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1 | 17 SNHCT ANAIS ELETRÔNICOS A concepção herdada da filosofia da ciência e o modelo kuhniano VAGNER GOMES RAMALHO 1* RESUMO O presente trabalho é parte da pesquisa em desenvolvimento no Doutorado em Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Fe- deral de Sergipe e tem como objetivo principal analisar a contribuição recebida por Thomas Kuhn quando da publicação de seu livro A estrutura das revoluções científicas (1962), oriunda do Círculo de Viena. O debate gerado a partir dos pon- tos abordados no livro de Kuhn de 1962 tem colaborado para diferentes visões sobre a atividade científica ainda em nossos dias. Dentre as discussões apresen- tadas, há que se considerar a existência de um modelo de desenvolvimento da ciência que se opõe à compreensão do Círculo de Viena e a tradição ali iniciada, chamada por Putnam ([1960] 1962) e filósofos posteriores de “concepção herda- da” (received view) da filosofia da ciência. A concepção herdada da filosofia da ciência compreende que no conjunto de formulações teóricas e entendimentos acerca do desenvolvimento da ciência, tanto em seu funcionamento quanto na composição de teorias científicas, seria possível verificar uma justa equivalência entre realidade empírica e a teoria científica resultante da observação, por meio da análise lógica (HANH; NEURATH; e CARNAP, 1929). O contraponto apresen- tado por Kuhn tenta mostrar que há uma dimensão desprezada pela concep- ção herdada, que dificultaria a análise lógica como elemento determinante da equivalência entre teoria e objeto observado, que seria um âmbito subjetivo da produção científica, manifestado pelas regras de grupo nas escolhas metodoló- gicas. Para Putnam, a concepção herdada acerca da filosofia da ciência registrava o entendimento de que havia uma distinção objetiva entre “dados observados” e “teorias estabelecidas”. Essa distinção visa compreender como os dados que ser- vem de base empírica para as teorias científica podem ser compreendidos como objetos isolados da experiência e, portanto, elementos diferentes das teorias es- tabelecidas. Essa noção mostra dados e teorias como elementos distintos, e não entrelaçados, como sugerido pelas teorias mais recentes em filosofia da ciência. A noção comum entre os membros do Círculo de Viena entre os anos de 1920 a 1 * Instituto Federal de Alagoas; Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe.

A concepção herdada da filosofia da ciência e o modelo

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A concepção herdada da filosofia da ciência e o modelo kuhniano

VAGNER GOMES RAMALHO1*

RESUMO

O presente trabalho é parte da pesquisa em desenvolvimento no Doutorado em Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Fe-deral de Sergipe e tem como objetivo principal analisar a contribuição recebida por Thomas Kuhn quando da publicação de seu livro A estrutura das revoluções científicas (1962), oriunda do Círculo de Viena. O debate gerado a partir dos pon-tos abordados no livro de Kuhn de 1962 tem colaborado para diferentes visões sobre a atividade científica ainda em nossos dias. Dentre as discussões apresen-tadas, há que se considerar a existência de um modelo de desenvolvimento da ciência que se opõe à compreensão do Círculo de Viena e a tradição ali iniciada, chamada por Putnam ([1960] 1962) e filósofos posteriores de “concepção herda-da” (received view) da filosofia da ciência. A concepção herdada da filosofia da ciência compreende que no conjunto de formulações teóricas e entendimentos acerca do desenvolvimento da ciência, tanto em seu funcionamento quanto na composição de teorias científicas, seria possível verificar uma justa equivalência entre realidade empírica e a teoria científica resultante da observação, por meio da análise lógica (HANH; NEURATH; e CARNAP, 1929). O contraponto apresen-tado por Kuhn tenta mostrar que há uma dimensão desprezada pela concep-ção herdada, que dificultaria a análise lógica como elemento determinante da equivalência entre teoria e objeto observado, que seria um âmbito subjetivo da produção científica, manifestado pelas regras de grupo nas escolhas metodoló-gicas. Para Putnam, a concepção herdada acerca da filosofia da ciência registrava o entendimento de que havia uma distinção objetiva entre “dados observados” e “teorias estabelecidas”. Essa distinção visa compreender como os dados que ser-vem de base empírica para as teorias científica podem ser compreendidos como objetos isolados da experiência e, portanto, elementos diferentes das teorias es-tabelecidas. Essa noção mostra dados e teorias como elementos distintos, e não entrelaçados, como sugerido pelas teorias mais recentes em filosofia da ciência. A noção comum entre os membros do Círculo de Viena entre os anos de 1920 a

1 * Instituto Federal de Alagoas; Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe.

