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1 A CIÊNCIA DO REAL E A POIÉSIS Por Rogério Brambila de Carvalho Aluno do curso de mestrado em Semiologia ( Ciência da Literatura ) Faculdade de Letras da UFRJ 2006

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A CIÊNCIA DO REAL E A POIÉSIS

Por

Rogério Brambila de Carvalho

Aluno do curso de mestrado em Semiologia

( Ciência da Literatura )

Faculdade de Letras da UFRJ

2006

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A CIÊNCIA DO REAL E A POIÉSIS

Por

Rogério Brambila de Carvalho

Aluno do curso de mestrado em Semiologia

( Ciência da Literatura )

Dissertação de mestrado em

semiologia apresentado à

coordenação de pós-graduação em

Letras da Universidade Federal do

Rio de Janeiro.

Orientador: Professor Doutor

Manuel Antônio de Castro.

Faculdade de letras da UFRJ

2006

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CARVALHO, Rogério Brambila de. A Ciência do Real e a

Poiésis. Dissertação de mestrado. Faculdade de Letras da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

BANCA EXAMINADORA

Professor Doutor Manuel Antônio de Castro ( Orientador )

Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira

Professor Doutor Ivo Luccesi

Professor Doutor Luis Edmundo Boucas Coutinho

Professora Doutora Idalina da Silva Azevedo

Defendida a Dissertação:

Conceito:

Rio de Janeiro, __/__/2006.

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Desejo expressar os meus agradecimentos à minha

família pela paciência que teve durante o período de

elaboração dessa dissertação, ao professor Manuel

Antônio de Castro que com muito zelo orientou-me na

revisão do meu trabalho e a todos os professores da UFRJ

que serviram como exemplo de perseverança e de

esperança de uma educação que ainda é capaz de fazer

discípulos.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 008

1 – REAL: QUESTÕES, CONCEITOS E SISTEMAS 011

1.1 – Sentidos de Real/Realidade 014

1.2 - O Real e os transcendentais 016

1.3 - O Real e os universais 018

1.4 - O Real e a linguagem 019

2 – O PENSAMENTO FILOSÓFICO E SUA RELAÇÃO COM A CIÊNCIA E A

VERDADE 024

2.1– Platão, o Real e a Verdade 025

2.2 – Aristóteles, o Real e a Verdade 028

3 – O REAL E A VERDADE NA TEOLOGIA 032

4 – O REAL, A VERDADE E O PENSAMENTO MODERNO: DESCARTES E

KANT 037

4.1 – Descartes 037

4.2 – Kant 040

5 – O POSITIVISMO, O REAL E A VERDADE 044

6 – A CIÊNCIA E A TÉCNICA NA PÓS-MODERNIDADE 047

6.1 – A ciência na pós-modernidade 047

6.2 – A técnica na pós-modernidade 052

7 – O REAL COMO QUESTÃO ORIGINÁRIA 062

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7.1 – O lógos e o pensamento originário 066

7.1.1 – O lógos como ser e não-ser 067

7.1.2 – O lógos como o dito e o não-dito 069

7.2 – O Real e a phýsis/ser 079

7.3 – O Real e o Tempo 084

7.4 – O Real e a Memória 091

7.5 – O Real e a História 094

8 - O AGIR DO REAL E A TÉCNICA 098

9 – CONSIDERAÇÕES FINAIS 106

10 – REFERÊNCIAS 108

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Se procurar bem, você acaba encontrando

Não a explicação ( duvidosa ) da vida,

Mas a poesia ( inexplicável ) da vida.

(Carlos Drummond de Andrade) .

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INTRODUÇÃO

Vivemos em um mundo que parece nos fornecer respostas para todas as questões que

envolvem a nossa vida/destino. Dentro dessa lógica, parece ser simples encontrarmos soluções

para todas as dúvidas. Dessa forma, a realidade deixa de ser misteriosa , passando a estar

debaixo do controle humano, ou seja, o homem deixa de ser um dos entes pertencentes a

phýsis para ser a causa eficiente e final da própria phýsis. Assim, não há mais mistérios

permanentes, apenas descobertas vindas da ciência.

Somente neste primeiro comentário do nosso trabalho, encontramos questões que

acabam por passar despercebidas por todos nós, a menos que estejamos reflexivos a tais

questões. Eis algumas delas: o real, a ciência, a phýsis, a vida, o destino, etc.

O nosso desejo é refletirmos sobre a seguinte questão: o que é o real? Queremos

também saber como e por que houve mudanças no sentido dessa palavra e entendermos como

os sistemas utilizaram tais mudanças em seus corpos doutrinários. Para isso, deveremos partir

dos diversos conceitos da nossa pergunta inicial: o que é o real?

Em um capítulo à parte, falaremos sobre a linguagem e sua relação com o real. Aqui já

surge outra questão: o que é a linguagem? Poderíamos entender o real na e pela linguagem? A

linguagem acaso é um instrumento para que o homem possa usá-la?

Não poderíamos deixar de falar de alguns filósofos que contribuíram para outros

conceitos de real. Entre eles, temos Platão e Aristóteles. De que forma o pensamento desses

filósofos contribuiu para uma “nova” concepção do real?

Não foram somente os filósofos que conceituaram o real, mas também os teólogos. O

nosso propósito em falar de teologia se deve ao “fato” de que essa mesma teologia sofreu uma

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forte influência da filosofia, principalmente a platônica e a aristotélica. Poderíamos, inclusive,

dentro desse assunto, falar sobre uma outra questão diretamente relacionada com o real: o

tempo. O que é o tempo?

Diferentes conceitos foram dados a essa palavra. Temos conceitos vindos da filosofia,

da teologia e até mesmo da astrofísica.

Falar de real é falar sobre verdade. Temos, portanto, mais uma questão a ser discutida

em nosso trabalho, a dizer: o que é a verdade?

A palavra verdade sofreu forte influência da ciência, principalmente na modernidade e

na pós-modernidade. Isso porque para a ciência, algo só poderia ser considerado verdadeiro se

fosse comprovado cientificamente, ou seja, através do método científico. Dois estudiosos

merecem a nossa consideração: Descartes e Kant. O nosso propósito é discutir sobre o

entendimento desses filósofos no que concerne ao conceito de real/realidade.

Ainda dentro do conceito de real dada pela ciência, no século XIX depararemos com o

Positivismo.( Neste século, o conceito de real e de verdade tiveram forte influência do sistema

positivista).

Apesar de todo o avanço científico e suas poderosas descobertas, a ciência no século

XX terá dificuldades em manter apenas uma resposta para a questão do real. Isso porque até

mesmo o determinismo clássico começará a entrar em crise por causa do indeterminismo do

século XX. Afinal de contas, vivemos em um mundo governado por leis imutáveis ou estamos

vivendo em pleno caos?

Diante de tantas respostas para tantas questões, já está na hora de perguntarmos:

algumas dessas definições são capazes de explicar o que seja o real, a verdade, a linguagem, a

memória, a phýsis/ser, a história?

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Falar de avanço científico é falar de técnica. Mas, o que é técnica? Houve alguma

alteração em seu significado? Insistimos em dizer que se todas as respostas dadas até hoje não

satisfazem plenamente àquilo que o real nos re-vela ( no momento em que se vela e des-vela),

então a ambigüidade poética é a melhor “resposta”, pois permite que o real se dê no momento

que se retrai.

Merece toda a nossa consideração falarmos sobre essas questões em um ou mais

capítulos. Esse é o nosso grande propósito, a dizer: relacionarmos o real à poiésis, pensando

esse real fora de qualquer alcance metafísico, a pro-cura de um real original, por isso mesmo

originário.

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1 – O REAL: QUESTÕES, CONCEITOS E SISTEMAS

Falar sobre o real/realidade parece ser tão óbvio que não seria relevante uma reflexão

sobre seus possíveis sentidos, como se já soubéssemos muito bem conceituá-los. No entanto,

não é bem assim. Se procurarmos por sua definição em um dicionário, notaremos que são

múltiplos os seus significados e, o que é pior: não serão de grande utilidade se ficarmos

“presos” apenas aos sistemas filosóficos ou mesmo semânticos. Em relação aos sistemas

filosóficos, sabemos que os conceitos de real/realidade possuirão vários sentidos , dependendo

da corrente filosófica. Em relação à semântica, esbarraremos em um problema de

tradução/tradição.

Dentre os vários sentidos encontrados nos dicionários a respeito do real, existe um que

declara que o real é aquilo que é verdadeiro. No entanto, tal resposta é simplória, pois apenas

transfere para uma outra palavra ( verdadeiro ) aquilo que procuramos encontrar: o que é o

real? Portanto, dizer que o real é tudo o que é verdadeiro apenas transfere o problema, pois: o

que é verdadeiro? Portanto, ainda não teremos uma resposta para a nossa questão inicial.

Para algumas pessoas, verdadeiro é tudo o que existe de fato. Isto nos faz refletir em

duas possibilidades para essa questão. No primeiro caso, entenderíamos que o que existe de

fato está em oposição àquilo que é aparente, ilusório, fictício, etc. No segundo caso,

concluiríamos que tudo o que existe de fato é o que podemos comprovar através do método

científico, ou seja, a ciência é quem dirá o que é verdadeiro ou não. Esta última definição está

de acordo com o que muitos pensam na modernidade e que teve a sua maior influência com o

positivismo. Pensando assim, será que o método científico é capaz de provar que algo existe

de fato e, portanto, é verdadeiro? Tal compreensão do real acaba por gerar determinados

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problemas. O primeiro deles é com relação à compreensão que a física Clássica e a física

Quântica têm sobre determinados objetos. Por exemplo, para a física Clássica , a luz é uma

onda, ao passo que , para a física Quântica, a luz é uma partícula. Este impasse é comentado

pelo astrofísico Marcelo Gleiser :

Mas como isso é possível? Uma partícula é um objeto,pequeno, bem localizado no espaço, enquanto uma onda é algo quese dispersa pelo espaço; partícula e onda são descriçõesincompatíveis, antitéticas, usadas para representar objetos comextensão espacial. ( GLEISER,1997:298).

O segundo problema levantado é: como poderíamos entender os sentimentos como o

amor, ódio, por exemplo? E quanto àqueles que têm fé em um Deus supremo? O sentimento e

a fé não seriam reais para aqueles que os sentem?

Assim, podemos de imediato concluir que o real pode ter diferentes concepções,

dependendo do sistema filosófico e/ou metafísico que procurar defini-lo. Por isso, pensamos

ser importante regressar ao seu significado etimológico, na tentativa de experienciarmos esse

“real” da mesma forma que era experienciada pelos seus pensadores originários. Precisamos

regressar às origens, para depois irmos às demais definições construídas em nossa tradição

ocidental, passando pela modernidade e chegando à pós-modernidade. Assim, primeiramente

precisamos entender como era visto o real originalmente, em um tempo ( sagrado ),

mitológico.

Quando olhamos para o mito, notamos que ele não fala nem pressupõe o real, pois

nada há fora do mito. Para que pensemos o real, é necessário que ele se transforme em

questão. No entanto, quando questionamos o real, este já se torna presente pelo próprio

questionamento. Nesse sentido, o real está além de toda e qualquer questão, pois sabemos do

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real na questão, mas não sabemos o que é o real. Em outras palavras, o real não se dá inteira e

completamente na questão ou em suas respostas, mas ele se dá no momento em que se vela e

des-vela.

Como podemos notar, em todo o momento, faz-se necessário o “uso” da linguagem na

tentativa de compreendermos o real. Mas, será que a linguagem é um instrumento para que

possamos usá-la? E qual é a relação entre o real e a linguagem?” Afinal de contas: o que é

linguagem? Portanto, um dos nossos assuntos será sobre a linguagem. Porém, nesse exato

momento, pensamos não ser necessário um comentário mais profundo, a não ser, o de que a

linguagem acabou por se tornar um instrumento na medida em que o homem a utilizava para

se manter como ser especial e dominador sobre todas as coisas, inclusive sobre a phýsis, que

fora compreendida de maneira simplória e limitada. No entanto, se queremos iniciar um

questionamento acerca do real, não podemos fazê-lo de outra forma que não seja pelo auxílio

da linguagem, entendida por muitos como sendo um instrumento para uma determinada

finalidade. Não podemos olvidar que é pela e na linguagem que o homem questiona o real. No

entanto, viria a pergunta: Pode um determinado conceito do que seja o real responder e

explicá-lo totalmente? Há incompatibilidade entre o real/realidade e as palavras ou conceitos?

É justamente nesse sentido que temos a necessidade de pro-curar pelas questões que

envolvem o entendimento de real/realidade. Adiante, falaremos de forma detalhada sobre cada

uma dessas questões.

Sabemos que os gregos não possuíam uma palavra para a realidade. Eles a entendiam

como Phýsis, que era a totalidade dos entes ( on, onta em grego e ens, entis, em Latim ).

Tanto o on como o ens têm ao mesmo tempo um significado substancial e verbal. O on é algo

que está sempre sendo , o que pressupõe que possui uma substância. Com o passar do tempo,

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haverá uma perda do caráter verbal e uma acentuação do caráter substancial que provocará

sérias conseqüências na vivência, denominação e conceituação das palavras real, realidade e

realização.

1.1 - Sentidos de Real/Realidade.

Até agora, notamos a complexidade em conceituarmos o real. Não é à toa que muitos

tentaram defini-la. Também já foi falado o quão complexo é tentarmos entendê-la apenas com

o que os dicionários dizem a seu respeito. Qualquer definição é capaz de ocultar mais do que

mostrar a vigência do real. No entanto, faz-se necessário partir desses conceitos a fim de

questioná-los e ver até que ponto são capazes de compreender o real. Eis alguns sentidos:

A - Quando dizemos que algo é real, isso ainda não resolve a questão, pois pode ser

redondo , quadrado, vermelho, branco, etc. Nesse sentido, o próprio conceito de real não dá

conta ou não precisa a que corresponde a realidade de algo.

B - Algumas pessoas atribuem à palavra real o significado de verdadeiro, autêntico,

natural. Isto ainda não explica totalmente o real, pois tais definições apenas o relacionam a

outras definições. Por exemplo, se algo é verdadeiro, já não pode ser fictício, ou se algo é

natural, já não pode ser virtual. Portanto, o conceito ainda está limitado, pois exclui todas as

outras possibilidades de real.

C - Algumas pessoas compreendem o real como existindo dentro do tempo, ou seja,

como algo existente no presente e não como algo que existiu no passado ou existirá no futuro.

Essas definições acima são, como falado anteriormente, algumas das posições

filosóficas, tematizadas pela metafísica.

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No entanto, é interessante notar que o real não se esgota dentro dessas definições. O

real as precede e ultrapassa e, por serem filosóficas e/ou metafísicas, tendem a ocultar mais do

que esclarecer “realmente” o que o real é. Além do mais, o conceito de real/realidade pode ser

mudado semanticamente dentro da própria história, já que em um determinado momento, o

seu uso pode ter sido modificado pela própria concepção filosófica existente na época.

Quando refletimos em torno dessa questão, na verdade, estamos refletindo sobre o

próprio Ser, já que este, tal qual o real, precede-nos e excede-nos.

Dentro daquilo que se pensou até o presente momento, há 4 posições em torno da

questão do real e sua relação com o homem:

A – Para algumas pessoas, o real determina o homem, sendo este um ente entre outros

entes.

B – Outros pensam que o real se constrói a partir da experiência que o homem tem do

real, desempenhando um papel fundamental. Temos, então, o conhecimento racional.

C – Há ainda os que pensam o real como constituindo de duas “realidades” distintas,

podendo ou não serem complementares: Natureza ( gregos ) e Espírito (cristianismo ).

Dependendo do que se queira defender, o Espírito brota da Natureza ou a Natureza brota do

Espírito.

D – Há ainda o real como tensão de contrários, onde há uma complementaridade ( não

síntese ) de physis/lógos. O professor Manuel, a respeito desse assunto, escreve:

Teríamos aqui a tensão de identidade e diferença ( ser e não-ser, saber e não-saber, querer e não-querer, dizer e não-dizer, fala esilêncio como escuta, vida e morte, eros e tanatos, etc. ), ondeexperienciamos o “real” como proximidade e distância. Numareferência ( e não mera relação ) de manifestação e retraimento ouvelamento e desvelamento teríamos o ciclo em que circulam asquestões: Natureza, Tempo, Linguagem, Memória, História. Por

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serem originárias, fogem a toda e qualquer conceituação, emboradêem origem a todas elas. ( CASTRO,2003: 5 ).

Resta-nos ainda falar que o real possui os seus modos de ser ( real e ideal, essência e

aparência, espírito e matéria, racional e sensível ) , os modos de conhecer (subjetivo e

objetivo, consciente e intuitivo ) e o momento de ser ( essência e existência). No entanto,

percebeu-se que isto ainda não era o suficiente para que se pudesse compreender o real. Mais

recentemente, o estudo do inconsciente trouxe uma nova perspectiva dentro da questão do

real. Falar sobre o inconsciente humano é , ainda, falar sobre a linguagem ( nem sempre clara

) e, portanto, falar sobre o real, já que não se pode separar a linguagem do real e muito menos

opô-la. Ninguém em sã “consciência” diria que a linguagem não é real.

Ao relacionar a linguagem com o real, acabamos por tomar dois caminhos:

A – lógico, relacionando e problematizando a lógica e a realidade.

B – Poético – relacionando-o a todas as manifestações artísticas, ou seja, a questão

originária e mítica da poiésis.

1.2 - O Real e os Transcendentais

A palavra transcendental vem do latim transcendere ( cruzar uma fronteira ), que se

origina de duas palavras: trans ( cruzar ) e scandare ( subir ). Esta palavra influenciou em

muito, não somente a filosofia, mas também a teologia. Os transcendentais dizem respeito às

propriedade do ente, constituindo propriedades, atributos ou modos comuns a todos os entes.

Assim:

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Estas propriedades, atributos ou modos são ‘transcendentais’( transcendentes ) porque transcendem todo ‘ser de um mododeterminado’. O ser de um modo determinado é o ‘ser tal’ e apropriedade de ‘ser tal’ pode chamar-se ‘talidade’. Por isso umtranscendental não é uma realidade, mas o modo de ser de qualquerrealidade.( FERRETER MORA, José, 1981: 3314 ).

A doutrina dos transcendentais que predominou foi a de Santo Tomás de Aquino. Tal

doutrina foi predominantemente intelectual e lógica, já que o intelecto primeiramente apreende

o ente, o ente como ente, em que o ente é um conceito comum a todos os entes. Estamos agora

dentro de um universal abstrato e não mais falando de entes concretos que constituem a phýsis.

Poder-se-ia entender o ente de cinco maneiras:

A – Afirmativamente: o ente é uma res ( coisa )

B – Negativamente: o ente é unum ( um ). Se não fosse, teríamos mais de um ente.

C – Relativamente a outro cada ente é aliquid ( algo ). Podemos, dessa forma, falar em

qüididade.

D – Relativamente ao intelecto é verum ( verdadeiro ). Há uma adequação do intelecto

e da coisa.

E – Relativamente à vontade todo o ente é bonum ( bom ), pois além de ser desejável,

ele visa a um bem. O que se pode concluir com isso é que o ente ( ens ), coisa ( res ), e algo (

aliquid ) são termos sinônimos. Também não devemos entender aqui o belo como sinônimo

de estético, mas com um fundo ontológico.

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1.3 - O Real e os Universais

Universal é a tradução do termo grego: to kathólon ( de onde surgiu a palavra católico

). Ela é formada do termo latino unus ( um ) e do verbo vertere: virar, transformar, verter,

traduzir, etc. Universal refere-se a uma totalidade de objetos, coisas, entes, opondo-se ,

portanto, ao particular, ao singular. Toda a ciência se baseia em conceitos universais.

Os universais estão diretamente ligados à interpretação da phýsis como res (

coisa/causa ). Por isso, dizemos que os universais se opõem a tudo o que é particular. Por

exemplo, se eu digo que certa pessoa se chama João, este nome será específico, singular. No

entanto, se digo que João é um homem, o termo homem é comum, não somente a João, como

também a outros entes. Portanto, a palavra homem é um termo universal. Os universais são

também chamados de entes abstratos ( palavra de origem latina que diz: abs: para fora e traho,

trahere: tirar, arrastar ), noções genéricas. A grande dificuldade, então, é relacionarmos esta

“noção genérica” com aquilo com o qual estamos familiarizados por meio de nossos sentidos.

Por causa disso, surgiram algumas tentativas que visavam a solucionar este problema.

Há, pelo menos, três posições que passamos a relacionar abaixo:

A – Realismo ( Universalia ante rem ). Tal posição defendia o realismo extremo em

que os universais existiam e eram anteriores às coisas. Na teologia, significa que as coisas

existiam na mente de Deus antes de se tornarem “concretas”. Os defensores dessa posição

entendem que, se assim não fossem, seria impossível entender, apreender qualquer coisa

particular ou singular.

B – Nominalismo ( Universalia post rem ). Existem após as coisas, no conceito

universal abstrato da mente. Seus defensores foram Roscelino de Compiègne (séc. XI) e

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Gilherme Ockam ( séc. XII ). Este último não admitia os universais em Deus nem tampouco

nas coisas, pois isto limitaria o poder de Deus, que é Todo-Poderoso. Para ele, a divindade não

poderia estar relacionada a qualquer tipo de investigação. Isto abriu portas para que a Ciência

se referisse aos universais como símbolos e signos, porém, nunca como ciência das coisas.

Em suma , para o nominalismo, os universais não são nenhuma entidade real e nem

estão nas coisas. São apenas nomes , vocábulos, termos. Somente os entes particulares são

reais.

C – Realismo moderado ( Universalia In Re ). Existem nas coisas, sendo essências

individuais concretas, numericamente distintas, mas similares em todos os membros. Como

existem nas coisas, não podem ser tidas como mera imaginação. Seu maior representante foi

Tomás de Aquino. Este fazia distinção entre a natureza da coisa e sua abstração. Por isso,

quanto à natureza, o universal só existe nas coisas singulares. Quanto à abstração, somente no

intelecto. É justamente porque existe no intelecto como abstração que mais tarde será

compreendida como mero símbolo, reforçando a compreensão de que a ciência é composta de

símbolos naturais.

1.4 – O Real e a linguagem

Será que existe limite entre a linguagem e o real? Existiria real sem linguagem?

Qual a relação entre linguagem e o real? Sabemos que, da mesma forma que o real, a

linguagem não está limitada a nós mesmos e, quando tentamos entender o seu significado,

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percebemos não ser possível, pois nada há fora da linguagem. E mais: Existiria “realmente”

uma relação de significante e significado na linguagem? Se existe, qual é o significante de

uma música clássica, por exemplo? Nem mesmo somos capazes de definir linguagem, já que

para isso teríamos que possuir uma outra linguagem. Se tentarmos definir linguagem,

correríamos o risco de ocultar mais do que clarear. Nesse sentido, é possível dizer que a

linguagem e o real são o mesmo.

