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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP CÉLIA MAKI TOMIMATSU A condição humana e as disposições sobre o bem e o mal em Bhagavadgītā MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO São Paulo 2013

A condição humana e as disposições sobre o bem e o mal em ... Maki Tomimats… · pesquisa e ofereceu valiosas sugestões bibliográficas antes e durante o Exame de Qualificação

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

CÉLIA MAKI TOMIMATSU

A condição humana e as disposições sobre

o bem e o mal em Bhagavadgītā

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

São Paulo

2013

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

CÉLIA MAKI TOMIMATSU

A condição humana e as disposições sobre

o bem e o mal em Bhagavadgītā

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

como exigência parcial para obtenção do título de

Mestre em Ciências da Religião, sob a orientação

do Prof. Dr. Silas Guerriero.

São Paulo

2013

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Banca Examinadora

___________________________________________________

___________________________________________________

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「僕はいつだってしっかりと意識的に悪と抱き合って暮らしてきたから、

おかげでずっと善を見て来れたよ。

悪とは無縁の人は、善なんか見たことないんじゃない?」

「ほどほど」の効用 - 曽野綾子

Em todo momento de minha vida convivi conscientemente abraçado ao mal.

Graças a isso pude sempre ver o bem.

Alguém imune e indiferente ao mal talvez nunca tenha visto o bem.

Ayako Sono

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AGRADECIMENTOS

Antes de tudo, meus agradecimentos ao prof. Dr. Silas Guerriero pela orientação e pelo tempo

de convivência.

Ao prof. Dr. Frank Usarski que desde o início me ajudou com a formatação do projeto de

pesquisa e ofereceu valiosas sugestões bibliográficas antes e durante o Exame de Qualificação.

Ao prof. Dr. Décio Passos pela escolha final do tema desta pesquisa e composição inicial da

dissertação.

Ao prof. Dr. Pedro Lima Vasconcellos pelas sugestões dadas no Exame de Qualificação.

À profa. Ms. Vera Lúcia Paes de Almeida pelas aulas sobre Mahābhārata, às quais me

incentivaram a iniciar esta pesquisa acadêmica.

Ao Programa de Ciências da Religião da PUC-SP pela oportunidade de realizar o curso de

mestrado.

À CAPES, Coordenadoria de Aperfeiçoamento do Ensino Superior, pela concessão de bolsa

de mestrado para a realização desta pesquisa.

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RESUMO

Este trabalho tem como objeto de pesquisa a investigação sobre as disposições do bem

e do mal no texto hindu Bhagavadgītā, cuja passagem está inserida no Livro VI do épico

indiano Mahābhārata. O objetivo é refletir sobre a condição humana que permeia na

passagem de Bhagavadgītā, principalmente no que diz respeito à ideia acerca do bem e do

mal no contexto do diálogo entre os principais personagens deste capítulo: o deus Kṛṣṇa e seu

amigo Arjuna, o guerreiro Pāṇḍava. A hipótese é que, neste épico, nem o diálogo nem a

batalha narrada representam uma ação externa de um indivíduo, mas um discernimento

interno dos valores morais segundo o conceito de dharma do Hinduísmo, tendo, portanto, as

ações de Arjuna e tudo que o envolve como uma metáfora da condição humana para distinguir

o bem do mal. A metodologia escolhida foi a pesquisa bibliográfica baseada em autores

especializados como Sri Aurobindo (AUROBINDO, 1995), Angelika Malinar (MALINAR,

2007), Paramahansa Yogananda (KRIYANANDA, 2007), Surendranath Dasgupta

(DASGUPTA, 1952), entre outros. O resultado desta dissertação procura colaborar na

discussão de tópicos como traduções e valores interculturais, que de acordo com as leituras do

bem e do mal do dharma Hindu, devem ser considerados fora do escopo do pensamento

ocidental e de qualquer julgamento de valor.

Palavras-chave: Hinduísmo, dharma, Ética Hindu, Bhagavadgītā, Bem e Mal.

Célia Maki Tomimatsu: A condição humana e as disposições sobre o bem e o mal em

Bhagavadgītā

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ABSTRACT

The object of this research is an investigation about the disposition of good and evil in

the Hindu text Bhagavadgītā, which passage is inserted in Book VI of the Indian epic

Mahābhārata. The goal is to reflect about the human condition that permeates the passage of

Bhagavadgītā, about the ideas of good and evil, especially in the context of the dialogue

between the main characters of this chapter: the god Kṛṣṇa and his friend Arjuna, the Pāṇḍava

worrier. The hypothesis is that, in this epic, neither the dialogue nor the narrated battle,

represent an external action of an individual, but, due to the concept of dharma in Hinduism,

an inside discernment of moral values. Therefore, Arjuna’s actions and everything that

involves him, it is a metaphor of human condition in order to distinguish good and evil. The

chosen methodology was the bibliographical research based on scholars such as Sri

Aurobindo (AUROBINDO, 1995), Angelika Malinar (MALINAR, 2007), Paramahansa

Yogananda (KRIYANANDA, 2007), Surendranath Dasgupta (DASGUPTA, 1952), and

others. The result of this dissertation try to collaborate to discuss issues like intercultural

translations and values that according to the Hindu dharma readings of good and evil must be

considered outside the scope of Western thought and any judgments of value.

Keywords: Hinduism, dharma, Hindu Ethic, Bhagavadgītā, Good and Evil.

Célia Maki Tomimatsu: The human condition and the disposition of good and evil in

Bhagavadgītā

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SUMÁRIO

Introdução ........................................................................... 9

Notas sobre transcrição do sânscrito ........................................................................... 13

Capítulo I – Um contexto preliminar arqueológico-religioso da Índia antiga ... 14

1. Da oralidade para as escrituras ........................................................................... 15

1.1. Período védico ........................................................................... 15

1.2. Período bramânico ........................................................................... 20

2. Hinduísmo – um viver antes de um conceituar ............... 21

2.1. Varṇa e jāti: as tarefas do homem hindu ............... 23

2.2. Puruṣārtha e varṇāśrama: os percursos do homem hindu ............... 25

2.3. Darśana: um sistema de contemplação ............... 27

2.4. Deva e avatāra: as divindades entre os homens ............... 31

Capítulo II – Mahābhārata e Bhagavadgītā ....................................... 42

1. A narrativa épica de Mahābhārata ....................................... 42

1.1. A história do texto e do autor ....................................... 43

1.2. Os dezoito Parva de Mahābhārata ....................................... 46

1.3. Bhagavadgītā dentro de Mahābhārata ....................................... 63

2. A anatomia simbólica em Bhagavadgītā ....................................... 83

2.1. Os irmãos Pāṇḍava e os irmãos Kaurava ....................................... 84

2.2. O divino que se personifica ....................................... 86

2.3. A metáfora dos sentidos na batalha ....................................... 88

Capítulo III – Possibilidades de leitura sobre as percepções do bem e do mal ... 90

1. O discernimento e o equilíbrio interno como bem-estar ....................................... 90

1.1. Uma ideia acerca de dharma ....................................... 92

1.2. A questão ética em Bhagavadgītā ....................................... 95

2. A condição humana ....................................... 98

2.1. A dor e a morte como uma necessidade ....................................... 100

2.2. A questão do mal em Bhagavadgītā ....................................... 102

Considerações Finais ...................................................................................... 108

Referência Bibliografia ...................................................................................... 110

Glossário ...................................................................................... 116

Ilustração ...................................................................................... 121

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INTRODUÇÃO

A Índia é um país peculiar. Não se enquadra em nenhuma “categoria” única. Não há

uma devoção única, não há um dialeto único, não há um “sabor” único. No entanto, ou talvez

exatamente por isso, dentro dessa mescla de pensamentos e cores, ela atrai e surpreende de

forma ímpar qualquer forasteiro desavisado. Difícil e imprudente seria afirmar “Isso é Índia”

ou “A Índia é assim”. Não há como fotografar uma Índia, pois não é uma cultura instantânea

nem de fácil assimilação. Os estereótipos são muitos e não raramente injustos devido a

inúmeras tentativas frustrantes de encaixá-la num perfil comodamente enciclopédico.

Os documentários midiáticos muitas vezes ensaiam ilustrar diversas facetas da Índia

das mais variadas formas: partindo do ilustre Taj Mahal, passa pelos encantadores de cobras,

pelas mulheres vestidas de sáris, pelos ascetas barbudos, pelo trânsito caótico costurado entre

bicicletas / carros / riquixás e, é claro, entre as vacas sagradas. Até mesmo os filmes de

Bollywood1, largamente popular na Índia, tornaram-se conhecidos fora de seu país. Da

pobreza extrema das grandes favelas às luxuosas mansões dos maharajás, tudo é parte

integrante da Índia. Hoje, século XXI, entra na cultura indiana também a alta tecnologia da

informática e os avanços das telecomunicações. Como conciliar mundos tão díspares?

Dentro desse universo complexo, a cultura sânscrita engloba simultaneamente

aspectos religiosos, filosóficos e míticos, sem que haja necessidade de subdividi-la para a

construção do sujeito perante seu objeto. Tudo está no sujeito, tudo está no seu objeto. Assim,

antes mesmo de teorizar a sua cultura e conceitualizá-la, o homem hindu é um homem do

viver e do agir. Ele apreende a realidade ao seu redor e o seu mundo interior segundo seus

ensinamentos sagrados. Vale aqui uma ressalva sobre o termo sagrado, que merece igual

cautela:

(...) A herança comum nem sempre é identificável no vocabulário, nem nas teologias e

mitologias da época histórica. Devem-se levar em conta, por um lado, os diferentes contatos

culturais realizados durante as migrações, cumpre não esquecer, por outro lado, que nenhuma

tradição religiosa se prolonga indefinidamente sem modificações, produzidas seja por novas

criações espirituais, seja por empréstimo, simbiose ou eliminação. O vocabulário reflete esse

processo de diferenciação e inovação, iniciado provavelmente desde proto-história. O exemplo

mais significativo é a ausência de um termo específico, no indo-europeu comum, para designar

o “sagrado” (ELIADE, 2011, 187).

Dessa forma, devemos inserir esta palavra (aliás, não só ela, mas os termos em

sânscrito de forma geral) levando em consideração a sua história interna e seu contato com o

mundo indiano e não indiano. Os rituais são processos e meios de devoção utilizados através

1 Derivado da palavra Bombaim – cidade cujo nome oficial é Mumbai – associado à Hollywood

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de orações e recitações para que o homem hindu possa entrar em contato com o seu Supremo.

É nesse âmbito que utilizaremos a palavra sagrado.

A condição humana perante o sagrado visa antes de tudo obter um conhecimento do

ser enquanto seu ātman (traduzido geralmente como si-mesmo, self ou eu). Para atingir esse

patamar, há um processo ritualístico a ser seguido; existe um caminho a ser trilhado. Sua

observação e reflexão enquanto um ser baseia-se nesse viver. E esse viver tem como sua

principal fonte espiritual a prática do yoga, tema este de crucial importância abordada em

Bhagavadgītā, cuja passagem encontra-se em Mahābhārata2.

A obra Mahābhārata é considerada uma das maiores epopeias da história em termos

de volume e também uma importante fonte de informação sobre a cultura e a civilização da

Índia antiga, segundo historiadores e pesquisadores sanscritistas. Os elementos da cultura

védica e bramânica estão expressos através das aventuras e desventuras de seus personagens.

Os fundamentos religiosos do Hinduísmo são igualmente caracterizados ao longo da obra, em

especial nas passagens do Livro VI (do total de XVIII), o Bhagavadgītā. O diálogo entre os

personagens centrais desse trecho, Arjuna, e seu primo e conselheiro, o deus Kṛṣṇa, é de

importância primordial para apresentar o tema crucial de todo o Hinduísmo, o dharma.

Durante a batalha entre dois clãs, de um lado os irmãos Pāṇḍava e do outro, os irmãos

Kaurava, Arjuna (terceiro irmão Pāṇḍava) questiona quanto ao seu dever como guerreiro e,

portanto, necessita da intervenção do seu amigo Kṛṣṇa para que este possa despertá-lo e fazê-

lo discernir quanto ao bem e o mal segundo seu dharma.

Esta dissertação pretende focar a pesquisa sobre esse discernimento e a condição

humana envolvidos no diálogo dentro do Bhagavadgītā, sob os aspectos do termo bem e mal

dentro da ideia envolvida no dharma. Para tanto, faz-se necessário fazer um contexto

preliminar introdutório sobre o Período védico e o Período bramânico, mas que não visa um

estudo exaustivo sobre a história da Índia antiga nem tampouco tem a pretensão de fazer uma

análise aprofundada das escrituras sagradas da época.

No primeiro capítulo será feita, ainda que brevemente, uma apresentação da origem do

termo Hinduísmo e seus desdobramentos cultural, filosófico e religioso, perpassando pelas

suas escrituras. O objetivo aqui será de situar o leitor quanto a esses tópicos e dar um contexto

introdutório para entrar na questão mais importante que virá posteriormente. Como quadro

teórico, serão utilizados os estudos feitos pelos indólogos Louis Renou (RENOU, 1964;

2 O recorte feito nessa dissertação não incluirá detalhes minuciosos sobre os estudos do Yoga, pois não é o foco

deste trabalho devido a sua complexidade e, portanto, valeria uma outra pesquisa. Apenas serão feitas algumas

discretas passagens aqui e ali sobre ele no intuito de interar o leitor.

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RENOU, FILLIOZAT, 1947), A. L. Basham (BASHAM, 1991 e 2004), Mircea Eliade

(ELIADE, 2010a, 2010b e 2011), Surendranath Dasgupta (DASGUPTA, 1952), Heinrich

Zimmer (ZIMMER, 1988), entre outros.

No segundo capítulo, analisaremos a obra Mahābhārata, com o objetivo de

contextualizar a passagem sobre o Bhagavadgītā. No primeiro subcapítulo apresentaremos a

“biografia” do autor, o resumo dos dezoito Livros do Mahābhārata e do Bhagavadgītā.

Focalizaremos a seguir a anatomia simbólica e metafórica dos personagens tanto humanos

quanto divinos. Quanto ao estudo sobre os Livros do Mahābhārata, veremos a tradução do

sânscrito para o inglês de Kisari Mohan Ganguli (GANGULI, 1883-1896). Há uma tradução

em língua portuguesa dos dezoito Livros feita por Eleonora Meier3, mas que não foi feita

diretamente do sânscrito para o português; ela foi feita da tradução do inglês de Ganguli para

o português. Também existem traduções feitas para o português baseadas nas versões feitas

por Krishna Dharma (DHARMA, 2002) e por William Buck (BUCK, 1998). Mas estas, por

serem versões condensadas, constarão apenas na referência bibliográfica a título de

curiosidade, pois uma vez traduzida e condensada, a obra adquire uma outra configuração

contextual.

Quanto ao Bhagavadgītā, foram feitas inúmeras traduções ao longo dos anos, como

consta no trabalho de mestrado de Rodrigo Gomes Ferreira (cf. FERREIRA, 2006). Mas todas

as passagens citadas nesta dissertação serão extraídas da última tradução brasileira feita

diretamente do sânscrito para o português pelo Carlos Alberto da Fonseca (FONSECA, 2009),

pois essa edição nos mostra que muitas palavras em sânscrito são intraduzíveis para a língua

portuguesa. Foram, portanto, colocadas em nota de rodapé as várias possíveis interpretações

para a compreensão do texto. As análises serão feitas baseando-se nos estudos feitos por

Aurobindo (AUROBINDO, 1995), Katsuhiko Kamimura (KAMIMURA, 2010), Angelika

Malinar (MALINAR, 2007), Paramahansa Yogananda (KRIYANANDA, 2007;

YOGANANDA, 2010), entre outros. O objetivo desse capítulo é também de situar o contexto

histórico e narrativo da epopeia.

Finalmente, no terceiro capítulo, focaremos o tema da redação sobre as percepções

simbólicas dos personagens segundo o dharma, o bem e o mal expostos na condição humana

do homem hindu. Neste capítulo, a pesquisa terá como quadro teórico o estudo feito pela

Wendy Doniger O’Flaherty (O’FLAHERTY, 1980), Alf Hiltebeitel (HILTEBEITEL, 2010),

Chanturvedi Badrinath (BADRINATH, 2007), Roy W. Perrett (PERRETT, 1998) entre outros.

3 Disponível somente em página eletrônica (<http://www.shri-yoga-devi.org/textos.html>. Acesso em: 30-04-

2013).