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1950, foi tratado por Putnam como uma espécie de bloco de desenvolvimento da filosofia da ciência. As concepções oriundas desse bloco perduraram por um bom tempo, sendo alvo de críticas mais fortes somente a partir dos anos de 1950. O presente trabalho julga viável concluir que as contribuições do Círculo de Viena foram decisivas para a imagem de ciência que Thomas Kuhn procurou combater, que tem colaborado de forma significativa para a visão de ciência que possuímos em nossos dias.

Palavras-chave: concepção herdada; received view; positivismo lógico; mo-delo kuhniano; filosofia da ciência.

CONCEITUANDO CONCEPÇÃO HERDADA — ELEMENTOS FILOSÓFICOS E HISTÓRICOSPor “concepção herdada”, entende-se o conjunto de proposições acerca do

funcionamento da ciência e de como ela pode representar o mundo, a partir da perspectiva do Círculo de Viena (PALMA, 1998:54). O termo “concepção herda-da”2 foi utilizada pela primeira vez por Hilary Putnam em ocasião de discussão apresentada no 1960 International Congress for Logic, Methodology and Philo-sophy of Science, que aconteceu na Universidade de Stanford, Califórnia, entre 24 de agosto e 02 de setembro de 19603 (NAGEL; SUPPES; TARSKI, 1962), como resultado de sua preparação para o simpósio temático “o papel dos modelos nas ciências empíricas4”.

Ao se deparar com o tema do simpósio, Putnam considerou que o acúmulo de explicações relacionadas à ciência desde os anos de 1920 poderiam ser trata-das como uma espécie de bloco de ideias convergentes, que tratavam a ciência mais ou menos da mesma forma, colocando como problema central o papel da experiência empírica e como se relaciona com a formulação de teorias. No início de seu papper, Putnam pretende uma demarcação teórica que estabelece o pro-blema a ser tratado ao se referir à “concepção herdada”, nos seguintes termos:

O tópico anunciado para este simpósio foi o papel dos modelos na ciência empírica; no entanto, ao me preparar para o simpósio, logo descobri que tinha que lidar pri-meiro com um tópico diferente, e esse tópico diferente é aquele ao qual este artigo está realmente dedicado. O tópico sobre o qual quero falar é o papel das teorias em

2 Mais conhecido o conceito em língua inglesa: “received view”. Prefiro utilizar “concepção herdada”, em detrimento de “visão recebida”, por considerar mais apropriado a partir de um ponto de vista histórico e conceitual. A tradição filosófica em língua espanhola tem comumente traduzido o termo “received view” como “concepción heredada”. Acredito que “concepção herda-da” está mais próxima do que trata Frederick Suppe. Mais sobre o termo, ver SUPPE, [1974] 1979.3 Esse congresso foi e tem sido organizado desde 1960 pela International Union of History and Philosophy of Science and Technology. A ata do congresso de 1960 pode ser consultada em <http://dlmps.org/pages/past-congresses/bulletin-4.php#cng60> (consulta realizada em 21 set 2019); traz em detalhes os pontos tratados e as resoluções convencionadas pelo grupo de participantes.4 A concepção herdada também tem sido chamada por alguns autores de “visão sintática” e “concepção analítica clássica”. Cf. CUADRADO, G., 2018.

