de dois em dois, voando até a porta da frente. Tinha que tentar fa-

lar com eles. Tinha que fazer com que soubessem que não precisavam se

preocupar comigo. Eu entraria e ficaria tudo bem. Encontraria uma ma-neira de fazer com que ficasse tudo bem. Era a minha família. E eles

precisavam da minha ajuda.

Você não pode , sussurrou Patrick dentro da minha cabeça.

Não posso o quê? Chega de me dizer o que eu posso e o que não pos- 

so fazer .

Eu me adiantei, preparada para sentir o toque gelado e suave do

metal, como acontecera tantas vezes. Mas quando segurei a maçaneta e

tentei girá-la, nada aconteceu.

O que…?  

 Tentei novamente. E novamente. Eu estava trancada do lado de fo-

ra.

 —  Odeio essa porcaria de casa! —  Explodi, tentando chutar a porta.

Nada. Não importava o quanto eu chutasse, socasse, jogasse meu

corpo contra a porta, ela não se movia.

 —  Odeio isso! Odeio isso! Odeio isso!  —  gritei com todas as forças,

as palavras queimando minha garganta como carvão aceso. Depois de

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um minuto, caí nos degraus da varanda, sem fôlego. Estava com tanta

raiva que uma fumaça discreta emanava de meus braços e das minhas

costas. Estava, literalmente, pegando fogo.

Patrick subiu a escada lentamente.

 —  Melhor?

Eu tenho que entrar .

Você NÃO PODE .

 —  Isso é loucura! —  gritei. —  Por que não? –  Girei o corpo, fiquei de

pé e tentei mais uma vez girar a maçaneta. Gritei pedindo que alguém,

qualquer pessoa, me deixasse entrar, pelo amor de Deus.

 —  Você não está pronta, Brie. Ainda não.

 —  Como assim, ainda não?  —   respondi.  —  Fui na festa do Jacob.

Por que não posso entrar em casa? Olha só, estou concentrada.  —  Es-

premi os olhos em direção à porta e me concentrei o mais que pude.  —  Estou concentrada . Nada disso faz o menor sentido.

Patrick falou baixinho:

 —  Não é para fazer isso, Anjo.

 Jack passou por mim e abriu a porta com um movimento rápido,

sem esforço algum. Tentei me esgueirar atrás dele. Tentei enfiar meu pé

pela fresta. Faria qualquer coisa para entrar. Mas a porta bateu na mi-

nha cara.

Não era bem-vinda .

Caí de joelhos, apoiando a cabeça no vidro estreito e comprido ao

lado da porta. Eles estavam gritando de novo. A voz do meu pai ecoava

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pela casa em alto e bom tom, e ouvi Hamloaf latir desesperadamente.

Soquei minhas coxas.

 —  Estou aqui! Parem! Parem de brigar !

Olhei pela janela. Lá dentro, as coisas pareciam iguais. O mesmo

piso de madeira, o mesmo armário de casacos, a mesma cristaleira na

sala de jantar, os mesmos sofás confortáveis na sala de TV, as mesmas

inúmeras prateleiras de livros. Os lindos vasos de planta da minha mãe

enfeitando as laterais da porta de vidro do quintal, maltratados e prova-

velmente precisando loucamente de água.

Odeio isso. Odeio isso com todas as minhas forças. É muito injusto .

Um choro baixinho chamou minha atenção. Depois um gemido, se-

guido de um espirro. Olhei para cima e desmontei.

Ali, olhando para mim através da janela, as orelhas compridas e pe-

ludas, a cara deliciosa a centímetros da minha, estava Hamloaf.

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Capítulo 16

 total eclipse of the heart

Isso não podia ser realidade. Aqueles grandes olhos castanhos não

podiam estar olhando para mim. Girei o corpo para ver a rua. Devia ha-

ver um esquilo, um gato ou outro animal que tivesse chamado sua aten-ção. Talvez alguém correndo? Ou um frisbee perdido no jardim da frente

da casa da família Brenner? Mas nada se destacou. Nada parecia estar

se movendo.

Bem, isso é estranho .

Olhei novamente para a janela, e lá estava Hamloaf, sentado no

mesmo lugar de antes, ainda olhando para mim. Não se movera um mi-

límetro. O peito peludo estufado, a cabeça inclinada de curiosidade para

o lado. Ele cheirou o ar e deixou escapar um latido profundo, incerto.

 —  Ei, bonitão —  sussurrei.

Ele inclinou novamente a cabeça, daquele jeito inacreditavelmente

fofo que os cachorros têm quando estão intrigados, e vi que seu rabo co-meçou a espanar de leve o chão.

Isso não é nem um pouco possível .

Não consegui evitar e, lentamente, estendi a mão em direção ao vi-

dro.

Ele deu um pulo para trás e começou a latir.

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 —  Shh! —  eu disse. —  Quieto!

Ele levantou as orelhas assim que as palavras saíram da minha bo-

ca.

 —  Bom garoto —  disse eu, olhando fixamente para aquela cara fofa

de basset hound . —  Vem aqui, garoto. Vem. —  Estendi a mão na direção

dele mais uma vez. Apoiei-a na janela.

Hamloaf ficou parado. O rabo parou de se mover e ele aproximou o

focinho para mais uma fungada.

 —   Hammy?  —   Procurei os olhos dele. Mas não houve reconheci-

mento. Não havia nada ali.

Ele não pode me ver. Quem estou querendo enganar?

 —  Sinto muito —  disse Patrick, baixinho, de pé nos degraus da es-

cada. —  De verdade.

 —  Eu sou tão idiota —  falei. —  Você estava certo. Estou presa aquipara sempre, pelo resto dessa porcaria de eternidade, sem família, sem

amigos… 

 —  Poxa, valeu —  disse Patrick, me interrompendo.

 —  Meu namorado, meu cachorro… 

 —  Brie, calma… 

 —  Até, sei lá, minha alma desintegrar ou o universo  explodir… 

 —  Brie, olhe … 

 —  Ou seja lá que porcaria vier primeiro.

 —  Deus, será que dá para você OLHAR?

 —  Oi? —  Olhei para cima.

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Hamloaf estava arranhando a janela. Exatamente onde eu tinha co-

locado a mão.

 —   Meu Deus  —   sussurrei. Não conseguia acreditar no que via.

Aquela tinha sido a única coisa que conseguimos ensinar para Hamloaf.

Ele está tentando me cumprimentar .

Lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto e deixei escapar uma

gargalhada.

 —  Seu cachorro maluco, você CONSEGUE me ver!  —  Por um mo-

mento, toda raiva que existia dentro de mim desapareceu. Comecei a pu-

lar, batendo palmas e rindo enquanto Hamloaf me olhava, latindo e ga-

nindo, andando em círculos do outro lado do vidro.

 —  Bom garoto! —  gritei. —  Bom garoto!

Ele respondeu tentando lamber o vidro.

Patrick balançou a cabeça.

 —  Maldição. Nunca tinha visto uma coisa dessas.

 —  Hamloaf, chega de latir. —  Ouvi minha mãe gritar da cozinha. —  

Quem está na porta?

 —  Sou eu! —  gritei. —  Mãe, sou EU!

Ela veio até a porta e ouvi o barulho da fechadura. De repente, aliestava ela.

Mamãe .

Estávamos cara a cara.

Estendi o braço, mas minha mão atravessou o corpo dela.

Não, por favor. Por favor, me veja. Estou aqui .

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Ela estremeceu ligeiramente e puxou o suéter no ombro. Mas

Hamloaf aproveitou a oportunidade, atravessou a porta aberta e me co-

briu de beijos. Ele poderia ficar ali para sempre. Nunca tive tanta vonta-

de de ficar coberta de baba canina na minha vida.

 —  Chega, Hamloaf. —  Minha mãe puxou-o pela coleira e tentou fa-

zer com que entrasse, se afastasse de mim. Vi pela expressão no rosto

dela que estava um pouco assustada. Algo estava errado. Ela só não sa-

bia o quê.

Antes que eu pudesse alcançá-la, antes que pudesse fazer com que

me visse, ela deu um passo atrás, em direção à porta. Senti uma raiva e

um ressentimento antigos voltarem à tona.

 —  Mãe, mãe, mãe, não… 

 —  Para dentro, Hamloaf. Vamos entrar para comer.

 —  Não! Fiquem comigo! Não é justo. Eu só queria entrar um pouco.

Por que não posso entrar?  —  Dei um passo à frente e Hamloaf voltou a

latir, o pelo do pescoço eriçado.

 —  O que foi que deu em você? —  disse minha mãe. —  Chega de la-

tir, agora.

Ele não se moveu. Não queria me deixar.

 —  Hamloaf Eagan, entre imediatamente. —  Minha mãe apontou pa-ra a sala.

Ele deixou escapar um uivo alto, agudo, como se soubesse que es-

tava em maus lençóis, e olhou para mim, buscando apoio. Também não

entendia por que eu não podia entrar. E eu queria que alguém pudesse

dar uma explicação para nós dois.

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 —  Tudo bem, Hammy —  falei, com delicadeza. —  Pode entrar. Pode

ir com a mamãe.  —  Fiquei de joelhos. Peguei o focinho dele e enchi de

beijos.  —   Pelo menos, isso já é alguma coisa  —   falei.  —   Pelo menos a

gente ganhou alguma coisa. —  Depois, empurrei-o para dentro.

Minha mãe fechou a porta, me trancando lá fora para sempre. Olhei

para ela através do vidro frio.

 —  Odeio isso.

 —  Todos nós —  disse Patrick. —  Todos nós.

De repente, o barulho da porta da garagem se abrindo chamou mi-

nha atenção.

 —  Estou indo para o hospital.  —  Ouvi meu pai dizer. Seu tom não

era amistoso. Nem um pouco.

Não, pai. Não saia assim .

Sequei meu rosto, fiquei de pé e desci correndo a escada. Se alguémfosse deixar aquela casa, teria que me derrubar primeiro. Dei a volta pela

lateral da casa, passei pelas roseiras vermelhas da mamãe.

 —  Pai! —  gritei. —  Não vá embora!

Ele colocou a chave na ignição, ligou o carro e saiu de ré. Vi seu

rosto enquanto conferia os carros na rua, virava à direita e se afastava às

pressas do nosso quarteirão. Como se não pudesse ir mais rápido.

Mas me senti péssima ao ser deixada para trás. E comecei a andar

em direção à rua. Depois, comecei a correr, a toda, o mais rápido que

minhas pernas permitiam.

Brie, o que é que você está fazendo?  

Seguindo meu pai, o que você acha?  

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Imediatamente, Patrick apareceu do meu lado. Segurou minha

mão. Segure-se .

Segundos depois, meus pés se chocaram contra a entrada de con-

creto do hospital da Universidade de São Francisco. Fui lançada uns 6

metros para trás.

 —   Ai  —   gemi, assim que o ar voltou aos meus pulmões.  —   Essa

doeu de verdade.

 —  Sete e meio  —  disse Patrick.  —  Boa altura, boa distância, mas

três pontos a menos por conta da aterrissagem ruim.

 —  Dá um tempo. —  Esfreguei meus joelhos feridos. —  Tinha nebli-

na. A visibilidade era ruim. E eu queria ver você tentar fazer isso de ves-

tido. Exijo recontagem.

 —  Ai, ai, ai, não vamos ser gananciosos. Você tem sorte de eu ter te

dado meio ponto extra.

Ele me puxou, rindo. Espanei a poeira do meu corpo e manquei até

a calçada. Esperamos.

Quinze minutos depois, vi finalmente o BMW do papai descendo a

rua. Ele ligou a seta, virou à esquerda e estacionou bem longe da entra-

da do hospital. Eu me levantei quando ele começou a caminhar na mi-

nha direção.Pai, estou aqui .

Estendi o braço para tocar nele, mas, exatamente como aconteceu

com mamãe, minha mão atravessou seu corpo. Papai continuou andan-

do. Segui-o. Passei pelas portas de vidro e entrei na emergência com ele,

atravessamos o corredor que tinha cheiro de plástico e desinfetante, al-

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cançamos o elevador. Ele apertou o botão para o quarto andar e apoiou o

corpo na parede, fechando os olhos. Finalmente pude olhar para ele com

atenção.

Estava despenteado e sem se barbear. Olheiras permanentes mar-

cavam seus olhos e ele parecia mais magro. Mas ainda era muito bonito.

 Tentei segurar sua mão.

Pai, sou eu .

Ele se afastou, enfiando a mão no bolso. O elevador parou. Apitou

duas vezes. As portas se abriram.

Patrick e eu o seguimos num corredor fluorescente e passamos

através das portas de vaivém. Passamos pela UTI e finalmente dobramos

à esquerda para a área de cardiologia.

Estremeci e senti uma tensão na boca do estômago. Na última vez

que eu passara por ali estava numa maca. Meu pai segurava minha mão.

Apesar de eu já ter ido embora.

Viramos mais uma vez à esquerda e chegamos à porta do consultó-

rio. Ele remexeu o bolso, pegou um molho de chaves e girou a maçaneta.

Patrick e eu entramos atrás dele, apesar de não conseguirmos ver muita

coisa, já que a sala estava às escuras. Ele trancou a porta conosco lá

dentro.

Espera, por que ele trancou a porta ?

Então, acendeu a luz. E engasguei ruidosamente.

Era como se uma bomba tivesse explodido. Ou um furacão tivesse

passado. A sala estava uma bagunça total. Coberta de papéis do chão ao

teto. Matérias de jornal. Radiografias. Fotos. Páginas de anotações. De-

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zenas e dezenas de cadernos. Não havia uma molécula de espaço livre ali

dentro.

O que será tudo isso?  

Talvez ele agora tenha um novo hobby?  

A verdade era que Patrick tinha razão. E o novo hobby era eu.

Passei as mãos pelas paredes lotadas, olhando as manchetes.

ADOLESCENTE

DE HALF MOON BAY SOFRE INFARTO FULMINANTE

 JOVEM LOCAL, 15 ANOS, MORTA POR FALHA NO CORAÇÃO –  

SEU FILHO PODE ESTAR CORRENDO RISCOS?

Mais e mais artigos emoldurados, além de compilações espalhadas,

ocupavam as paredes, juntamente com capas de revista com meu rosto

estampado.

Tudo aquilo era sobre MIM?  

Eu não sabia o que dizer.

 —  Olha só! —  disse Patrick. —  Você é famosa.

Caminhei até meu pai, que agora estava sentado à sua mesa. Ob-

servei-o enquanto vasculhava pilhas e pilhas de jornais, às vezes recor-

tando uma matéria, às vezes puxando um livro de referências nas prate-leiras empoeiradas, bagunçadas, para procurar alguma coisa. Fazia ano-

tações intermináveis em cadernos  —  perguntas e teorias e histórias que

descobrira em todas aquelas pesquisas.

Nunca tinha visto meu pai daquele jeito. Era uma versão esquisita,

alterada, dele mesmo. Completamente enlouquecido por conta do que a

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medicina não podia explicar. Não conseguiria parar enquanto não resol-

vesse o enigma.

Ah, papai, foi só um coração partido. Nada científico .

Eu me enrosquei no sofá de couro, o mesmo onde eu e Jack costu-

mávamos nos sentar para criar um baralho de previsões com pedaços

das anotações do papai e, depois, ler em voz alta como se fosse o futuro

do outro. Três filhos. Um animal de estimação, um peixe dourado chama- 

do Flipper. Você vai morar numa mansão. Vai ser astronauta .

Mas jamais teríamos sido capazes de prever o que aconteceria co-migo. Nem em um milhão de anos.

Vê-lo daquele jeito fazia meu peito doer. Eu tinha causado tanta

confusão na vida de tanta gente. Mesmo assim, de alguma maneira, ver o

quanto ele se importava comigo fazia com que o amasse ainda mais. Ver

o quanto estava empenhado em resolver o maior mistério de sua carrei-

ra: eu .

O telefone tocou. Ele atendeu.

 —   Alô?  —   Fez uma pausa.  —   Meu amor, não chore. Eu sei. Eu

também sinto muito.

Sentei.

É a mamãe. Estão fazendo as pazes .

 —  Ok —  disse ele. —  Ótimo. Estarei em casa daqui a pouco.

Ele vai para casa, ele vai para casa, ele vai para casa!  

Dei um pulo. Parecia uma criança numa manhã de natal.

Papai terminou de digitar um e-mail, arrumou a pasta, apagou a

luz e trancou a porta da sala. Seguimos seus passos até o estacionamen-

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to e entramos no banco de trás do carro. Estava feliz de termos saído do

hospital.

 —  Não acredito que você está me fazendo andar nessa geringonça

 —   resmungou Patrick.  —  Vou virar a piada dos céus se alguém desco-

brir. Voar é tão mais eficiente.

Ri. Era divertido vê-lo irritado.

Seguimos pela rua e meu pai ligou o rádio. Bon Jovi.

 —  Meu deus do céu amo essa música! —  gritei, sentindo mais espe-

rança do que já sentira desde minha chegada à pizzaria.  —   Aumenta,

pai! —  Comecei a cantar com força total. —  “Whoa- oh, livin’ on a prayer!”  

 —  Uau. Minha audição nunca mais vai ser a mesma  —   lamentou

Patrick. —  Me lembra de pagar aulas de canto para você no seu próximo

aniversário.

 —  Ah, tá —  ridicularizei. —  Como se você fosse MUITO melhor.

Ele ergueu a sobrancelha.

 —  Preste atenção no mestre.  —  Então, jogou a cabeça para trás e

começou a cantar.  —  “Take my hand and we’ ll make it, I swear! Whoa,

livin’ on a prayer!”  

O mais louco era que ele era bom. Tipo, muito, muito bom. Fiquei

absolutamente impressionada.

 —  Caramba! Você devia se inscrever no American Idol !

Ele sorriu e me passou um microfone invisível.

 —  Será que a gente consegue harmonizar?

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Fiz o que pude, mas depois de uns cinco segundos de grunhidos,

caímos numa gargalhada histérica. E daí que ele tinha descoberto minha

única falha? Rir era muito bom. Não, era maravilhoso.

Tudo bem agora. Vai ficar tudo bem .

Patrick sorriu para mim. Sorri de volta.

Brie?  Ouvi-o sussurrar. Você se lembra … 

 —  Ei! —  gritei ao ver o mercado de comida orgânica passar por nós.

Olhei para trás, confusa. —  Pai, o que você está fazendo? Passou da en-

trada.

Estava usando um caminho novo para ir para casa? Estranho .

Ele acelerou e passamos por várias ruas familiares.

 Talvez pare em algum lugar para comprar flores para mamãe ou al-

guma coisa assim.

Paramos num sinal vermelho e meu pai ligou a seta.

 —  Pai, por que vamos virar aqui?

Ele esperou que dois carros passassem, depois virou rapidamente à

esquerda e chegou ao Hotel Hilton.

O que tem no Hilton?  

Ele estacionou, colocou o carro em ponto morto e desligou o motor.Destravou o cinto de segurança e saltou.

O que é que ele está fazendo?  

Patrick não se atreveu a adivinhar. Estava tão sem pistas quanto

eu.

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Seguimos papai até o lobby e seus funcionários atenciosos, grandes

lustres e palmeiras falsas. Fomos atrás dele até o elevador e subimos até

o 11º andar.

Onze, meu número de sorte .

Atravessamos o corredor comprido e acarpetado atrás dele, até que

meu pai parou na frente da porta do quarto 1108. Bateu duas vezes. Ou-

vi um barulho na fechadura do lado de dentro. A porta foi aberta.

Era uma mulher.

Congelei.

Não .

Cabelo louro, curtinho e moderno. Olhos azuis brilhantes.

Não .

 —  Daniel?

 —  Sarah.

Sra. Brenner?  

Fiquei sem ar. Minha professora. Minha vizinha. Melhor amiga da

minha mãe.

Papai deixou a pasta no chão. Afrouxou a gravata. Antes que me

desse conta do que estava acontecendo, ele começou a chorar. Primeiro,só um pouquinho, até se derreter completamente nos braços dela.

Não, por favor. Por favor, não .

 —  Inacreditável —  sussurrou Patrick.

Meu Deus do céu, vou vomitar .

E eles se abraçaram.

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E começaram a se beijar.

E eu saí correndo pelo corredor sem olhar para trás.

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Capítulo 17

 shot through the heart, and you’re to blame 

Minha cabeça estava rodando. Não tinha muita certeza do que es-

tava fazendo, para onde estava indo, que horas eram ou em que ano es-

távamos. Tudo que eu sabia era que haviam mentido para mim. Meumundo inteiro, minha identidade completa, minha existência inteira pa-

recia uma piada enorme e nem um pouco engraçada.

Se seus pais —  duas pessoas completa e profundamente apaixona-

das que parecem insanamente perfeitas uma para a outra diante dos

olhos alheios  — , se ELES não conseguem fazer as coisas direito, como

uma garota como eu pode continuar acreditando em conceitos como

amor, família e para sempre ?

Eu estava absurdamente, incrivelmente irritada. Com raiva do pa-

pai por estragar tudo. Com raiva de Jacob por ter entrado na minha vida

fácil e feliz, sem que eu tenha pedido. Estava com raiva até de Patrick,

por ter me trazido de volta para ver aquilo tudo. Não podia nem olhar pa-

ra ele, de tanto ódio que estava.

Enquanto isso, no meio daquela ira por ter acabado de ver meu pai

beijando outra mulher, aparentemente voei do Hilton para o centro de

Half Moon. Nem mesmo tinha me espatifado na aterrissagem, o que era

impressionante. Que pena que não estava no clima de me gabar.

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 —  Você quer conversar? —  perguntou Patrick, assim que descobriu

onde eu estava.

 —  Não.

Curta. Seca. Direta.

Do outro lado da Main Street, um coroa hippie começou a cantar

uma música do Neil Young que eu conhecia. Era uma das favoritas do

meu pai.

“Because I’m still in love with you, I wanna see you dance again .

Because I’m still in love with you, on this harvest moon.”  

 —  Cala a boca! —  gritei para ele. —  Ninguém quer ouvir isso!

 —  Acho que provavelmente não é um momento muito bom —  disse

Patrick quando passamos pelo Past Moon, um dos restaurantes favoritos

de Sadie — , mas acho que tenho uma surpresa para você.

 —  Odeio surpresas.

 —  Engraçado, não foi isso que ouvi dizer.

 —  Você se enganou.

Estava indo para o Pilarcitos Creek Park. Precisava desaparecer por

um tempo. Sentar na grama. Respirar ar fresco. Ver os doidões discutin-

do energia solar ou alguma coisa parecida. —  Para, vai —  resmungou Patrick quando percebeu aonde eu esta-

va indo. —  Você não sabe que tenho alergia mortal a sol e felicidade?

 —  É meu  aniversário, eu tomo as decisões.

 —  Ok –  disse ele. —  Mas não hoje à noite. A noite de hoje é por mi-

nha conta.

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Dei de ombros.

 —  Como quiser.

Caminhamos bastante no parque, passeamos por caminhos de ar-bustos sinuosos, até eu encontrar um descampado bom o suficiente. Boa

vista, sol, excelente proporção entre grama e terra. Fui até uma árvore

centenária, deitei de costas e olhei para o céu. Tentei apagar a imagem

mental do meu pai nos braços de outra mulher. De alguém em quem eu

confiava. De quem gostava. Pensar nela me dava enjoo.

Será que minha mãe desconfiava? Havia quanto tempo isso aconte-cia? Aquele beijo entre meu pai e a sra. Brenner definitivamente não pa-

recia o primeiro.

Eca, que nojo .

Ali estava um homem que eu havia admirado a vida inteira. Um

homem que sempre fora meu herói. Um herói para todos nós, em algum

momento. Ainda era, para Jack.

Foi então que decidi que jamais o perdoaria. Era imperdoável o que

ele estava fazendo. Traíra mamãe. Traíra Jack. Traíra até mesmo Hamlo-

af.

 Traíra todos nós.

 —  E hoje. Hoje dentre todos  os dias possíveis. —  Minha voz embar-gou e lágrimas queimaram os cantos dos meus olhos, mas não chorei.

Estava com muita raiva para chorar. —  O amor é uma porcaria total.

Pensei na separação temporária dos pais de Jacob no ano anterior.

Eu ficara ao lado dele, passando por aquilo tudo, e ele literalmente cho-

rara nos meus braços na tarde em que o pai se mudou. Nunca vou es-

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quecer o rosto de Jacob naquele dia. Parecia um menino, assustado e

confuso, achando que talvez pudesse ter feito alguma coisa para impedir.

Lembro de ter voltado de bicicleta para casa de noite e abraçado meus

pais, mesmo enquanto brigavam comigo por ter voltado uma hora depois

do horário combinado. Abracei-os com força naquela noite. Eu me senti

tão sortuda por ter uma família tão diferente das outras.

Éramos felizes. Seguros. Nada poderia nos separar.

Mas eu estava errada.

Estava errada em relação a muitas coisas, na verdade.

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Capítulo 18

16 candles make a lovely night

Patrick e eu ficamos naquele gramado o resto da tarde. Não fala-

mos muito. Ficamos debaixo do sol frio de novembro, deitados lado a la-

do, vendo as nuvens que passavam sobre nossas cabeças.

 —  Poodle   —  disse Patrick, apontando para uma delas, bem fofinha.

Ri.

 —  Você é cego? Essa é a nuvem com menos cara de poodle  que eu

 já vi.

 —  Uau, essa foi dura, Cream Cheese, fala sério.

 —  É tão óbvio  que parece um coelho —  falei, revirando os olhos. —  

Fala sério você.

As horas passaram. Vimos os skatistas passando, as cuecas total-

mente à mostra por conta daqueles jeans caídos. Vimos todas as babás

empurrando carrinhos com bebês e seus chihuahuas  com casaquinhos

mais chiques do que qualquer roupa minha.

Mesmo com todas essas distrações, minha cabeça idiota continuava

voltando para Jacob. Pensei nos intermináveis dias de verão que passa-

mos juntos naquele mesmo parque. Passeando. Jogando cartas. Cochi-

lando abraçadinhos. Acordando e sentindo os lábios dele nos meus.

Isso um dia vai parar de doer tanto?  

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Patrick não tinha uma resposta atrevida para isso. Talvez estivesse

finalmente fora da minha cabeça, como eu pedira, ou talvez soubesse

que eu não ia gostar da resposta.

Aos poucos, o dia foi acabando. A névoa subiu e o sol começou a

desaparecer lentamente na baía.

 —  Acho que chegou aquela hora do dia, mocinha  —  disse Patrick,

espreguiçando-se. Ficou de pé e limpou o jeans.

 —  Hora de quê? Não vou a lugar nenhum. Vou dormir no parque

hoje.

 —  Mas não vai mesmo —  Ele riu. —  Ah, não seja estraga prazeres.

Ele pegou meu braço, me levantou numa velocidade estonteante e

senti aquela descarga de eletricidade tão familiar debaixo das minhas

sapatilhas.

 —  Isso de novo, não —  resmunguei, fechando os olhos.

Levantamos voo como se fôssemos um foguete e senti a terra se

afastando sob nós. Não abri os olhos. Preferi não saber o quão alto está-

vamos.

Você nunca vai melhorar nisso, Anjo, se não der uma olhadinha em

volta de vez em quando .

Aí, tudo bem .

Abri um pouco um dos olhos. E confirmei que sim, estávamos  de

fato a 3 mil metros acima do chão.

 —  Não se atreva a me largar —  murmurei com os dentes cerrados.

Patrick nos levou para longe do parque, na direção da pizzaria.

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Ou foi o que imaginei.

Quando nossos pés tocaram o solo, um instante depois, senti areia

enchendo os sapatos, ainda quente do sol da tarde inteira. Mesmo em

novembro a areia permanecia aquecida. Isso é a Califórnia.

Reconheci os penhascos  —   altos, majestosos  —  e a maneira como

as ondas quebravam na beira da praia em linhas perfeitas, paralelas, en-

feitadas de espuma branca. Conhecia aquelas flores do campo de olhos

fechados, as pequenas pétalas vermelhas, laranja e lilás dançando no ar

marítimo, a maneira como surgiam em lugares engraçados, como entre

pedras e debaixo de conchas.

Era Mavericks. Um lugar aonde tinha ido milhares de vezes na vida.

Um dos meus preferidos em Half Moon Bay. A praia aonde Jacob me le-

vou para vários encontros românticos, e onde dormimos num saco de

dormir na última noite do verão passado. Mavericks foi o lugar em que

ele me seguiu no mar e onde me beijou sob três estrelas cadentes, umadepois da outra. Onde ele realmente roubou meu coração.

P.S. Quero meu coração de volta .

De todos os lugares aonde Patrick poderia ter me levado  –  de todos

os que significavam alguma coisa para mim  – , Mavericks seria o único

que não revisitaria por conta própria. Apesar de ser talvez o lugar que

mais precisava rever.

 —  Como você sabia?

Patrick encolheu os ombros e me lançou aquele sorriso peculiar.

 —  Palpite. —  Apontou para algo atrás de mim. —  Vire.

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Virei. E não acreditei no que estava vendo. Na praia, as silhuetas

recortadas pelo pôr do sol perfeito da Califórnia  —  incrível por conta da

neblina —  estavam minhas três amigas prediletas.

Emma, Tess e Sadie, todas de jeans e suéter, carregando travessei-

ros e sacos de dormir, abraçadas juntas numa canga. Perto delas, uma

pequena fogueira acesa e crepitante, emoldurada pelo céu cor de laranja.

Vê-las juntas ali novamente trouxe lágrimas de novo aos meus olhos.

Olhei para Patrick.

O que significa isso?  

Ele riu. É uma festa de aniversário. Para você .

Fiquei completamente sem palavras. Não fazia ideia do que dizer

nem de como agradecer a ele. Até tentei abrir a boca, mas não consegui

dizer nada.

Ele levou o dedo aos lábios.

 —  Estão te esperando. Hoje, minha querida, a noite é sua. Aprovei-

te.

Então, antes que eu tivesse tempo de entender o que estava aconte-

cendo, Patrick inclinou o tronco. Devagar, suavemente, encostou os lá-

bios no meu rosto. Meus olhos se fecharam, e, por uma fração de segun-

do, juro que senti um formigamento dentro do meu peito  –  borboletinhasdelicadas batendo as asas no lugar onde devia estar meu coração. Ape-

sar de isso ser impossível.

Uau .

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Quando abri os olhos, segundos depois, Patrick tinha sumido. De-

saparecido completamente no ar da noite, como se nunca tivesse estado

ali.

Nossa, eu precisava mesmo aprender a fazer aquilo.

Fui caminhando devagar pela areia, em direção a minhas amigas.

Desejei tanto poder correr até elas. Abraçá-las e me enroscar com elas,

nós quatro ali, assistindo o sol afundar lindamente nas ondas.

Quando me aproximei, escutei suas vozes com bastante clareza. Fa-

lavam de mim.

 —   Ainda não acredito que ela não está mais aqui  —   disse Tess.

Abraçou com força os joelhos e enfiou o nariz no suéter azul. —  Não pa-

rece que aconteceu de verdade.

Sadie concordou.

 —  Acho que nunca vou acreditar. —  Olhou para o mar por um mo-

mento, depois enterrou o rosto nas mãos. —  Sinto tanta saudade dela.

Meninas, estou aqui. Estou aqui .

 —  Nem consigo olhar para ele  —   disse Emma.  —  Cada vez que a

gente se cruza no corredor… —  Ela balançou a cabeça.  —  Que tipo de

cara não vai ao memorial da namorada?

Dei um passo atrás. Então elas não tinham visto Jacob escondido

nos fundos do auditório. Acho que ninguém viu.

 Tess travou o maxilar.

 —  Que canalha.

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tampa e tirou um diário de capa de couro vermelha, amarrada com um

laço preto de renda.

Ai . Meu. Deus .

Caí na areia do lado das minhas amigas, mortificada.

 —  Sério, meninas? Vocês estão realmente fazendo isso comigo?

Era o diário do meu namoro com Jacob. Cheio de poesias ruins e

cartas melosas de amor que eu escrevera mas nunca mandara —  porque

a) teria sido constrangedor demais e b) não eram realmente para ele,

eram para mim.

E porque assim ele teria provas concretas de que sou uma Imbecil

Completa .

Gemi e fiquei vermelha como um tomate. Definitivamente não que-

ria ver aquela porcaria de diário novamente.

 —  Meninas, vocês me permitem as honras? —  perguntou Sadie.

Uau, ela realmente vai fazer isso. Está pronta para ler!  

Cobri os ouvidos, me preparando para ser humilhada como nunca.

 —  À vontade —  disse Emma, apertando a mão de Tess.

Sadie desamarrou cuidadosamente o laço e guardou-o no bolso do

casaco. Depois ficou de pé e foi até a fogueira. Abriu o diário e sorriu. —  Brie —  disse ela. —  Isto é para você.

Então, começou a rasgar o caderninho.

Fiquei de queixo caído, vendo minha amiga lançar página a página

na fogueira, as fagulhas subindo no céu noturno enquanto as labaredas

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Uma dor esmagadora  —   mas, dessa vez, uma dor boa  —   tomou

conta do meu peito. Eu estava tão feliz de tê-las tido como amigas. Não,

mais do que feliz. A mais feliz  do mundo.

Amo vocês também .

Então, as três deram os braços. Foram até a beira d’água. E, quan-

do os últimos raios de sol sumiram no oceano —  lá longe, no horizonte — 

, minhas melhores amigas me mandaram beijos, secaram as lágrimas e,

finalmente, se despediram de mim.

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Capítulo 19

 every breath you take

A fogueira queimou noite adentro. Vi as estrelas piscarem e desa-

parecerem enquanto as pessoas dormiam, e senti uma paz estranha to-

mar conta de mim.

Acho que estou pronta .

Pronta para quê?  

Para voltar para a pizzaria .

Eu gostaria que fosse fácil assim, Anjo .

Um pouco antes do amanhecer, me debrucei sobre Sadie e apertei

sua mão. Os olhos dela se mexeram. Para minha surpresa, ela se sentou.

Espreguiçou. Inclinou o tronco à frente e conferiu seu celular. Depois,

esfregou os olhos, vestiu outro suéter e saiu rápida e silenciosamente de

seu saco de dormir.

Com cuidado para não acordar Emma e Tess, Sadie calçou seus All

Star Converse e foi caminhar.

Andei ao lado dela.

Fomos em direção ao norte da praia, até finalmente darmos a volta

nas dunas. Ela pegou um caminho familiar até as mesas de piquenique.

Um lugar onde havíamos ido milhões de vezes, onde meninos e meninas

do colégio se reuniam para fazer churrascos e jogar vôlei em feriados e

finais de semana durante o verão.

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Sadie escolheu uma mesa e se sentou, cruzando as pernas. Sentei

ao lado dela no banco. Mesmo com sono ela era linda. Cabelo escuro, en-

caracolado, comprido. Pele bronzeada, perfeita. Os olhos castanhos mais

calorosos do mundo. Cheios de brilho. Cheios de vida.

Queria que você pudesse me ver. Queria que soubesse que estou

aqui .

 Juntas, Sadie e eu vimos as primeiras luzes da manhã cruzarem o

céu em tons pastéis –  uma sinfonia de violetas, azuis e rosas de bailari-

nas. Um nascer do sol perfeito . Emma e Tess ficariam tristes por terem

perdido isso. Preguiçosas. Aquelas duas provavelmente seriam capazes

de dormir para sempre se pudessem.

 —  É tão bonito —  disse Sadie, quebrando o silêncio.

E começou a chorar.

 —   Sadie?  —   Eu me aproximei quando ela começou a soluçar de

uma maneira que eu jamais vira.

 —   Ah, minha linda.  —   Senti um nó na garganta.  —   Não precisa

chorar. Estou bem aqui.

 —  Brie . —  Sua voz estava cheia de dor. —  Eu sinto tanto. Tanto.

Foi então que me dei conta de como minha morte fora dura para

ela. Para todas elas. Ir embora era uma coisa. Mas ser deixada devia sermuito pior.

 —  Está tudo bem, está tudo bem, calma, não precisa ficar assim —  

sussurrei, acariciando as costas dela. Envolvi-a com os braços, mesmo

sabendo que ela não podia sentir, enquanto lágrimas quentes rolavam

pelo seu rosto e escorregavam nas frestas da mesa de madeira.

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Vai ficar tudo bem. Vai ficar tudo bem .

 Talvez fosse porque meus olhos estavam fechados. Ou talvez porque

ela chorava muito alto. Seja como for, não percebi a pessoa vindo pelas

dunas. Não ouvi passos na areia.

 —  Sadie?

Aquela voz .

Virei o rosto e senti minha amiga se desvencilhar do meu abraço.

Ouvi-a chorar e soluçar ainda mais alto. Depois, assisti, em movimentos

devastadores de câmera lenta, minha melhor amiga no mundo inteiro

correr diretamente para os braços estendidos de Jacob Fischer.

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Capítulo 2

 what becomes of the broken hearted?

Minha alma ficou completamente dormente. É ela. É Sadie .

 —  Não  —  sussurrei, caindo de joelhos enquanto assistia meu pri-meiro amor pegar as mãos da minha melhor amiga. Não tenho certeza de

quanto tempo ele a abraçou, não sei ao certo quando eles finalmente se

afastaram e ele voltou para o carro e ela para o lado de Emma e Tess.

Não sei nem mesmo quanto tempo Patrick demorou para me encontrar

ali, enroscada em posição fetal, os olhos fixos no horizonte a muitos qui-

lômetros de distância. O tempo não tinha mais a menor importância.Porque eu estava no inferno.

 —  Você deve tentar não pensar nisso, Anjo —  disse Patrick quando

finalmente me pegou no colo como se eu não fosse nada e me levou de

volta para a pizzaria.

 Tudo que eu conseguia enxergar eram os braços de Sadie entrela-

çados aos de Jacob. Os olhos dela apertados com tanta força. As mãos

dele na base das costas dela. Sadie provavelmente sempre fora apaixo-

nada por ele. E ele por ela.

Não. Chega. Vocês pertencem a MIM. Os dois .

É estranho descobrir-se de repente obcecada por cada momento

passado com a melhor amiga. Revivendo as milhões de vezes em que

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uma dormiu na casa da outra, as gargalhadas, os papos de menina, o

assunto garotos, os assuntos bobos (a falta de assuntos bobos), a con-

versa sobre sexo, as brigas, as pazes cheias de soluços, os passeios de

bicicleta nos finais de semana, os abraços de aniversário, as músicas da

Britney Spears cantadas em conjunto, os torpedos na hora do almoço, as

compras depois da aula, os telefonemas de quatro horas sobre Tudo e

Nada ao mesmo tempo.

 Todas essas lembranças ainda tão familiares. Tão significativas. Fo-

ra o fato de que nenhuma delas significava o que você imaginava signifi-

car. Que, na verdade, tudo não passava de uma grande M.E.N.T.I.R.A.,

com letras maiúsculas.

Não significavam nada. As coisas boas, as coisas ruins, as mais ou

menos, as coisas que você não conta nem para sua irmã (se tiver uma). E

apesar de você ainda querer desesperadamente acreditar que, no fundo,

nada, NUNCA se interporia entre você e sua melhor amiga, agora tem

que encarar a realidade de que a amizade, do começo ao fim  —  tudo, ab-

solutamente tudo — , não passava de uma grande piada.

