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Resenha do livro: “A Cidade Sitiada” Escrito em Berna durante três dos cinco anos que lá viveu junto do marido e tendo sido copiado e refeito por mais de vinte vezes, A Cidade Sitiada é considerado o pior livro de Clarice Lispector. Se o contraste entre O Lustre e Perto do Coração Selvagem já fora imenso e mal recebido, A Cidade Sitiada contrasta com todas as demais obras de Clarice, dai se explica o título de pior livro: enquanto escritora, Clarice sempre fora considerada introspectiva, este livro, porém, apresenta uma tentativa da autora em sair de si mesma, da vida pacata que tinha morando na Gerechtigkeitsgasse – a Rua da Justiça – e de escapar da melancolia que ameaçava esgotá-la. Clarice escreve sobre uma mulher que, ao contrário de Virgínia – que acreditava que a única realidade era a interior –, tinha como realidade absoluta o olhar para o mundo externo: para o pacato subúrbio de São Geraldo que, ao passar dos anos cresce e torna-se uma cidade, assim como ela mesma que cresce e torna-se uma mulher sitiada. Durante sua estadia na Suíça, Clarice viu-se longe das irmãs e dos amigos, cercada por pessoas que não pertenciam ao seu mundo, confinada em sua casa e decepcionada com a recepção que O Lustre recebera junto à crítica e ao público – a escritora não vivia mais para si, mas para o mundo exterior, e isso foi passado ao livro, vacilante e incerto, que narra a história de Lucrécia Neves, uma mulher que existe para satisfazer suas pequenas e facilmente identificáveis necessidades. Sua história tem uma

A Cidade Sitiada

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Page 1: A Cidade Sitiada

Resenha do livro: “A Cidade Sitiada”

Escrito em Berna durante três dos cinco anos que lá viveu junto do marido e

tendo sido copiado e refeito por mais de vinte vezes, A Cidade Sitiada é

considerado o pior livro de Clarice Lispector. Se o contraste entre O Lustre e

Perto do Coração Selvagem já fora imenso e mal recebido, A Cidade Sitiada

contrasta com todas as demais obras de Clarice, dai se explica o título de pior

livro: enquanto escritora, Clarice sempre fora considerada introspectiva, este

livro, porém, apresenta uma tentativa da autora em sair de si mesma, da vida

pacata que tinha morando na Gerechtigkeitsgasse – a Rua da Justiça – e de

escapar da melancolia que ameaçava esgotá-la. Clarice escreve sobre uma

mulher que, ao contrário de Virgínia – que acreditava que a única realidade era

a interior –, tinha como realidade absoluta o olhar para o mundo externo: para o

pacato subúrbio de São Geraldo que, ao passar dos anos cresce e torna-se

uma cidade, assim como ela mesma que cresce e torna-se uma mulher sitiada.

Durante sua estadia na Suíça, Clarice viu-se longe das irmãs e dos amigos,

cercada por pessoas que não pertenciam ao seu mundo, confinada em sua

casa e decepcionada com a recepção que O Lustre recebera junto à crítica e

ao público – a escritora não vivia mais para si, mas para o mundo exterior, e

isso foi passado ao livro, vacilante e incerto, que narra a história de Lucrécia

Neves, uma mulher que existe para satisfazer suas pequenas e facilmente

identificáveis necessidades. Sua história tem uma simplicidade encantadora:

vira adulta – ao contrário dos livros anteriores, a história da infância não

aparece neste romance –, casa-se, fica viúva, casa-se mais uma vez. É

impossível escapar à conclusão de que Lucrécia é alguém que Clarice teria

gostado de ser: alegremente superficial, contente com reuniões e jantares e

satisfeita com a vida exterior que leva. Tantos livros de Clarice terminam em

desastres, sujeições e derrotas; A Cidade Sitiada foge a esta regra, pois tem

um final feliz.