O próprio Wittgenstein, ao comentar sobre Santo Agostinho em relação à linguagem (

este pensava que as palavras da linguagem denominavam objetos ) disse:

Santo Agostinho descreve, podemos dizer, umsistema de comunicação; só que esse sistema não é tudoaquilo que chamamos de linguagem. E isso deve ser dito emmuitos casos em que se levanta a questão: essa apresentaçãoé útil ou não? A resposta é, então, sim, é útil, mas apenaspara esse domínio estritamente delimitado, não para o todoque você pretendia apresentar.( WITTGENSTEIN, 1975:14 )

E acrescenta que esse sistema sobre que Santo Agostinho fala não pode dar conta de

todo o significado de linguagem, pois:

...... É como se alguém explicasse: ‘jogar consisteem empurrar coisas, segundo certas regras, numasuperfície...’_ E nós lhe respondêssemos: ‘Você parecepensar nos jogos de tabuleiro, mas nem todos os jogos sãoassim’( WITTGENSTEIN, 1975: 14,15 ).

E se compararmos a linguagem com o tempo e sua utilização por meio das palavras?

Será que o que entendemos hoje, através de uma palavra, é suficiente para compreendermos

essa mesma palavra no passado? E no futuro? Parece que uma palavra entendida

hodiernamente e ignorada em um tempo anterior acaba por torná-la “presa” a um determinado

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sistema, levando-a ao seu próprio empobrecimento. E isso é capaz de ser feito com e pela

própria língua.

E isso é uma forma de “aprisionamento” da própria linguagem em que:

A língua técnica é a agressão mais perigosa contrao caráter próprio da língua, a dizer como mostrar e fazeraparecer o presente e o ausente, a realidade no sentido maislato.(HEIDEGGER, 1970:37 )

Ao reduzir a língua a uma simples informação, acaba-se por usá-la ( já que se tornou

em um instrumento ) no desenvolvimento de sistemas de mensagens e de sinalizações formais.

Voltando à nossa questão inicial, como poderia a linguagem na e pela língua ajudar-

nos na compreensão do real? Haveria modificações semânticas que ideologicamente nos

levasse a compreender o real conforme o sistema de uma determinada época? Para que

possamos perceber essas modificações, precisaríamos entender o real da mesma forma que era

compreendida originalmente, ou melhor, experienciada.

As palavras gregas on, ontos, bem como as latinas ens , entis possuíam originalmente

funções verbais e substantivas. O significado dessas palavras em seu sentido verbal era “o que

está sendo” , o essente.

O que vai acontecer posteriormente é uma substantivação dessas palavras em

detrimento da sua verbalização.

Em princípio, com os estudos escolásticos em torno do ente, percebeu-se que este tem

modos de ser. Daí o sinônimo res ( coisa, causa ) de onde surgiu a nossa palavra realidade.

Assim sendo, como sinônimo de on, ontos, a res passa a ser considerada a totalidade da

Phýsis. Mais tarde, com a perda da verbalização em torno da res e sendo e-videnciada a sua

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substantivação, ocorreu também a substituição da phýsis/entes ( ser ) pela natureza/res ( coisa,

causa ), surgindo assim as palavras real, realidade, realização. Deixa- se , dessa forma, de

pensar o real como ser , introduzindo, assim, a problemática vigente até hoje, ajustando-a aos

sistemas e contribuindo para a compreensão moderna da palavra ciência. Tal compreensão só

foi possível porque, com a escolástica e com o nominalismo, houve uma separação definitiva

da palavra res do ente. A palavra já não diz o que a coisa ( res ) é, tornando-se o seu símbolo.

Assim, a Phýsis acabou por ficar reduzida à natureza e, como símbolo, passível de

representação matemática.

O real passou a ser compreendido como aquilo que se pode medir. Por exemplo,

“não se pode medir nem expressar matemático-numericamente o que é o movimento ( como ente ) , mas se podemdefinir e determinar os tipos de movimento. A Phýsis, encaradacomo ser, não-ser, noein, aparência, foi reduzida ao ser, este a res (real ) e este, finalmente, ao conjunto de coisas passíveis de umadeterminação físico-matemática, através do novo conhecimentocientífico em que se transformou a filosofia. ( A construção darealidade e do homem na modernindade e na pós-modernidade,2003, p. 11 ).

Ao se reduzir o real à coisa, começaram a surgir classificações , tais como: individuais,

coletivas, naturais, exteriores, físicas, criadas, etc. ). O problema era relacionar “coisas” a

‘realidades espirituais” . E com relação ao homem? Podemos dizer que o homem é uma coisa?

Não é assim que Marx entende o homem quando este tem o seu trabalho transformado em

valor numérico, sendo o próprio homem alienado, “coisificado”?

A fim de evitar a redução do homem à coisa, criou-se o conceito de pessoa, formando

com isso uma dicotomia. Mesmo assim, há um problema ainda não respondido. O corpo é

considerado uma coisa ou uma pessoa? Na “realidade”, não podemos reduzir o corpo a uma

coisa , nem identificá-lo a uma pessoa, embora há estudiosos que optam por uma ou outra

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possibilidade. Dentro daquilo que foi falado até o momento, já podemos perceber o quanto o

pensamento em torno do real transformou-se semanticamente e filosoficamente, contribuindo

para o entendimento daquilo que entendemos por ciência na modernidade.

Iniciamos este capítulo falando sobre linguagem e acabamos por envolver-nos em

questões semânticas a respeito do real. No entanto, tal como o real, não sabemos o que é a

linguagem. Já havíamos falado anteriormente que, no momento em que queremos conceituar

linguagem, já o fazemos na e pela própria linguagem. Como se isso não bastasse, o

entendimento sobre linguagem começou a ser alterado até que esta acabou por se tornar um

mero instrumento onde o homem é capaz de utilizá-la para um determinado fim, ou seja, a

linguagem tornou-se um mero instrumento. O seu vigor poético acabou por ser esquecido. O

que restou foi apenas o seu caráter lógico. Ao se tentar entender o real na e pela linguagem,

acabou-se por construir um “real” por meio da linguagem. Agora, a linguagem e o real deixam

de ser o mesmo, e aquela passa a ser o instrumento com o qual o homem é capaz de construir

o próprio real. O homem, assim, passa a exercer o controle sobre todas as coisas, por ser o

animal racional, o que possui a linguagem e a utiliza como seu instrumento. Ainda voltaremos

a tratar desse assunto ( linguagem ) quando falarmos sobre as grandes questões que envolvem

o nosso trabalho e o pensamento originário.

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2 – O PENSAMENTO FILOSÓFICO E SUA REALAÇÃO COM A CIÊNCIA E A

VERDADE

Quando buscamos um conceito para a palavra ciência, percebemos que esta palavra já

passou por várias modificações em seu sentido desde Platão até a modernidade.

No entanto, uma de suas definições mais atuais é aquela que diz que a Ciência é a

teoria do real. Portanto, entender a Ciência é entender o real, a realidade. Mas, será que ela

teria condições de explicar mesmo o que é o real? Se a Ciência for capaz de explicá-lo, então

será capaz de nos trazer aquela verdade que nunca antes pudemos entender pela filosofia e

mesmo pela religião?. Nesse sentido, a Ciência está diretamente ligada com a verdade. Mas, o

que é a verdade para que possamos fazer esse elo de encontro entre a Ciência e a verdade?

Sabemos que os gregos, originalmente, entendiam o real como a própria phýsis, sendo

esta a totalização de todos os entes. Não existia uma palavra em grego para o real. No entanto,

em Platão, esta unidade originária da phýsis se rompe dando lugar a uma concepção do real

dividida em dois mundos: o do sensível e o do supra-sensível. Desta maneira, duas formas de

conhecimento serão trabalhadas por Platão: a mais baixa é a doxa que tem por objeto o

sensível e a segunda é a epistéme ( ciência, conhecimento ) que tem por objeto o supra-

sensível. Encontramos pela primeira vez a palavra ciência sendo utilizada e é justamente essa

palavra que atravessará toda a nossa história até chegar ao conceito entendido por nós

hodiernamente.

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2.1 - Platão, o Real e a verdade

Para que possamos entender como Platão compreendia sua epistéme é necessário que

saibamos a respeito de uma outra palavra usada pelo filósofo: Idéa.

Giovani Reali em seu livro História da filosofia antiga nos diz que

a tradução exata do termo seria ‘forma’... De fato, nósmodernos entendemos por ‘idéia’ um conceito, um pensamento, umarepresentação, enfim, algo que nos transporta ao plano psicológico enoológico; ao contrário, Platão entendia por ‘idéia’ em certo sentido,algo que constitui o objeto específico do pensamento, para o qual opensamento está voltado de maneira pura, aquilo sem o qual opensamento não seria pensamento: em suma, a Idéia platônica não éde modo algum um puro ser da razão e sim um ser e mesmo aqueleser que é absolutamente o ser verdadeiro. ( REALI, Giovanni,1994:61)

A palavra idéia ( eidos e idéa ) provém do verbo grego idein que significa “ver”. No

entanto, em Platão, esse “ver” não é uma forma visível das coisas como era vista antes de

Platão, mas a forma percebida, ou seja, a natureza específica das coisas, a essência das coisas.

É assim que Platão a entende em sua linguagem metafísica. Platão também usa como

sinônimos os termos ï õóßá ( substância , essência ) e até mesmo , öýóéò , no sentido de

natureza inteligível. Assim, as idéias são as essências eternas do bem, do verdadeiro, do belo ,

do justo. Por isso, dizemos que as idéias, em Platão, são classificadas insistentemente como o

ser verdadeiro, como o que é ser em sentido pleno, o ser absoluto.

No livro A República, Platão deixa registrado o “Mito da Caverna” o qual pode nos

fornecer informações sobre os conceitos: sensível e o supra-sensível.

Nesse sentido, se Platão fala dos mundos sensível e supra-sensível, isto significa que

está sendo comentado a respeito dos graus ontológicos da realidade. Por isso, o mito diz: “Em

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suma , não creriam que houve nada de real ou verdadeiro fora das figuras que desfilaram.” ( A

República, 1994, p.264 ).

Se o mito fala a respeito dos diversos graus ontológicos da realidade, então, este

também fala dos planos do conhecimento, nos seus diferentes níveis e nos vários graus desses

níveis. Dentro desses graus, sabemos que Platão relaciona a mais alta forma de conhecimento (

episteme ) com a “Idéa”.

O mito da Caverna não fala apenas desses níveis de conhecimento, mas também

exprime uma concepção política, especificamente platônica, ou seja, a Paidéia platônica.

Para que possamos compreender de forma mais detalhada o mito da caverna, urge que

comentemos sobre sua narrativa. O que significa o Mito da Caverna? O próprio Platão nos dá

o seu significado: “O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o alumia é a luz do sol.

O cativo que sobe a região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível.”

( IBID., p. 266)

Heidegger também comenta sobre o Mito da Caverna. Para o filósofo, somente no

exterior da caverna é que o homem conseguiria atingir a e-vidência, o “eidos”. No entanto,

isso , segundo a filosofia não seria possível, pois o homem não é capaz a não ser que ele

conseguisse “subir” para que pudesse contemplar a luz das idéias, tudo aquilo que é corrente

real. Nesse sentido, o homem está enganado com tudo aquilo que pensa sobre a realidade.

É por isso que o homem tem a necessidade de familiarização ou adaptação dos olhos

para que o homem acorrentado possa superar sua ignorância. Esse acostumar, familiarizar, são

palavras que falam de um esforço do homem. Para Heidegger, é justamente isso que

representa aquilo que Platão chama de Paidéia que é , segundo Platão a Periagogé holes tes

psychés, ou seja, um encaminhamento de todo o seu ser.

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A Paidéia também é uma passagem da apaideusía à paidéia e isto não significa

somente o ser da formação, mas também nos abre a percepção sobre a mudança da essência da

verdade.

Segundo Heidegger, o mito caminha dentro de 4 degraus que seriam 4 etapas de

formação. O primeiro degrau refere-se àquele em que os homens vivem presos dentro da

caverna em meio à realidade imediata, cotidiana e aparente. Essa etapa termina com a

afirmação:

“Em suma, não creriam que houve nada de real e verdadeiro fora das figuras que

desfilaram.” ( A República, 1994,264).

No segundo, o homem se liberta da caverna, possuindo uma certa liberdade, pois

podem se locomover para todos os lados e contemplar o clarão do fogo artificial, o que

significa um progresso em relação ao estado anterior. Nessa etapa, o clarão do fogo ainda o

ofusca, de modo que ele é impedido de ver como a luz ilumina as coisas. Por isso, Platão nos

diz que o homem “na sua confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e

verdadeiro ( alethéstera ) que os objetos ora contemplados. ( IBID., P.264 )

O terceiro degrau é aquele em que o homem é libertado inteiramente ao sair da cavernae pode contemplar à luz do dia todas as coisas. Isto significa que o homem obtém a certeza, agarantia de sua essência. Por isso, Heidegger no diz que:

“o espaço livre para onde o homem libertado foi conduzidonão é a ilimitação de uma simples extensão, mas bem a dependêncialimitativa própria a tudo aquilo que é claro e que brilha na luz do sol,atingindo ele também pelo olhar. Os aspectos daquilo que são aspróprias coisas , os åßäï ò , constituem a essência, na luz da qual cadaente particular se mostra a nós como isto ou aquilo; e é somenteporque ela se mostra assim que a coisa evidente ( apparaissante ) setorna não velada e acessível.” ( A doutrina de Platão sobre averdade. Trad. Antonio Jardim. S.d. P. 5. Mimeo )

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Por fim, no quarto degrau o homem passa a ter a obrigação de retornar ao interior da

caverna e de lá libertar os antigos companheiros. Esse homem livre corre dois perigos: o de

sucumbir ao poder e fascínio da realidade comum e aparente e o de ser morto pelos próprios

prisioneiros.

José Carlos Michelazzo, a respeito dessas 4 etapas da paidéia nos diz que

coincidem com as diversas etapas em que os entes aparecemem seu aspecto ( idéa ), à medida que se afastam do fundo escuro dacaverna ( ocultamento ) e se dirigem para o seu exterior luminoso (desvelamento ), o que nos permite concluir que a concepção dapaidéia acha-se , em Platão, inteiramente sob o horizonte de suainterpretação da verdade. ( Do Um ao princípio ao dois comoUnidade, 1999, p. 45 ).

Por isso é importante observar que para Heidegger “não é a áëÞèåéá que forma o

objeto próprio do mito da caverna? Certamente não. E contudo permanece certo que este mito

contém a “doutrina” de Platão sobre a verdade”. ( A doutrina de Platão sobre a verdade. Trad.

Antonio Jardim, s.d. p. 11. Mimeo ).

É nesse sentido que já se pode perceber uma mudança no conceito de verdade (

desvelamento ) em Platão em relação aos pensadores originários, inaugurando assim uma

metafísica do real, que, como veremos, terá uma importância para o conceito moderno de

ciência ( epistéme ).

2.2 - Aristóteles, o Real e a Verdade.

Se para Platão, aquilo que presenciamos em nosso mundo nada mais são que sombras

da “verdadeira realidade” ( idéia ), para Aristóteles o real se encontra justamente nos

particulares ( objetos terrenos ). Sabemos que Aristóteles defendia que a forma ou o universal

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sempre se encontra no particular. A isso chamamos realismo moderado. Enquanto Platão fala

da Idéia, Aristóteles usa o termo “enérgeia” ( constância, consistência ) e esta nomeia o ser do

ente. No entanto, o primordial para Aristóteles é a presença do sensível e ela se mostra através

da questão “hoti estin”(on ): o fato que é ( o ente ) . Esta palavra será entendida pelos

escolásticos de quodditas e existentia. Já o supra-sensível, que é subordinado e secundário, é o

que se presentifica ou manifesta com a questão: tí estin – o que é ( o ente )?. Ao valorizar os

particulares em detrimento dos universais, Aristóteles contribui para o desenvolvimento

daquilo que hoje chamamos ciência, uma vez que o conhecimento é possível através do estudo

dos particulares. E por que o conhecimento é possível?

O próprio filósofo diz que:

“Todos os homens , por natureza , desejam conhecer”.

( Aristóteles,36, 1969 ).

Desse forma, ele contribui para o afastamento da:

concepção inicial do ser ( phýsis ) que representava ohorizonte maior sobre o qual foi construído o mundo grego nos seusmais diversos âmbitos: suas leis, sua política, seu teatro, sua língua,seus deuses, seus jogos, suas guerras, sua poesia e sua arquitetura.( MICHELAZZO, 1999:47 ).

É dessa forma que o homem é capaz de perceber ( idein ) o que é ( idéia, enérgeia) em

sua verdade ( orthótes ). Por isso:

...o traço fundamental da verdade agora fica vinculado auma outra essência: à orthótes, à exatidão. A palavra verdadecontinua ainda sendo expressa em grego por meio do vocábuloalétheia, mas o seu entendimento já não é mais fiel à sua origem, istoé, a referência ao não-velamento, mas à exatidão. Para que essaexatidão apareça é agora necessário que tanto o olhar como oconhecimento estejam corretos, e estar corretos aqui é conformar-se,adaptar-se ao que deve ser olhado, ao que deve ser conhecido.Conformar, adaptar, acordar, em grego se diz homóiosis. A verdade

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acontece, então, quando o acordo ( homóiosis ) entre o entendimentoe a coisa mesma for exato ( orthótes ). ( MICHELAZZO, 1999: 35 )

É dessa forma que a compreensão da verdade como homóiosis, além de não guardar

mais referência alguma à alétheia como não-velamento, chega a ser concebida como contrário

de falso ( pseudos ), isto é, do inexato.

Essa compreensão humana gerará o que mais tarde chamaremos por humanismo ou

antropologia.

Ao focalizar os particulares através de sua epistemologia, o aristotelismo também

contribui para o fortalecimento da ciência e afastamento do pensamento originário grego da

verdade ( alétheia ), pois a verdade deixa de ter o sentido de (encobrimento/desencobrimento)

para se aproximar de orthótes ( o correto ).

Assim, o filósofo elabora o que, a partir da filosofia medieval, ficou conhecida como a

teoria das quatro causas. Essa teoria procurava explicar o que era o movimento e,

conseqüentemente, a realidade, não como era vista pelos pensadores originários , mas a que

poderia ser estudada, observada.

Como era entendida essa teoria?

Marilena Chauí , ao comentar sobre ela nos diz que:

Havia uma causa material ( a matéria que um corpo eraconstituído, como por exemplo, a madeira que seria a causa materialda mesa), a causa formal ( a forma que a matéria possui paraconstituir um corpo determinado, como, por exemplo, a forma damesa que seria a causa formal da madeira ) , a causa motriz oueficiente ( a ação ou operação que faz com que uma matéria passe ater uma determinada forma, como, por exemplo, quando omarceneiro fabrica a mesa ) e, por último, a causa final ( o motivo oua razão pela qual uma determinada matéria passou a ter umadeterminada forma, como, por exemplo, a mesa feita para servircomo altar do templo. ) Assim, as diferentes relações entre as quatrocausas explicam tudo que existe, o modo como existe e se altera, e ofim ou motivo para o qual existe.( CHAUÍ,1980:8 ).

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Uma vez que o homem , agora, é capaz de des-cobrir o real , fazendo com que a

verdade passe a ser orthótes, a conclusão é que o homem se torna a medida de todas as coisas.

O aristotelismo divide em degraus a forma com que o homem é capaz de adquirir o

conhecimento.

Primeiramente, o homem deseja conhecer e isso é inato a si próprio. Em seguida, a fimde possuir um conhecimento mais completo, o homem utiliza a memória e isto o distingue dosanimais. Adiante, o homem alcança a experiência através da coalescência de muitasrecordações. Logo em seguida, surge a arte que é o conhecimento de regras práticas baseadasem princípios gerais. Por fim, temos a ciência, o puro conhecimento das causas, sendosuperior a todos os degraus devido ao amor pelo próprio conhecimento. É justamente nessesentido que Michelazzo afirmará que:

o homem passará a ter uma posição cada vez mais central natotalidade do ente e uma garantia sobre sua própria destinação. Étambém por essa razão que Heidegger dirá que a verdade não conterámais nenhuma referência à alétheia ( não-velamento ), mas tornar-se-á o oposto de pseudos, significando , dessa forma, exatidão.( A doutrina de Platão sobre a verdade, S.d. 12, trad.:Antônio Jardim. Mimeo ).

Essa mudança do significado de verdade que se tornará representante de toda afilosofia ocidental.

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3 – O REAL E A VERDADE NA TEOLOGIA

Cabe a nós iniciarmos com uma indagação: a teologia é uma forma de metafísica? Para

que possamos chegar a uma conclusão a esse respeito é necessário que estabeleçamos uma

diferenciação entre a experiência religiosa vivenciada por muitos judeus e gentios e os

ensinamentos dos padres da Igreja.

No primeiro caso, temos uma nova visão do Deus vetero-testamentário trazida por

Jesus de Nazaré, considerado o Messias pelos seus seguidores. Jesus, chamado o Cristo,

modificou aquela imagem que muitos tinham de Deus, pois Este era visto como

recompensador e sempre disposto a punir as ações perversas dos homens. Há passagens na

Bíblia, por exemplo, que nos apontam um Deus que permite e até mesmo ordena a morte de

outros povos comprometidos com práticas perversas e idólatras. Jesus, ao contrário, trouxe a

imagem de um Deus de amor, que perdoa e ama a humanidade. Com a morte de Jesus, seus

ensinamentos e experiências foram registrados em livros que ficaram conhecidos por

Evangelhos. Esses livros tornaram-se a referência maior para a formação de uma comunidade

chamada de ekklesía ( Igreja ). Os seguidores de Jesus viviam uma vida comum e repartiam

seus bens aguardando o Seu retorno ou segunda vinda.

A partir do segundo século já podemos notar uma certa influência teológica trazidas

pelos chamados Pais apostólicos, mas é somente no quarto século que o cristianismo deixa de

ser considerado uma supertição e se torna a religião oficial do Império Romano, com a

conversão de Constantino. Não demorou muito para que essa Igreja atingisse o status de Igreja

universal ( kathólou ) , fazendo oposição a seitas surgidas nesse período aproximadamente.

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É por isso que somente com a oficialização da Igreja no quarto século é que podemos

falar de uma teologia forte e dogmática, mesmo sabendo de sua influência desde o segundo

século, considerada como o início da teologia patrística.

Dessa forma, a teologia pode ser dividida em : patrística e Escolástica. A teologia

patrística abrange o período compreendido entre os séculos II e VIII de nossa era. A teologia

escolástica está relacionada à Segunda metade do período medieval (século IX ao XV), tendo

Tomás de Aquino como o seu principal representante.

A teologia patrística utilizou o pensamento platônico para justificar a fé cristã.