E o que é pior?

A piada era você .

Aquela era Sadie. Minha melhor amiga. Minha amiga mais antiga. A

amiga que me conhecia há mais tempo e melhor do que qualquer um.

Ela me conhecia de trás para frente, de cabeça para baixo, praticamente

melhor do que eu mesma. No ombro de quem chorei quando meu peri-

quito Crackers fugiu e nunca mais voltou. A amiga que deitava comigo

no telhado de casa e fazia pedidos para as estrelas cadentes depois que

meus pais iam dormir. A amiga com quem eu ri uma noite inteira uma

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vez, quando descobrimos que infelizmente (hum, felizmente?), uau, os

pais dela assinavam o Playboy Channel . A amiga que me ensinou um mi-

lhão de truques com o baralho, que foi comigo no enterro da minha avó

Rita e que sempre me apoiava, não importava a situação.

Sadie foi a pessoa para quem liguei imediatamente depois que en-

trei flutuando pela porta da frente e subi para o meu quarto naquela noi-

te do verão passado: 11 de agosto de 2010. Cinquenta e cinco noites an-

tes de eu deixar a terra, quando meu coração ainda batia, minhas bo-

chechas ainda eram quentes e, por mais que eu tentasse impedir, não

conseguia parar de tremer. No bom sentido.

A noite em que perdera minha virgindade.

Sadie atendeu o telefone e adivinhou imediatamente, sem que eu

precisasse dizer uma palavra.

 —  Rolou, não rolou? —  sussurrou ela.

 —  Talvez sim. —  Ri. —  Talvez não.

 —  Meu Deus do céu, rolou. Como foi? Caramba, Brie, como foi?  

As mãos dele. AimeuDeus, as mãos dele em cima de mim. Os beijos.

Doces, delicados, profundos, afobados, perfeitos .

 —  Bom assim? —  disse ela, parecendo impressionada.

Deixei escapar uma gargalhada, mas tapei a boca com a mão, caso

minha mãe, Jack ou meu pai estivesse ouvindo atrás da porta.

 —  Doeu?

Jesus, doeu .

 —  Não.

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 —  Safadinha, não acredito!

 —  Bem, talvez um pouco.

 —  Um pouco quanto? —  Sadie! —  gritei. —  MUITO, tá? Satisfeita?

 —  Meu Deus do céu. —  Pude imaginar minha amiga balançando a

cabeça do outro lado da linha. —  Estou morta de inveja de você agora.

Sem brincadeira. Com tanta inveja que resolveu roubar meu namora- 

do de mim .

Olhei meu reflexo no espelho do quarto para ver se eu estava dife-

rente. Minhas bochechas estavam quentes e rosadas. Minha pele, pul-

sando. Será que as pessoas descobririam?

 —  Ele disse? —  perguntou ela.

 —  Disse o quê?

 —  Fala sério, Brie, o que você acha ?

As mãos dele no meu cabelo. Os olhos me olhando profundamente

demais para ser verdade. As palavras queimando dentro de mim .

Eu te amo .

Ele tinha dito. Disse e era de verdade.

Ou não?  

 —  Alô?

Deitei na cama, sorrindo.

 —  Disse. Disse, sim.

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Ela não falou por alguns segundos e imagino o motivo. Pela primei-

ra vez na vida, uma coisa muito importante acontecia na minha vida an-

tes de acontecer com ela. Durante todo o tempo em que fomos melhores

amigas, Sadie sempre vivia as coisas primeiro. Perdeu o primeiro dente

antes de mim. Aprendeu a andar de bicicleta antes de mim. Ficou mens-

truada um ano antes de mim, no sétimo ano. E, apesar de nenhuma de

nós precisar dizer nada, sabíamos que ela seria a primeira a se apaixo-

nar.

Mas não foi assim. Não dessa vez. Porque eu ganhei. Eu fui a pri-

meira. Uma vez na vida, cheguei lá antes de Sadie Russo.

Uma única vez .

Passamos a hora seguinte papeando e rindo, comentando c-a-d-a

detalhe  –  apesar de eu ter treino de mergulho às 7 horas da manhã no

dia seguinte. Mas eu não estava nem aí. Podiam me fazer dar um milhão

de voltas numa piscina olímpica e eu ainda teria aquele mesmo sorrisoidiota no rosto o dia inteiro.

Por quê? Porque quando você está apaixonada o mundo fica mais

brilhante. O ar tem perfume de flores, seu cabelo fica mais sedoso, e, de

repente, você se pega sorrindo para bebês, estranhos, casais de velhos

caminhando de mãos dadas na praia. Você sorri porque agora conhece

um dos Maiores Segredos da Vida. Está graduada com nota máxima. En-

trou oficialmente para o grupo dos modernos e maneiros. E, de repente,

quando as pessoas olham para você, não conseguem deixar de reparar

que alguma coisa está diferente.

 —  Você mudou o penteado?

Não .

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 —  Roupa nova?

Nada disso .

 —  Lentes de contato?Tente novamente .

Você sorri para as pessoas e nem assim elas conseguem identificar

o que é. E quando se afasta, perguntam-se secretamente desde quando é

tão bonita.

“It must have been love, but it's over now .

It must have been good, but I lost it somehow” .

Lágrimas quentes rolaram pelo meu rosto, queimando minha pele.

Incontroláveis. Inesgotáveis.

 —  Shh —  sussurrou Patrick. —  Estou aqui, Anjo. Estou aqui.

Como podiam? Como podiam fazer isso comigo?  

A dor no meu peito voltou  —  a ferida aberta, fresca e pesada. Na

verdade, descobri que o inferno não é uma chama queimando, fogo e mi-

séria. É muito, muito pior do que isso. O inferno é quando as pessoas

que você mais ama alcançam a sua alma e a arrancam de você. E fazem

isso porque podem.

Senti meu peito apertar.Há quanto tempo isso vem acontecendo?  

Uma semana? Um mês? Talvez mais?

Senti um terremoto acontecendo dentro da minha cabeça, sirenes

piscando atrás dos meus olhos. Bati com punhos cerrados na areia, gri-

tei, mas minhas palavras se perderam entre os guinchos famintos dos

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albatrozes e as ondas matinais do Pacífico. E havia areia grudada entre

os dedos dos meus pés. Realmente odeio isso.

De repente, tudo começou a fazer sentido. Cada olhar estranho e

cada silêncio que Jacob e eu compartilhamos. Cada vez que ele se afas-

tou quando tentei pegar sua mão ou enfiar a minha no bolso de trás do

seu jeans. Soube ali que estava certa. Tinha sentido que alguma coisa

mudara entre nós nas semanas que antecederam a minha morte —  lenta

e progressivamente — , mas não quis admitir. Uma distância se avoluma-

va, fria e cinza. Escolhi esperar e assistir enquanto as nuvens de tempes-

tade se agrupavam, em vez de buscar abrigo diante do primeiro sinal de

chuva. E paguei o preço da espera, porque a tempestade se transformou

num furacão.

Meu instinto tentou me avisar o tempo todo. Eu não era paranoica

nem louca. Jacob mentiu para mim. Sadie mentiu para mim. Ouviu, es-

perou e observou durante meses e meses enquanto eu me apaixonava

por ele. Colecionou meus segredos, um a um, para usá-los contra mim

mais tarde.

 —  Dói —  sussurrei. —  Dói tanto.

 —  Shhh, estou aqui com você —  disse Patrick, com voz suave.

Senti o vento no meu rosto e no meu pescoço enquanto ele me le-

vantava nos braços.

Meus olhos estavam grudados no lugar, a poucos metros de distân-

cia, onde as pegadas de Sadie e Jacob se misturavam na areia.

Não consigo respirar .

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 —  Consegue. —  Patrick beijou delicadamente a minha testa. —  Vo-

cê precisa.  —  Então, num movimento ágil, seus pés deixaram o chão e

senti a terra se afastar de nós.

Aubrie, abra os olhos .

Respirei fundo e abri. Então, encostei a cabeça no peito de Patrick e

vi meu antigo mundo perfeito pegar fogo lentamente.

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Capítulo 21

1, 2, 3, 4, tell me that you love me more

No meu pedaço de céu, todos os dias tinham o mesmo cheiro. Mi-

nhas horas eram preenchidas com berinjela assada, cogumelos, Sprite

borbulhante e picolés Wendy’s (pedido pessoal meu). Meus minutos eram

feitos de pisos de linóleo, manchados e gastos nos pontos onde cadeiraseram arrastadas décadas após décadas. Meus segundos chiavam como a

estática naquela televisão pequena e velha, de imagem de péssima quali-

dade  –   a mesma para a qual eu vira Patrick olhar fixamente por horas

infindáveis, sem piscar. Os ventiladores do teto giravam e rangiam pre-

guiçosamente acima da minha cabeça, lembrando-me das férias de ve-

rão, das festas na piscina e das limonadas supergeladas que jamaiscompartilharia com minhas melhores amigas.

Não que eu me importasse.

Melhores amigas são superestimadas .

Claro, havia muitas coisas que me distraíam da minha recente des-

coberta. Ensinei a mim mesma a cortar guardanapos em pedaços bem

pequeninhos, como se fossem flocos de neve. Aprendi a jogar futebol

americano e a passar lápis nos olhos, graças aos meus novos amigos, o

 Jogador de Futebol e a Dama Gótica. A Senhora das Palavras Cruzadas

até passou a me proteger e me ajudou a completar meu primeiro quebra-

cabeças.

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A verdade era que, no meu pedaço de céu, sempre havia um monte

de pizza para comer. Sempre muitas ondas para surfar. Sempre muito

tempo para perder. Mas o que era meio chato é que isso não necessaria-

mente curava minhas feridas.

Às vezes, tudo isso até fazia com que piorassem.

 —  Quer dar uma volta, ou qualquer coisa do gênero?  —  Patrick es-

tava inquieto. Entediado.

 —  Não.

 —  Quem sabe nadar um pouco?

 —  Negativo.

 —  Um passeio de pônei?

 —  Não, obrigada.

 —  Quer namorar?

 Tirei os olhos do meu livro.

 —  Oi?

Patrick riu.

 —  Achei que isso talvez chamasse a sua atenção.

 —  Você é doido.

 —  Ah —  soltou ele — , que amor. Você é um amor. —  Olhou para o

Garoto do Nintendo e para a Garota das Pulseiras.  —  Viu? Ela gosta de

mim. Vocês dois são testemunhas.

 —  Tenho certeza de que ela te odeia  —  respondeu o menino mono-

tonamente, os dedos flutuando no teclado do jogo.

Patrick bufou e voltou a olhar para mim.

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 —  Crianças. Não sabem de nada, não é?

Ignorei o comentário e li o último parágrafo. Fechei o M&E e empur-

rei o livro na mesa.

 —  Pronto. Terminei.

 —  E? —  perguntou ele. —  O que você aprendeu hoje, Gafanhoto?

 —  Você quer dizer, além do fato de você cheirar a pepperoni?

 —  Muito engraçado.

 —  Nem me fale.

 —  O que mais  você aprendeu?

 —  Que sua ma… 

 —  Não vem dizer que minha mãe tem cheiro de pepperoni.

Fiz uma careta.

 —  Bem, ela tem.Ele suspirou e apontou para o meu colar.

 —  Gostei, diga-se de passagem. Já estava para te dizer isso há um

tempo.

Segurei meu colar e balancei o coraçãozinho de ouro nos dedos.

Ele me observou, em silêncio. —  Onde você o conseguiu?

Não respondi.

 —  Tema difícil?

 —  Quero ir na ponte —  falei, de supetão.

 —  Oi? —  Ele pareceu assustado. —  E para quê, exatamente?

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 —  O quê? —  Ele me interrompeu. —  Você só quer o quê? Ver todo

mundo de novo? Ver que estão felizes sem você? Acha que pode aguentar

isso? —  Recostou na cadeira. —  Eu não.

 —  Não lembro de ter pedido sua opinião —  respondi.

 —  Bem, e eu  não lembro de você me pedindo nada quando resolveu

ficar se deprimindo por aí, meses e meses. Porque isso   tem sido muito

divertido para mim.

Meses e meses .

Ele tinha razão. O tempo estava passando a nossa volta. Uma árvo-

re fajuta de natal, de plástico, ainda podia ser vista no canto da janela da

pizzaria, apesar de já ter passado a festividade. Eu estava morta havia

tempo suficiente agora para que as pessoas já estivessem se esquecendo

de mim. Podia ver meninos mais novos vendo minha foto no anuário do

colégio. Pensei neles achando que eu parecia um pouco datada. Expira-

da. Como uma calça pink  que comprei e amava no oitavo ano, mas que

 jamais usaria agora, nem morta.

Droga .

 —  Tudo bem —  retruquei. —  Mil perdões por acabar com a sua di-

versão. Porque, obviamente, deve ter tanta coisa acontecendo nessa sua

agenda lotada… 

Ele ergueu as mãos.

 —   O quê? Você quer amarrar essas pobres crianças no trilho do

trem? Afogar todo mundo no mar? Jogar de um abismo?

Eu lhe dei um enorme sorriso.

 —  Que bom que a gente finalmente está falando a mesma língua.

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 —   Fala sério  —   resmungou ele.  —  Eu sei que você está magoada,

com o coração partido e tudo mais, mas não acha que já é hora de supe-

rar, deixar para lá? De viver e deixar viver, qualquer coisa por aí?

 —  Superar? Deixar para lá?  —  perguntei. —  Como você pode dizer

uma coisa dessas? Você sabe o que eles fizeram comigo.  —  Balancei a

cabeça, contrariada. —  Não importa o que você diga, não vou deixar que

escapem ilesos. Eles não merecem escapar ilesos.

 —  Escuta aqui, Pequena Miss Atração Fatal. —  Patrick me encarou,

sério. —  Sou totalmente a favor de trocos , mas você já se divertiu. O que

está feito, está feito. Você precisa aceitar isso, mais cedo ou mais tarde, e

não vou continuar encorajando seus métodos de espionagem nem seus

hormônios enfurecidos enquanto isso. —  Fez um sinal indicando o livro.

 —  Você não aprendeu nada, não é?

 —  Ah —  respondi. —  Pelo contrário. Acabei de ler que Interação Bá-

sica do Objeto tem menos a ver com controlar a coisa do que controlar asi mesmo. E qualquer objeto encontrado e coletado na terra se torna

propriedade da “alma” de quem o encontra. 

É uma regra bem legal, na verdade. Provavelmente explicaria várias

meias desaparecidas e diamantes roubados do mundo.

 —  Como você é astuta —  disse Patrick.

 —  E também aprendi que você nunca deve voar de estômago vazio.

 —  Peguei meu picolé e dei uma lambida generosa, fazendo bastante ba-

rulho e estardalhaço. —  Então, agora que cuidamos disso… 

 —  Agora nada  —  falou.  —  Vou dizer pela última vez: você não vai

voltar ainda.

 —  Pela última vez, VOCÊ não manda em mim.

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 —  Quem disse?

 —  Você. Eu faço as regras, lembra? Estou pronta quando disser que

estou pronta. Se você não quiser ir comigo, tudo bem. Porque não preci-

so de você. —  Dei outra lambida lenta no sorvete, queimando minha lín-

gua com o chocolate gelado e doce. —  Não preciso de ninguém .

 —  Uau. —  Patrick balançou a cabeça. —  Quanto sangue-frio, Chee-

tos.

 —  Irônico, não é?

 —  Ah, dane-se  —   respondeu Patrick. Ele tirou o picolé da minha

mão, enfiou-o na boca e comeu o último pedaço.

 —  Não há lugar como a nossa casa.

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Capítulo 22

 every time I see you falling, I get down on my knees and

 pray

Dizem que quando você cai de algum lugar muito alto –  tipo avião,

arranha-céu ou ponte, por exemplo  – , não tem muito tempo para ficar

em pânico. Não tem tempo de processar o que realmente está acontecen-

do enquanto cai, e quando finalmente bate o chão (eca), já está pratica-

mente morto, por conta do choque da queda.

Bem, adivinhem meninos e meninas. Isso  é mentira.

Grande mentira.

Desta vez, enquanto eu caía, os segundos pareciam andar mais de-

vagar. Eu sabia que o vento gritava em volta de mim, mas não conseguia

ouvir. Sabia que meus braços e pernas estavam pendurados no espaço

vazio, mas não conseguia sentir. Sabia que aquela água escura se apro-

ximava rapidamente de mim como um estacionamento, mas estava com

medo demais para olhar. Na minha vida inteira, nunca passei por nada

tão apavorante.

Finja que é um jogo , ouvi Patrick sussurrar. E assim será .

Um JOGO? Você PIROU?  

 —   Coma vento, Cheetos!  —   gritou. E passou zunindo na minha

frente, me dando uma fechada.

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 —  Ei! —  gritei. —  Cuidado!

De repente, tive uma sensação familiar crescendo debaixo da minha

pele e tomando conta das minhas veias. Minha velha tendência competi-

tiva voltara, automaticamente.

Você não teve cuidado. Vai ser derrubado, Garoto Morto .

Estendi meus braços na frente do corpo e fui adiante, girando além

dos cabos de suspensão cor de laranja e das barras gigantescas de ferro

com rebites do tamanho da minha cabeça.

 —   E mais uma coisa!  —   gritei, me aproximando dele.  —   Não me

chame de Cheetos !

O oceano continuou vindo em minha direção, cada vez mais perto.

Cem metros .

Trinta .

 —   Uhuuuu!  —   uivou Patrick.  —   Eu preciso tanto, Cheeseburger!

Preciso tanto de velocidade!

Vinte e cinco .

 —  Lá vamos nós! —  Ele puxou os joelhos ao peito e apontou o quei-

xo para baixo. —  Bola de canhãããão!

Ele estava totalmente enlouquecido. Caímos com força total e rapi-dez estonteante. Eu sabia, por conta da prática de mergulho, que se não

atingisse a água no ângulo certo, a situação ficaria preta. Tentei fazer

meu corpo ficar o mais reto e vertical possível. Cabeça para baixo, braços

 juntos, dedos do pé apontando para a lua.

Dez metros .

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Fechei os olhos e me preparei para a queda.

Um metro .

Por um breve momento, tudo que consegui ouvir foi o som das bati-das do meu coração  —  ou do que eu lembrava dele. Então, de repente,

eu estava me precipitando dentro de um buraco, um vórtice feito de pla-

netas, estrelas e do Pacífico atemporal, girando de cabeça para baixo pa-

ra dentro de uma noite negra, sem estrelas. Uma máquina de lavar in-

tergaláctica em velocidade máxima.

Mas, enquanto me deixava ir —  enquanto me entregava à escuridãototal — , um pensamento único e furioso iluminou minha mente.

Jacob .

Se eu não podia tê-lo, ninguém poderia.

 —  Ei, Cheetos, você está viva? Bem, não viva-viva. Você sabe o que

eu quero dizer.

Pressionei meu estômago e gemi.

 —  Por que você nunca para de falar?  —  Meu corpo inteiro estava

dormente. Meu cabelo ensopado e embaraçado, meus braços e pernas

tortos, moles como geleia. Tentei abrir os olhos, mas a luz ainda estava

forte demais.

 —   Como você se sente sendo um ovo estragado?  —  provocou Pa-

trick. —  Eu diria que a forma foi boa no geral, mas seu canivete não che-

ga aos pés do meu canhão. Da próxima vez, você devia tentar ser um

pouco mais criativa.

 —  Vou pensar nisso, pode deixar. —  Tirei um bolo de algas do meu

rosto. Abri devagarzinho os olhos e me dei conta de que havíamos sido

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levados pelas ondas até a praia de Crissy Fields, quase na porta do Pre-

sídio.

 —  Bem, isso é interessante —  disse Patrick.

 —  O quê?

 —  Eu não fazia ideia de que aqui era uma praia de nudismo. A Cali-

fórnia realmente mudou muito da minha época para cá.

 —  Do que você está falando? Não é uma praia de nudismo.

Mas, de repente, senti uma ligeira brisa refrescar meu bumbum.

Meu DEUS, estou NUA .

 —  Cadê minhas roupas?  —   gritei, tentando desesperadamente me

cobrir. —  Vire o rosto, Patrick!

 —  Não precisa se preocupar.  —  Ele fechou os olhos.  —  Eu não vi

nada.

Levei a mão ao pescoço e respirei bastante aliviada quando percebi

que meu colar ainda estava onde deveria estar, graças a Deus. Então,

um caranguejo pequenininho saiu de debaixo do meu braço, fazendo

com que eu estremecesse e desse um pulo.

 —  Viu? Eu disse que você não estava pronta para voltar —  disse Pa-

trick. —  Mal chegamos e você já está toda apavorada. —  Ele suspirou. —  

Mulheres.

Levei uns segundos para vasculhar a praia com os olhos, mas fi-

nalmente vi meu vestido, molhado e amassado, enrolado num pedaço de

madeira, alguns metros de onde as ondas me deixaram na areia. Olhei

furtivamente para Patrick.

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 —   Fique exatamente onde está, meu amigo, ou vai sofrer conse-

quências. Ouviu bem?

 —  Oi?

 —  Eu perguntei: ouviu bem?

 —  Ouvi o quê?

 —  Você é surdo? Perguntei se você ouviu o que eu disse!

Ele riu meio de lado.

 —  Ouvi, Cheetos, ouvi. Você realmente precisa relaxar.

Fiquei de pé e fui cuidadosamente até onde estava minha roupa, fa-

zendo o possível para cobrir meus peitos. Não que tivesse muita coisa

para esconder, mas, mesmo assim. Peguei meu vestido ensopado e sacu-

di para tirar a areia, as algas. Depois de torcer e balançar, espremer e

abanar, finalmente consegui colocá-lo no corpo de novo. O único pro-

blema foi que o vestido encolheu.

Muito.

 —  Você está… linda —  disse Patrick quando permiti que abrisse os

olhos.

Fiz uma careta.

 —  Não que você não seja. Sempre bonita, eu quis dizer. Porque vocêé.

Senti meu rosto corar quando cobri meu bumbum com o vestido,

agradecendo cada minuto por não ter engordado depois de tanta pizza e

tanto picolé. Patrick podia ser irritante, mas continuava sendo um meni-

no. E, eu não podia negar, bem gatinho. Eu me acostumara às provoca-

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ções constantes, mas essa era a primeira vez que ele me elogiava de ver-

dade.

Sem falar que me vira nua.

Pode me matar.

 —  Será que você poderia, é, fechar para mim? —  resmunguei, segu-

rando as costas do vestido.

 —  Claro —  concordou ele. —  Com certeza eu posso fazer isso. —  Ele

deu a volta e senti seus dedos no meu pescoço quando levantou cuida-

dosamente meu cabelo.

De repente, o ar cheirava a fumaça. E minha pele pegava fogo.

 —  Não banque o engraçadinho. —  Avisei.

 —  Nada que eu não tenha visto antes —  disse ele, seguro. —  Afinal,

eu tive três irmãs.

Três irmãs?  

Por um breve momento, quase pude vê-las. Duas mais velhas, as

duas de cabelo castanho claro, e uma mais jovem, loura. Os nomes flu-

tuaram na minha cabeça.

 Julia, Kate e Alex.

Mas como eu poderia saber disso?   —  Acho que estou… quase… conseguindo . —  Com um puxão final,

ele fechou meu vestido. Patrick saiu de trás de mim, parecendo satisfei-

to. —  Seu desejo é uma ordem.

 Tentei pensar numa resposta razoavelmente tranquila, mas minhas

bochechas coraram ainda mais.

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Brie, não seja boba. Diga alguma coisa. Diga alguma coisa .

 —   Tudo bem com você?  —   perguntou ele.  —   Está com uma cara

meio estranha.

 —  Tudo bem —  falei. —  Só um pouco tonta. Da queda.

O sol se escondeu atrás de uma nuvem, fazendo sombra no rosto

dele. Estremeci levemente e olhei para cima. Em breve teríamos neblina.

 —  É melhor a gente ir andando.

Ele fez uma pausa.

 —  Tudo bem, Queijo Ralado, você manda.

Estendi lentamente o braço e peguei a mão dele, visualizando nosso

destino específico, como ensinava o M&E.

 —  Lá vamos nós.  —  Eu me concentrei no lugar exato onde queria

que aterrissássemos. Queria ter comido mais um pedaço de pizza antes

de partir.

Mas o vento ganhou força, o sol desapareceu e senti o mundo girar

debaixo dos meus pés, e, BUM! Caímos num gramado, um em cima do

outro.

 —  Boa  —   gemeu Patrick.  —  Você tem talento para a coisa. Agora,

será que dava para sair de cima de mim?

 —   Desculpa.  —   Rolei para o lado e tentei me endireitar. Respirei

fundo e passei os olhos pelo campo, absorvendo a terra, a grama e o céu.

 —  Estamos de volta. —  Sorri. —  Deu certo.

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A viagem foi um tanto tortuosa, mas o que importava era que eu ti-

nha sido bem-sucedida em nos trazer de volta a Half Moon. Eu me senti

incrível. Totalmente livre e 100 por cento no controle.

Melhor. Voo. De todos .

 —  Não quero me gabar —  disse eu — , mas estou ficando muito boa

nisso.

Patrick estava ocupado demais conferindo os arredores para me

responder. Não o culpava por isso. A costa da Califórnia estava acordan-

do de seu sono invernal. As montanhas começavam a florescer e as péta-las das flores brilhavam à luz do sol. Amores-perfeitos, papoulas, lírios,

não-me-esqueças azuis e amarelos.

Rá. Posso pensar em duas pessoas em particular que poderiam rece- 

ber um buquê gigante DESSAS FLORES na porta de casa .

As árvores pareciam estar mais altas, espichando seus galhos dor-

minhocos em direção à luz. O ar estava doce e cheio de primavera.

Primavera .

E agora não havia mais nada no meu caminho. Quer dizer, fora as

filas e filas de lápides.

 —  Destino alcançado —  falei, sentindo-me em casa. Não que deves-

se estar surpresa.

Havíamos aterrissado no cemitério.

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 Tentei fazer o que ele dizia. Encarei nossas mãos, enfiadas na terra.

 —  Não consigo —  sussurrei. —  Não sinto nada.

 —  Você precisa se controlar  —  falou. —  Lembre do que diz o livro.Não se trata de controlar a coisa em si. E sim de controlar a si mesmo .

Mas como? Como posso controlar o que sinto?  

 —  Finja, se for o caso —  disse ele. —  Finja até sentir de verdade.

Passei as costas da minha mão livre no rosto e respirei fundo. Con-

centrei-me para sentir. Concentrei-me para ter consciência de tudo ao

meu redor. Controle .

Senti os dedos de Patrick entrelaçados aos meus. Nossas mãos

eram uma mistura enlameada de terra, areia e lágrimas.

 —  Não consigo.

 —  Consegue.

 —  Estou tentando.

 —  Tente com mais vontade.

Fiz tanta força para me concentrar que achei que fosse ter um

aneurisma. Olhei fixamente para o chão, sofrendo desesperadamente pa-

ra me conectar com meu mundo antigo. Viajei profundamente dentro de

mim, usando todas as forças que tinha.Mesmo assim, não consegui.

Baixei a cabeça, me odiando.

Então, de repente, alguma coisa me mordeu.

 —  Ai! —  Puxei minha mão. —  O que foi isso?

 —  Formiga? —  sugeriu Patrick.

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Olhei para a pequena marca no meu dedão, já inchado e vermelho.

Olhei para Patrick, com olhos arregalados.

 —  Ela me mordeu . Me mordeu e eu senti.

Ele sorriu.

 —  Legal, não é? Eu sabia que você ia conseguir… 

Eu me joguei em cima dele, surpreendendo aos dois.

 —  Uau —  sussurrou ele. Deixou que eu o abraçasse por uns instan-

tes, depois, lentamente, também me abraçou. Por meio segundo, nossos

rostos ficaram a poucos centímetros de distância, e eu não conseguia me

lembrar do motivo de termos voltado a Half Moon. Só conseguia pensar

na sensação do coração dele batendo contra o meu peito. Quente e cons-

tante.

E, enquanto nos abraçávamos em frente ao meu túmulo, uma lem-

brança cruzou minha mente. Um menino e uma menina, correndo juntos

por um campo infindável de flores do campo. O som da gargalhada deles

ecoando num céu noturno, um céu espelhado.

De repente, senti um calafrio. A memória não era minha.

 —  Temos companhia. —  A voz de Patrick me fez dar um pulo e senti

os braços dele afrouxarem.

Segui seu olhar e vi uma silhueta se aproximando. Ela tinha cabelo

escuro e corpo esguio. Aqueles olhos castanhos, vivos. Brilhantes. Eu

conhecia aqueles olhos de algum lugar.

Sadie.

 —  O que ela está fazendo aqui?

Patrick balançou a cabeça.

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 —  Acho que você tem mais visitas do que imaginava.

As mãos dela estavam carregadas de flores do campo e margaridas.

Desejei poder jogá-las no rosto dela.

 —  Pratique um pouco. —  Ouvi Patrick dizer. —  Quem sabe?

Fiquei de pé e encarei Sadie. Senti meu rosto corar enquanto ela se

aproximava.

 —  O que você quer?

Ela parou a um metro do meu túmulo, olhando através de mim.

 —  Oi, Brie —  sussurrou ela. —  Sei que você deve me odiar… 

 —  Verdade —  respondi. —  Odeio.

 —  Mas sinto muita saudade de você. Eu sinto tanto, tanto. Odiei ter

que esconder as coisas de você. Mas não era eu quem devia contar.

 —  Nem ouse pensar em pedir desculpas. Nem… 

 —  Ela está tentando —  interrompeu Patrick, com voz suave. —  Você

devia ouvir.

Encarei-o.

 —  Tudo bem. —  Ele balançou a cabeça. —  Guarde a mágoa. A festa

é sua.

Ela parecia a mesma de sempre. O mesmo cabelo perfeito. A mesma

pele perfeita. As sobrancelhas lindas de morrer. Odiei ter que admitir,

mas ela era linda. E, apesar de estar nitidamente chateada, dava para

ver que os meses haviam feito bem a ela. Dava para ver que estava feliz.

Droga. Eu me pergunto por quê .

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Observei Sadie encarar minha lápide. Procurei qualquer sinal de

emoção  —   culpa, sofrimento ou alguma outra coisa  —   e me perguntei

como eles dois tinham conseguido manter segredo. Debaixo do meu na-

riz. E, provavelmente, do nariz de todo mundo. Emma e Tess claramente

não faziam ideia de nada disso na noite da fogueira. Senti enjoo ao pen-

sar nisso; na traição de Sadie a elas também. Enjoo ao pensar que ela

fingia me amar.

Porque, me desculpe, mas não   é assim que a gente trata alguém

que ama.

Não deve ter sido fácil. Eles devem ter tido que se esconder muito.

Devem ter mentido muito. Beijos roubados. Beijos que ela roubou de

mim, muito obrigada.

Nossa, ela tinha muita coragem para aparecer aqui. Para tentar fa-

lar comigo quando eu não podia responder. Quando não poderia dizer

que ela não era nem um pouco bem-vinda em meu território.

 —  Território?   —  Patrick me gozou.  —   Está falando sério? Cheetos,

você acabou de sair do Amor, sublime amor .  —  E começou a fazer uma

dancinha, cantando uma música conhecida da Broadway.  —  “Toniiiight,

we’ll get them back t oniiiight .” 

Não pude evitar um sorriso. Pequeno, mas… um sorriso. 

Então, o telefone de Sadie tocou. Ela enfiou a mão dentro da bolsa

marrom da Coach que tinha comprado comigo no ano passado.

 —  Um pouco fora de moda, não, Sádica? —  eu disse.

Patrick levantou uma sobrancelha.

 —  Eu posso ver uma sádica aqui, e definitivamente não é ela.

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Sadie finalmente puxou o iPhone.

 —  Oi, amor. E aí?

AMOR?  

Um segundo de silêncio.

 —  Nada demais, só uns compromissos.

Ah. Então agora eu sou um compromisso, não é?  

Calma, garota . Patrick parecia com medo de que eu entrasse em

combustão espontânea.

 —  Claro. —  Sadie olhou em direção ao portão do cemitério. —  Legal.

Estou com o carro da minha mãe. Te encontro em 15 minutos.

 —  Ahhh, encontro secreto —  disse Patrick. —  São meus favoritos.

Lancei-lhe um novo olhar malicioso. Meu plano era ir direto para a

casa de Jacob depois de conferir meu túmulo. Mas esta era uma boa

ideia. Não, isso era muito melhor.

Pegar os dois juntos. Pegar os dois sozinhos .

 —  Você é da pá-virada, garota. —  Patrick balançou a cabeça. —  To-

talmente.

Observei Sadie colocando as flores ao lado da lápide, ajeitando-as

com cuidado. Como se pudessem compensar qualquer coisa pela qual eupudesse ter passado.

Bem, eu tinha novidades para Sadie Russo.

Eu posso ter caído, mas desta vez ela ia comigo.

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Capítulo 24

 losing my religion

Viajamos no banco de trás do Jetta da mãe de Sadie durante dez

minutos.

 —  Dirigindo um pouco rápido demais, não?  —  Dei uma olhada no

velocímetro.  —  Parece que você anda quebrando todas as regras ultima-

mente, não, Russo?

 —  Cara, na verdade não é ilegal roubar o namorado da melhor ami-

ga. —  Patrick me lançou um olhar que dizia que eu estava enlouquecen-

do.

 —  Talvez não —  respondi. —  Mas deveria ser.

Passamos pela Sam’s Chowder House à direita e The Half Moon

Brewing Company à esquerda. Depois pela Artichoke Farm e pelo Fren-

chman’s Creek. 

 —  A cidade não mudou grande coisa em 27 anos, não é? —  comen-

tou Patrick.

Fiquei de queixo caído.

 —  Como assim? Você também é daqui?

Ele deixou escapar um tremendo gemido.

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 —  Você está falando sério, mocinha? Uau, me lembre de não con-

tratar você da próxima vez em que eu precisar de um detetive particular.

O que você acha? Que eu estava curtindo a eternidade na pizzaria por-

que a pizza é boa ?

 —  Eu, é… —  Tropecei nas palavras, repentinamente constrangida.

Mas Patrick tinha razão. Eu não fazia ideia de que éramos da mesma ci-

dade. Como eu posso ter me esquecido de descobrir essa informação

fundamental? —  Desculpa —  eu disse. —  Sou uma idiota.

Ele me deu uma cotovelada de leve.

 —  Compre um picolé para mim e estamos quites.

 —  Picolé? Onde?   —  Olhei para cima e me dei conta de que Sadie ti-

nha saído da estrada principal e parado no estacionamento do Wendy’s. 

 —  Hum —  disse Patrick, saboreando o cheiro de hambúrguer e ba-

tata frita. —  Faz muito tempo que eu não como uma coisa dessas de ver-

dade.

 —  Quantos anos você tinha? —  perguntei. —  Quero dizer, quando… 

 —  Quando morri?  —   completou ele.  —  Dezessete. Bem, quase de-

zoito, eu acho.

 —  Então, todo esse tempo… você está dizendo que estou andando

com um cara de 45 anos? —  Ri. —  Minha mãe vai me matar .

Ele sorriu.

 —  Pelo menos eu não aparento a idade que tenho.

O som da porta de um carro batendo do outro lado do pátio cha-

mou nossa atenção. Pulamos para fora atrás de Sadie antes que ela

trancasse a porta, e me preparei para o que eu sabia que viria a seguir.

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Em três segundos, estaria vendo o Saab verde-escuro de Jacob, que eu

tinha apelidado de Wasabi.

Estaria vendo Jacob . E Sadie. Juntos.

Arght .

Eu não tinha certeza de como lidaria com isso. Na última vez, me

sentira destruída. Seis meses não era tanto tempo assim. Esperei ser ca-

paz de me controlar.

Controle , disse a mim mesma. Controle .

Mas o carro do qual Sadie se aproximou não era verde-escuro, e de-

finitivamente não era um Saab. Era um Honda azul.

O carro da Emma? O que ela está fazendo aqui?  

 —  E aí? —  cumprimentou Sadie. Perdi o ar quando vi que o cabelo

dela estava super curto. Tess saltou do carro e se juntou a elas. Parecia

ainda mais alta, se é que isso era possível. Já tinha quase 1,85 metro. Ocabelo comprido, acobreado, estava preso num rabo de cavalo apertado.

Primeira bailarina.

Sadie cruzou os braços, encarando-as.

 —  Bem? Vocês queriam me ver?

Emma e Tess se entreolharam.

 —  Uh-oh —  disse Patrick. —  Tenho a ligeira impressão de que isso

vai ser bom. Queria tanto que vendessem pipoca no Wendy’s. 

Mandei que calasse a boca, não queria perder uma palavra.

Emma olhou nervosamente para Sadie, antes de falar.

 —  Eu só queria dizer… Desculpa. 

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 —  Oi? —  deixei escapar. —  Por que Emma  está se desculpando?

Sadie arregalou os olhos. Ela também não estava acreditando, é ób-

vio.

 —  Não foi certo acusar você assim  —  continuou Emma.  —  Mas  —  

ela fez uma pausa e olhou novamente para Tess — , todo mundo está fa-

lando, a gente precisava saber a verdade.

 —  Tomara que você nos perdoe —  acrescentou Tess. —  A gente re-

almente sente muito.

Não compreendi. Estava completamente confusa com o desenrolar

dessa história. O que foi que eu perdi, caramba?

Não peça desculpas a ELA. Ela é a vilã. Ela é a mentirosa!  

Sadie olhou para baixo.

 —  Só para deixar registrado, quero que vocês duas saibam que eu e

 Jacob Fischer somos amigos. Sempre fomos apenas  amigos. Desde antesde eu e Brie nos conhecermos.  —  Sua voz titubeou.  —  Vocês acreditam

em mim, não acreditam?

Emma suspirou.

 —  Sim, acreditamos. Mas você tem que admitir… 

 —  Não sou idiota. —  Sadie secou os olhos. —  Eu sei o que as pes-

soas andam falando de mim. Mas descobrir que vocês também acredita-

ram… 

 —  Não! Não! NÃO! —  gritei, desejando poder sacudir Emma e Tess.

 —  Ela está FINGINDO. Não acreditem numa palavra que ela diz!

 —  … Isso realmente me magoou. 

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Ah, vagabunda. Completa e totalmente vagabunda .

Eu não suportava mais aquilo. Nem mais um segundo. Eu me virei,

ali mesmo, e chutei o pneu do carro com todas as minhas forças, gritan-

do com tudo:

 —  DEUS!!!!!!!!!!  

O carro sacudiu e eu caí no chão de cimento, arfando de dor.

 —  Aiiiii —  gritei, segurando meu pé. —  Ai, ai, ai, ai, ai.

Patrick ficou de boca aberta. Olhou para o carro, para mim, de novo

para o carro, cheio de orgulho.

 —  Muito bem. Valeu, EAGAN!

 —  Uau  —  disse Tess, afastando-se do carro.  —  Vocês sentiram is-

so?