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É comum observarmos que dentro do senso comum fazemos uma delimitação clara

entre as condutas direcionadas ao bem e outra ao mal. O que vemos no Bhagavadgītā não é

um juízo de valor do senso comum. Os irmãos Pāṇḍava, a princípio, deveriam representar o

bem, pois estes vivem em harmonia, são justos, respeitam o próximo e são corajosos. Seus

primos, os cem irmãos Kaurava, por outro lado, enganam o próximo para seus próprios

benefícios, manipulam as pessoas, são gananciosos e agem por impulsividade do desejo. São

filhos de pais cegos que, devido a essa limitação, recusam-se a enxergar a obstinação

existente nas ações de seus filhos.

Na passagem de Bhagavadgītā, as divindades tornam-se tão “humanos” quanto os dois

clãs. Dão conselhos, ajudam os seus parentes, mas são igualmente cruéis e impiedosos. No

entanto, eles exercem um papel fundamental para nortear a conduta humana. Há uma força

conservativa dos Kaurava contra uma força evolutiva dos Pāṇḍava. O guerreiro Arjuna

representa a nossa essência nos momentos de dúvida. O diálogo entre ele e seu mentor Kṛṣṇa

é o diálogo que fazemos quando temos dúvida nas nossas escolhas. É a batalha que ocorre

dentro do nosso corpo e uma voz de introspecção em nossa mente. O ego e a consciência,

neste caso, não são para serem combatidos, mas sim refinados através do despertar de seu

dharma, cujo sentido vai além do dever. É um cumprimento dos desejos sociais e religiosos, é

um dever para com o grupo diante do papel a que cada um pertence e ter a percepção da etapa

que se encontra nesta vida. É por isso que após tantos séculos de existência a importância de

Bhagavadgītā ainda é relevante para o homem hindu.

Há, portanto, em Bhagavadgītā três dimensões na vida do homem hindu:

1. A humana: a dúvida, a posse (artha) e o desejo (karma);

2. A heróica: a ambivalência, a coragem, a disciplina e a moral (dharma);

3. A divina: a sabedoria, o discernimento e o desprendimento (mokṣa).

Como uma última observação nesta parte introdutória, ressaltamos a dificuldade que

há quando se faz uma tradução de um texto. Existe uma inevitável “recriação” e uma

intraduzibilidade não só de vocabulário, mas também de percepção, pois não lidamos com os

mesmos pressupostos da era védica / bramânica. É uma experiência soberana de distintas

compreensões sobre o corpo, percepção e discernimento. Por isso, há também uma

singularidade para lidar com o mal, com a dor e com o divino. A narrativa de Bhagavadgītā

representa essa diferença cognitiva através de metáforas enunciadas pelos personagens.

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Notas sobre transcrição do sânscrito

No presente trabalho, as transcrições e transliteração do sistema fonológico

devanāgarī para o alfabeto português obedecem às normas estipuladas pela Convenção de

Orientalistas de Genebra de 1894, conforme segue abaixo:

1. Fonemas vocálicos (as vogais longas com traço e os ditongos duram o dobro do tempo das

breves): a / ā / i / ī / u / ū / e / ai / o / au

2. Fonemas retroflexos vocálicos (com a ponta da língua “vibrando” no céu da boca; muitas

vezes grafada na língua moderna como /ri/): ṛ

Ex.: Ṛgveda (ou Rig-Veda)

3. Índice de nasalização (anusvāra, “o que segue a vogal”): ṃ

Ex.: saṃsāra

4. Aspirada surda (visarga): ḥ (como no inglês home)

Ex.: Duḥśāsana

5. Fonemas cacuminais (a ponta da língua deve tocar a parte mais alta do palato):

ṭ / th / ḍ / dh / ṣ / ṇ

Ex.: Kṛṣṇa (ou Krishna)

6. Outras nasais: ñ (palatal); ṅ (velar)

Ex.: Gaṅgā

7. Sibilante palatal surda (corresponde ao som /ch / ou /x /; muitas vezes grafada na língua

moderna com /ç/): ś

Ex.: Śiva (ou Shiva, Çiva)

8. K – sempre com o som de /ca / de cama. Ex.: karma

G – sempre com o som de /gue / de guerra. Ex.: Bhagavadgītā

C – sempre com o som de /tch /, como em tiro. Ex.: cakra

J – sempre com o som de /dj /, como em dia. Ex.: pūjā

R – sempre com o som de /ra / de cara, e não de raso. Ex.: Rāmāyaṇa

No corpo do texto por mim redigido seguirá as convenções acima citadas. Porém as

citações retiradas dos textos consultados manterão as grafias conforme apresentadas por cada

editora.

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Capítulo I – Um contexto preliminar arqueológico-religioso da Índia antiga

Sobre a Índia antiga, podemos dizer que, de acordo com pesquisas feitas ao longo dos

séculos, dois grandes rios foram responsáveis pela formação de sua civilização: o rio Ganges

e o rio do vale do Indo, que abrange o atual território do Paquistão.

Por volta de 2.500 a.C., segundo explorações arqueológicas, havia dois sítios que

deixaram indícios das comunidades que habitavam a região: Mohenjo-Daro e Harapa.

Mostraram ser cidades-fortaleza bastante avançadas, pois já faziam uso de metais e argilas,

utilizavam tijolos e conheciam a técnica de canalização de água. O povo dessa época já sabia

escrever, mas até hoje sua escrita permanece um enigma. Apesar de não haver templos,

palácios nem túmulos reais, foi surpreendente observar a uniformidade e a continuidade

cultural que havia nessa civilização harapiana, provavelmente por ter existido alguma espécie

de autoridade religiosa. Foi também em Mohenjo-Daro que se encontrou o “Grande Bath”

(ELIADE, 2010a, 130), o que lembrava muito as piscinas que eram usadas em rituais hindus.

Esses indícios arqueológicos harapianos provavelmente passaram por várias modificações,

adaptações e eliminações até chegarem ao formato das características hinduístas que surgiram

posteriormente, devido a diferentes contatos culturais ocorridos ao longo das constantes

migrações.

A partir de 1.600 a.C., antes da entrada dos povos arianos, essa cultura harapiana

começa a declinar. Em sequência, durante o período das grandes conquistas, esse povo ārya,

que em sânscrito significava “homem nobre”, formado por guerreiros nômades indo-iranianos,

tinha iniciado sua penetração no nordeste da Índia, conquistando a civilização concentrada

nos vales do Indo e depois conquistaram pouco a pouco toda a metade do norte da Índia,

destruindo, assim, as cidades harapianas.

Por volta de 1.500 a.C., esses arianos nômades passaram a ter uma vida sedentária,

fixando-se assim, como agricultores locais (ELIADE; COULIANO, 2003, 172). É importante

lembrar aqui que os ārya desconheciam a escrita (ELIADE, 2010a, 192). Ocupada por arianos

pela terra e por europeus pelo mar, nem por isso a Índia deixou de preservar a concepção tão

longamente enraizada sobre sua aceitação da sua cadeia ininterrupta de reencarnações.

Cientes de que a sua existência é momentânea e que o sofrimento é parte da sua condição

segundo sua posição social encarnada, o indiano mescla o divino e o humano como parte de

sua unidade. Mas não devemos nos esquecer de que desde essa época até hoje, a Índia é um

país de múltiplas etnias, línguas e costumes.

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1. Da oralidade para as escrituras

Nos textos védicos podemos encontrar passagens que evocam combates dos arianos,

nos quais são possíveis de se reconhecer os continuadores ou os sobreviventes da civilização

do Indo. As mitologias, embora de formas fragmentadas e por vezes deformadas, constituem

igualmente elementos importantes na tentativa de reconstituir a concepção religiosa original.

Antes transmitidas oralmente e em épocas tardias registradas em forma de escrita, tanto a

mitologia quanto o poema eram recursos utilizados pela civilização antiga para explicar e

compreender o homem, a natureza e o ciclo de vida cósmico. Carlos Alberto da Fonseca

explica esse recurso da seguinte forma:

Fazer poesia, ou literatura em geral, fosse ela de tendência artística ou científica, por parte a

elite cultural bramânica dominante em todos os períodos históricos da Índia antiga, era uma

atividade que deveria ter como suporte um nível lingüístico de prestígio – um nível lingüístico

adjetivado de “ornado, enfeitado, rebuscado, feito com arte, completamente produzido;

acabado, bem temperado, de bom gosto, refinado”: o tal Sânscrito, em suma (FONSECA, 2004,

56).

O recurso da oralidade dos literatos indianos no período bramânico (situado entre o

período védico e o período clássico) era como uma recusa à escrita como recurso técnico

literário. A fruição do texto era tão importante quanto seus meios de fixação para transmissão

da obra durante a composição. Os indianos, assim, fizeram o uso do corpo, da criação da

melodia, da emoção, da reverberação sonora e emocional para relacionar-se com essa fruição

poética. Para tanto, a transmissão oral era um recurso inigualável. Mas esse conjunto de textos

inicialmente transmitido oralmente foi registrado por escrito a partir dos séculos VIII e VII

a.C., sobretudo devido às ameaças da difusão do Jainismo e do Budismo.

Não que os indianos não tivessem conhecido a escrita: há algumas alusões a ela já nos poemas

védicos, e os poemas épicos refletem sua problematização. No Mahābhārata, por exemplo, na

relação ali instaurada entre o narrador Vyāsa e o escriba Ganeça, perpassa uma autêntica

discussão sobre os estatutos do criador-literário-senhor-da-memória-e-de-suas-intençoes-

expressas-verbalmente e do escriba-enquanto-fixador-por-escrito-do-que-foi-falado-por-outro

(FONSECA, 2004, 57).

1.1. Período védico

O Período Védico compreende aproximadamente os anos entre séculos XV a V a.C.

(CAMPBELL, 1994, 142) .

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Fig. 1

Mapa da Índia setentrional no período védico tardio

Há dois grupos principais de textos na tradição védica: o śruti (o que foi “ouvido”,

“revelado”), no qual se compreende o Veda (daí o nome do período), que são várias

coletâneas de textos cujo período de formação encontra-se entre os séculos XIV e IV a.C.

(ELIADE; COULIANO, 2003, 173), e o smṛti (o que foi “memorizado”). Essas tradições,

de origem oral, foram registradas, como já vimos, tardiamente por escrito. O termo Veda

significa “saber”, no duplo sentido de conhecimento e revelação. Acredita-se que esse saber

foi recebido dos deuses pelos ṛṣi (sábios-videntes) sob a forma de revelação. Possui um

considerável volume de mais de 40 mil versos.

O śruti subdivide-se em quatro saṃhitā (coletânea de hinos), conhecido como Veda:

Fig. 2

Ṛgveda

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17

- Ṛgveda: é o mais antigo dos quatro Veda e o mais antigo documento da literatura indiana;

foi composto entre 1.500 a 900 a.C. e a sua coleção de 1028 hinos está dividido em dez seções

(ou livros) chamados de maṇḍalas (ciclos); os hinos são utilizados pelo sacerdote hotṛ para

invocar os deuses; são preces e louvores dirigidos a um panteão de deuses, principalmente a

Varuṇa (deus do oceano), Indra (deus da guerra) e a Agni (deus do fogo), cada qual possuindo

uma função específica e que deve ser rigorosamente seguido cada um segundo seu ṛta (ordem

cósmica, regulador da natureza); A. L. Basham (BASHAM, 1991, 7) observa que os autores

destes saṃhitā muito provavelmente não eram habitantes das cidades da Índia antiga,

primeiro por não haver nenhuma menção a esses locais dentro da composição, e segundo

pelos hinos védicos frequentemente mencionarem animais como cavalos, o que não existia

nas cidades hindus da época;

- Yajurveda: Veda das cerimônias conduzidas por adhvaryu (guia para as liturgias); composto

por cinco saṃhitā (um Yajurveda Branco, com fórmulas sagradas – os mantras; quatro

Yajurveda Negro, com fórmulas litúrgicas); no Yajurveda as invocações são dirigidas aos

deuses e aos objetos de culto, conferindo um caráter sagrado;

- Sāmaveda: Veda dos cantos cujo conteúdo é conduzido pelo especialista udgārtṛ; também é

chamado de Veda das melodias;

- Atharvaveda: recitado por um brâmane, que inspeciona a atividade dos demais sacerdotes;

encontram-se nesses hinos os primeiros elementos sobre a medicina indiana (Āyurveda),

contendo fórmulas de cura e também preces mágicas.

Consta (...) que o rito era sempre obra secreta, porque realizada em espaço proibido, interdito

aos não-iniciados. Com efeito, o trabalho ritualístico constituía, na Índia védica, prerrogativa

de membros da casta bramânica, os brâmanes (do sânscrito brahamaṇa, lit, “aquele que detém

o brahaman” = o “poder” oriundo do rito). Eram estes treinados, ao longo de vários anos, nas

diversas disciplinas necessárias para o cumprimento do rito – as quais implicavam, entre outros

requisitos, a memorização de extensas porções de textos relativos à tradição à qual pertenciam

os ritualistas, ao conhecimento da adequação dos ritos aos eventos e, sobretudo, o

conhecimento das artes retóricas, graças às quais se tornava possível evocar e presentificar a

forma dos deuses (FERREIRA, 2004, 89).

Cada Veda, por sua vez, subdivide-se em:

- Brāhmaṇa: exposição dos rituais compostos pelos sacerdotes védicos datada entre 1000 a

800 a.C.; são instruções para os procedimentos litúrgicos; “os Bramanas, comentários em

prosa, interpretam o Brama sob o ponto de vista teológico por meio de símbolos, e tratam da

ciência sagrada explicando-lhe os ritos e as fórmulas” (LEMAÎTRE, 1958, 25);

- Āraṇyaka: chamado também de Livros das Florestas; são obras secretas que eram recitadas

fora da comunidade, no isolamento da floresta;

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- Upaniṣad: palavra sânscrita que significa upa (“perto”), ni (“sob”; “aos pés de”), ṣad

(“sentar-se”), ou seja, é a transmissão do conteúdo sobre a revelação de Brahman – Ātman,

cujo discípulo senta-se próximo a seu mestre para ouvir seus ensinamentos; entre os Upaniṣad

atualmente conhecidos, 108 são considerados como “a essência de todos os Upaniṣad”; o

Brahman é considerado o Espírito Absoluto e a Divindade Suprema; ele é tão transcendente

quanto imanente, “mas cada ser traz em si uma parcela de brama: o átman” (LEMAÎTRE,

1958, 28).

Com exceção dos Upanixades antigos, todos os outros textos religiosos e filosóficos foram

redigidos depois da pregação de Buda. (...) Não se deve, porém exagerar a importância da

cronologia. Em geral, todo tratado filosófico indiano apresenta concepções anteriores à data da

sua redação, e quase sempre muito antigas (ELIADE, 2011, 52).

Associados aos quatro Veda e seus anexos (Brāhmaṇa, Āraṇyaka e Upaniṣad) os

textos védicos ainda se compõem em:

- Vedāṅga: disciplinas auxiliares dos Vedas;

- Kalpasūtra: breves sūtras (“fio”; “frase; texto”; “prece”) sobre ritual, ética e leis, que se

subdividem por sua vez em Śrautasūtra (ritual de sacrifício), Gṛhyasūtra (ritual doméstico e

ritos de passagem) e Dharmasūtra (aforismos sobre dharma, redigidos em prosa, no estilo

característico dos sūtras védicos; são textos sobre moral, ética, lei e política).

O smṛti (o que foi “memorizado”) foi desenvolvido a partir dos textos de Dharmasūtra,

no qual é conhecido como Dharmaśāstras (ou código de leis). São manuais de direito

canônico, civil e criminal, também conhecido como Código de Manu (Manusmṛti), devido ao

seu compilador, o sábio Manu. O próprio smṛti possui também uma subdivisão de textos, o

Itihāsa-Purāṇa:

- Itihāsa: que significa iti “dessa forma”; ha “de fato”; āsa “foi” – convencionalmente

traduzido como história (BASHAM, 1991, 70), são grandes poemas épicos que contam a vida

dos reis, sábios e heróis; é onde encontramos os épicos Mahābhārata (que contém o

Bhagavadgītā) e Rāmāyaṇa;

- Purāṇa: são coletâneas de mitos, lendas, instruções de adoração às divindades, inicialmente

transmitidos oralmente; há dezoito principais Purāṇa que representam fonte importante da

história religiosa hindu; são dedicados a Brahmā, Viṣṇu e Śiva;

-Āgamas: manuais de culto e adoração.