Muito do que para Clarice era desgraça e exílio, significava realização e paz

para Lucrécia. Depois de rejeitar Perseu (a terra natal), seu namorado de

adolescência, Lucrécia se casa com Mateus (o exterior), um homem rico de

outra cidade. Um dos sonhos de Lucrécia era sair de São Geraldo e entrar em

contato com o mundo que havia para além do Morro do Pasto, que separava o

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interior do exterior. Todavia, assim que deixa São Geraldo, Lucrécia descobre

que está fora do lugar – assim como Clarice deveria estar longe de sua pátria e

de sua gente. No novo lugar, a mulher vazia se dedica ao alpinismo social:

aprende os costumes da nova cidade e se encaixa neles perfeitamente – e esta

habilidade é algo que Clarice gostaria de ter em si, já que se sentia cada dia

mais excluída e solitária. A Cidade Sitiada apresenta-se ao leitor como um livro

cheio de observações maldosas e sarcásticas, tão atípicas na escrita de

Clarice – e tais observações parecem refletir sua infelicidade, não a de

Lucrécia.

Durante a vida de Lucrécia o pequeno subúrbio de São Geraldo torna-se uma

cidade crescida. Quando ela é criança, o subúrbio, a exemplo de Tchechelnik –

cidade natal de Clarice –, é um lugarejo povoado quase inteiramente por

cavalos selvagens. A história do crescimento da cidade é a crônica da expulsão

dos cavalos; à medida que ela, a cidade, assume ares cada vez mais

civilizados e por fim ganha um viaduto, os cavalos emigram progressivamente,

deixando São Geraldo para trás. Conforme a cidade cresce e os cavalos são

expulsos, a linguagem da cidade evolui – os primeiros cidadãos de São

Geraldo eram tão silenciosos quanto os cavalos por não ter necessidade de

palavras.

A insatisfação de Clarice com sua própria domesticação forçada emerge em

alto e bom som em suas descrições das pretensões crescentes da cidade. A

Joana de Perto do Coração Selvagem fora encoberta pela vida que Clarice

levava, todavia ainda lutava pela liberdade e pela autenticidade que perdera

com essa domesticação que a própria Clarice sofrera. É bastante óbvio que a

autora odiava que os cavalos tivessem que abandonar São Geraldo. Mas A

Cidade Sitiada não é uma denúncia da afetação burguesa, é parte da busca

permanente de Clarice por uma linguagem autêntica.

Em cartas, Clarice dizia constantemente que a única coisa que fazia durante

suas tardes na Gerechtigkeitsgasse era observar uma estátua que ficava sobre

um chafariz bem em frente à sua janela e esperar por seu filho – ela esta

gravida nesta época –, e esta mesma estátua aparece constantemente na

construção do enredo do livro. E talvez o impulso inicial de escrever o livro

tenha vindo das horas que ela passava olhando pela janela contemplando a

imagem inflexível da estátua que representava a Justiça. A linguagem de A

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Cidade Sitiada é a linguagem da visão – este pode ser considerado um “livro

contado através do olhar” –, pois metáforas da visão estão espalhadas

insistentemente ao longo do livro. Em certos momentos a visão chega a

substituir a linguagem falada, como quando as pessoas “olham” ou “veem”

palavras em vez de fala-las ou pensa-las: “Esta cidade é minha, olhou a

mulher”. O caráter raso de Lucrécia a liga com o divino ato de criação em si.

Ela cria a cidade, ela cria tudo aquilo que vê.

O nome Lucrécia esconde o nome da própria Clarice, e diferentemente de

tantas personagens de Clarice, que são extensões ou enunciações dela

mesma, Lucrécia Neves é um alter ego de Clarice, uma pessoa que pensa o

mínimo possível e analisa menos ainda. Ao contrário da essencial e

dolorosamente viva Clarice, Lucrécia atinge o ápice em matéria de mudez e

ausência de reflexão.

Sendo este um romance do olhar, seu único intuito é, aparentemente, narrar a

história do crescimento do mundo exterior. Fazendo uma comparação com

Virgínia de O Lustre, pode-se dizer que enquanto para Virgínia o mundo

exterior era indistinto e incompreensível, para Lucrécia Neves era exatamente

o contrário: seu mundo interior era repelido por ela, que chegava a afirmar que

sua vida íntima não tinha qualquer valor. Enquanto Virgínia meditava durante

longos períodos que ocupavam muitas páginas, Lucrécia se contentava em não

ver além da superfície das coisas – e talvez somente por isso tenha um final

tão feliz, com relação ao final de Virgínia. Assim, Clarice nos mostra que, mais

importante do que o pensamento, é a ação: depois de uma longa meditação

em O Lustre, a escritora volta-se para o mundo em A Cidade Sitiada – e esta é

a mensagem: a meditação deve levar à ação.