 —   Com certeza eu senti alguma coisa  —   respondeu Emma. Ela

ajoelhou e conferiu o pneu. —  O que foi isso que aconteceu?

Sadie olhou em volta para ver se alguém mais tinha percebido.

 —  Talvez tenha sido um terremoto, será?

Eu me sentei, me dando conta do que fiz.

Meu Deus do céu. Meu Deus do céu. Meu Deus do céu.

Um sorriso enorme rasgou meu rosto.

 —  Eu fiz. Eu fiz de novo. Eu FIZ CONTATO.

 —  É, isso aí! —  Ele fez um gesto positivo em direção ao carro, sor-

rindo. —  Repita.

Concentrei-me nas minhas emoções.

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Controle .

Dei outro chute, agora mirando a porta.

 —  Droga! —  Tess deu um pulo para trás. Meu pé deixara uma pe-quena marca.

 Joguei a cabeça para trás e gritei:

 —  Estou com tudo!

Patrick levantou a mão para me cumprimentar.

Girei. E não acertei a mão dele.

 —  Hum  —  disse Patrick.  —  Acho que vamos ter que treinar esses

cumprimentos.

Ri, sem me importar. Sentia-me totalmente poderosa, capaz de fa-

zer qualquer coisa, fora esses cumprimentos de menino. Vendo Sadie

descer tão baixo e ter coragem de mentir, eu estava oficialmente Mais

que Pronta para testar minhas novas e recentes habilidades. Sentia uma

necessidade incontrolável e desesperada de causar um dano sério. Por-

que toda garota conhece o Primeiro Mandamento relativo à melhores

amigas:

NÃO ROUBARÁS O NAMORADO DA MELHOR AMIGA

Pulei no capô do carro de Emma e dei vazão a mais um chute pode-

roso. Só que, dessa vez, quando meu pé fez contato, fez uma mossa no

para-brisa. As meninas ficaram de boca aberta diante dos estilhaços de

vidro caindo no asfalto.

Começaram a gritar. Emma e Tess entraram correndo no carro e

Sadie correu para o seu.

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 —  Falo com você depois!  —  gritou Emma para Sadie enquanto to-

das se apressavam em sair do estacionamento.

 —  Droga, lá se vai nossa carona —  disse Patrick.

Eu não estava ouvindo.

 —  Que dia é hoje?

Ele olhou para o sol no céu.

 —  Usando o que aprendi no capítulo 13 do M&E  —   Aprimorando

Habilidades de Sobrevivência — , diria que hoje é 28 de abril.

 —  Quis dizer que dia da semana.

 —  Um segundo. —  Vi que ele tentava pegar algo.

 —  O que foi? —  perguntei.

O rosto dele desenhou um sorriso culpado e ele ergueu o celular de

Sadie.

Macacos me mordam, Batman .

Ele pressionou um botão e o visor ganhou vida.

 —  Correção. —  Anunciou um segundo depois. —  29 de abril. Sexta-

feira.

Sexta-feira. Vasculhei minha memória. Jacob tinha treino de atle-

tismo todos os dias depois da aula, mas as sextas eram quase sempre

reservadas para as corridas.

Patrick conferiu se alguém vivo estava olhando. Depois, enfiou o ce-

lular no bolso, tornando-o invisível ao mundo dos mortais. Agora era ofi-

cialmente nosso. Um Objeto Encontrado.

 —  Passe para mim. —  Estendi a mão.

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 —  Um segundo —  disse ele. —  O que você está pensando em fazer,

Queijo Coalho?

 —  Quem, eu? Ora, ora, senhor, não sei do que você está falando.

 —  Escute.  —  A voz dele ficou séria.  —  Eu vou brincar disso mais

um pouco. Mas não quero ver você completamente tomada. Existem re-

gras para esse tipo de jogo, Cheetos.

 —  Ah, é? —  desafiei. —  Tipo quais?

 —  Tipo esquecer esses idiotas para seguir seu caminho, e Descan-

sar em Paz, finalmente. Outra coisa. —  Ele me olhou nos olhos. —  Logo a

gente vai ter que voltar para o pedacinho do céu. Logo, você vai ter que

deixar essas pessoas para trás. Você sabe disso, não sabe?

Encarei-o, sem dizer uma palavra. Patrick era um cara legal, e eu

tinha passado a gostar dele. Mas ele nunca ia me entender. Como pode-

ria? Era só um cara dos anos 1980 que teve muito azar dirigindo a moto

em alta velocidade. O que poderia saber sobre amor, ou perdas ou o que

realmente significava ter o coração partido ao meio?

Absolutamente nada, era o que podia saber .

Convenci-me ali mesmo de que não voltaria para a pizzaria.

Nem agora, nem nunca.

Fiz o possível para esconder esse pensamento, caso Patrick estives-

se se esgueirando por dentro da minha cabeça. Fiz o possível pa-

ra parecer  que eu dizia a verdade.

 —  Sei. —  Fiz que sim com a cabeça. —  Eu sei que a gente tem que

voltar.

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Acho que Sadie não era a única capaz de mentir bem. Porque Pa-

trick comprou minha mentira.

Ele sorriu.

 —  Tudo bem, então.

Senti culpa, claro, mas não o bastante para mudar de ideia. Porque,

mesmo que o inferno tomasse conta da terra, não havia quem pudesse

me fazer não voltar.

Nem Patrick. Nem a Senhora das Palavras Cruzadas. Nem o demô-

nio em pessoa.

Ninguém .

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Capítulo 25

Permanently black and blue, permanently blue, for you

Decidi esperar por Jacob a sete quarteirões da escola, no mesmo

lugar por onde ele andava todos os dias (Bo-Bo’s), na mesma bicicleta de

sempre (uma Raleigh Performance Hybrid preta), na mesma hora de

sempre (14h42).

A qualquer momento, eu tinha certeza, ele estaria a caminho do

Belcher Field —  que todo mundo chamava de Arroto — , onde a equipe de

atletismo do colégio fazia as provas. Não que eu fosse obsessiva ou algo

do gênero.

Pelo contrário, amigos .

Para deixar registrado, gostaria de ressaltar que NÃO é obsessão

decorar a agenda do namorado para encontrá-lo casualmente. Isso é ser

eficiente. Por que perder tempo e energia correndo de um lado para outro

na cidade tentando adivinhar onde um cara vai estar, se, em vez disso,

você pode ter certeza ? Então, você pode estar lá. Abordagem muito dire-

ta, tendo a acreditar.

Ah, sim, porque você é uma  stalker5.

Patrick me olhou como quem diz que não está de brincadeira.

5 É uma pessoa obcecada que mantém uma vigilância exacerbada, geralmente, sobre outra pessoa, muitas vezes forçando

contatos indesejados.

Leia mais em: http://www.tecmundo.com.br/privacidade/5411-o-que-sao-stalkers-e-por-que-sao-tao-perigosos-

.htm#ixzz2Y2L3d9s3 

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 —  Fac ut vivas . Também conhecido como vá procurar o que fazer.

Dispensei o comentário e vasculhei o quarteirão pela décima sétima

vez, para não perder a chegada de Jacob.

 —  Não é como se eu corresse na frente da casa dele a cada meia ho-

ra, ou qualquer coisa do tipo.

 —  Certo. Com certeza de hora em hora já era o bastante.

Dei um tapinha no braço dele.

Mais alguns minutos se passaram e Patrick começou a ficar sem

paciência.

 —   Ele não vem, Cream Cheese. Somos dois idiotas. Ou me-

lhor, você  está sendo idiota.

Encarei-o.

 —  Bem, você pode ir embora se quiser. Aliás, me faria esse favor?

Está atrapalhando minha concentração e quero estar pronta.

 —  Ah, tentando se livrar de mim, é isso? —  Ele se encostou no pos-

te de telefone. —  Detesto te dar uma notícia desagradável, mas não vou a

lugar nenhum.

Balancei a cabeça, irritada.

 —  Pode ficar, ir embora, seja o que for. Não estou nem aí.De repente —  meus sentidos em alerta — , ouvi o ruído de rodas de

bicicleta. Senti um suor frio e nervoso se espalhar por todo o meu corpo.

Ele estava se aproximando. Eu podia sentir. Então, vi o pneu da frente

virar à direita, na Mill Street.

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Congelei. Era realmente ele. O cabelo revolto como se não cortasse

havia meses, e ele parecia estar com os ombros mais largos.

Está ficando mais velho .

O pensamento doeu um pouco. Todo mundo estava ficando mais

velho. Menos eu.

 —  Pronto? —  Eu me agachei, me preparando.

 —  Ainda acho que você é maluca —  resmungou Patrick.

 —  Engraçado, porque não me lembro de ter pedido sua opinião.

Ficamos de frente um para o outro, uns 2 metros de distância  —  

Patrick no poste, eu encostada na janela do Garden Deli Café, onde os

professores do colégio costumavam almoçar. O plano era dar um grande

susto em Jacob antes da corrida. Ele era muito supersticioso, principal-

mente no que dizia respeito ao esporte, então eu queria fazer alguma coi-

sa que realmente o apavorasse e —  tomara —  o derrubasse na frente de

toda a escola. Eu precisava constrangê-lo.

Não, eu precisava humilhá-lo.

 —  E o jogo vai começar —  sussurrei.

Ele se aproximou pedalando até que, finalmente, pude ver o branco

de seus olhos. Minha Guerra Pessoal de Independência.

Ah, levando isso um pouco longe demais, não?  

 —   Espere para ver  —   respondi.  —  Mais um pouco… tá, agora! —  

Pulamos na frente do Jacob, usando nossos braços para formar uma

corrente. Fechei os olhos exatamente quando Jacob me atravessou.

Pude ouvir o coração dele batendo dentro do peito. Pude sentir sua

pulsação nas minhas veias. Pude sentir o cheiro de poeira debaixo das

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unhas dele. Por meio segundo, me atrevi a abrir os olhos. Foi incrível,

uma versão ficção científica da vida real, atravessar um corpo humano.

Vi seu sangue, as células, as artérias, tudo vivo e respirando, me rode-

ando num ritmo pulsante, perfeito. Tudo o que Jacob Fischer era tomou

conta de mim de uma só vez, e a força disso quase me derrubou.

Firmei mais ainda meus calcanhares. Não iria a lugar algum.

Sou forte. Sou poderosa. Tenho controle .

 —  Que droga! —  gritou Jacob, perdendo o controle da bicicleta. Ou-

vi a correia se partir e ele derrapar para a esquerda, indo cair na pilha desacos de lixo que eu arrastara dos fundos do café. A bicicleta se chocou

contra o poste e caiu na rua. Um carro desviou, mas acabou passando

por cima da roda traseira.

 TUMP!

 —  Homem ao chão! —  Levantei meus braços em comemoração e fiz

uma coreografia da vitória. Jacob gemeu e rolou por cima de um monte

de salame estragado e restos de sanduíche.

 —  Parabéns —  disse Patrick. —  Feliz?

Saltei em sua direção e lhe dei um beijinho no rosto.

 —  É.

Ele me olhou como se eu fosse doida.

 —  O que foi isso?

Sorri.

 —  Um agradecimento por você ser um excelente parceiro no crime.

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 Jacob se levantou lentamente, livrando-se da pilha de lixo. Parecia

absolutamente confuso e —  exatamente como eu genialmente previra —  

muito apavorado.

 —  Ei, tudo bem com você? —  Um cara do café apareceu na porta. —  

A gente viu sua queda, cara, pareceu bem ruim.  —  Ele fez um sinal na

direção dos sacos de lixo e riu.  —  Mas você teve sorte. Normalmente a

gente não coloca o lixo aí até a hora de fechar. Parece que tem alguém

tomando conta de você.

Ah, você não faz ideia .

 —  É —  disse Jacob. —  Não entendi o que aconteceu. Acho que me

distraí um segundo. —  Olhou para sua bicicleta e para a calçada suja. —  

Desculpa a bagunça, cara. Vou arrumar.

 —   Isso mesmo  —   respondi.  —   Você fez uma tremenda bagunça,

Fischer. E estou aqui para garantir que você arrume  tudo.

Patrick bateu na própria cabeça.

 —  Mulheres.

 —  Vamos nessa! —  Segurei a mão dele. E voamos diretamente para

o Arroto.

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Capítulo 26

You oughta know

O Arroto estava lotado (ou seja, perfeito para o que eu estava

prestes a evidenciar). Meninos e meninas de todas as esferas do colégio

estavam ali. Os idiotas; os drogados; as tietes; os moderninhos com seus

topetes e óculos estilo anos 1950; até mesmo os alunos de teatro tinhamcomparecido. Conferi o quadro de resultados e entendi o motivo. Está-

vamos disputando com o San Mateo Cyclones. Uma rivalidade que exis-

tia desde sempre, pelo menos desde os anos 1990.

Finalmente as coisas começaram a conspirar a meu favor. Minha

nossa, como o jogo vira .

Ri feito uma maluca diante da minha sorte. Isso com certeza seria a

MCDTOT (Melhor Corrida De Todos Os Tempos).

 —  Só uma informação básica, você está parecendo o Conde Drácula

 —  disse Patrick. —  Dá para fazer o favor de parar com esses sons mons-

truosos? Você está começando a me assustar, Bafo de Queijo.

Como tinha virado hábito, ignorei-o.

 —  Cadê o celular? —  Estendi a mão para enfiar no bolso dele, mas

Patrick me impediu.

 —  Não tão rápido, mocinha. —  Ele pegou o iPhone de Sadie e ace-

nou acima da minha cabeça. —  É isso que você está procurando?

Pulei, tentando roubar o aparelho.

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 —  Deixa de ser estraga-prazeres. Me dá.

 —  Só se você prometer não fazer nada estúpido.

 —  Tá, prometo.  —  Ele me entregou o telefone e digitei a senha deSadie, a mesma que sempre usara.

Juilliard .

Então, tentei pensar com a cabeça dela e digitei uma mensagem pa-

ra Jacob o mais parecido com minha amiga possível.

 JF! Indo p o Arrotão! Vc já chegou? Força nas pernas!

Ri de mim mesma e Patrick me encarou, suspeito.

 —  O que é tão engraçado?

 —   Acho que essa informação é confidencial.  —   Então, apertei

SEND.

Ele resmungou.

 —  Lembre-me de nunca ficar de mal com você.

Alguns segundos depois, o telefone apitou. Jacob respondera.

Indo. Bike ferrada. Me dá carona mais tarde? xx.

Li o torpedo algumas vezes. Lá estava. O indisfarçável X duplo. Sig-

nificando amor. Senti uma onda de excitação atravessando meu corpo —  

a mesma sensação que eu costumava ter quando ele me mandava uma

mensagem dizendo oi, ou quando me lembrava o quanto eu era adorável.

 —  Notícia fresca, Cara de Queijo, o torpedo não é para você  —  disse

Patrick. —  Ele acha que está mandando mensagem para ela .

Encarei-o.

 —  Ah, jura? Muito obrigada por esclarecer o incrivelmente óbvio.

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Um minuto depois, vi Jacob arrastando a bicicleta detonada até os

racks e, depois, jogando-a no chão sem se incomodar em trancá-la. Se-

gui-o até o lugar onde todos os corredores se alongavam e fiquei assis-

tindo seu aquecimento.

Não havia dúvida de que ele era o melhor atleta do colégio. Olheiros

das universidades rodeavam Jacob como mosca em volta do mel desde o

oitavo ano, quando ele quebrara o recorde de um garoto do terceiro ano

chamado Mike Remy. A Universidade de Princeton já tinha mais ou me-

nos lhe garantido uma vaga no time, desde que mantivesse suas notas

altas até a formatura. Ele era uma estrela. Popular de um jeito discreto.

Sempre sociável, fácil, doce, um cara do bem. Todo mundo gostava dele.

Sempre foi assim.

Não era o tipo de camarada que se envolve às escondidas com a me-

lhor amiga da namorada. E certamente não era do tipo que trai as pes-

soas de quem mais gosta. Por isso foi tão difícil acreditar na história do

coração partido, tão completamente fora de cogitação. O chão firme, se-

guro, confiável, se abriu debaixo dos meus pés. Sem aviso. Sem alarmes

de incêndio. Sem elefantes fugindo desvairados dias antes de um tsuna-

mi.

Para ser absolutamente honesta, mesmo depois de tanto tempo,

parte de mim ainda não conseguia acreditar.

Jacob e Sadie .

Simplesmente não fazia sentido.

Mas algo estava diferente agora, como se os planetas tivessem mu-

dado de lugar. Eu conseguia enxergar isso na maneira como os outros

garotos o olhavam e se moviam em volta dele. A maneira como seus cole-

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gas de equipe estreitavam os olhos e baixavam a voz quando ele se apro-

ximava.

O que está acontecendo?  

 Jacob alongou o braço direito na frente do peito, depois fez o mes-

mo com o esquerdo.

 —  Ei, Fischer, você está atrasado —  disse o treinador Bobby. —  Fa-

ça um aquecimento. Você é o próximo.

 —  Desculpa.  —   Jacob baixou a cabeça e correu em direção à sua

equipe.

Vi sua expressão ao se juntar a eles. É, alguma coisa estava defini-

tivamente errada. Os olhares não eram amistosos. Nada de sorrisos ou

cumprimentos. Nada além de um silêncio estranho, desconfortável.

Minha pele foi tomada de um arrepio de pura satisfação quando me

dei conta.

 —  Eles sabem —  sussurrei. —  Todos eles sabem o que ele fez comi-

go.

 —   Então, o que você está dizendo é  —   respondeu Patrick  —   que

nosso trabalho aqui está finalmente encerrado.

Ri, sarcástica.

 —  Pode continuar sonhando, Patrícia.

Os atletas se encaminharam às respectivas raias, Jacob ficando na

última pista da parte de dentro do campo.

Perfeito .

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 —  Corredores, para suas marcas! —  O treinador gritou, erguendo a

arma de largada acima da cabeça.

Os meninos ficaram de joelhos.

 —  Corredores, preparar!

 Todos se posicionaram.

 —  Corredores, agora !

Ouvi o estampido da arma e vi os meninos darem a largada, os

músculos tensionados, os corações batendo.

Era uma corrida curta —  apenas 100 metros. Jacob estava na fren-

te, vi seus olhos se estreitarem em direção à linha de chegada enquanto

a plateia incentivava o time da casa.

P-C-H! P-C-H! P-C-H!  

Estavam todos prestes a ver do que eu era capaz, diretamente do

Grande e Desagradável ALÉM. Todos estavam assistindo. O colégio intei-

ro. Todos os professores e diretores, todos os pais.

Na lateral da arquibancada, lá no alto, uma menina bonita, de ca-

belo escuro, estava sentada, sozinha. Pude ver perfeitamente seu rosto,

como se as nuvens tivessem aberto um espaço e ligado um holofote em

cima dela.

Sadie .

Sorri novamente, vendo Jacob correr na minha direção na pista.

 —  Pode engolir seu coração, Russo —  sussurrei, agachando na po-

sição final. Ele estava quase me alcançando. Eu quase conseguia ver o

reflexo da minha imagem brilhando nos olhos azuis dele.

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Por um instante, lembrei do som do coração dele e tive vergonha do

que estava prestes a fazer.

Mas também  lembrei do meu coração.

Eu me abaixei, estendi a perna e me concentrei como nunca antes.

Me preparei para o impacto, porque, sim, provavelmente sentiria dor.

Apesar de que doeria muito mais nele do que em mim.

3-2-1-CONTATO .

Num segundo, o mundo parou de repente. Ouvi o som de ossos se

quebrando. Ouvi a multidão silenciar quando seu grande atleta deu de

cara no chão.

Então, como se fosse música, ouvi a doce e esplêndida vitória da

bolsa do meu ex-namorado para Princeton desaparecer no ar.

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Capítulo 27

 

Cry me a river

Patrick não estava falando comigo. Ele estava me “punindo”. Por-

que eu “fui longe demais”. 

 —   Sem querer ofender  —   falei  — , mas gostaria de dizer que uma

perna torcida em troca da destruição de um coração é bastante justo.

Ele franziu o cenho.

Torcida?  

 —  Tá, tudo bem —  relevei. —  Quebrada. Tanto faz.

A multidão ainda estava completamente desnorteada quando a am-

bulância chegou para levar Jacob ao hospital para radiografar e engessar

a perna. Além dos paramédicos, de mim e de Patrick, só uma pessoa en-

trou na ambulância e ficou perto dele o tempo todo. Sadie . Sério, esses

dois poderiam ser mais clichê?

Nós quatro ficamos ali em silêncio enquanto a ambulância acelera-

va em direção ao hospital.

 —  E isso é muito esquisito —  disse Patrick.

Não respondi. Estava muito ocupada lançando olhares mortais para

Sadie, na esperança de que ela entrasse em combustão espontânea.

 —   O que aconteceu, Jacob?  —   Sadie segurou carinhosamente a

mão dele. —  Em que você tropeçou?

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 —  Cuidado  —   disse ele, bruscamente, para um paramédico que o

enfaixava. Ele estendeu as mãos, irritado.  —  Eu não sei, tá? Em nada .

Não tropecei em nada.

Ela balançou a cabeça, confusa.

 —  Não é possível, você só pode ter tropeçado em alguma coisa. Todo

mundo viu.

 —  Então por que está me perguntando?  —   gritou ele.  —   Se todo

mundo viu, talvez você possa me dizer o que aconteceu.  —  Ele deitou a

cabeça na maca e ficou com a voz embargada.  —  Caramba. Isso mudatudo. Isso… —  apontou para a perna —  … estraga tudo. 

 —  Talvez não, quem sabe? —  Ela tentou animá-lo. —  Vamos espe-

rar para ouvir o que o médico vai dizer… 

 —  Quebrou —  disse ele, com amargura. —  Isso era meu bilhete de

saída. A única chance de começar de novo em outro lugar. E agora já

era.  —  Fechou os olhos e fez uma careta de dor.  —   Juro por Deus, foi

como se tivesse uma espécie de força agindo sobre mim hoje. Primeiro a

bicicleta, depois isso.

Sadie estendeu a mão e tirou um cacho de cabelo dos olhos dele.

Vontade de vomitar .

 —  Como assim? O que aconteceu com a sua bicicleta?

 —  Como assim? Eu é que pergunto como assim . Mandei uma men-

sagem de texto para você, antes da corrida —  falou ele, irritado. —  Você

me disse para ter força nas pernas.

Sadie balançou a cabeça, confusa.

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 —   Jacob, do que você está falando? Eu não te mandei nenhuma

mensagem.

 Jacob encarou-a por um longo segundo, depois pegou a bolsa e co-

meçou a procurar lá dentro. Finalmente, pegou o celular, conferiu os

torpedos e entregou o aparelho para ela.

 —  Ah, não?

Vi Sadie esbugalhar os olhos ao ler.

 —  Eu não escrevi isso. Não sei quem escreveu. Perdi meu telefone

no Wend y’s, acho. Alguma coisa estranha estava acontecendo com o car-

ro da Emma e eu devo ter deixado cair. Alguém deve ter encontrado. Foi

outra pessoa que escreveu essa mensagem.

Patrick me lançou um olhar perverso.

Ops.

 —  Emma  —   disse Jacob, a voz tomada de ressentimento.  —  Comcerteza foi Emma.

Sadie balançou a cabeça.

 —  Ela não faria isso. Emma e Tess me pediram desculpas hoje.

Ele levantou o olhar.

 —  Pediram?Sadie fez que sim com a cabeça.

 —  Estou ligando para o seu telefone  —  disse ele, ainda em dúvida.

 —  Vamos ver se alguém atende.

Uh-oh .

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Encarei Patrick quando o telefone de Sadie começou a vibrar no

bolso do meu vestido.

 —  Você vai atender? —  perguntou Patrick.

 —  Hum, acho que não —  falei, corando. —  Acho que vou deixar cair

direto na caixa postal.

Ele sorriu, sarcástico.

 —  Boa ideia.

A ambulância parou alguns segundos depois e a porta de trás foi

aberta. Patrick e eu pulamos para fora e dois caras de jalecos cor de la-

ranja mandaram Jacob sentar. Depois, contaram até três, levantaram a

maca, tiraram-na da van, a colocaram no chão e o transferiram para

uma cadeira de rodas.

 —  Vou esperar sua mãe e seu pai aqui fora —  disse Sadie. —  Te ve-

 jo lá dentro. —  Deu-lhe um beijinho no rosto. —  E nada de se preocupar,

tudo bem? Vai ficar tudo certo. O pessoal de Princeton não vai tomar ne-

nhuma atitude drástica. Eu não vou deixar. Prometo.

Deu para ver que Jacob não acreditou nela. Mas sorriu, mesmo as-

sim.

 —  Valeu, Sades —  disse carinhosamente, e começaram a empurrá-

lo para dentro do hospital. —  O que eu faria sem você?

Ah, não sei. Talvez ainda namorasse comigo?  

 —  Meu Deus, chega! —  gritou Patrick.

 —  Ei! Não grite comigo! —  Puxei acidentalmente a manga da jaque-

ta dele, expondo sua cicatriz.

Ele puxou o braço.

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 —  Desculpa, desculpa —  falei. —  Sempre esqueço que você é cheio

de frescura com essa roupa.

A expressão no rosto dele deixava claro que não estava para brinca-

deiras.

 —  Escuta —  implorei. —  Desculpa de verdade, tá? Eu não quis… 

 —  Quis, sim —  respondeu ele. —  Você não está nem um pouco ar-

rependida.

Eu me senti péssima. Nunca tinha sido uma menina má. Nunca

nem mesmo matei uma barata, pelo amor de Deus. Era a primeira vez

que me vingava, ponto . Mas eu tinha meus motivos. Estava cansada de

ser sempre a boazinha. Estava cansada de ser sempre a boa amiga de

quem todo mundo se aproveita. Então, pelo menos uma vez, tomei provi-

dências quanto a isso. E, tudo bem, sim, talvez algumas pessoas tenham

ficado feridas no caminho.

Mas e daí? Elas mereciam  ser feridas.

Senti vestígios de fumaça negra atravessando minha pele. Eu me

senti mal por ser uma imbecil, mas, afinal, isso realmente não era da

conta de Patrick. Ao ver a expressão de santo Tom Cruise cheio de digni-

dade no rosto dele, comecei a ficar irritada. Irritada por ele estar irritado.

Como se atrevia?

 —  E se eu não  estiver arrependida, hein? —  Desafiei-o. —  Não devo

desculpas a ninguém.  —  Comecei a caminhar em direção à entrada da

emergência. —  Muito menos a você.

Patrick segurou meu braço.

 —  Brie, não faça isso.

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 Tentei me afastar.

 —  Me larga.

 —  Eu não devia ter apoiado isso  —  disse.  —   Foi um grande erro.Você está muito apegada. Agora consigo enxergar.  —   Ele apertou mais

meu braço. —  Eu entendo, tá? Pode acreditar em mim, sei que pode pa-

recer divertido, mas só está piorando as coisas. Você precisa se livrar

desse desespero. Nunca vai ter a chance de se libertar se continuar fa-

zendo isso.

 —  E daí? —  gritei, me desvencilhando.  —  Talvez eu não queira melibertar. Talvez esteja mais feliz assim do que em qualquer momento na

pizzaria. Talvez eu não dê a mínima para o próximo estágio da sua lista

idiota. Talvez eu prefira ficar com meus amigos e minha família do que

passar a eternidade com VOCÊ.

Ele me olhou, abismado.

 —  Amigos?  Sei que eu e você crescemos em épocas diferentes, mas

com certeza não é assim que as pessoas tratam os amigos.

 —  Eles estão tendo o que merecem! Os dois! Você sabe disso!

 —  Eles estão pagando pelos seus erros, Brie. Os dois estão sofrendo

o suficiente desde que você foi embora, provavelmente mais do que você

consegue imaginar. —  Ele tentou me segurar uma segunda vez. —  É ho-ra de parar. O jogo acabou.

Dei um passo atrás, a raiva começando a ferver dentro de mim.

 —  Qual é o seu problema? Por que você, de repente, passou a se

importar tanto com o que eles sentem? Não me diga que … você está

apaixonado pela Sadie?

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 —  Não seja ridícula —  respondeu ele. —  Por que você simplesmente

não pode deixar as coisas acontecerem como devem acontecer?

 —  Porque não estou a fim  —  respondi. —  Porque morri e eles não.

Porque não é justo, e ela não merece o Jacob, tá? Ele era meu. —  Minha

voz embargou e eu estava à beira das lágrimas. —  Ele era meu . Não dela.

 —  Como você pode se importar tanto com duas pessoas que nunca

te mereceram, para começo de conversa? —  disse Patrick, me encarando.

 —   Por que você não pode superar isso e seguir em frente? Ele   te fe-

riu. Ela  te feriu. Você não vê?  —  As mangas da jaqueta se ergueram, re-

velando mais ainda suas cicatrizes. Eu me retraí. Ele realmente tinha

passado por alguma coisa pavorosa.

Mas o quê?  

 —  Ele roubou seu coração… —  A voz de Patrick ficou triste. —  Rou-

bou seu coração doce, divertido, perfeito… e o destruiu . Por que você

continua deixando que faça isso com você, de novo e de novo?

Só existia uma resposta. Era simples, mas era tudo que eu tinha.

 —  Porque eu amava o Jacob  —  respondi, lágrimas de raiva come-

çando a rolar pelo meu rosto.  —   E ele me amava. Eu sei que amava.

Eu sei .  —  Uma trovoada forte chacoalhou o céu à distância, e o ventou

ganhou velocidade.

Não me movi.

 —  Amor? —  desdenhou ele. —  Você acha que aquilo era amor?

 —  Talvez, se algum dia você tivesse se apaixonado —  falei — , talvez

soubesse como é perder sua alma gêmea.  —  Fiz uma pausa.  —   Perder

suas duas  almas gêmeas.

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Os olhos de Patrick ficaram mais sérios e sombrios do que eu ja-

mais vira.

 —  Anjo —  sussurrou ele. —  Não fale daquilo que não compreende.

Foi o bastante para mim. Senti pequenas labaredas incendiando

meus dedos dos pés, viajando coluna acima e incendiando meus braços,

minhas costas e meu peito. Senti que começava a queimar.

 —  Se afaste de mim —  falei. —  Fique  longe de mim.

Ele não se deu o trabalho de me responder em voz alta.

Como você quiser .

Então, desapareceu.

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Capítulo 28

D on’t dream it’s over 

Quando cheguei na Cabrillo Drive percebi que tinha andado até

minha casa. A briga com Patrick me deixara ansiosa e confusa, e eu não

prestara atenção nos nomes das ruas até levantar a cabeça e ver o BMW

do meu pai estacionado na nossa porta, alguns quarteirões à frente.Chutei as pedrinhas no chão enquanto andava.

Estou certa. Estou certa e Patrick está errado. Que droga ele sabe?

Nunca passou por algo desse tipo .

 Tirei o telefone de Sadie do bolso. Até agora ela se safou, mas o

mundo estava prestes a descobrir que eu ainda tinha algumas cartas na

manga, sim, senhor. Pressionei alguns botões e, em segundos, a página

dela no Facebook estava aberta.

Guarde isso , eu podia imaginar Patrick me dando bronca. Nem pen- 

se nisso, Queijo Coalho .

Espantei-o da minha cabeça como se fosse um mosquito irritante e

vasculhei o perfil de Sadie. Ela não alterava seu status havia mais oumenos um mês, o que me pareceu um ato extremo no caso dela. Cliquei

nas mensagens para ver se tinha alguma coisa que valesse uma espiona-

gem, mas fiquei chocada ao encontrar a inbox  vazia. Difícil de acreditar,

 já que estamos falando de uma menina que tem mais de mil amigos.

Ela deve ter apagado as evidências.

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O que você está escondendo, Sadie?  

Mesmo que os últimos meses tivessem feito sua popularidade cair,

eu tinha a sensação de que muita gente do colégio ainda esta-

ria muito   interessada em saber o que Sadie Russo andava aprontando

ultimamente.

 —  Você não deve deixar seu público adorado esperando  —   falei. E

digitei o Status Mais Perfeito do Mundo.

Os rumores são verdadeiros

Sr + Jf = 4ever

p.s. Quem é Brie, mesmo?

 —  E, como dizem, é isso .

Sorri, saí da página e guardei o telefone novamente no meu bolso.

Missão cumprida. Andei até a varanda de trás da nossa casa e dei uma

olhada furtiva na casa dos Brenner e em seu jardim florido e rodeado decerca branca. Fiz uma careta, enojada com aquela falsidade. Eu me per-

guntei se o sr. Brenner já teria descoberto a verdade sobre o meu pai.

Ou se minha mãe tinha descoberto.

Só de pensar no meu pai com Sarah Brenner ainda ficava enjoada e

percebia que minha vida toda não passara de uma grande mentira. Por

que eu e Jack não tínhamos nascido numa família normal, sem tanto

drama? Suspirei.

Talvez na próxima vida .

Pensei um pouco sobre reencarnação e em como eu gostaria de vol-

tar à Terra, se é que existe esse tipo de coisa. Um golfinho, talvez. Ou um

coala. Mas, agora é sério, quem gostaria de voltar? A vida dá muito tra-

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balho. É muito dolorosa. Eu não precisava fazer tudo de novo, com um

novo elenco de problemas. Uma vez já era demais.

Então meus pensamentos se voltaram para Jacob, e não consegui

deixar de pensar em como ele reencarnaria.

Um porco .

Não, porcos são fofinhos demais para ele. Talvez uma minhoca. Ou

um rato.

Ah, um rato, definitivamente .

E Sadie? Essa era bastante óbvia. Seria uma cobra. Uma cobra hor-

renda, grande, escorregadia e traiçoeira. Pensar em Sadie se arrastando

pelo chão quase me fez rir alto, uma distração monumental daquilo que

realmente estava me incomodando.

Querendo ou não admitir  —  e eu não queria  — , não conseguia me

livrar da sensação de que talvez Patrick estivesse certo sobre o fato de eu

ter ido um pouco longe demais.

Ou muito , imaginei-o dizendo.

 —  Ah, cale a boca  —   resmunguei. Momentos desesperados preci-

sam de atitudes desesperadas. Do meu ponto de vista, os dois tinham se

safado muito facilmente.

 Jacob, por exemplo. Eu tinha certeza de que existia alguma facul-

dade que o quereria em seu time de atletismo. E no caso de Sadie, eu

não tinha dúvidas de que ela ainda entraria para a Juilliard e consegui-

ria chegar a Broadway, depois de tanta prática sendo uma mentirosa de

mão cheia.

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Porque todo mundo sabe que mentir e atuar são basicamente a

mesma coisa.

Parei na entrada da minha casa, de repente me dando conta de que

tinha um problema maior ainda para resolver.

Ou melhor, uma pergunta.

E agora?  

Patrick tinha razão. Meu trabalho estava encerrado. Fora bem-

sucedida na tarefa de dar a Jacob uma prova de seu próprio veneno.

Mas agora não tinha certeza do que fazer comigo .

Será que devia ficar por ali, assombrando meus amigos e minha

família até que eles se juntassem a mim do outro lado? Será que eu devia

oferecer meus serviços voluntários de Anjo Guardião Adolescente para

garantir que a minha mãe e Jack levassem a vida o mais suavemente

possível? Para ser honesta, essa não me parecia a melhor das ideias, já

que a vida de guardiã-sem-na-verdade-ser-capaz-de-fazer-alguma-coisa

deve cansar muito rápido.

Por um segundo, voltei minha atenção para alguns verões atrás  —  

para o dia em que eu e minhas amigas encontramos os colares na cida-

de. A loja parecera surgir do nada, quase como se estivesse ali esperando

por nós, e por mais ninguém.Rabbit Hole .

O lugar onde Alice escorregou e caiu, indo parar no seu País das

Maravilhas particular. Visualizei a loja. O chão escuro de tábuas corridas

gastas. O cheiro de incenso de jasmim. A luz baixa e aconchegante das

luminárias de papel iluminando as paredes amarelo-claras. Enquanto

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me vinham à mente todos aqueles detalhes, percebi que meu colar es-

quentava sobre minha pele. Coloquei os dedos entre o colar e o pescoço,

tentando esfriar as coisas.

Foi então que me dei conta.

Seu País das Maravilhas particular .

Olhei para o céu anoitecendo. Depois para o norte, em direção a

São Francisco.

Meu buraco do coelho .

Onde eu podia desaparecer. Ou, pelo menos, me enterrar e esperar

até descobrir o que fazer com o resto da minha vida.

Ops, morte.

Um latido repentino e um par de patas brancas com pintinhas me

tirou de dentro da minha própria cabeça e me trouxe ao gramado da

frente de casa.

 —  Hamloaf!

Ele pulou em cima de mim, lambendo meu rosto como se eu fosse

biscoito de cachorro.

 —  Chega! —  gritei. —  Desce, desce!

Ele latiu e ganiu, feliz, andando em círculos animados pelo jardim,as orelhas voando para cima e para baixo. Finalmente, se cansou e sen-

tou do meu lado na grama, abanando loucamente o rabo.

 —  Calma, garoto, calma. —  Acariciei a cabeça e o pescoço dele, até

que relaxasse um pouco.

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Hamloaf colocou a pata no meu peito e me deu mais uma rodada de

beijos melados.

 —  Acho que você ficou feliz de me ver, né?  —  Eu me sentei e olhei

para o jardim. —  Mas o que você está fazendo sozinho aqui fora? Cadê a

mamãe? Cadê o Jack?

Ao ouvir o nome do meu irmão, Hamloaf começou a uivar, peque-

nos gemidos agudos destinados a derreter o coração de uma pessoa. Ele

se levantou com um pulo e se encaminhou para sua portinhola de entra-

da. Depois, virou-se para mim e latiu uma única vez, convidando-me a

segui-lo.

 —   Desculpa, amigo.  —   Balancei a cabeça.  —   Você sabe tão bem

quanto eu que não passo aí.

Ele espirrou.

 —  Também acho.

Hamloaf voltou e começou a rolar na grama, parecendo mais uma

hiena que um cachorro. Fui até a casa e espiei pela janela dos fundos.

Era como se um furacão tivesse passado por ali.

Pratos empilhados na pia. Revistas e jornais velhos espalhados.

Pouca luz e algumas caixas de comida chinesa em cima da bancada.

 —  Uau  —  falei, olhando para Ham.  —  O que aconteceu?  — Mamãe

nunca deixaria a casa ficar essa bagunça. Nunca. Corri até a garagem e

espiei pela janelinha redonda. O carro da minha mãe não estava ali. Da-

va para saber que era quase hora do jantar, já que a luz do dia estava

indo embora. Ela certamente já deveria estar em casa. Olhei mais uma

vez, para ter certeza de que meus olhos não estavam me enganando.

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Nenhum Subaru .

Fiquei preocupada. Se minha mãe não estava em casa, Jack não es-

tava em casa. Repassei a lista de possibilidades. Talvez estivessem visi-

tando meus avós em Vancouver. Talvez estivessem com meus tios em

Portland. Mas ainda não tinham chegado as férias da primavera, ti-

nham? E se tivessem, não teriam levado Hamloaf? Nós sempre  levávamos

o Hamloaf. Sempre.

Meu cachorro se afastou um pouco e ficou sentado me olhando.