Além das escrituras, existe no Hinduísmo uma importante divisão de era: o mahāyuga

(“grande era”) ou conhecido também como ciclo cósmico. Foi desenvolvido a partir dos

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textos de Brāhmaṇas e está subdividido em quatro yuga, o caturyuga (SARASVATI, 2006,

125):

- Satyayuga ou Kṛtayuga (Era do Ouro): considerada como a idade perfeita; é a era das

virtudes e do conhecimento, época do perfeito dharma; existe fartura e justiça, na qual os

homens não se descuidam de seus deveres e vivem em felicidade plena;

- Tetrāyuga (Era de Prata): nessa era os deveres passam a ser aprendidos, pois não são mais

espontâneos; começam as primeiras divisões hierárquicas; os homens tornam-se dependentes

das cerimônias religiosas, por isso surge uma grande variedade de ritos; eles começam a se

interessar por recompensas e ganhos; é a era das renúncias e do domínio; o dharma perfeito

do yuga anterior agora se reduz a ¾.

- Dvāparayuga (Era de Bronze): o dharma está reduzido pela metade e a outra metade do

universo passa a ser dominado pelos vícios; a infelicidade começa a ser mais frequente e a

vida física do homem se torna cada vez mais curta; eles buscam agora prosperidade e fama;

- Kaliyuga (Era de Ferro): é a era das disputas e da degradação; o dharma está reduzido a ¼

do universo; ¾ são de miséria, fome e medo; é o período em que surge Vyāsa, o sábio que

narra Mahābhārata.

Fig. 3

O ciclo do calendário Yuga

“As três primeiras [yugas] já estão concluídas, e a quarta teve início à zero hora do dia

18 de fevereiro do ano 3102 a.C. Durações respectivas: 1.728.000 anos, 1.296.000 anos,

864.000 anos; Kaliyuga vai durar 432.000 anos. A diminuição dos números representaria uma

deterioração física e moral dos homens em cada era” (FONSECA, In: Bhagavadgītā, 2009,

87). Mil mahāyuga formam um período cósmico que corresponde a um dia de Brahmā, o deus

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da criação. Um mahāyuga corresponde a apenas um piscar de olhos de Brahmā. Ele vive cem

anos e cada ano corresponde a trezentos e sessenta dias e noites cósmicos. Quando Brahmā

perece, ocorre a dissolução do universo, o mahāpralāya (ELIADE; COULIANO, 2003, 179).

No fim do quarto yuga, o universo encontra-se em sua total degradação. Por isso

Viṣṇu encerra o seu trabalho de preservação para que um novo Satyayuga se inicie. Assim,

sucessivamente, as quatro eras formam um ciclo até a última dissolução no qual Brahmā entra

no período do descanso da criação. Brahmā, então, após esse “sono cósmico” recomeça sua

criação num eterno ciclo de saṃsāra.

Saṃsāra: Metensomatose (encarnação de uma alma preexistente em novos corpos) no

hinduísmo tradicional, paradoxalmente aceita pelo budismo. Concebida como negativa.

Diversos métodos ascéticos e/ou místicos aparecem ao longo da história religiosa indiana para

obter a libertação (moksa) dos laços cármicos que produzem a repetição das descidas para o

corpo. [...] em outros contextos religiosos, a metensomatose pode ser positiva (ELIADE;

COULIANO, 2003, 332).

1.2. Período bramânico

O Período bramânico (ou Período épico-bramânico) compreende-se entre século X a.C.

e IV d.C. aproximadamente (FONSECA, 2009, 48). Nesse período, a arianização foi

acompanhada de perto tanto pela expansão do Bramanismo quanto do Hinduísmo alguns

séculos mais tarde. É provável que os brâmanes tenham chegado ao Ceilão (atual Sri Lanka)

ainda no século VI a. C. Posteriormente, por volta do século II a. C. a século VI d. C., o

Hinduísmo entrou na Indochina e parte da Indonésia atual. Mas este Hinduísmo, ao entrar no

sudeste asiático, parece ter absorvido muitos dos elementos locais. Durante as peregrinações,

os brâmanes contribuíram fortemente para a unificação religiosa e cultural da Índia central e

meridional. O objetivo desses brâmanes era inicialmente impor a estrutura social, o sistema de

culto e a visão de mundo segundo preceitos dos Veda e dos Brāhmaṇas às populações arianas

e não arianas locais. No entanto, ao mesmo tempo, esses brâmanes assimilaram também um

grande número de elementos populares das regiões dos locais por onde passavam.

Eliade observa que a passagem do Bramanismo para o Hinduísmo é imperceptível,

pois certos elementos especificamente “hinduístas” já estavam presentes no seio da sociedade

védica. “Mas visto que não interessavam aos autores dos hinos e dos Brāhmaṇas, esses

elementos mais ou menos ‘populares’ não foram registrados em textos” (ELIADE, 2011, 49).

No período védico, os poemas como Ṛgveda falam dos deslumbres do homem perante

as forças da natureza, dos sentimentos e da cultura, mas sem o questionamento no âmbito de

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contemplação. O relevante aqui era a obediência e a louvação às forças criadoras da vida; era

um viver antes de um raciocinar. O homem submetia-se aos ensinamentos proferidos pelos

seus superiores. No entanto, o quadro muda ao longo do período bramânico: o homem

sânscrito desse período passou a refletir seu papel enquanto indivíduo (ātman) em relação a

algo maior que ele (Brahman). A questão passou a ser: qual o papel do homem diante do

plano filosófico-religioso, enfim, qual o seu dharma? Esse comportamento e questionamento

foram elaborados principalmente nos épicos Mahābhārata (Bhagavadgītā) e Rāmāyaṇa. Por

isso, algumas vezes, esse período é chamado de Período Épico Bramânico. Sobre o ātman,

Fonseca explica:

(...) ātman, conceito dos mais prestigiados em todas as variadas escolas de pensamento

surgidas ao longo do período bramânico. No período védico, a palavra ātman designava tão-

somente o pronome reflexivo, o indicador do agente que praticava uma ação que se voltava

para/contra si mesmo. Decorre desse sentido o significado da palavra, tal como desenvolvido

pelo questionamento das Upaniṣad (também no período bramânico): tudo aquilo que determina

a constituição psico-mental-afetiva-social-histórica do indivíduo, o que o define e caracteriza

em oposição a qualquer outro sujeito. Assim, indica o Singular, o Individual, o Relativo –

contrariamente ao seu par conceitual, o brahman, que indica o Coletivo, o Grupal, o Absoluto

(FONSECA, 2009, 57).

2. Hinduísmo – um viver antes de um conceituar

Também conhecido como Sanātanadharma, o termo Hinduísmo foi “criado” a partir

da palavra Hindu, designado originalmente a Rio Indo. Tem origem etimológica na palavra

persa Sindhu, o que mostra uma forte relação entre a civilização persa e a indiana. Mas o

termo Hinduísmo como conhecemos hoje provém do final do século XVIII, utilizado pelo

Ocidente. Narayanan analisa esta expressão Sanātanadharma da seguinte forma:

O próprio uso do termo “hindu” é complexo. Tanto “Índia” como “hindu” derivam de Sindhu,

o nome tradicional do rio Indo. Em antigas inscrições e documentos, “hindu” refere-se ao povo

de “Hind”, o subcontinente indiano. Nos impérios da Índia Medieval sob domínio muçulmano

o termo era usado para designar muitas comunidades indianas não-muçulmanas. Embora se

encontre na literatura hindu em tempos mais antigos, só depois do final do século XVIII é que

o termo se tornou popular como nome para designar a religião dominante do povo indiano.

(...) A expressão sanatana dharma (“fé eterna”) tornou-se popular nos dois últimos séculos, mas

aplica-se mais às interpretações filosóficas da religião do que às suas variadas manifestações

locais. Nos textos antigos, sanatana dharma significava as obrigações religiosas ideais dos

seres humanos, mas não expressava a idéia de uma comunidade de fé (NARAYANAN, 2009,

7-8).

Heinrich Zimmer afirma que “a filosofia da Índia é fundamentalmente cética em

relação às palavras” (ZIMMER, 1986, 33). Assim, dizer “religião” ou “fé eterna”,

“pensamento” ou “filosofia”, talvez pouco importe para o pensamento indiano. As palavras

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são traduzidas e/ou conceituadas num âmbito puramente intelectual para poder situar-se no

mundo onde se encontra. Mas as respostas ao enigma do universo e da existência humana não

se resumem simplesmente a esse processo. Para compreender o seu papel, o seu objetivo,

enfim, a sua relação com o seu objeto (seja ele homem ou universo), um homem hindu faz uso

de suas escrituras e seus rituais como meios de comunicação.

Para o pensamento hindu, além da importância do ritualismo puro, é igualmente

importante a sua dependência na crença de uma alma. Assim, ele aceita dois princípios

básicos de sua crença: o saṃsāra, que crê na transmigração das almas, e o karma, que está

ligado à doutrina de compensação. Essa conexão entre o saṃsāra e o karma com a

compensação do bem e do mal propõe um renascimento mais ou menos honorário. Isso

significa que na Índia, a crença sobre o destino foi largamente difundida.

Este karma do bem e do mal era determinado pela astrologia e pelo horóscopo, mas de

forma individual e não coletivo. Não havia uma recompensa ou um castigo que durasse

eternamente. Mas no pensamento hindu, em geral, o paraíso e o inferno tinham papeis

secundários. O paraíso, originalmente, foi provavelmente um local privilegiado para os

brâmanes e para os guerreiros, como veremos no Livro XVIII de Mahābhārata. Weber

observa que a doutrina do karma transformava o mundo num cosmos estritamente racional,

ético e determinado, representando, assim, a mais consistente teodiceia, jamais antes

produzida pela história (WEBER, 1958, 121).

O sacrifício védico dos Upaniṣad é desvalorizado em comparação ao dos Brāhmaṇas,

pois é um ritual de ação (karma), e como toda ação, produz resultados de ordem negativa,

desencadeando para o ser humano o ciclo do saṃsāra (ELIADE; COULIANO, 2003, 175).

Este termo saṃsāra aparece somente no Upaniṣad, mas ignora-se a origem de sua doutrina.

Foi uma tentativa de explicar a crença na transmigração da alma pela influência de elementos

não arianos. De qualquer forma, esse termo acabou por criar uma visão pessimista da

existência. O ideal do homem védico, como por exemplo, viver mais de cem anos, mostrou-se

ultrapassado. Mas a vida em si mesma não representava necessariamente um mal. Entretanto

ela, a vida, deve ser utilizada como meio de livrar-se dos laços do karma. O único objetivo

digno de um sábio é a obtenção do mokṣa, a liberação (ELIADE, 2010a, 230).

Uma vez que todo o ato (karma), religioso ou profano, revigora e perpetua a transmigração

(samsara), a liberdade não pode ser alcançada pelo sacrifício nem por meio dos íntimos

relacionamentos com os deuses, nem através da ascese ou da caridade. (...) Uma descoberta

importante foi realizada ao se meditar sobre o valor soteriológico do conhecimento, já exaltado

nos Vedas e nos Bramanas. Evidentemente, os autores dos Bramanas referiam-se ao

conhecimento (esotérico) das homologias implícitas na operação ritual. Era a ignorância dos

mistérios sacrificais que, segundo os Bramanas, condenava os homens a uma “segunda morte”.

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Mas os rishis foram mais longe; dissociaram o “conhecimento esotérico” do seu contexto ritual

e teológico; a gnose é agora tida como capaz de apreender a verdade absoluta, revelando as

estruturas profundas do real. Tal “ciência” acaba por eliminar literalmente a “ignorância”

(avidya), que parece ser o quinhão dos seres humanos. Trata-se, certamente, de uma

“ignorância” de ordem metafísica, pois ela se refere à realidade última, e não às realidades

empíricas da experiência cotidiana. (ELIADE, 2010a, 230)

Essa ignorância está diretamente relacionada à ilusão, referindo-se ao māyā, que tem

um poder criador do mundo àqueles de pouca observância. “Segundo a filosofia indiana, a

tarefa primordial do ser humano, e, em última instância, irrecusável, consiste em compreender

este segredo, saber como age e transcender – se possível – seu feitiço cósmico (...)”

(ZIMMER, 1986,33).

Da raiz MĀ “medir”, (...) literalmente, māyā é a medida que todo sujeito forma da realidade,

do meio em que vive, é seu ponto de vista, sua visão das coisas – e, nesse sentido, corresponde

a uma arte, uma sabedoria. Como todo sujeito imagina que sua ideia deve prevalecer, então sua

māyā se converte em “ilusão, imagem irreal, erro de percepção”. Nos sistemas filosóficos

Sāṃkhya e Vedānta, é considerada a fonte do universo perceptível (FONSECA, 2009, 86).

Portanto, o homem hindu centra sua atenção e seu questionamento para uma grande

tarefa: como poderia o homem sair afinal dessa roda da reencarnação e, por conseguinte, de

qualquer repetição de morte? E como desfazer-se desse māyā, conhecido como o véu da

ignorância? As possíveis respostas são estudadas até hoje em textos de Upaniṣad. A síntese

de todo o pensamento hindu foi formulada depois do fim do período desses textos, entre 500

a.C. e 500 d.C., época em que foram definidos a concepção de varṇas (“cor”), de āśramas

(“etapa”) e dos seis darśanas (“opinião”, “contemplação”).

Nos subcapítulos a seguir, veremos as divisões desses seis darśana, as concepções de

varṇa e suas quatro metas e etapas, das quais o dharma pertence. Também veremos as

principais divindades que fazem parte tanto do Veda quanto de Mahābhārata, e em qual

avatāra se localiza um deles, o Kṛṣṇa. As metas fazem parte de todo o corpo de Mahābhārata.

Os darśana Sāṃkhya-Yoga e o avatāra de Viṣṇu, o Kṛṣṇa, são partes integrantes de

Bhagavadgītā.

2.1. Varṇa e jāti: as tarefas do homem hindu

Os indianos contemporâneos são quase unânimes em considerar que na época védica

ainda não existia uma designação para o termo casta que a Índia viria a utilizar

posteriormente. Em sânscrito existem dois termos distintos para designar a compartimentação

um grupo social: o varṇa, que significa “cor”, e o jāti, que significa “grupo de nascimento”.

“Nas varṇa, cada uma em sua especificidade, a que cada sujeito pertence são levadas em

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consideração as qualidades do sujeito e sua performance, a realização funcional de seus

talentos” (FONSECA, 2009, 88). Qualquer que seja o termo designado ao grupo social, nota-

se que durante esse período, havia uma ideologia religiosa que nitidamente repartia esse grupo

em quatro:

Brāhmaṇ (brâmane)

São sacerdotes cuja função era de se ocupar da soberania mágica e jurídica. Os

brāhmaṇ que memorizam as fórmulas e rimas dos rituais oficiais védicos eram considerados

“deuses humanos”, pois eles eram os únicos que se comunicavam com as divindades através

das orações. Toda família bramânica (gotra) está ligada a um santo, o ṛṣi, que também vem a

ser um vidente. Profissionalmente os brāhmaṇ se dividem em oficiante e em sacerdote

(purohita), recrutado por vezes entre o grupo de brāhmaṇ da vila. O purohita está

estritamente a serviço de um rei (RENOU, FILLIOZAT, 1947, 375).

Kṣatriya (guerreiros)

Tinham a função dos deuses como força protetora e de luta. Eram também reis e

príncipes. Segundo o mito védico do Puruṣa, eles nasceram dos braços do “ser primordial” de

que originou o mundo. Em Mahābhārata veremos que um dos principais personagens da

epopeia eram kṣatriyas. Arjuna, a figura central de Bhagavadgītā, perde-se no seu dharma

como kṣatriya, por isso pede a ajuda de seu fiel amigo Kṛṣṇa, como veremos no Capítulo II.

Vaiśya (agricultores)

Eram os provedores de prosperidade econômica, baseada principalmente de produção

agrícola.

Śūdra (servos)

Eram aqueles com função servil, sem qualquer detenção de poder.

À parte dessa divisão, havia o grupo dos párias, também conhecidos como os

“intocáveis” ou “impuros”. No fim da época védica, observa-se que essa organização da

sociedade em quatro principais grupos estava concluída. Renou cita uma passagem em que J.