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ciência empírica; o que faço neste artigo é atacar o que pode ser chamado de “recei-ved view” [concepção herdada] sobre o papel das teorias — que as teorias devem ser pensadas como “cálculos parcialmente interpretados” nos quais apenas os “termos observacionais” são “diretamente interpretados” (os termos teóricos sendo apenas “parcialmente interpretados”, ou, como algumas pessoas dizem, “parcialmente com-preendidos”) (PUTNAM, [1960] 1962:240).

Para Putnam, a concepção herdada acerca da filosofia da ciência registrava o entendimento de que havia uma distinção objetiva entre “dados observados” e “teorias estabelecidas”. Essa distinção visa compreender como os dados que ser-vem de base empírica para as teorias científica podem ser compreendidos como objetos isolados da experiência e, portanto, elementos diferentes das teorias es-tabelecidas. Essa noção mostra dados e teorias como elementos distintos, e não entrelaçados, como sugerido pelas teorias mais recentes em filosofia da ciência. Essa distinção foi compreendida pela concepção herdada como dicotômica, haja vista que na constituição da ciência, elementos de observação seriam distintos dos elementos teóricos, embora as teorias fossem o resultado da consideração dos dados empíricos.

A noção comum entre os membros do Círculo de Viena entre os anos de 1920 a 1950, foi tratado por Putnam como uma espécie de bloco de desenvolvi-mento da filosofia da ciência. As concepções oriundas desse bloco perduraram por um bom tempo, sendo alvo de críticas mais fortes somente a partir dos anos de 1950. Essas reconsiderações se concentraram, segundo Suppe (SUPPE, [1974] 1977:16), em duas vertentes:

a. Os ataques a pontos específicos da concepção herdada — como, por exemplo, a ensejada por Putnam, que diz respeito à falsa distinção entre termos teóricos e termos observacionais;

b. O surgimento de filosofias da ciência alternativas — que colaboraram com as discussões estabelecidas por meio de modelos de funcionamento e de desen-volvimento da atividade científica, dentre as quais consideraremos de forma mais enfática o modelo de Thomas Kuhn.

A análise de Putnam propõe que essa dicotomia seja, no máximo, aparente, isto porque observação e teorização são elementos que estão em estreita rela-ção. Neste sentido,

(1) O problema para o qual esta dicotomia foi inventada (“como é possível interpre-tar termos teóricos?”) Não existe.

(2) Uma razão básica que algumas pessoas deram para introduzir a dicotomia é falsa: a justificação na ciência não prossegue “para baixo” na direção dos termos de observa-ção. De fato, a justificação na ciência prossegue em qualquer direção que possa ser útil - mais afirmações observacionais, às vezes sendo justificadas com o auxílio de outras mais teóricas, e vice-versa. Além disso, como veremos, embora a noção de um relató-rio de observação tenha alguma importância na filosofia da ciência, tais relatórios não podem ser identificados com base no vocabulário que eles contêm ou não contêm.

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(3) Em qualquer caso, se as razões para introduzir a dicotomia foram boas ou ruins, a dupla distinção (termos de observação - termos teóricos, afirmações de observação - afirmações teóricas) apresentada acima está, de fato, completamente quebrada (PUTNAM, [1960] 1966:241).

Diante dos problemas apontados, há que se considerar que não há uma re-lação hierárquica entre observação e teorização, na qual a teorização representa um âmbito superior que está diretamente determinada — embora sem interre-lação — pela observação. A dicotomia apresentada pela concepção herdada visa garantir que a investigação científica seja pautada exclusivamente pelo fenôme-no empírico, contudo, nos elementos observados, para que estes sejam consi-derados como relevantes, já há uma implicação de ordem teórica. Sendo assim, não há como considerar que dados empíricos sejam “puros”, que carregam em si mesmos suas próprias significações, mas, por outro lado, são as ferramentas teó-ricas que auxiliam o cientista no trabalho de julgar quais são os dados relevantes para a teoria em construção.

Em resumo, podemos observar o esquema a seguir, que torna o problema apontado por Putnam mais visual.

Figura 1 — A “received view” segundo Putnam. Em relação à dicotomia entre OT e TT, aponta que é uma falsa dicotomia, que foi proposta inicialmente para responder a seguinte pergunta:

“como é possível interpretar termos teóricos?”.