Tomemos como exemplo dois padres da Igreja: Clemente e Orígenes. Esses dois padres, em

suas tentativas de defender dogmas do cristianismo como, por exemplo, a divindade trina (

Trindade divina ), foram profundamente influenciados pelo platonismo que, nessa época era

popular em Alexandria. Clemente, por exemplo,

via Deus como absolutamente transcendente, inefável,incompreensível e, de alguma forma, abrangia toda a realidade. EsseSer só poderia ser conhecido mediante a sua Palavra ou Filho, que éSua imagem e, à semelhança do Nous do neoplatonismo, a Palavra éao mesmo tempo Unidade e Pluralidade.( Doutrinas Centrais da Fé Cristã, 1994:94 ).

Neste fragmento citado acima, devemos entender Palavra como Lógos, pois desde

cedo, o Cristianismo aceitou que Jesus era Lógos de Deus. Isto pode ser encontrado no

primeiro capítulo do Evangelho de João. Porém, não é somente esse ensinamento que foi

inspirado no Platonismo.

Temas patrísticos do corpo e da alma, do pecado e da graça,da perdição e da salvação, seguem a mesma descrição do mito dacaverna do filósofo grego, ou seja, esses temas estão dispostossegundo a concepção dual da realidade.( MICHELAZZO, José Carlos, 1999, p. 51 ).

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Se o período patrístico dogmatizou tais idéias com a ajuda do Platonismo, a Escolástica

“bebeu” da fonte aristotélica.

Dessa forma, a doutrina do Ser como enérgeia ( presença consistente ) foi interpretada

pela Escolástica por actualitas ( realidade ). Tomás de Aquino explicou essa “realidade” e a

relacionou Àquele que é a Causa primeira, o ens creator e este ente é chamado de Deus.

Vejamos este trecho da obra Summa Theológica de Thomás de Aquino:

Por conseguinte, tudo quanto se move, deve ser movido poroutra coisa. E se aquilo pelo que um objeto é movido também semovimenta, então é mister que igualmente tenha sido movido poroutro objeto e, assim por diante. Porém, isso não pode prosseguir atéo infinito, porque nesse caso não haveria o movimentador primário,posto que os movimentadores subseqüentes se movimentam somentequando são movimentados pelo primeiro movimentador (... ).

(... ) Por essa razão, pois, é necessário chegarmos a umprimeiro movimentador, que não é movido por qualquer outra coisae, todos compreendem que esse é Deus.(Extraído da obra de Tomás de Aquino, SummaTheológica, na obra intitulada The Basic Writing of ST.Thomas Aquinas, 1945, editada por ª C. Regis, parte 1 Q.2, artigo 3 e impressa na obra O novo Testamentointerpretado versículo por versículo por R. N. Champlin,P. H. D, volume 1, pag. 51 ).

O interessante aqui é o que significou todo esse entendimento teológico para a idade

média e para a modernidade, pois tudo isso serviu como suporte para a compreensão e

valorização da razão. Assim:

...tanto a patrística como a Escolástica acabaram por sedistanciarem da fé simples dos primeiros seguidores de Jesus epassaram a valorizar o “ratio”. Nesse sentido, “o cristianismocaminhou sobre a mesma esteira do pensar metafísico, isto é, o ratioestava já presente na época medieval e exercia o papel de sustentaçãode toda a doutrina cristã e, nesse sentido, acabou por preparar e criaras bases do pensamento moderno.(MICHELAZZO, 1999: 57)

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Por causa do ens creatum medieval interpretado como actualitas é que Descartes

poderá posteriormente interpretar o ente como res, tornando possível aquilo que veio a chamar

de cultura, ciência e técnica dos tempos modernos. Nesse sentido, a teologia é também uma

forma de metafísica.

Vimos como a teologia conseguiu modificar a compreensão do real através do seu

entendimento filosófico-teológico. Nesse sentido, até o tempo foi entendido de uma forma

diferente, não o tempo ontológico-poético, mas um tempo linear. Adiante, falaremos sobre o

tempo como questão.

Ainda nos resta falar sobre a verdade na teologia. Como ela foi entendida?

A teologia, entendida como uma “ciência” que procura conhecer Deus, tem de

compreender a verdade como sendo o próprio Deus, o Deus cristão.

Nas páginas do Novo Testamento, encontramos Jesus dizendo que é a Verdade.

Talvez não seja oportuno fazer um comentário sobre essa passagem, mas o sentido da

palavra Verdade presente no texto bíblico ( Jo. 14.65 ) não parece indicar algo como o oposto

ao erro. É provável que o sentido de verdade nesse texto esteja mais próximo de uma re-

velação trazida por Deus aos homens. O que deve ser comentado, porém, é que a Verdade foi

entendida no decorrer dos séculos como aquilo que é oposto a um erro doutrinário. É nesse

sentido que a “verdade” cristã torna-se o oposto do ensinamento gnóstico, docético, por

exemplo. A Verdade , dessa forma, pertence à Igreja cristã e é ela a “representante” de Deus

aqui na terra, podendo, assim, manipular todo o conceito de realidade existente, exercendo

controle sobre todas as coisas.

Dessa forma, o entendimento de “verdade” acabou por se afastar ainda mais do seu

entendimento etimológico-originário ( alétheia ), ou seja, a palavra grega é a mesma, mas o

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seu entendimento totalmente diferente. Veremos, agora, como esse entendimento deu suporte

para a compreensão do real e da verdade em Descartes.

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4 – O REAL, A VERDADE E O PENSAMENTO MODERNO: DESCARTES E

KANT

4.1 – Descartes

Acredita-se que o pensamento moderno tem sua fundação com o filósofo René

Descartes. Isto não significa que sua filosofia tenha se rompido definitivamente com a de seus

antecessores. O que irá acontecer é uma valorização daquilo que já vinha tomando forma

desde os tempos da escolástica: a ratio.

Descartes reduziu o pensamento dual platônico ( sensível e supra-sensível ), que teve

continuidade em toda a idade média, em res ( coisa/causa ). Ao sensível, Descartes denomina

res extensa ( a matéria que se amplia pelo espaço e é governada pelo tempo ) e ao supra-

sensível Descartes denomina res cogitans ( entidade pensante ). Por exemplo, a alma estaria

relacionada à categoria da res cogitans, pois esta é imaterial, pensante e deriva de Deus. Já o

mundo material é res extensa, sendo distinta da mente. É por isso que José Carlos Michelazzo

diz que :

“A res cogitans também continua o ser, à maneira medieval, interpretada como ens

speciale, isto é, colocado num lugar intermediário entre Deus e todas as demais criaturas”.

( Do um ao princípio ao dois como unidade, 1999, p. 58 ).

Por ser o homem possuidor de uma alma derivada da substância divina, ele é o único

ens creatum com a faculdade de pensar. Portanto, ser coisa pensante, segundo Descartes, é o

que constitui a essência do homem. Vejamos, agora, como Descartes valoriza o pensar no

homem:

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... concluí de tudo isto que eu era uma substância cujaessência ou natureza reside unicamente em pensar e que, para queexista, não necessita de lugar algum nem depende de nada material,de modo que eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é totalmentediversa do corpo e mesmo mais fácil de ser reconhecida do que estee, ainda que o corpo não existisse ela não deixaria de ser tudo o queé.( Descartes, 1998:67).

Ao valorizar a razão sobre todas as coisas, Descartes estabelece a sentença: cogito

ergum sum ( penso, logo existo ).

Mesmo tendo valorizado a razão, Descartes mantém sua fé ( racionalizada) em Deus,

chamando-O de ens creator, o ente supremo, pois afirma:

Após isso, meditando sobre o fato de que eu estavaduvidando e, por conseqüência, o meu ser não era inteiramenteperfeito, pois era para mim claro que a perfeição maior do queduvidar era conhecer , veio-me à mente a idéia de descobrir de ondeaprendera a pensar em alguma coisa mais perfeita do que eu, eencontrei a evidência de que devia existir algo de natureza maisperfeita (... )

(...) Desse modo, chegava à conclusão que em mim forainculcada por uma natureza realmente mais perfeita do que eu eenfeixando em si todas as perfeições das quais eu pudesse fazer umaidéia, isto é, para que eu me explique em uma só palavra: Deus.( DESCARTES, 1998: 68-69 ).

Somente tempos depois é que o pensamento cartesiano afastou-se da ontologia

medieval, passando a valorizar a res cogitans ( a razão humana passa a predominar e se

impor). É através da res cogitans que Descartes consegue obter a representação das coisas, não

a representação como era vista no pensamento antigo e medieval ( um modo de conhecimento

que procurava conter a semelhança do objeto), mas como aquela realizada através de uma

certeza daquilo que é investigado. Por isso Descartes fala em:

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....jamais aceitar como verdadeira coisa alguma que eu nãoconhecesse como tal, quer dizer, em evitar, cuidadosamente, aprecipitação e a prevenção incluindo apenas nos meus juízos aquiloque se mostrasse de modo tão claro e distinto a meu espírito que nãosubsistisse dúvida alguma. ( DESCARTES, 1998:40 ).

É justamente com relação a esta certeza cartesiana que Heidegger diz :

Em todas as cogitationes, o ego cogito é para Descartes oque já se representa pro-posto, sendo vigente, o inquestionado, oindubitável, o que, cada vez, já está no saber, o certo e sabido emsentido próprio, o previamente consolidado, o que põe tudo emreferência a si e deste modo se contra-põe a todo o outro.( HEIDEGGER, 2001: 64 ).

Heidegger dá continuidade ao assunto dizendo que ainda não pensamos a essência do

agir, assunto que comentaremos quando tratarmos sobre a essência da técnica. No entanto, fica

claro também que, segundo nos diz o filósofo, Descartes entende que seu “penso, logo existo”

é prova de uma certeza absoluta. Daí citar o indubitável.

Heidegger acrescenta que é através desta forma de pensamento que a metafísica

moderna pensa a entidade dos entes enquanto vigência para a re-presentação asseguradora e

que isto aponta para a objetividade. Portanto:

“a questão da objetividade, da possibilidade de oposição ( a saber , do re-presentar que

assegura e calcula ) é a questão da possibilidade de conhecer”. ( HEIDEGGER, 2001: 64 ).

Nesse sentido, somente aquilo que é tomado por objeto pode ser tomado por existente.

É dessa maneira que a ciência e a técnica modernas trabalharão os seus conceitos, a

dizer: como cálculo e controle. Mas, isso não aconteceu por acaso. Antes, foi necessário que a

verdade fosse interpretada como certeza ( em Descartes ) e, dessa forma, o conhecimento

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passou a ter uma espécie de garantia, pois a verdade, como certeza, serve tanto para afiançar a

posse de um saber, quanto para a representação assegurar-se a si mesma.

Todo esse “pensar” em torno da verdade gerará duas conseqüências que constituirão a

essência do antropocentrismo moderno.

A primeira é a transformação da essência do homem em sujeito. A Segunda

conseqüência é que o pensar representado só toma o existente como objeto quando está fora

do homem. Mas, ao mesmo tempo, apreendido pelo pensar calculador. Portanto, o mundo se

transforma em imagem. Resumindo: o homem se converte em sujeito e o mundo se transforma

em objeto ( imagem ). Todo o conhecimento científico e cultura moderna utilizarão desses

conceitos e, com isso , contribuirão para o fortalecimento daquilo que veio a se chamar

pensamento moderno.

4.2 - Kant

Se Descartes reduziu a filosofia platônica ( sensível e não-sensível ) em res, Kant dará

origem ao conceito de idealismo iluminista, pelo qual opõe “noumenos” a “fenômenos” , ou

seja, a coisa-em-si ao sujeito/objeto, a coisa-para-si. E o que isso significa no

desenvolvimento da metafísica?

Para Kant, há uma coisa-para-si, que é o sujeito e suas construções objetivas e o ser-

sem-si.

Dentro de sua obra “Crítica da Razão Pura”, Kant discute a respeito da existência de

um raciocínio a priori, ou seja, o filósofo parte do princípio de que os objetos devem

conformar-se ao nosso conhecimento e este reside nas categorias mentais.

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A isto, poderíamos chamar de idealismo subjetivo. Mas, como o filósofo chegou a esta

compreensão?

Kant afirma que todo o conhecimento principia pela experiência. Apesar de o

conhecimento iniciar-se pela experiência, isto não significa que todo ele se derive da

experiência. Dessa forma, ele chaga à conclusão de que:

“Denomina-se a priori esse conhecimento e distingue do empírico, cuja origem é a

posteriori, ou seja, na experiência”. ( KANT, 2002: 44 ).

Portanto, segundo essa declaração, possuímos duas formas de conhecimentos: uma a

priori ( a razão pura ) e outra a posteriori ( através do empirismo ).

Vejamos agora como ele desenvolve seus conceitos:

(...) a experiência não concede nunca aos seus juízos umauniversalidade verdadeira e rigorosa, mas apenas uma universalidadesuposta e comparativa(...)

(...) Sendo assim, se um juízo é pensado em rigorosauniversalidade, ou seja, de tal modo que, nenhuma exceção sejaadmitida, não é derivado da experiência , mas é totalmente válido apriori.( KANT, 2003:46 ).

Nota-se, dessa forma, a importância do idealismo subjetivo, ou seja, a valorização de

que podemos chamar “raciocínio a priori”.

Tal dicotomia “criada” por Kant trouxe consigo críticas por parte de Heidegger.

Segundo este, o conhecimento assim pensado acaba por compreender a entidade dos entes

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enquanto vigência para a representação asseguradora, tornando a entidade em objetividade.

Assim:

Em que medida, através do pensamento transcendental, Kantim-põe com segurança o metafísico da metafísica moderna? Àmedida que a verdade se transforma em certeza e, assim, a entidade (ousía ) dos entes se torna a objetividade do perceptio e da cogitatioda consciência, do saber, empurrando o saber e o conhecer para oprimeiro plano.(HEIDEGGER, 2002: 65 )

Pensado dessa forma, como o texto nos afirma, a verdade se torna certeza. Esse é o

sentido de verdade em Kant. Não há margens para dúvidas, nada há de inseguro. Tudo pode

ser entendido através de sua filosofia.

Heidegger acrescenta que isso é uma “teoria do conhecimento”. No entanto, deve-se

pensar teoria aqui como observação ( èåù ñßá ) na medida em que o ente, pensado como objeto

é questionado no tocante à objetividade e à sua possibilitação ( HEIDEGGER, 2002:64 ).

É justamente nesse sentido que o saber e o conhecer assumem o primeiro plano, sendo

metafísica e ontologia fundadas sobre a verdade assumida como certeza pela re-presentação

asseguradora.

Heidegger conclui dizendo que a “teoria do conhecimento” acaba por exprimir

incapacidade fundamental e crescente metafísica de saber o seu próprio vigor e fundamento,

pois, na verdade, a “metafísica do conhecimento” é “metafísica dos objetos” , dos entes

enquanto objetos, objetos para um sujeito.( HEIDEGGER, 2002: 65 ).

Kant ainda guarda consigo alguns “postulados” com os quais retoma alguns assuntos

não falados na “Crítica da Razão Pura” , mas citados na “Crítica da Razão Prática”.

Ele sabia que algumas coisas não poderiam ser provadas empiricamente, mas que

poderiam ser postulados. Entre tais assuntos, encontramos aquele que afirma a existência de

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um ser superior e que esse mundo seria governado por suas leis, pois, caso contrário, o caos é

que reinaria. Vejamos uma de suas declarações:

Ora, um ser que é capaz de ações segundo a representaçãode leis é uma inteligência ( ser racional ), e a causalidade desse ser,segundo essa representação das leis, é a sua vontade. Dessa forma, acausa suprema da natureza, enquanto ela deve ser pressuposta para osumo bem, é um ser que, pelo entendimento e vontade constitui acausa ( conseqüentemente é o autor ) da natureza, quer dizer, Deus.( Kant, 2003:135 ).

Assim, podemos notar que chegamos ao conhecimento de Deus por postulados. Pelo

que se pode perceber nesses postulados, os argumentos em prol da existência de Deus, como o

cosmológico e o teleológico ou mesmo o ontológico, ainda que impressionantes, não são

válidos para provar a existência de um ser supremo. No entanto, o argumento moral é capaz de

nos apontar para essa “realidade” ainda que, não feito por via empírica, mas por postulado da

razão prática.

Não é de se admirar que a Igreja Católica se opôs ao pensamento Kantiano preferindo a

filosofia de Tomás de Aquino.

Kant teve muita importância para a compreensão da ciência e o seu fortalecimento. O

que acontecerá a partir de então é que essa auto-suficiência levará a um entendimento tal que,

atingirá o seu topo com o advento do positivismo, pois a ciência negará tudo o que não puder

ser provado pelo método científico ( empirismo ). É o que veremos em seguida.

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5 – O POSITIVISMO, O REAL E A VERDADE

Já comentamos que o termo ciência foi adquirindo poder com o passar do tempo

através dos conceitos trazidos pelos filósofos ou mesmo físicos. Sabemos , dessa forma, que

Descartes e Kant tiveram suas parcelas de colaboração. Paralelamente, alguns físicos também

colaboraram para a formação da ciência, conforme entendida modernamente, tais como:

Klepper, Newton, para não falarmos dos físicos do século XX, tais como Einstein, por

exemplo. Muitos desses pensadores, quer no ramo metafísico, quer no ramo do empirismo,

tiveram que enfrentar o poderio da religião a fim de manter suas idéias em evidência. Com o

passar do tempo, houve uma diminuição do poderio da religião e um aumento do poderio do

saber científico, chegando ao ponto máximo de negar tudo aquilo que não fosse conhecido

através do método científico. A essa “nova experiência” damos o nome de Positivismo.

Mas, o que foi o Positivismo?

O Positivismo foi uma explicação da realidade, limitada apenas pelo método científico

empírico.

Para o Positivismo, todas as proposições metafísicas eram rejeitadas, pois eram

destituídas de significação. Portanto, explicações como Deus, alma, fé, sentimentos jamais

poderiam ser provados cientificamente, porquanto não cabem ao terreno da percepção

humana.

O que se pode notar sobre o que foi exposto até o momento é que o que está em jogo é

a própria verdade. Para o positivista, a verdade só podia vir por meio do método científico, ou

seja, se fosse comprovada pela ciência. Qualquer outra forma de conhecimento do real não

poderia ser verdadeira se não fosse comprovada pela ciência.

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De certa maneira, o Positivismo, assim compreendido, foi uma espécie de negativismo,

se levarmos em consideração a maneira com que negaram toda e qualquer forma de

possibilitação ou vigência do real que diferisse de seu método.

Entre os pensadores positivistas, tomemos como exemplo a filosofia de Augusto

Comte.

Marilena de Souza Chauí , falando a respeito desse assunto diz;

Como se sabe, o positivismo de Augusto Comte elaborauma explicação da transformação do espírito humano, considerandoessa transformação um progresso ou uma evolução na qual o espíritopassa por três fases sucessivas. A fase feitichista ou teológica, naqual os homens explicam a realidade através de ações divinas, a fasemetafísica, na qual os homens explicam a realidade por meio deprincípios gerais e abstratos, e a fase positiva ou científica, na qual oshomens observam efetivamente a realidade, analisam os fatos,encontram as leis gerais e necessárias dos fenômenos naturais ehumanos e elaboram uma ciência da sociedade, a física social ousociológica, que serve de fundamento ( moral ) e para a ação coletiva( política ). É a etapa final do progresso humano.(CHAUÍ, 1980: 26 ).

A realidade vista dessa forma, elimina todo o elemento religioso ou metafísico que

porventura possa existir em seu bojo, promovendo uma forma de ceticismo ou ateísmo.

Mas, não elimina somente. Estabelece uma forma de poder através do controle do real.

Mais uma vez, Marilene Chauí nos diz como isso acontece:

O lema positivista por excelência é: ‘saber para prever,prever para prover’. Em outras palavras , o conhecimento teórico temcomo finalidade a previsão científica dos acontecimentos parafornecer à prática um conjunto de regras e de normas, graças às quaisa ação possa dominar manipular e controlar a realidade natural esocial.( o que é ideologia, 1980, p. 27 ).

Já sabemos pelo que foi falado anteriormente que qualquer afirmação que não fosse

provada por método científico não poderia ser considerado real. No entanto, para muitos, há

outras formas de acesso ao conhecimento.

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Do ponto de vista religioso, acredita-se que “provas racionais” da fé religiosa também

poderiam ter sua base na observação empírica, como o raciocínio acerca da existência da alma

ou de Deus, como base no exame empírico do universo, a consideração sobre seu desígnio, a

necessidade racional de postular o princípio da causa ( que também é positivismo ), com base

na existência de efeitos que fazem parte óbvia de nosso mundo empírico, e , portanto, não

deveriam ser rejeitadas pelos positivistas.

O século XIX, foi um século em que a ciência “ditou” as verdades sobre o real, não um

real mítico-originário, mas um real que negou todas as outras possibilidades de manifestação

do próprio real, uma vez que, pelo método científico, só o que poderia ser provado

cientificamente era verdadeiro. O que não era provado pelo método científico deveria ser

negado. Tudo, portanto, seguia uma certa ordem que visava a um progresso. O que veremos a

partir do século XX, é um dilema entre essa ordem positivista e o caos, pois, a ciência

descobrirá que no mundo do “muito pequeno” e do “muito grande” tudo é incerto. É o que

veremos em nosso próximo assunto.

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6- A CIÊNCIA E A TÉCNICA NA PÓS-MODERNIDADE

6.1 – Ciência na pós-modernidade

Como já foi comentado anteriormente, a Ciência “ditava” o que era verdadeiro e,

portanto, real, negando o fantasioso. No entanto, o conhecimento científico não permaneceu

estático. Antes, porém, caminhou “progressivamente”, influenciando o homem nos anos que

se seguiram.

Para que a pós-modernidade se e-videnciasse, foi necessário primeiramente que a

modernidade entrasse em crise. Mas, que espécie de crises tornou-se e-vidente?

Primeiramente, a certeza cartesiana nas idéias claras deu lugar à incerteza. Isso

significa que já não poderíamos falar de uma verdade superior, absoluta, dominada pelo

homem, ou seja, o “mito do homem”, que era apontado como o centro de todas as coisas,

começava a desmoronar.

A ciência também começava a sofrer dilemas na física clássica. Isso significa que a

realidade se mostrava , agora, não como certeza, mas como probabilidade e

complementaridade. Um bom exemplo é a luz. Para a física clássica, ela era tida como uma

onda, ao passo que para a física quântica ela era partícula. Ironicamente, um cientista poderia

escolher o destino da luz segundo o seu propósito. Isto remetia ao princípio da incerteza das

coisas. Por isso:

“Os manuais atuais de física ensinam ao estudante que a luz é composta de

fótons, isto é, entidades quântico-mecânicas que exibem algumas características de

ondas e outras de partículas (... )” ( Kuhn, 2003, p. 31 ).

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O próprio astrofísico Marcelo Gleiser declara concernente a isso:

Espere um momento, você exclama com um tom deindignação em sua voz, Maxwell e outros haviam mostrado que aluz, ou qualquer radiação eletromagnética, é uma onda, certo? Vocêestá tentando me confundir de propósito. Não , não estou tentandoconfundi-lo(...)