Muir descreve sobre a origem e valor deles:

Brama criou assim anteriormente os Prajapatis bramânicos, penetrados por sua própria energia

e em esplendor igualando o sol e o fogo. O senhor formou então a verdade, correção, fervor

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austero e os Vedas eternos, a prática virtuosa e a pureza para se atingir o céu. Formou também

os deuses, demônios e homens, brâmanes, xátrias, vaixás e sudra, bem como todas as outras

classes de seres. A cor dos brâmanes era branca, a dos xátrias vermelha, a dos vaixás amarela e

a dos sudras negra.

Se a casta das quatro classes for distinguida por sua cor, então se mostra observável uma

confusão de todas as castas. O desejo, a raiva, o medo, a cupidez, a aflição, a apreensão, a fome,

a fadiga, atingem-nos todos; pelo que se discrimina a casta, então? O suor, urina, excremento,

fleuma, bílis e sangue são comuns a todos; todos têm corpos que degeneram; pelo que se

discrimina a casta, então? Há inúmeras espécies de coisas que se movem e são estacionárias;

como se pode determinar a classe desses diversos objetos?

Não há diferença de castas; tendo sido criado inteiramente bramânico de início por Brama, em

seguida este mundo se separou em castas devido às obras. Aqueles brâmanes que gostavam do

prazer sensual, ferozes, irascíveis, inclinados à violência, que tinham abandonado seu dever e

apresentavam membros vermelhos, caíram na condição de xátrias. Aqueles brâmanes que

extraíam sua subsistência do gado, eram amarelos, subsistiam pela agricultura e

negligenciavam seus deveres entraram no estado de vaixás. Aqueles brâmanes que gostavam

da maldade e falsidade, eram cobiçososo e viviam de todos os tipos de trabalho, eram negros e

tinham abandonado a pureza, mergulharam na condição de sudra. Estando separados uns dos

outros por essas obras, os brâmanes se dividiram em castas diferentes.(...)

Aquele que é puro, consagrado às cerimônias natais e outras, que estudou completamente os

Vedas, vive na prática das seis cerimônias, executa perfeitamente os ritos da purificação, come

os restos das oblações, prende-se a seu mestre religioso, é constante nas observâncias religiosas

e devotado à verdade, chama-se brâmane (...). Aquele que pratica o dever advindo do cargo de

rei, dedica-se ao estudo dos Vedas e tem prazer em dar e receber, a este se chama um xátria.

Aquele que prontamente se ocupa com gado, é dedicado à agricultura e à aquisição e se mostra

perfeito no estudo dos Vedas, denomina-se vaixás. Aquele que habitualmente se inclina a todos

os tipos de alimento, executa todos os tipos de trabalho, não é limpo, abandonou os Vedas e

não pratica as observâncias puras, é tradicionalmente chamado de sudra. E isto que afirmei é a

marca do um sudra, e não se encontra em um brâmane; um sudra assim continuará a ser um

sudra, enquanto o brâmane que agir assim não será um brâmane (MUIR, apud RENOU, 1964,

107-108).

2.2. Puruṣārtha e varṇāśrama: os percursos do homem hindu

O puruṣārtha ou puruṣa (“homem”) / artha (“meta” ou “sentido”) é a finalidade da

vida do homem hindu, ou seja, o esforço pelo qual o homem deve fazer para trilhar o percurso

de sua vida. Para realizar esta tarefa, ele deve observar e viver quatro metas específicas ao

longo de sua vida. São elas: o dharma, o artha, o kāma e finalmente o mokṣa. As três

primeiras são chamadas de trivarga e consideradas metas humanas, ou seja, metas mundanas.

A quarta meta, o mokṣa, é a libertação dessas metas humanas. “O fim do sanatana dharma

realiza-se na identificação do átman com Brama. É o mokcha, ou Libertação” (LEMAÎTRE,

1958, 30).

Dharma

Termo complexo de difícil definição, ele apreende basicamente dois âmbitos: o

dharma definido como conduta moral e virtude pessoal, e o dharma no âmbito universal, em

que cada indivíduo deve observar suas ações segundo contexto inserido em sua sociedade.

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Assim, cada indivíduo é responsável pelo seu dharma do mundo interno e externo (veremos

com um pouco mais de detalhe no Capítulo III desta dissertação). Os textos mais relevantes

que compreendem essas leis são o Dharmaśāstra e o Dharmasūtra.

Artha

Significa literalmente “coisa, objeto”. Refere-se às posses materiais e às riquezas:

inclui-se nessa meta o propósito da economia e da política, e as técnicas de sobrevivência. São

objetos materiais passíveis de serem adquiridos para as necessidades de sobrevivência do

cotidiano, seja ela para manutenção e sustentação de uma família, como também para cumprir

os deveres e as obrigações religiosos. Mas essas posses podem ir além: refere-se também às

aquisições para ostentação e prezeres pessoais, conforto e prosperidade, lucro e fortuna. No

campo das políticas, refere-se à obtenção, ao exercício e à conservação de poder. Ensinado

por vezes em forma de versos didáticos, esse exercício de poder surge em doutrinas indianas

de várias escrituras. “Elementos valiosos também aparecem em muitos dos diálogos, relatos e

fábulas didáticas da grande epopeia nacional, o Mahābhārata” (ZIMMER, 1986, 39).

Kāma

Relacionado aos desejos, prazeres e amores da vida. Kāma é o deus hindu do amor,

mestre e senhor da Terra. Vātsyāyana, autor do texto clássico Kāmasūtra, acabou por

popularizar os ensinamentos sobre a sensualidade e erotismo indiano, mas a sua reputação

acabou atingindo um âmbito equivocado e ambíguo, pois o texto nada mais era um manual

para amantes, cujo objetivo era de corrigir e evitar frustrações na vida conjugal. Além desse

manual, há um outro texto que trata das várias artes do prazer: o Nātyaśāstra, que apresenta a

arte da dança, do canto e das artes dramáticas.

Mokṣa

É a libertação das três metas anteriores; é a redenção e a liberação espiritual. A palavra

deriva da raiz muc, que significa “desatar, livrar, soltar, libertar, abandonar, largar”.

Mokṣa é uma técnica para transcender os sentidos a fim de descobrir, conhecer e permanecer

identificado com a realidade atemporal que subjaz no sonho da vida no mundo. O sábio

conhece e interpreta a natureza e o homem na qualidade de visíveis, tangíveis e susceptíveis de

experiência, mas apenas para ir além deles rumo ao bem metafísico supremo (ZIMMER, 1986,

44).

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27

Há além dessas quatro metas, o varṇāśrama que são os estágios da vida que o homem

hindu pode percorrer, mas normalmente costuma-se parar no segundo estágio. São eles o do

estudante brahmacharya (estudar as escrituras sagradas sob as orientações de um brāhmaṇ), o

gṛhastha (ser chefe de família e constituir um lar), o vānaprastha (retirar-se na floresta para

meditação) e finalmente, sannyāsa (renunciar ao mundo e levar uma vida de mendicância

para tornar-se um asceta). Na passagem de Bhagavadgītā, Kṛṣṇa afirma que o sannyāsin (o

renunciante) é o verdadeiro representante de yoga. É este que se dedica à meditação e ao

estudo dos textos filosófico e religiosos.

Dos quatro varṇa mencionados, apenas o brāhmaṇ, o kṣatriya e o vaiśya eram dignos

de passar por essas etapas, pois eles eram dvija (nascidos duas vezes): o primeiro nascimento

referente ao fato biológico e outro referente ao nascimento após iniciação religiosa, o

upanayana. Diante dessas divisões, o dvija opõe-se ao śūdra, o trivarga opõe-se ao mokṣa e

os três primeiros āśrama opõem-se ao sannyāsa (ELIADE; COULIANO, 2003, 177).

Assim, a vida do homem hindu é norteada pelas leis de seu varṇa, sob a etapa da vida

em que se encontra (āśrama). Uma vez pertencente a um grupo, a uma família, ou a uma

função, suas condutas, públicas ou privadas, são rigorosamente normativas. O indivíduo,

enquanto ser único, é eliminado; sua personalidade é absorvida no coletivo. É talvez esta a

maior representatividade simbólica de Arjuna, pois este não é um indivíduo isolado.

2.3. Darśana: um sistema de contemplação

Na tradição indiana, o Hinduísmo é tão religioso quanto filosófico. São dois aspectos

indissociáveis, nas quais as concepções metafísicas e cosmológicas da Índia não são vistas

como doutrinas distintas ou independentes. O darśana, ou o “ponto de vista", indica que

essas duas concepções provêm da mesma origem: o Veda. Por isso, os precursores do darśana

foram pensadores, santos, místicos e sábios que tinham como finalidade a retomada e a

conservação da formas religiosas mais puras e autênticas. Eles eram verdadeiros estudiosos e

herdeiros dos Brāhmaṇas e dos Upaniṣads.

Convém esclarecer que o sânscrito não possui um vocábulo que corresponda exatamente ao

termo europeu “filosofia”. Um sistema filosófico especial denomina-se darsana, “ponto de

vista, visão, compreensão, doutrina, maneira de ver as coisas” (da raiz drs, “ver”, “contemplar”,

“compreender”) (ELIADE, 2011, 52).

O fato é que não há nenhuma palavra sânscrita que abarque e inclua tudo aquilo que na

tradição literária indiana poderíamos chamar “filosófico”. Os hindus têm vários modos de

classificar os pensamentos que consideram dignos de aprender e transmitir, mas não dispõem

de um termo único que compreenda todas as suas generalizações fundamentais sobre a

realidade, a natureza humana e a conduta (ZIMMER, 1986, 38).

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De qualquer forma, “filosofia” ou “contemplação”, “ponto de vista” ou “pensamento”,

o que sabemos é que o sistema do darśana foi dividido em seis escolas. Eliade e Couliano

(ELIADE; COULIANO, 2003, 176) e Musashi Tachikawa (TACHIKAWA, 1992, 76-77)

observam que os seis darśana formam na realidade três pares: Sāṃkhya/Yoga,

Vedānta/Mīmāṃsā e Nyāya/Vaiśeṣka devido a proximidade de pensamento de cada par. Mas

todos eles tinham como objetivo final a busca pelo mokṣa. Vejamos um pouco as

características de cada um:

Sāṃkhya

Escola fundada pelo sábio Kapila Muni, o termo Sāṃkhya significa “o que repousa

sobre o número”, “contagem”, “enumeração”, fazendo referência ao emprego das

enumerações e classificações desse darśana. Sāṃkhya é um sistema dualista que divide o

plano em fenomenal de natureza universal (prākrti) e transcendental, e natureza espiritual

(puruṣa).

O Samkhya é fundamentalmente ateísta e reconhece apenas o Espírito e a Natureza como o

princípio eterno das coisas, das quais se deriva pela evolução a totalidade das formas e seres. A

libertação é “isolamento”, onde a alma é desindividualizada. (RENOU, 1964, 29).

No contexto do capítulo 2 de Bhagavadgītā, Sāṃkhya pode significar “batalha, guerra,

combate”. “Para uma melhor ilustração de como talvez o dado numérico chamasse a atenção

na formação dos esquadrões dos exércitos e na quantidade de armas necessárias, note-se que

uma divisão do exército chamada akṣauhiṇī possuía um determinado número de elefantes,

carros, cavalos e pés” (FONSECA, 2009, 43). Por isso, Sāṃkhya em Bhagavadgītā pode

significar “A instalação da batalha”.

Yoga

É o estudo sobre a união entre o homem e o universo. A formulação de seu texto foi

feita em época desconhecida, mas foi Patañjali o principal responsável pela sistematização

dessa escola. O Yoga possui oito etapas conhecidas como aṣṭāṇga: abstinência, observância,

posturas corporais, técnicas de respiração, interiorização, concentração, meditação e

contemplação.

A Ioga, teísta, retém do ciclo causal do Samkhya apenas aquelas estruturas psíquicas por

intermédio das quais ensina o controle psico-fisiológico, uma restrição à circulação do

pensamento. Essa restrição pela ioga torna possível não só a aquisição de poderes sobre-

humanos como também e principalmente a conquista do controle místico. (...) Estudado através

do Samkhya-Yoga, o hinduísmo surge como uma disciplina do inconsciente (RENOU, 1964,

29).

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Em Bhagavadgītā, como veremos no capítulo II da dissertação, o Bhaktiyoga (o Yoga

da devoção) é apresentado como uma das três vias da libertação, além do Karmayoga (o Yoga

da ação desinteressada) e do Jñãnayoga (o Yoga do conhecimento). Conhecido também como

Hinduísmo devocional, o Bhaktiyoga tem como objetivo a devoção principalmente a Viṣṇu

feito através do culto próprio, o pūjā, que substitui os antigos sacrifícios védicos, o yajña.

Vedānta

Fundado por Bādarayaṇa (também comentador de Brahmasūtra e de Bhagavadgītā),

Vedānta literalmente significa “fim do Veda”, por estarem colocados no final dos textos

védicos. A princípio designa o conjunto das doutrinas presentes no Upaniṣad.

Foi graças ao sábio Śaṅkara (século VIII d. C.) que o Vedānta retoma vida através do

Sāṃkhya. Esse sistema Vedānta é chamado de advaitavāda (“não-dualista”), pois Śaṅkara

defende o monismo absoluto do princípio impessoal de Brahman e o caráter ilusório do

mundo, o māyā. Śaṅkara salientou o mokṣa, ou seja, a salvação, como a realização da

identidade do ātman com o Brahman, e isso deveria ser obtido através da meditação

(ELIADE, 1995, 364).

É uma exposição teórica da natureza e da manifestação universal. Este sistema aborda

como os cinco órgãos dos sentidos (jñãnendrīya) estão relacionados com os cinco órgãos da

ação (karmendrīya) e as projeções materiais (tanmāta) que formam o mundo (ELIADE;

COULIANO, 2003, 176-177).

Ao lidar com o pensamento indiano, no entanto, é o Vedanta o que se destaca como de

importância primordial. O pensamento vedântico se baseia nas antigas linhas dos Upanichades

no que concerne às relações do eu e da Alma Universal. De acordo com Shankara (séculos

VIII-IX), o fundador ou restaurador do não-dualismo radical, a realidade única é brahman, a

essência inqualificada composta do ser e da consciência. (...) A libertação consiste mais em

reconhecer a identidade entre atman e brahman, ou melhor ainda, em “realizar” essa identidade

no eu (RENOU, 1964, 29).

Só progressivamente e tardiamente (nos primeiros séculos da nossa era) é que o

Vedānta passou a ser a denominação específica de um sistema filosófico que viria a se opor

aos outros darśanas, mais especificamente ao Sāṃkhya e ao Yoga.

(...) No Svetasvatara e na Maitri Upanishad, na Bhagavadgita e no Mokshadharma (o livro

XIII do Mahabharata), encontra-se um número suficiente de indicações relativas às grandes

tendências do pensamento vedantino antes de Sankara. A doutrina da maya adquire uma

importância de primeiro plano. São sobretudo as relações entre Brahman, a Criação e a maya

que suscitam a reflexão. A concepção antiga da Criação cósmica como manifestação do poder

mágico (maya) de Brahaman cede o passo diante do papel devolvido à maya na experiência de

cada indivíduo, em especial a de cegueira. No final, maya é assimilada à nesciência (avidya) e

comparada ao sonho (ELIADE, 2011, 54).

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Māyā, portanto, tem um papel importante em todo o pensamento indiano tanto no

plano filosófico quanto religioso, pois é ela uma das principais responsáveis pelo sofrimento e

apego que o homem hindu tenta se desfazer.

Mīmāṃsā

Seu fundador foi Jaimini. Mīmāṃsā significa “investigação” ou “reflexão profunda”;

tem por objeto de estudo os textos sagrados e seus sentidos exatos das passagens dos rituais;

investiga, por exemplo, o sentido do dharma e do Brahman.

A Mimansa insiste sobre a necessidade de uma ortografia correta e de uma pronúncia perfeita

para a boa compreensão dos textos, bem como sobre a obrigação de distinguir bem as

diferentes classes de mantras segundo os ritmos que lhes são próprios (LEMAÎTRE, 1958, 53).

Nyāya

Darśana fundado por Akchapada Gautama, seu principal estudo é sobre a lógica, cujo

foco abarca ainda uma “pesquisa do espírito”. Possui uma forma particular de raciocínio que

se aplica ao domínio espiritual que conduz à libertação. “O nyaya-sutras chegam à conclusão

de que o infortúnio da existência é causado pela ignorância, pelo falso conhecimento”

(LEMAÎTRE, 1958, 48).