A relação entre termos observacionais e termos teóricos só se pode dar por um processo de equivalência, no qual o cientista julga que os termos observa-cionais estão em equivalência com os termos teóricos. Essa relação possui seus problemas — como saliente Lacey ao discutir a parcialidade das estratégias ma-terialistas de seleção de dados — embora esteja colocada como “relação”, e não como dicotomia. Contudo, a concepção herdada insiste que haja uma dicotomia, no que o papel dos termos teóricos passa a ser como uma espécie de redução dos termos observacionais aos termos teóricos (entendendo “redução” como algo em torno de um resumo ou “linguistificação” do que fora observado em termos de uma linguagem científica).

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Em relação à definição que é complementar à de Putnam, está mais bem colocada a de Frederick Suppe. Suppe, em ocasião da organização de um volume que compilou as discussões que ocorreram em um simpósio sobre a estrutura das teorias científicas na Universidade de Ilinois, em 1969, conseguiu tornar mais evidente a ideia de “concepção herdada”, escrevendo sobre as diferentes formu-lações teóricas desenvolvidas desde a composição inicial do Círculo de Viena. O volume organizado por Suppe tornou-se um livro, publicado pela primeira vez em 1974, com o título The Structure of Scientific Theories.

Suppe traça as diferentes formulações da tradição filosófica originada pelo Círculo de Viena e elenca pontos fundamentais como as ideias de modelo, con-texto de justificação e contexto de descoberta e como se dá a interpretação de dados científicos5.

Em termos de um marco histórico, podemos dizer que o Círculo de Viena se refere às formulações desenvolvidas ao longo da primeira metade do século XX por filósofos que se alinhavam à visão de ciência apresentada de forma inicial e ainda pouco precisa em A concepção científica do mundo, texto que ficou co-nhecido como “O manifesto do Círculo de Viena”, publicado em 1929 por Hans Hahn, Otto Neurath e Rudolf Carnap. Em termos de filiação, o manifesto delimita os participantes como “Membros do Círculo de Viena”, dos “Simpatizantes do Círculo de Viena” e dos “Representantes Principais da Concepção Científica do Mundo” (HAHN; NEURATH; CARNAP; [1929] 1986:19-20).

Ora, isso parece fazer mais sentido ao considerar que o Círculo de Viena estava mais preocupado em uma superação das explicações de caráter metafí-sico atreladas à ciência do que estabelecer uma forma única de compreender o fenômeno científico6. A atualização do aforismo de Wittgenstein (“o que pode ser dito, pode ser dito claramente”) parece ser o lema de trabalho de qualquer um que se alinhasse às propostas do grupo, o que denota um alto grau de compro-metimento com uma noção bastante contraditória de “objetividade”.

Por isso, de forma aparente, o sentimento antimetafísico é o direcionamento do grupo e qualquer iniciativa que seguisse essa direção, não teria dificuldades para ser acolhido pelos membros do Círculo de Viena, pois, conforme o manifes-to, “(…) Se há diferenças de opinião, um acordo é afinal possível e, portanto, tam-bém requerido. Mostrou-se cada vez mais nitidamente que o objetivo comum a todos era não apenas uma atitude livre de metafísica, mas antimetafísica (HAHN; NEURATH; CARNAP; [1929] 1986:8-9)”.

5 Insta considerar que existem pesquisas mais recentes que buscam uma revisão histórica am-pla da concepção herdada, apontando para uma espécie de recepção equivocada do pensamento do Círculo de Viena. Cf. OLIVEIRA, 2000; 2011.6 “Metafísico” aqui deve ser entendido como qualquer preposição que se mostre como uma pseudoproposição, i.e., qualquer proposição que seja formulada por palavras sem sentido, tal como apontado por Carnap (Superação da metafísica pela análise lógica da linguagem)

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A existência de várias ideias vinculadas ao Círculo, ainda que possam ser compreendidas como tendo uma noção geral em comum, pode ser explicada pela pluralidade de seus participantes, que eram oriundos de diferentes forma-ções acadêmicas e tradições epistemológicas. Contudo, essa falta de uma formu-lação universal poderá ser denunciada como uma falta de coesão ou de desen-tendimento em relação à proposta inicial do grupo. É como se a pluralidade de ideias dificultasse a exata dimensão do que o Círculo de Viena tenha apontado como fundamento.