 —   Cadê a mamãe?  —   perguntei novamente.  —   Cadê o Jack?  —  Mais uma vez, quando ouviu o nome do Jack, ele começou a latir deses-

peradamente.

 —  Ok, ok! —  Tapei os ouvidos com as mãos.  —  Entendi, o assunto

não é agradável.

Ele se acalmou e descansou a cabeça nas patas. Seus olhos diziam

exatamente o que eu não queria ouvir.

Embora. Eles tinham ido embora .

 —  Ela sabe —  sussurrei. —  Mamãe descobriu, com certeza.

Olhei para a casa. Era tudo culpa do meu pai. Tudo. Ele tinha des-

truído a minha família. Era o culpado do afastamento da mamãe e do

 Jack. Era um monstro por destruir tudo que tínhamos.

E eu nunca o perdoaria por isso.

Meus olhos se fixaram numa pedra a alguns metros de distância.

Não muito grande, não muito pequena. Hamloaf seguiu meu olhar e foi

até ela, como se fosse um graveto ou uma bola de tênis, mas tentei dis-

suadi-lo.

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 —  Não! Isso não é uma brincadeira.

Ele parou no meio do caminho, mas dava para ver que ainda pen-

sava que estávamos brincando.

Concentração. Controle .

Visualizei meus dedos envolvendo a superfície fria e lisa da pedra.

Lentamente, estendi o braço, dizendo a mim mesma que mantivesse a

calma. A firmeza. Mandei a única mensagem possível ao meu cérebro.

Pegue a pedra .

E, de repente, peguei.

Rolei-a entre as mãos por uns instantes. Senti suas partes macias e

ásperas, e me perguntei como uma coisa tão pequena poderia ser tão pe-

sada. Depois, levei o braço para trás e lancei a pedra na direção da nossa

casa.

O mundo pareceu ficar mais devagar enquanto a pedra flutuava noar e finalmente batia na grande janela dos fundos. Ouvi barulho de vidro

quebrado antes de ver a janela se partir.

A voz assustada do meu pai ecoou lá dentro.

 —  O que foi isso? Ei! Quem está aí?

A última coisa que eu queria era vê-lo. Eu precisava que ele conti-

nuasse sendo um monstro dentro da minha cabeça. Se ele se parecesse

com o meu pai —  o pai de quem me lembrava e que amava — , não sei se

teria forças para fugir correndo. Então, zarpei, dando a volta na casa, in-

do para o mais longe possível.

 —  Eu te odeio! —  gritei. –  Te odeio!  

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Somente quando minhas sapatilhas pisaram a areia, um ou dois

minutos depois, e quando senti a brisa no meu cabelo, me permiti parar

e recuperar o fôlego. Eu me ajoelhei na praia e enterrei a cabeça nas

mãos enquanto lágrimas rolavam pelo meu rosto. Fechei os olhos e senti

o peso do mundo sobre mim novamente. Agora eu estava realmente, ab-

soluta e irrevogavelmente sozinha.

Mamãe e Jack foram embora. Meu pai é um monstro. Minha família

morreu .

Então, ouvi um espirro. Senti um nariz quentinho e molhado na

minha bochecha. E quando abri os olhos, percebi que não estava sozi-

nha.

Não completamente.

Porque Hamloaf tinha me seguido.

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Capítulo 29

In the arms of an angel

 —  Você não pode ficar aqui, seu cachorro bobo  —  eu disse para

ele quando o sol começou a se pôr. —  Tem que voltar para ficar com pa-

pai. Você tem que ir para casa. —  Ele inclinou a cabeça para o lado e eu

soube que estava pensando a mesma coisa que eu.

Que casa?  

Ele estava certo. Mas como isso poderia funcionar? Se o mundo vis-

se um cão andando pela estrada sozinho, não demoraria muito para que

alguém tentasse pegá-lo —  ou para levá-lo a um canil (o mais provável)

ou para adotá-lo. Quero dizer, por que não fariam isso? Ele era ridicula-

mente fofo.

 —   Provavelmente vão mudar seu nome para alguma coisa terrível

tipo Buster ou Sparky. —  Funguei. —  Acho melhor não.

Ele bocejou, a boca toda aberta, depois deitou de barriga.

 —  Exatamente, meus pêsames.

Ficamos juntos ali por um tempo, vendo as ondas indo e vindo, as

estrelas despontando uma a uma no céu. Contei para Hamloaf por onde

eu tinha andado e o que eu tinha visto. Falei do Patrick e da Senhora das

Palavras Cruzadas, do salto da ponte Golden Gate —  das duas vezes —  e

disse que preferia morrer de novo do que ter que comer mais um pedaço

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de pizza. Ele deitou a cabeça fofa no meu colo e suspirou, como antiga-

mente.

Eu sabia como ele se sentia.

Com Hamloaf ao meu lado era quase fácil fingir que éramos somen-

te uma menina e seu cachorro —  em vez de uma alma perdida e um cão

de rua. Não consegui não desejar que o M&E tivesse um capítulo sobre

voar com cachorros. Provavelmente não era a melhor ideia, na verdade.

Olhei para ele e beijei seu nariz.

 —   Era só o que faltava. Alguém chamando a polícia por conta de

um cão voador não identificado.  —  Ele chegou o nariz mais perto e me

atrevi a fechar os olhos por um segundo. A luz já havia quase ido embo-

ra. Era tão bom relaxar um pouco.

Então, do nada, senti arrepios se espalhando pela minha pele, fa-

zendo cócegas nos meus braços. Meu sistema interno de alerta disparou

imediatamente e sentei. Hamloaf cheirou o ar, o rabo batendo na areia.

Tum. Tum. Tum .

 —  Shh. —  Olhei em volta mas não consegui ver muita coisa. Come-

cei a sentir medo. O que eu estava fazendo sozinha ali, no escuro?  —  

Aqui, garoto.  —   Abracei Hamloaf. Ele não era exatamente um pastor

alemão, mas, com sorte, se alguém estivesse rondando por ali, não nota-ria a diferença. —  Será que dá para você rosnar um pouquinho?  —  sus-

surrei.

Ele coçou a orelha e bufou.

Tudo bem, isso vai assustá-los, com certeza .

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Uma luz amarela piscou na minha frente, fazendo com que eu desse

um pulo. Prendi a respiração e vi a luz piscar uma segunda vez. Aí, outro

ponto se iluminou a alguns centímetros do meu ombro, suspenso no ar.

O que é isso?

Um ou dois no começo. Mas logo apareceu outro. E mais outro. Fi-

quei impressionada porque o ar começou a se encher deles  —  pequenos

pisca-piscas, dançando sobre nossas cabeças.

Vaga-lumes .

Logo, eram incontáveis. Centenas e centenas deles. Eu nunca vira

nada igual. Não na vida real. Nem mesmo nos meus sonhos. Uma coisa

incrível.

Não, uma coisa mágica .

Nós dois ficamos olhando, hipnotizados, enquanto os vaga-lumes

tomavam conta da praia, lentamente. Indo em direção ao norte. Ilumi-

nando o caminho para São Francisco.

 —  É um sinal —  sussurrei. —  Só pode ser um sinal. —  Eu sentia a

pulsação das suas asinhas delicadas no ar, esfriando gentilmente meu

colar. Vi os rastros de luz que deixavam para trás cada vez que acendiam

e apagavam, engolfando a orla num brilho amistoso.

Hamloaf deu um pulo e se sacudiu, caçando-os na beira d’água. 

Imitei-o, rindo enquanto meus pés entravam em contato com o oce-

ano frio, iluminado. Dançamos sob as fagulhas, seguindo-as quando mi-

gravam pela beira. Pela primeira vez em séculos, um sentimento há mui-

to esquecido encontrou um caminho de volta ao meu peito.

Esperança .

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A sensação de que qualquer coisa ainda era possível.

Então eu peguei Hamloaf nos braços, ainda que de forma desajeita-

da, e sussurrei em seu ouvido para que aguentasse firme. Depois me

concentrei no Rabbit Hole, com seu grande vitral azul e lanternas bran-

cas de papel penduradas no teto. Eu imaginava as velas tremeluzindo e

as frases sobre as paredes de cerejeira em uma elegante tinta preta  —  

frases dos melhores livros infantis.

Hamloaf estava ganindo e eu o apertei com ainda mais força contra

o peito. Ele não ia ficar longe de mim agora. Eu lhe dei o único conselho

que pude:

 —  Aguente firme, Ham. Aguente firme.

Então começamos a girar, dando voltas por uma montanha-russa

de mar, areia, névoa e uma nuvem de vaga-lumes tão espessa que eu

quase não conseguia respirar. Senti meus pés saírem do chão e ouvi

Hamloaf começar a uivar como louco enquanto decolava rapidamente em

direção ao centro de São Francisco.

O ritmo do tempo diminuiu como num antigo filme mudo, e tudo ao

meu redor se dissolveu. E, nesse momento, apenas um pensamento ficou

na minha cabeça.

Queria que Patrick estivesse aqui .

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Parte 4

Barganha 

Capítulo 3

C  alifornia dreamin’ 

A cidade estava escura e cheia de sombras. Não havia ninguém.

Não pulsava. Era quase como se alguém tivesse passado por ali com um

aspirador de pó gigante e sugado toda a vida existente.

Não aterrissamos no lugar exato onde eu planejara  —   mais para

Fisherman’s Wharf do que para Haight. Não que isso realmente impor-

tasse. Todas as ruas estavam vazias. Todos os prédios estavam lacrados.

Nem uma alma para contar a história.

Rodei e ziguezagueei pelas ruas carregando Hamloaf, às vezes vi-

rando à esquerda, às vezes à direita. Estranhas árvores retorcidas lança-

vam sombras no asfalto, e estremeci, me perguntando quanto tempo o

sol levaria para se levantar. Mas, quanto mais andávamos, mais escuro o

céu parecia ficar. E mais brilhantes pareciam as estrelas acima de nos-

sas cabeças.

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Em algum momento, peguei o telefone de Sadie no bolso e conferi

que horas eram, mas o visor estava apagado.

 —   Porcaria de bateria.  —   Joguei o iPhone numa lixeira próxima,

onde ele caiu fazendo barulho. O som fez com que Hamloaf rosnasse, e,

por um segundo, tive medo, como se tivéssemos ido diretamente para o

cenário de Madrugada dos mortos , filme em que a garota e seu cachorro

acabam virando jantar de zumbis.

 —  Nada como o lar —  sussurrei e fechei os olhos.  —  Nada como o

lar, nada como o lar, nada como o LAR .

 Juntei minhas sapatilhas na esperança de efeito extra, caso isso

pudesse ajudar. Mas quando abri novamente os olhos, ficou muito claro

que o velho truque de Dorothy não funcionaria com a gente.

Imaginei Patrick revirando os olhos. Cheio de sarcasmo, dizendo:

Ótima tentativa, Cérebro de Queijo .

Até Hamloaf riu de mim, como se eu fosse uma idiota.

 —  Ah, é? —  falei. —  Alguma ideia melhor?

Continuamos a andar pelas ruas, indo do Wharf até Cow Hollow,

depois para North Beach, onde minha família costumava comer num res-

taurante italiano. Continuava tendo esperança de encontrá-los  —  talvez

aparecessem no carro do papai, as janelas abertas, prontos para nos le-var para casa.

Continue sonhando .

Mas quem eu estava tentando enganar? Era só eu. Só Ham. Só a

lua cheia e um céu cheio de estrelas.

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Como não estávamos muito longe, resolvi que iríamos para Macon-

dray Lane, uma ruela escondida que já fora um dos meus lugares predi-

letos  —  cheia de árvores, flores e hera, com uma das vistas mais lindas

que a cidade tinha a oferecer de Alcatraz e da baía.

Mas a razão verdadeira do meu amor por aquele lugar era o fato de

que Macondray Lane havia sido o cenário do meu primeiro encontro com

 Jacob. Um dia depois da formatura do PCH e nosso primeiro beijo.

Quando chegamos, me permiti lembrar daquela tarde de outono. O

cheiro doce no ar, o som das folhas das árvores sussurrando umas para

as outras enquanto se espalhavam no chão de pedras. Lembrei de como

aquele dia tinha sido quente, maravilhoso, uma surpresa absoluta. Ja-

cob Fischer —  louco por sorvete, mais do que tudo — , na verdade, gosta-

va de mim.

Assisti, encantada, enquanto a lembrança se reproduzia na minha

frente em tempo real. As sombras deixaram o chão. As flores começarama se abrir e esticar seus caules. Senti pontadas de calor na pele, e a rua

foi iluminada pelo sol.

De repente, lá estávamos nós. Ele e eu. Ou melhor, meu antigo eu.

Meus olhos se esbugalharam quando viram Jacob andando pela rua,

vestindo um jeans surrado e o meu moletom preferido, seus dedos entre-

laçados nos meus.

 —  Aonde a gente está indo?  —  Meu Velho Eu riu, de olhos venda-

dos. —  Ainda não chegamos?

 —   Você vai ver  —   disse o Jacob de antigamente.  —   Só falta um

pouquinho.

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Hamloaf ergueu os olhos, o rabo batendo na rua desigual de parale-

lepípedo. Ele inclinou a cabeça e ganiu, sem compreender como, de re-

pente, podiam existir duas de mim.

Então, entendi. O cachorro também podia vê-los. O cachorro  podia

ver minhas lembranças.

 —  Então você está dentro da minha cabeça, agora, é isso? Você é o

quê? Uma espécie de cão espião?

Ele respondeu lambendo minha mão.

Acho que isso foi um sim .

 —  Acho bom essa surpresa ser boa —  disse Meu Velho Eu, rindo.

 —  Não se preocupe —  Jacob me provocou. —  Prometo que você vai

estar em casa antes de começar America's Next Top Model .

Eu não conseguia tirar os olhos do rosto da menina. Ela era eu. Eu

era ela. Mas, de alguma forma, não era. Eu conhecia sua memória comoa palma da minha mão. Mas, por alguma razão, vendo aquilo acontecer

de novo na minha frente, tive a sensação de estar espionando a vida de

outra pessoa. Como se nada daquilo tivesse me pertencido, para começo

de conversa.

Lembro do quanto fiquei impressionada com Jacob naquela tarde.

Impressionada com a confiança na voz dele, com o tanto que ele me pa-receu consistente. Mas vendo-o deste ângulo agora, pude perceber como

estava nervoso, na verdade. Talvez como se tivesse medo de que eu não

gostasse dele também.

 —  Espere aqui —  disse ele, soltando minha mão. Abriu a mochila e

pegou um cobertor azul-marinho. Vi-o estender o pano sobre o gramado

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e, com as mãos tremendo, pegar vários petiscos. Pelo menos cinco tipos

de queijo, sem falar nas framboesas e no pão francês fresquinho, além de

torta de maçã para a sobremesa.

Minha preferida .

Vi quando ele respirou fundo ao tirar lentamente a venda do meu

rosto.

 —  Tá. Pode abrir agora.

A Velha Brie ficou sem ar quando seus olhos se acostumaram com

a luz.

 —  Você fez tudo isso para mim?

Ele baixou a mão e pegou uma florzinha vermelha, e senti um aper-

to no peito ao vê-lo entregá-la. Eu sabia o que vinha a seguir.

A Velha Brie sorriu timidamente, pegou a flor e inclinou o rosto pa-

ra cheirá-la. Mas talvez tenha sugado o ar com muita força, porque aspétalas se desprenderam imediatamente e foram parar no seu nariz.

 —  Nossa. Isso, sim, é uma narina potente —  brincou Jacob quando

conseguiu parar de rir. —  Acho que uma parte do seu ser é um aspirador

de pó, é isso?

Meu Antigo Eu balançou a cabeça e jogou a flor para ele.

 —  Acho que você quis dizer cortador de grama, não?

Vi um brilho doce nos olhos dele.

 —  Feliz aniversário, Brie.

Então, os dois se perderam num mar de beijos.

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Senti meus olhos se encherem de lágrimas e precisei desviar o ros-

to. Num instante, as sombras voltaram, esgueirando-se pelo paralelepí-

pedo como se fossem cobras. O menino e a menina desapareceram e a

luz do sol evaporou.

 —   Meninos são tão idiotas  —   sussurrei, sentindo-me mais só do

que nunca. Hamloaf ganiu. —  Você, não —  corrigi. —  Você é o único me-

nino de quem gosto.

Em segundos, estávamos novamente sozinhos. Lado a lado numa

ruela.

 —  Vamos, Hamloaf. Vamos sair daqui.

Seguimos. Parecia que, por onde andávamos, eu encontrava alguma

coisa que me fazia lembrar da minha vida antiga. Hera nos muros, como

na casa da minha tia, em Seattle. Grafites de símbolos de paz, arco-íris,

esqueletos dançantes, como nos cartazes do meu pai, guardados na ga-

ragem. Toldos listrados de preto e branco, muito parecidos com o papel

de parede do banheiro que eu e Jack dividíamos no segundo andar de

casa.

Era como se minha memória tivesse atravessado São Francisco,

deixando uma espécie de marca por onde Brie passara. Viramos à es-

querda na Beulah, depois à direita na Shrader. Meio quarteirão adiante,

chegamos.

Mas, para minha surpresa, quando olhei para cima, o Rabbit Hole

tinha desaparecido.

Ou melhor, estava caindo aos pedaços.

O lugar estava totalmente abandonado. A vitrine, antes linda, agora

estava destruída. A porta estava aberta, pendurada pelo que restava das

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dobradiças, como se alguém com problemas de comportamento a tivesse

chutado. Tinta preta –  símbolos estranhos, que não reconheci –  atraves-

sava as paredes de fora, e o velho poste de luz da rua parecia não ser uti-

lizado havia bastante tempo. Para onde quer que eu olhasse, a rua esta-

va coalhada de pedaços de vidro estilhaçado.

A cena me deu arrepios e me fez desejar estar de volta em Half Mo-

on Bay.

 —  Olhe só aonde eu trouxe a gente, o lugar mais estranho do uni-

verso —  falei. Por outro lado, pelo menos não escorreguei numa casca de

banana ou perdi todas as minhas roupas acidentalmente, o que, me co-

nhecendo, não eram possibilidades totalmente remotas.

Corei por um instante, lembrando de Patrick fechando meu vestido

depois do meu segundo pulo da ponte. Era a minha cara ter a sorte de

ser vista completamente nua por um cara morto e vindo diretamente dos

anos 1980.

 Tudo bem, sim, um gatinho morto vindo diretamente dos anos

1980, mas… 

 —  Vamos, lobão. —  Ajoelhei para pegar Hamloaf nos braços e voar

com ele de volta para Half Moon.  —  Não tem mais nada para a gente ver

aqui.

Uma voz atrás de mim me paralisou.

 —  Indo embora tão rápido?

Fiquei com o ar preso na garganta enquanto virava e dava de cara

com uma menina da minha idade. Era pequena, tinha aparência atlética,

um rosto lindo e olhos da cor do carvão. Uma trança comprida e escura

caía no seu ombro e sua pele era tão lisa que ela me lembrou uma bone-

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ca de porcelana. Na verdade, se não fossem as cicatrizes de queimaduras

que começavam na testa na altura da linha dos cabelos e se espalhavam

como pequenas labaredas em todo o lado esquerdo do seu rosto, a meni-

na poderia ter sido modelo.

Com certeza.

Encarei-a, completamente confusa. Mas não porque era bonita.

Porque a reconheci .

 —  Oi, Brie. —  Ela sorriu e seus olhos faiscaram, iluminando a es-

curidão. —  Sou eu. Larkin.

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Capítulo 31

Enjoy the silence

 —  L arkin? Larkin Ramsey ?

Bati com força no braço dela, punindo-a por ter me assustado.

 —  O que é que você está FAZENDO aqui?!

 —  Ai! —  gritou em resposta, rindo. —  Meu Deus, eu queria que você

pudesse ver a sua cara agora. Impagável.

Eu simplesmente não conseguia acreditar. Era loucura demais para

ser verdade. Mas, não, essa menina era, definitivamente, Larkin. Não ti-

nha mudado nada, ainda era exatamente como eu me lembrava dela nonono ano. Bem, fora o fato de estar “morta”. 

Nem me fale em mundo pequeno. Ou em pós-mundo pequeno .

Ela falou com Hamloaf.

 —  Quem é o beagle ?

 —  Basset hound   —  corrigi. —  Você não se lembra dele?

Ela o encarou por uns trinta segundos sem dizer uma palavra.

 —  Hamloaf? —  Abaixou-se e pegou a pata dele. —  Não acredito. —  

Seu tom era de choque verdadeiro. —  Você está brincando. Nunca vi um

caso de travessia ao contrário.

 —  Travessia o quê?

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 —  Não, boba, eu quero dizer, o que você está fazendo morta ? O que

aconteceu? Você não era tipo a rainha da equipe de natação, alguma coi-

sa assim?

Ri.

 —  Equipe de mergulho, acho que foi o que você quis dizer.

 —  Natação, mergulho… —  Acenou com a mão. —  Todos os dois dei-

xam o cabelo verde. Então, o que aconteceu? O que derrubou Aubrie Ea-

gan, a invencível?

Invencível. Rá, essa foi boa .

 —  Não sei  —   respondi, tentando encontrar as palavras certas.  —  

Acho que eu tive um problema com… 

 —  Espere, espere, espere, vou adivinhar! Vai ser mais divertido.  —  

Ela me rodeou, devagar, de braços cruzados.  —  Pode ter sido… um aci-

dente de avião ?

Fiz que não com a cabeça.

 —  Assalto a banco?

 —  Não.

Ela encarou Hamloaf.

 —  Morte provocada por pum de cachorro? —  Ei! —  Ri. —  Um pouco de gentileza, por favor!

 —  Tá, tudo bem. —  Ela suspirou. —  Só estava explorando todas as

possibilidades. —  Ela me encarou com olhos de detetive. —  Acidente de

balão? De carro? Problemas com um garoto ?

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Seu último palpite chamou minha atenção. Eu me encolhi um pou-

quinho.

 —  Problemas com um garoto! —  exclamou ela. —  É isso, não é?

Fiz que sim.

 —  Mais ou menos.

Ela ergueu a mão.

 —  Eu sou incrível. Toca aqui.

Ri.

 —  Eu sei, eu sei.

 —  É sério! —  disse Larkin. —  Toca aqui, amiga! Adivinhei na quinta

tentativa. Muito bom.

 —  Ah, tá —  falei. —  Claro.  —  Estendi rapidamente a mão e toquei

na dela.

 —  Nossa, foi o cumprimento mais caído do mundo.  —  Ela ergueu a

mão mais uma vez. —  De novo.

Encarei-a, ligeiramente envergonhada pela minha falta de habilida-

de.

 —  Anda, vai —  disse ela. —  Finja que está dando um tapa na cara

dele.

Ri, mas resolvi tentar. Pensei no rosto dele. Naquele rosto irritante

de mentiroso. Lembrei que ele sempre gostava de escolher o lugar quan-

do a gente saía, que os lanchinhos na casa dele nunca eram tão bons

quanto na minha, que eu tinha sido tão boa namorada que jamais men-

cionei que às vezes ele tinha bafo de Doritos.

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 —  Estou esperando. —  Larkin bateu o pé, impaciente.

Pensei em Sadie nos braços dele naquela manhã na praia. Pensei

na traição dos dois.

E bati na mão de Larkin com toda força.

CLAP!  

 —  Caraca! —  gritou Larkin. Deu um passo para trás e soprou a pele

para refrescar. —  Tá. Isso sim é um cumprimento decente.

Sorri e não consegui deixar de pensar que gostaria que Patrick ti-

vesse presenciado a cena.

 —  Valeu.

Ela chutou alguns estilhaços de vidro no chão e se sentou na cal-

çada, um pouco mais à frente.

 —  Então. Foi tão ruim assim, é?  –  Enfiou a mão no bolso e pegou

um maço de cigarros amassado.

 —  Foi. —  Fiz um gesto afirmativo. —  Foi ruim mesmo.

Ela estendeu o maço na minha direção.

 —  Quer?

 —  Não, obrigada. Estou bem.

 —  Como você quiser. —  Depois de um rápido movimento do dedão,

uma pequena chama saiu de dentro do seu punho, sem a necessidade de

um isqueiro.

Uau. Acho que perdi esse capítulo do M&E .

Por um instante, não consegui evitar meu olhar fixo. O brilho da

chama dava um ar fantasmagórico ao rosto de Larkin e iluminava as

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marcas de suas queimaduras. Não consegui não lembrar da cicatriz de

Patrick. Da maneira como ele se esquivava por conta dela.

Acidente de moto , dissera ele. Nada demais .

A lembrança daquela voz me deu certo enjoo, e senti culpa por ter

dispensado meu amigo. Pior ainda.

Eu me senti egoísta.

Ficamos ali, juntas, sentadas em silêncio até que o cigarro dela vi-

rasse quase nada. Eu me dei conta de que não sabia o que lhe dizer, já

que nossa última conversa tinha acontecido no carro, a caminho do colé-

gio, quando estávamos no quinto ano.

 —  Eu me apaixonei, uma vez —  disse Larkin. —  O pobrezinho nem

sabia que eu existia. —  Riu e passou cuidadosamente a mão nas cicatri-

zes do rosto. —  Quero dizer, não que eu tenha existido por muito tempo,

na verdade. —  Depois, piscou para mim. —  Bem. Pior para ele.

Pareceu-me difícil acreditar que alguém tão linda quanto Larkin  —  

com ou sem cicatrizes  —   pudesse um dia ter sofrido por causa de um

menino. Claro, ela sempre foi meio solitária, mas era um pouco demais

imaginar que Larkin Ramsey já tivesse tido problemas com garotos.

Mas, quem sabe? , pensei. Talvez coração partido seja uma possibili- 

dade igual para todos . —  Quem foi? —  perguntei, querendo saber mais. —  Quem era o ga-

roto?

 —  Promete que não vai rir?

 —  Prometo.

Ela sorriu, sem graça.

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 —  Dr. O’Neil. 

Fiquei de queixo caído.

 —  O professor de química? —  Eu sei! —  resmungou ela. —  Mas, fala sério. Ele era sexy!

Não pude discordar. Conhecia várias garotas que achavam a mes-

ma coisa. Inclusive Sadie.

Falamos e falamos, o assunto parecia não acabar. Contei da pizza-

ria, de minha briga com Patrick. Falei que quase venci meu medo de mo-

tocicletas, do caso do meu pai com a sra. Brenner. Falei até do meu co-

ração partido idiota e do garoto mais idiota ainda, culpado pela minha

morte. Falei do cabelo idiota dele, do sorriso, do skate idiota e do time

idiota de atletismo  –   contei até sobre sua obsessão mais idiota ainda

por O  senhor dos anéis .

 —  Sei lá —  disse ela. —  Esse Jacob aí está me parecendo o Rei dos

Imbecis. Acho que você está melhor sem ele.

Foi bom desabafar. Bom mesmo. Inspirei bem devagar, sentido-me

totalmente livre enquanto o cheiro da praia, das ondas e do sol enchia

meus pulmões.

Ah, finalmente, a luz do dia .

Olhei para o céu, mas me surpreendi quando não consegui ver nem

um pouquinho de dourado, de azul ou de violeta, surgindo no horizonte.

Só um preto infinito.

 —  Não precisa se assustar  —  disse Larkin.  —  O sol já não nasce

aqui há séculos. —  Ela se levantou e espreguiçou.  —  Ei! —  Riu. —  Pelo

menos a gente não tem câncer de pele.

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 —  Boa. Bem lembrado  —  disse eu, também me levantando. Antes

que me desse conta, ela me abraçou com toda força.

 —   Estou tão feliz que você está aqui, Brie.  —   Ela olhou para

Hamloaf, que roncava pacificamente na calçada, do outro lado da rua.

Por um instante, seus olhos pareceram mais brilhantes sob a luz das es-

trelas.

 —  Vocês dois.

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Capíulo 32

 Just like a prayer

Sempre que as pessoas falam na morte, ficam muito apegadas à

última coisa que aparece diante dos seus olhos. Ao último pensamento.

À última memória. O último sentimento ou beijo ou a última música queouviu no rádio —  seja lá qual for a ÚLTIMA coisa significativa que, de al-

guma maneira, deva encapsular toda a sua existência num único mo-

mento, envolta num flash perfeitamente embalado, o último sopro ilumi-

nado da vida.

Mas aqui vai um momento sobre esse último grande flash.

Ele não existe .

Não. Na verdade, é tudo muito mais simples.

Passo um: você está aqui.

Passo dois: não está mais.

Então, as luzes se apagam para sempre. Uma coisa assustadora, eu

sei. Podem acreditar em mim, eu costumava ter medo do escuro.

Mas não tenho mais.

Não desde que Larkin me mostrou o que significa deixar as coisas

para trás. Libertar sua mente. Viver um pouco, digamos assim.

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No ano do Garoto que Prefiro Não Mencionar, eu costumava passar

horas cantando músicas românticas mil vezes, me perdendo na melodia

ou na letra, como se cada palavra tivesse sido escrita especialmente para

nós. Mas Larkin me ensinou a desligar o som. Ela me ajudou a criar

uma nova playlist .

Uma muito melhor .

Era inacreditável o tempo que tinha perdido na pizzaria. Tudo na-

quele lugar estava tão morbidamente voltado para o passado. Desde as

lembranças que revi repetidamente até os lugares com os quais sonhei,

as coisas que desejei.

Aqui, tudo era diferente. Nesta parte do céu, não existem preocupa-

ções com nada nem ninguém que já existiu em outro tempo que não

AGORA. O sol nunca nasce nem nunca se põe, então não existe ontem

nem amanhã. O Mundo dos Vivos estava completamente fora do campo

de visão e completamente fora da mente. Nada de ficar no passado. Nadade redes de segurança. Eu estava livre, acho que pela primeira vez.

E a cidade era nosso parque de diversões.

Depois de um tempo, comecei a me sentir em casa. Larkin e eu de-

signamos Hamloaf nosso Mestre Farejador de Refeições . Um latido signi-

ficava que algo era perfeitamente comestível; dois latidos, nem tanto as-

sim. Admito que fiquei um pouco mimada depois da pizzaria, depois de

ter comida infindável num estalar de dedos, e precisei de algum tempo

para me ajustar à nova categoria de Mergulhadora de Lixo. Mas Larkin

me ensinou que, se a pessoa tiver paciência  —  e estômago  — , encontra

mais do que o suficiente.

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Não era um sistema perfeito, mas nós três nos virávamos. Tudo que

eu sabia era que amava a energia dali, a lua cheia emanando sua luz so-

bre nosso pequeno mundo mágico. Senti que finalmente tinha encontra-

do meu lar, fosse o que fosse aquele lugar.

Mesmo desejando, de vez em quando, que Patrick estivesse comigo.

Patrick? Você está por aí?  

Sem resposta. A linha fora cortada. Por fim, parei de tentar me co-

nectar.

Nós três dormíamos em parques e trens abandonados, em telhados,

no Presídio, no Palace of Fine Arts, esparramados como se fôssemos do-

nos do lugar já que, basicamente, éramos. Sobrevoávamos as ruas em

velocidade estonteante, quebrávamos janelas e revirávamos latas de lixo

por onde passávamos.

Larkin se mostrou a melhor ouvinte que já conheci. Sempre queria

saber mais sobre minha história e como eu imaginava meu futuro. Nun-

ca me interrompia nem desviava os olhos quando eu falava. Às vezes ria,

às vezes chorava; às vezes simplesmente me deixava deitar a cabeça em

seu colo, como se fosse a irmã mais velha que eu não tive, me fazendo

cafuné até eu dormir.

Depois de um tempo, quando finalmente cansei de falar de mim, ela

começou a se abrir em relação à própria vida  –  principalmente sobre os

anos depois que perdemos contato. Ela me disse que nunca teve amigos

próximos de verdade no PCH e que se envolvera com fotografia porque se

sentia bem por trás das lentes da câmera. Falou que era sua maneira de

voltar o foco para todos os idiotas que a julgavam por ser diferente deles.

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E me contou como se sentira feia depois do incêndio, quando acor-

dou desse lado completamente envergonhada da própria aparência e de-

sesperada para encontrar um lugar onde ninguém a olhasse. Contou

como, depois de meses vagando, a cidade a chamou, e ela ouviu.

Na cidade, ela me disse, não era um problema estar perdida. Não

era um problema ser esquisita. E duas esquisitas juntas, concordamos,

era muito melhor que uma sozinha.

Quando ficávamos muito entediadas, pulávamos do prédio mais al-

to da cidade, o Transamerica Pyramid, e apostávamos quem caía mais

rápido. Começávamos com uma corrida na escada até o quadragésimo

oitavo andar, passávamos pelo restaurante e pela loja de lembrancinhas,

que tinha um papel de parede horroroso e de um carpete pior ainda. De-

pois, corríamos até o deque de observação abandonado —  com vista para

cada centímetro de São Francisco.

 —  Sabe de uma coisa?  —  Larkin disse uma noite, lá de cima, nos-sas pernas penduradas por sobre a cidade. Ela desfez a trança e come-

çou a pentear o cabelo comprido e preto com as mãos. —  Acho que fiquei

tempo demais sozinha. Esqueci como é melhor ter uma parceira no cri-

me. —  Riu para mim. —  Amo a gente. Nós duas somos the best .

Best , pensei. Brie. Emma. Sadie. Tess .

 Toquei no meu colar, o pequeno coração esquentando entre meus

dedos enquanto minha mente se voltava para as três. Minhas meninas.

Não disse para Larkin que daria tudo para tê-las comigo como antiga-

mente.

 —  Também amo a gente —  respondi, tirando minhas amigas da ca-

beça. Não havia motivo para trazer o passado de volta.

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 —  Esse colar é lindo —  disse Larkin. —  Já estava para dizer isso há

um tempão.

 —  Valeu —  falei. Pela primeira vez, reparei numa tatuagem peque-

nininha no ombro esquerdo dela. Um círculo minúsculo com um X em

cima. Mas não parecia uma tatuagem convencional, feita com tinta. Pa-

recia ter sido entalhada no braço dela como algum tipo de lâmina.

Alguma coisa naquele símbolo me pareceu familiar, mas não sabia

exatamente o motivo.

 —  Quando você fez isso?

Ela olhou para o próprio ombro e deixou o cabelo cair em ondas.

 —  Ah, isso? Foi só uma coisa idiota que eu fiz nas férias de julho,

no primeiro ano. Fui com um grupo para Cancun e a gente escapou

quando nossos pais estavam dormindo. Um garoto, Justin Chance, fez

uma e me desafiou a imitá-lo. Acho que sou péssima nesse tipo de desa-

fio, não? —  Revirou os olhos. —  Adolescentes.

Olhei para o horizonte. De repente, uma sombra na baía chamou

minha atenção.

 —  O que é aquilo? —  Meus olhos se fixaram numa pequena ilha so-

zinha, bem longe de Alcatraz, perto de Sausalito (uma cidadezinha lito-

rânea que tinha uma das melhores lojas de queijo do mundo). O lugarparecia selvagem. Nada além de florestas e praia, pelo que eu conseguia

ver.

 —  Ilha do Anjo —  respondeu Larkin. —  Já ouviu falar?

Vasculhei a memória, mas nada me veio à mente.

 —  Não.

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Sorri.

 —  Tem certeza de que quer desafiar a rainha do mergulho?

 —  Garota  —   respondeu ao desafio  — , posso totalmente ganhar devocê.

Então, contamos até três e nos jogamos da lateral do prédio, rindo

como malucas enquanto o vento zunia a nossa volta durante a descida.

Alguns dias depois —  apesar de ser muito difícil contar os dias sem

um nascer do sol de verdade — , estávamos num dos nossos lugares pre-

feridos em Tenderloin: o playground do Sergeant John Macaulay Park,

perto da esquina entre O’Farrel e Larkin Street. 

 —  Aqui é de longe a rua mais linda de São Francisco, não acha?  —  

comentou Larkin, de cabeça para baixo no trepa-trepa.

Ri, no balanço.

 —  Narcisista. —  Dei um impulso mais forte, empurrando as pernaspara a frente e esticando o corpo para trás, além do banquinho de metal

e das correntes de sustentação. Quando alcancei uma velocidade boa o

bastante, fechei os olhos e fingi que estava voando, o ar frio e delicioso

da noite em volta do meu corpo. Em algum lugar distante, ouvi Hamloaf

cavando na areia.

Passamos algumas horas brincando do que Larkin mais gostava:verdade ou consequência. Ela me desafiou a descer a Lombard Street ro-

lando em cima de uma lata de lixo e eu a desafiei a acordar uma foca,

que quase lhe deu um tapa na cara com uma nadadeira. Então era mi-

nha vez de novo.

Minha vez.

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 —  Verdade ou consequência?  —   perguntou Larkin.  —  E acho me-

lhor você dizer consequência.

Balancei a cabeça.

 —   Nem pensar. Já me ferrei o suficiente com aquela lata de lixo.

Então vou de… verdade .

 —  Sério? —  resmungou ela. —  Meu Deus, como você é chata.

Sorri.

 —  Só vai ser chato se você me fizer uma pergunta chata.

Larkin ficou em silêncio por uns instantes e me perguntei o que ela

poderia estar tramando. Ela tinha muita imaginação. Provavelmente, eu

estaria em maus lençóis.

 —  E aí? —  pressionei. —  Quero ver seu potencial, Ramsey.

Ela desceu rapidamente do trepa-trepa e passou pela areia até os

balanços. Parou no brinquedo vazio ao meu lado.

 —  Se você pudesse voltar para sua vida antiga —  disse, finalmente

 —, só por um dia… —   Seus olhos cinzentos encontraram os meus.  —  

Voltaria?

Hein?  

De cara a pergunta me pareceu muito óbvia. Mas quando abri a bo-ca para responder, para minha surpresa, não consegui dizer uma pala-

vra.

E comecei a chorar.

Ela me observou com cautela, mas não falou nada.

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 —  Não entendo —  disse eu, tentando manter a calma. —  Isso não é

possível.

 —  E se fosse?

Desviei o olhar.

 —  Mas não é.

Ela sorriu.

 —  Nunca diga nunca.

Lembrei da voz de Patrick. Nunca diga nunca, Anjo .

 —  Chega —  respondi. —  Isso não é engraçado.

 —  E quem disse que eu estou brincando? —  Ela estendeu o braço e

pegou minha mão. —  Não precisa se preocupar. A gente não precisa falar

disso agora. Talvez você não esteja pronta… 

 —  Como —  interrompi. —  Como você fez? Como você voltou?

Ela soltou minha mão, saiu do balanço e deu uma voltinha.

 —  Na verdade, a questão não é como, é quanto .

 —  Como assim? Quanto o quê ?

Larkin limpou as mãos e encolheu os ombros.

 —  Você sabe. Quanto você está disposta a pagar.

 —  Pagar? A quem? —  Cruzei os braços. —  O que eu poderia ter que

alguém quisesse?

Alguma coisa começava a parecer errada naquilo tudo. Errada

com E  maiúsculo.

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 —  Que tal seu colar?  —  disse Larkin, casual.  —  Você trocaria? Eu

poderia arranjar tudo para você reviver o dia que quiser, por exemplo, o

dia do aniversário do Jack na casa da Judy. Ou uma sexta-feira qual-

quer, numa balada com Emma e Tess… a escolha é sua.