(...) Mas, como isso é possível? Uma partícula é um objetopequeno , bem localizado no espaço, enquanto uma onda é algo quese dispersa pelo espaço; partícula e onda são descriçõesincompatíveis, antitéticas, usadas para representar objetos comextensão espacial. Essa é a famosa dualidade onda-partícula da luz; aluz pode se comportar como onda ou como partícula, dependendo danatureza do experimento. Se o experimento testar suas propriedadesondulatórias, como padrões de interferência, a luz, se manifestarácomo onda; se o experimento testas suas propriedades de partícula,como colisões com outras partículas, a luz se comportará comopartícula. Portanto, a luz não é partícula ou onda, mas de certa forma,ambas. Tudo depende de como nós decidimos investigar suaspropriedades.( GLEISER, 1997:286,298).

Assim, podemos perceber que a ciência clássica privilegiava a ordem, já que tinha o

controle da natureza ( esta era tida como estável ), ao passo que com a física quântica,

inauguramos o caos, a instabilidade.

Assim:Essa física tradicional unia conhecimento completo e

certeza: desde que fossem dadas condições iniciais apropriadas, elasgarantiam a previsibilidade do futuro e a possibilidade de retrodizer opassado. Desde que a instabilidade é incorporada a significação dasleis da natureza ganha um novo sentido. Doravante, elas exprimempossibilidades.( Prigogine, 1996:12 ).

Oportuno é dizer que não é a física quântica necessariamente a responsável por essa

instabilidade, mas a introdução da instabilidade na própria física quântica. Por isso:

Esta formulação quebra a simetria entre passado e futuroque a física tradicional afirmava, inclusive a mecânica quântica e arelatividade. (... )

(...) a introdução da instabilidade na teoria quântica leva auma quebra da simetria do tempo. O observador quântico perde, apartir daí, seu estatuto singular! ( PRIGOGINE, 1996: 12,13).

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De que forma essas descobertas modificaram o conceito da realidade imaginada

anteriormente?

Com a física quântica, já não se poderia separar mais o observador do observado, ou

seja, no mundo quântico, o observador tem um papel importante ( ainda que não seja singular )

na determinação da natureza física do que está sendo observado.

Isso tudo acabou por lavar a um famoso conceito denominado “princípio da incerteza”,

que diz em sua forma mais popular que é impossível conhecermos com precisão absoluta tanto

a posição como a velocidade ( quantidade de movimento ) de uma partícula.

Mais uma vez, o astrofísico Marcelo Gleiser é quem nos explicará como funciona esse

princípio:

Um momento! Você exclama com indignação. Como issopode ser possível? Certamente, com instrumentos mais precisossempre poderei melhorar a precisão de minhas medidas da posição eda velocidade de uma partícula , certo? Errado! A raiz do problema éque o próprio ato de medir afeta o que está sendo medido. Porexemplo, para visualizarmos um objeto temos de projetar luz sobreele. Quanto mais detalhada a imagem que desejamos, menor ocomprimento de onda de luz que devemos usar; se desejamosvisualizar um objeto de dimensões minúsculas, deveremos usar luzde comprimento de onda muito pequeno. O problema é que a luz,como qualquer outra onda, transporta energia. E, como sabemos,quanto menor o comprimento da onda, mais energia é transportadapela onda. Portanto, ao projetarmos luz sobre um objeto dedimensões minúsculas, obrigatoriamente mudamos sua posição; aluz, ao refletir-se sobre um objeto, não só o ilumina como também oempurra , assim como uma onda nos empurra na praia. Quanto maiora precisão com que tentamos medir a posição do objeto, mais forteserá o empurrão dado pela luz. O ato de medir interfere com o queestá sendo medido.Se não podemos, então, especificar exatamente a posição e avelocidade dos objetos, logo também, não podemos prever suaevolução com total precisão. No mundo do muito pequeno, o próprioconceito de trajetória se torna vago.( GLEISER, 1997:303-304).

Se agora a ciência não é mais capaz de saber com precisão a velocidade dos objetos, se

esta mesma ciência já não pode dar como certas todas as suas afirmações, pois elas estão em

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constantes mudanças, se a incerteza toma conta da verdade, qual o papel da ciência dentro da

pós-modernidade? Como poderíamos relacionar a ciência com a pós-modernidade? Para que

possamos compreender essa relação, deveremos continuar discutindo sobre as características

da ciência, principalmente no que se refere à linguagem , à história, ao tempo, à natureza, e à

memória. A ciência da pós-modernidade está intimamente relacionada com uma outra palavra:

técnica.

Com a pós-modernidade, como já foi dito anteriormente, a compreensão de que o

homem era o centro de todas as coisas , que colocava esta mesmo homem em uma espécie de

mito, começou a perder o ser vigor. Por isso , o professor Manuel Antônio de Castro diz:

O modelo de valores morais como sistema permanente,válido universalmente, perde a sua validade porque à MORTE DEDEUS anunciada por Nietzsche no final do século XIX se segue aanunciada MORTE DO HOMEM na década de sessenta peloestruturalismo epistemológico. O homem não descobre o homem,mas o sistema em que o homem se transformou.( Sinais da Pós-modernidade, 2003, p. 2, MIMEO).

Esse sistema consegue trazer consigo , em seu bojo, como espécie de “ovelhas

desgarradas”, ou seja, os excluídos, que são, por exemplo: étnico-culturais sexuais, morais,

relacionais. Mas, esses excluídos entram no sistema apenas para a participação no consumo,

ou seja, o homem , ausente de livre-arbítrio, agora é determinado pelo sistema que “controla”

todos os seus desejos no que concerne a toda forma de cultura.

Por isso, mais uma vez, o professor e Manuel Antônio de Castro declara:

A substituição do sistema moral gera uma instabilidade quesubmete os seres humanos à moral do sistema, onde o homem setorna uma presa fácil do jogo econômico, da funcionalidade, doconsumo, do instável, do passageiro, da novidade, das modas, dodesejo do outro, das necessidades artificiais, de uma liberdadeaparente, porque baseada na escolha, sempre impulsionada pelapropaganda a serviço da indústria cultural e do lazer (...)

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(...) O apelo ao consumo promovido pela domesticação dossentidos e do desejo por uma propaganda que persuade prometendo afelicidade e plenificação da vida gera uma busca sem finalidade quenão a satisfação dos desejos e necessidades geradas pela própriapropaganda e pelo sistema de controle.

Os excluídos são incorporados pelo sistema de consumoenquanto apelo para participarem do sistema, mas sem lhe dar acessoaos meios de aquisição.( CASTRO, 2003, 2: MIMEO)

Portanto, para que houvesse a pós-modernidade, foi necessário que o sistema anterior

fechado, monolítico, humanista, racional, burguês, ideológico fosse substituído por um

sistema aberto e includente.

É justamente por isso que Emmanuel Carneiro Leão dirá que:

A Pós-modernidade provém da modernidade e nos remete aum conjunto de fenômenos de transformação radical que,avassaladoramente, vai cobrindo todos os espaços da existência atuale feitura dos homens em sociedade(...) (...) Os progressos da técnica,as descobertas das ciências , as ideologias do tempo desencadearamuma avalanche tal que levou, de roldão, e destruiu, pela base, osprincípios de ordem e as forças de ordenamento que definiam o perfile desenhavam a fisionomia do mundo moderno. Desta avalanchebrotaram os fenômenos pós-modernos.( A pós-modernidade, s.d., pg. 1, MIMEO).

Dessa forma, a ciência, que no positivismo era a detentora do real, excluía todas as

outras possibilidades de vigência do mesmo, principalmente naquilo que seu sistema entendia

o que era a história, o tempo, a linguagem, a natureza, a memória, tudo isso relacionado com a

técnica moderna já distanciada de seu significado originário.

E por que é necessário compreendermos a relação existente entre elas e a técnica napós-modernidade? Porque é através da técnica que o sistema tem o controle de todas as coisas,pois:

A técnica deixou de ser um fator entre muitos outros quevieram integrar-se, a posteriori, numa sociedade não técnica, numacivilização autônoma e natural. Na Sociedade em rede, a técnica setornou dominante, o domínio de tudo. É da técnica que dependemtodos os fatores.( Emmanuel Carneiro Leão, 2002: 2).

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Por isso, podemos afirmar que a pós-modernidade é o sistema da técnica em expansão.

Estudar a pós-modernidade é estudar a técnica moderna e sua interação com a linguagem,

história, memória, Natureza e o tempo.

É justamente nesse sentido que poderemos perceber a participação da Ciência

moderna, não como outrora, sendo a única detentora de uma verdade monolítica mas, agora,

como co-participante através da técnica juntamente com o sistema. Em outras palavras, a

ciência trabalhará para a justificação do sistema pós-moderno nessa dualidade técnico-

sistemática.

6.2 - A técnica na pós-modernidade.

Para que possamos compreender a ação da técnica na pós-modernidade, deveremos

primeiramente questionar o que é técnica.

Questionar a técnica é perguntar o que ela é. Ora, ao olharmos para nosso momento

atual em que máquinas são utilizadas para determinados fins, usinas de forças são usadas para

um objetivo qualquer produzido pelo homem, tudo isso justifica duas definições, a dizer: a

técnica é o meio para um fim e a técnica é uma atividade do homem.

Tais conceitos nos fazem concluir que a técnica é um instrumento dos tempos

modernos. No entanto, a técnica ultrapassa fronteiras. Agora, ela deixa de ser apenas uma

intermediação incompleta ou parcial entre o homem e a natureza. É da técnica que dependem

todos os fatores e é através dela que a sociedade em rede “produz” progressivamente, com

vantagem, todo o real. Mas, sabemos o que é o real?

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Ora, tudo isso falado acima está correto e de acordo com as definições. No entanto,

como nos afirma Heidegger, o simplesmente correto ainda não é o verdadeiro, pois, somente

onde se der o descobrir da essência da técnica é que acontece o verdadeiro em sua

propriedade.

Na sociedade pós-moderna, a técnica se tornou a dominadora e controladora das coisas.

É através dela que todas as outras possibilidades de real são excluídas, passando a vigorar

somente a realidade do sistema. Essa ciência-técnica , sendo dominadora, passa a conduzir o

homem em direção ao sistema. Se a técnica da pós-modernidade é capaz de transformar o real,

ela tem o poder de modificar ( semântica e metafisicamente ) as questões que giram em torno

do real, a dizer: o tempo, a linguagem, a memória, a história, a natureza.

Em relação ao tempo , por exemplo, Já não é de agora que este tem sido alvo de

diferentes definições por parte de filósofos e astrofísicos. Há os que o consideram linear ou

cíclico; outros duvidam de sua existência , acreditando que é apenas uma criação humana. Há

ainda os que afirmam que sabem o que é o tempo, mas não possuem capacidade de explicá-lo.

A antigüidade greco-romana possuía três palavras para definir “tempo” (

comentaremos sobre isso adiante ). Como havíamos anteriormente falado, muitos pensadores

viam o tempo como sendo cíclico. Com o passar do tempo, o seu sentido foi alterado. Por

exemplo, o cristianismo passou a compreendê-lo como sendo linear, começando com a

criação, passando pela redenção e sacrifício de Cristo e culminando no juízo final.

Embora cada época tenha compreendido e de-finido o tempo segundo sua concepção,

nada se compara ao entendimento da pós-modernidade sobre o mesmo. Através da técnica, o

tempo também passa a ser objeto de controle e exploração, onde o passado perde a sua

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significância, deixa de constituir memória e passa apenas a ser “lembrado” para justificar o

momento presente.

Dessa forma, atentamos para o presente e esquecemos de perguntar por sua essência.

Isto significa que houve uma modificação semântico-ontológica dessa palavra. Como nos

afirma o professor Manoel Antônio de Castro:

Pre-sente tem um duplo sentido: a) o que se dá e se constituicomo manifesto e como tal aparece e está aí; b) o que ao mesmotempo é um presente, uma dádiva , como presença de alguém ou algoque nos é oferecido, em que nesse presente a pessoa se doa e se fazpresente. Pelo e no presente algo ou alguém se faz presente mesmoausente(...)

(...) A raiz de presente é sença. Como forma derivada de“esse” corresponde a “ser” . Tem, pois, tanto um significado espacialcomo temporal, indicando o que é originário enquanto algo que é, ouseja, está na origem e na frente: evoca o processo de constituiçãoontológica de homem, ser humano e humanidade.( A Construção do Homem e d Realidade naModernidade e na Pós, 2ª semestre de 2003, p. 48,MIMEO).

Na pós-modernidade, o homem deixa de ser o fundamento ou centro de todas as coisas.

O mito do homem dá lugar, agora, ao mito do sistema onde até o próprio tempo passa a

possuir um novo conceito.

Por isso:

A sociedade em rede está toda presente em cada uma desuas partes, em cada uma de suas funções, em cada um de seusdesempenhos. Não há tempo nem espaço. Só há simultaneidade eonipresença.( LEÃO, 2002: 3 ).

Assim, o sistema da pós-modernidade se torna referência de representação do tempo e

do real através da sociedade em rede, da cibernética, da sociedade do conhecimento, da

inteligência artificial, da sociedade de consumo, da linguagem comunicativa, da realidade

virtual, etc.

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Tomemos como exemplo a realidade virtual. Esta , distante do seu significado

originário ( virtus: força, vigor ), provoca um esquecimento do real em seu sentido orginário-

mítico e um ocultamento do significado etimológico de virtude. Por isso, mais uma vez o

professor Manuel diz:

É fácil falar de e definir uma realidade virtual ( onde ovirtual perdeu o seu vigor de linguagem para denominar apenas o seuaspecto mais secundário, porque até o sentido moral se perdeu (ligado à virtude). A palavra virtus ( força, vigor ) indicaoriginariamente o vigor de ser enquanto excelência).( A Construção da realidade do Homem na Modernidadee na Pós-Modernidade, 2ª semestre 2003, p. 10,MIMEO).

Mas, como a realidade virtual age e interage com uma nova concepção de tempo?

Já sabemos que a técnica tem poder autônomo. É justamente através desse poder que o

próprio tempo é manipulado para dar ocasião a um novo tipo de tempo, um tempo dentro do

tempo, manifestado pela contração do próprio tempo.

Manipular o tempo é manipular a vida. Portanto, temos a aceleração do tempo que

torna também a vida acelerada. Isto nos faz compreender que a vida também pode ser

experienciada. Podemos inclusive enxergar o desabrochar de uma flor através de um clip.

Podemos , através de jogos eletrônicos sentir um “perigo real” , como se estivéssemos dentro

do próprio jogo. Nesse sentido, o tempo perde o seu sentido mítico-sagrado, dando origem a

uma espécie de tempo profano, no sentido de distanciamento do conceito originário ético-

político-ontológico. Por isso, o tempo profano , por meio da técnica, torna a vida mais

acelerada, “forçando-nos” à sujeição do sistema, onde, à semelhança da seleção natural, temos

uma espécie de seleção artificial, em que só sobrevivem os que forem mais “capazes”, ou seja,

os que mais facilmente se submeterem ao sistema.

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Mas a técnica não controla apenas o tempo. Modifica a nossa compreensão da própria

linguagem. Na verdade não sabemos o que é a linguagem. Isto não significa um não-saber

negativo. O que queremos dizer é que é impossível de-finir a linguagem sem ocultarmos

outras possibilidades de compreensão da mesma. Afinal de contas, como podemos de-finir a

linguagem , usando a própria linguagem? A técnica da pós-modernidade entende que isso é

possível através da manipulação da língua.

Se isso, segundo diz, é possível através da manipulação da língua, necessário se faz

entender o que significa língua.

Desde os tempos mais antigos, o homem tem compreendido que ele é um ser especial,

se comparado aos animais e plantas, uma vez que seria ele o único capaz de usar a palavra.

Ora, se ele usa a palavra, certamente o faz com o auxílio da língua. Portanto, o uso da língua

assemelha-se ao ato da fala.

E o que se entende por fala?

Para muitos, ela é apenas o funcionamento dos órgãos de elocução e de ouvido; para

outros, a expressão e a comunicação dos movimentos da alma guiados pelos pensamentos com

vista à harmonia recíproca. Há ainda os que a vêem como uma representação e uma

apresentação do real e do irreal.

Apesar de a fala possuir uma pluralidade de sentidos, ela, através da língua, tem se

tornado na pós-modernidade um instrumento de troca e de comunicação, onde seu uso se torna

limitado e dominado pela técnica. Dessa forma, a língua se reduz à mera informação,

excluindo todas as outras possibilidades de manifestação e reunião. ( ëüãï ò ).

Heidegger já questionava essa “nova visão” da língua como instrumento da técnica

quando dizia:

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...é preciso perguntarmo-nos: em que medida o que épróprio da técnica acaba por se impor à língua levando à suatransformação em pura informação, de tal maneira que provoca ohomem, quer dizer, obriga-o a assegurar a energia natural e a colocá-la à disposição?( HEIDEGGER, 1995, p. 33 ).

É justamente aqui que temos a necessidade de diferenciar o dizer ( pela língua ) do

dizer da informação ( pela técnica ).

Os gregos costumavam utilizar a palavra ëÝãù ( dizer; reunir ) quando falavam.

Portanto, falar é manifestar a linguagem, não como mero instrumento que o homem usa, e sim,

como aquilo que se mostra a ele de si próprio, aquilo que se manifesta e se dirige a ele. Ora,

aquilo que está para se mostrar é o que será dito. Portanto, dizer é a reunião do dito e do não-

dito, naquilo que se mostra e se oculta. No próximo capítulo, iremos tratar desse assunto com

maiores detalhes. O que importa, agora, é discutir como que a técnica irá utilizar a língua

como instrumento na justificação do próprio sistema.

Vejamos como o professor Emmanuel Carneiro Leão discute esse assunto:

Na pós-modernidade estamos vivendo cada vez mais asameaças de insensatez dos discursos. Se fomos bastanteinformatizados para nos entregar a inversões extremadas já nãosobrará outra alternativa senão a de renunciar à criatividade de todalinguagem e de toda língua materna e originária.

Os informatizados pós-modernos já dão sinal deaprisionamento num mundo pobre de linguagem criativa. Daí a vagacrescente da siglas, dos logotipos, das fórmulas de toda espécie(...).(...) A linguagem natural vai perdendo sempre mais autoridade, nummundo em que se necessita cada vez menos da línguas naturais.(...).O esvaziamento das línguas naturais é uma conjuntura que o sistemada técnica na globalização traz consigo cada vez mais.( LEÃO, 2002:10, MIMEO).

É dessa forma que a técnica , ao transformar a linguagem em pura informação,

desenvolve sistemas de mensagens e de sinalizações, tornando-se agressiva e mais perigosa

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contra o caráter próprio da língua, pois esta quando diz, faz aparecer o presente e o ausente, a

realidade no sentido mais lato.

Portanto, a técnica ,através do avanço científico, muda a percepção da realidade em seu

vigor, tornando possível apenas uma outra realidade, a do sistema da pós-modernidade.

Uma outra questão que deve ser levantada é a relação entre técnica e a natureza. O

entendimento que temos hoje da palavra natureza se difere em muito do pensamento

originário. Falar da natureza é falar sobre o real. Os gregos não possuíam uma palavra que

significasse real, realidade ou realização. Para os gregos, o real era a própria phýsis,

considerada como a reunião de todos os entes.

Por isso

“Para os primeiros pensadores, a phýsis estava presente em tudo que os rodeava, isto é,

nas plantas, no nascimento dos animais ,no crescimento dos homens.”( MICHELAZZO, 1999:

28 ).

A partir de Platão, a phýsis se distancia do pensamento originário, seguindo assim todo

o percurso do homem até chegar ao nosso entendimento moderno de natureza, física. O

homem, que outrora era um dos entes da phýsis, passa agora a dominá-la, adquirindo poder

através da ciência. Na pós-modernidade, a técnica assumirá o controle da própria phýsis. Por

isso, Heidegger dirá que:

O que é técnica moderna? Também ela é umdesencobrimento.(...)

(...) O desencobrimento dominante na técnica moderna nãose desenvolve, porém, numa pro-dução no sentido de ðï ßçóéò. Odesencobrimento, que rege a técnica moderna, é uma exploração queimpõe à natureza a pretensão de fornecer energia, capaz de, como tal,ser beneficiada e armazenada.( HEIDEGGER,2002:19).

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Neste fragmento, podemos encontrar duas interessantes afirmações. Primeira, a técnica

é dominante. Isso significa que a natureza agora é controlada pela própria técnica, com o

auxílio da ciência. Isso nos encaminha para o mito do sistema, que controla e determina todas

as coisas.

Segunda, através do desencobrimento, a técnica explora a própria natureza. A natureza,

agora, já não é mais vista como a que se faz aparecer e ocultar-se em seu vigor, mas como

uma “coisa” transformada e moldada nas “mãos” da técnica.

Dessa forma, o sistema da pós-modernidade, muda a concepção da realidade, ou

melhor, da phýsis, tornando-a uma das “coisas” que estão debaixo de seu domínio.

A técnica na pós-modernidade também atua diretamente na memória, controlando e

modificando o seu sentido. Como temos observado, o sistema pós-moderno conseguiu alterar

a percepção da realidade. Quando os pensadores originários falavam de memória, entendiam-

na como sendo uma expressão da alétheia ( não-encobrimento, não-esquecimento ). Acerca da

alétheia, Emmanuel Carneiro Leão diz que:

A palavra grega para dizer a experiência originária daverdade era a-léth-éia. Uma coisa verdadeira se diz a-leth-és. Aexpressão láthra significa: secretamente, de modo velado e oculto,lathraios é clandestino; lethrargós diz o que morde em silêncio, desoslaio, falso, morfino. Lathrios, letárgico, é indolente, preguiçoso, aqualidade de quem está sempre se retraindo. Lethe diz oencobrimento , o esquecimento, é título de um dos rios do Hades.( LEÃO, 2002: 71 ).

Portanto, palavra grega alétheia gerou duas palavras que se relacionam entre si:

verdade e memória ( não-esquecimento ).

Em certo sentido, verdade e memória são o mesmo. Somente a partir de Platão, a

alétheia começa a ser modificada, passando a significar aquilo que é exato.

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Na pós-modernidade, com a crise da razão, a verdade, sinônimo de certeza, passa a

estar em crise, pois tudo se torna relativo. No entanto, uma de suas características permaneceu

valorizada, pelo menos no campo da informatização: a memória.

Um bom exemplo disso é a inteligência artificial. E qual é o objetivo da inteligência

artificial? Vejamos como Fábio Barreto responde a essa pergunta:

A I.A busca entender a mente humana e imitar seucomportamento, levantando questões como: como ocorre o pensar?Como o homem extrai conhecimentos do mundo? Como a memória,os sentidos e a linguagem ajudam no desenvolvimento dainteligência? Como surgem as idéias? Como a mente processainformações e tira conclusões decidindo por uma coisa ao invés deoutra? Essas são algumas perguntas que a I.A precisa responder parasimular o raciocínio humano e implementar aspectos da inteligência.( BARRETO, 2003: 1).