Vaiśeṣka

A autoria dos textos de Vaiśeṣka é atribuída a Kaneda. Faz distinções entre substâncias

materiais e espirituais e descreve os elementos da natureza; contempla a física e a teoria

atomística como principais temas de estudo.

Para o Vaisesika os corpos materiais se compõem de átomos infinitamente pequenos, eternos e

indestrutíveis, animados por uma força invisível, os quais se combinam segundo leis próprias

para formarem moléculas (...); a essas combinações de átomos ajuntam-se inumeráveis átmans,

ligados ao mundo fenomenal, e consequentemente ao círculo do sansara (LAMAÎTRE, 1958,

46).

Tanto o Nyāya quanto o Vaiśeṣka não pertencem ao corpus da tradição dos Veda, o

smārta. Dos seis darśana apenas o Mīmāṃsā e o Vedānta são considerados smārta. É nesse

corpus do smārta que está formulada a teoria de varṇa (ELIADE; COULIANO, 2003, 177).

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2.4. Deva e avatāra: as divindades entre os homens

Nas representações das divindades, brāhmaṇ correspondiam aos deuses Varuṇa e

Mitra; os kṣatriya, ao deus Indra e os vaiśya, aos gêmeos Nastya (ELIADE, 2010a, 189). Os

textos védicos apresentavam o deus Varuṇa como um deus soberano, que reinava sobre o

mundo, sobre os deva (deuses) e sobre os homens, mas não tinham o mesmo prestígio da

popularidade de Indra. No entanto, ele, Varuṇa, estava ligado a duas noções religiosas

importantes: o ṛta e o māyā. O vocabulário ṛta significa “adaptar-se” ou “curso, caminho”,

designando a ordem do mundo, simultaneamente a ordem cósmica, litúrgica e moral. Também

possui a conotação de “ordem fixada ou estabelecida, lei, regra, lei divina” (FONSECA, 2009,

145). A criação do mundo foi efetuada conforme o ṛta, os deuses agiam segundo o ṛta e ṛta

organizava tanto os ritmos cósmicos quanto as condutas morais. Por isso Varuṇa era aquele

que detinha o poder de restabelecer a ordem conforme os erros e as ignorâncias.

Posteriormente, na língua clássica, o termo ṛta foi substituído pelo vocábulo dharma

(ELIADE, 2010a, 196).

À primeira vista, parece paradoxal que o guardião do rta esteja ao mesmo tempo ligado

intimamente a maya. A associação é, porém, compreensível, se levarmos em conta o fato de

que a criatividade cósmica de Varuna possui também um aspecto “mágico”. Sabe-se que o

termo maya deriva da raiz may, “mudar”. No Rig Veda, maya designa “a mudança destruidora

ou negadora dos bons mecanismos, a transformação demoníaca e ilusória, e também a

alteração da alteração (DUMÉZIL, apud ELIADE, 2010a, 196).

Assim, Varuṇa, em sua ideia de poder criador, altera a norma cósmica, apreendendo o

sentido de māyā como “mudança desejada”, tanto como criação como destruição. Observa-se,

portanto, que a origem do conceito filosófico de māyā, como sendo a ilusão cósmica,

irrealidade, está associada simultaneamente com a ideia de “alteração”. Trata-se, portanto, de

uma māyā ambivalente, pois não se trata apenas uma alteração da ordem cósmica; é também

da criatividade divina (ELIADE, 2010a, 197).

Indra é o mais popular dos deuses, um herói por excelência, modelo de guerreiro a ser

seguido, enfim, um temível adversário. Representa a vida e a energia cósmica. Por isso, sua

presença é bastante constante em Mahābhārata.

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Fig. 4

Indra - Templo de Banteay Srei, Camboja

Fig. 5

Varuṇa

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Brahmā, juntamente com Śiva e Viṣṇu, forma a trindade da divindade hindu, a trimūrti.

Fig. 6

Da esquerda para direita: Brahmā, Viṣṇu e Śiva – Caverna de Ellora, Índia

Brahmā representa a força criadora do universo. Esse universo criado por ele tem a

duração de um dia no calendário hindu (yuga). Ao fim do dia, quando anoitece, Brahmā cerra

seus olhos e adormece. É o momento em que o universo sucumbe e tudo é consumido pelo

fogo, pondo fim a um ciclo de vida. Brahmā possui quatro cabeças e oito braços. As quatro

cabeças são para poder ver a sua amada Sarasvati, pela direita, pela esquerda, por trás e pela

frente. Em seus braços, ele segura uma flor de lótus, um vaso, seu cetro, um rosário, uma

colher e os Veda.

Śiva, por sua vez, é conhecido como o deus destruidor ou também deus da

transformação, pois ele destrói para poder reconstruir e transformar o universo. Nos hinos

védicos ele aparece com o nome de Rudra. Em um de seus braços ele segura o tridente para

destruir a ignorância dos homens. A serpente que sempre o acompanha simboliza a

imortalidade, pois Śiva conseguiu dominar a mais mortal delas. No topo de sua cabeça

encontra-se a lua crescente e a água que jorra desse topo não é senão o Rio Ganges. No centro

de sua testa encontra-se o terceiro olho, que simboliza sua superior sabedoria e poder de visão.

Sua cabeça é escura por ter bebido o veneno letal que surgiu do fundo do oceano cósmico,

para assim, poder salvar outros deuses da destruição. Śiva é associado à potência demoníaca,

ou no mínimo pode se dizer que essa potência é ambivalente, pois simboliza o perigo, inspira

o terror, é imprevisível, mas o seu poderio tem função também de fertilidade. Pode ser ao

mesmo tempo cruel e complacente, praticante de yoga e também dançarino. Nas altas

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montanhas de Kailāsa, localizadas no Himālaya, Śiva é o grande yogī, que fica sentado sobre

a pele de um tigre, em sua profunda meditação e é através dessa meditação que Śiva mantém

o universo. Assim, com seu poder divino, ele consegue mostrar sua variedade de

personalidade: ele não só é o deus místico, mas também o senhor da dança, o Naṭarāja.

A figura de Viṣṇu aparece no Ṛgveda e em outros textos védicos. Sua figura é

representada com quatro braços, cada um segurando um símbolo de seus atributos: uma

concha denominada pāñcajanya (“relativa aos cinco povos, às cinco aldeias”) que possui os

cinco elementos da criação (ar, fogo, água, terra e éter) ou cinco classes ortodoxas de seres

que habitam o mundo (os deva, os homens, os músicos/dançarinos celestiais, as serpentes e os

ancestrais). Ao soprar essa concha ouve-se o som da origem de todo o universo – o OM. Em

seu outro braço, há a roda de energia chamada sudarśana que representa o controle dos seis

sentimentos. Serve também como arma para cortar as cabeças de seu inimigo. A flor de lótus

chamada de padma simboliza a pureza e a verdade que está por trás de māyā. Por fim, o

cajado kaumodaki representa a força física e mental do universo. Para os devotos do Viṣṇu,

este deus é a fonte do universo e de todas as coisas que o pertence. De acordo com o mito

cómico do Hinduísmo, Viṣṇu dorme no oceano sobre a serpente de mil cabeças, a Śeṣa.

Durante o seu sono, uma flor de lótus cresce de seu umbigo e a partir desse lótus nasce

Brahmā, que cria o mundo. Uma vez criado o mundo, Viṣṇu se desperta para reinar o céu

mais elevado, o Vaikuṇṭha (BASHAM, 2004, 302-303).

Kṛṣṇa é um dos avatāra (descida de Deus à Terra sob forma de encarnação corporal)

de Viṣṇu. Além de surgir nas epopeias, está também nos dezoito Grandes Purāṇas e dezoito

Pequenos Purāṇas (ELIADE; COULIANO, 2003, 178). Devido a uma maldição, Viṣṇu foi

condenado a nascer muitas vezes na Terra (MATHUR; CHATURVEDI, 2008, 75). Mas essa

maldição fez com que Viṣṇu pudesse preservar e proteger seus devotos reencarnando e

surgindo na Terra sempre quando o mal e os demônios tornam a vida insustentável. É função

dele restabelecer a ordem e a justiça. Há dez avatāra que são geralmente aceitos

popularmente. Matsya, Kūrma, Varāha, Narasiṁha teriam surgido em Satyayuga; Vāmana,

Paraśurāma, Rāma teriam surgido na era de Tetrayuga; Kṛṣṇa na terceira era, ou seja,

Dvāparayuga, e finalmente Buddha4, na quarta e última era, o Kaliyuga. Kalki, um avatāra

futuro, deverá surgir ao final da era de Kaliyuga. Vejamos brevemente as características de

cada um deles (BASHAM, 2004, 304-306).

4Há uma versão de que o nono avatāra não teria sido o Buddha, e sim o irmão de Kṛṣṇa, o Balarāma

(NARAYANAN, 2009, 29).

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1º avatāra: Matsya (peixe) –Quando a terra

estava para ser engolida pela grande

inundação universal, Viṣṇu tomou a forma

de um peixe e alertou o sábio Manu do

perigo. Matsya salva os sete grandes ṛṣi,

Manu e sua família, colocando-os numa

embarcação. Matsya também consegue

salvar os Veda da inundação.

Fig. 7

2º avatāra: Kūrma (tartaruga) -

Durante a grande inundação, muitos dos

tesouros divinos se perderam, inclusive o

amṛta, a bebida que preservava a juventude

dos deuses. Viṣṇu torna-se uma grande

tartaruga, mergulha até o fundo do oceano

cósmico e em suas costas carrega o Monte

Mandara. Envolve-o com a serpente

Vāsuki no centro do oceano, rodopia-o

puxando a serpente, como se girasse um

peão puxando-o com a corda. Do

redemoinho do oceano emerge o amṛta e

vários dos tesouros perdidos.

Fig. 8

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36

3º avatāra: Vāraha (javali) – O rei

demônio Hiraṇyākṣa afunda a terra

novamente para o fundo do oceano

cósmico. Viṣṇu toma a forma de um

grande javali, mata o demônio e usando as

presas, Vāraha resgata a terra da

profundeza das águas.

Fig. 9

4º avatāra: Nārasiṃha (homem-leão) –

Hiraṇyakaśipu, irmão do demônio

Hiraṇyākṣa, passa a nutrir um profundo

ódio por Viṣṇu. Prahlāda, filho de

Hiraṇyakaśipu, era um grande devoto de

Viṣṇu, o que lhe causou um profundo

desgosto. Mas Hiraṇyakaśipu foi

abençoado por Brahmā devido a suas

realizações de guerreiro, só podendo ser

morto por alguém que não fosse nem

homem nem animal, nem de dia nem de

noite e nem por uma arma. Assim, Viṣṇu

apareceu meio-homem e meio-leão, ao pôr

do sol e com suas garras matou-o sobre

suas coxas, cumprindo dessa forma todas

as exigências de Brahmā.

Fig. 10

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37

5º avatāra: Vāmana (anão) – Bali, rei

demônio e neto de Prahlāda, toma posse do

universo, ameaçando os poderes dos

deuses. Estes pedem ajuda a Viṣṇu, que

agora assume a forma de um anão

brāhmaṇ mendicante, aparecendo diante

do rei Bali num momento de culto no qual

atendia aos pedidos dos brāhmaṇ. Vāmana,

aproveitando a oportunidade, pede que lhe

conceda todos os espaços que ele pudesse

medir com seus três passos. Logo que Bali

aceita o seu pedido, Vāmana torna-se

gigante e com o primeiro passo toma a

terra, com o segundo passo, o céu, e ao

tentar tomar a atmosfera com o terceiro,

Vāmana decide deixar o mundo

subterrâneo a Bali. Assim, Vāmana diz-lhe

que a cabeça de Bali será pisoteado com o

terceiro passo até que fosse enviado às

profundezas da terra.

Fig. 11

6º avatāra: Paraśurāma (Rāma-com-o-

machado) – Paraśurāma obtém de Śiva seu

machado chamado paraśu. É também com

ele que Paraśurāma aprende a arte da

destruição. É a primeira encarnação

plenamente humana de Viṣṇu, que surge

como filho do brāhmaṇ Jamadagni. Este

foi morto pelos filhos do rei Kārtavīrya,

depois que Paraśurāma destruiu todos os

males dos kṣatriya, pois estes não estavam

respeitando os brāhmaṇ e isso era

imperdoável perante a tradição indiana.

Fig. 12

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38

7º avatāra: Rāma - Viṣṇu, agora é

conhecido como Rāma, príncipe de

Ayodhyā e herói da narrativa Rāmāyaṇa,

epopeia escrito por Vālmīki. Surge para

salvar o mundo das opressões do Rāvaṇa,

demônio que capturou sua esposa Sītā.

Hanuman, o deus macaco, é o seu fiel

companheiro e amigo.

Fig. 13

8º avatāra: Kṛṣṇa – Certamente, dentre

todas as encarnações, Kṛṣṇa é considerado

o mais representativo avatāra de Viṣṇu.

Filho de Vasudeva e Devakī, durante a

infância realizou vários milagres, inclusive,

o de aniquilar demônios. Na adolescência

teve inúmeras relações com esposas e

filhas de vaqueiros. É o personagem

central de Bhagavadgītā. Seu nome

significa literalmente “preto”.

Fig. 14

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39

9º avatāra (a): Buddha – Viveu entre 563-

483 a.C. É a única encarnação de Viṣṇu

baseada em registros históricos. O

Budismo de Gautama Śākyamuni tem

como característica a não violência e a

recusa em executar sacrifícios de animais,

opondo-se assim, à tradição védica.

Fig. 15a

9º avatāra (b): Balarāma, irmão de Viṣṇu,

também personagem de Mahābhārata.

Fig.15b

Kṛṣṇa e seu irmão Balarāma

10º avatāra: Kalki (destruidor do tempo) –

Um avatāra do futuro, designado a surgir

no final da era de Kaliyuga, no tempo em

que o conhecimento sagrado estiver caído

no esquecimento. Destinado a destruir os

conflitos e o mal entre os seres, tem como

objetivo por o fim do ciclo de yuga, para

poder iniciar um novo Satyayuga,

restabelecendo a verdade e a pureza no

universo.

Fig. 16

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40

F. Max Müller, em uma de suas palestras proferidas (cf. MÜLLER, 1882), nota que os

três primeiros avatāra de Viṣṇu estão relacionados às águas5, os quais em todos os casos

referem-se ao resgate da espécie humana do desastre proveniente das inundações. Quando a

literatura védica tornou-se mais conhecida de forma geral, essas histórias sobre as grandes

águas foram descobertas talvez não em forma de hinos, mas no mínimo escritas em prosas

pertencentes ao período bramânico. Não somente a história sobre Manu e o Matsya, mas

também sobre Kūrma e Vāraha. Esta passagem sobre a destruição causada pelas águas

encontra-se nos textos de Catapatha Brāhmaṇa, no qual se encontra o diálogo onde Matsya

alerta Manu sobre o desastre que levará todas as criaturas. Matsya, então, ordena Manu a

construir um navio6e a meditar em nome de Matsya para poder se salvar.

Kṛṣṇa relata a Arjuna em uma das passagens do capitulo 4 de Bhagavadgītā sobre os

diversos avatāra pelos quais ele já passou e explica que razão pelo qual ele surge:

O Venerável7 disse:

Muitos foram os nascimentos atravessados por mim e por ti, Arjuna;

eu os conheço todos, Paraṃtapa8, tu não conheces. (4.5)

(...)

Toda vez que o dharma se torna débil, ó Bhārata,

O adharma se levanta - então eu surjo de meu ātman. (4.7)

E assim, mostra a Arjuna que toda vez que o homem esquece-se de seu verdadeiro

dever, Kṛṣṇa se torna necessário surgir diante deles.

Não se sabe ao certo se os textos védicos são fontes de estrutura primordial dessas

divindades. Eliade pondera que é preciso sempre levar em consideração que os hinos védicos

e os tratados bramânicos foram compostos para uma elite, a saber, a aristocracia e os

sacerdotes (ELIADE, 2010a, 207).

Ainda em Ṛgveda, além da várias dedicações aos deuses Indra, Varuṇa e Mitra,

encontram-se hinos que aludem os conflitos entre diferentes tribos arianas. Mas os dados

históricos desse Veda não aparecem em grandes quantidades. Alguns nomes das tribos

védicas, como o dos Bhārata, reaparecem, no entanto, em literatura posterior, o Mahābhārata,

composto pelo menos cinco ou seis séculos depois da época védica. Divindades como Indra,

que aparece com bastante relevância e importância nos hinos védicos, aparece também no

Mahābhārata.