Levei a mão ao pescoço.

Meu colar? Por que ela iria querer meu colar?  

 —  Ele provavelmente ficaria melhor em mim, de qualquer maneira

 —  disse ela, rindo. —  Dourado não é uma cor boa para você.

O tom da voz de Larkin estava realmente começando a me aborre-

cer. Era doce demais, parecia que ela estava fazendo muito esforço, uma

espécie de biscoito amanteigado com cobertura de sorvete. Uma mordida

e já era.

 —  Ahhh. —  Larkin arregalou os olhos, como uma criatura da flores-

ta eternamente feliz. Um coelho, talvez. Ou um cervo.

Meu Deus, ela é o Bambi , pensei, momentaneamente distraída. O

 personagem da Disney para ela é com certeza o Bambi .

 —  Que tal a noite do baile de formatura? Não ia ser bom? Você po-

deria rejeitar o Jacob de cara, no meio da pista de dança. Ele ia morrer

de vergonha!

Aquilo me tirou do eixo. Não queria que ela ficasse falando de todosos meus melhores momentos como se fosse dona de parte deles, quase

como se me conhecesse melhor do que eu mesma. Estávamos falando

da minha  vida. NÃO  da dela.

 —  Eu já  voltei —  respondi logo.

Os olhos de Bambi brilharam.

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 —  Não do jeito que estou falando, com certeza.

O mundo de repente pareceu fora de esquadro. Como se, talvez, eu

fosse vomitar.

 —  Chega —  falei. —  Não quero mais brincar.

 —  Não é um jogo, Brie. A gente pode fazer um acordo, aqui e agora.

 —  Ela sorriu. —  É mais fácil do que você imagina. E depois que você ti-

ver se divertido em casa, vai voltar e a gente vai farrear para sempre. Só

nós duas. O que você acha?

O que eu acho? Eu mal conseguia enxergar direito.

 —  Um dia inteirinho para reviver? —  sussurrei. —  Qualquer um? —  

Meu corpo começou a tremer enquanto lembranças de casa tomavam

conta de mim —  as memórias de dias tediosos que só eu poderia ter. Mi-

nhas amigas cantando Lady Gaga a caminho do colégio. Minha mãe fa-

zendo panquecas no dia do meu aniversário enquanto meu pai cantava

Bob Dylan para ela. Jack me perseguindo, gargalhando, com a manguei-

ra no jardim, nas férias de verão. O calor dos lábios de Jacob nos meus.

 —  Você está falando sério? —  sussurrei. —  Eu realmente posso vol-

tar? Sem compromisso?

 —  Bem… —  Larkin riu, apontando para o meu colar. —  Só esse pe-

queno compromisso. —  Deu outra voltinha. —  É um ótimo negócio se vo-cê pensar bem.

Ergui a mão e toquei de leve no colar delicado em volta do meu pes-

coço. Senti o fecho pequenininho de metal atrás, escondido pelo meu ca-

belo. Mas quando tentei abri-lo, senti leves choques quentes na pele,

como elásticos invisíveis. Pequenas labaredas azuis queimaram os can-

tos dos meus olhos.

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Num segundo, outra lembrança brotou diante de mim.

E quando ergui os olhos, a cidade desapareceu.

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Capítulo 33

You must be my lucky star

O vidro era cristalino e macio e manchou um pouquinho quando

passei o dedo sobre ele, devagarzinho, com cuidado.

Bem me quer. Mal me quer. Bem me quer. Mal me quer .

 —   Por favor, não toque na vitrine, meu amor  —   disse a mulher

atrás do balcão, o cabelo para trás, num rabo de cavalo baixo e frouxo.

 —  Acabei de limpar.

Saí imediatamente do meu sonho romântico.

 —  Ah. Desculpa.

Do outro lado do salão, ouvi o som abafado de uma gargalhada.

Senti meu rosto corar e fui até onde estavam Emma e Tess, perto do por-

ta-chapéus antigo.

 —  Valeu —  falei.

 Tess mostrou uns óculos escuros pretos e colocou no rosto.

 —  E?

 —  Amei —  disse Emma.  —  Totalmente Audrey. Apoio totalmente a

compra.

 —  Meninas, o Rabbit Hole é tudo! —  Sadie saiu do provador de rou-

pas com um vestido roxo tomara que caia. —  De agora em diante a gente

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vai vir aqui todo fim de semana. —  Ela tirou os óculos do rosto de Tess e

experimentou.

 —  Ei! —  protestou Tess. —  Nem vem que não tem.

 —  Ahh. —  Sadie fez uma pose na frente do espelho mais próximo.

 —  Fiquei maravilhosa com eles.

 —  O quê?!  —   exclamou Tess.  —  Nem pensar, você está parecendo

um gafanhoto. Seu rosto é muito pequeno. —  Ergueu a mão e bateu o pé

no chão. —  Me dá.

Sadie riu ao entregá-los.

 —  Tudo bem, tudo bem. Mas acabei de tirar você do meu discurso

de agradecimento no Oscar, fique sabendo disso.

 —  Posso correr esse risco. —  Tess colocou os óculos de volta.

 —  Ahhh, meninas, vocês têm que ver isso!  —  Emma acenou para

nós de um canto da loja, segurando uma caixinha de música preta, anti-ga, com margaridas pintadas à mão nas laterais.

 —  Linda! —  Sadie correu até lá, ainda com o tomara que caia.

 —  Olha só o que eu encontrei dentro.  —   Emma ergueu o queixo.

Uma corrente delicada de prata em volta do pescoço, com um pingenti-

nho de beija-flor pendurado.

 —  Ems, é perfeito! —  Inclinei o tronco para ver de perto.

 —  Não é? —  Ela sorriu. —  E tem mais. —  Abriu a caixa, espiamos

lá dentro e fomos cumprimentadas por uma mistura de ouro e prata.

Colares .

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 Todos brilhando. E todos implorando para que os experimentásse-

mos.

 —  Sério, meninas, são a nossa cara, não são? —  disse Tess. Pegou

dentro da caixa uma pequena sereia de cobre, quase da cor do cabelo de-

la. —  Sem chance  de eu não comprar isso. —  Estendeu para mim. —  Vo-

cê coloca em mim, please ?

Abotoei o colar no pescoço dela. A corrente tinha o tamanho perfei-

to; nem muito comprida nem muito curta.

 —  Perfeita .  —  Tess se iluminou, parecendo mais Ariel do que nun-ca.

Sadie tirou uma mecha de cabelo dos olhos. —  Agora eu. —  Passou

um minuto ou dois fuxicando os colares, parecendo desapontada. —  Ah,

não tem nenhum legal para mim.

 —  E esse?  —  Peguei um de ouro, com uma estrelinha linda, ligei-

ramente torta.

 —  Brie! —  Sadie se jogou em cima de mim.  —  É perfeita. Amei!  —  

Vasculhou a caixinha de joias. —  Que tal essa para você? —  Mostrou um

colar para mim. Ele brilhava na palma da mão dela e, quando peguei, foi

como se o colar tivesse me escolhido.

Um coração .Sadie foi para trás de mim e afastou meu cabelo para que eu pu-

desse fechar o cordão. Depois, passou o braço pela minha cintura e me

deu um beijo no rosto.

 —  Amei!

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 —  Já sei —  disse Tess. —  Vamos usar esses colares o tempo todo. E

vamos estar sempre juntas, seja lá como for.

 —  Certo —   concordou Sadie, dramaticamente. —  Vou colocar você

de volta no meu discurso do Oscar.

Nós nos encaramos por uns segundos, depois caímos na gargalha-

da.

 —  Sempre —  disse eu.

 —  Para sempre. —  Sadie olhou para mim e sorriu. Seus olhos cas-

tanhos brilhavam e dava para ver o quanto ela me amava.

Ah, Sadie. Sinto tanta saudade de você .

De repente, senti o gelado do ouro na minha pele. Senti o cheiro de

poluição da cidade enquanto a loja se desmanchava e o Macaulay Park

reaparecia.

Larkin estava de novo na minha frente, de mãos estendidas.

 —  Oi? Alô? Terra chamando Brie… 

Senti uma coisa estranha na boca do estômago.

Não. Não posso dar para ela .

 —  Toma. —  Ela enfiou a mão no bolso de trás do jeans e pegou um

canivete enferrujado.Onde ela conseguiu isso?  

Larkin deu um passo na minha direção.

 —  Vou te ajudar a tirar o colar.

Hamloaf deve ter lido a minha mente, porque começou a rosnar do

outro lado do parquinho.

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Prestei atenção em Larkin.

 —  Para que você precisa de um canivete?

 —  Não precisa ter medo  —  disse ela. —  Não vou te machucar nemnada. Você consegue o que quer, eu consigo o que quero. Aí —  ela sorriu

docemente — , vamos ser melhores amigas para sempre.

Bem , stalker, acho que você está levando as coisas um pouco ao pé

da letra demais .

De repente, fiquei completamente apavorada.

 —  Olha só  —  disse, me afastando. —  Acho que não estou muito a

fim de fazer isso… —  Mas antes que eu me desse conta do que estava

acontecendo, senti que meus braços e pernas estavam fora do meu con-

trole. Senti que me ajoelhava na areia diante dela, como se fosse uma

espécie de ovelha de sacrifício.

O que é isso?  

Assisti, apavorada, ela acionar a lâmina do canivete e andar na mi-

nha direção.

Espera um segundo. Que espécie de troca é essa?  

Eu era só uma menina. Só uma menina feita de fumaça, pó e me-

mórias esquecidas. O que ela poderia querer de mim?

 —  Salvação .  —   Pensei ouvir a voz de Patrick sussurrando.  —   Ela

quer sua salvação eterna.

 —  Minha o QUÊ eterna? —  Comecei a suar frio.

 —  Eu corto o cordão e você chega em casa.  —  Larkin aproximou a

lâmina do meu pescoço. —  Simples como tirar uma foto. Então, Xissss.

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Senti meu pulso inexistente acelerar enquanto eu tentava encontrar

sentido no que ela dizia. Estava falando a verdade ou não?

 —  Casa? —  repeti. —  Você está falando sério?

Ela assentiu.

 —  Com certeza.

 Tremendo, levei a mão até o fecho do colar, apesar de o meu pin-

gente de coração começar a esquentar e queimar minha pele. Agora,

mais quente, mais selvagem do que antes, gritei quando a dor se intensi-

ficou.

De repente, fiquei com medo de não ser capaz de tirar o cordão an-

tes que fizesse um buraco na minha pele. Mas quando olhei para cima e

encarei os olhos de Larkin, vi uma coisa que me apavorou ainda mais.

Seus olhos estavam frios. Vazios. Mortos .

Corra, Brie. Corra AGORA .Voz imaginária ou não, não correria o risco.

Assobiei chamando Hamloaf. Saltei para ficar de pé. E corri.

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Capítulo 34

To die by your side is such a heavenly way to die

Aterrissamos no jardim da casa de Jacob e rolamos pelos arbus-

tos, uma massa embolada de garota fantasma e cachorro.

 —  Ai —  falei, cuspindo um bocado de folhas e gravetos. —  Acho que

ralei o bumbum.

Falando em bumbum, o de Hamloaf estava bem na minha cara.

 —  Ah, que nojo, Ham, sai daí!  —  Ele ficou de pé com um ganido e

se sacudiu, a coleira balançando.

 —   Estou ficando velha para isso  —   resmunguei, levantando. Mi-nhas costas estalaram bem alto quando fiquei de pé, e jurei que faria

uma Aula de Voo assim que tivesse um tempo livre. Fui na ponta dos pés

até o solário dos Fischer e espiei lá dentro. Quando meus olhos se acos-

tumaram com a luz, me dei conta de que estava de cara para as costas

do sr. Fischer —  uma cabeça enorme e careca, para ser mais precisa  — ,

enquanto ele e a mãe de Jacob assistiam a American Idol .

 —  Ah, ele é horrível —  disse sra. Fischer, se referindo à performan-

ce esganiçada de um cara cantando “Hooked on a Feeling”. 

 —  Não tanto quanto o que veio antes dele —  respondeu sr. Fischer,

folheando o jornal. —  Você ligou novamente para o colégio hoje à tarde?

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A sra. Fischer se endireitou na poltrona e parecia um pouco abati-

da.

 —  Liguei.

 —  E?

 —  Não me prometeram nada. O técnico está péssimo, mas com Ja-

cob fora dos jogos no restante da temporada, ele não pode fazer muita

coisa. Disse que vão rever a questão no verão, assim que ele tiver mais

tempo de recuperação.  —  Ela tomou um gole de chá.  —  O máximo que

 Jacob pode fazer por enquanto é manter as notas altas e continuar coma fisioterapia… 

 —  Meu filho vai para Princeton!  —  Sr. Fischer bateu na mesa, fa-

zendo com que eu lembrasse que nunca gostara dele. Tinha um humor

terrível desde sempre e sempre fora muito duro com Jacob e com Maya.

Um pai completamente militar: duro, tirano, careta. Uma vez, nos pegou

dando uns amassos no sofá e achei que ele fosse, literalmente, subir pe-

las paredes.

 —  Esse menino já se esforçou demais, Mary, e foi bastante longe.

Não há de ser um machucadozinho que vai tirá-lo da parada.

 —  Baixe a voz —  disse ela. —  Você sabe o quanto ele está chateado.

Você sabe o quanto este ano está sendo duro para ele. Primeiro, a histó-

ria da Brie… —  Fez uma ligeira pausa. —  E agora o acidente. Se fizermos

muita pressão, talvez ele até desista completamente do atletismo.

 —  Só passando por cima do meu cadáver.  —  Sr. Fischer baixou o

 jornal. —  Ele só precisa se esforçar mais. Desistir não é uma opção. —  E

saiu esbaforido da sala.

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podia tentar. Não queria acabar como a Senhora das Palavras Cruzadas,

fazendo uma atrás da outra nos próximos quinze milênios. Eu sabia o

que tinha que fazer.

Era hora de fazer as pazes com Jacob Fischer.

Atravessei o jardim dos fundos, dei a volta na piscina e passei pela

enorme sequoia do lado esquerdo da casa. Tentei voar, mas a viagem da

cidade tinha me deixado completamente exausta e eu não tinha a ener-

gia necessária. Minha melhor opção —  minha única opção —  era escalar.

Hamloaf me olhou curioso quando agarrei o galho mais alto que al-cancei e subi nele.

 —  Volto num segundo —  sussurrei. —  Você fica aí.

Ele gemeu baixinho. Abriu a boca como se fosse latir.

 —  Não se atreva, Hamloaf Eagan —  falei — , ou os pais do Jacob vão

mandar você para casa.

Busquei o próximo galho e continuei subindo. Chamei meu maca-

co-aranha interior, mas era óbvio que só estava conseguindo contato

com meu chihuahua . Não sei bem por que achei que estando morta esca-

laria árvores melhor.

 —  Nossa, sou péssima nisso — resmunguei. O laço do meu vestido,

agora castigado depois de tantos pulos de ponte, banhos na baía e ater-rissagens ruins, ficou preso na ponta de um galho. Consegui puxá-lo,

mas com isso acabei dando uma olhada para baixo. Hamloaf estava do

tamanho de um dedinho.

 —  O que andam colocando nesta árvore?  —   perguntei-me.  —  Está

muito maior do que era.  —   Mas não tinha como voltar atrás. Escalei

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mais e mais até chegar no terceiro andar da casa. Recostei num galho

para recuperar o fôlego e tirei o cabelo dos olhos. Contei até três, estendi

os braços como se fosse uma equilibrista e, lentamente, comecei a atra-

vessar o galho —  um passo de cada vez —  em direção à janela iluminada

a alguns metros de distância.

Não caia, não caia, NÃO caia .

Quando cheguei no final do galho, só me restou uma coisa a fa-

zer. Pular .

Respirei fundo novamente e me joguei no ar até dar de cara, comestrondo, na hera.

Hamloaf começou a rosnar em algum lugar lá embaixo.

 —  Não faça isso  —  eu disse.  —  Não me faça ir até aí.  —  Agarrei a

treliça com os dedos e imaginei Patrick rindo diante da cena, cantando

para mim como uma Miley Cyrus louca.

Ain’t about what’s waiting on the other siiiide… it’s the climb .

Fui até a janela de Jacob e espiei lá dentro. Lá estava ele, debruça-

do sobre a escrivaninha, de cabeça baixa, livros e papéis espalhados na

sua frente. Mas, quando prestei atenção, percebi outra coisa.

Ele estava chorando.

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Uma grande família feliz .

 —  Ei, Jacob  —  disse, baixinho, do outro lado do quarto.  —  Estou

aqui. —  Não queria assustá-lo, então mantive distância. Mas a melodia

da música continuou e os ombros dele começaram a tremer com ainda

mais força.

Olhei culpada para as muletas, depois ouvi o celular dele tocando.

 Jacob pigarreou e atendeu.

 —  Oi. E aí?

O som da voz dele ainda me balançava, mesmo que meus sentimen-

tos tivessem começado a se transformar.

 —  Nada. Sei lá. —  Ele fez uma pausa e consegui ouvir os agudos da

voz de Sadie do outro lado da linha.

 —  Estou preocupada com você… você precisa contar para eles .

 —  Eu não tenho que fazer nada —  argumentou Jacob. —  Ele vai meexpulsar de casa, você não entende? Está com ódio dessa história do

atletismo. Ninguém pode saber, Sadie. Eu não posso… 

A voz dela voltou, ainda mais quente.

 —  Não é justo. Eles que se danem. Quem se importa com o que eles

 pensam?  

 —  Eu me importo! —  respondeu Jacob. —  Eu me preocupo com is-

so, tá? Olha só o sofrimento que eu já causei em todo mundo. Eu nunca

devia ter te contado, então, esquece. Não é problema seu. Você não en-

tende.

 —  Jacob, eu… 

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 —  Olha só, eu tenho que desligar. —  E desligou, jogando o telefone

na cama.

Fiquei completamente perdida. De que problema ele estava falando?

Que assunto era aquele, afinal de contas? A galera do colégio não podia

estar com raiva ainda porque ele estava saindo com a Sadie, podia? Já

tinha se passado quase um ano. Já deviam ter se ocupado de alguma fo-

foca nova. Certamente existiam outros escândalos além do garoto que

namora a melhor amiga da ex-namorada morta. Sem dúvida existiam

coisas piores na vida. Bastava ver o noticiário, pelo amor de Deus.

Ele aumentou mais ainda o som e passou a mão no cabelo. Atra-

vessei o quarto, fazendo de tudo para não emanar minhas vibrações as-

sustadoras de morte. Fiquei atrás dele. Concentrei minhas energias. En-

tão, devagar, coloquei uma mão no ombro dele. Depois a outra.

Jacob. Estou aqui para te ajudar .

Ele desmontou e enterrou o rosto nas mãos. Soluços de solidão in-

tensa começaram a sacudir seu corpo, abafados pelo som da música.

Sua dor estava em toda parte. Eu podia sentir seu gosto, seu cheiro; po-

dia sentir os ombros dele se encolhendo.

 —  Shhh   —  sussurrei. —  Vai passar. Vai ficar tudo bem. —  Acariciei

o cabelo dele com os dedos. —  Seja o que for, prometo que vai ficar tudo

bem.  —   Eu não entendia. Em todos os anos desde que o conhecera,

nunca tinha visto Jacob tão triste.

Nunca.

Deixei que minha mão percorresse as costas dele lentamente, sen-

tindo o calor do seu corpo debaixo da camiseta. Depois, me abaixei, qua-

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se com medo de respirar, e beijei seu rosto, suavemente. Um beijo para

consertar tudo. Um beijo para me desculpar por tudo que lhe causara.

Esperei que ele pudesse senti-lo.

Desculpa, Jacob .

Mas, quando afastei meus lábios, o mundo estava exatamente como

antes. Ele ainda estava péssimo. E eu não passava de uma sombra es-

maecida na parede daquele quarto.

Ele se endireitou na cadeira e secou o rosto com a manga da cami-

sa. Depois, pegou o caderno e voltou a fazer o que estava fazendo. Vi a

ponta da caneta se mover sobre a página, sem me importar em traduzir

aquela mistura de letras de garoto e manchas de lágrimas. Mas quando

prestei atenção em seus dedos, resolvi olhar novamente.

Em que ele poderia estar trabalhando com tanta intensidade? Uma

redação para o colégio? Talvez estivesse com algum trabalho atrasado?

Debrucei sobre seu ombro para ver mais de perto e me dei conta de

que não era nada disso. Era uma carta.

Mas, quando vi exatamente que tipo de carta era, senti o quarto gi-

rar em volta de mim.

Não posso mais viver assim.

Não posso mais me esconder, nem fingir ser alguém que não sou.

 Tentei mudar. Tentei ser outra pessoa.

Mas este sou eu. Eu sou O QUE eu sou.

Parei de ler.

O que você é?  

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Minha mente voltou para a noite do nosso último encontro. Quatro

de outubro de 2010. A noite em que suas palavras causaram a falha de-

finitiva no meu coração. A verdade é que eu sabia que ele estava prestes

a terminar comigo. Eu vi o medo e a tristeza nos olhos dele quando me

buscou para sairmos. Só não quis encarar a verdade.

Não faça isso comigo . Lembro de ter implorado silenciosamente do

outro lado da mesa. Não faça isso comigo. Por favor .

Claro, no final, ele disse aquelas palavras.

EU NÃO TE AMO.

Mas ali no quarto de Jacob, observando-o, me ocorreu que nunca

cheguei a ouvir seus motivos. Desde aquela manhã na praia, presumi

que me trocara pela Sadie. Mas e se eu estivesse completamente errada?

E se tivesse cometido um erro terrível?

Minha cabeça disparou. Eu me dei conta de que vira Jacob e Sadie

se abraçando naquela manhã depois da fogueira, mas nada além disso.

Eu me dei conta de que vira trocas de olhares, sussurros e torpedos en-

tre os dois, mas nenhum beijo. Eu me dei conta de que vira os dois em

silêncio enquanto nossos amigos os puniam.

E o tempo todo eu fora a chefe da matilha.

Caí na cama enquanto a verdade se apoderava de mim. —  Você me amava  —  sussurrei.  —  Mas não da maneira como eu

amava você.

Precisei de um século depois de morta, mas finalmente entendi a di-

ferença. Tudo se encaixava. Tudo fazia sentido.

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 Jacob não se apaixonara por Sadie. Ele simplesmente abrira o cora- 

ção  para ela.

Seu segredo mais profundo .

E no fim, o único crime de Sadie foi guardá-lo.

 —   Por favor, não faça isso  —   implorei, lágrimas rolando pelo meu

rosto. —  Escute, por favor… 

Mas ele não me escutou. Nem podia. Porque estava muito ocupado,

terminando seu bilhete suicida.

Eu prefiro estar morto a contar que sou gay.

Então, vou facilitar as coisas para todos nós.

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Capítulo 36

Always something there to remind me

Era uma queda longa, a do telhado de Jacob, mas pulei mesmo

assim. Mal senti o contato das folhas ou a torção do meu tornozelo

quando alcancei o chão.

A casa da Sadie. Tenho que ir à casa da Sadie .

Não consegui pegar a velocidade necessária para voar, então fui

mancando pela rua.

E se não encontrar Sadie? E se ela não conseguir falar com ele a

tempo?  

Minha cabeça latejava. Eu estava enjoada. Relâmpagos pintaram océu da noite e parei de correr. Quando olhei para cima, tive certeza de

quase poder ver o rosto de uma menina escondido atrás das nuvens, me

observando.

 —  O que eu posso fazer? —  gritei. —  Tenho que salvar o Jacob! Por

favor, eu preciso de ajuda!

Mais um relâmpago e o rosto desapareceu.

Olhei novamente para a entrada da casa do Jacob, pensando nas

lágrimas dele. Depois, novamente para a frente, na direção do bairro da

Sadie, do outro lado da cidade. Eram pelo menos quinze minutos de dis-

tância, e isso de carro. Uma sensação de pânico começou a tomar conta

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de mim como um cobertor de névoa cobrindo em câmera lenta o meu

corpo. Eu estava absolutamente presa.

Não, eu estava absolutamente ferrada . Não podia seguir adiante,

mas também não podia voltar.

 —  Por que você não pode ser de verdade?  —   implorei, usando as

mãos inúteis. —  Por que você não me deixa consertar isso?

Ouvi um farfalhar de folhas bem baixinho, a hera balançando ao

vento ao longo da rua. De repente, a voz da Larkin estava em toda parte.

Suas palavras abriram caminho à força pela minha garganta e desceramem direção ao meu peito como um parasita.

É mais fácil do que você imagina .

 Toquei no meu colar, lembrando da oferta. Finalmente, entendi por

que ela queria tanto meu colar. Ele representava tudo o que eu tinha

deixado na terra. Representava as pessoas que eu mais amei e o amor

que compartilhávamos.

Minha salvação .

Minha garganta ficou dormente. Achei que não seria capaz de ir em

frente.

 —  Não tenha medo. —  O rosto de Larkin apareceu no céu.

E se tivesse chegado? A minha única chance? Talvez eu pudesse

voltar por mais um dia e conseguir dar ao Jacob a ajuda de que ele pre-

cisava. Talvez eu pudesse limpar a bagunça que fiz e garantir que nin-

guém mais que eu amava tivesse que morrer tão desnecessariamente

quanto eu. Talvez este fosse o dia a mais que faltava para fazer com que

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 Jacob enxergasse que não estava sozinho. Para ajudá-lo a se perdoar por

ser complicado, a entender que valia e merecia o amor das pessoas.

Por ser HUMANO .

E isso só custava minha alma imortal.

Respirei fundo.

 —  Para que servem melhores amigos?

Cuidadosamente, tirei meu cabelo comprido do caminho e abri o fe-

cho do meu colar. Ergui-o na minha frente e vi o coração dourado —  per-

feitamente imperfeito —  balançar e girar no cordão.

Quando finalmente olhei para cima, Larkin estava de pé ao meu la-

do.

 —  Que bom que você se tocou. —  Ela tocou levemente no meu bra-

ço. —  Então. Quanto vale para você?

Eu soube a resposta antes mesmo de Larkin terminar a pergunta.

Só havia uma maneira de barganhar sua saída do céu.

E era esta.

 —  Tudo —  respondi, entregando meu colar. —  Vale tudo para mim.

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Capítulo 37

Listen to your heart, before you tell him good-bye

É um mercado terrível, o do tráfico de almas. O M&E chama isso

de “Profano Absoluto”. O pior crime contra o céu, a terra, a humanidade

e toda e qualquer coisa que exista entre eles.

Para minha sorte, também era, aparentemente, a atividade extra-

curricular da Larkin.

 —  Que dia você escolheu?  —  perguntou ela. O tom de sua voz era

casual e leve, como se estivéssemos falando do cabelo dela ou do último

lançamento de biquínis para o verão.

 —   Não é da sua conta  —   respondi, sem me preocupar se estava

sendo rude. Definitivamente, eu NÃO estava com clima para conversa fi-

ada.

 —  Como você quiser. —  A voz parecia mais doce do que nunca, mas

a maneira como ela puxou a manga do meu vestido não foi nada amisto-

sa. Ficou de joelhos ao meu lado e apontou o canivete para o meu braço.

 —  Ei! —  gritei. —  O que é que você está fazendo? Já te dei o colar.

 —  Tentei afastá-la, mas sua pegada era mais forte do que eu imaginava.

 —  Calma, não vai doer  —  disse ela. —  Pense nisso como a sua ini-

ciação para entrar para um clube muito legal. —  Apontou orgulhosa para

sua própria tatuagem. —  Viu? Agora a gente vai ficar combinando.

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Fiquei de queixo caído.

 —  Você disse que tinha feito isso em Cancun.

 —  Disse? Acho que minha memória não é mais tão boa como anti-gamente. —  Então, começou a enfiar a lâmina na minha pele.

Larkin estava mentindo. Isso ia doer, sim, com certeza.

 Tentei me concentrar no lado positivo. O ganho da nossa barganha:

mais um dia para respirar novamente no mundo dos vivos. Depois, eu

pertenceria completamente a ela.

Nem me fale em relacionamentos saudáveis .

 —  Vou contar até dez de trás para frente para você saber exatamen-

te a hora de gritar —  disse Larkin.

 —  Valeu.

 —  Dez —  começou. —  Nove. Oito… 

Vai valer a pena , pensei. Vou salvar uma vida. Vou consertar o que

está errado. Mais um dia   —   para ter e guardar   —   para sempre, amém .

Por isso, eu seria eternamente grata.

Abri os olhos e vi o brilho da lâmina sob o luar.

 —  Cinco… quatro… 

Apertei os olhos bem fechados e me preparei para a dor. Mas exa-

tamente antes de sentir a ponta da lâmina cortando minha pele, outra

coisa passou pela minha cabeça.

Ou melhor, outra pessoa.

Pensei naquela jaqueta e nas piadas inacreditavelmente sem graça.

Pensei na raiva que senti dele quando me empurrou da ponte Golden

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Gate e em como ficava revoltada sempre que ele me chamava de Cheetos.

Lembrei que ele sempre enchia meu copo de refrigerante sem que eu

precisasse pedir e que sempre me levava de volta à pizzaria quando eu

não conseguia fazer isso sozinha. Pensei no som da voz dele sempre que

me chamava de Anjo e em como —  sempre que eu passava meus braços

em volta da cintura dele quando estava na garupa da moto  —  me sentia

em casa.

 —  Um —  sussurrou Larkin.

Patrick. Desculpa .

De repente, algo voou do meu lado a 100 quilômetros por hora e me

derrubou na rua como se eu fosse um pino de boliche. Aterrissei de cara

numa vala, sem ar e totalmente coberta de folhas, lama e grama. Conse-

gui rolar de barriga para cima e alguns segundos depois senti a língua de

Hamloaf me lambendo furiosamente, tentando limpar o meu rosto.

 —  Eca, bafo de cachorro. —  Empurrei-o e levantei a manga do ves-

tido para dar uma olhada no meu ombro. O canivete da Larkin mal en-

costara na minha pele.

Um barulho súbito desviou minha atenção, dei um pulo e corri na

direção do som. Uns 30 metros adiante, Patrick e Larkin estavam frente

a frente, se enfrentando. Ele estava com o canivete na mão. Apontado di-

retamente para a garganta dela.

 —  Seus serviços não são mais necessários  —  disse ele.  —  Pode ir

embora e nos deixar em paz.

 —   Ela fez uma escolha  —   respondeu Larkin.  —   A gente tem um

acordo. Então, por que você simplesmente não vai para a sua pizzaria

idiota e deixa a gente em paz?

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Parece que Larkin realmente prestou atenção nas coisas que contei

sobre Patrick. Ou então tinha reconhecido a jaqueta de couro.

Ele deu um passo à frente, se aproximando, para deixar bem claro

que estava falando sério.

 —  Por favor, não —  implorei baixinho. —  Eu preciso fazer isso. Pelo

 Jacob. Eu preciso voltar, pelo Jacob.

 —  Viu? Ela quer voltar —  disse Larkin. —  Devia deixar. De qualquer

forma, o fato de você não ter suportado não significa que ela não vá con-

seguir.

Olhei para Patrick.

 —  Do que ela está falando?

 —  Então, alguém tem segredos, é isso?  —   insinuou Larkin. —  Isso

não é educado, sabia? Por que você não compartilha com a turma toda?

 —  Ah, você que se dane —  respondeu Patrick. —  Ela não é proprie-dade sua. A Brie tem coisa melhor para fazer do que dar sentido a sua

meia-vida patética.

Então, as queimaduras de Larkin pareceram ganhar vida sob a luz

do luar.

 —  Coisas melhores para fazer com você , foi isso que quis dizer?  —  

Ela cruzou os braços.  —  Escuta aqui, Bon Jovi, eu sei tudo sobre você.

Sei que tem essa moto cafona e que morre de paixão por uma garota que

definitivamente não está nem aí para você. Então, faça um favor a si

mesmo e vá babar por outra pessoa, tá? Porque isto —  desenhou um co-

ração no ar com a ponta dos dedos —  não vai acontecer.

Ui. Maldade .

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escapar uma gargalhada amarga. —  Então, você perde de um jeito ou de

outro.

Sua garota? Te esqueceu?  

 —  Do que vocês estão falando? —  perguntei, completamente confu-

sa. —  Será que dá para alguém, POR FAVOR, falar a minha língua um

minuto?

 —  O caso é: —  Larkin sorriu para Patrick. —  Acho que você é real-

mente tão idiota quanto parece.

 —  Chega! —  disse eu. —  Não fale assim com ele.

Ela me segurou pelos ombros e se aproximou tanto que, por uma

fração de segundo, senti o calor do fogo que desfigurara seu rosto adorá-

vel.

 —  Eu realmente não acredito  que você vai ficar do lado dele, Brie.

Não acredito que você vai defender esse cara, você me conhece desde

sempre. Isso não significa nada?

 —  Larkin… 

 —  Você é igual a todo mundo.

 —  Não. Você sabe que isso não é verdade. Escuta… 

 —  Não. Escute você   —  disse ela.  —   Você não sabe absolutamente

nada sobre dor ou solidão. Mas vai saber. Vai ver como é saber que todo

mundo no mundo esqueceu de você, como se nunca tivesse existido. Vai

ver como é não ter ninguém. —  Ela começou a se afastar.

Não, não, não, não .

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Não podia deixar que fosse embora. Precisava que me ajudasse a

chegar em casa. Se não, sabe-se lá o que Jacob faria. Ou quantas outras

vidas seriam arruinadas.

 —  Aqui.  —   Estendi a mão com meu colar, em total desespero.  —  

Por favor, pode pegar. Faço o que você quiser.

Ela olhou para o objeto por um bom tempo, depois secou uma lá-

grima solitária do rosto.

 —  Esquece. Vocês dois se merecem.

E, de uma hora para outra, ela desapareceu.

Não!  

Comecei a correr, agarrando o ar, tentando alcançar a silhueta de-

la, que desaparecia. Mas, em segundos, não havia mais nada dela além

de fumaça.

Como se ela nunca tivesse estado ali .Caí de joelhos. Era tarde demais. Tinha perdido minha única chan-

ce de salvar o Jacob.

De salvar a mim mesma .

 —  Isso não pode estar acontecendo —  sussurrei.

Ouvi o som do canivete de Larkin caindo no chão. —  Anjo  —   disse Patrick com suavidade, colocando a mão no meu

ombro. —  Me desculpe.

De repente, meu corpo inteiro estava em chamas. Cada partícula e

memória atômica da minha pele, do meu sangue, das minhas lágrimas e

dos meus ossos queimava atrás do meu vestido. Senti como se fosse ex-

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plodir em chamas, cinzas e nada. Parte de mim quase desejou que isso

acontecesse. Pelo menos assim eu não teria mais que sentir .

Meu Deus, eu estava tão cansada dos sentimentos. Tão cansada de

sofrer. Mas não conseguia acreditar. Não conseguia entender por que Pa-

trick tinha arruinado minha única chance de consertar as coisas. Ele es-

tragara tudo. Mais do que tudo.

Me desculpe, Jacob. Eu sinto tanto, tanto .

 Tirei a mão de Patrick de cima de mim e fiquei de pé.

 —  Qual é o seu problema? O que eu faço ou deixo de fazer não é da

sua conta. Você não tem nada a ver com a maneira que eu escolho pas-

sar a eternidade. Eu faço o que quiser com ela!

A dor adormecida no meu peito se transformou numa coisa enorme

e insuportável que eu mal podia suportar. Apertando, tirando o ar dos

meus pulmões até eu me sentir um balão vazio. Logo, não haveria mais

nada para me manter de pé.

 —  Não pude deixar você ir. —  Patrick baixou a cabeça. —  Você não

entende o que estava prestes a fazer. Não consegue ver isso agora, mas

 juro que ia se arrepender. —  Sua voz era baixa, calma. Cheia de deses-

pero, culpa e uma tristeza avassaladora.

Mas eu não me preocupei.Que ele se sinta mal. Que se sinta culpado! Eu estava com tanta

raiva que mal podia olhar para ele.

Talvez eu possa tentar novamente, talvez não seja tarde demais.

Talvez eu possa tentar me desculpar com ela … 

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 —  Não! —  Patrick me agarrou de repente e me sacudiu com força.

 —  É sério que é isso que você quer? Desistir da sua única oportunidade

de ter paz? Ser prisioneira daquela controladora maluca para sempre?

Implorar por uma nova morte, porque o que você vai conhecer como vida

será tão insuportável?  —  Seus olhos estavam ensandecidos.  —  Me des-

culpe, Anjo. Me desculpe, mas me recuso a ficar parado assistindo sua

escolha de passar a eternidade no inferno.

Lutei contra ele, finalmente me libertando.

 —  Então, não precisa assistir. Basta ir embora.

 —  Por favor, faça um esforço. —  Ele passou a mão no meu rosto. —  

Por favor, tente se lembrar. Você não vê que eu desisti de muita coisa por

você? Não sabe há quanto tempo estou esperando? Não sente? —  Ele me

encarou uma última vez, minha garganta se fechou e senti gosto de óleo

queimado. Senti o calor do fogo e a fumaça irritando meus olhos —  como

se estivesse sendo queimada viva, de dentro para fora.

 —  Não toque em mim! —  gritei. —  Eu nunca pedi a sua ajuda! Por

que você simplesmente não fica longe da minha vida, ou pós-vida, seja lá

o que for? —  Eu me livrei dos braços dele.  —  Por que você não me deixa

em paz?

 —  Brie, não… 

 —  Não o quê?  —  Encarei-o, dura.  —  O que você quer, Patrick? O

que é que você quer de mim, de verdade?

Ele não conseguiu responder.

Balancei a cabeça e me afastei, apressada.

 —  Esquece.

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 —  Não.  —  Ele segurou minha mão novamente, num rompante.  —  

Eu… quero dizer, a gente… 

 —  A gente nada —   interrompi-o. —  Existe VOCÊ e existe EU. E só.

Isso é tudo que a gente vai ser.

 —  Mas, Anjo. Você não entende… 

 —  Eu não acredito que você esteja transformando isso tudo numa

coisa que tem a ver com você. Larkin tinha razão. Não acredito que você

ia arruinar a minha única chance de consertar as coisas por causa de

uma paixonite idiota, patética, que nunca vai se concretizar!

Parecia que ele tinha levado um soco na boca do estômago.

 —  Como? —  sussurrou. —  Como você pode ter esquecido de tudo?

 —  Não fui eu que esqueci —  respondi. —  Basta olhar para você! Es-

tá aqui há tanto tempo que nem lembra mais o que significa ainda ter

gente que se preocupa com você. Esqueceu o que significa prometer para

alguém que sempre vai cuidar dele.

Minha voz fraquejou, mas continuei falando.

 —  Você perde tanto tempo fazendo piadas idiotas, pensando em si

mesmo que esqueceu completamente que o amor tem a ver com todas as

pessoas, menos com você. O amor tem a ver com amar uma pessoa mais

do que a si mesmo. —  Sequei, irritada, uma lágrima de raiva. —  Não queeu tenha esperado que você compreendesse isso um dia.