A ciência ainda não conseguiu fazer com que as máquinas sejam comparadas com o

nível de inteligência do homem. No entanto, hoje em dia, um computador é capaz de

armazenar uma quantidade “gigante” de informações através de sua memória.

A memória na pós-modernidade deixa de ser a união do esquecimento e não-

esquecimento para tornar-se aquilo que está sempre “presente” , pelo menos no campo da

informatização, já que, a memória humana, principalmente no que se refere aos nossos idosos,

está profundamente desvalorizada. Dessa forma, a técnica da pós-modernidade também

mudará a concepção da palavra memória, tornando-se esta uma “coisa” controlada e explorada

pelo sistema.

Ainda há , de acordo com o mito , um outro aspecto da memória, que passamos a

discutir por estar ligado diretamente com a história.

Relacionamos a memória à alétheia. No entanto, ela ( a memória ) ainda está

diretamente ligada a um nome: Mnemósyne.

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Mnemósyne é a deusa da memória e preside à criação. Ela é irmã de Cronos e isso já a

coloca como aquela capaz de manobrar o presente, passado e futuro. Portanto, memória e

tempo estão diretamente relacionados.

Sabemos também que Mnemósyne se casou com Zeus e tornou-se a mãe de nove

musas, dentre as quais encontramos Clio, a guardiã da história. Dessa forma, Mnemósyne tem

uma profunda relação com a história. Sabemos também que ela é a avó de Orfeu, o paradigma

grego do poeta. Através deste mito, podemos notar a relação existente em três das cinco

questões em que gira o nosso trabalho: memória, tempo, história.

Na pós-modernidade, a história acontece como ciência e técnica. Como ciência, a

história se volta para a pesquisa, sempre visando ao progresso. Como técnica, propõe uma

nova interpretação em que o presente é valorizado em detrimento do passado. De tudo o que

foi falado até agora sobre essas questões, podemos resumi-lo, cintando um parágrafo do

professor Manuel Antônio de Castro:

O tempo perde a interpretação cronológica, a história perdea interpretação utópica do futuro e se volta para a dinâmica inerente àmarcha da ciência como metas de pesquisa, a linguagem perde o seuvigor manifestativo e de salvaguarda, e passa a predominar a suainterpretação como comunicação, a memória torna-se memóriadigital como suporte de uma realidade virtual ou ainda interpretadacomo um código genético a ser decifrado e controlado, a physis vê-sereduzida a um imenso depósito e reserva de energia disponível,reduzindo-se igualmente os homens a um conjunto de recursoshumanos, ao lado dos “naturais”. Falar do novo tempo é tentarcompreender como ele se desdobra, nas demais questões enquantounidade de linguagem.( CASTRO, 2003: 47. ).

Essa é a realidade na pós-modernidade, distanciada da realidade mítico-originária que

discutiremos no próximo capítulo.

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7 – O REAL COMO QUESTÃO ORIGINÁRIA

Até agora, tudo o que foi discutido sobre o real acabou resultando em respostas

metafísicas entre as quais temos, inclusive, aquela relacionada ao método científico.

Dissemos também que o real só se torna questão quando fazemos a pergunta: o que é o

real? Isso porque já nos movemos em torno dele. Estamos dentro do próprio real e isso

significa que qualquer definição apenas nos remete a uma faceta do mesmo. Assim, qualquer

resposta que dermos em torno dessa questão acabará por ocultar mais do que responder, pois ,

metafisicamente, excluirá todas as outras possibilidades do real. Isso quer dizer que, qualquer

metafísica do real que queira ideologicamente se impor não dará conta de toda a essência do

real.

Entendendo dessa forma, não será difícil aceitar que toda explicação do que seja o real,

realidade, realização terá sua parcela de “razão” mesclada com equívocos, ou seja, não se deve

aceitar que apenas uma explicação possua toda a verdade sobre essa questão. Se todas as

respostas metafísicas têm algo de certo e algo de errado, isso significa que ainda nos resta

superar toda e qualquer metafísica em torno do real.

Havíamos falado anteriormente que só perguntamos sobre o real quando este se

tornava questão. Houve um tempo em que o real não era questão, em que o homem movia-se

pelo seu vigor( do real ).

E por que o real não era apresentado como questão? Justamente porque a phýsis era

entendida como a manifestação e união de todos os entes.

Assim:

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Para os primeiros pensadores, a phýsis estava presente emtudo que os rodeava, isto é, nas plantas, no nascimento dos animais,no crescimento dos homens. Todavia, essa predominância quedesabrocha não se restringia a esses fenômenos, uma vez que, pelaproximidade que tinham com ele, aprendiam e conservavam a suapresença em suas criações, pensamento e linguagem. Phýsis era paraesses pensadores o nome do ser.( MICHELAZZO, 1999: 29).

Os pensadores originários valorizavam a aparência das coisas. Essa aparência poderia

manifestar-se como esplendor e brilho, como aparecimento ,e ainda, como ilusão. Tudo fazia

parte da phýsis.

Segundo Heidegger , a phýsis era o eclodir da pro-dução, uma vez que aquela

significa o surgir e elevar-se por si mesmo. Adiante falaremos sobre a técnica e sua relação

com a phýsis.

Não é simples retornarmos ao pensamento originário e falarmos sobre a phýsis, já que

estamos muito distantes ( e, ao mesmo tempo, muito próximos ) dessa “realidade” . Para que

possamos compreendê-la é necessário um grande esforço de nossa parte já que vivemos em

uma sociedade que distorce o significado originário da phýsis, reduzindo-a em natura, física,

natureza.

Fica uma pergunta: O que garante que o entendimento que os pensadores originários

tinham da phýsis é mais completo que todos os formados pelos filósofos no decorrer da

história? Precisamos, portanto, entender a relação da phýsis com o mito originário para então

retornarmos a essa questão.

Mas, o que é o mito?

Em princípio, seria necessário dizer que o mito foi castigado durante séculos por

filósofos, teólogos e cientistas. Os filósofos entendiam o mito como uma compreensão

ingênua da realidade, necessitando do ëüãï ò ( já semantica e filosoficamente alterado ) para

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que fosse esclarecido. Os teólogos atacavam veementemente o mito por falar de deuses, o que

seria contrário ao pensamento monoteísta, ou seja, entendiam o mito como expressão do

paganismo. Os cientistas procuravam respostas através do método científico, modificando, aos

poucos, o que o mito explicava, pois este o fazia sem comprovação científica. O mito era

entendido pela ciência como uma lenda, uma fábula, uma história sem comprovação, não

verdadeira. Dentro da ciência, ainda encontramos os psicanalistas que lêem o mito não como o

mito é, mas como um meio para que se obtenha a cura para doenças da alma. No entanto, o

mito não foi corretamente compreendido por nenhuma dessas correntes. O mito não é uma

explicação apenas, mas o próprio eclodir da realidade de acordo com o pensamento originário.

A palavra mito é oriunda do verbo mythéomai que significa abrir, desocultar pela

palavra, falar , dizer. No latim, encontramos a palavra mutus e no Sânscrito, mukas ( mudo,

silente ). É dessa palavra que temos a nossa: mistério. Portanto, tal conhecimento etimológico

da palavra mito é bem diferente do que pensam , ou seja, imaginam o mito como se este fosse

uma fábula, lenda, ou simples fantasia. Mas, o fantasioso, o imaginário não é segundo o

pensamento originário também manifestação do real?

Em uma de suas crônicas, Artur da Távola ( comentando sobre a novela Roque

Santeiro ) diz a respeito do mito:

Quando o pragmatismo do século vinte, com todos os seusmaterialismos, supôs que a verdade concreta , científica outecnológica seria suficiente para eliminar a verdade mágica, cometeugrande engano. O mito não existe porque as pessoas são ignorantesda verdade científica como acreditou o século vinte: o mito existeporque a verdade mágica á maior do que a científica e perdurará ondequer haja impasses, enigmas ou complexidades.

Mito não é mentira. É verdade profunda da mente. Esta,serve-se da história, fantasias ou lendas, talvez mentirosas ouexageradas. Mito é a revelação de profundas verdades da mentehumana, improváveis, talvez, cientificamente, mas prováveis atravésdas leis sempre mais ricas da fabulação, ficção, e construção mental e

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simbólica de imagens que expliquem ao homem suas vontades,ânsias, verdades interiores e mágicas através de histórias ou objetos.

O mito não existe fora, na crendice ingênua dos homens,como o supõem os pragmáticos e materialistas do século vinte. Omito é verdade dentro do homem porque corresponde a necessidadesprofundas e a percepções intuitivas que só contam, para expressarem-se, com símbolos, alegorias, emblemas e construções fabulosas.

Não há nenhuma prova de que a inteligência racional dohomem seja mais rica, penetrante e profunda que o ser fabulário.Talvez até, por intermédio deste, possa ser atingido o que aquela nãoalcança. Mas o fabulário é reprimido pela vida diária, afã desubstituí-lo pela tirania da razão e do racionalismo típicos da eracientífica em que vivemos.(...)

(...) Quando o ser humano reverencia alguma forma de mitonão está cometendo um engano como supõem os racionalistas, e, sim,traduzindo de maneira eloqüente e verdadeira o que lhe pulsa dentro.Por isso é ilusória a tentativa das sociedades materiais de banir oudenunciar o mito. Mito é como a natureza: pode-se tapá-la comcimento ou paredes; mais dia menos dia ela volta a recuperar o seuespaço nem que espere séculos...”

(...) Equívoco, portanto, grave , de todo o pensamentoracionalista do século vinte, o de dividir o real ( uma vez mais ) entrepartes separadas e antagônicas: de um lado ‘a verdade’, ditada pelaciência-opinião; de outro, o mágico, que seria ( porém não é )‘fabuloso’, ‘mentiroso’, determinado pelos mitos, sonhos, fábulas,lendas, religiões ou ficção.

Nem a ciência conseguiu destruir o mito! Ele perdura adespeito de estar alijado do poder econômico, material, político ecultural.( TÁVOLA, Terá o mito mais verdades que a ciência?Texto de fonte desconhecida ).

Neste comentário de Artur da Távola, encontramos todas as questões pelas quais se

movem a realidade, a dizer: A phýsis/tempo, a memória, a verdade, a História e a linguagem.

Notemos que o cronista afirma e reafirma que o mito não é mentira como os racionalistas

pensam. O mito é verdade ( primeira questão ). O mito está dentro do próprio homem, em sua

mente, portanto serve-se da memória ( Segunda questão). O mito através do imaginário

também serve-se da história ( terceira questão ). O mito, afirma o nosso cronista, é como a

natureza ( Quarta questão ), pois recupera o espaço que o homem explorou pela concepção

moderna da técnica. Por fim, o mito é narrado e pelo fato de ser narrado, necessita da

linguagem ( Quinta questão ).

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O mito é uma forma de pro-dução da phýsis. Pro-dução em grego é poiésis. Por isso, à

semelhança do próprio mito, a poiésis é capaz de andar na ambigüidade, mostrando e

ocultando o real em seu vigor. Por esta razão, o professor Manoel Antônio de Castro dirá:

Ao se oferecer ao homem o real como questão, ele está paraalém de todo alcance de questão e resposta, ou seja, sabemos do realna questão, mas não sabemos o que é o real. Daí que toda resposta jáé uma comprovação do que é o real, mas não que o real se dê inteirae completamente em cada ou em todas as respostas que conhecemos.Mas é delas e nelas que nos alimentamos do real comoexperienciações em que o próprio real se doa, num jogo ambíguoonde ele tanto mais se dá quanto mais se retrai. Por isso a poiésis éuma das experienciações mais radicais da presença e ausência doreal, porque nele sempre vigora a ambigüidade, uma ambigüidadepor isso mesmo poética. ( Castro, 2003: 2 ).

Assim, O mito é a própria linguagem. Já vimos seu significado etimológico, ou seja, o

seu abrir, desocultar enquanto palavra. Nesse sentido, há uma íntima relação do mito com o

ëüãï ò, não o ëüãï ò como sendo razão ou linguagem ( esta com significado já alterado

semanticamente ). Isto já é um empobrecimento do Lógos. Portanto, necessário se faz irmos à

pro-cura do entendimento do ëüãï ò para que possamos compreender sua relação com o mito e

com a poiésis.

7.1 - O ëüãï ò e o pensamento originário

Como deveríamos entender a palavra ëüãï ò?

.

A palavra ëüãï ò significa reunião. Ela vem do verbo grego ëÝãåéí : dizer; reunir. Os

gregos a tinham como a maneira de explicar tudo aquilo que presenciavam. Era o próprio dizer

da experiência grega. Por isso, estava diretamente relacionada com a própria linguagem. No

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entanto, não devemos entender aqui linguagem como algo que o ser humano é capaz de

produzir por si próprio, nem como razão, se entendermos esta palavra como a faculdade que o

homem tem de conhecer todas as coisas a priori, como pensava Kant.

Como dissemos acima, a palavra ëüãï ò significava reunião. E o que ela reunia para os

pensadores originários? Ela era capaz de reunir o que se mostrava e o que se ocultava, o ser e

o não-ser, o dito e o não-dito. Sendo assim, o ëüãï ò estava intimamente relacionado com a

phýsis e com a Alétheia. Precisamos, dessa forma, entender o ëüãï ò dentro desses aspectos

citados acima.

7.1.1 - O ëüãï ò como ser e não-ser.

Ao relacionarmos o ëüãï ò com o ser e o não-ser, automaticamente o relacionamos

também com a phýsis. E por que há essa relação?

Já vimos que a phýsis para os pensadores originários era a reunião de todos os entes.

Reunião é ëüãï ò. Portanto, ëüãï ò e phýsis são o mesmo. Vejamos como José Carlos

Michelazzo comenta a relação do ëüãï ò com a phýsis:

À medida que compreendemos o desabrochar do ser comologos ( reunir, recolher ), basta pouco para apreendermos o sentidoda linguagem e, sobretudo, como aquele determina a essênciadesta.(...)

(...) Logos e phýsis formam, portanto, uma unidade que semostra através da dupla face. Enquanto se distinguem falam demodos diferentes de predominância: o primeiro é a unidade dereunião daquilo que mais tende a opor-se; o segundo é o brotardaquilo que sai de dentro de si mesmo, que permanece e tende para oocultamento. (...). (...) Logos e phýsis, assim compreendidos, são omesmo.( MICHELAZZO, 1999: 31,32 ).

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Isso por si mesmo já seria capaz de derrubar uma ideologia subjetiva ou objetiva da

realidade, pois o ëüãï ò, agindo no homem e interagindo com a phýsis, permite que toda a visão

da realidade ( real, abstrata, imaginária, fantasiosa, etc.) só possa ser pensada no momento que

a phýsis se mostre e se oculte.

Ainda é oportuno comentarmos que , Heráclito, escrevendo no fragmento 123, diz:

“ Natureza ama esconder-se”.[ o grifo é nosso ].( Os pré-socráticos, 2000: 101 )

Para Heidegger, a palavra öýóéò , traduzida no fragmento acima como Natureza, é o

próprio surgir. No entanto, está em contraste com o próprio verbo, êñàðôåóèáé, o encobrir-se.

Isso geraria uma tradução diferente da anterior: Descobrir-se ama encobrir-se. ( isto por si só,

já nos faz concluir que o fragmento acima que traduziu phýsis por Natureza não é uma

tradução completa ). É nesse sentido que podemos dizer que o surgir já possui uma tendência

para fechar-se e o descobrir-se, a cobrir-se. Ora, o ëüãï ò também possui em seu vigor a

tendência para mostrar-se e o ocultar-se. Mostrar-se e ocultar-se , pensado dessa forma, não se

refere apenas à phýsis. Refere-se também à alétheia. A phýsis é a própria alétheia.

Se ele se mostra e se oculta, podemos dizer que ëüãï ò e alétheia são o mesmo, pois

esta se mostra na medida em que se oculta. Alétheia é a própria re-velação do pensamento

originário grego. Re-velar significa mostrar o que está oculto. No entanto, também significa

colocar o véu novamente, ou seja, ocultar. Esta palavra já demonstra a ambigüidade do próprio

manifestar e ocultar do ëüãï ò, não mais relacionado à lógica ( entendimento moderno da

palavra ), mas com a poiésis. Heidegger , a respeito do ëüãï ò, comenta:

“ Ao deixar-se dispor o disponível, como tal, o Ëüãï ò des-encobre o vigente em sua

vigência. Ora, todo o desencobrimento é áëÞèåéá. ÁëÞèåéá e Ëüãï ò são o mesmo”.

( HEIDEGGER, 2002: 195 )

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7.1.2 - O ëüãï ò como o dito e o não-dito.

Já dissemos anteriormente que o ëüãï ò foi compreendido como sendo linguagem.

Sendo assim, não demorou muito para que o homem tivesse sido classificado como um ser

superior em relação aos animais, por exemplo. Até mesmo a própria phýsis, cujo significado

ficou restrito à palavra natureza, passou a estar debaixo do domínio do homem. O homem,

agora, explora e domina a natureza. O homem passa a compreendê-la através da razão. Esta

tornou-se a única forma de o homem chegar ao conhecimento da verdade. A técnica já não é

mais compreendida como era no pensamento originário. Dessa forma, o ëüãï ò, assim

compreendido, apenas foi considerado em seu caráter lógico. Esqueceu-se seu vigor poético.

Esqueceu-se a sua ambigüidade. Até mesmo a linguagem, ligada ao ëüãï ò , perdera o seu

vigor, tornando-se apenas um veículo de informação, empobrecendo. No entanto, para os

pensadores originários, o ëüãï ò era capaz de reunir o dito e o não-dito.

Se ele era capaz de reunir o dito e o não-dito, isto significava que, não somente o falar

estava “presente”, como também o ouvir.

Não devemos, entretanto, entender esse falar e esse ouvir simplesmente como

expressões dos órgãos humanos, a dizer: a língua e o ouvido. Nesse ëÝãåéí , o que se diz é feito,

mesmo em silêncio, e o que se ouve é ouvido, mesmo sem o órgão responsável pela audição.

Portanto, dizer não é simplesmente fazer com que a língua ( órgão humano ) emita sons.

Podemos emitir sons sem , no entanto, dizermos coisa alguma. Dizer é algo mais pro-fundo. É

tão pro-fundo que podemos dizer, estando em silêncio. A voz do silêncio também fala. E quem

seria capaz de afirmar que o que se fala pela voz tem mais importância e significância do que

o que se fala pelo silêncio?

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Falar pelo silêncio exige de quem escuta uma profunda sensibilidade (homologéin).

Portanto, não se deve limitar esse ouvir apenas a escutar. Devemos ir mais fundo, ou seja,

devemos ser capazes de auscultar a voz do silêncio.

Dessa forma, esse dizer, o dito e o não-dito, acaba por interagir com a própria phýsis

em seu vigor latente e patente, e isto ocorre no momento em que a própria phýsis se mostra e

se oculta. Essa inter-ação entre ëüãï ò e phýsis é que permite ao homem uma profunda reflexão

e sua travessia poética.

Heidegger, comentando em um de seus ensaios sobre esse assunto, diz:

Dizer é deixar o real disponível num conjunto que,recolhido, acolhe. O que será , então, ouvir, se esta é a essência defalar? Sendo ëÝãåéí , a fala não se determina pelo som que se expressacom sentido. Ora, dizer não se define pela articulação de sons, oouvir correspondente também não poderá consistir, primordialmente,em se apreender o som, que entra pelos ouvidos, nem em transmitiros tons, que estimulam a audição. Se ouvir fosse, sempre eprimordialmente apreender e transmitir sons, ao que se viriam juntaroutros processos, os sons entrariam por um ouvido e sairiam pelooutro, e ficar-se-ia nisto. É o que de fato acontece se não nosrecolhermos ao apelo da fala.(...). (...) Ouvir é primordialmenteauscultar, uma escuta concentrada. Na ausculta, vige e vigora umconjunto de escutas. Ouvimos quando somos todo ouvidos. Mas“ouvido” não é o aparelho auditivo. Como aparelho dos sentidos, osouvidos fisiológicos e anatômicos nunca vão provocar uma escuta,nem mesmo se reduzirmos a escuta à percepção de ruídos, sons etons. (...). (...) Pertence à escuta propriamente dita a possibilidade deo homem ouvir mal, não escutando o essencial. Se, pois, os ouvidosnão compõem diretamente a escuta, no sentido da ausculta eobediência, é porque ouvir constitui um caso todo especial (...). (...)Esticando apenas os ouvidos para o soar das palavras nas expressõesde quem fala, ainda não escutamos nada. Assim nunca chegaremos aescutar alguma coisa em sentido próprio. Mas, então, quando é quese dá e acontece esta escuta? Nós só escutamos quando pertencemosao apelo que nos traz a fala. Pois bem, dizer o apelo da fala é isto quediz ëÝãåéí , deixar o real disponível no seu conjunto.( HEIDEGGER, 2002: 189-190 ).

Pelo que se pode notar até o momento, ëüãï ò é muito mais do que simplesmente o

lógico. É muito mais do que simplesmente razão ou linguagem. Está diretamente ligado à

própria phýsis. O pensamento moderno apenas se prendeu ao seu caráter lógico. Um lógico

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assim torna-se ideo-lógico , prendendo-se a sistemas. No entanto, o ëüãï ò é mais pro-fundo, é

poético e este caminha na ambigüidade. É nesse sentido que devemos entender o motivo pelo

qual Heráclito diz:

Não escuteis a mim, o mortal, que vos fala; mas sede, emvossa escuta, obedientes à postura recolhedora; se lhe pertencerdes,escutareis, em sentido próprio; uma tal escuta se dá, quando aconteceum deixar-disponível-num-conjunto, a que se dispõe o conjunto detudo, a postura recolhedora, o deixar pôr-se que acolhe; quandoacontece que o deixar dispor-se se põe, dá-se, em sua propriedade umenvio sábio, pois o envio sábio, propriamente dito, o único destino, é:o um único unindo tudo.( LÓGOS, Heráclito, Fragmento 50. In: Ensaios eConferências,2002: 199 ).

Tal enunciado começa com uma negação: Não escuteis a mim. Heráclito diz a quem

devemos ouvir: ao ëüãï ò. E por que devemos ouvi-lo? Porque ele é quem determina o modo

de ser de uma escuta em sentido próprio. Este escutar é pertinente. Pertence ao ëüãï ò. Esse

escutar põe o disponível, um disponível que é ele mesmo. O ëüãï ò se mostra a si mesmo.

Portanto, o légein do l.ógos é um homo-logéin: um deixar dispor-se como ele mesmo, o

disponível recolhido na unidade de sua disposição. É por isso que Heidegger dirá:

O escutar propriamente dito mora no homologéin do ëÝãåéí .Neste sentido, escutar é ëÝãåéí , um ëÝãåéí que deixa disponível o quejá está disposto num conjunto e já está assim, a partir de um legen, deum de-por e pro-por que, em sua disposição, concerne a tudo que,por si mesmo, já se acha disponível num conjunto. Neste legen, nestede-por e pro-por extraordinário, é que vige e mora em suapropriedade o Ëüãï ò.( HEIDEGGER, 2002: 190 ).