Se não podemos dizer que há uma noção compartilhada por todos os mem-bros, por outro lado, podemos afirmar que há um elemento em comum entre os membros do Círculo de Viena, que é um grande interesse em entender como a ci-ência funciona e como somos capazes de representar os fenômenos naturais por meio de teorias científicas. Os esforços para dizer, do ponto de vista lógico, como seria possível representar por meio de teorias os dados observados ao longo do trabalho científico é parte do que compreendemos por concepção herdada.

A ESTRUTURA DE KUHN E A CONCEPÇÃO HERDADAO contato de Kuhn com as discussões elencadas por Suppe parece ter ocor-

rido de forma um tanto quanto tardia. Isso talvez tenha ocorrido pela razão de que sua área de interesse desde a graduação em Física tenha sido em temas relacionadas à mecânica quântica, e não com filosofia. A observação de como temas de física eram desenvolvido em comunidades de investigação científica e a evolução do debate ao longo go tempo, talvez tenha dado condições para o desenvolvimento de suas ideias, que culminaria com a publicação de A estrutura das revoluções científicas, em 1962. O fato é que somente depois de mais de uma década desde a conclusão de seu doutorado é que Kuhn publicará um texto que rompe com sua própria trajetória em termos de preocupação de estudo, que ha-via desenvolvido até então.

Em 1962 as críticas às formulações desenvolvidas com base nas ideias do positivismo lógico já estavam bastante amadurecidas, o que nos leva a considerar que a abordagem kuhniano — em termos de uma crítica ao positivismo lógico — não é nenhuma novidade. Como indica Rorty,

Escritores como Michael Polanyi, Imre Lakatos, Stephen Toulmin, Paul Feyerabend e Norwood Russel Hanson tinham começado a desafiar a imagem da investigação científica que havia sido esboçada por Rudolph Carnap, Karl Popper, Carl Hempel e outros associados ao positivismo lógico (RORTY, 2000:203).

A tentativa de superar as descrições comumente utilizadas para o processo de desenvolvimento da atividade científica, proposta por Kuhn, pode ser compre-endida como um “giro historicista” da filosofia da ciência (ECHEVERRÍA, 1997:7), no qual os elementos históricos da ciência são tratados como fundamentais para o entendimento de seu funcionamento.

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Esse giro representa uma ruptura com o contexto de sua época no que se relaciona ao papel das comunidades de investigação científica, suas interações e o desenvolvimento histórico e social do contexto no qual estão inseridas, pois ao apresentar o desenvolvimento da ciência como um processo que pressupõe “revoluções científicas”, Kuhn enuncia sua proposta de romper com a tradição positivista7. Segundo esta tradição:

está fora de discussão que a ciência progride sem cessar, entendendo-se o progres-so científico como um avanço ininterrupto em direção a uma compreensão cada vez melhor da realidade. A ciência não é apenas verdadeira – em contraposição a outros pretensos saberes que são falsos – senão que os resultados da ciência são cada vez mais verdadeiros, no sentido de serem paulatinamente mais adequados à realidade, seja por extensão, seja por aprofundamento, seja por crítica de resultados anteriores (CUPANI, 1985:67).

A influência de Kuhn no período pós-publicação da Estrutura se deu em vir-tude da análise feita ali. Segundo tal análise, a ciência acontece por processos de ruptura – indicado na ideia de revolução – e não por acumulação, como defendi-do de forma vigorosa pela tradição que lhe foi anterior.