5 Max Müller usa o termo deluge (cf. MÜLLER, 1882, 133); A. L. Basham usa o termo flood (cf. BASHAM,

2004, 304). 6 Max Müller usa o termo ship (cf. MÜLLER, 1882, 135).

7 Venerável = Kṛṣṇa.

8 Paraṃtapa = epíteto de Arjuna.

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Por último, apresentamos Gaṇeśa,

filho de Śiva e Parvati. Conhecido como

“destruidor de obstáculos”, é um semideus

dotado de sabedoria. Foi a ele que Vyāsa

recorreu para escrever a narrativa de

Mahābhārata.

Fig. 17

Gaṇeśa

Embora certos Upanichades revelem exatamente um início discreto para o hinduísmo, a

erupção maciça da religião se formou pelos Grandes Épicos, acima de todos pelo Mahabharata,

texto que, pelo menos em seu conteúdo, certamente antecede a era cristã. (...) Em seu texto são

tratados todos os valores mais profundos de hinduísmo no plano ético e jurídico, os deveres do

indivíduo em si próprio e em sua relação quanto à sociedade. (RENOU, 1964, 19).

Dessa forma, vemos que quando encontramos palavras como Vedismo, Bramanismo

ou Hinduísmo, os teóricos e estudiosos se distinguem entre si quanto às divisões

(cronológicas e contextuais). No entanto, estamos na realidade observando partes integrantes

de algo maior que engloba um todo: o universo indiano. Esse universo está ricamente narrado

em Mahābhārata, como veremos no próximo capítulo. Podemos concluir este capítulo com a

seguinte observação de Louis Renou:

O hinduísmo é realmente uma religião rica e complexa. Nenhuma iniciativa de um fundador,

ou dogma, ou reforma, impôs restrições a seu domínio; muito ao contrário, as contribuições

dos séculos se sobrepuseram, sem jamais desgastar as camadas anteriores de desenvolvimento.

(...)

Finalmente, hinduísmo caracteriza a sociedade como um todo. O sistema de castas com seus

diversos “estágios” de existência é parte dele e a vida é encarada como um rito. Não há

qualquer linha divisória absoluta entre o sagrado e o profano. Na verdade, não há termo hindu

correspondente ao que chamamos “religião”. Existem “atitudes” com relação à vida espiritual e

existe o dharma ou “manutenção” (no caminho certo), ao mesmo tempo norma ou lei, virtude e

ação meritória, a ordem das coisas transformada em obrigação moral – princípio este que

governa todas as manifestações da vida indiana.

Pode-se perguntar quando o hinduísmo começou, mas a resposta terá de ser indireta – o

hinduísmo começou na época em que a atividade original do ritual védico chegou a seu fim,

quando se perdeu a antiga estrutura védica.

(...)

O nome de “bramanismo” às vezes é dado à mais antiga das formas eruditas do hinduísmo,

mas levando-se tudo em conta é preferível encarar o mesmo como um todo, sem procurar

subdivisões superficiais (RENOU, 1964, 13).

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Capítulo II – Mahābhārata e Bhagavadgītā

O grande combate dos Bhārata conta a terrível guerra travada entre os cinco irmãos

Pāṇḍavas e seus primos, os cem irmãos Kauravas, pelo reinado de Bhārata. Kṛṣṇa, avatāra do

deus Viṣṇu, fica ao lado dos irmãos Pāṇḍavas e no momento do grande conflito, dá a Arjuna,

o guerreiro Pāṇḍava, a lição filosófico-religioso, conhecido como Bhagavadgītā, inserido no

Livro VI de Mahābhārata.

Bhagavadgītā, por sua vez, está subdividido em dezoito capítulos (Livro VI-25 a 42).

É considerado por muitos (cf. ELIADE, 2011; RENOU, 1964) como o texto sagrado mais

importante do Hinduísmo. A grande batalha entre os dois clãs envolve não só os homens

mortais, mas também as divindades que tomam partidos dentro da guerra. É uma obra que

discute o conhecimento do ātman (“eu”, “alma humana”, “si-mesmo” ou “self”) perante o seu

Brahman (“o Absoluto” ou “o Supremo”), tendo como pano de fundo as peripécias das

divindades, dos sábios, dos reis, dos príncipes, enfim, de todos aqueles que estão envolvidos

no relacionamento entre a dualidade da criação e a harmonia deste Brahman. A presença de

elementos míticos não pode ser reduzida a uma simples ficção. São passagens de relevância

histórica que englobam contextos cosmológicos, religiosos, filosóficos e éticos, nos quais

nada escapa do intuito de elucidar o universo humano perante seu papel e existência neste

mundo.

A seguir veremos uma breve apresentação de quem foi o narrador/personagem Vyāsa,

de como a obra foi concebida, um panorama dos dezoito Livros e a localização de

Bhagavadgītā dentro desse complexo épico.

1. A narrativa épica de Mahābhārata

A epopeia Mahābhārata, também conhecida como “A batalha de Kurukṣetra”, é o

principal documento histórico mitológico da Idade de Ouro da Índia. Maha significa “grande”

ou “total”; Bhārata, além do nome de um sábio, é também nome de uma família, um clã,

ancestral dos príncipes do norte da Índia e também um dos antigos nomes da própria Índia, a

“Terra dos Bhārata” (Bhāratavarṣa). Mahābhārata, portanto, pode ser traduzido como “O

grande descendente Bhārata” ou “A grande história de Bhārata”. É a mais longa epopeia da

literatura universal, possuindo cerca de cem mil śloka (estrofes de dois ou quatro versos)

escritos em sânscrito, dividido em dezoito Parva (Livros). Não se sabe ao certo a datação

precisa de quando obra foi elaborada, mas presume-se que tenha sido concluído entre VII e VI

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a.C. e tomando a forma como é apresentada atualmente entre V a.C. e IV d.C. (CAMPBELL,

1994, 259). Ou ainda, segundo Louis Renou: “(...) sua redação talvez esteja situada em uma

época entre o século II ou III antes de Cristo e o século I da era cristã” (RENOU, 1964, 107).

As aventuras são inspiradas em antigas lendas e fazem alusão aos dados históricos das

guerras. Por isso, Mahābhārata é às vezes traduzido como “A grande história da humanidade”.

A narração é interrompida aqui e ali por episódios a ela relacionados, fábulas e apólogos, ou

por dissertações políticas e morais que transformaram esse enorme poema numa espécie de

resumo geral dos valores principais do hinduísmo, resumo, entretanto, que dá mais espaço ao

dharma do guerreiro do que ao de um brâmane ou asceta (RENOU, 1964, 107).

Nos subcapítulos seguintes, veremos primeiro quem foi o autor dessa epopeia, seguido

de um pequeno enredo da obra para conhecermos os principais personagens e suas peripécias.

Na terceira parte, veremos em que contexto está inserido Bhagavadgītā.

1.1. A história do texto e do autor

Quando se credita a autoria de uma obra específica, existe na realidade uma atribuição

a um conceito não só de um indivíduo igualmente específico, mas também a um conceito de

poder. Existe algo como “o autor desta obra sou eu” ou “quem leva crédito desta obra?”. Em

Mahābhārata há essa autoria creditada historicamente, mas pela extensão da narrativa e pela

constatação de que o autor/narrador conversava com uma deidade, o Gaṇeśa, prova que ele foi

um “autor” e não um autor real. Louis Renou observa que a língua, o estilo, as contradições

internas, tudo denuncia uma irregularidade na redação, o que confirma a distância artística

entre as partes do texto e o autor (RENOU; FILLIOZAT, 1947, 385). Embora não haja

unanimidade na tradição indiana quanto à autoria, existe uma figura mítica popularmente

aceita e, portanto, uma cultura pautada no coletivo. Mas ele, enquanto elemento de

autenticidade, na realidade é secundário, ou seja, o relevante não é “quem” e sim “o quê”.

Jean-Claude Carrière faz uma interessante observação, segundo Georges Dumézil:

Será que é uma obra coletiva, uma coletânea de relatos sucessivos? Há quem sustente esta

hipótese. Georges Dumézil, que via o poema como uma transposição de um quinto Veda (hoje

desaparecido), acreditava, ao contrário, que era obra de um único autor, uma obra organizada,

em que os detalhes apresentados nas primeiras cenas encontram correspondência no final e,

sobretudo, porque a evolução de cada um dos personagens é precisa, a escrita poética é

coerente e, principalmente, não perde de vista, em nenhum momento, o sentido de conjunto

(CARRIÈRE, 2002, 267).

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Fig. 18

Gaṇeśa escreve Mahābhārata

Esse “autor”, chamado Vyāsa, de fato é um personagem importante na epopeia. Sem

ele não haveria a narrativa. É um autor onisciente e onipresente. Vejamos algumas

informações sobre como ele foi concebido: Vyāsa significa vy-āsa “distribuir ou deixar ir (as)

em todas as direções (vi)”. Não só é considerado o autor de Mahābhārata, mas também dos

dezoito principais Purāṇas (ou mais), e também compilador e organizador dos quatro Veda

(CAMPBELL, 1994, 259; RENOU, FILLIOZAT, 1947, 271, 385).

Kṛṣṇa Dvapayana Vyāsa é filho de Parāśara e de Satyavatī. Satyavatī é filha do rei

Uparicara Vasu e da apsara (ninfa) Adrika. Mas esta, devido a uma maldição, foi

transformada em um peixe. Certo dia, quando um pescador estava navegando sobre o rio

Yamuna, pescou Adrika e de dentro de sua barriga tirou um menino e uma menina. O menino

se tornou rei da cidade de Matsya, mas a menina, devido a seu mau cheiro de peixe, foi

chamada de Matsyagandha (ou “aquela que cheira peixe”), e foi adotada pelo pescador.

Parāśara, durante seu passeio pelo rio, vê Satyavatī. Apaixona-se por ela e promete

eliminar o seu odor de peixe em troca da união. Satyavatī concorda com a proposta e em

seguida dá luz a um menino. Assim, seu odor de peixe se transforma em um perfume. Ao

crescer, esse menino passa a se chamar Vyāsa e por ordem de sua mãe, decide viver na

floresta como eremita para se tornar porteriormente, um grande sábio e vidente, um ṛṣi.

Mais tarde, Śāntanu, rei Kuru do reino de Hastināpura, atraído pela fragrância de

Satyavatī, pede-a em casamento. Ela aceita sob a condição de que seus filhos herdem o

reinado, exigindo-lhe inclusive que o filho mais velho de Śāntanu deixe de obter seus direitos

como filho do rei. Este filho não é ninguém senão Bhīṣma, importante aliado dos Kaurava na

batalha de Kurukṣetra. Ele é filho de Śāntanu e de sua primeira esposa, a deusa Gaṅgā. Gaṅgā

havia afogado os primeiros sete filhos do casal devido a uma maldição, mas Śāntanu consegue

impedir que ela matasse o oitavo, o que viria a ser Bhīṣma. Este, ao saber que seu pai Śāntanu

encontrava-se em conflito devido a exigência de Satyavatī, decide abdicar o trono e promete

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ter vida de celibato para assegurar que nunca tenha filhos que ameacem usurpar o trono dos

filhos de Satyavatī.

Fig. 19

Śāntanu tenta impedir que sua esposa, a deusa

Gaṅgā afogue seu oitavo filho, futuramente

conhecido como Bhīṣma

Fig. 20 O rei Śāntanu apaixona-se por Satyavatī

Após a morte de Śāntanu, Satyavatī e seus dois filhos (Chitrāngada e Vichitravirya)

herdam o reinado. Mas estes morrem ainda jovens. Quando ocorre essa tragédia Vyāsa fica

subitamente sem personagem para continuar a sua narrativa. Ele precisa de sucessores nesse

reinado. Satyavatī pede a Bhīṣma que tenha herdeiros, mas este lembra-a de sua promessa de

voto de castidade. Quem, então, Satyavatī procura pelas florestas para solucionar o problema?

Ninguém menos que o seu primogênito, o próprio Vyāsa. Pede-lhe para que tenha herdeiros

com as duas viúvas (Ambika e Ambalika). Nascem dessa união Dhṛtarāṣṭra e Pāṇḍu, futuros

pais respectivamente dos Kaurava e dos Pāṇḍava. No entanto, Ambika, apavorada com a

aparência horrenda de Vyāsa, acaba fechando os olhos quando concebe Dhṛtarāṣṭra, por isso

ele é o “filho da escuridão”, o filho cego. Mas Ambalika, apesar de não se intimidar com a

presença de Vyāsa, ficou branca e pálida e devido a isso seu filho Pāṇḍu foi considerado o

“filho da luz”. Dhṛtarāṣṭra é “aquele que suporta”, “aquele que tem um reino seguro”, dhṛta,

“ reino”; Pāṇḍu é o “branco, pálido” (CAMPBELL, 1994, 262). Assim, o autor passa a ser

também pai dos seus personagens. “A carne penetra a palavra”, como observa Carrière

(CARRIÈRE, 2002, 267) e dessa forma, a castidade de Bhīṣma desencadeou o nascimento

dos dois novos personagens.

Vyāsa, ficando mais velho, pede certo dia a Gaṇeśa, filho de Śiva e Parvati, que

registre a história sobre seus filhos Dhṛtarāṣṭra ePāṇḍu e seus netos, iniciando-se assim, a

narrativa.

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Fig. 21

Vyāsa narra ao Gaṇeśa as peripécias de Mahābhārata.

1.2. Os dezoito Parva de Mahābhārata

Fig. 22a

Mahābhārata - Templo de Hoysaleshwara, Índia

Fig. 22b

Mahābhārata - Templo de Kailash, Índia

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Vejamos a seguir os personagens mais relevantes da obra e a composição dos dezoito

Parva (Livros) de Mahābhārata, de forma sintetizada.

Abhimanyu filho de Arjuna e Subhadrā

Ambalika mãe de Pāṇḍu

Ambika mãe de Dhṛtarāṣṭra

Arjuna terceiro filho Pāṇḍava; filho do deus Indra

Aśvatthāmā filho de Droṇa

Balarāma irmão de Kṛṣṇa

Bhārata rei do norte da Índia; patriarca do clã Bhārata

Bhīma segundo filho Pāṇḍava

Bhīṣma ancião do clã Kuru; primogênito do rei Śāntanu com Gaṅgā; aliado dos

Kaurava

Chitrāngada filho do rei Śāntanu e Satyavatī

Dharma deus da Justiça; pai de Yudhiṣṭhira

Dhṛtarāṣṭra rei cego do clã Kuru; habitante de Hastināpura; irmão de Pāṇḍu; pai dos cem

irmãos do clã Kaurava

Draupadī esposa dos cinco irmãos Pāṇḍava; filha do rei Drupada

Droṇa instrutor militar dos irmãos Pāṇḍava e dos Kauravas

Duḥśāsana segundo filho de Gāndharī, irmão de Duryodhana

Duryodhana primeiro filho Kaurava

Gāndharī esposa de Dhṛtarāṣṭra; mãe dos cem irmãos Kaurava

Gaṅgā deusa do Rio Ganges; mãe de Bhīṣma

Ghaṭotkaca filho de Bhīma

Janamejaya filho de Parīkṣit; bisneto de Arjuna

Karṇa filho de Kuntī e deus do Sol; aliado dos Kaurava

Kṛṣṇa avatāra de Viṣṇu; aliado dos Pāṇḍava

Kuntī primeira esposa de Pāṇḍu; mãe dos príncipes Yudhiṣṭhira, Bhīma e Arjuna

Kuru Bhārata que deu nome ao povo e ao campo de batalha de Kurukṣetra

Mādrī segunda esposa de Pāṇḍu; mãe dos príncipes gêmeos Nakula e Sahadeva

Nakula quarto filho Pāṇḍava; filho do deus gêmeos Ashvin

Pāṇḍu rei do clã Kuru; irmão mais novo de Dhṛtarāṣṭra; pai dos cinco irmãos Pāṇḍava

Parīkṣit filho de Abhimanyu; neto de Arjuna

Sahadeva quinto filho Pāṇḍava; filho do deus gêmeos Ashvin

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Śakunī irmão de Gāndharī; aliado dos Kaurava

Śalya irmão de Mādrī; aliado dos Kaurava

Saṃjaya sábio e vidente; conselheiro e cocheiro de Dhṛtarāṣṭra

Śāntanu rei Kuru do reino de Hastināpura; pai de Bhīṣma

Satyavatī mãe de Vyāsa, Chitrāngada e Vichitravirya

Saunaka sábio que pede o registro da história dos descendentes de Bhārata

Subhadrā segunda esposa de Arjuna; mãe de Abhimanyu; irmã de Kṛṣṇa

Uttara filho do rei Viratā

Uttarah filha do rei Viratā; mãe de Parīkṣit

Vichitravirya filho do rei Śāntanu e Satyavatī

Vyāsa poeta e narrador, sábio que compôs Mahābhārata; filho de Parāśara

com Satyavati

Yudhiṣṭhira primeiro filho Pāṇḍava

Fig. 23

Distrito de Kurukṣetra

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Livro I – Ādhiparva (Ādhi = “primeiro”, “começo”).