Portanto, quando há a interação da escuta dos mortais àquilo que o ëüãï ò tem a

“dizer”, acontece o ï µï ëï ãåßí . E o que acontece quando se dá o ï µï ëï ãåßí ? Diz o texto de

Heráclito, acontece o ôü óï öüí , entendida por Heidegger como envio sábio. E onde se dá esse

envio sábio? Esse envio sábio acontece no momento em que se dá a escuta ( homologéin ) do

ëüãï ò que diz: O um único unindo tudo.

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Estar atento à escuta do ëüãï ò é estar atento ao seu manifestar e ocultar, ou seja, à sua

ambigüidade. Falar em ambigüidade é falar em poiésis, pois esta vigora na ambigüidade. O

pensamento ocidental esteve atento ao que o ëüãï ò dizia , mas somente em seu aspecto lógico.

Isto provocou uma mudança na própria linguagem que, com o decorrer do tempo, ficou

reduzida apenas a um mero mecanismo de informação.

Conseguimos nos aproximar do pensamento mítico- originário na e pela poiésis, o que

não é uma tarefa fácil, uma vez que não vivemos nesse período.

Por essa razão, o professor Manoel dirá:

A filosofia, a teologia e o saber científico ao longo dosséculos tentaram insistentemente eliminar o mito. E de fato, hoje aciência para tudo parece ter uma explicação científica, e a terra e océu, em lugar dos deuses, estão desmitificados e repletos de artefatostécnicos e ondas comunicativas. Diante disso tudo, porém, sentimosno mais íntimo de nós que algo falta. Isso não é tudo, gerando umdesconforto e uma insatisfação. Mas o tempo dos deuses não podevoltar e estamos irremediavelmente mais pobres, porém, nem tudoestá perdido. Porque se os mitos foram expulsos de nosso horizonte,eles continuam presentes e fortes, porque eles não são invençõesficcionais nem irreais. Também não são explicações causais para osfenômenos naturais ou psíquicos, como uma mitologia de basecientífica nos quer fazer acreditar. Nossas mentes e línguas, poluídaspor saberes metafísicos e científicos, sentem uma real dificuldade dese abrir para o saber dos mitos. Eles são a dimensão mais profundado que em nós é e teima em ser. Foram-se os mitos, mas continuacom sua força onipresente: o mítico. Ele se faz presente e irrompeprincipalmente nas obras poéticas.( CASTRO, Manuel Antônio de. O canto das sereias: daEscuta à travessia poética, p.4. In:http//www.travessiapoetica.com).

Entre todas as manifestações míticas pelas quais se movem os homens, encontramos

aquela contada no livro Odisséia, de Homero. Nessa obra, percebemos o quanto o tempo

mítico e o poético se confundem. Nela, há um mito que nos conta a respeito do “Canto das

Sereias”. Embora seja apenas um pequeno conto inserido nessa grande obra de Homero,

possui uma significância muito abrangente e rica. Tão rica é que já foi alvo de diferentes

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explicações, como por exemplo, interpretações: alegóricas, simbólicas, físicas, gramaticais,

morais, teológicas, filosóficas. Faltou-nos a interpretação poética.

Como nos diz o professor Manuel:

No mito das Sereias, o real se oferta e manifesta comopalavra cantada, como Escuta, como voz do silêncio e como travessiapoética. Na travessia poética se dá o saber do não-saber de toda asabedoria.( CASTRO, Manuel Antônio de. O Canto das Sereias:Da Escuta à Travessia Poética, p.5.http//www.travessiapoetica.com).

Como travessia poética, o mítico inserido nesta passagem acaba por convidar sempre o

rito a existir, pois o poético se dá com a escrita. Sabemos que o rito está ligado àquilo que é

sagrado, àquilo que ordena o que está em desordem, no caos. Os ritos trazem a lume o que é

misterioso. Mostra-nos o que está oculto. Por isso, o mito narrado deixa de ser mito para ser o

rito do mito, uma vez que é a linguagem que fala a seu respeito. O poeta, neste sentido, é

aquele que nos traz , à semelhança dos antigos profetas , aquilo que tem origem mítica e,

portanto, poética.

No mito do Canto das Sereias, ficamos sabendo que quando Ulisses chegou à ilha,

mandou metade de seus companheiros fazerem o seu reconhecimento. Com exceção de

Euríloco, todos entram e se banqueteiam juntamente com a deusa Circe. Quando estão

saciados, Circe os toca com sua varinha e os transforma em porcos. Somente Euríloco não é

transformado por ter ficado escondido e é ele que consegue retornar e contar tudo o que

aconteceu a Ulisses. Circe consegue transformá-los em porcos por ser a deusa cujo significado

está relacionado com o círculo poderoso da natureza enquanto vida/morte. Por isso é capaz de

retirar dos amigos de Ulisses aquilo que os distingue dos animais: a linguagem ( ëüãï ò ). Para

que Ulisses possa vencer este estado de coisas, será necessário possuir esta mesma linguagem,

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e a terá com o auxílio do deus Hermes. Por isso Ulisses é capaz de reverter este estado de

coisas, pois Hermes é a própria linguagem.

O radical de Hermes ( wre ou wer ) é indo-europeu e significa palavra. Por isso , o

saber de Ulisses é mais profundo que o saber de Circe, uma vez que consegue articular ao

mesmo tempo a phýsis e o ëüãï ò. Eis a passagem em que nos é narrado o encontro de Hermes

com Ulisses:

Do caduceu me encontra, afiguradoNum gentil gracioso adolescente;Ele trava-me a destra: ‘Ignotos cerros,Mísero, andas sozinho? Os teus, quais porcos,Os tem Circe em fortíssimo esconderijo.Vens tu livrá-los? Sorte igual te espera.Antídoto haverás, que te preserveDa encantadora. Seus ardis aprende:Num misto lançará sutil veneno,Em meu remédio fia-te; ao sentiresDa vara o toque, puxa d’ante o fêmur,Como para feri-la a espada aguda;Quase o medo, ao teu toro há de invitar-te.Amores não recuses de uma deusa,Que te socorra e desencante os sócios;Mas dela exige o grande julgamento,A fim que outras ofensas não te apreste,Nem do valor te dispa e te efemine.’Da terra aqui Mercúrio extraiu a planta,E ma explicou: raiz escuta tinhaE láctea a flor os deuses móly a chamam;É-lhes fácil cavá-la aos homens custa.Foi se a ilha espessa ao grande Olimpo;Mesto e pensoso dirigi-me a Circe.(Odisséia. X,211-234. Trad. ManuelOdorico Mendes,2005:194 )

Nesta passagem, encontramos Hermes aconselhando a Ulisses como agir de modo que

consiga salvar seus amigos. Assim , Ulisses não é somente phýsis como também lógos.

Hermes está com Ulisses. O lógos está com Ulisses. Hermes e Lógos são o mesmo.

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Dessa forma, a deusa Circe passa a ser aliada de Ulisses, aconselhando-o e predizendo

o que irá lhe acontecer ( destino ). É nesse momento que lhe é narrado o mito das Sereias e é

advertido sobre o seu perigo:

Pois bem; atende agora, e um deus na menteMeu conselho te imprima. Hás de as SereiasPrimeiro deparar, cuja harmoniaAdormenta e fascina os que as escutam:Quem se apropínqua estulto, esposa e filhosNão regozijará nos doces lares:Que a vocal melodia o atrai às veigas,Onde em cúmulo assentam-se de humanosOssos e podres carnes. Surde avante;As orelhas aos teus com cera tapes,Ensurdeçam de todo. Ouvi-las podes,Contanto que do mastro ao longo estejasDe pés e mãos atado; e se absorvido,No prazer ordenares que te soltem,Liguem-te com mais força os teuscompanheiros.( Odisséia.XII, 26-40.Trad. Manuel Odorico Mendes,2005:226-227)

Interessante notar que o conselho da deusa Circe começa com um “atende agora”.

Outras traduções preferem usar o verbo no imperativo: escuta. Podemos entender, assim, que o

escutar é o mesmo que atender. Por isso, podemos afirmar que temos aqui nessa passagem

mais do que um simples “escutar”, se pensarmos apenas esta palavra em nosso idioma. Escutar

significa auscultar. Isso é reforçado logo em seguida quando a deusa deseja que um deus lhe

imprima esse conselho. Outra tradução possível é a que deseja que um deus o relembre.

Imprimir e relembrar aqui possuem o mesmo sentido. Seja como for, esse escutar só é um

auscultar porque há uma interação do ouvir com o lembrar ( memória ). Interessante notar que

esse binômio escutar/lembrar está relacionado diretamente com o tempo ( sagrado ), pois nos

leva ao encontro de algo falado em um momento e revivido, relembrado adiante. Algumas

religiões ainda conservam esse tipo de tempo sagrado através desse binômio escutar/lembrar.

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Como exemplo, temos o judaísmo que em duas passagens re-vela-nos a presença dessa

sentença mítico-sagrada: “Ouve Israel...” ( Dt 6.5 ) e “lembra-te do dia de Sábado...) Ex 20.8 ).

Evidente que tais sentenças já se encontram carregadas por uma metafísica influenciada pela

teologia. No entanto, ainda se pode encontrar nelas algo que nos relembra o vigor mítico-

sagrado.

São justamente essas duas palavras ( escutar, lembrar ) que se farão presente no mito

das Sereias.

No conselho da deusa, percebemos a ambigüidade poética presente, pois notamos o

mito falado ( pela deusa ) e ouvido ( por Ulisses ). Nessa fala e nessa escuta, adverte-se do

encontro com as Sereias. No entanto, isso só acontecerá se Ulisses “for absorvido” pelo cantar

dessas mesmas Sereias. Uma outra tradução possível seria “se quiseres” em lugar de “se,

absorvido”. O ouvir é capaz de provocar em nós um desejo, mas também pode provocar uma

renúncia a este “destino”( como se fora possível dele fugir ). Isto nos faz lembrar a narrativa

bíblica dirigida a Israel em uma outra travessia – a do deserto, onde se diz: “... se hoje

ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações...” ( Sl 95.7-8 ). No mito que estamos

comentando, o querer de Ulisses abre-se para o manifestar do próprio destino que os gregos

entendiam por ( Ì ï úñá ), ainda que o seu sentido esteja ligado mais a lote, quinhão, ou seja, o

que é próprio de cada um: cumprir o destino e apropriar-se do que é próprio.

“Sendo absorvido” ou tendo desejado, escolhido a travessia poética onde enfrentará as

sereias, Ulisses permite que se deslumbrem dois momentos desse acontecer ( êáéñüò ) poético:

um primeiro que se dá pelo mito cantado; um segundo, pelo mito narrado. Este último se dá no

momento em que Ulisses narra ( pois não podem escutar o mito cantado ) aos seus

companheiros:

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Não somente nem dois, amigos, saibamo que a deusa das deusas me predisse,Para informados ou morrermos todosOu da Parca fugirmos. Das SereiasEvitar nos ordena o flóreo pradoE a voz divina; a mim concede ouvi-las,Mas ao longo do mastro em rijas cordas,E se pedir me desateis, vós outrosDe pés e mãos ligai-me com mais força.( Odisséia, XII, 114-122. Trad.Manoel Odorico Mendes,2005:230).

Ainda:

A palavra “destino” aparece no texto como “Parca”( Latim).Parca também é, conforme

o dicionário: “Cada uma das três deusas que, segundo a Mitologia, fiavam, dobavam e

cortavam o fio da vida ( eram Cloto, Láqueis e Átropos ); ( fig. ) a morte.( FERREIRA,

Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno dicionário brasileiro da Língua Portuguesa.12ª ed. 3º

volume. Rio de janeiro, 1977:900).

A conclusão é que há uma íntima relação do destino com a morte, conforme o mito nos

narra. Ainda mais: no mito é ensinado que a travessia ( poética ), que estamos destinados a

cumprir, dá-se através de uma interação daquilo que nos é dado ( lote, quinhão ) para o qual

estamos direcionados.

Não foi assim entendido o destino dentro da nossa história. Desde que o homem passou

a denominar-se “ a medida de todas as coisas” , este tornou-se o senhor de seu próprio destino.

Podia ter o domínio da própria phýsis, explorá-la. Nada estava oculto ao seu saber. Na pós-

modernidade, o homem também experiencia um outro tipo de destino: um destino im-posto

pela própria pós-modernidade. Assim, estamos muito distantes do destino narrado pelo

próprio mito, um destino poético e mítico presentificado, manifestado pelas Ì ï úñáé ( Parcas

em latim ).

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Mas, afinal, o que é Ì ï úñá?

Segundo Heidegger:

Nomeia-se a Moira, a partilha, que resguardando dá aspartes e, assim, desdobra a dobra. A partilha destina ( provê epresenteia ) com a dobra. Ela é a destinação, em si reunida e queassim se desdobra, do vigorar enquanto a vigência do vigente.Ì ï úñá é o destino do “ser” , no sentido de åüí .( Heidegger, 2002:223).

Esta dobra se dá no limiar do “entre” ser e ente. Não se deve jamais tomar um deles de

per si.

Ainda com relação à Ì ï úñá, o professor Manuel dirá:

A palavra Moira significa parte, lote, o quinhão partilhado.A Moira, enquanto quinhão partilhado, perpassa toda a realidade e sópode ser apreendida ambiguamente como o próprio vigor darealização da identidade ( ipseidade ) e diferença ( alteridade ) (...).(...) A Môira, ambiguamente, constitui cada Deus ( génos/centro ) e oultrapassa, na medida em que ela se identifica com a vontade deZeus, que procedeu à grande partilha, à doação de cada Moira ( parte,quinhão partilhado ). Tal vontade determinou, determina edeterminará o que cada um é ( génos/centro) a partir do doado nagrande partilha.( CASTRO, Manuel Antônio de. O cantodas Sereias: da escuta à travessia poética, In:www.travessia poetica.com).

Nesse sentido, dizemos que a Moira caminha na ambigüidade. Primeiro porque se dá

na dobra que, como “entre” se des-dobra. Segundo porque se dá quando o agir liberta

enquanto escuta do que se é: a Moira. Esse agir é ambíguo, pois se dá no momento em que

chegamos a ser o que já somos e não-somos.

Portanto, através dessa Ì ï úñá, o homem consegue viver a sua ambigüidade poética, é

capaz de se deixar lavar pelo saber e o não-saber, porque isso é a poiésis: a própria

ambigüidade do saber, não-saber; ser, não-ser.

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7.2 - O Real e a Phýsis/Ser

As questões que envolvem esse trabalho estão intimamente relacionadas, de modo que

não se pode falar de uma sem que outras sejam também citadas. Falamos da phýsis. Dissemos

que os gregos que viveram o tempo ( sagrado ) mítico não possuíam uma palavra com a qual

explicassem o significado de real, mas a compreendiam como phýsis: a reunião de todos os

entes. Assim, tudo o que podia ser imaginado, tocado, visto, quer fossem os homens, quer os

deuses ou mesmo plantas, tudo era considerado real para eles.

Não havia a necessidade de se fazer a pergunta: o que é real?. Eles já a

experienciavam. Dissemos também que somente quando o homem resolve discutir sobre essa

questão, surgindo com isso uma tentativa de compreendê-la à luz de um novo conhecimento (

åðéóôÞµç ) , é que temos a metafísica. Com os pensadores originários, começou-se a

questionar e a perguntar sobre o ser e sobre a origem de todas as coisas. (áñ÷Þ ). Cada um dos

pensadores trouxe uma resposta para o significado de “princípio”. Sendo várias as possíveis

respostas para a nossa questão inicial ( o que é o real? ) , não podemos afirmar que uma é mais

certa do que a outra. O afastamento da ambigüidade mítico-poética gerou uma aproximação a

definições que nos levariam a postulados ideologicamente trabalhados, mudando a concepção

do real. O real já não é mais a reunião de todos os entes, conforme no pensamento mítico, mas

algo que o homem consegue transformar com a ajuda da técnica.

Tal transformação chegou até os nossos dias, de modo que, se perguntarmos a alguém

hodiernamente sobre a questão do real, teremos uma resposta totalmente diferente daquela

experiencia pelos gregos do pensamento originário.

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Como esses pensadores originários tinham a phýsis como a reunião de todos os entes,

em grego on, ontos, particípio presente do verbo åßí áé, tal compreensão ficou ligada

diretamente com a questão do Ser, pois åßí áéé o infinitivo do verbo ser.

No entanto, a questão parece apenas mudar de “endereço” , pois continuamos a

perguntar: o que é o Ser? E o não-Ser? Na impossibilidade de termos uma resposta satisfatória

para todas as questões, consideramos a ambigüidade a melhor de todas as alternativas, dando

abertura para o vigor do real em nossas vidas.

Interessante notarmos, também, que entendemos o Ser como aquilo que sempre é, sem

variação, sem mudança, o essente. Por isso, o estar, já não poderia ser considerado Ser dentro

dessa compreensão, pois estar pressupõe estado, passagem, algo que está sempre em mudança.

Estamos diante de um impasse. Artur da Távola escreveu uma crônica a respeito desse

impasse: O Ser e o Estar. Ele nos diz:

Eu creio que você vai me entender: a gente nem sempre é aposição em que está. Falei claro? A gente foi a posição em que está.Ao assumi-la a gente já mudou. A posição em que a gente está, écondicionada por causas temporais e passageiras. Por justa, linda egenerosa que seja, a posição em que se está é sempre muito menos doque a gente é. A gente é um composto que inclui, entre outras coisas,a posição em que está. Estar é parar. Ser é avançar.

Você crê numa coisa. Toma posição ao lado dela. Faz muitobem! Mas não englobe nem comprometa todo o seu ser, pois você émuito mais rico e complexo do que a posição na qual julga terencontrado resposta para todos os seus problemas naquele instante.

Você é, inclusive, a negação da posição em que está. Ela e anegação dela compõem o que você é. Mas, a posição em que vocêestá precisa negar tudo o que não esteja de acordo com ela.Principalmente o ser, pois ser é sempre mais livre. Já estar é maiscômodo. Porque estático. Estático é a condição do que está.

Quanto menos confiança na posição em que você está,. Maisacirrado em sua defesa você será. Quanto mais você perceba que émuito mais do que a posição em que está, mais ameaçado por elaficará.(...)

(...) O estar é uma categoria do ser. É possível ser sem estar.Porque ser é abrangente, é total. Não é possível, porém, estar semser. O máximo que é permitido ao estar é coincidir, por vezes, com oser. O ser pertence ao cosmos. O estar pertence ao momento. O ser énecessário. O estar é contingente.

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A posição em que você está é a expressão momentânea dosseus humores, das suas necessidades e das suas influências que vocêsofreu. Passará e mudará na medida em que elas mudarem. O quevocê É pertence a uma ordem diversa de valores, feita dos mistériosou verdades de sua vida; das suas partes desconhecidas; dasrevelações; das partes sabidas; das suas relações com o amplo, ototal, o uno, o completo.

No mundo das aparências ser é menos sedutor do que estar.Estar é viver cercado de acólitos, seguidores, aplaudidores,justificadores, beneficiários, companheiros. Ser é solitário.

Eu venho do tempo dos que estão. Dos que desistiram de serpara estar. Todos com o melhor dos propósitos e as mais elevadasteorias de solidariedade humana, mas muitos ‘estando’ e poucos‘sendo’. O tempo de quem desistiu de ser para estar gerou guerras,destruições, deixando como herança, apenas e tão-somente, umaprofunda vontade de Ser; porque a gente é sempre mais do que aposição em que se está.

Eu mudo sempre. Por isso sou ALGUÉM QU JÁ NÃO FUI.Alguém que pretende estar apenas e até onde conseguir ser. Pouco.Mas todo.( TÁVOLA, 1978:11,12)

Pensamos o estar como sendo aquilo que passa e o ser como aquilo que é, o essente.

Artur da Távola, em certo momento, inverte a concepção que temos do ser e do estar, dizendo

que estar é parar e ser é avançar. Avançamos quando nos abrimos para o “entre” do ser e do

ente. Avançamos quando somos e não somos, porque sou no momento em que não sou.

Assim, se a todo momento estamos deixando de ser, pelo movimento, podemos afirmar que

somos e não somos ao mesmo tempo. O Ser é e não é ao mesmo tempo! O Ser é no momento

em que se mostra e não é no momento em que se oculta. Por isso mesmo, não sabemos o que é

o Ser, pois quanto mais sabemos, menos sabemos, pois não nos foi mostrado todo o seu vigor.

Há, portanto, uma latência e uma patência em torno do Ser. Por isso mesmo, o Ser é ambíguo.

O Ser é como o horizonte, quanto mais o contemplamos, por avançar, menos o conhecemos,

por aquilo que se ocultou de nós.

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Artur da Távola relaciona o Ser com o cosmos e com o Uno. Relacionar com o cosmos

e com o Uno é o que os pensadores originários faziam quando experienciavam a phýsis. Daí

sermos como liminaridade, como e no “entre”.

Outra coisa interessante no texto é a afirmação do seu escritor de que o pensar no

‘estando’ e esquecendo o ‘sendo’ trouxe conseqüência desastrosas para a vida. Evidente que

com isso, passamos a prender-nos a “ismos” que passam e, por isso, estão relacionados com o

‘estando’ e não com o ‘sendo’.

Afirmamos acima que é impossível falarmos de uma das nossas questões iniciais sem

tocarmos em outras, por causa da íntima relação entre elas. Por exemplo, tomemos o pensar.

Para os pensadores originários, ser e pensar estavam profundamente ligados com aquilo que se

apresenta, que brota: a phýsis. O pensar não era uma atividade ou faculdade em si, como

costumamos “pensar” hoje. O ser e pensar estão unidos no sentido do que tende a opor-se ,

isto é, são o mesmo como pertencentes um ao outro num único conjunto.

Outro aspecto importante a ser comentado é o que significa no Fragmento ee Heráclito:

A Natureza ama esconder-se?. A palavra Natureza aqui em grego é phýsis ( o ser, o aparecer

que surge, o emergente, o desvelar-se ). O verbo esconder-se ( krypthestai ) significa aquilo

que se inclina ao ocultamento, o velar-se. Uma possível tradução, portanto, seria: “o Ser( o

desvelar-se ) tem em si a inclinação para o velar-se”. Assim sendo, o Ser é a própria re-

velação. Portanto, Ser e não ser, ocultar e não ocultar, verdade e ëüãï ò, todas estas palavras

estão relacionadas umas com as outras, todas falam da nossa ambigüidade , por isso mesma,

poética.

Artur da Távola, ao citar sua compreensão do Ser e do estar, diz-nos que o permanecer

no ‘estar’ trouxe à humanidade uma série de prejuízos, dentre os quais temos as guerras. No

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entanto, o fato de não ficarmos parados, por corrermos o risco de permanecer estáticos, não é

a mesma coisa que andar apressadamente, como se assim atingíssemos a plenitude do Ser.