Ele não respondeu imediatamente, mas deu para ver o efeito das

minhas palavras. O brilho fugiu de seus olhos.

 —  Desculpa  —   disse, finalmente.  —  Eu só quis que as coisas fos-

sem melhores. Eu só quis proteger você.

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 —   Bem, eu não preciso que ninguém me proteja.  —   Revidei.  — 

 Especialmente  você.

Assim que as palavras saíram da minha boca, desejei terrivelmente

poder voltar atrás. Não acreditei na crueldade do meu gesto. O problema

é que, às vezes, as palavras são como flechas. Depois que a gente dispa-

ra, não tem como voltar atrás.

Fiquei chocada com o quanto eu podia magoar. Mas o que ele disse

em seguida me chocou mais ainda.

 —  Você não sabe que eu te amo? Não enxerga que eu sempre… 

 —  Bem, eu não te amo. Ouviu? —  Olhei-o nos olhos e lancei a últi-

ma flecha de que dispunha.  —  Mesmo que você fosse o ÚLTIMO garoto

do universo eu não te escolheria.

A expressão no rosto dele dizia que ele não poderia saber que eu es-

tava mentindo.

 —  Dulce bellum inexpertis .

 —  Eu realmente não estou com paciência para as suas… 

 —  A guerra é doce para aqueles que nunca guerrearam —  disse ele.

 —  Não que eu esperasse que você  compreendesse.

Então, não havia nada mais a ser dito.

Ele enfiou as mãos nos bolsos.

 —  Obrigado pela honestidade. Vou parar de te perturbar agora. Vou

parar de te fazer perder tempo.

Deixei meu cordão cair no chão, o pingente ainda brilhando leve-

mente, e vi a silhueta dele se desfazer aos poucos sob a luz da lua. O

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marrom da jaqueta de couro de repente me pareceu muito envelhecido;

gasto como se fosse de outra década.

Porque era , me dei conta.

Pequenos raios de luz atravessaram seu corpo quando ele começou

a desaparecer, quase como se fosse uma fotografia Polaroid. Primeiro, as

botas de exército passaram do preto ao verde, depois amarelo, depois

branco. O mesmo aconteceu com o jeans. Depois os braços, os ombros e

os olhos  —  aqueles olhos doces, cheios de sentimentos  — , até que não

restasse quase nada.

Meu corpo gritava para que eu me desculpasse  —   que implorasse

para que ele ficasse — , mas me controlei.

Finalmente, ele ergueu o rosto e sorriu para mim. Vi sua boca se

mover ligeiramente, mas não consegui escutar o que dizia. Não importa-

va. Eu já sabia do que se tratava.

Adeus .

Mordi o lábio e desviei o olhar. Fechei os olhos e desejei por um

momento jamais tê-lo conhecido. Desejei que nunca tivesse falado comi-

go na pizzaria, para começo de conversa. Que nunca tivesse me empur-

rado da ponte, ou me ensinado a voar, ou que não tivesse me levado de

moto pela orla. Mas era tarde demais para tantos desejos irrealizáveis.

O que estava feito estava feito .

E de repente eu estava só novamente.

Mas no fundo sabia que não seria mais como antes. Agora, o silên-

cio era opressor —  sufocante —  e me senti escorregando pelo vácuo até

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um lugar que jamais imaginara. Um espaço tão escuro e parado que po-

deria muito bem ser o fundo do mar.

Larkin tinha razão.

Eu não podia ajudar Jacob. Não podia nem mesmo me ajudar. Eu

era inútil, vazia de amor, uma perda de tempo e espaço. E por isso, no

final das contas, eu só podia rastejar de volta ao jardim da casa da mi-

nha família, encostar a cabeça na grade da varanda e esperar que o sol

nascesse.

 —  E agora? —  sussurrei. —  O que acontece agora?

Era uma pergunta idiota, porque eu já sabia a resposta.

Nada. Agora não acontecia nada.

Baixei a cabeça no peito. Respirei, solitária, assustada. E senti meu

coração  —  não, a memória do meu coração  —  se partir em pedaços no-

vamente.

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Parte 3

 Tristeza

Capitulo 38

Since u been gone

Eu era assombrada pelo cheiro de flores apodrecendo. Pela ima-

gem de limusines pretas e pelo som dos pneus no chão de pedrinhas, de

pás cavando a terra, de chuva caindo em lápides, dos portões gradeados

e gelados do cemitério, me trancando ali para sempre.Não conseguia comer. Não conseguia dormir. Meu velho e bom pe-

sadelo estava de volta como uma vingança —  às vezes, três ou quatro ve-

zes numa mesma noite. Começava assim que eu pegava no sono, com o

som de aceleração de motores. Depois vinha o vento no meu cabelo, até

debaixo do capacete, enquanto eu cruzava a estrada de moto. O calor do

sol no meu rosto. A sensação de que qualquer coisa era possível.

Mas era aí que o sonho sempre terminava e onde o pesadelo come-

çava. Exatamente quando eu me sentia a menina mais feliz do mundo, a

sensação de desconforto aparecia. Era então que eu percebia um perfu-

me novo e estranho no ar. Gasolina e metal queimado. Sentia que a moto

saía do meu controle. E, de repente, sabia como tudo terminaria.

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Com meus gritos e a lembrança da mão de alguém escapando de

mim.

Então —  BUM! — , meus olhos se abriam e eu acordava suando, em

pânico, encolhida na minha mesa da pizzaria.

Correção. Nossa mesa.

Eu sinto a sua falta. Lamento tanto .

 Toda noite era a mesma coisa. Eu ficava deitada de olhos fechados

e esperava que o pesadelo me engolisse e me cuspisse de volta. Lava, en-

xágua, repete. Não havia nada que eu pudesse fazer a não ser sentir a

mesma dor pavorosa no peito, me perguntando quando aquilo teria um

fim. Apesar de estar começando a compreender a verdade da eternidade.

Nunca  tem fim.

 Jamais me senti tão só. Não existia ninguém por ali com quem eu

tivesse vontade de conversar. Já fazia tempo que Patrick partira, prova-

velmente estava o mais longe de mim possível. Eu não tinha nem mesmo

Hamloaf.

Porque eu vira os avisos no meu bairro. Vira-os em todos os postes

de telefone, sinais de trânsito e caixas de correio num raio de 16 quilô-

metros da minha casa, era impossível não ver.

PERDIDO: O CÃO MAIS MARAVILHOSO DO MUNDO

ATENDE PELOS NOMES: HAMLOAF, HAMSTER, HAMMY E HAMI-

NATOR

POR FAVOR, POR FAVOR, POR FAVOR, DEVOLVAM-NO PARA: DR.

DANIEL EAGAN, AV. MAGELLAN, 11.

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No final, decidi fazer a coisa certa. Sabia que Hamloaf não me per-

tencia mais. Na verdade, sempre fora o cachorro do meu pai. Meu pai o

escolhera quando era filhote. Meu pai   era quem Hamloaf adorava mais

do que tudo. Ham e meu pai eram uma dupla especial. Um pacote.

Por mais que eu detestasse admitir, não podia mantê-lo comigo, ele

não era meu.

Então, levei-o para um passeio de despedida na praia, depois de

volta para a varanda da frente da nossa casa, lágrimas rolando pelo meu

rosto.

 —  Você tem que ir para casa agora, garoto.

Ele rolou no chão, deixando escapar um ganido que era um convite

à brincadeira. Sempre brincalhão. Sempre tentando levantar o astral.

 —  Não, Hamster.  —  Balancei a cabeça.  —  Não é hora de brincar.

Papai está desesperado atrás de você. Ele está morrendo de saudade.  —  

Abracei-o, depois segurei o rosto dele e enchi seu focinho de beijos. Ele

me encarou com aqueles olhos grandes e castanhos, e me lambeu em re-

tribuição.

 —  Seja bonzinho, tá? Não vá fazer suas necessidades no gramado

de ninguém.  —  Depois pensei melhor e olhei furtivamente para o outro

lado da rua, para a casa da família Brenner.  —  Bem. Eu te dou permis-

são para fazer as necessidades naquele gramado. No de ninguém mais,

tá?

Não , seus olhos pareciam dizer. Não vá embora. Vamos brincar .

De repente, ele disparou, latindo e ganindo feito doido  —   ganidos

que todo mundo num raio de 5 quilômetros consegue escutar.

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Hora perfeita.

Eu sabia que papai estava em casa.

 —  Isso mesmo. —  Forcei um sorriso. —  Te amo, seu maluquinho. —  Usei toda a concentração que me restava, subi a escada até a porta e to-

quei a campainha. Era hora de dançar conforme a música. Era hora de

encará-lo.

Mas, quando a porta da frente se abriu, instantes depois, não era

meu pai na minha frente. Era ela . A pior pessoa na face da terra.

 —   Você deixou essa mulher entrar?  —  eu disse, enojada.  —  Você

deixou essa mulher entrar na NOSSA casa?

 —  Ah, por onde você andava, seu tonto? —  disse Sarah Brenner. —  

Vem aqui!

Senti meu sangue fervilhar, esquentando violentamente enquanto

via aquelas mãos de unhas pintadas envolverem o pescoço do Ham. Ima-

ginei que a arrancava dali e batia com aquelas unhas odiosamente ver-

melhas na porta mil vezes, para ela entender como era ter sua família

devastada.

Ela estendeu a mão e coçou o pescoço do Hamloaf atrás da orelha.

 —  Essa nem é a favorita dele —  resmunguei. —  Impostora.

 —  Danny?  —  Ela se virou, chamando meu pai dentro de casa.  —  

Ele voltou! O cachorro voltou!

Por um segundo, considerei a possibilidade de arrancá-lo das mãos

dela e voar com ele de volta para a pizzaria. Talvez tivesse cometido um

grande erro. Talvez Hamloaf realmente devesse ter ficado comigo. Mas,

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quando ouvi meu pai descendo a escada e vi Hamloaf abanando o rabi-

nho, tive certeza da resposta certa.

Por mais que odiasse.

Então me afastei sem dizer mais uma palavra, chorando pelo jardim

até pegar velocidade bastante para que meus pés saíssem do chão. E en-

quanto cruzava de volta para o meu pedaço de céu, a minha pizzaria  —  

lágrimas rolando no rosto — , decidi nunca mais olhar para trás. Estava

encerrando minha carreira de ir e vir no tempo e no espaço. Era hora de

assentar para sempre, para o desespero longo e duradouro. Assistir às

voltas do mundo era muito difícil. Não havia nada que pudesse fazer.

Nada que eu pudesse dizer.

Não havia mais nada para mim na Terra, ponto final.

Pelo menos na pizzaria eu podia fazer o que me dizia respeito. Ficar

sentada dia e noite sem ninguém se preocupar. Podia sair para longas

caminhadas que não levavam a lugar nenhum. Via os mesmos filmes

tristes mil vezes até saber de cor as falas mais deprimentes. Alguns dias,

quando o cheiro de pizza realmente me dava enjoo, eu saía e ficava na

beira de um abismo, do outro lado da estrada. Ficava olhando para o

oceano e me permitia pensar em Jacob. Se teria ido até o fim com seu

plano ou não.

Não o vira ali no pedaço de céu, o que parecia um bom sinal. Ape-

sar de supor que ele poderia ter ido parar em outro lugar.

Algum lugar pior. Como a Larkin .

 Tentei não pensar no assunto.

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Em vez disso, fechei os olhos bem fechados e mergulhei de cabeça

no mar, deixando-me afundar nas profundezas escuras e arenosas. Era

silencioso lá embaixo. Quieto e pacífico.

Não tenho certeza de quanto tempo passei submersa. Talvez dias.

 Talvez semanas. Não fazia diferença. Passava o tempo contando grãos de

areia, brincando de Marco Polo com eventuais caranguejos eremitas, fa-

zendo pulseiras de algas e quase sempre fingindo ser a Pequena Sereia.

Apesar de meus seios não serem grandes o bastante para segurar con-

chas. (Razão nº 3.714 que explica por que morrer antes dos 16 anos é

um saco.)

Em alguns momentos eu quase pensava ter visto o rosto de Patrick

boiando nas redondezas, como uma água-viva, e imaginava seus braços

se mexendo enquanto ele nadava até a superfície. Não conseguia deixar

de pensar em como a vida poderia ter sido diferente se eu e ele tivésse-

mos nos conhecido na Terra. Se talvez fôssemos da mesma idade na

mesma década. Se ele  tivesse sido o meu primeiro beijo na pista de dan-

ça naquela noite, nós dois rodeados de luz estroboscópica para sempre.

Finalmente, me dei conta de que a coisa boiando era  realmente

uma água-viva, então encerrei o expediente e nadei de volta para a praia.

Voltei à mesma e velha rotina de me afogar em autocomiseração. Na ver-

dade, esse tipo de coisa é altamente viciante.

Até fui a São Francisco algumas vezes, na esperança de encontrar

Larkin. Visitei todos os meus lugares preferidos —  o parquinho, o porto,

até o topo da pirâmide de brinquedo  — , mas não cruzei com ela. Era co-

mo se tivesse imaginado todo o tempo que passamos juntas. Como se eu

fosse a única alma naquela porcaria de lugar.

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Quem sabe? Talvez eu fosse. Talvez a solidão eterna fosse minha

punição por ter sido tola o bastante para ter acreditado no amor, para

começo de conversa.

Não que isso importasse. Não que eu me importasse.

Por quê, adivinhem?

Eu não acreditava mais no amor.

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Capítulo 39

Hit me with your best shot

L á estava eu, andando por uma floresta brasileira. Quente, úmida,

um calor de enlouquecer, uma nuvem de mosquitos barulhentos. Cobras

preguiçosas e besouros do tamanho da minha cabeça, tigres dormindo

debaixo de árvores.

Ai .

Espera, mas não existem tigres no Brasil. Melhor apagar essa parte.

Lá estava eu, andando numa floresta indiana . Quente, úmida,

quentíssima… 

Ai .

Abanei o ar. Alguma coisa estava tentando me atingir. Aranha? Ma-

caco? Macaco-aranha ? Uma serpente, prestes a morder meu rosto? Eu

me joguei num arbusto, buscando esconderijo debaixo de uma árvore.

Nenhuma pata. Nenhum dente. Nada de garras ou pernas compridas.

Caminho livre. Conseguira escapar. Ufa.

Ai. Ai .

Ou não.

 —  Chega —  resmunguei. —  Estou ocupada.

 —  Hum, você não parece  ocupada.

 —  Mas estou.

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 —  Fazendo o quê?

Sentei e dei de cara com a Garota das Pulseiras.

 —  Estou tentando meditar, tudo bem? —  Ah. —  Ela deu um passo atrás. —  Desculpa. —  Colocou o cabelo

louro atrás da orelha, as pulseiras chacoalhando no pulso, como de cos-

tume.

Cruzei os braços. Essa menina nunca falara comigo antes. O que

ela esperava, que virássemos melhores amigas de repente?

 —  Desculpa —  falei, sem me preocupar em disfarçar a irritação. —  

Mas por que você estava me cutucando?

Pulseiras tilintando.

 —  Eu só queria saber se você me daria um autógrafo.  —  Pulseiras

tilintando. —  Não queria interromper seu momento zen.

 —  Meu autógrafo? —  Cocei o nariz. —  Por que você quer?

 —  Até parece. —  Ela riu. —  Porque você é famosa! –  Apontou para a

televisão em volta da qual alguns frequentadores da pizzaria se agrupa-

vam. —  Dê uma olhada, você é manchete total!

O que ela andava fumando? Alguma porcaria muito forte, com cer-

teza.

Levantei e caminhei lentamente até a TV, já que imaginava que essa

seria a única maneira de fazê-la calar a boca. Mas, quando finalmente

olhei para o cara sendo entrevistado na tela, não acreditei nos meus

olhos.

Era meu pai.

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 —   Pode aumentar?  —  Pedi ao gatinho Jogador de Futebol.  —   Por

favor.

Todo mundo já teve o coração partido de uma ou outra maneira ao

longo da vida. Mas o que a maioria das pessoas não sabe é que um cora- 

ção partido pode ser fatal. Estamos hoje aqui com dr. Daniel Eagan, cardi- 

ologista renomado do hospital da Universidade de São Francisco, que

 passou o último ano debruçado em estudos sobre a Síndrome do Coração

Partido   —  uma condição clínica que se parece com um ataque cardíaco em

quase tudo, o que acaba, na maioria das vezes, mascarando um diagnós- 

tico mais exato .

Meu pai estava sentado em silêncio, as mãos cruzadas no colo. Pa-

recia não se barbear ou sorrir havia semanas.

 —   Então  —   perguntou a repórter de olhos azuis, animada.  —   A

Síndrome do Coração Partido é muito comum?

 —  Não muito —  disse ele. —  Estima-se que somente 1 ou 2 por cen-

to das pessoas que imaginam ter tido um enfarte tenham sido acometi-

das, na verdade, de SCP. É uma coisa bastante rara e normalmente afeta

mulheres da terceira idade. Não é tipicamente uma condição que põe em

risco a vida, mas pode ser.  —   Ele olhou diretamente para a câmera e

senti um nó na garganta.

A voz explicativa da mulher continuou.

Mas dr. Eagan tem uma ligação mais pessoal com a Síndrome do Co- 

ração Partido do que a maioria das pessoas pode imaginar. No outono

 passado, ele perdeu tragicamente a filha adolescente, Aubrie, acometida

do que ele acredita ser o primeiro caso documentado de alguém tão jovem

morrendo de coração partido .

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Minha pele foi tomada de arrepios enquanto via meu próprio rosto

na tela. Primeiro, minha foto do anuário escolar. Depois, uma com as

minhas amigas. Finalmente, uma do papai comigo, os dois às gargalha-

das.

Senti minha garganta fechar. O nó aumentou. Mas não me permiti-

ria chorar.

Na sexta-feira, uma nova ala do hospital da Universidadede de São

Francisco foi aberta em honra a Aubrie   —  um Centro Infantil do Cora- 

ção   — , e dr. Eagan foi nomeado diretor .

 —  Viu? —  a Garota das Pulseiras deu um tapinha no meu braço. —  

O que foi que eu falei?

A câmera voltou para o meu pai.

 —  No começo —  disse a repórter — , ninguém acreditou no senhor.

Meu pai confirmou.

 —  A comunidade médica achava que a morte de Brie só podia estar

relacionada a alguma condição preexistente. Mas as evidências não sus-

tentavam esse argumento. O mal causado era pequeno. Em nenhum

momento acreditei que sua morte estivesse relacionada ao nível de estra-

go que seu coração havia sofrido.

 —  Qual era seu objetivo? —  perguntou gentilmente a repórter. —  Oque o senhor esperava provar com sua pesquisa? Sente que poderia ter

feito algo mais para salvar sua filha?

Ele fez uma longa pausa.

 —  Não sei se poderia ter feito alguma coisa. Acho que também não

sei exatamente o que queria provar. O amor fere a nós todos, não impor-

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ta se somos velhos ou jovens.  —  Tirou os olhos da câmera por alguns

instantes e, quando voltou o rosto, seus olhos estavam tomados de lá-

grimas. —  Mas acho que meu ponto aqui é que nós, pais, devemos falar

com mais frequência com nossos filhos sobre o que eles sentem. Sobre o

que realmente está acontecendo na vida deles. —  Ele sorriu, tristemente.

 —  E devemos escutar com atenção.

Menos quando se está muito ocupado tendo um caso extraconjugal,

você quer dizer .

A câmera mostrou uma imagem do meu colégio e a voz em off  da

mulher prosseguiu.

Palavras sábias as do dr. Eagan. Principalmente diante do trágico in- 

cidente ocorrido poucas semanas atrás … 

 —  O quê?  —  Senti que começava a entrar em pânico.  —  Que inci-

dente?

… quando o estudante do último ano do Pacific Crest, ex -namorado

da srta. Eagan… o rapaz que as amigas da meni na diziam ter partido seu

coração… 

Senti uma tontura.

 —  Não, não, não, não.

… a estrela da equipe de atletismo, Jacob Fischer … 

 —  Por favor —  implorei. —  Não, por favor.

…  foi encontrado inconsciente em casa … 

As paredes pareciam se aproximar de mim. Não consegui ouvir um

segundo mais. Minha garganta se fechou e comecei a rodar loucamente,

cega pelas lágrimas. Tentei atravessar por entre as pessoas aglomeradas

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ali, desesperada para ir lá para fora. Ar. Eu precisava de ar IMEDIATA-

MENTE.

 —  Ei! —  Ouvi a Garota das Pulseiras gritar. —  Tudo bem com você?

Dói. Dói demais. Patrick, cadê você?  

Estava perdendo o chão. Minha visão ficou turva e perdi o controle

do tempo e do espaço. Então meu rosto foi de encontro ao chão frio de

linóleo.

Com força.

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Capítulo 4

What a girl wants

 —  Uau. Ela vai ter uma baita dor de cabeça.

 —  Ela morreu? Parece  morta.

 —  Detesto te dar essa notícia, meu amigo, mas todo mundo aqui já

morreu.

Abri os olhos. A Garota das Pulseiras e o Garoto do Nintendo esta-

vam me olhando como se eu fosse uma espécie de projeto científico nau-

fragado. Frankenbrie. Ou Eaganstein.

 Toquei na testa e notei, imediatamente, um galo enorme.

 —  Ai.

 —   Ui.  —   Ela riu.  —   Você caiu com toda força. Não foi tão ruim

quanto quando aqueles idiotas me jogaram no meio da multidão, mas

mesmo assim foi impressionante.  —  Debruçou-se sobre mim e encostou

alguma coisa gelada no meu rosto.

Gemi.

 —  Picolé. A coisa mais próxima de gelo que consegui encontrar. Vai

ajudar a não inchar nem doer tanto.

Lentamente, consegui me levantar. Voltei para minha mesa e disse:

 —  Valeu.

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Os dois me seguiram e se sentaram na minha frente.

 —  Imagina. —  Ela cutucou o Garoto do Nintendo. —  Esse é o Sam.

E meu nome é Riley.

Sorri, pateticamente, para os dois.

 —  Brie.

 —  A gente sabe quem você é. —  Ela me lembrou. —  Celebridade lo-

cal e tudo mais.

 —  Ah, claro —  falei. —  Esqueci.

 —  Falando nisso —  ela riu — , cadê seu amigo?

Estranhei.

 —  Como assim?

 —  Ele é uma graça, aliás. Você acha que, sei lá, de repente… podia

me apresentar para ele? —  Ela hesitou. —  Tipo, um dia?

O QUÊ?  

Ela pegou sua bolsa, animada.

 —  Preciso dizer, sou louca por ele, tipo… desde sempre. Mas juro

que acho que ele nem sabe que estou viva. —  Parou de falar e riu. —  Vo-

cê sabe o que eu quero dizer. —  Pegou um pedaço de papel amassado e

colocou na minha frente, na mesa. —  Eu sou tão idiota. —  Riu. —  Acho aletra dele a coisa mais fofa do mundo.

Letra dele?  

Senti meu rosto corar. Desdobrei lentamente o papel amassado, de-

samassando-o o melhor que pude. Ali, rabiscado entre algumas manchas

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de gordura de pizza, estava uma lista de palavras das quais me lembrava

muito bem. Cada uma delas riscada de maneira organizada e meticulosa.

Menos duas.

Negação  

Raiva  

Barganha  

Tristeza  

Aceitação  

 —  Onde você conseguiu isso? —  perguntei baixinho. Depois, enfiei a

mão no bolso e encontrei a caneta, aquela incrível do terceiro ano, e ris-

quei tristeza .

Porque, honestamente, estava me sentindo muito triste.

 —  Meu Deus! —  exclamou ela, cheia de afetação. —  Você acha que

eu sou uma stalker  maluca, não acha?

É, hum, meu Deus. ACHO .

Patrick tinha razão. Garotas SÃO loucas.

Ela riu novamente, emitindo um ruído entre o de um chimpanzé e

um golfinho.

 —   Juro que eu… 

 —  Não acho que você seja o tipo dele  —  falei.  —  Sem querer ofen-

der.

Ela ficou de queixo caído.

 —  O quê?

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Encolhi os ombros.

 —  Foi o que eu disse.

Riley cruzou os braços. —  Ah, jura?

Olhei de volta.

 —  JURO.

 —  O quê? —  Ela riu sarcasticamente. —  E você é?

Talvez .

Provavelmente .

Com certeza .

Ela se levantou e saiu, dramática. Pela primeira vez em bastante

tempo, sorri.

Olhei para o Garoto do Nintendo. Aquele cabelo ruivo e o rosto doceme fizeram lembrar imediatamente do Jack. Não consegui evitar pensar

no que teria acontecido com aquele menino para terminar naquela pizza-

ria, sozinho. Apontei para o suéter dele.

 —  Harvard?

Ele assentiu.

 —  Michael estuda lá.

Hesitei antes de falar.

 —  Quem é Michael?

 —  Meu irmão.

Ele perdeu o irmão. Exatamente como Jack me perdeu .

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O som da risada do Jack encheu minha cabeça  —  uma risada da-

quele tipo incontrolável, de quando a gente corria um atrás do outro pela

casa nas manhãs de sábado. Eu sentia falta do sorriso dele, da mecha

espetada do cabelo. Senti saudade até de quando ele soltou pum no meu

travesseiro porque tinha ficado com raiva de eu ter permissão para ficar

acordada até mais tarde.

Esquece. Melhor pensar em outra coisa .

 —  Então. —  Fiz o possível para tirar aquelas lembranças da minha

cabeça. —  Finalmente dando um tempo do jogo, hein?

Sam coçou o nariz.

 —  Acabou a pilha. —  Pelo tom da voz, dava para ver que eu tocara

num ponto ultrassensível. E de repente me ocorreu o motivo. Talvez o ví-

deo game o ajudasse a esquecer alguma coisa na qual ele não gostava de

pensar.

 —  Ei —  eu disse. —  Quer pilhas novas?

O rosto dele se iluminou como se fosse uma árvore de natal.

 —  Claro! Você consegue?

Com certeza ninguém tinha se dado o trabalho de dar uma cópia do

M&E para Sam  —  provavelmente porque ele era novo demais para ler e

entender. Sorri. Estava prestes a deixar aquele menino pirado. Balanceias mãos no ar, misteriosamente, como já fizera milhões de vezes quando

 Jack e eu ensinávamos truques de mágica um para o outro. A grande di-

ferença agora era que eu estava fazendo mágica de verdade.

 —  Hocus Pocus. Abraaa cadabraaa… 

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Sam arregalou completamente os olhos. Balancei as mãos mais um

pouco, coloquei-as para trás e fiz o primeiro pedido que fazia em séculos.

Exatamente como Patrick me ensinara.

Pilha, por favor. Alcalina .

Sorri para Sam um segundo depois.

 —  Escolhe uma mão. Qualquer uma.

Ele apontou para a esquerda.

 —  ESSA!

Mostrei minha mão vazia.

 —  Não. De novo.

Ele fez uma careta, como se tivesse sido trapaceado, mas, finalmen-

te, apontou para minha mão direita.

 —  Essa?

 —  Ahá! —  gritei, colocando as pilhas na frente dele.

Sam olhou para mim, depois para as pilhas. Pegou as duas na me-

sa e, cuidadosamente, revirou-as nas mãos, como se pudessem desapa-

recer de repente. Colocou-as depressa dentro do joguinho e aper-

tou power . Os velhos e bons ruídos de jogo começaram a apitar em se-

gundos. —  Obrigado  —   disse ele, totalmente maravilhado.  —  Você conser-

tou.

Então, começou a chorar.

 —  Não, não, meu amor —  disse eu, me sentindo péssima. Levantei

e fui para o lado dele. Abracei-o, puxando-o para perto de mim. Ele se

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aninhou nos meus braços e pude sentir as lágrimas ensopando a frente

do meu vestido enquanto o ninava.

 —  Ahh —  falei. —  Está tudo bem. Vai ficar tudo bem.

 —  Não, não vai! Não está! —  gemeu ele. —  Eu quero ir para casa.

Lembrei da manhã em que vi Sadie e Jacob na praia. Lembrei da

maneira como Patrick me segurara nos braços até que eu não tivesse

mais lágrimas para chorar e como ele me levara de volta para a pizzaria

sussurrando no meu ouvido que tudo ficaria bem. Lembrei da dor nos

olhos dele quando tentou me dizer o que sentia e eu jogara seus senti-mentos fora como se não significassem nada. Como se ele  não importas-

se. Porque, naquele momento, eu só estava pensando em mim.

Isso me atingiu, enquanto deixava que um menino que eu mal co-

nhecia soluçasse nos meus braços.

Eu partira o coração do Patrick .

Exatamente como Jacob fizera comigo.

E me odiei por isso.

De repente, eu quis saber tudo. Quis —  não, eu precisei —  entender

quem era Patrick, quem ele tinha sido e por que eu sentia que ele levara

um pedaço de mim quando desaparecera.

Porque eu estava realmente cansada de ficar no escuro. Estava re-

almente cansada de sentir tristeza e solidão, e de sentir que faltava al-

guma coisa dentro de mim. Algo, agora tenho certeza, que sempre falta-

ra. Mesmo quando eu estava viva.

Esperei que Sam parasse de chorar. Beijei seu rosto e acariciei sua

cabeça.

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 —  Já volto. —  Levantei, com os ombros abertos, cabeça ereta, e fui

até a pessoa que finalmente me daria algumas respostas, gostasse ou

não.

A Senhora das Palavras Cruzadas.

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Capítulo 41

Let us die young, let us live forever

 —  Cadê ele?  —   Sentei-me num banquinho na frente dela e me

apoiei no balcão.

Ela encolheu os ombros, sem tirar os olhos das palavras cruzadas.

 —  Por favor —  falei. —  Me diz.

 —  Essa informação é confidencial.

A-há. Então ela sabe de alguma coisa .

 —  É importante.

Ela me encarou duramente um bom tempo, como a galinha idosa

de um desenho animado. Não me deixei abater. Finalmente, colocou o

lápis no balcão e cruzou as mãos.

 —  Feliz, agora?

 —  Vou ficar feliz quando me disser onde o Patrick está.

 —  Por que eu saberia?

 —  Porque —  sorri meu sorriso mais sincero —  você sabe de tudo .

Ela me encarou, desconfiada.

 —  Você está tentando me amolecer.

Droga, não fui sincera o suficiente .

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 —  Não estou  —  insisti.  —  De qualquer forma, qual é o problema?

Eu só quero que me diga onde ele está.

Ela balançou a cabeça.

 —  Eu estava falando a verdade.

Suspirei, irritada. A morte era tão ruim quanto a vida! Toneladas de

regras idiotas que não faziam o menor sentido.

 —  Estou perguntando com jeitinho —  falei. —  Ele sumiu há sema-

nas. Estou preocupada.

Ela deixou escapar um risinho irônico.

 —  Engraçado, já que ele sumiu por sua culpa.  —  Apontou para as

palavras cruzadas. —  Aliás, agora também não tenho ninguém para me

ajudar com a linha 18. —  Pegou novamente o lápis.

De repente, lembrei da papelada que tive que preencher quando

cheguei na pizzaria. Seria possível que Patrick também tivesse preenchi-do formulários, alguns anos antes? Será que a Senhora das Palavras

Cruzadas tinha um arquivo dele também? Debrucei sobre o balcão e pu-

xei as palavras cruzadas.

 —  Ei! —  reclamou a Senhora das Palavras Cruzadas.

Balancei a cabeça.

 —  Não devolvo até você me entregar o arquivo do Patrick.  —  Peguei

minha caneta, ela me olhou apavorada e comecei a colocar minhas pró-

prias respostas.

 —  De caneta não! —  disse ela. —  Tinta é uma coisa permanente!

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 —  Vamos ver… —  Ignorei-a enquanto buscava pistas. —  Palavra de

quatro letras para queijo mediterrâneo, comumente utilizado em saladas

gregas.

 —  Feta! —  gritou.

 —   Eu sei!  —   Comecei a rabiscar por conta própria uma resposta

ainda melhor. —  B-R-I-E!

 —  Não! —  Ela tentou puxar as palavras cruzadas de mim, mas des-

viei sua mão. —  Devolve! Você está estragando tudo!

Saí do banquinho, ainda no começo da brincadeira.

 —   Palavra de cinco letras para pessoa que não come carne.  —  

Humm… —  Fingi estar na dúvida. —  Essa é difícil.

 —  Vegan . —  Ela sacudiu os braços. —  VEGAN!  

 —  Eu sei! —  Estalei os dedos, depois enfiei a caneta no papel com

mais força ainda. —  EAGAN!

 —  Ah, como você pode fazer isso? —  resmungou ela. —  Todo o tra-

balho que eu tive, para nada!

 —  O que foi? —  perguntei. —  Desculpa, você disse alguma coisa? —  

Não dei a ela um segundo para responder e voltei às dicas.  —   Nossa,

agora uma realmente difícil. Palavra de oito letras para prato de carne

assada preferido das famílias. —  Fechei os olhos, balancei o corpo como

quem está pensando, como um mestre de ioga. —  Claro! —  Fui soletran-

do enquanto escrevia. —  H… A… M… L… O… A… —  Parei. —  Droga, não

é isso, é? Hamloaf tem sete letras, não oito!  —  Bati na testa e gemi para

aumentar o efeito dramático.  —   Deve ser outra coisa! Mas não posso

apagar! Ah, que idiota, por que não usei um LÁPIS?

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O rosto da Senhora das Palavras Cruzadas estava agora tão roxo

que ela parecia mais uma berinjela do que uma mulher. Que pena! Do

meu ponto de vista, não havia motivo nenhum para que eu não tivesse

acesso ao histórico do Patrick. Certamente ele tinha tido acesso ao meu.

 —  Você quer o arquivo dele? —  Ela abriu uma gaveta, tirou um en-

velope e jogou no balcão. —  TOMA!

Peguei. Sorri, agora de verdade.

 —  Obrigada.

Depois, baixei as palavras cruzadas e saí da pizzaria tão rápido que

quase quebrei a porta de vidro. Abracei o arquivo do Patrick no peito e

voei na maior velocidade que pude até o lugar onde eu sabia que poderia

ler em paz, sem que ninguém me interrompesse.

A ponte .

Quando meus pés tocaram o metal laranja e tão familiar da ponte

Golden Gate alguns segundos depois, achei que Patrick ficaria orgulhoso

de mim.

 —  Pouso perfeito —  sussurrei.

Meu peito se encheu de maresia e relaxei. Não estava ventando

muito e o céu tinha adquirido tons de cinza e roxo. As montanhas se es-

tendiam na minha frente, majestosas e misteriosas, e o sol me esquentouenquanto baixava no horizonte.

 —   Lá vamos nós  —   falei.  —  Chega de segredos.  —  Abri o arquivo

com cuidado. Havia um punhado de papéis dentro do envelope e passei

os olhos rapidamente pela primeira folha. Um questionário, exatamente

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como o que eu preenchera um ano antes. A escrita a lápis estava bastan-

te apagada, mas consegui entender algumas respostas.

NOME: Patrick Aaron Darling

Darling? O sobrenome dele era Darling? Como é que eu não sabia

disso?  

Continuei.

DATA DE NASCIMENTO: 1º de agosto de 1965

DATA DE MORTE: 11 de julho de 1983

Uau. Uma coisa era ter brincado com ele a respeito disso, mas era

muito diferente ver aquilo escrito, preto no branco. Eu realmente andava

por aí com um cara de 45 anos. Mais ou menos. Continuei lendo.

CAUSA DA MORTE: Sui Caedere6 

Aparentemente, o hábito irritante do Patrick de ficar falando frases

em latim era coisa antiga.

 —  Sui Cadere?   —   resmunguei.  —   O que é isso? Opa? Totalmente

minha moto?   —  Balancei a cabeça. —  Que cara de pau.

 Tentei adivinhar algumas das outras respostas, mas o resto estava

tão apagado que não dava para saber o que era o quê. Fora as duas úl-

timas perguntas no final da página.

ESPERANÇA: Que Lily me encontre

SONHOS: Que ela me perdoe

Finalmente. Ali estava. Alguma coisa real. Alguma coisa em que me

apegar.

6 Sui Caedere do latim suicídio.

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Um nome .

 —  Lily —  disse a palavra devagar, deixando que passeasse pela mi-

nha língua. Então era essa a garota que ele tinha amado, havia muito

tempo. —  Patrick e Lily. —  Soava bem. Soava certo.

Por meio segundo, parte de mim sentiu uma pontinha de ciúme,

apesar de saber o quanto isso me transformava numa maluca de cartei-

rinha. Como eu poderia ter ciúme de alguém que ele conhecera séculos

atrás, muito antes até mesmo de eu nascer?

Não fazia sentido. Sentido nenhum .

 —  Não seja ridícula, Brie —  briguei comigo mesma. —  Controle-se.

Fiz o que pude para afastar o pensamento da minha cabeça, ten-

tando me concentrar em vez disso em como eu era uma detetive particu-

lar incrível. Ainda não estava exatamente no nível do Sherlock Holmes,

mas duas pistas novas era melhor do que nada. Mas o que ele fez com

ela? Por que precisava que o perdoasse?

Típico de garoto: estragar tudo .

Vasculhei uma parte da papelada com mais cara de oficial —  nada

que valesse a pena um estudo mais atento —  e vi a fotografia de um bebê

de cabelo escuro, olhos escuros e um sorriso inconfundível.

Bem, tá, acabamos de receber a informação de que Patrick nasceugatinho .

Dei de cara com um jornal dobrado. Olhei a data no canto superior

direito. 12 de julho de 1983 . Desamassei o jornal, sem querer rasgar ne-

nhuma página e estendi-o no colo. Depois, agradeci silenciosamente aos

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céus por manterem o vento longe e comecei a vasculhar as manchetes.

Uma delas se destacou.

ADOLESCENTE DE 17 ANOS TIRA A PRÓPRIA VIDA

Parei. Li novamente. E de novo.

 —  Não pode ser ele —  disse, perdida. —  O Patrick morreu num aci-

dente de moto. Ou não?   —  Meus olhos passearam pela história breve lo-

go abaixo.

Um adolescente de 17 anos tirou a própria vida aqui em Half

Moon Bay, informou a polícia na noite de domingo. O corpo de Pa-trick A. Darling, 17, foi encontrado aproximadamente às 21 horas de

domingo na Breakers Beach, onde acreditam que ele tenha saltado

para a morte depois de esfaquear-se repetidamente. Darling deixa

mãe, três irmãs e pai, e diz-se que andava absolutamente devastado

pela recente perda da namorada, Lilian R. Thomas, 16, morta em um

trágico acidente de moto no fim de semana da independência.

Senti uma força estranha me sacudir por dentro. Vozes, confusão,

som de sirenes e metal se chocando enquanto meus pulmões eram to-

mados de fogo. Um fogo tão alto e tão intenso que minha visão ficou em-

baçada.

Socorro. Por favor, socorro. Não consigo respirar .

Gritos de menino, as mãos dele, a boca pressionada na minha, ten-

tando forçar um pouco de vida dentro de mim, apesar de ser tarde de-

mais. Lágrimas, gritos e beijos, e o portão do cemitério se fechando, me

trancando lá dentro.

Não me deixe aqui. Por favor, não me deixe aqui sem você .