Com respeito ao desenvolvimento por processos de ruptura, não há um ele-mento totalmente original nas ideias de Kuhn, pois se aproxima das teses de Koyré, na medida em que este “considerava que a ciência não evoluía de modo contínuo, mas via sua história cindida por rupturas no plano conceitual” (SHINN; RAGOUET, 2008:48). De fato, na Introdução da Estrutura, Kuhn indica a influência recebida de Koyré em suas ideias (KUHN, [1962] 1992:22). O caráter inovador da contribuição dada por Kuhn subjaz na defesa de que o relacionamento dos membros em uma comunidade científica tem papel fundamental no desenvolvimento da ciência.

Além disso, a crítica radical à possibilidade de uma “neutralidade científica”, encontrou na Estrutura um contraponto à altura. Por isso, “seu repúdio radical e profundo à ideia de tal lógica e de uma linguagem observacional neutra, fez da Estrutura um dos mais lidos e influentes trabalhos de filosofia escrito em inglês, desde a Segunda Guerra Mundial” (RORTY, 2000:204).

Sobre a noção de objetividade da ciência, devemos considerar que

é possível porque a pesquisa supõe sempre procedimentos definidos, de comprovada eficácia, para se atingir o conhecimento almejado. A ciência é metódica, e isto num duplo sentido. Por um lado, porque existe um método geral da ciência, uma maneira de proceder que caracteriza uma pesquisa como “científica” inde-pendentemente do tema. Por outro lado, porque cada etapa de uma pes-quisa, e de acordo com a natureza do tema, exige diferentes técnicas que

7 Ou “positivismo lógico”, ou ainda “empirismo lógico”, levando em conta que cada uma das denominações possui certas particularidades. Mas entre elas, é comum a rejeição das especula-ções metafísicas e a insistência de um empirismo epistemológico. Dentre os diversos aspectos do positivismo lógico, a principal contra argumentação de Kuhn se dá em direção à ideia de conhe-cimento por acumulação e a possibilidade de conhecimento empírico irrevogável.

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dizem respeito à identificação dos problemas, à sua adequada formulação e resolução, e à avaliação do resultado obtido (CUPANI, 1985:15).

Quanto aos aspectos da ciência descritos na citação anterior, Kuhn discorda-rá da possibilidade de existir alguma definição que possa ser tomada como “ca-bal” ou “incorrigível”, pois o conhecimento científico está sendo constantemente alterado. Estas alterações são resultantes do trabalho de forçar constantemente o paradigma em direção de seu alargamento8 por meio de pesquisas que corrigem anomalias. A objetividade está no uso das metodologias, mas não no resultado em si, que sempre poderá ser alvo de revisão.

Ao propor a existência de aspectos subjetivos na produção científica – espa-ço concebido majoritariamente como “hermético” e isolado de influências exter-nas – o livro de 1962 passou a aglutinar, ao longo da segunda metade do século XX, defensores e opositores, reservando a alguns capítulos da história da filosofia da ciência constantes debates que levam em consideração – para defender ou refutar – conceitos contidos em suas páginas.9

Nas páginas da Estrutura, encontram-se diversas inovações em relação à abordagem dos problemas da ciência. Talvez a principal constatação tenha sido a observação de uma dimensão social do trabalho científico: o cientista desenvolve seu trabalho de pesquisa no seio de comunidades.

Não há como dissociar o modelo de Kuhn de uma descrição que apresenta os desdobramentos científicos como intrinsecamente relacionados ao desenvol-vimento das comunidades que são agrupadas por um paradigma. Essa junção é a questão central do modelo proposto por Kuhn e é o aspecto que considero mais característico em suas explicações filosóficas. Para pensar a estrutura do de-senvolvimento científico com base na Estrutura, é necessária a análise a partir da relação entre paradigma e comunidade.