Talvez seja necessário dizer que uma coisa é estar e outra é estar indo. Estar indo significa ir

ao encontro do Ser, pois assim experienciamos o ser vigor, uma vez que estar indo é a

experiência que nos conduz ao Ser no momento em que deixamos de ser, por estarmos indo.

Mesmo assim, esse estar indo não pode ser algo apressado. Há um quê de virtude em se

aprender com a vagareza. Vejamos como Rubem Alves comenta esse assunto sobre o tema: A

pedagogia dos caracóis:

(...) Caracol tem a pedagogia de ensinar? O autor conta osucedido com uma menininha que, ao voltar para a casa, queixou-se:‘Mamãe, os professores dizem ‘É preciso andar rápido, nada devagareza, para frente, para frente. Mamãe, onde é a frente?’. E aí elepassa a falar sobre a virtude pedagógica da vagareza. Pode ser que“chegar na frente” não seja tão importante assim! Quem sabe ‘estarindo’ seja mais educativo que chegar!

No ‘estar indo’ aprende-se um jeito de ser. Nietzsche se riados turistas que subiam as montanhas como animais, estúpidos esuados. Não haviam aprendido que há vistas maravilhosas nocaminho que sobe... Riobaldo acrescentaria: ‘O real não está nem nasaída e nem na chegada; ele se dispõe na travessia.’ (...)

(...) As notícias dos jornais são escritas depressa. Por issotêm curta duração. Mas a poesia se escreve devagar. Por isso ela nãoenvelhece. Inventaram a monstruosidade chamada leitura dinâmica.Ela pressupõe que um texto é feito de poucas idéias centrais, tudo omais sendo encheção de lingüiça. A técnica da leitura dinâmica é irdireto às idéias centrais, desprezando o resto como lixo.

Já imaginaram sexo dinâmico, que dispensa os ‘entretantos’e vai direto ao ‘finalmente’? Essa é uma maneira canina de fazeramor. Mas não é isso a que os jovens são obrigados quando, ao sepreparar para o vestibular, se põem a ler ‘resumos’ de obrasliterárias? Um resumo é o resultado escrito de uma leitura dinâmica.É preciso ler tendo a lesma como modelo...

Devagar. Por causa do prazer. O prazer anda devagar. Vocêleu esse artigo dinamicamente ou lesmicamente? ( Alves, 2005:66 ).

Curioso notar que tal comentário de Rubem Alves ainda nos remete a dois assuntos: a

arte ( técnica ) e ao tempo. A crônica de Rubem Alvez , ao comentar sobre o acontecer

poético, remete-nos ao tempo da poiésis a ser comentado adiante. No que concerne à arte,

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Rubem Alves nos fala entre outras coisas sobre o sexo. O homem é o único ser capaz de fazer

com que o sexo se torne arte e por isso mesmo poético. Arte está relacionada com o tempo

poético. Os animais fazem sexo por procriação, por conservação das espécies. O homem é

capaz de transformar o sexo em arte, através do erótico. O erótico é arte! Faz-se necessário,

agora, falarmos sobre outra questão: o Tempo. Essa é o próximo assunto de nosso trabalho.

7.3 - O Real e o Tempo.

Uma outra questão diretamente relacionada com o real é o tempo. Afinal de contas, o

que é o tempo?

O nosso idioma possui apenas uma palavra para expressar o significado de tempo. Com

ela, nós entendemos o tempo cronológico, o tempo diário ( se faz calor, sol, se chove, etc. ) e o

tempo mais relacionado com a História, assunto de que falaremos adiante.

A verdade é que isso é uma experiência mais imediata, mais comunicativa. No entanto,

não devemos entender que todos possuem as mesmas experiências que nós. Em outros

idiomas, encontramos outras formas de se entender o tempo e com palavras diferentes. Em

Inglês, por exemplo, temos duas palavras: weather e time. A primeira dessas palavras está

diretamente relacionada com o clima ( se chove, se o tempo está nublado, etc. ). Já a segunda

está relacionada com época, hora, vez, etc. Esta segunda já possui várias possibilidades de

significação.

Os gregos também possuíam suas palavras para expressarem o significado de tempo.

Pelo menos três palavras eram utilizadas: ÷ñüí ï ò ( relacionado mais com questões como

passado, presente e futuro e também utilizada para a compreensão da nossa palavra

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cronologia, ou tempo cronológico ), áéþ í ( relacionado com épocas, também utilizada , por

exemplo, no Cristianismo para se referir à vida eterna ou qualidade de vida ) e êáéñüò (

relacionado ao clima, ao acontecer e, por isso mesmo, utilizado por nós para a compreensão

do acontecer poético).

A questão do tempo é algo tão interessante e importante que foi discutido por muitas

pessoas. Para uns, o tempo é cíclico; para outros, linear. O Cristianismo o tinha como linear,

pois segundo sua concepção, Deus criara o mundo, que teria uma certa duração e, por fim, sua

consumação com o retorno do Cristo e a inauguração da vida eterna.

Na verdade, não sabemos o que é o tempo. Os gregos o relacionavam ao movimento. O

próprio Aristotelismo , ao falar sobre as quatro causas, ou mesmo Tomás de Aquino, quando

relacionou essas causas, apontando para Deus como a causa eficiente e final, deram indícios

da íntima relação do tempo com o movimento. Newton também deixou-nos esse legado, ao

elaborar suas leis de inércia. Não podemos olvidar, inclusive, que é na matemática que

encontramos a fórmula relacionada ao tempo: e = v.t.

Mesmo assim, homens como Santo Agostinho alegaram que só entendiam o tempo no

momento em que não fosse inquirido sobre o assunto, pois, caso acontecesse a pergunta, não

saberia como explicá-la. Modernamente, alguns físicos têm chegado a declarar que o tempo é

uma invenção e, portanto, não existe.

Na impossibilidade de uma resposta convincente sobre o assunto e no risco de uma

dessas respostas sobre-por a outras ideologicamente, como acontece na pós-modernidade,

parece que a ambigüidade do tempo é mais satisfatória que uma afirmação ideológico-

metafísica.

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Falamos a respeito do mito e da poiésis. Dissemos que a poiésis está mais próxima do

mito, justamente por causa de sua ambigüidade, do uso de sua linguagem. O mito relaciona o

tempo com a origem de todas as coisas, do caos ao nascimento dos deuses e seus poderes

soberanos. Os gregos do pensamento originário, relembravam esse tempo inicial através de

seus rituais. A essa lembrança , cabia ao sacerdote a incumbência de “trazer” à memória do

povo. Por isso:

É preciso esperar o trabalho de interpretação do sacerdotepara que o labor se complete, em seu todo. Existia no alemão antigouma palavra para designar o conceito de “completo” ( vollständig )ou de “todo” ( ganz ); essa palavra, que pouco mudou de significadono médio alemão clássico e só conservou seu sentido original nobaixo alemão e no holandês, é heil. Não se poderia caracterizarmelhor o trabalho do sacerdote do que dizendo que é heil, isto é, são,já que esta palavra indica, ao mesmo tempo, o segundo aspecto desua atividade. Ao interpretar o universo, o sacerdote torna-o são, istoé, completo, inteiro, sanus. Mas, ao dar-lhe saúde, torna-o santo. Paraque uma coisa seja coerente e persistente, importa conferir-lhe, desdeo início, um sentido sagrado. O primeiro dia do ano novo é sagrado,assim como o reinício das aulas. ( JOLLES,1976:23).

É possível encontrar vestígios desse “tempo sagrado” em algumas religiões atualmente.

Tomemos como exemplo o Judaísmo.

Sabe-se que todo o primeiro fruto da terra, toda a fazenda conseguida, suas primícias

eram entregues ao sacerdote. O próprio Judaísmo possui uma palavra que nos lembra a relação

existente entre o santo, o são, o sagrado: shalom, palavra oriunda do verbo leshalem (

completar , em Hebraico ) que indica idéia de plenitude .

Essa palavra , traduzida por paz, tem um significado muito mais profundo do que

apenas esse significado. Shalom também significa aquilo que é próspero, completo, saudável,

ou seja, aquilo que é pleno. Tal significado está intimamente relacionado com o heil alemão

que, por sua vez, nos remete a heal ( curar ) em Inglês. Seu substantivo é healing ( cura ).

Estar curado, é estar livre, é estar são. Estar são é estar intimamente ligado ao sagrado

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experienciando o acontecer ( êáéñüò ) poético. Ao falarmos de cura, não podemos olvidar de

relacioná-lo á palavra latina: cura. Cura é cuidado. Por isso:

Cuidado se diz em latim “cura”. Toda a pro-Cura é umamanifestação da “ cura”, do Cuidado. Talvez com CURA ( cuidado )se dê a CURA de muitas fobias, traumas e limites que temos, porquea cura de toda pro-cura nos põe frente a frente com o tu e com o quedesde já sempre somos em vista de nos apropriarmos do que nos épróprio. ( O MITO CURA: O APELO E ESCUTA DAPROCURA. IN: http// www.travessiapoetica.com).

A função do sacerdote é, portanto, a pro-cura que se transforma em escuta, em Cura. O

sacerdote é capaz de experienciar o real de uma forma outra que não somos ( ainda ) capazes

de fazê-lo. Ao sacerdote, à semelhança de Ulisses, foi-lhe dado o direito de uma escuta

especial. Nós, à semelhança dos amigos de Ulisses, experienciamos o real de outra forma e

quem sabe o nosso quinhão ( Ì ï úñá ) não é experienciarmos da mesma forma que o

sacerdote?

Falar em cuidado, é falar de 4 possibilidades de entendimento dessa palavra:

A – O cuidado profissional: Temos a necessidade de sobrevivência num mercado cada

vez mais competitivo e, por isso, o motivo do nosso cuidado profissional.

B – O cuidado afetivo: Por sermos categoricamente e essencialmente um diálogo,

temos a necessidade desse cuidado afetivo, pois podemos ser convivência e compaixão pelo

outro.

C – O cuidado do Ser: Aquele que nos freqüenta sempre na tensão VIDA/MORTE.

Esse cuidado nos aponta para o cuidado de amar, pois nele é que se dá a CURA.

D – O cuidado do sagrado: O sagrado é o originário de todo o mito, que, conforme o

nome diz, é mistério. No entanto, o sagrado não é originário de todo o mito apenas, mas

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também de toda a poesia, de toda a religião, dando-se e manifestando nos ritos. Esse cuidado,

porque misterioso, dá-se como escuta e voz da linguagem.

Esse último cuidado , por ser originário , está diretamente relacionado ao tempo, o

tempo sagrado.

Se existe o tempo sagrado, existe também o tempo profano. Chamamos de tempo

profano, o tempo linear irreversível, o tempo construído por diferentes formas metafísicas e

ideológicas. O tempo sagrado é o tempo original, o tempo con-sagrado que origina o

sacerdote e dá sentido às suas ações. Esse tempo é reversível, pois nos convida a

experienciarmos , revivermos e atualizarmos um tempo mítico por natureza. O tempo sagrado

é reversível porque é um tempo mítico primordial tornado presente. E como podemos tornar

presente um tempo mítico do qual temos dificuldades de atingir?

As religiões dos primórdios conseguiam reviver esse tempo sagrado, manifestado

como rito e mito. Toda festa religiosa, todo tempo litúrgico, presentifica a reatualização de um

evento sagrado que teve lugar num passado mítico, “nos primórdios”. Tal festa religiosa era

responsável por nos “tirar” da duração temporal “ordinária” e a reintegrar no tempo mítico

reatualizado pela própria festa – o extraordinário.

A conclusão é, portanto, que o tempo sagrado não somente é recuperável, como

também indefinidamente “repetível”. ( no que é sempre original porque originário ).

Algumas religiões ainda experienciam resquícios desse tempo sagrado, como o

judaísmo e o cristianismo. Os judeus, por exemplo, revivem o tempo festivo através de suas

festas como: rosh – hashaná ( ano novo ), pesach ( páscoa ), etc.

Interessante notar que a palavra shanah ( ano ) em hebraico , segundo os cabalistas

possui a seguinte numeração: shin: 300 , nun : 50 e he: 5, totalizando, 355 que é o número de

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dias do ano segundo o calendário lunar judaico. No que concerne à festa do pesach ( páscoa ) ,

os judeus revivem a escravidão do seu povo nas mãos de Faraó e sua libertação, bem como a

forma amarga como saíram da terra do Egito. Toda vez que revivem essa experiência trazem

para si um tempo reversível, por isso mesmo sagrado.

O cristianismo também experiencia esse tempo sagrado através da vida de Jesus de

Nazaré , considerado Filho de Deus. Por isso:

Para o homem religioso, ao contrário, a duração temporalprofana pode ser “parada” periodicamente pela inserção, por meiodos ritos, de um Tempo sagrado, não-histórico ( no sentido de quenão pertence ao presente histórico ). Tal como uma igreja constituiuma rotura de nível no espaço profano de uma cidade moderna, oserviço religioso que se realiza no seu interior marca uma rotura naatual que é presente – o tempo que é vivido, por exemplo, nas ruasvizinhas - , mas o Tempo em que se desenrolou a existência históricade Jesus Cristo, o tempo santificado por sua pregação, por suapaixão, por sua morte e ressurreição. É preciso, contudo, esclarecerque este exemplo não explicita toda a diferença existente entre oTempo profano e o Tempo sagrado, pois, em relação às outrasreligiões, o cristianismo inovou a experiência e o conceito do Tempolitúrgico ao afirmar a historicidade da pessoa do Cristo. A liturgiacristã desenvolve-se num tempo histórico santificado pela encarnaçãodo Filho de Deus. O tempo sagrado, periodicamente reatualizado nasreligiões pré-cristãs ( sobretudo nas religiões arcaicas ), é um Tempomítico, quer dizer, um Tempo primordial, não identificável nopassado histórico, um Tempo original, no sentido de que brotou ‘derepente’, de que não foi precedido por outro Tempo, pois nenhumTempo podia existir antes da aparição da realidade narrada pelo mito.( ELIADE, 2001:66 ).

Por ser um tempo reversível, podemos chamá-lo de tempo ontológico, parmenidiano,

pois é sempre o mesmo – muda e permanece.

O homem não religioso é capaz de experienciar também esse tempo descontínuo. Eles

também possuem o seu tempo festivo, também vive tempos intensos e variados quando, por

exemplo, escuta sua música preferida, ou, apaixonado, espera ou encontra a pessoa amada.

Ele, dessa forma, também é capaz de experienciar um tempo diferente daquele que ele vive

enquanto trabalha ou se entendia.

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No que concerne ao homem religioso, este é capaz de “parar” o tempo profano pela

inserção do tempo sagrado e o faz através dos ritos. Portanto, os ritos trazem a lume o mito.

Isso só pode ser feito porque existe um tempo primordial, um tempo originário, o tempo dos

deuses, o tempo mitológico. Por isso:

...para o homem religioso das culturas arcaicas, toda criação,toda existência começa no Tempo: antes que uma coisa exista, seutempo próprio não pode existir. Antes que o Cosmos viesse àexistência, não havia tempo cósmico. Antes de uma determinadaespécie vegetal ter sido criada, o tempo que a faz crescer agora, darfruto e perecer, não existia. É por essa razão que toda criação éimaginada como tendo ocorrido no começo do Tempo, in principio.(IBID., p. 69 ).

Se falamos a respeito de um Tempo que existe antes de todas as coisas criadas , pois

antes que houvessem tais coisas, seu próprio Tempo não poderia existir, então dizemos que

este mesmo Tempo está diretamente relacionado com a Phýsis. A Phýsis é a reunião de todos

os entes que vieram a existir e, portanto, se existem, o seu próprio tempo existe. Neste sentido,

O tempo , a Phýsis, o Lógos são o mesmo. O Tempo e o Ser são o mesmo. Não pode haver Ser

se não há o Tempo e não pode haver o Tempo sem que haja o Ser. Por isso, falamos a respeito

de um Tempo originário-mítico. Como sabemos, o mito depende do rito para que possa ser

manifesto. Dessa forma, o rito está para o mito assim como a linguagem está para a poiésis.

Ora, o mito só pode ser “lembrado” por meio da escrita. A escrita é uma forma de rito. A

escrita é o rito da poiésis. Falamos agora de pro-dução. Produção é poiésis e nos lembra a

técnica. Adiante falaremos da relação da poiésis com a técnica. O que nos interessa agora é

falarmos sobre a escrita poética. Para que essa escrita se torne manifesta, ou seja, para que ela

des-cubra o que está encoberto ( Ser ) é necessário que uma outra forma de tempo se

manifeste: o êáéñüò. Esse é o tempo do acontecer poético. O tempo que é capaz de des-cobrir

o que está encoberto. Ele é o que nos re-vela a que ama encobrir-se: a Phýsis. O poeta é o que

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está sensível a esse acontecer, é aquele que recebe o quinhão ( Moira ) daquilo que se

manifesta no momento em que se oculta, é aquele que é capaz de experienciar o que lógos ex-

põe no momento em que se dá o homologéin.

7.4 - O Real e a memória

Esta é mais uma das questões a serem discutidas em nosso trabalho. Afinal de contas, o

que é a memória? Existe alguma relação entra a memória e o real?

Em nosso mundo, podemos perceber a utilização da memória para outras finalidades.

Ironicamente, o significado de memória parece ter sido “esquecido”, pois seu entendimento ,

agora, é outro, diferente do seu significado original. Atualmente, utilizamos a memória para

leitura dinâmica, onde apreendemos aquilo que é mais importante, o sumo, a “essência” de um

determinado assunto. Utilizamos da memória como memorização de notas musicais, fórmulas

matemáticas, enfim, para a justificação de um sistema.

A memória não foi assim concebida no pensamento originário. Não era algo que você

poderia “acessar” no momento em que quisesse, como se em você houvesse um “arquivo”

onde todas as informações estavam disponíveis a qualquer momento. Não. A memória

também está diretamente relacionada com a Phýsis, o Lógos, a História, e o Tempo. Para

Heidegger, A memória é “ a concentração do pensamento” ( HEIDEGGER, 2002:111).

Mas, o que significa concentração do pensamento? Em relação a quê?

Necessário se faz irmos ao encontro do Mito de Mnemosýne. Esta é filha do Céu e da

Terra e Noiva de Zeus. Ela torna-se em nove noites a mãe das musas. Por isso, a respeito de

Mnemosýne, Heidegger dirá:

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Jogo e dança, canto e poesia são os rebentos de Mnemosyne– da memória. Evidentemente, a palavra memória evoca aqui, outracoisa do que somente a capacidade imaginada pela psicologia deconservar o passado na representação. Memória pensa o pensado.Mas o nome da mãe das musas não evoca “memória” como umpensar qualquer em qualquer algo pensável.. Memória, é aqui, aconcentração do pensamento que, concentrado, permanece junto aoque foi propriamente pensado porque queria ser pensado antes detudo e antes de mais nada. Memória é a concentração do pensar dalembrança daquilo que, antes de tudo e antes de mais nada, cabepensar. Esta concentração guarda junto de si e abriga em si o que,sempre e antes de mais nada, permanece e se anuncia como o a-se-pensar em tudo o que anuncia como o vigente e o vigor de ter sido.Memória, o pensar concentrado da lembrança do que cabe pensar, é afonte da poesia. Por isso, o modo próprio do ser da poesia se fundano pensar. Isto nos diz o mito, ou seja, a saga. Seu dizer evoca omais antigo. O mais antigo não somente porque, segundo a ordemcronológica, é o mais anterior, mas porque, desde sempre e parasempre, e segundo seu modo próprio de ser, permanece o mais dignoa se pensar.(HEIDEGGER, 2002: 118).

O que podemos notar nesta passagem, é que a memória é mais profunda do que a

própria capacidade de conservar o passado. Esta está relacionada , nesta passagem, com a

linguagem, com o tempo, e com a Phýsis. Com a linguagem, porque ela é a fonte da poesia ,

conforme nos diz o texto. Sabemos que poesia por ser Poiésis está ligada ao Lógos. Lógos é

Poiésis. Se Poiésis é Memória, Lógos também é memória. No entanto, sabemos que o Lógos e

a Phýsis são o mesmo. A Phýsis, como reunião de todos os entes, é capaz de se mostrar no

momento em que se oculta, pois ama esconder-se, como afirmava Heráclito. Ainda dizemos

que a memória está diretamente relacionada com o Tempo. Ela, a memória, é mais anterior e,

conforme o texto diz, desde sempre e para sempre, segundo o seu modo de ser, é digna de ser

pensada. A memória como aquela que pensa o pensável nos remete àquele Tempo originário e

nos convida a relembrar, no e pelos ritos, o mito desse Tempo originário, do Sagrado. Assim

como o rito é a linguagem do mito, o Lógos é a linguagem da Poiésis. Em ambos os casos,

pelo rito ou pela linguagem ( Lógos ), a memória está atuando em seu vigor diretamente.

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Ainda podemos relacionar a memória com a verdade. O que é a verdade? Já discutimos

isso anteriormente. Mostramos como o significado de verdade foi alterado filosofica e

semanticamente com o passar do tempo. Dissemos que a verdade é uma espécie de veículo

que justifica o sistema de uma determinada época.

No entanto, se buscarmos um entendimento de verdade no pensamento originário,

perceberemos que o seu agir se confunde com a própria memória. É que verdade em grego é

Alétheia. Essa palavra vem da raiz grega Léthe, a deusa do encobrimento ou do esquecimento,

do velamento. A presença do a ( alfa ) antes da raiz Léthe é um prefixo de negação. Verdade,

portanto, é o não-encobrimento, não-esquecimento, não-velamento. Assim, a não-verdade é o

fundamento de toda a verdade. Ora, uma de suas facetas, é o não-esquecer, ou seja, o que vem

à memória, a lembrança. Verdade é memória.

Toda a lembrança só se dá porque há um esquecimento. Vivemos, assim, nessa

ambigüidade. Só lembramos de algo porque está esquecido e só esquecemos de algo porque

antes fora lembrado. Memória, portanto, é a lembrança daquilo que foi esquecido. Mas, não

lembramos de tudo e nem permanecemos com o lembrado em evidência. Poderíamos dizer

que quanto mais nos lembramos, mais nos esquecemos da mesma forma que quanto mais

enxergamos o horizonte, mais oculto ele se torna naquilo que foi olhado. No mito da caverna

de Platão, aquele homem ( outrora acorrentado ) só pôde enxergar o sol no momento em que

este lhe causou cegueira. Somos capazes de ouvir o que é silencioso e permanecermos surdos

ao que está sendo falado com o órgão da fala, por exemplo, pois tal órgão é capaz de emitir

sons e nem por isso podemos entendê-los.

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Justamente porque a memória é ambígua, ela é poética. Por isso esta nos remete às

questões originárias: o Tempo, a Linguagem, a Phýsis e a História, que é o nosso próximo

assunto.

7.5 - O Real e a História

Um dos sentidos para o significado de real é a concepção de que ele envolve o passado,

o presente e o futuro, Assim, ele está relacionado com o próprio tempo. Tempo, nos lembra

movimento e acontecimentos ( históricos ).

Nesse sentido, a história está diretamente relacionada com a questão do tempo.