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Meu corpo inteiro tremia. Voltei ao questionário e olhei novamente.

CAUSA DA MORTE: Sui Caedere

 —  Sui caedere 

. —  Li de novo e de novo, até que as palavras se jun-tassem e formassem uma só.

S-U-I-C-A-E-D-E .

O papel escapou dos meus dedos.

 —   Ele mentiu para mim  —   falei. Patrick não tinha morrido num

acidente. Tinha se matado.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Mas, por quê? Por que ele

mentiria sobre isso?

Cavando.

Me deixem sair .

Arranhando.

Socorro .

Agarrando.

Por favor .

Silêncio. O tempo parado. Podridão. Escuridão. Infinito .

A voz de um menino escorrendo por entre as fendas. Silêncio, pri-

meiro, depois tudo misturado com o cheiro enjoativo de gasolina e lágri-

mas.

Por favor , a voz dizia, não me deixe . Não posso viver sem você, Anjo .

Pelo canto do olho, vi outro pedaço de jornal no arquivo do Patrick.

Minha mente foi tomada de pânico, peguei o jornal e conferi a data.

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5 de julho de 1983.

Uma semana anterior ao outro.

Perdi o ar quando vi a foto central e assustadora. Uma pilha de me-tal ardendo em chamas, guidão esmagado, pneus queimados, o assento

desfigurado na minha frente, numa fotografia apagada. Um passeio dos

sonhos numa tarde na Highway 101 que se transformara em pesadelo.

Minha voz estremeceu quando li a manchete.

UMA COMUNIDADE EM LUTO

NAMORADOS SEPARADOS POR ACIDENTE DE MOTOCICLETA

Mas meus olhos não conseguiam deixar de pular para outra coisa.

A foto menor de um menino e uma menina. A tinta já quase totalmente

apagada, eu precisei apertar bem os olhos para ver direito.

Patrick .

Lá estava ele, com a mesma jaqueta de couro, o jeans surrado e umsorriso de matar. Atrás dele —  os braços em volta da sua cintura —  esta-

va o seu amor.

Lily .

Lá estava ela. A garota que Patrick amara tanto que esperava por

ela havia 27 anos numa pizzaria nojenta deste lado do céu — , desejando,

implorando, rezando para que ela entrasse por aquela porta e fosse dire-

to para seus braços.

Olhei mais atentamente e segurei o jornal tão perto dos olhos que

meu nariz praticamente tocou nele. Não tinha certeza do que estava pro-

curando, até que, de repente, eu vi.

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O cabelo escuro e ondulado dela. O sorriso feliz. O rosto tão livre,

tão frágil, tão cheio de possibilidades.

Não consegui desgrudar os olhos.

Porque a garota na fotografia era eu.

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 —  Bata —  ordenei a ele. Bati com a mão direita no peito. —  Bata. —  

A resposta foi um som surdo, oco. Tentei novamente.  —  Bata!  —  E no-

vamente.  —  Mandei bater, coisa idiota. BATA!  —  Mas nem sinal de pul-

sação, nem uma centelha, nem um suspiro ou movimento. Só um nada

triste e silencioso.

 Joguei a cabeça para trás e gritei com toda força:

 —  Cadê você? Por que não me disse nada?

Patrick não respondeu. A linha telefônica entre nossas mentes esta-

va definitivamente fora de serviço.

Deixei meu corpo pesar sobre os cotovelos e baixei a cabeça sobre a

plataforma de metal. No fundo, eu sabia a verdade. Ele tinha me dito, ou

tentado me dizer. Eu simplesmente não quis escutar.

Detestava a ideia de ser incapaz de me comunicar com

ele. Detestava  não saber para onde tinha ido. Mas procurei em toda par-

te. Fui a todas as extremidades do meu pedaço de céu —  vasculhei cada

estrada, cada floresta, cada ponte e cada montanha que me veio à cabe-

ça. Onde mais ele poderia estar se escondendo? Qual seria o lugar onde

ele teria certeza de que eu não pensaria em procurar?

Fiquei assistindo ao mundo se movendo e gemendo a mil pés abaixo

de mim, através das barras de metal cor de laranja. Virei para o lado  —  

nordeste  —  e percebi uma ilha isolada a quilômetros de distancia, logo

depois de Sausalito, logo abaixo de Tiburon.

O sol poente tinha coberto a baía de um brilho etéreo e, por instan-

tes, a ilha pareceu se iluminar  —  uma chama flutuante de vermelho e

laranja sobre águas profundas, cinzentas. Em seguida, o sol respirou

fundo e afundou entre as ondas e a cor do céu mudou de dourado treme-

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luzente a azul-escuro. Nuvens de chuva começaram a se aproximar, vin-

das do norte —  de lugares como Oregon e Vancouver — , e a ilha mergu-

lhou em sombras. Uma silhueta de árvores.

Fiquei de pé, hipnotizada.

Que lugar é aquele?  

De repente, as palavras de Larkin voltaram para mim, pequenos

sussurros trazidos pelo vento. E naquele momento, eu soube onde en-

contrá-lo.

Ilha do Anjo. Para onde os mortos vão na hora de morrer .

Não havia tempo para me perguntar se era tarde demais. Eu me po-

sicionei na beirada da torre do norte, ergui os braços acima da cabeça,

numa pose perfeita de mergulho, e deixei meu corpo ir.

Mas dessa vez eu não caí.

Eu flutuei .Voei como louca, contra o vento, contra a neblina e os últimos ves-

tígios da luz do dia, até meus pés tocarem, como patas de gato, a praia

fria e rochosa. Na penumbra, podia ver as silhuetas dos carvalhos gigan-

tes circundando a borda mais alta da praia, suas cascas avermelhadas

descascando como papel.

Não sabia muito bem para onde ir ou onde o encontraria, mas re-

solvi ficar pela praia por um tempo, pelo menos até que conhecesse um

pouco melhor a ilha. Aquela aglomeração de árvores realmente não pare-

cia muito amigável.

 —  Isso —  disse para mim mesma. —  Com certeza é melhor ficar pe-

la praia.

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Principalmente no escuro .

Mas, quando comecei a caminhar, com a lua escondida atrás de

uma cortina de névoa, foi impossível não reparar na quantidade de des-

troços espalhados por toda parte. Troncos, pedregulhos, pedaços de ma-

deira, tudo isso fazia com que andar sem tropeçar fosse cada vez mais

difícil. Era como se um tornado tivesse destruído completamente aquele

lugar.

O barulho dos meus sapatos amassando as pedras e a areia tam-

bém começava a me enlouquecer. O medo começou a se alojar na minha

mente como se cada ruído ecoasse cinco vezes mais alto. De repente, tive

a sensação de que minha empreitada tinha sido uma péssima ideia.

Então, meu pé direito encostou em alguma coisa —  talvez um galho

 —  e eu quase caí de cara na areia, mas consegui me equilibrar sobre os

 joelhos. Foi então que percebi uma coisa estranha. A areia tinha um

cheiro… esquisito. Quase metálico. Peguei um punhado e senti os grânu-los nos dedos.

 —  O que é isto?  —  Então reconheci o odor e joguei a areia fora o

mais rápido que pude.

Sangue. A areia tem cheiro de sangue .

Veio uma onda que ensopou minhas mãos, meus joelhos e meus

sapatos. O cheiro se intensificou.

 —  Meu Deus.  —  Fiquei de pé e vi a água deixar rastros vermelhos

na areia, recuando. —  Está… está na água. Em todo lugar. —  Uma sen-

sação de ameaça tomou meus braços e pernas, paralisando-os. Eu que-

ria sair correndo daquela ilha.

Agora.

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~ 333 ~

 Tentei me virar, mas tropecei num pedaço enorme de madeira e caí

para trás. Ouvi um gemido na escuridão e, naquele momento, tudo o que

consegui saber era que o gemido não era meu.

Congelei, me sentindo tão tonta e enjoada de medo que mal conse-

guia respirar.

 —  Que-que-quem está aí? —  Forcei as palavras a saírem da minha

boca depois de um segundo de puro terror. Devagar e o mais silenciosa-

mente possível me ergui, limpando das mãos os pedaços endurecidos de

areia. Ninguém respondeu.

Será que tinha sido minha imaginação?  

A lua escapou da neblina e lançou um clarão fantasmagórico sobre

a orla. Olhei mais atentamente para os pedaços de madeira trazidos à

praia pela água. Mas não eram pedaços de madeira.

Eram corpos .

Centenas e centenas deles, espalhados pela areia  —   os membros

torcidos e enroscados como galhos partidos de árvores; as costelas e es-

cápulas completamente visíveis através das peles finas como papel; os

rostos pálidos, sem vida, brilhando como neve ao luar. Fiquei sem ar e

comecei a tremer violentamente, tentando absorver aquela cena. Era pior

do que qualquer coisa que já tivesse lido em qualquer livro. Para onde

quer que eu olhasse, ao longo de quilômetros, havia um mar de rostos.

Um mar de almas partidas, miseráveis  —   nuas, sangrando, monstruo-

sas, virando pó diante dos meus olhos.

Ou areia .

Comecei a espanar a sujeira do meu vestido, dos braços e do rosto,

freneticamente. Mas, quanto mais eu tentava me livrar, mais a areia pa-

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recia grudar na minha pele. Nos meus sapatos, no meu cabelo, debaixo

das minhas unhas, na minha boca. Tossi e cuspi, de novo e de novo, ten-

tando tirar os vestígios daquilo da minha língua, mas só consegui sentir

gosto de terra e ferrugem. Só sentia a umidade saindo dos meus poros,

minhas mãos ficando vermelhas.

 —  Cadê você? —  gritei. —  Patrick, por favor, responda!

Foi então que comecei a ouvir vozes.

“Sou inocente… juro pelo que há de mais sagrado que não fiz isso.”  

“Você tem que me perdoar. Por favor, ninguém vai me perd o ar?”  

“Mãe? Mãe, é você?”  

“Você mentiu para mim. Você mentiu bem na minha c a ra…”  

Falavam e gritavam ao mesmo tempo  —   vozes altas, incoerentes e

displicentes demais para que eu entendesse metade do que diziam. Andei

em meio a elas, procurando um sinal dos olhos ou do sorriso dele. Meuspés continuaram a esmagar e chutar enquanto eu caminhava, mas agora

eu sabia que não estava pisando em conchas do mar.

 —  Patrick? —  chamei, desesperada. —  Você está aí?

 —  Cuidado —  disse alguém quando meus pés se aproximaram de-

mais.

 —  Desculpa! —  Pulei, saindo do caminho, mas acabei passando por

cima de outra pessoa.

 —  Ei!

 —  Desculpa, desculpa. Não foi minha intenção… 

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Continuei vasculhando aqueles rostos, na esperança de uma cente-

lha de reconhecimento.

 —  São todos iguais. —  Entrei em pânico, virando os corpos endure-

cidos para conferir se não eram de um menino de 17 anos.  —  São todos

absolutamente iguais!

 —  Não somos. —  Ouvi a voz de uma menina murmurar baixinho.

Levantei a cabeça e vasculhei a praia com os olhos.

 —  Oi?  —  gritei.  —  Quem está aí?  —  Caminhei na direção do som,

passando por cada alma até chegar a uma silhueta de cabelo comprido e

crespo, preso numa trança. Eu me ajoelhei e virei o corpo.

E, quando os olhos solitários dela encontraram os meus, caí em

prantos.

Larkin.

 —  Brie. —  A voz quase um sussurro. —  Achei que nunca mais fossever você.

 —  O que você está fazendo aqui? —  Fiquei de joelhos e fiz o possível

para ajeitar a cabeça dela no meu colo. —  O que aconteceu?

Ela me encarou sem piscar e, por um minuto, pensei ter imaginado

o som da sua voz. Então seus lábios tremeram novamente e percebi que

tentava falar.

 —  Eu não podia ficar sozinha novamente. Não havia mais nada pa-

ra mim na cidade.

 —  Me desculpe —  falei, arrasada. —  Eu não quis magoar você. Não

queria que nada disso tivesse acontecido.

 —  Jura? —  disse ela. —  Verdade?

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 Tirei a areia de seu rosto e vi em que ela se transformara. Não pas-

sava de uma sombra da menina que pulava de arranha-céus. Da menina

que me ajudara a tomar conta de mim mesma e que me mostrara que eu

era mais forte do que pensava. Não sobrara quase nada de Larkin

Ramsey. Ela estava se transformando em pó diante dos meus olhos.

 —  Vai ficar tudo bem. —  Tentei animá-la. —  Vou tirar você daqui.

 —  Brie —  sussurrou ela. —  Eu incendiei a minha casa naquela noi-

te. Você sabia?

Olhei para ela, confusa.

 —  Você não tem que se culpar, Larkin. Todo mundo sabe que foi a

vela. Todo mundo sabe que foi um acidente. Um acidente horrível. Só is-

so.

Ela balançou a cabeça.

 —  Fui eu, não foi acidente. Eu fiz de propósito. Eu queria morrer.

 —  Não. —  Sacudi a cabeça. —  Por favor, não diga isso.

 —  É verdade. —  Larkin sorriu, tristemente. —  Eu sempre fui muito

sozinha. Sempre me senti só. E resolvi tomar uma providência.  —   Ela

deixou escapar uma ligeira gargalhada.  —  Depois, é claro que descobri

que o outro lado é mil vezes mais solitário. —  Seu tom ficou amargo.  —  

Mas agora não dura uma vida, dura para sempre. —  Ela estendeu a mãoe segurou a minha. —  Chato ser eu, não é?

 —  Mas, no seu enterro… —  disse eu, lembrando da noite no auditó-

rio, alguns anos antes da minha morte. —  Tinha tanta gente lá que gos-

tava de você.

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 —  Eles não gostavam de mim —  disse ela. —  Eu estava lá. Eu vi a

expressão de culpa no rosto das pessoas. A maioria mal tinha se dado o

trabalho de me conhecer melhor.

As palavras dela me impactaram. Lembrei de reparar a mesma coi-

sa no meu próprio enterro; eu não conhecia muita gente que apareceu

para demonstrar respeito. E isso me pareceu muito estranho.

Exatamente como Jacob, Larkin fez com que me desse conta de que

não importa o quanto você imagina conhecer alguém  —   não importa o

quanto a pessoa é bonita, ou o quanto parece equilibrada, popular, nun-

ca se sabe realmente como é a vida dela.

A não ser que você pergunte .

A não ser que você seja capaz de escutar .

 —  Por que você não me contou? Por que não me contou o que tinha

acontecido?

O corpo dela se tornara tão translúcido que começava a se misturar

à areia.

 —  Eu não sei —  disse ela, baixinho. —  Acho que, às vezes, lembrar

dói demais.

 —  Larkin, eu… 

 —  Por isso eu voltei —  interrompeu ela, segurando meu braço com

mais força do que antes. —  Por isso eu resolvi entregar minha alma para

voltar e tentar consertar as coisas. Mas era uma armadilha. Eu tentei fa-

zer escolhas diferentes, juro por Deus, mas isso não mudou nada. As

pessoas continuaram não me enxergando. Continuaram agindo como se

eu fosse invisível. —  Começou a soluçar.

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 —  Tudo bem —  falei baixinho, com suavidade, tentando confortá-la.

 —  Estou aqui.

 —  Foi como eu consegui isso.  —  Apontou para a tatuagem.  —  Foi

assim que virei uma Alma Perdida.

Um minuto. Alma Perdida? Onde eu tinha ouvido isso?  

De repente, algo me ocorreu. As pinturas de grafite que eu vira pela

cidade, como no muro perto do Rabbit Hole. Era o mesmo símbolo tatu-

ado no braço da Larkin.

 —  O pior  —  o queixo dela começou a tremer enquanto falava  —  é

que eu ia fazer a mesma coisa com você. —  Tremia tanto que eu mal po-

dia ouvi-la. —  Eu ia tentar roubar a sua alma, Brie. Ia usar a sua alma

para tentar me salvar. Recomeçar… viver novamente… de verdade. 

Minha cabeça estava rodando.

 —  Você quer dizer… você está falando de reencarnação? 

Ela concordou lentamente.

 —  Almas perdidas ficam se esgueirando pela Terra desse jeito por

milhares de anos. Barganhando uma essência de alma nova, uma pos-

sessão que possa fazer uma conexão com a vida antiga, para recomeçar

como outra pessoa. —  Sorriu, desanimadamente. —  Como se fosse uma

carta de alforria.

A essência de outra pessoa. Uma possessão que as conecte com a

vida antiga .

 Toquei no meu pescoço. Meu colar .

 —  Mas o chato —  continuou ela —  é que alguém tem que dar a al-

ma de presente, para funcionar. E se a pessoa não dá… você tem que

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pegar. —  Fez uma pausa, e percebi a vergonha velada na sua voz. —  Vo-

cê tem que roubar.

Roubar?  

 —  Desculpa —  disse ela. —  Eu queria tanto uma segunda chance.

 —   Seus olhos imploravam pelo meu perdão.  —  Eu queria ser qualquer

pessoa, menos eu.

Eu não entendia. Como uma garota tão linda, inteligente, divertida

pode ter se sentido tão sozinha por tanto tempo? Pior, como pode nin-

guém ter notado?

Meus olhos se encheram de lágrimas.

 —  Se eu soubesse, as coisas poderiam ter sido diferentes. Eu queria

poder ter estado do seu lado. Queria ter feito alguma coisa… 

 —  Mas você fez. Você fez alguma coisa.

 —  Não. —  Balancei a cabeça. —  Não fiz.

 —  Eu sempre quis —  prosseguiu ela — , mais do que tudo, ter uma

irmã. E depois que você me encontrou na cidade, eu tive uma. Tive meu

desejo atendido. Obrigada.  —   Ela apertou minha mão e tentou sorrir.

Então, tocou no meu rosto, a mão mal conseguia estar ali. —  Você faria

mais uma coisa? Por favor?

Assenti.

 —  Qualquer coisa.

 —  Não se esqueça de mim. —  Seus olhos brilharam e pude ver que

ela estava com medo. —  É muito fácil esquecer das pessoas aqui. Não se

esqueça de mim, Brie.

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 —  Shh.  —  Silenciei-a.  —  Não fale assim. Vai ficar tudo bem. Você

vai ficar bem.

Mas, enquanto as palavras saíam da minha boca, eu senti que ela

começava a ir embora. Senti sua mão relaxar, escapando da minha,

caindo na areia. Vi seus olhos flutuarem uma vez, depois ficarem imó-

veis.

 —  Larkin?  —  Minha voz ecoou pela praia.  —  Larkin?  —   Sacudi-a,

mas ela não se moveu. Debrucei-me sobre ela e a envolvi nos meus bra-

ços, lágrimas rolando pelo meu rosto.  —  Por quê? Por que todo mundo

sempre vai embora?

Naquele momento, senti um calor no pescoço. Olhei para baixo e

percebi uma luz suave, azul.

Meu colar estava brilhando .

Um relâmpago iluminou o céu a distância e o vento ganhou força.

As vozes à minha volta estavam em silêncio, como se devessem respeito à

morta. Toquei no rosto dela e beijei-a na testa.

 —  Não vou esquecer —  eu disse. —  Prometo.

Então, usei meu dedo para escrever seu nome na areia.

Larkin Ramsey

Amiga e irmã

Peguei uma florzinha no meio das pedras e coloquei na mão dela.

Depois, limpei a areia do meu rosto e vasculhei a praia com os olhos.

Eram tantas almas destruídas. O que acontecera com elas?

Amor , me dei conta. O amor aconteceu .

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Qualquer uma delas poderia ser Patrick. Eu tinha que encontrá-lo,

mas como? Não seria possível conferir cada rosto. E, mesmo que eu con-

seguisse fazer isso, não suportaria vê-lo no estado deplorável em que en-

contrara Larkin. Não sabia o que aconteceria comigo, caso tivesse que

me despedir num lugar como aquele. Olhei para o céu e imaginei-a vo-

ando em outra galáxia. Brilhando. Talvez no momento em que estivesse

nascendo de novo como outra pessoa. Alguém com uma vida inteira pela

frente e um novo começo.

 Já que, aparentemente, a opção era essa.

Olhei para as estrelas e me perguntei se ela poderia me ver agora.

Desejei que estivesse feliz, fosse onde fosse. E desejei que estivesse livre.

De repente, vi alguma coisa se mover ali perto. Virei-me e focalizei o

lado oeste da ilha, onde uma montanha enorme se projetava sobre o oce-

ano.

 —  É você? —  sussurrei. —  É você, de verdade?

Você cai, eu caio, lembra?  

Lá, de pé na ponta do mundo, o rosto na direção do céu, estava Pa-

trick.

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Capítulo 43

We belong to the light, we belong to the thunder.

Corri. Corri o mais rápido que pude debaixo da chuva, atraves-

sando ondas numa orla cheia de mortos-vivos. Por onde eu pisava, cor-

pos em agonia tentavam agarrar minhas pernas, querendo me puxar, pa-ra que me juntasse a eles. Via a mim mesma sufocando em suas bocas

abertas, nos braços invisíveis, em milhões de sonhos e memórias esque-

cidos.

E eu sabia que, se não corresse rápido o bastante, logo seriam mi-

lhões… mais uma. 

Não consegui velocidade suficiente para voar diretamente para ele,

e o ar estava estranho —  pesado e estagnado, como se as regras fossem

diferentes ali. Corri para a floresta, me escondendo nos arbustos até

chegar na estrada. O asfalto estava quase todo coberto de folhas e as ár-

vores dos dois lados tinham se juntado e formado uma copa enorme que

escondia a lua.

Mas uma estrada é melhor do que nada .

Fui até o meu limite, abrindo caminho até a única montanha da

ilha. Finalmente, cheguei numa clareira que dava para um espaço aberto

onde se via a noite sobre o Pacífico em um panorama completo.

E ali, bem na minha frente, um garoto.

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As costas completamente nuas  –   não consegui evitar uma careta

quando vi como ele estava transparente  – , a chuva literalmente molhan-

do seus ossos. Como se a luz dentro dele tivesse se apagado quase com-

pletamente. Suas palavras ecoaram dentro da minha cabeça.

Você não sabe que eu te amo?  

A resposta era sim. Porque eu também o amava.

Ele não me viu logo, e fui até ele lentamente, sem querer assustá-lo.

 —  Patrick?

Mas ele não ouviu minha voz. A tempestade agora fazia barulho

demais. Fui até ele. Estendi meu braço, mesmo com a chuva e o vento

atacando meus ombros. Quando as pontas dos meus dedos finalmente

tocaram seu braço, senti uma onda de calor inacreditável.

Olhei para baixo e vi que minha mão refletia o mesmo brilho azula-

do, pálido, da minha gargantilha, como se minhas veias fossem poeira

estelar. Senti o corpo de Patrick retesar em resposta ao meu toque.

 —  Sou eu —  falei. —  Estou aqui.

 —  Por quê? —  A voz dele estava rouca. —  Eu não te pedi que viesse.

 —  Patrick, eu… 

 —  Melhor você ir embora. Aqui não é seu lugar.

 —  Espera —  eu disse. —  Você não entendeu.

 —   Entendi.  —  Ele baixou a cabeça.  —   Foi besteira minha esperar

tanto tempo. Aguentei tantos anos —  disse. —  Não valeu a pena.

 —  Não diga isso. Por favor.

Senti seus ombros se curvarem.

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 —  Eu sabia que um dia você ia atravessar aquelas portas  —   sus-

surrou ele. —  E finalmente você apareceu. Finalmente voltou para a mi-

nha vida, depois de quase trinta anos… e não me reconheceu. Não me

reconheceu de maneira nenhuma.

 —   Como eu poderia?  —   implorei.  —   Patrick, eu não era mais a

mesma menina.

Ele fez um gesto afirmativo.

 —  É verdade. Não é a mesma. Agora sei.

 —  Não foi isso que eu quis dizer. Você não está escutando.

 —  Foi idiotice minha achar que um dia teria você de volta. Que as

coisas poderiam ser como eram. —  Fez uma pausa, olhando para o hori-

zonte. —  A culpa é minha. Eu estraguei tudo.

 —  Você não entende? —  falei. —  Você não tem que se desculpar de

nada. Você não fez nada errado.

 —   Eu fiz tudo  errado. Você não queria sair de moto naquele dia…

Você estava apavorada. Mas eu sabia que ia adorar a sensação, se expe-

rimentasse. Então, te convenci a ir.  —   Sua voz ficou embargada e ele

baixou a cabeça.  —  Você morreu por minha causa. E, se nós dois não

pudemos ficar juntos, a culpa é minha.

 —   A motocicleta  —   sussurrei.  —  O pesadelo era real.  —   Encosteiminha cabeça nas costas dele e passei os braços em volta daquela alma

transparente.

 —  Você pode me perdoar um dia? —  murmurou ele.

Apertei-o o mais que pude.

 —  Você não precisa do meu perdão. Precisa do seu.

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Um trovão gigantesco ecoou sobre nossas cabeças e senti que ele se

virava na minha direção. Senti suas mãos no meu rosto. E quando abri

os olhos, não acreditei no que vi.

Finalmente vi o que ele escondera por tanto tempo, debaixo da ca-

miseta e da jaqueta de couro. Finalmente compreendi por que ele quase

nunca tirava aquele casaco na minha frente. Agora eu via que a cicatriz

no braço dele —  por mais profunda, desigual e horrível que fosse  —  não

era NADA.

Nada, se comparada ao resto.

O peito de Patrick era todo coberto de terríveis ferimentos de faca.

Como se ele tivesse sido atingido mil vezes por uma lâmina afiada  —  e

isso não fora um acidente.

 —  Meu amor  —   sussurrei.  —  O que foi que você fez?  —   Lágrimas

quentes ardiam nos meus olhos enquanto eu passava os dedos nas cica-

trizes, beijando-as uma a uma.

 —  Sui caedere   —  disse ele. —  Eu não podia viver sem você.

 Toquei seu rosto. Aproximei minha testa, de maneira que ficásse-

mos a pouquíssimos centímetros de distância. Olhei profundamente nos

olhos dele, tentando diminuir a distância entre nós.

 —  Desculpa, Patrick, eu nunca quis ferir… O céu se iluminou com um relâmpago e um raio atingiu a praia

abaixo de nós, queimando algumas árvores. Em segundos, a ilha come-

çou a pegar fogo.

 —  Você não me reconheceu  —  disse Patrick.  —  Eu queria tanto te

contar, mas tive medo de que achasse que eu era louco. —  Fez uma pau-

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 —  Patrick.

 —  É um prazer conhecer você.

Ele sorriu. —  Mais uma vez.

Eu me aproximei devagar para o que imagino que seria, literalmen-

te, O Melhor Beijo de Todos Os Tempos. Mas, um segundo antes de nos-

sos lábios se encontrarem, outro raio atingiu a terra e nos separou.

Agarrei a mão dele, mas era tarde demais —  a força do raio já joga-

ra Patrick de costas na beira do abismo. Fora do meu campo de visão.

 —  NÃO!

Eu me arrastei o mais rápido que pude até lá. E, quando olhei para

o lado, vi que estava pendurado. Segurei a mão dele com todas as forças.

 —  Patrick!

O fogo começou a se espalhar abaixo de nós. Mesmo com a chuva

constante, a orla agora estava quase totalmente tomada pelas chamas  –  

centenas de pobres almas à morte se debatendo em agonia.

Larkin. A Larkin está lá embaixo .

O fogo lambeu os pés de Patrick e vi a dor no rosto dele.

 —  Não posso, Brie! Estou caindo!

Senti que seus dedos começavam a escapar dos meus enquanto eu

chorava. Busquei forças dentro de mim, fechei os olhos para arrancar as

últimas energias que tinha. Depois do que pareceram horas, finalmente

consegui trazer metade do corpo dele para cima do abismo. Dei mais um

puxão forte até trazê-lo inteirinho para o chão. Ficamos os dois ali deita-

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dos, recuperando o fôlego, a chuva caindo sobre nós como um lençol ge-

lado.

 —  Se você queria sair comigo  —  disse ele, tossindo — , bastava pe-

dir.

 —  Vou lembrar disso da próxima vez —  respondi.

Patrick se sentou e, pela primeira vez, olhei atentamente para o

ombro dele. Ali, cravada na pele, estava a mesma marca que Larkin ti-

nha —  um círculo pequenino com um X bem grande no centro.

Minha mente voltou ao dia do nosso primeiro encontro.

 —  Meu nome é Patrick… Alma Perdida Residente. 

 —  Você é um deles —  disse eu, triste.

 —  Eu faria tudo outra vez se fosse preciso.

Então era verdade. Ele entregara sua alma.

E fizera isso por mim.

Agora eu entendia que estava preso, era um prisioneiro eterno do

Além. Nunca andaria para a frente. Nunca encontraria aceitação. Nunca

teria paz.

Ele baixou a cabeça.

 —  Era minha única opção, Anjo. Sua vida tinha acabado de come-çar. Você merecia uma segunda chance.  —   Ele passou a mão no meu

cabelo, grudado no rosto pela chuva. —  Era a única maneira de compen-

sar você, Lily. Você nunca quis subir naquela moto idiota.

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Senti o cheiro do fogo se aproximando. Quase na beira do abismo.

Em menos de um minuto, não importaria mais se a tempestade nos des-

truísse. Ainda assim teríamos que lidar com o inferno.

Quando olhei nos olhos de Patrick, finalmente entendi por que ele

me pareceu tão familiar desde o primeiro momento. Por que a voz dele

me pareceu tão familiar.

Não era porque ele me lembrava o Tom Cruise em Top Gun   —  Ases

indomáveis   e não era porque ele tinha uma queda por apelidos relacio-

nados a queijo. Era porque —  na vida, na morte e em tudo que existe no

meio —  Patrick sempre estivera ali.

Sempre estivera ali por mim.

E, de repente, eu soube o que tinha que fazer. Sem um segundo pa-

ra pensar, tirei o colar do meu pescoço e estendi-o para o céu. Era a mi-

nha vez de fazer o sacrifício. Ele desistira de tudo por mim e era a minha

vez de desistir de alguma coisa por ele.

Porque o amor vale a pena.

 —  Meu coração pertence a você —  sussurrei. —  Sempre pertenceu a

você.

 —  Espere —  disse ele, buscando a minha mão. —  Não, Anjo!

Um raio cheio de calor atingiu em cheio o colar, mandando bilhõesde volts para dentro dos nossos corpos. Senti que fui apartada dos bra-

ços de Patrick e caí mais uma vez, atravessando o tempo, o espaço, as

estrelas, o céu e tudo mais que existisse no meio. Caí até esquecer que

estava caindo.

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Então, a Baía de São Francisco —  o céu acima e o inferno abaixo —  

explodiu em luz.

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Capítulo 44

Somewhere over the rainbow

Eu me sentei, buscando ar.

Mas o único som que escutei foi o ruído arranhado do meu ventila-

dor de teto, a correntinha dourada balançando e batendo nas pás de

forma ritmada.

Bate-gira, bate-gira, bate-gira .

Dei um pulo na cama, arfando, exausta e absolutamente feliz por

estar a salvo, quentinha, na minha própria cama, com meu travesseiro

de penas de ganso. Meu estômago roncou e senti o cheiro delicioso quevinha da cozinha.

Hum, a Melhor Lasanha do Mundo .

Esfreguei os olhos, bocejei e percebi o brilho suave da noite atra-

vessando as cortinas brancas de linho do meu quarto. Nada de tempes-

tade. Nada de trovões ou raios ou ilhas em chamas. Só meus lençóis

limpinhos de algodão e meu travesseiro perfeito. Tudo sedoso, macio e

maravilhosamente suave debaixo da minha pele.

Meus lençóis. Minha cama. Minha cama maravilhosa, incrível.

Ei, um segundo .

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Desci a escada correndo, pulando os dois últimos degraus, como

sempre fazia. Lírios na mesa de jantar, arrumados no vaso verde horren-

do feito por mim para minha mãe quando estava no sétimo ano. Os ócu-

los escuros do papai na mesa da entrada. O cheiro das flores misturado

ao do amaciante de roupas —  o cheiro mais gostoso do mundo. A voz do

Paul Simon saindo das caixas de som.

“Hearts and Bones”. 

A favorita da minha mãe.

Ouvi as unhas de Hamloaf arranhando o chão da cozinha, depois oda sala de TV, depois o da sala de estar, correndo na minha direção, ab-

solutamente incontrolável. De repente, ele estava nos meus braços, me

cobrindo de beijos caninos e pensei que fosse desmaiar de tanta felicida-

de.

 —  Hammyyyyy!

Ele arfava, gania e latia como se não me visse naquela casa havia

muito, muito tempo. Porque isso era verdade.

 —  O que foi que deu nele? —  Jack entrou na sala de TV e se jogou

no nosso sofá grande e confortável com o Nintendo nas mãos.

Ah, Jack .

Meus olhos se encheram de lágrimas quando pensei no Sam  —  na-quele rostinho cheio de sardas — , sentindo tanta saudade do irmão.

Num segundo, cruzei o tapete, aterrissei em cima dele e ataquei

meu irmão com mais abraços e beijos do que já lhe dera a vida inteira. (E

dera muitos.) Ele gritou de tanto rir e caímos no chão, lutando, nenhum

dos dois sentindo nenhuma dor.

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 —  Brie e Jack Eagan, chega! —  Mamãe ria na porta da cozinha, se-

cando as mãos com uma toalha. Olhei para cima. O cabelo escuro dela e

os óculos de grau, as bochechas rosadas e os olhos verdes. Era tão linda.

Imediatamente, saí do tapete e abracei minha mãe com toda força, como

não fazia havia anos. E ela percebeu.

 —  Meu amor?  —   Colocou a mão na minha testa.  —   Você está se

sentindo bem?

 Tudo que pude fazer foi concordar. Estava chorando muito para di-

zer qualquer outra coisa.

Ela se afastou um pouco e segurou meu rosto.

 —  Ah, meu amor. —  Tirou o cabelo dos meus olhos. —  Por que você

está chorando?

É você mesmo? De verdade, honestamente, é você?  

Balancei a cabeça.

 —  Desculpa —  falei, engasgada. —  Eu só estava com muita sauda-

de de você. —  Abracei-a novamente, sem querer largá-la. Nunca mais.

 —  Você sentiu saudade de mim?  —  Ela riu, pega de surpresa por

aquela demonstração súbita de carinho.  —  Meu amor, eu realmente es-

pero que você não esteja doente.

Balancei a cabeça, confirmando que não.

 —  Você vai usar esse vestido hoje à noite? —  murmurou ela no meu

ouvido. —  Fica lindo em você.

 —  Como assim? —  perguntei, sem me mexer. —  Usar o vestido para

quê?

Ela riu.

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 —  Uau. Você realmente está esquisita. Hoje à noite não é o grande

encontro? Com um certo namorado?

Namorado?  

Minha mãe apontou para o relógio de parede da cozinha.

 —  Minha flor, o Jacob não vem te pegar às 20 horas?

Eu me afastei e senti que meu rosto empalidecia.

 —  Que dia é hoje?

Dessa vez, devo ter feito uma cara realmente esquisita.

 —  Quatro de outubro. —  Ela cruzou os braços. —  Tudo bem, agora

eu fiquei preocupada. O que está acontecendo com você?

Corri até a cozinha e peguei o jornal no balcão. Quatro de outubro,

exatamente como ela dissera. Olhei novamente e uma sensação de pavor

tomou conta da minha garganta.

4 de outubro de 2010.

Ano passado.

Então, me dei conta.

Estou revivendo tudo. Estou REALMENTE revivendo a noite da minha

morte .

Larguei o jornal e me afastei lentamente.

 —  Não estou me sentindo muito bem.

 —  Dá para notar.  —  Mamãe se aproximou e começou a juntar as

páginas espalhadas do jornal.  —   Escute, meu amor, eu posso resolver

isso para você. Que tal telefonar para o Jacob e cancelar?

Jacob .

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 —  Ele está vivo? —  sussurrei.

Ela me olhou, estranhando.

 —  Brie, isso não é engraçado. Não se brinca com uma coisa dessas. —  Ela começou a tirar os talheres da máquina de lavar louças.  —  Olhe

só, eu vou fazer isso, mas realmente gostaria que você arrumasse a cozi-

nha na volta, tá? —  Começou a guardar os talheres na gaveta. —  E não

se esqueça de que eu e seu pai queremos você em casa às 23 horas, no

máximo. Estou falando sério, se for se atrasar, nem que seja um minuto,

precisamos saber.

 —  Mas eu não… 

 —  Nem mais nem meio mais —  disse em tom firme. —  Compramos

um celular para você por um motivo. Não foi para que pudesse mandar

torpedos para Sadie e as meninas durante a aula. Por favor, ligue para a

gente se for chegar mais tarde. Ou melhor… —  Cruzou os braços. —  Não

chegue mais tarde.

 Jack entrou na cozinha feito um furacão, Hamloaf trotando às suas

costas. Ele abriu a geladeira e pegou um refrigerante aberto, que eu tirei

imediatamente das suas mãos.

 —  Hummm! —  disse, ainda engolindo.  —  Delícia! Meu Deus, como

isso é bom.

 —  Ei! —  Jack cruzou os braços. —  Mãe!

 —  Brie, pare de provocar seu irmão. Tem uma caixa cheia aí dentro,

você pode pegar uma inteira, meu amor.

Devolvi a bebida para Jack.

 —  Foi mal. Mas tinha uma cara tão boa que não resisti.

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Então, ouvi o barulho da porta da garagem se abrindo. O som de

um carro entrando, seguido do som do motor sendo desligado. Depois

passos, porta abrindo e… 

 —  E aí, campeão? O que foi que a gente combinou ontem? —  Papai

entrou na cozinha carregando algumas sacolas de compras, ainda de ja-

leco branco. Hamloaf pulou em cima dele.

 —  Oi? —  resmungou Jack, terminando de tomar o refrigerante.

 —  Sua bicicleta?

 Jack parou por um segundo, tentando lembrar. Depois seu rosto se

abriu no sorriso mais fofo do mundo.

 —   Ih! Esqueci!  —  Correu lá para fora para guardar a bicicleta na

garagem.

 —  Como foi o dia, amor? —  Mamãe deu um beijo rápido na boca do

meu pai e pegou as sacolas que carregava.  —  Obrigada.  —  Ela olhou o

conteúdo das bolsas. —  Você trouxe minha berinjela, amor?

 —  Ahã. —  Ele fez que sim, sem se dar o trabalho de levantar o ros-

to, enquanto conferia a correspondência.

Papai .

Encarei-o duramente, de braços cruzados. Lá estava ele, como anti-

gamente. O cabelo curto, o rosto barbeado. E, apesar de parte de mim

estar morrendo de vontade de atravessar a cozinha correndo para dar

um abraço gigante nele —  afinal de contas, era meu pai   — , simplesmente

não consegui fazer isso.

Sentei no balcão da cozinha e comecei a chutar a porta do armário

debaixo da pia. Alto o bastante para que ele erguesse o olhar. Quando

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seus olhos encontraram os meus, sorriu. Veio até mim e me deu um bei-

 jo na testa.

 —  Boa noite, srta. Mussarela.

Eu me afastei.

Valeu a tentativa .