Trata-se de como esta obra foi narrada, contando a história do começo de Bhārata e o

início da vida dos príncipes guerreiro. É onde veremos a investigação dos sujeitos e sua

universalidade.

Janamejaya, bisneto de Arjuna, inicia o ritual do Sacrifício das Serpentes e é

questionado pelo motivo que o levou a fazer tal cerimônia. Janamejaya explica que seu pai foi

morto devido a uma maldição feita pelo deus da serpente. Após o término do sacrifício, o

sábio Saunaka que estava presente no ritual pede para que o Mahābhārata seja narrado.

Assim, Vyāsa chega a Janamejaya, e ao ser pedido para relatar as peripécias dos Kurus,

procura por Gaṇeśa para ajuda-lo nessa tarefa, dando início assim, o poema.

Depois de relatar o nascimento de Bhīṣma e de Vyāsa, a narrativa segue com a história

de seus filhos Dhṛtarāṣṭra e Pāṇḍu. Dhṛtarāṣṭra, apesar de ser o príncipe herdeiro, devido a sua

cegueira, abdica seu trono a seu irmão mais novo Pāṇḍu. Mas quando este morre, Dhṛtarāṣṭra

adota seus cinco sobrinhos Pāṇḍavas (Yudhiṣṭhira, Arjuna, Bhīma e os gêmeos Nakula e

Sahadeva), criando-os junto com os seus cem filhos. Entretanto, com tempo nota-se que os

Pāṇḍava tornam-se superiores aos Kaurava quanto à inteligência e capacidades militares.

Droṇa, brâmane e habilidoso arqueiro, tem como função ensinar a arte militar tanto para os

Pāṇḍava quanto para os Kaurava. Mas é em Arjuna que Droṇa percebe especial talento às

ciências das armas. Assim, principalmente entre o Pāṇḍava Arjuna e o Kaurava Karṇa, inicia-

se os primeiros sinais de rivalidade entre eles, pois ambos possuíam destacadas proficências

militares. Karṇa, apesar de estar ao lado dos Kaurava, é meio irmão de Yudhiṣṭhira, Bhīma e

Arjuna, mas ambos os clãs desconhecem esse fato, pois Kuntī, mãe de Karṇa, ao pari-lo,

abandonou-o num rio dentro de um cesto. Karṇa, assim, foi adotado e criado por um cocheiro

até a idade adulta.

Com a morte de Pāṇḍu, Dhṛtarāṣṭra torna-se rei, até que o primogênito de Pāṇḍu,

Yudhiṣṭhira, tenha idade suficiente para assumir o poder. Duryodhana, primogênito de

Dhṛtarāṣṭra, consumido por uma inveja demoníaca, não se conforma com esta decisão e arma

inúmeras armadilhas para eliminar o seu oponente para que possa assumir o poder no reinado.

Ele é a encarnação do demônio Kali, o mais perverso demônio do panteão hindu. Tempos

após os Pāṇḍava terem escapado das armadilhas arquitetadas por Duryodhana, Arjuna ganha a

princesa Draupadī como prêmio de uma competição. Draupadī torna-se a esposa dos cinco

irmãos Pāṇḍava, por ordem de sua mãe pois esta lhes ensina que tudo o que possuem deve ser

dividido igualmente entre os quatro irmão.

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Para amenizar a rivalidade, Dhṛtarāṣṭra, após renuniciar o trono, decide dividir o reino

em duas partes, dando Hastināpura aos Kaurava e o reino de Indraprastha aos Pāṇḍava.

Fig. 24

Pāṇḍu e Kuntī

Livro II – Sabhāparva (Sabhā = “corte”)

É o Livro que narra a vida no palácio e na corte. Kaurava, com inveja da prosperidade

do reino de Indraprastha, trama uma nova estratégia para destruir os Pāṇḍava. Um dia,

Duryodhana, com a ajuda de seu tio-feiticeiro Śakunī, decide desafiar Yudhiṣṭhira num jogo

de dados. Com os truques e trapaças de Śakunī, Yudhiṣṭhira perde sucessivamente seus bens

materiais, o reino, chegando a apostar no desespero, seus irmãos e por fim, sua esposa

Draupadī. Os Kaurava, na tentativa de humilhar ainda mais os Pāṇḍava, tenta despir Draupadī

diante de todos, mas Kṛṣṇa salva-a com a sua intervenção divina.

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Fig. 25a Duḥśāsana tenta despir Draupadī na frente de todos

cesso: 10.mar.2013

O rei Dhṛtarāṣṭra e sua esposa Gāndharī, percebendo o desespero e a desolação de

Yudhiṣṭhira e a ganância de seu filho Dryodhana, ordena que encerre o jogo, mandando-o

anulá-lo e devolver os bens aos Pāṇḍavas. No entanto, Yudhiṣṭhira, não se conformando com

o ocorrido, é seduzido novamente a partipar de uma segunda jogatina. Assim, devido aos

truques de Śakunī sobre os dados, os Pāṇḍava novamente perdem tudo e como punição são

banidos de seu reino e passam a viver exilados junto com Draupadī na floresta por treze anos,

sendo que no último ano eles deveriam viver incógnitos.

Fig. 25b

Kṛṣṇa salva Draupadī da humilhação

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Livro III – Vanaparva

Os Pāṇḍava habitam a floresta, conversam com os sábios e passam por diversas

experiências. Durante os doze anos de exílio, são abordados temas como a percepção do

ātman, a manifestação e a não manifestação do ātman, a sua energia e o seu relacionamento.

Nesse tempo, Arjuna sobe ao reino de Indra para adquirir disciplina militar e para poder obter

armas dos deuses. Yudhiṣṭhira e um ṛṣi conversam sobre as causas da miséria, o apego à

riqueza e o mal que há entre os homens.

Mesmo durante o exílio, Duryodhana planeja matar os Pāṇḍava, mas Vyāsa consegue

impedir que isso aconteça. Draupadī, observando tudo isso, não consegue se conter e desabafa

seu desespero a Kṛṣṇa. Nesse momento, ocorre discussões entre os irmãos Pāṇḍava: todos

querem retornar ao reino e reaver seus direito, mas Yudhiṣṭhira pede paciência e relembra

seus irmãos e sua esposa sobre virtude, mas Bhīma tenta encorajar Yudhiṣṭhira a agir e lutar.

Vyāsa, então conversa com Yudhiṣṭhira e avisa-o que Arjuna partirá para o norte para obter as

armas necessárias para a luta. Arjuna entra para a floresta, pratica austeridade, mas ao

combater Śiva, perde. No entanto, Arjuna recebe de Śiva a arma e encontra-se com Indra. Lá

recebe também armas dos deuses.

Durante o exílio, Viṣṇu surge em seu terceiro avatāra na forma de Vāraha (javali) para

erguer o mundo afundado durante o Satyayuga. Quando Draupadī cai devido à exaustão,

Bhīma socorre-a. Surge, então, Hanuman (o macaco), o fiel servo de Rāma, oitavo avatāra de

Viṣṇu. Hamuman conta a proeza de Rāma, descreve os quatro yuga e fala sobre os deveres de

um kṣatriya a Bhīma.

Os irmãos Pāṇḍava esperam ansiosamente pela volta de Arjuna. Quando este retorna,

relata-lhes a sua história sobre Śiva e as armas que obteve de Indra, mas que ele estava

impedido de exibi-las. Bhīma quer voltar para lutar contra Duryodhana. Assim, os Pāṇḍava

decidem partir, deixando as montanhas. Depois de ouvirem discursos sobre as percepções da

mente, do intelecto e sobre a transmigração da alma, todos retornam à casa.

Kṛṣṇa aproxima-se dos irmãos para falar sobre os atos dos homens e seus resultados

neste mundo e no próximo. Inicia-se posteriormente uma conversa sobre a dissolução do

universo quando chegar a era do Kaliyuga. Yudhiṣṭhira quer também saber sobre seu dever.

Ouve assim, sobre a grandeza de um kṣatriya, sobre virtude, karma, nascimento e morte, e o

resultado das ações.

No meio do caminho, os irmãos Pāṇḍava, um a um, chegam a um lago em busca de

água. Mas um grou faz perguntas a eles e cada um, ao dar respostas erradas, é morto.

Yudhiṣṭhira é o único que consegue responder corretamente fazendo com que esse grou

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ressuscite todos os irmãos. Esse animal não era ninguém senão Indra, o Senhor da Justiça.

Pela virtude de Yudhiṣṭhira, Indra concede-lhe benefícios.

Livro IV - Viratāparva

É o fundamento da vida e dos relacionamentos, no qual veremos a universalidade do

dharma. É o dharma como relacionamento entre ātman com ātman, e ātman com o outro.

É o décimo terceiro ano de exílio, no qual os Pāṇḍava foram ordenados a vivem

incógnitos. Passam os dias na corte do rei Viratā. Yudhiṣṭhira vive como um cortesão jogando

dados com o rei, Bhīma como cozinheiro, Arjuna como eunuco, Nakula como treinador de

cavalos, Sahadeva como treinador de vacas, Draupadī como criada da filha da rainha e Kṛṣṇa

como um criado. Todos eles são instruídos sobre como se comportar na frente de um rei. O

gerenal Kicaka do reino de Viratā tenta seduzir Draupadī, mas esta consegue escapar e pede

para que Bhīma o mate. Bhīma então, atrai Kicaka num salão e esmaga-o. Devido a este

incidente, parentes do rei exigem que Draupadī seja queimada, mas ela consegue se libertar

dessa punição.

Sob ameaça da invasão dos Kaurava em seu reino, Viratā alia-se aos Pāṇḍava após

estes revelarem as suas verdadeiras identidades. Droṇa sente maus presságios sobre os

Kauravas, mas tanto Duryodhana quanto Karṇa ignoram as palavras alarmantes de Droṇa e

preparam-se para o combate. Karṇa se prepara para lutar contra Arjuna, mas Aśvatthāmā,

filho de Droṇa, se recusa a lutar contra Arjuna. Bhīṣma recorda que a promessa de treze anos

de exílio foi cumprida e organiza seus soldados para a batalha. O rei Viratā oferece a sua filha

em casamento para o filho de Arjuna.

Livro V – Udyogaparva (Udyoga = “esforço”)

É o livro sobre a tentativa de trazer a paz diante da iminência da guerra entre Kaurava

e Pāṇḍava. Aqui veremos o tema sobre āhiṃsā, ou seja, a não violência como fundamento da

vida e do relacionamento. Também está presente tema sobre a justificativa do ódio, a

racionalidade sobre o perdão e seus limites, a violência no discurso e nas palavras, a violência

contra o ātman do indivíduo e a liberdade proveniente do medo (liberdade esta, fruto da

violência da história).

Os Pāṇḍava decidem reaver o reinado usurpado pelos Kaurava. Diante da recusa de

Duryodhana, aumenta-se a tensão entre os dois clãs. Ambos iniciam os preparativos para a

batalha e ambos pedem a aliança de Kṛṣṇa. Este, apesar de relutante diante da iminência da

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batalha, acaba por escolher os Pāṇḍava, rompendo assim, a última tentativa de pacificação em

Kurukṣetra. Bhīṣma, Droṇa e Kṛṣṇa, ou seja, sábios e divindades que antes eram conselheiros

e amigos dos Pāṇḍavas e dos Kaurava, agora precisam lutar uns contra outros.

Livro VI – Bhīṣmaparva

É a primeira parte da grande batalha, tendo como líder a divindade Bhīṣma que luta ao

lado dos Kaurava. É onde consta a passagem de Bhagavadgītā. Neste Livro veremos a

essência não só de Mahābhārata, mas também a essência da vida humana, pois cada

personagem possui um relacionamento com seu ātman, com suas particularidades entre seu

corpo e mente, cada qual com seus específicos desejos, motivos, ações e emoções. Cada

personagem possui um relacionamento também com seu outro, não só do ātman, mas com o

seu grupo, sua sociedade, sua nação, e de forma mais ampla, com sua terra, céu, fogo, vento e

tantos outros elementos do universo do qual ele/ela está rodeado. Assim, da mesma forma

como a vida está relacionada a todos esses atributos, a morte está igualmente presente.

Livro VII – Droṇaparva

As mortes continuam e Karṇa, a pedido de Duryodhana, indica Droṇa como novo

líder. Droṇa, mestre de arco e ritos védicos, foi inicialmente instrutor de guerra tanto dos

Kaurava quanto dos Pāṇḍava. Mas optou por ficar ao lado dos Kaurava, uma vez que Kṛṣṇa

optou por ficar com os Pāṇḍava. Depois de Bhīṣma, portanto, a divindade Droṇa agora é o

líder da batalha. Mas este acaba sendo morto. Dhṛtarāṣṭra lamenta a morte de Droṇa e

pergunta como isso ocorreu. Há novamente uma retrospectiva da narração. Duryodhana havia

pedido para que Droṇa capturasse Yudhiṣṭhira. Abhimanyu, filho de Arjuna, apesar de pouca

idade, também se destaca na batalha. Droṇa ataca Yudhiṣṭhira e provoca devastação, mas os

Pāṇḍava, sob liderança de Bhīma continuam resistindo.

Yudhiṣṭhira pede a Abhimanyu que penetre na formação de combate circular de Droṇa

e esse obedece. Abhimanyu consegue ferir Karṇa e Śalya, irmão de Mādrī. Mata em seguida o

irmão mais novo de Śalya, mas não conseguindo resistir à batalha, Abhimanyu morre. Vyāsa

chega à noite e é interrogado por Yudhiṣṭhira sobre a morte do menino. Kṛṣṇa tenta consolar

Subhadrā, mãe de Abhimanyu, esposa de Arjuna.

Śiva se aproxima de Brahmā, pois este não para de destruir as criaturas. Dhṛtarāṣṭra

reflete sobre a situação de como ela chegou a se desenvolver até esse ponto de aniquilação

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brutal e pergunta a Saṃjaya, seu conselheiro e visionário, a respeito. Ele, então, explica-lhe

que o próprio Dhṛtarāṣṭra é responsável pelo que está ocorrendo.

Livro VIII – Karṇaparva

Este Livro trata sobre o interesse em ātman e sobre a prudência como atributos

humanos.

Karṇa, filho e Kuntī, meio-irmão dos Pāṇḍava, agora está no comando após a morte de

Droṇa. Saṃjaya e Dhṛtarāṣṭra lamentam por testemunhar a batalha. Bhīma luta contra

Aśvatthāmā, mas este se retira para a tropa de Karṇa. Os gêmeos Nakula e Sahadeva levam

Yudhiṣṭhira para seu aposento depois de Karṇa tê-lo mutilado severamente. Śalya, por sua

vez, desvia-se de Karṇa para salvar Duryodhana de Bhīma. Depois de mais uma batalha feroz,

Arjuna derrota Aśvatthāmā e vai visitar Yudhiṣṭhira.

Fig. 26

Karṇa mata Ghaṭotkaca, filho de Bhīma

Livro IX – Śalyaparva

É outro Livro que trata dos atributos humanos: o prazer e a dor como experiência dos

fatos. Por que há mais dor do que prazer? Quais as suas ligações?

Dhṛtarāṣṭra culpa o destino pela atrocidade. Śalya está no comando no último dia da

batalha. Kṛṣṇa pede a Yudhiṣṭhira que mate Śalya. Sahadeva acaba matando o filho de Śalya.

Em seguida, Śalya e Bhīma lutam com o bastão mausala. Bhīma consegue matar Duḥśāsana,

aquele que humilhou Draupadī no dia em que ela foi colocada como a última aposta de

Yudhiṣṭhira no jogo de dados.