Mas, o que é a história? Eis mais uma das grandes questões.

Confundimos história , por exemplo, com historiografia. Aprendemos desde crianças

acontecimentos que nos trazem uma espécie de “desejo de nacionalidade”. Através da história,

conhecemos os nossos “heróis” que construíram a nossa nação. Sequer questionamos a

veracidade das informações contidas nesses registros históricos. Assim, por exemplo,

acreditamos fielmente num “brado heróico” feito por D. Pedro I, decretando a nossa

independência.

Existiria alguma ideologia nisso a fim de justificar um sistema vigente numa dada

época? Devemos acreditar fielmente naquilo que está registrado? As palavras são capazes de

nos deixar escrito aquilo que aconteceu fielmente?

Muitos filósofos, inclusive, questionaram a veracidade de informações contidas em

registros. Não confiavam na escrita. Platão, por exemplo, possuía um corpo de doutrinas que

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somente alguns privilegiados eram capazes de saber, pois temia que seus ensinos fossem

alterados, caso fossem registrados.

Podemos com isso, entender que a escrita, por usar palavras, é plurissignificante.

Uma pessoa é capaz de entender algo que está escrito e, se outra pessoa vier a ler o

mesmo livro, poderá ter outro entendimento. E mais, uma mesma pessoa que vier a ler o livro

mais de uma vez em tempos diferentes, terá a surpresa de compreender tal obra

diferentemente. É provável, inclusive, que diga: “Nossa, tenho a sensação de nunca ter lido

esse livro antes!”.

De certa forma, relacionamos a História à escrita. Mas, a pergunta que não quer calar é:

o que é a História?

Diferentes respostas foram dadas no decorrer do tempo para esta questão. Por exemplo,

o pensamento judaico-cristão relacionava a História ao Tempo. No entanto, este tempo era

linear a tinha como consumação de todas as coisas a vida eterna. Tal entendimento apontava

para a História da salvação. Portanto, a História assim compreendida, colocava a

responsabilidade ora em Deus ( predestinação ) , ora no homem ( livre-arbítrio ) pelo seu

próprio destino. Esse conceito histórico influenciou em muito aos ideais modernistas que , aos

poucos, colocou o homem como o Senhor de seu próprio destino, ou seja, aquele que é capaz

de construir a sua própria História – o “agir” em direção ao progresso.

No final do século XIX, outras concepções foram sendo dadas ao conceito de História.

Uma vez que a História está relacionada com o próprio real, este também passou a ser

questionado.

Marilene Chauí, ao comentar sobre o real diz:

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O real não é constituído por coisas. Nossa experiênciadireta e imediata da realidade nos leva a imaginar que o real é feitode coisas ( sejam elas naturais ou humanas ) , isto é, de objetosfísicos, psíquicos, culturais oferecidos à nossa percepção e às nossasvivências.

Assim, por exemplo, costumamos dizer que uma montanhaé real porque é uma coisa. No entanto, o simples fato de que essa“coisa” possua uma nome, que a chamemos de “montanha”, indicaque ela é, pelo menos, uma “coisa-para-nós”, isto é, algo que possuium sentido em nossa experiência.

Suponhamos que pertencemos a uma sociedade cuja religiãoé politeísta e cujos deuses são imaginados com formas e sentimentoshumanos, embora superiores aos dos homens, e que nossa sociedadeexprima essa superioridade divina fazendo com que os deuses sejamhabitantes dos altos lugares. A montanha já não é uma coisa: é amorada dos deuses( CHAUÍ, 1984: 16,17 )

Evidente que Marilene Chauí não é uma escritora do século XIX, mas nos aponta para

um entendimento do real que tem suas origens no século XIX, o Marxismo. Marx

compreendia que havia apenas uma ciência: a ciência da História. Esta poderia ser dividida em

dois aspectos: a história da natureza e a história dos homens. Esta última interessava de perto a

Marx que a compreendia como um conhecimento dialético e materialista da realidade social. (

o que é Ideologia, 1984, 35 ). Sendo assim, o homem é o próprio senhor de sua história, com

apenas um acréscimo – tudo gira em torno de interesses materialistas. Tal concepção da

História nos leva para o “ agir” humano, com uma finalidade – a produção. Por isso:

A história não é uma sucessão de fatos no tempo, não éprogresso das idéias, mas o modo como homens determinados emcondições determinadas criam os meios e as formas de sua existênciasocial que é econômica, política e social.( IBID., p. 20 ).

A histórica entendida dessa forma ainda está relacionada com o real, mas não o real do

pensamento orginário-mítico. O real aqui é aquele em que os homens são capazes de

transformá-los a fim de atenderem aos seus interesses econômicos, políticos e sociais, ou seja,

um real metafísico, porém, não o poético. Esse real, porque produzido pelo homem, está

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relacionado com o “agir” e, portanto, com a técnica, e nem por isso deixando de ser

ideológico.

Ainda temos o histórico visto sob a ótica da pós-modernidade. A história dura

enquanto houver ciência. Na realidade , experiencia-se uma nova concepção da histórica

relacionada com o tempo. Por isso:

...a pós-modernidade gesta uma nova experiência de tempo.Isso não quer dizer o fim da história, mas, sim, uma concepção dotempo, da natureza, da linguagem e da memória. A linguagemtécnica tende a substituir as línguas naturais e a memória comotradição se transforma na Sociedade do conhecimento, tornada umsistema, sustentado por uma Sociedade em Rede, onde as diferentesculturas e identidades são transformadas e absorvidas pelacibercultura, transformando as tradições ou em espetáculos ou emobjetos de museu ou em monumentos tombados para a indústria deentretenimento ou sociedade de consumo, onde os valores se tornamformais e rituais.( CASTRO, 2003:51).

Assim, o que podemos notar é que o homem experiencia uma nova concepção detempo relacionado à História, onde:

os passados convivem hoje simultaneamente no presente evivemos um tempo acelerado pela qual temos a vertigem de contínuopresente, onde qualquer futuro é para ontem, tal a rapidez e, somossolicitados e experiências e consumo de novos produtos, onde,parece, nós somos o principal produto.( CASTRO, 2003:13)

Afirmamos que não sabemos o que é a História, todavia, entendemos que ela está

relacionada com as questões originárias: a Linguagem, a Phýsis, a memória, o Tempo.

Resta-nos , agora, discutirmos uma última questão: o agir da poiésis. Esse é o tema do

nosso próximo capítulo.

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8 – O AGIR DO REAL E A TÉCNICA.

Não poderíamos terminar este trabalho sem falarmos do agir do real e sua relação com

a técnica. Para tanto, duas questões devem ser levantadas: o que significa agir? O que é

técnica?

Sem dúvida alguma, essas duas palavras, a dizer, o verbo agir e o substantivo técnica

estão diretamente relacionados.

Entendemos que devemos discutir esse assunto, uma vez que a alteração semântica

dessas palavras acaba por produzir concepções metafísicas distantes do pensamento originário.

No capítulo anterior, discutimos sobre as grandes questões que envolvem todo o nosso

trabalho, a dizer: A linguagem, o Tempo, a memória, a Phýsis e a História. Todavia, não

chegamos a nenhuma resposta que pudesse superar as outras. Se tivéssemos respondido ao

apelo que nos está direcionado, certamente correríamos o risco de “criarmos” outra forma de

metafísica. Nesse sentido, as questões e a tensão das mesmas são mais importantes do que

possíveis respostas. Há que se descobrir uma maneira de superarmos a metafísica reinante,

porém, ainda nos está encoberto. O seu descobrimento certamente não é total, pois, quanto

mais se desencobre, mais oculto se torna. É por esta razão que o professor Manuel dirá que:

Na realidade, a questão precede tudo, porque ela é sempreoriginária e inaugural. A questão é um núcleo constante e inexaurívelde caminhos, veredas e sentidos que nos levam ao que somos e não-somos. Neles e por eles o “real” se manifesta em sua riqueza desurgimento incessante, neles e por eles o “real” se dá e retrai, sedesvela com desvelo e vela como identidade de todas as diferenças.(CASTRO, 2005: 2 ).

No entanto, necessário se faz continuarmos a nossa busca nas e pelas questões.

Precisamos questionar, portanto, as respostas já “encontradas” para as nossas perguntas.

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Quando discutimos no capítulo anterior a respeito das nossas cinco questões,

deparamo-nos com todo um grupo de respostas metafísicas ao longo da história do homem.

Por exemplo, o homem, necessitado de controlar a própria Natureza, encontrou nas

descobertas científicas uma espécie de “conforto mental” na medida em que progredia

cientificamente. Esse progresso se deu no agir e na técnica. Mas, o que é técnica? E o que é o

agir? Entenderam perfeitamente o sentido dessas palavras?

Sobre a essência do agir, o professor Manoel diz:

O verbo agir vem do verbo latino agere. Daí se formam emportuguês as palavras: ação, atualidade, atividade, mas tambémagitação. A agitação é o agir intenso mas de alguma maneiradesordenado e até com sentido negativo, como por exemplo, ele estáagitado hoje.( CASTRO, 2004:2)

Como ação, o verbo agir nos aponta diretamente para uma relação de causa e efeito,

onde esse mesmo agir se confunde com produção. Assim, o agir passa a ser confundido com a

palavra latina factum, o feito, do verbo facere, fazer. Ora, se temos uma relação de causa e

efeito, dizemos que o agir nos aponta diretamente para uma compreensão de real e verdadeiro.

E mais, como real e verdadeiro, esse agir nos aponta para o seu produtor: o homem. Assim, o

homem torna-se senhor do próprio destino e criador da realidade. Agora , o homem não é mais

um ente dentre os muitos manifestados pela phýsis. Agora, ele é o próprio originador do real,

aquele que constrói a sociedade, o que domina toda a produção.

Sabemos, dessa forma, onde nos levou a tradução do “agir” grego para o latino. Em

grego, a essência do agir é Poiésis. Poiésis é produção, mas não a produção na qual o homem

é capaz de realizar porque tem o domínio técnico da mesma. Mas, o que é técnica para que

possamos afirmar ou mesmo negar que o homem a domina?

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A definição comum de técnica é: técnica é um meio para um fim ou é uma atividade do

homem. A segunda dessas definições coloca o homem como o causador de toda a técnica. Na

realidade, ambas as definições estão diretamente relacionadas, uma vez que o homem,

dominador da técnica, utiliza-a para uma determinada finalidade. Portanto, segundo essa

concepção, a técnica é um meio para um fim também.

Ao compreendermos a técnica como uma produção do homem, também a relacionamos

com o uso de ferramentas, aparelhos e máquinas. Em certo sentido, a própria técnica, assim

compreendida, também é um instrumento.

Na pós-modernidade, esta técnica se tornou mais evidente, uma vez que, com as

descobertas científicas, conseguiu-se manipulá-la, enquanto meio e instrumento. A própria

ciência se vale da técnica para validar suas descobertas. Mas, ao contrário das definições

anteriores, a produção agora se dá para a justificação do sistema, sendo o homem um de seus

instrumentos. Para que tenhamos idéia do “ operar” da técnica, basta que olhemos para as

descobertas científicas do século passado: usina de força, criação do avião, computadores, etc.

Seria uma ousadia muito grande duvidarmos desse “operar” técnico da modernidade e

da pós-modernidade. Poderíamos até mesmo dizer que tais definições de técnica são corretas.

No entanto, chegarmos ao correto, ao exato, não é o mesmo que chegarmos à verdade, pois

ainda não perguntamos sobre a essência da técnica. Uma coisa é o seu operar; outra, a sua

essência.

Segundo Heidegger:

“ Para chegarmos à essência ou ao menos à sua vizinhança, temos que procurar o

verdadeiro através e por dentro do correto.” ( HEIDEGGER, 2002:13).

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Dessa forma, procuramos entender como se estrutura o mecanismo da técnica moderna

e pós-moderna. Já dissemos que o homem utiliza a técnica como produção. Podemos até dizer

que o seu agir é produção. Sendo produção, inevitavelmente teremos causa e efeito aqui

inserido.

Os gregos sempre procuraram entender o movimento das coisas e o fizeram através das

4 causas. Temos, assim, a causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final. Por

exemplo, a madeira seria a causa material. Se o homem resolve transformar a madeira em

mesa, temos ai a causa formal, ou seja, a madeira assumiu a forma de mesa. O homem,

responsável por essa transformação é a causa eficiente. Por fim, teremos a causa final, por

exemplo, a produção em grande número para o enriquecimento do seu patrão.

Mas, por que existem apenas 4 causas e não cinco ou três? Não sabemos. O que

sabemos é que esta explicação da realidade satisfez e satisfaz a compreensão do real até o dia

de hoje.

Por isso, Heidegger dirá:

Sem dúvida, há séculos considera-se a doutrina das quatrocausas uma verdade caída do céu, clara como a luz do sol. E nãoobstante, já é tempo de se perguntar: por existem precisamentequatro causas?( HEIDEGGER, 2002: 13 )

Mas, o que significa causa para que possamos entender que só existem quatro?

Causa em Latim é cadere, cair. O seu significado é aquilo que faz com que algo caia

desta ou daquela maneira num resultado.

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Para os gregos causa é áßôéï í . No entanto, seu significado é diferente de tudo o que se

foi pensado entre os ocidentais nos anos que se seguiram. Áßôéï í é aquilo pelo que um outro

responde e deve. Nesse sentido, por exemplo, é que:

A prata é aquilo de que é feito um cálice de prata. Enquantouma matéria (àëç ) determinada, a prata responde pelo cálice. Estedeve à prata aquilo de que consta e é feito. O utensílio sacrificial nãose deve, porém, apenas à prata. No cálice, o que se deve à prataaparece na figura de cálice e não de um broche ou anel. O utensíliodo sacrifício deve também o que é ao perfil ( åßäï ò ) de cálice. Tantoa prata, em que entra o perfil do cálice, como o perfil, em que a prataaparece, respondem, cada uma, a seu modo, pelo utensílio dosacrifício.

Responsável por ele é, no entanto, sobretudo um terceiromodo. Trata-se daquilo que o define, de maneira prévia e antecipada,pondo o cálice na esfera do sagrado e da libação. Com ele, o cálicecircunscreve-se, como utensílio sacrificial. A circunscrição finaliza outensílio. Com este fim, porém, o utensílio não termina ou deixa deser, mas começa a ser o que será depois de pronto. É portanto, o quefinaliza, no sentido de levar à plenitude, o que, em grego , se diz coma palavra ôÝëï ò. Com muita freqüência, traduz-se ôÝëï ò. Por ‘fim’,entendido, como meta, e também, por ‘finalidade’, entendida comopropósito, interpretando-se mal essa palavra grega. O ôÝëï ò respondepelo que, na matéria e no perfil, também responde pelo utensíliosacrificial.

Por fim, uma quarto modo responde ainda pela integraçãodo utensílio pronto: o ourives. Mas, de forma alguma, como causaefficiens, fazendo com que, pelo trabalho, o cálice pronto seja efeitode uma atividade.(...)

(...) O ourives reflete e recolhe numa unidade os três modosmencionados de responder e dever. Refletir diz, em grego, ëÝãåéí ,ëüãï ò. Funda-se no áðï öáßí åóèáé, no fazer aparecer. O ourives étambém responsável, com aquilo de onde parte e preserva oapresentar-se e repousar em si do cálice sacrificial. Os três modosanteriores de responder devem à reflexão do ourives o fato e o modoem que eles aparecem e entram no jogo de pro-dução do cálicesacrificial.( HEIDEGGER, 2002: 14 )

As quatro causas na metafísica foram compreendidas em graus de importância. Assim,

a causa eficiente é a menos importante, enquanto a causa final é a mais importante. Pensando

dessa forma, numa sociedade escravocrata, por exemplo, terá o escravo como causa eficiente e

o senhor de engenho como causa final. Por isso, o escravo é o menos importante, uma espécie

de “coisa”, objeto que tem por finalidade a satisfação de seu senhor.

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No entanto, no comentário acima de Heidegger, não vemos nenhuma das causas

inferiorizada por outra. Pelo contrário, cada uma delas, possui um modo de responder e dever

pelas outras. Até mesmo o ourives, que poderia ser entendido como causa eficiente, tem uma

função importantíssima. Ele é responsável pelo recolhimento das três causas mencionadas.

Refletir, recolher é Lógos. Lógos é poiésis.

Poiésis é pro-dução. E como se dá essa pro-dução? Através do deixar-viger do cálice.

Deixar-viger em grego é áßôéï í , ou seja, aquilo pelo qual algo aparece, manifesta-se. Nesse

sentido, pro-dução é fazer aparecer o que está encoberto. Sabemos que des-encobrir o que está

encoberto é a essência da verdade ( áëÞèåéá ).

É por isso que dizemos que a poiésis ( pro-dução ) e a verdade ( áëÞèåéá ) são o

mesmo.

Dissemos que o certo não é o mesmo que o verdadeiro. Também dissemos que para

que pudéssemos chegar ao verdadeiro, deveríamos “caminhar” por aquilo que é entendido

como certo. Agora, chegamos ao verdadeiro, através daquilo que é entendido como correto,

certo, exato.

Até agora, discutimos sobre o agir e a técnica. Dissemos que a técnica é considerada

como um meio para um determinado fim. Entendido dessa forma, técnica é um instrumento.

No entanto, acabamos de notar que técnica em seu sentido originário está diretamente ligada

com a poiésis e, portanto, mais do que instrumento, é uma forma de des-cobrimento, da

verdade.

A palavra técnica em grego é ôÝ÷í ç e, segundo Heidegger, desde o tempo de Platão,

ocorria juntamente com a palavra åðéóôÞµç e , ambas as palavras significavam o conhecimento

em seu sentido mais amplo. (HEIDEGGER, 2002: 17)

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O conhecimento provoca abertura e, nesse sentido, é um desencobrimento.

A técnica, como forma de desencobrimento, des-encobre o a ser pro-duzido na

perspectiva dos quatro modos de deixar-viger.

Portanto, a essência da técnica não reside no seu manusear ou na aplicação de meios ,

mas no des-encobrimento. Na modernidade ou na pós-modernidade, técnica é uma meio para

um fim determinado e, por isso, mesmo conduz à exploração da Natureza. Não resta dúvida de

que a técnica moderna também é uma forma de des-encobrimento. No entanto, esse des-cobrir

se apropria do que surge e aparece no pôr da exploração.

Talvez a grande confusão do homem moderno e do sistema pós-moderno é entender

que todas as coisas estão à disposição e podem ser exploradas. No entanto, nem o homem nem

o sistema têm o poder de des-cobrir o real cada vez em que se mostra ou se retrai e se esconde.

Como nos diz Heidegger:

“ Não foi Platão que fez com que o real se mostrasse à luz das idéias. O pensador

apenas respondeu ao apelo que lhe chegou e que o atingiu.” ( HEIDEGGER, 2002: 21 )

É claro que qualquer forma de des-encobrimento tem a colaboração do agir do homem.

No entanto, esse des-encobrir não acontece apenas no homem e nem decisivamente pelo

homem. Talvez seja aqui que toda a confusão aconteça entre a técnica no pensamento

originário e a técnica moderna ou pós-moderna. O homem ou mesmo o sistema pensa possuir

o domínio sobre a Natureza na medida em que esta se mostra no momento em que se retrai.

Porque nesse mostrar-se e esconder-se acontece aquilo que Heidegger chama de com-posição.

Na “realidade” a com-posição é o destino do des-encobrimento. O homem age naquilo que se

des-encobre. Por isso, dizemos que a com-posição é a essência da técnica moderna. Nesse

sentido, o homem ou mesmo o sistema adquire uma forma de conhecimento que não é a ôÝ÷í ç,

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mas sim, åðéóôÞµç, dando origem à epistemologia e à ciência moderna. É por isso que o

homem explora a Natureza e como conseqüência uma série de problemas existente em nossos

dias, como desmatamento.

Vendo dessa forma, a técnica moderna e pós-moderna passa a ser uma forma de perigo

para a humanidade, pois imagina conseguir encobrir o encobrimento da phýsis para manter

apenas o seu des-encobrimento. Por isso, a técnica torna-se um meio para um determinado

fim.

Talvez isso esteja acontecendo porque ainda não pro-curamos pela essência da técnica.

Pensar em técnica é pensar em phýsis, pois esta é o manifestar e ocultar , por isso mesmo

ambígua. A essência da técnica também é ambigüidade, uma ambigüidade que nos remete

para o mistério do des-encobrimento, da própria verdade.

Por ser ambígua, a técnica nos remete para o que é poético, pois este também caminha

na ambigüidade.

Começamos por questionar a técnica e chegamos mais uma vez à poiésis. Se quisermos

sair do perigo que o sistema moderno tem trazido, precisamos pro-curar pela cura que reside

nessa ambigüidade, nessa origem mítico-poética que, por isso mesmo, é o lugar onde o

homem habita poeticamente.

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9 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos ao final de nosso trabalho. No entanto, não ousamos “fechar” o assunto em

torno de nossa questão originária: o que é o real?

Entendemos que as questões são mais importantes do que suas definições. As questões

são originárias; os conceitos, passageiros.

É por isso que o professor Manuel dirá:

Na realidade, a questão precede a tudo, porque ela é sempreoriginária e inaugural. A questão é um núcleo constante e inexaurívelde caminhos, veredas e sentidos que nos levam ao que somos e não-somos. Neles e por eles o “real” se manifesta em sua riqueza desurgimento incessante, neles e por eles o “real” se dá e retrai, sedesvela com desvelo e vela como identidade de todas as diferenças.(CASTRO, 2005: 2 ).

Vimos no decorrer do nosso trabalho, como o conceito de real sofreu mudanças em seu

sentido originário. Vimos também que cada mudança de significado contribuiu para a

justificação de um dado sistema vigente em uma determinada época.

Seguimos o caminho que nos levou aos vários conceitos. Tais conceitos foram

considerados corretos, mas, como já dissemos, o correto nem sempre é o verdadeiro. Por isso,

após falarmos sobre todos os conceitos, fomos em busca das questões, a dizer: o que é a

phýsis/ser, a linguagem, a memória, a História, o Tempo? Discutimos em um capítulo a parte

sobre a técnica. Nosso objetivo foi entender como o significado de técnica contribuiu para o

avanço científico.

Por fim, entendemos que a ambigüidade ( poética ) é mais completa do que qualquer

conceito, pois aquela entende que o real é capaz de se mostrar enquanto se retrai , de se ocultar

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enquanto se mostra, enquanto que este se coloca como a “verdade” que supera todas as outras.

É por isso que o professor Manuel, falando sobre o conceito, diz que:

“ O conceito dá conhecimentos do real e do homem. Mas neles não precisamos ser, só

ter. Por isso podemos ter muitos conceitos, muitos conhecimentos e não ser o que

conhecemos” ( CASTRO, 2005: 3 ).

Por isso, o mais importante são as questões e não os conceitos, pois são elas que

permanecem e por elas que vivemos, desde que estejamos “abertos” para o manifestar do real

no momento em que este se mostra e se oculta.

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