Ele pareceu confuso e um pouco ferido com a frieza da minha ati-

tude.

 —  O que foi? —  Olhou para mamãe. —  Uh-oh. Estou sentindo chei-

ro de confusão com meninos?

Ah, nem se ATREVA a falar sobre isso. Nem se atreva .

Ela balançou a cabeça, revirando a geladeira.

 —  Não sei muito bem. Mas, com certeza, ela está meio esquisita ho-

 je.

Fiz o que pude para encarnar a Adolescente Rebelde.

 —  Não estou. —  Olhei para meu pai, com raiva adiantada por conta

do que eu sabia que ele acabaria fazendo com a nossa família.

Então, a campainha tocou.

Olhei para cima e, de repente, tive medo.

Minha mãe foi em direção ao corredor.

Não. Por favor, não abram a porta .

 —  Eu vejo quem é!  —  Ouvi Jack atravessar a sala correndo até a

porta. —  Queijo! —  gritou. —  É o Jaaaacob!

 —  Não sei se eu deveria ir… —  Deixei escapar, me sentindo absolu-

tamente falsa. —  Eu tenho muito dever de casa.

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Minha mãe e meu pai pareceram ter subitamente um terceiro olho

na testa.

 —  Minha flor, você passou a semana inteira falando sem parar no

encontro de hoje —  disse minha mãe. —  Vai ser ótimo.

Hum, não exatamente .

Então, fui acometida de algo estranho. Meus braços e minhas per-

nas começaram a se mover sem meu comando, como se eu tivesse virado

um brinquedo guiado por controle remoto. Não consegui me impedir de

pular do balcão. Não consegui me impedir de ir até a sala, em direção àporta.

 —  Não, não, não —  sussurrei. Vi uma sombra familiar através das

cortinas claras de linho. Ele estava na varanda. Alguém que não espera-

va ver outra vez. Mesmo sendo só a silhueta, dava para ver que estava

nervoso. Como se talvez não quisesse que o encontro fosse até o fim.

Eu não o culpava.

Minha mão tocou na maçaneta.

Pare .

Comece a virar lentamente.

Por favor, não. Eu quero ficar .

Mas, quando eu finalmente abri a porta —  não importava o quanto

tentasse lutar contra o que sentia — , perdi o fôlego.

Os olhos dele eram como o oceano.

Logo antes da tempestade.

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Capítulo 45

How to save a life

Ele dirigiu em silêncio até o restaurante. O percurso todo foi tão

surreal que eu, literalmente, fiquei me beliscando para acreditar que es-

tava realmente acontecendo.

Estou no carro dele .

BELISCÃO.

Realmente no carro dele .

BELISCÃO.

Ali está ele. E aqui estou eu. Estamos aqui, juntos, dentro do carro .

BELISCÃOBELISCÃOBELISCÃO.

 —  Ai! —  gritei. O último beliscão foi um pouco exagerado.

 Jacob olhou para mim, estranhando.

 —  Tudo bem com você?

Fiz que sim com a cabeça, tensa.

 —  Claro. Tudo ótimo.

Mas eu estava mentindo descaradamente. Minhas mãos estavam

suando, meu coração aos pulos, meus pés inquietos e… tenho certeza de

que meu olho estava tremendo.

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 —  Tem certeza? Você está estranha.  —  Ele pigarreou e me lançou

vários olhares enquanto dirigia para o Pasta Moon.

 Tentei me controlar. Eu sabia o que estava por vir e fiquei com me-

do.

Minha única chance. Minha única chance. E se eu disser a coisa er- 

rada? E se ele não quiser escutar isso de mim?  

Prestei bastante atenção nele, atenta a todos os detalhes nos quais

não tinha reparado da primeira vez. Como o fato de que ele pigarreou vá-

rias vezes. O fato de ter ficado mudando a estação do rádio. O fato de elemal conseguir olhar para mim. Finalmente, chegamos no estacionamen-

to, encontramos uma vaga e entramos no restaurante. Ele não segurou a

minha mão.

A hostess   nos levou até nossa mesa e sentei no mesmo lugar de

sempre, bem no canto do salão, de onde dava para ver todo o restauran-

te. Pedimos bebidas e entradas —  lulas fritas e espetinhos de mussarela,

mas eu estava tão nervosa que mal consegui comer.

Eu não era a única.

 Jacob tremia de um jeito que eu nunca tinha visto. Estava nervoso,

atrapalhado, derramou vinagre balsâmico na camisa e deixou cair mais

molho na mesa do que na própria boca. Quando nossos pratos chega-

ram, vi que ele remexeu a massa com camarão durante dez minutos an-

tes de finalmente começar a falar.

 —  Brie?

Lá vem .

 —  Oi?

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Ele me encarou, a mão gelada e úmida, e quase consegui ver as pa-

lavras flutuando por ali, como se fossem fumaça.

 —  Oi? —  disse ele. —  Como assim?

Olhei-o nos olhos e tentei me concentrar. Tentei fazer com que sou-

besse que ficaria tudo bem. Que ele estava seguro.

Tudo bem. Você pode me contar .

Ele fez uma longa pausa. Seu rosto começou a ficar vermelho e per-

cebi que suas mãos tremiam.

 —  Brie?

 —  Jacob?

Lá vem. Lá vem .

 —  Eu não te amo.

Fechei os olhos, deixando as palavras se assentarem dentro de

mim. Elas feriam, mas não da mesma maneira, não como na minha me-

mória. Agora a dor era mais amarga do que avassaladora.

Senti que relaxava enquanto me dava conta de que, na verdade, o

mundo não acabara. Abri os olhos.

 —  Eu quero dizer —  ele se interrompeu. —  Eu te amo. De verdade,

 juro. Mas não… não da maneira que você imagina. —   Ele baixou osolhos. —  Acho que o que eu estou tentando dizer é que não estou apai-

xonado por você.

Respirei fundo e fiz o possível para escolher as palavras certas. Exa-

tamente como deveria ter feito da primeira vez.

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 —  Eu sei, Jacob. Tudo bem. Eu também não sou apaixonada por

você.

Ele arregalou os olhos.

 —  O quê?

 —  Isso que eu disse. O que você disse. Eu também não sou apaixo-

nada por você.

 —  Não entendi. —  Ele me encarava como se eu estivesse falando ja-

ponês. —  Tem outra pessoa?

 —  Tem —  respondi, incapaz de esconder o sorriso. —  Tem, sim.

Por um segundo, ele não olhou para mim.

 —  Ei? —  Debrucei na mesa, me aproximando. —  Tudo bem com vo-

cê? —  Levantei o queixo dele cuidadosamente.

Nossos olhos se encontraram e eu vi que ele estava à beira das lá-

grimas.

 —  Desculpa —  disse ele. —  Eu estraguei tudo.

 —  Não. —  Balancei a cabeça. —  Não estragou nada.

 —  Sou uma pessoa horrível.

 —  Não é, não.

 —  Você não entende.

 —  Entendo. —  Apertei a mão dele. —  Você pode me contar qualquer

coisa. Eu sou sua amiga. Sempre vou ser sua amiga.

Ele fungou e limpou o rosto com o guardanapo.

 —  Não sei como dizer isso.

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 —  Pode dizer como você quiser.

Ele baixou a cabeça, olhou para os tênis tentando reunir coragem.

 —  Eu acho… acho que talvez eu seja gay. Então, eu fiz uma coisa que deveria ter feito havia muito tempo.

Arrastei minha cadeira no chão azulejado. Sentei ao lado dele na

mesa e o abracei.

 —  Que bom que você me contou.

Ele balançou a cabeça algumas vezes, como se não acreditasse em

mim. Ou como se não entendesse.

 —  É? Jura?

Assenti.

 —  Juro.

 —  Você está querendo dizer que… que não me odeia? 

 —  Bem… —  Fiz o possível para parecer aborrecida.  —   Talvez um

pouquinho.

O rosto dele mostrou preocupação.

 —  Ah. —  Ele se mexeu na cadeira, desconfortável. —  Isso faz senti-

do. Eu vou… 

Segurei seu braço e sorri.

 —  Estou falando sério! Você comeu todo o macarrão sem me ofere-

cer nem uma garfada.

Ele olhou confuso para o prato vazio. Finalmente, deixou escapar

uma gargalhada.

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 —  Tá. Você me pegou. Boa.

Ri.

 —  Se me pagar um picolé de sobremesa, estamos quites.Seus olhos azuis encontraram os meus e vi o quanto ele estava

agradecido. E aliviado.

 —  Valeu, Brie. —  Ele se aproximou, me deu um beijo no rosto e re-

laxou na cadeira ao meu lado, suspirando aliviado.  —   Eu estava com

tanto medo de te contar. Tinha certeza de que você nunca mais ia falar

comigo. Que ia me odiar para sempre.

Balancei a cabeça.

 —  Impossível.

Ele sorriu e segurou minha mão.

 —  Você é realmente a melhor namorada do mundo.

 —  Não —  respondi baixinho, a imagem de Patrick abrindo caminho

dentro de mim. —  Não sou.

Então, uma dor súbita assolou meu peito e caí na cadeira.

Esperem. Não. O que está acontecendo? Isso não era para acontecer .

Senti meu coração bater descontroladamente.

Mas eu consertei. Eu fiz diferente, dessa vez!

 —  Brie? —  A voz de Jacob parecia mais preocupada.  —  O que foi?

 Tudo bem com você?

De repente, a dor ficou tão intensa que eu mal conseguia falar. Mi-

nha vista embaçou e todo mundo no restaurante começou a olhar para

nossa mesa. Vozes estranhas começaram a ecoar a minha volta  —  como

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na praia da Ilha do Anjo  —  e senti as mãos dele nos meus ombros, ten-

tando me trazer de volta.

 —  Brie? —  gritou Jacob. —  Me diga o que fazer. O que é que eu te-

nho que fazer?!

 —  Seja você mesmo —  sussurrei, apertando a mão dele mais uma

vez. —  Só isso. Seja você mesmo.  —  Mais uma pontada, a dor me atra-

vessando, e o rosto do Patrick apareceu na minha mente.

Você não sabe que eu te amo? Não sabe que eu sempre te amei?  

Num instante, o mundo ficou em silêncio.

Abri os olhos.

O restaurante não existia mais.

E eu estava de pé num jardim luxuoso, bem na beirinha da estrada,

olhando para o oceano cheio de brilho. O sol brilhava em cima da minha

cabeça, aquecia meus ombros, e o céu era azul de um jeito que eu jamaistinha visto —  somente duas ou três nuvenzinhas de algodão no horizon-

te.

Um dia perfeito de verão.

O que é isso tudo?  

Será que eu tinha voltado para o meu pedaço de céu? Só podia ser.

Um dia tão lindo assim não podia existir na vida real.

 —  Anjo? —  A voz de um menino me chamou.  —  Sua carruagem já

está pronta.

Virei lentamente o rosto e vi um garoto numa motocicleta usada,

amada. Reconheci o cabelo curto, castanho. Aquela camiseta velha e cin-

za. A jaqueta de couro surrado.

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 —  “Hiiiighwaaay to the daaanger zone”   —  cantou, tocando uma gui-

tarra imaginária. Depois, tentou ligar a moto, mas uma nuvem de fuma-

ça o encobriu.  —  Droga.  —  Ele tossiu, abanando o ar.  —  Não era isso

que devia acontecer.

Caí na gargalhada.

 —  Espero que você não esteja contando que eu vá subir nesse tro-

ço. Porque, com certeza, não vou!

 —   Vamos, minha flor  —   disse ele.  —   Só uma voltinha. Você vai

amar!

Minha flor .

Então, me dei conta. Minha flor, de lírio, de Lily.

Ele sorriu e seus olhos enrugaram um pouco nas extremidades. Ah,

aquele sorriso. Senti que começava a ceder.

 —  Não —  falei. —  Nem pensar. Me recuso a sentar nessa máquinamortífera.

 —  Ah, vai —  disse ele, vendo sua chance.  —  Só uma voltinha e eu

compro um milk-shake para você.

 —  O que é que você acha? Que pode me subornar?  —  Balancei a

cabeça. —  Não vai dar certo.

 —  Pensando bem —  ele piscou os olhos — , te dou um picolé.

Foi demais para mim. Nem me fale em gente insistente.

Corri até ele e o abracei, rindo. Eu me afastei e olhei-o nos olhos  —  

hoje mais verdes que castanhos —  e beijei seu nariz.

 —  Tá —  falei. —  Uma voltinha. Mas é só!

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Ele abriu um sorriso.

 —  Você não vai se arrepender, Anjo. —  Ele me entregou um capace-

te e subi na moto, passando meus braços em volta da cintura dele com o

máximo de força que eu tinha.

 —  Melhor você ir devagar , Patrick Darling. Senão vai ver.

 —  Senão vou ver o quê? —  Ele me provocou.

Devolvi a provocação.

 —  Senão vou arranjar outro namorado.

Ele virou o rosto e me deu o sorriso mais lindo do mundo.

 —  Desculpa, Anjo. Não vou deixar você escapar com essa facilidade

toda. —  Então, girou a chave e eu senti a moto ganhar vida debaixo do

meu corpo, seguindo adiante.

 —  Devagar! —  gritei, batendo de leve nele. —  Estou falando sério!

Mas, em segundos, assim que começamos a ganhar velocidade, re-

laxei. Senti meus ombros mais leves, e fechei os olhos para imaginar que

estávamos voando. A mistura de sol e mar era completamente intoxican-

te. Inclinei o tronco e beijei o meio das costas de Patrick, me sentindo a

garota mais sortuda do mundo.

Porque naquele instante eu era.

 Tinha conquistado o melhor dos dois mundos. Voltara e consertara

as coisas numa vida para que ficasse tudo bem com Jacob. E agora era

quem deveria ser, abraçando o menino que eu nascera para amar.

Então, um pensamento me ocorreu.

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O sol. O ar. A estrada à beira do mar, alongando-se por quilôme-

tros. O som de nuvens de tempestade vindo do norte.

Um segundo .

Meus olhos se abriram.

Por favor, nuvens de tempestade, não .

Mas elas estavam lá. Sigilosamente escondidas atrás das monta-

nhas, cinzentas e assustadoras, sobre nós, como monstros.

Exatamente como no meu pesadelo.

Não. Deus, por favor, não .

A verdade caiu sobre mim como uma tonelada de metal. Eu fora to-

la de achar que podia escapar revivendo somente uma morte.

Porque eu vivera duas vezes .

 —  Patrick! —  gritei contra o vento. —  Vire! A gente tem que voltar!

 —  O quê? —  respondeu ele. —  Não estou ouvindo nada! —  Ele virou

o rosto para mim por uma fração de segundo, tentando entender o que

eu dizia.

Infelizmente, bastou um segundo.

Ouvi uma buzina e o som de pneus cantando antes de ver a van

vindo na nossa direção. Senti o sangue congelar nas minhas veias en-quanto assistia ao mundo inteiro cair sobre nós em câmera lenta. Uma

chuva de vidro, calor e metal queimando, como se a moto tivesse sido ar-

rancada debaixo de mim.

Então, lá estava eu no ar, o cheiro de combustível queimado, meu

cabelo queimado, nossos sonhos queimados.

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 —  Anjo. —  Ouvi Patrick me chamar como se estivesse a milhas de

distância. —  Cadê você? Por favor, não vá embora.

Enquanto o ardor das chamas escorregava da minha boca para a

garganta —  e eu me preparava para o fim  — , meus pensamentos se vol-

taram para a lista de palavras do Patrick.

Para a última palavra que ele escrevera.

Aceitação

Vi a lâmina de Larkin brilhando sob o luar, a centímetros da minha

pele.

 —  … das cinzas às cinzas… 

Por favor .

 —  … da terra à terra… 

Não, por favor, pare .

 —  … dê a ela paz… 

Vi o raio atingir a única coisa que ainda tinha. Meu coração.

Minha alma .

Senti a velha onda de calor tomar conta de mim e gritei, implorando

pelo fim —  implorando para que alguém, por favor, fizesse aquilo parar.

Então, de algum lugar distante, um barulho agudo, uma sirene.

Cada vez mais alto, até que o barulho fosse tão intenso que pensei que

meus ouvidos fossem explodir.

Até que senti as mãos de alguém segurando as minhas. Um barco

salva-vidas enviado para me resgatar daquele calor desesperador.

Quentes, seguras, mãos conhecidas.

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~ 372 ~

Mais uma vez, abri os olhos.

Meu pai.

Ele estava chorando. —  Você vai ficar bem, minha menina. Vai ficar tudo bem.

Ouvi a ambulância gritando CUIDADO! CUIDADO! enquanto cruzá-

vamos as ruas de São Francisco em alta velocidade. Vi o medo nos olhos

do meu pai e ouvi a urgência na voz do motorista que avisava ao hospi-

tal, através do rádio, que estávamos a caminho.

Sexo feminino. Quinze. Cardiopatia aguda .

 —  Pai?

 —  Estou aqui, Brie. Não vou sair daqui.

Eu passara tanto tempo com raiva dele. Tanta, tanta raiva. A ideia

de que podia preferir outra família à nossa partiu meu coração novamen-

te. O que eu, mamãe, papai, Jack e Hamloaf éramos se partira; tudo que

havíamos sido e tudo o que seríamos.

Mas olhando para ele, ali, nos fundos daquela ambulância, tive

uma noção melhor do porquê ele tinha feito o que fizera. Eu continuava

não gostando da ideia —  ainda não concordava com ela — , mas, graças a

Larkin, finalmente entendi.

Às vezes, lembrar dói demais .

Vendo meu pai daquela maneira —  o quanto ele se importava comi-

go, o quanto me amava, independentemente dos erros que cometera  — ,

não pude deixar de perdoá-lo. Perdoá-lo por não ser perfeito.

Porque, na verdade, quem é?  

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~ 373 ~

Resolvi, então, que, se eu merecia uma segunda chance, ele tam-

bém merecia.

Apertei sua mão o mais que pude. Senti uma lágrima final percorrer

minha bochecha, aninhando-se no meu colo. E, enquanto as batidas do

meu coração começaram a diminuir de intensidade no monitor, olhei

meu pai nos olhos e me atrevi a fazer um último pedido. Sabia que pro-

vavelmente não poderia mudar nada.

Mas podia ter esperanças.

 —  Cuidem-se.

Então, assim, eu morri.

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Parte 6

Aceitação

Capítulo 46

All you need is love

Atravessei a noite, a neblina, a chuva e céus estrelados até chegar

em casa.

Avenida Magellan, número 11.

A entrada da minha casa. Eu ainda precisava fazer mais uma coisa.

Devagar, comecei a subir a ladeira. Passei pelas begônias brancas e

amarelas que ladeavam o caminho. Pelos arbustos onde uma vez meu

pai nos mostrara um ninho de pardais. Pelo carvalho onde Jacob enta-

lhara nossas iniciais com seu canivete suíço.

 JF+BE =

E um a um, como pequenos pontos de luz, todos os fantasmas en-

traram no jogo.

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Vi Jack andando no velocípede que a vovó e o vovô deram para ele

de aniversário. Eu, aos 13 anos, praticando manobras de patins. Emma,

 Tess e Sadie, numa batalha infinita de bambolê. Papai lavando o carro e

molhando a mamãe com a mangueira, num ataque surpresa quando ela

saiu para pegar a correspondência. Eles dois, encharcados. Rindo. Feli-

zes. O brilho do sol de verão aparecendo por trás das nuvens da Califór-

nia. Hamloaf, correndo na grama, latindo e mordendo a água dos irriga-

dores do jardim. Pude ver, ouvir e sentir tudo isso  –  as memórias bri-

lhando e girando à minha volta.

Meu ontem, meu agora, meu sempre e meu para sempre.

Virei o rosto e vi Patrick me observando no final do jardim. Senti

meu estômago dar cambalhotas enquanto caminhava até ele.

 —  Como? —  perguntei, a voz tremendo. —  Como você chegou aqui?

 —   Digamos que a Senhora das Palavras Cruzadas me devia um

grande favor depois de uma eternidade ajudando-a com palavras cruza-

das. —  Ele me olhou, divertido. —  Apesar de ela ter falado alguma coisa

sobre não esquecer de sempre usar lápis. Seja lá qual for o significado

disso.

Não acreditei no que estava ouvindo. Patrick estava livre, finalmen-

te? Livre de verdade?

 —  Ela perdoou sua alma perdida ou algo do gênero?  —  perguntei,

sem ar. —  Ela pode fazer isso?

 —  Não. —  Ele balançou a mão. —  Eu estava brincando. Ela não fez

nada. —  Uma pausa. —  Você fez.

Senti meu rosto corar e, rapidamente, olhei para baixo. Patrick le-

vantou meu queixo, cheio de carinho. Nossos olhos se encontraram.

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 —   Acho que às vezes o universo sabe reconhecer uma coisa boa

quando ela acontece —  disse ele sorrindo. —  Isso ou o carma terrível de

um deve ter anulado o carma terrível do outro.

Ri.

 —  Gosto mais da primeira opção.

 —  Então, ficamos com a primeira opção.  —  Ele levantou as mãos,

em comemoração. —  Agora temos uma história para contar para os ne-

tos.

 —  Achei que a gente devia manter tudo censura livre —  provoquei.

 —  Bem… —  ele me puxou para perto — , talvez 13 anos.

Então, me beijou.

E uau. Simplesmente uau .

Tudo bem, SIM, eu vou, definitivamente, precisar de um  replay. Sim,

sim, sim .

Por mim, tudo bem . Patrick disse, dentro da minha cabeça. Eu me

aproximei para mais um beijo.

 —  Ei! —  Desviei um segundo antes. —  Não vale beijar e espiar.

 —  Não posso fazer nada, mocinha —  disse ele. —  Essa sua cabeci-

nha é muito interessante.  —  Ele se aproximou novamente e, dessa vez,como se fosse destino, eu não escapei.

Depois de muitos replays , finalmente nos viramos juntos para en-

carar minhas memórias antigas.

Eu sabia que ele também podia ver. Sabia que ele entendia.

Ele assentiu para que eu seguisse adiante.

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 —  O tempo que você quiser. Vou esperar aqui.

 —  Não —  falei. —  Quero que você venha comigo.

Subimos a escada da varanda, degrau por degrau, finalmente fi-cando de frente para a porta. Era estranho. Eu ficara tanto tempo tran-

cada do lado de fora que não sabia exatamente o que esperar. Respirei

fundo e estendi o braço, lentamente.

Agora, a maçaneta de metal girou na primeira tentativa.

A casa estava quieta. Ainda era muito cedo.

Passamos pela sala e subimos para o segundo andar, onde eu vi a

porta do quarto dos meus pais se abrir. Olhei lá dentro e, imediatamen-

te, notei que três pares de pés (bem, quatro, se contarmos Hamloaf) esta-

vam para fora do cobertor bege debaixo do qual eu me enfiara milhares

de vezes.

Mas ver de quem eram aqueles pés fez com que lágrimas brotassem

dos meus olhos.

Mamãe .

Jack .

E papai .

 —  Ele está aqui —  sussurrei. —  Ele está aqui, onde deveria estar.

Meu desejo se realizara. Fizera a diferença.

Debrucei e beijei o rosto dele, depois fui até o lado da mamãe na

cama.

Ah, mãe .

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Ela parecia tão bonita e dormira com os óculos no rosto pela milio-

nésima vez. Concentrei minha energia e tirei-os devagar, com cuidado

para não fazer nenhum barulho. Ela se mexeu um pouco enquanto eu os

colocava na mesa de cabeceira, mas continuou abraçando Jack, que es-

tava todo encolhido, com seu pijama de Batman —  o pijama que eu tinha

dado para ele no meu último Natal. Quase não cabia mais, as mangas e

a calça deixando aparecer braços e pernas demais. Lembrei da Alice,

quando comeu aqueles cogumelos mágicos.

Por alguma razão, não consegui deixar de sentir alívio, sabendo

que, talvez, meu irmão não fosse me esquecer, afinal de contas. Mesmo

quando estivesse adulto, morando em algum outro lugar com sua pró-

pria família, ainda se lembraria daquele pijama. (Mas, só para garantir,

tentei fazer uma nota mental para me lembrar de mandar um pacote

anônimo para a casa dele na época do Natal.)

Fiz cócegas na pata do Hamloaf.

 —  Bom garoto. —  Suas orelhas tremeram e ele rolou na cama, ron-

cando. Esperei que estivesse sonhando comigo.

Naquele momento, vendo seu peito subir e descer em ritmo perfeito,

fui tomada por uma sensação de paz. De alguma singela maneira, eu ti-

nha ajudado a reescrever a história da minha família. Eu ainda estava

longe, mas meu pai encontrara outra maneira de lidar com a sua dor.

Uma maneira que não envolvia outra mulher.

Eles ficariam bem. Nós ficaríamos bem.

 —  Aqui. —  Patrick me entregou meu colar, tão brilhante quanto no

dia em que eu o comprei, apesar de tudo por que passou.  —  Por que você

não deixa o colar para eles?

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De repente, fiquei confusa. Eu tinha trocado aquele colar pela liber-

dade  —   para que Patrick pudesse finalmente seguir adiante. Como ele

poderia me devolver?

 —  Mas é seu —  falei. —  Eu dei para você.

 —  Eu não preciso dele. —  Ele colocou a mão no meu coração. —  Eu

tenho o de verdade agora. Muito melhor.

Corei pela décima oitava vez e passei os dedos pelo coração doura-

do. Quentinho. Macio. Beijei o colar e coloquei-o na cômoda dos meus

pais, ao lado do porta-retrato com a foto da família.

Achei que eles saberiam que tinha sido eu.

Antes de me virar para ir embora, uma coisa chamou minha aten-

ção. Uma fotografia em preto e branco que eu tinha certeza de nunca ter

visto.

Eu me aproximei para ver melhor.

Um segundo. Isso é impossível. Não é?  

Ali, sorrindo para mim, estavam Emma, Sadie e Tess  —   todas de

roupa de gala, rindo debaixo de luzes de festa. Acima delas, uma faixa

feita a mão (decorada com o que pareciam ser milhares de tipos de quei-

 jo), atravessava o salão.

BAILE DE FORMATURA PCH 2011

EM HOMENAGEM A BRIE EAGAN

(AMAMOS VOCÊ, BRIE!!!)

 —  Meu. Deus. Do. Céu. —  Girei para encarar Patrick e joguei a foto

nas mãos dele. —  Eu acho… acho que minhas amigas fizeram uma festa

de formatura com tema de queijos. —  Nossos olhos se encontraram e, em

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segundos, estávamos às gargalhadas. Era, sem dúvida, a festa mais ab-

surdamente incrível que qualquer pessoa já tinha dado para mim. Ponto.

Patrick finalmente recuperou o fôlego e apontou para a foto.

 —  Então, quem é o cara de sorte?

 —  Quem? —  perguntei, ainda rindo.  —  Que cara? –  Debrucei para

olhar mais uma vez. Então, tirei o porta-retrato das mãos dele.

 —  Fala sério. —  Eu me belisquei algumas vezes para ter certeza de

que não estava dormindo e babando na minha velha mesa da pizzaria.

Mas, não. Os beliscões doeram. Eu estava definitivamente acordada. E

definitivamente ainda no quarto dos meus pais, olhando para a fotografia

mais maravilhosa de todos os tempos.

Por que ela era maravilhosa?

Porque ali, logo atrás das minhas amigas, de braços esticados e

sorriso no rosto, para sempre, estava Jacob .

Eu estava absolutamente abismada. Como eu não tinha reparado?

O smoking. Ele está de smoking .

Meus olhos se encheram de lágrimas de felicidade.

 —  Que dia é hoje? Que mês?!

Patrick olhou rapidamente para o relógio despertador do meu pai,na mesa de cabeceira.

 —  Junho. Doze de junho.

12 de Junho. 12 de junho. 12 DE JUNHO .

Olhei a foto mais uma vez para ter certeza de que não estava tendo

uma alucinação.

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 —  É ele —  sussurrei. —  É ele mesmo.

Meu primeiro amor estava sorrindo. Estava feliz. E o mais impor-

tante de tudo, estava vivo. A foto era a prova de que eu precisava. Nossa

formatura já passara. E Jacob Fischer estivera vivo para participar dela.

Ele sobrevivera .

Abracei Patrick, respirando na jaqueta de couro dele, me sentindo

como se tudo estivesse, finalmente, em ordem no mundo.

Meu mundo esquisito, meu mundo perfeito.

Ele me beijou docemente na testa.

 —  Ecce potestas casei . Vejam só o poder do queijo.

Ficamos mais um tempo vendo a minha família dormir, mas aca-

bamos fazendo o caminho de volta até o corredor, fechando a porta silen-

ciosamente ao deixarmos o quarto. Passei pelo banheiro e pelo armário

de roupa de cama, depois pelo quarto do Jack. Só havia mais uma. Umaúnica porta esperando pacientemente no final do corredor.

Fechado para balanço. Em obras. Ninguém em casa.

Mas estou em casa agora .

Empurrei a porta do meu quarto e imediatamente fui recebida por

uma rajada de ar gelado. O carpete cor-de-rosa estalou ligeiramente sob

meus pés quando entrei. Meu quarto. Minha cama. Minhas janelas, mi-

nhas estantes com livros e livros, o edredom sob o qual eu dormia todas

as noites, desde pequena. Minha pequena manta de bebê, amarelada e

gasta, com aqueles pelinhos que eu costumava enrolar enquanto pegava

no sono.

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O quarto estava escuro, empoeirado e assustadoramente quieto.

Um túmulo do sono, trancado em pesadelos, corações partidos e memó-

rias tristes. Parecia que ninguém entrava ali desde a minha morte. Fui

até o banco debaixo da janela, antes um lugar aconchegante e cheio de

almofadas, onde Jack e eu costumávamos jogar Connect Four. As almo-

fadas estavam arrumadas num canto. As cortinas fechadas. Janelas

trancadas.

Destranquei-as.

Abri as cortinas, tentei suspender o vidro. As roldanas estavam tra-

vadas, enferrujadas, então, empurrei, puxei, soquei até que finalmente,

finalmente, ouvi uma das roldanas ceder.

Anda, anda .

Senti que cedia um pouco mais.

Abre, abre .

Gotas de suor apareceram na minha testa.

Agora. Abrindo agora .

Ouvi um ruído súbito e dei um grito quando a janela se abriu, a

brisa da manhã me alcançou e inundou o quarto —  girando, vibrante — ,

cheia de cores, música, energia, gargalhadas e perdão.

As paredes gemeram e rangeram, o teto tremeu como se fosse desa-

bar. A casa inalou, exalou, depois inalou novamente o novo ar de vida,

calor e amor que voltava a preencher seu esqueleto. Depois, batidas de

coração. Pulsando. Lembrando. Acordando .

Caí no carpete, respirei fundo. Fechei os olhos e tentei me agarrar à

minha história. Tentei capturar cada pequeno detalhe. Para jamais es-

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quecer. Nem por centenas de eternidades. Memorizei o som dos sininhos

que meu pai pendurara na minha janela anos atrás balançando ao ven-

to. A textura enrugada e fria do carpete de encontro às minhas costas. O

cheiro suave de maçãs. Minha mãe sempre dizia que meu quarto tinha

cheiro de maçã.

De repente, senti uma luz passar por mim. Abri os olhos e percebi

um raio de sol dançando na parede. Refletia na moldura dourada em ci-

ma da minha cômoda. Atrás do vidro, um pedaço de papel, e no papel,

um poema escrito para mim pelo meu avô no meu último aniversá-

rio. Quinze .

Levantei e fui até lá. As pontas da moldura eram douradas, familia-

res. Eu mal via meu reflexo no vidro. Vi meu cabelo comprido, escuro.

Minhas bochechas rosadas, quentes. Meus olhos verdes. Um pouco mais

velha. Um pouco mais sábia. Toquei de leve o vidro, desenhando minha

silhueta.

Eu era bonita, como mamãe sempre dissera. Desejei ter acreditado

nela. Desejei poder dizer a eles novamente o quanto eram importantes

para mim. O quanto sempre foram. E mais do que tudo, desejei ter sabi-

do o quanto eu era sortuda por tê-los perto de mim, antes de qualquer

coisa.

Por ter vivido. Por ter amado. Por ter sido  amada.

O que mais uma garota poderia querer?

 —  Anjo —  ouvi Patrick sussurrar.

Naquele momento, soube que era a hora.

E, finalmente, eu estava pronta .

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Então, uma sensação tomou conta do meu peito —  não a dor terrí-

vel que sentira ao morrer, mas um calor amigável, de pura luz, percor-

rendo meu corpo, suavizando a cicatriz do meu coração partido. A cica-

triz das lágrimas pela traição que Jacob e Sadie nunca desejaram reali-

zar. Agora eu sabia disso.

Caí de joelhos e tudo em volta de mim naquele quarto começou a

ceder, girar e se afastar da tristeza. Um turbilhão de ar me ergueu sua-

vemente e eu olhei para baixo. Eu começava a desaparecer.

A voz de Patrick soou em volta de mim.

Segure a minha mão .

Segurei.

Então, no meu último momento na Terra, meus olhos se concentra-

ram e assentaram nas últimas linhas do poema do meu avô —  frases que

sempre foram especiais, mas que eu nunca tinha realmente compreendi-

do até agora.

E, apesar de saber todas de cor, li em voz alta.

Em meio à felicidade e ao desespero

Na tristeza ou na alegria

No prazer ou na dor:

Faça o que é certo e você ficará em paz.Na vida, não existe presente maior que paz,

A não ser amor.

Que você sempre tenha amor .

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 As Letras, Os Artistas, Os Álbuns...

•  love is a piano dropped –  ANI DIFRANCO, LITTLE PLASTIC CAS- 

TLE , RIGHTEOUS BABE RECORDS, 1998.

•  don’t you (forget about me) –  SIMPLE MINDS, THE BREAKFAST

CLUB: ORIGINAL MOTION PICTURE SOUNDTRACK , A&M, 1985.

•  i will remember you –  SARAH MCLACHLAN, MIRRORBALL , ARIS-

 TA RECORDS, 1999.

•  take another little piece of my heart now, baby –  BIG BROTHER

& THE HOLDING COMPANY, CHEAP THRILLS , COLUMBIA RECORDS,

1968.

•  the cheese stands alone –  THE FARMER IN THE DELL, THE

ROUD FOLK SONG INDEX, #6306.

•  excuse me while I kiss the sky –  THE JIMI HENDRIX EXPERI-

ENCE, ARE YOU EXPERIENCED , TRACK RECORDS, 1967.

•  the long and winding road –  THE BEATLES, LET IT BE , APPLE

RECORDS, 1970.•  ooh heaven is a place on earth –  BELINDA CARLISLE, HEAVEN

ON EARTH , MCA RECORDS, 1987.

•  your love is better than ice cream –  SARAH MCLACH-

LAN, MIRRORBALL , ARISTA RECORDS, 1999.

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•  only the good die young –  BILLY JOEL, THE STRANGER , CO-

LUMBIA RECORDS, 1977.

•  i was walking with a ghost –  TEGAN AND SARA, SO JEALOUS ,

SANCTUARY RECORDS, 2005.

•  yeah I’m free, free fallin’ –  TOM PETTY, FULL MOON FEVER , MCA

RECORDS, 1989.

•  send me an angel –  REAL LIFE, HEARTLAND , CURB RECORDS,

1983.

•  it’s in his kiss –  BETTY EVERETT, YOU’RE NO GOOD , VEE-JAY

RECORDS, 1964.

•  it must have been love –  ROXETTE, PRETTY WOMAN: ORIGINAL

MOTION PICTURE SOUNDTRACK , CAPITOL RECORDS, 1990.

•  time after time –  CYNDI LAUPER, SHE’S SO UNUSUAL , EPIC

RECORDS, 1984.

•  r-e-s-p-e-c-t, finds out what it means to me –  ARETHA FRANK-

LIN, I NEVER LOVED A MAN THE WAY I LOVE YOU , ATLANTIC REC-

ORDS, 1967.

•  nothing compares 2 u –  SINÉAD O’CONNOR, I DO NOT WANT

WHAT I HAVEN’T GOT , CHRYSALIS RECORDS, 1980.

•  you ain’t nothing but a hound dog –  ELVIS PRESLEY, DON’T BE

CRUEL , RCA RECORDS, 1956.

•  total eclipse of the heart –  BONNIE TYLER, FASTER THAN THE

SPEED OF NIGHT , COLUMBIA RECORDS, 1983.

•  living on a prayer –  BON JOVI, SLIPPERY WHEN WET, MERCURY

RECORDS, 1986.

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~ 388 ~

•  don’t dream it’s over –  CROWDED HOUSE, CROWDED HOUSE ,

CAPITOL RECORDS, 1986.

•  in the arms of an angel –  SARAH MACHLACHLAN, SURFACING ,

ARISTA RECORDS, 1998.

•  california dreamin’ –  THE MAMAS & THE PAPAS, IF YOU CAN

BELIEVE YOUR EYES AND EARS , DUNHILL RECORDS, 1965.

•  enjoy the silence –  DEPECHE MODE, VIOLATOR , MUTE REC-

ORDS, 1990.

•  just like a prayer –  MADONNA, LIKE A PRAYER , SIRE RECORDS,

1989.

•  you must be my lucky star –  MADONNA, MADONNA , SIRE REC-

ORDS, 1983.

•  to die by your side, is such a heavenly way to die –  THE

SMITHS, THE QUEEN IS DEAD , WEA RECORDS, 1992.

•  the climb –  MILEY CYRUS, HANNAH MONTANA: THE MOVIE ,

WALT DISNEY RECORDS, 2009.

•  who will save your soul if you won’t save your own? –  JEW-

EL, PIECES OF YOU , ATLANTIC RECORDS, 1996.

•  always something there to remind me –  NAKED EYES, BURNING

BRIDGES , EMI, 1983.

•  listen to your heart, before you tell him good-bye –  ROX-

ETTE, LOOK SHARP , EMI, 1989.

•  since u been gone –  KELLY CLARKSON, BREAKAWAY , RCA

RECORDS, 2004.

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•  hit me with your best shot –  PAT BENATAR, CRIMES OF PAS- 

SION , CHRYSALIS RECORDS, 1980.

•  what a girl wants –  CHRISTINA AGUILERA, CHRISTINA

AGUILERA , RCA RECORDS, 1999.

•  let us die young, let us live forever –  ALPHAVILLE, FOREVER

YOUNG , WEA, 1984.

•  wake me up inside –  EVANESCENCE, FALLEN , WIND-UP REC-

ORDS, 2003.

•  we belong to the light, we belong to the thunder –  PAT BENA-

 TAR, TROPICO , CHRYSALIS RECORDS, 1984.

•  somewhere over the rainbow –  JUDY GARLAND, THE WIZARD OF

OZ , MGM, 1939.

•  how to save a life –  THE FRAY, HOW TO SAVE A LIFE , EPIC

RECORDS, 2005.

•  all you need is love –  THE BEATLES, MAGICAL MYSTERY TOUR ,

CAPITOL RECORDS, 1967.

•  may you always have love –  DO POEMA “TO MY MOUSE” DE

FRANCIS R. MILLER (também conhecido como PAPA, MY GRANDFA-

 THER), 1998.