Os debates suscitados pela abordagem de Kuhn têm sido bastante profícuos desde suas colocações, porém, conforme Mendonça, em relação à Estrutura,

(…) O êxito editorial e acadêmico dessa obra impôs-lhe (...) um preço a pagar. No âmbito da filosofia, Kuhn não produziu praticamente nada de novo desde então, uma vez que se sentiu obrigado a dispender grande parte de seu tempo tentando, por um lado, amainar as críticas que lhe foram endereçadas e, por outro lado, recha-çar grande parte das recepções laudatórias. Para ser mais correto, Kuhn reformulou alguns pontos de sua explanação original, alterando a forma de argumentação, mas

8 Tendo em vista que “um paradigma pode ser muito limitado, tanto no âmbito como na pre-cisão, quando de sua primeira aparição” (KUHN, [1962] 1992:44), considero que há no período de ciência normal – período o qual identifico como posterior ao de revolução científica – uma am-pliação das possibilidades do paradigma, o que aqui e alhures também chamo de “alargamento do paradigma”.9 Exemplo do contexto que foi gerado pela publicação da Estrutura, o International Collo-quium in the Philosophy of Science, Londres, 1965, colocou em discussão as questões suscitadas por Kuhn na Estrutura. O resultado dessa discussão foi publicado posteriormente por Imre Laka-tos e Alan Musgrave, sob o título Criticism and the Growth of Knowledge (1970).

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sem deixar de tratar e de defender suas velhas teses. Sendo assim, não é muito difícil inteirar-se do seu pensamento filosófico acerca da ciência, pelo menos no que tange aos problemas aqui em questão; embora tais problemas em si, ainda que poucos, levem-nos a enveredar por caminhos bastante espinhosos (MENDONÇA, 2012:535-536).

Os caminhos trilhados na Estrutura não são dos mais simples de discutir. A postura de Kuhn em relação aos seus críticos e defensores se revelou como um capítulo à parte e requer atenção especial (OLIVEIRA, 2004:74). Decerto a questão política colocada na Estrutura é uma dessas questões que requer atenção espe-cial. Segundo Mendonça, ela não foi bem aceita pela comunidade contemporâ-nea de Kuhn, pois

como os filósofos analíticos da ciência poderiam admitir que o seu objeto de estudo fosse igualado à política e à religião, esferas tidas como do domínio da decisão e da crença respectivamente, e não da evidência e/ou da demonstração (peculiaridades do conhecimento científico)? (MENDONÇA, 2012:542).

Na formulação e proposição de um paradigma, o consenso deve se fazer presente como elemento da discussão. Não é necessário que haja unanimidade, mas um entendimento geral de que um conjunto de explicações e regras meto-dológicas é melhor e mais apropriado do que outro serve como um seguro de que a comunidade está bem direcionada. Levando em consideração a imaturida-de dos concorrentes à paradigma, é necessário que haja certo poder de conven-cimento entre seus defensores, repousando na escolha do paradigma elementos mais políticos e menos racionais, pois, afirma Kuhn,

Na escolha de um paradigma – como nas revoluções políticas – não existe critério superior ao consentimento da comunidade relevante. Para descobrir como as re-voluções científicas são produzidas, teremos, portanto, que examinar não apenas o impacto da natureza e da Lógica, mas igualmente as técnicas de argumentação persuasiva que são eficazes no interior dos grupos muito especiais que constituem a comunidade dos cientistas (KUHN, [1962] 1992:128).

Me parece claro que há uma utilização política na ideia de “revolução cientí-fica”, embora não esteja explícita a relação mantida com o paradigma na citação em tela. No entanto, há que se considerar a relação indireta estabelecida, pois, considerando que o resultado direto de uma revolução científica é a eleição de um novo paradigma, há na escolha desse novo paradigma uma implicação política.

Segundo a perspectiva kuhniana, não é possível a escolha de uma metodo-logia que seja capaz de suprimir totalmente elementos subjetivos, incorporados nos processos de escolhas, nas discussões sobre valores, na ética da pesquisa científica etc., comuns no desenvolvimento da ciência. A concepção herdada, por sua vez, aponta como sendo possível a subtração dos elementos subjetivos da produção científica uma vez que as disciplinas científicas adotem um padrão de objetividade.

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Numa tentativa de explorar a proximidade entre o modelo de Kuhn e as con-cepções do positivismo lógico, também é possível perceber certas correlações, como, por exemplo, a compreensão de que haja um conjunto metodológico que guia a atividade científica. Contudo, meu objetivo com este capítulo não foi esse, motivo pelo qual não trato diretamente dessa relação. Procurei somente explorar o que considero de maior distanciamento entre o modelo de Kuhn e a concep-ção herdada. Embora as concepções kuhnianas não possam ser tomadas como completamente esclarecedoras, em relação às outras, a ruptura é perceptível.

A ruptura com a concepção herdada que fundamentava a concepção cumu-lativa do desenvolvimento científico, proposta com a noção de paradigma é uma marca fundamental da filosofia de Kuhn. Na proposta kuhniana, a ciência é conside-rada a partir de uma dinâmica metodológica racional e objetiva, que é influenciada pelas relações interpessoais. As implicações dessa maneira de perceber a dinâmica científica afetam diretamente o conceito de objetividade e neutralidade, comuns da concepção herdada, forçando uma nova abordagem do trabalho científico.

Na ruptura empreendida por Kuhn observa-se ainda o distanciamento da ideia de que conhecimento científico é completamente objetivo. Kuhn propõe uma análise do desenvolvimento da ciência que leve em consideração aspectos políticos e sociais, imprimindo uma reanálise do conceito de objetividade na pro-dução científica.

CONSIDERAÇÕES FINAISPor meio de tais aspectos, posso concluir que a Estrutura representa uma

tentativa de ruptura direta com a concepção herdada, pois pretende mostrar a limitação da análise positivista da ciência. Embora alguns teóricos possam de-monstrar traços comuns entre a filosofia positivistas e a filosofia kuhniana10, é verdade que esta não está diretamente relacionada àquela, pois Kuhn procurou estabelecer uma nova maneira de analisar a construção científica.

Kuhn minou o conceito de uma base empírica incorrigível. Os estudos his-tóricos empreendidos por Kuhn demonstraram que nenhum evento científico esteve relacionado a qualquer base empírica incorrigível (HANDS, 2003:170). As construções científicas, embora estivessem pautadas pelos princípios empíricos de observação, também eram contingentes, pois desprezavam sistematicamente os aspectos sociais que influenciavam diretamente as teorias científicas. A mesma análise histórica empreendida mostrou que pouco a pouco as proposições cien-tíficas mais bem embasadas e construídas tiveram seus momentos de revisão e derrocada, demonstrando certa incapacidade da ciência em construir um conhe-cimento irrefutável.

Podemos falar de um legado kuhniano que, embora acusado algumas vezes de irracionalista, contribuiu decisivamente para a visão de ciência que temos hoje

10 Como, por exemplo, a relação entre a filosofia de Carnap e Kuhn (FRIEDMAN, 2003, p. 19).

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e para as discussões da filosofia analítica pós-positivista (RORTY, 2000:204). A ideia positivista de tomar as ciências “duras” – em especial a física – como mode-lo para as outras disciplinas científicas, foi aos poucos cedendo lugar para uma análise menos “dura” e mais “política”.

A contribuição genuína de Kuhn consiste, portanto, em indicar que os ele-mentos de caráter subjetivos e que fogem ao escopo da concepção tradicional da ciência são também determinantes da produção cientifica. A ciência, dessa forma, estaria sujeita aos elementos não científicos, tais como a política e os valores so-ciais. Isso implica que no desenvolvimento de uma investigação científica existem elementos não científicos capazes de influenciar os resultados obtidos.

Consideremos ainda o fato de que os estudos históricos empreendidos por Kuhn demonstraram que nenhuma construção científica poderia ser considera-da como sendo assentada incorrigivelmente sob uma base empírica (HANDS, 2003:170). Embora as construções científicas estivessem pautadas na observação, a análise proposta pela tradição filosófica era contingente, pois não levava em consideração os aspectos sociais, elencados por Kuhn por meio de sua ideia de paradigma. Tais elementos sociais são demonstrados por Kuhn como influência sistemática nas construções científicas. Essa, certamente, pode ser trata como sua contribuição mais significativa para a compreender a dinâmica do trabalho científico. Se possui muitas lacunas? Sim. Mas consideremos quantas discussões tem suscitado ao longo dos anos que seguiram a publicação da Estrutura, ainda até nossos dias.

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