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Balarāma, irmão de Kṛṣṇa, chega à batalha para assistir. As divindades Vāruna e Agni

também assistem a batalha. É Balarāma quem diz a Bhīma e a Duryodhana para lutarem no

terreno de Samantapancaka. Bhīma recebe muitos golpes, por isso Kṛṣṇa, vendo a situação,

orienta Bhīma a lutar desonestamente para vencer, dizendo-lhe para quebrar ambas as coxas

de Duryodhana. Bhīma obedece e além disso chuta a cabeça de Duryodhana, o que faz com

que Yudhiṣṭhira repreenda severamente Bhīma. Balarāma também fica furioso ao testemunhar

a atitude covarde de Bhīma e por isso amaldiçoa-o. Kṛṣṇa retorna a Hatinapura e tenta

tranquilizar Gāndharī e Dhṛtarāṣṭra. Aśvatthāmā, filho de Droṇa, está agora no comando da

batalha.

Fig. 27

Duryodhana sendo morto por Bhīma

Livro X – Sauptikaparva (Sauptika = “guerreiros adormecidos”)

Aqui é narrada a importância da prosperidade material e a riqueza, ou seja, o artha,

uma das quatro metas do Hinduísmo.

No décimo oitavo e último dia de batalha, Aśvatthāmā oferece seu corpo a Śiva. Este

então entra no corpo de Aśvatthāmā fazendo com que ele adquira poderes além do normal e

mata os guerreiros aliados de Pāṇḍava enquanto estes estão dormindo. Morrem os cinco filhos

de Draupadī quando Aśvatthāmā percorre por todo o acampamento. Mas Arjuna consegue

neutralizar a arma de Aśvatthāmā e este é punido a vagar sozinho no meio dos odores de

sangue por três mil anos.

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Livro XI – Strīparva (Strī = “mulher”)

Este é o livro das mulheres, no qual Gāndhārī, Kuntī e as mulheres, tanto do clã

Kaurava quanto do Pāṇḍava, lamentam a grande matança. É a passagem na qual aborda o

tema sobre a energia sexual, o kāma, outra meta do Hinduísmo.

Saṃjaya continua a relatar os acontecimentos a Dhṛtarāṣṭra. Vidura conforta-o e fala

sobre a aflição e a tristeza, e sobre nascimento, sofrimento e morte de todas as criaturas. Fala-

se sobre os vínculos ao mundo fazendo analogia da carruagem. Vyāsa, por sua vez, explica

que a batalha foi ordenada pelos deuses e assim, finalmente a angústia de Dhṛtarāṣṭra é

acalmada.

Livro XII – Śāntiparva (Śānti = “paz”)

Este é o Livro sobre a paz na qual ocorre a coroação de Yudhiṣṭhira como novo rei de

Hastināpura. Os Pāṇḍava vão para a cidade Kuru e lá Yudhiṣṭhira pergunta a Narada a

respeito de Karṇa. Narada então narra o propósito de nascimento de Karṇa, de como Karṇa

obteve as armas e como foi amaldiçoado por ter matado a vaca de um brāhmaṇ. Certa vez,

enquanto Śiva dormia no colo de Karṇa, um verme perfura a coxa de Karṇa, mas este, apesar

da dor, não se move para não perturbar o sono de Śiva. Śiva então percebe que Karṇa é um

kṣatriya, pois caso contrário não teria suportado a ferida. Karṇa, então, é amaldiçoado a

perder a arma de Brahmā no momento em que ele mais irá precisar dela.

Vyāsa fala sobre os deveres de um rei, sobre os acontecimentos como parte do curso

do tempo, sobre os atos que atraem os erros dos homens e de como se purificar deles.

Yudhiṣṭhira, então, é avisado para ir até Bhīṣma. Yudhiṣṭhira é instalado no trono, designa os

deveres para os seus irmãos, doa as riquezas em homenagem aos que foram mortos e ruma até

Kṛṣṇa. Ambos vão juntos até Bhīṣma. Primeiro, Kṛṣṇa vai até ele para conversar sobre moral;

depois, Yudhiṣṭhira ouve de Bhīṣma sobre os deveres políticos e éticos dos reis e

posteriormente os deveres de kṣatriya, vaiśya e śudra. Indra também surge e faz um discurso

sobre os deveres de um kṣatriya.

Livro XIII – Anuśāsanaparva (Anuśāsana = “instrução”)

É o Livro sobre as últimas instruções de Bhīṣma. Bhīṣma, em seu leito de morte, fala

sobre o valor do reinado na sociedade, na economia e na política. Conversa sobre a

importância da família, suas obrigações e seus deveres, e o papel da esposa e da mãe dentro

de cada família. Yudhiṣṭhira ouve sobre a vida após a morte. Relata também sobre o maior

bem para os humanos: a compaixão. Os homens devem praticar o ato da doação como grande

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mérito da virtude. Bhīṣma ensina a Yudhiṣṭhira que a abstenção de carne também é um

exemplo de compaixão. Vyāsa afirma que o medo da morte é um exemplo de apego à vida e

que essa atitude deve ser abandonada.

Fig. 28

Os últimos ensinamentos de Bhīṣma

Livro XIV – Āśvamedhikaparva (Āśvamedhika = “Sacrifício do Cavalo”)

Kṛṣṇa explica a Arjuna sobre a qualidade da ignorância (ilusão), a paixão, a bondade e

sobre a grande alma (mahat). Relata também sobre as divindades, os deveres que são

governados sob diferentes formas, a analogia da vida com uma roda e a vida de reclusão como

forma de emancipação.

Fig. 29

Sacrifício do Cavalo

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Kṛṣṇa retorna a casa e discute a morte de Abhimanyu, filho de Arjuna. Outros

membros de Pāṇḍava também lamentam sua morte. Parīkṣit é filho de Abhimanyu com Uttarā,

filha do rei Viratā (Livro IV), e neto de Arjuna com Subhadra. Quando se iniciou a batalha,

Uttarā ficou grávida de Parīkṣit. Mas na noite do ataque de Aśvatthāmā (Livro X), Uttarā é

golpeada no ventre, fazendo com que perdesse Parīkṣit. No entanto, com a ajuda do poder de

Kṛṣṇa, ele consegue ser ressussitado. Posteriormente Parīkṣit casa-se com a rainha Mādravatī

e tem o filho Janamejaya, futuro rei de Hastināpura.

Ocorre a cerimônia real do Sacrifício do Cavalo. São os atributos centrais do

governante tendo como base a disciplina do dharma, mais uma meta do Hinduísmo. A

disciplinina do dharma é a disciplina de um rei. O temor deve servir como base da ordem

social. Mas quando Yudhiṣṭhira cai na aflição para conduzir a cerimônia, pede conselhos a

Dhṛtarāṣṭra, a Kṛṣṇa e a Vyāsa, mas este último repreende-o e Kṛṣṇa orienta-o a conquistar a

batalha que está ocorrendo dentro de sua mente.

O Sacrifício do Cavalo é um ritual védico que deve ser realizado somente por um rei

vitorioso, fazendo com que adquira dignidade de um soberano universal. O cavalo é

identificado com o cosmo e o seu sacrifício simboliza o ato da Criação.

Livro XV – Āśramavāsikaparva (Āśramavāsika = “vida eremita”)

Fig. 30

Gāndharī, vedada, ampara Dhṛtarāṣṭra e segue Kuntī no momento em que Dhṛtarāṣṭra torna-se velho e frágil,

retirando-se assim para a floresta

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Vyāsa sugere a Dhṛtarāṣṭra, agora em idade bastante avançada, que se retire para as

florestas. Dhṛtarāṣṭra, então, dá a Yudhiṣṭhira instruções e conselhos de como se deve agir

uma pessoa da realeza e ensina-lhe sobre o significado de guerra e de paz. Terminada a sua

tarefa, Dhṛtarāṣṭra parte para a floresta juntamente com um grupo. Kuntī e Gāndharī decidem

segui-los.

Vyāsa ensina a Dhṛtarāṣṭra como se deve viver na floresta. Pāṇḍava, angustiados,

decidem visitá-lo e conseguem encontrar-se com ele, Kuntī e Gāndharī. Kuntī, então, fala

sobre seu sentimento de culpa em relação a seu primogênito Karṇa.

Após Vyāsa convocar as tropas para uma reconciliação, os Pāṇḍava retornam a

Hastināpura. Mas após alguns anos, Yudhiṣṭhira toma conhecimento de que Dhṛtarāṣṭra,

Gāndhārī e Kuntī morreram em um incêncio na floresta onde viviam. Todos os Pāṇḍava

lamentam o ocorrido e realizam rituais fúnebres.

Livro XVI – Mausalaparva (Mausala = “bastão”)

Após trinta e seis anos de batalha, Yudhiṣṭhira tem maus presságios, que também é

notado por Kṛṣṇa. Vyāsa avisa que a hora dos Pāṇḍava está próxima. Arjuna, então, resolve

voltar para Yudhiṣṭhira.

Livro XVII – Mahāprasthanaparva (Mahāprasthana = “grande jornada”)

Yudhiṣṭhira passa o reinado a Parīkṣit, neto de Arjuna. Aqui, veremos temas como a

peregrinação, a renúncia, a reta conduta, a sabedoria, a ignorância e o santo.

Após anos que se seguem de mortes e atrocidade, a cidade desmorona, as divindades

perecem, os Kaurava morrem e os Pāṇḍava, já envelhecidos e debilitados, dirigem-se às

montanhas localizadas no Himālaya, o reino celestial de Indra, acompanhados pela esposa

Draupadī, pelos irmãos e por um cão. Não resistindo, morrem Draupadī (devido à sua

demasiada afeição por Arjuna), Sahadeva (por se achar o sábio e o mais humilde dos cinco

irmãos), Nakula (pela vaidade e por se achar o mais belo), Arjuna (por não ter vencido todos

os inimigo, como havia prometido, e pela sua demasiada confiança e arrogância) e Bhīma

(por não ter prestado atenção aos outros) durante a viagem, restanto apenas Yudhiṣṭhira e o

cão.

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Livro XVIII – Svargārohanaparva (Svargārohana = “ascenção para o svarga”)

Finalmente, neste último Livro veremos a ascenção de Yudhiṣṭhira ao svarga de Indra

e sua última provação. Também veremos o retorno dos Pāṇḍava ao mundo espiritual. É a

narrativa sobre a última meta do homem hindu: o mokṣa, ou seja, a libertação.

Ao chegar às montanhas, Yudhiṣṭhira é recebido por ninguém menos que Indra, a

divindade soberana, chefe tutelar de varṇa, ordenador do mundo tanto cósmico quanto moral.

Mas para que Yudhiṣṭhira possa ascender ao svarga, Indra ordena-o que abandone seu cão,

pois este é impuro e não digno de pisar o svarga. Yudhiṣṭhira recusa esta ordem divina

alegando que este animal foi-lhe fiel e companheiro durante sua trajetória até chegar a Indra.

Diante desta atitude de integridade, Indra revela a Yudhiṣṭhira quem realmente é este cão: seu

próprio pai, Dharma, a lei personificada. A Yudhiṣṭhira então, lhe é permitido a entrada para o

svarga, por ter passado pelo teste da virtude.

Fig. 31

Yudhiṣṭhira e seu cão a caminho do svarga

Quando chega ao reino dos svarga, para sua surpresa ele encontra ali os seus piores

inimigos, os Kaurava. Não compreendendo o ocorrido, Yudhiṣṭhira desce novamente ao

encontro de Indra e demanda a presença de seus irmãos e de sua esposa. Indra encaminha-o,

então, ao naraka e lá, entre cheiro de putrefações de corpos mutilados e escuridão,

Yudhiṣṭhira reconhece seus fieis companheiros. Após ver o svarga e o naraka, Yudhiṣṭhira

depara em sua última provação: escolher viver no svarga junto com seus inimigos ou viver

com sua família no naraka, um lugar de sofrimento onde vivem também aqueles que

praticaram erros. Yudhiṣṭhira responde a Indra afirmando que jamais abandonaria seus aliados,

preferindo assim, permanecer no naraka. Indra, então, revela que tanto naraka como svarga

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são māyā e que a provação era para testar a integridade de Yudhiṣṭhira diante das escolhas

que ele faz. Assim, Indra desfaz a cena, uma simples ilusão, concedendo a Yudhiṣṭhira, a seus

irmãos e a Droupadī a ascensão ao svarga. Com isso, encerra-se o Dvāparayuga e inicia-se o

Kaliyuga.

Ao final de toda a batalha, Janamejaya torna-se rei de Hastināpura ao longo de

sessenta anos, sucedendo Yudhiṣṭhira e Parīkṣit. Parīkṣit morre devido a uma maldição de um

brâmane, por ele tê-lo ofendido. Este brâmane faz com que Parīkṣit morresse com a mordida

de um naga (serpente). Janamejaya ao saber disso, decide fazer o ritual do Sacrifício das

Serpentes para se vingar de Takshaka, o rei do povo de naga. Durante este ritual, foi narrado a

epopeia Mahābhārata por Vaiśampāyana, discípulo de Vyāsa, a Janamejaya.

Fig. 32

À esquerda, com a coroa e arco-e-flecha, o rei Janamejaya. À direita, Vyāsa

Observemos que a referência à svarga e ao naraka não corresponde exatamente ao

“céu” e ao “inferno” no termo cristão. Não é uma questão de mérito ou de demérito. Svarga

significa “(lugar de) muito brilho” e naraka é “(lugar) para os homens”, como explica

Fonseca (FONSECA, 2009, 24). O que Yudhiṣṭhira presenciou não passa de um simples māyā.

Naraka, na realidade, é filho de Anṛta (“descontrole”; “desorganização”) e de Nirkṛti

(“desonestidade”; ”desmanche”) ou Nirṛti (“corrupção”). Nirṛti, por sua vez, é mãe de Bhaya

(“medo”) e de Mṛtyu (“morte”). Māyā, na mitologia personificada, é filha de Anṛta e Nirṛti,

ou filha de Adharma “desordem” (FONSECA, 2009, 86).

Devido a todos esses episódios, aventuras e desventuras com inúmeras reviravoltas,

Mahābhārata de fato merece ser classificado como um grande poema. O épico é

desenvolvido através de misturas de diálogos e narrações e Vyāsa é apresentado como o

sujeito e líder dos atores de seu próprio poema. Talvez, como observa C. V. Vaidya

(VAIDYA, 1904, 48), o personagem principal de Mahābhārata não seja o conjunto das

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grandes ações, mas sim a natureza da vida de um heroi. Mahābhārata sem dúvida deu vida

aos Pāṇḍava do início ao fim, mas também é possível perceber que o principal objetivo do

épico seja narrar as peripécias dos personagens, por isso a descrição detalhada das ações de

cada um. Vejamos a seguir umas das passagens centrais do épico: o diálogo entre Arjuna e

Kṛṣṇa.

1.3. Bhagavadgītā dentro do Mahābhārata

Fig. 33

Bhagavadgītā, manuscrito do século XIX

Inserido no Livro VI de Mahābhārata, Bhagavadgītā é um poema com setecentos

versos, distribuídos ao longo de dezoito capítulos, considerado como a “porção didática de

Mahābhārata” (RENOU, FILLIOZAT, 1947, 394). O texto hindu passou a ser mais

conhecido no ocidente por ter sido, em 1785, o primeiro a ser traduzido para a língua europeia

pelo sanscritista inglês Charles Wilkins. Bhagavat é “aquele que possui bhaga”, ou seja, “a

felicidade, o bem-estar, a prosperidade”. É também uma fórmula de tratamento que significa

“glorioso, ilustre, venerável”. Gītā significa “canção, poema sagrado, louvação em forma de

canto”. Bhagavadgītā, portanto, é traduzido como “A canção do Senhor”, “A canção do

Venerável” ou, segundo Basham, “Cantado pelo Senhor”9 (BASHAM, 1989, 82).

9 “Sung by the Lord”

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Nesta canção consta uma peculiar combinação entre o pensamento não bramânico e as

ideias védicas dos arianos. Ela nos mostra, como já vimos, a essência do pensamento hindu,

que não deve ser lida como um simples diálogo entre um mestre e seu discípulo. É acima de

tudo um diálogo que nos mostra como apreendemos de forma subjetiva o mundo externo que

projetamos segundo um conceito estabelecido baseado em uma realidade formulada pelo

nosso intelecto, como observa Heinrich Zimmer:

A estéril divisão do mundo em matéria e espírito resulta de uma abstração do intelecto e não

deve ser projetada sobre a realidade; porque é da natureza da mente estabelecer diferenças,

formular definições e discriminar. Declarar que “há distinções” é apenas constatar a atuação de

um intelecto que aprende. Os pares de opostos percebidos refletem não a natureza das coisas,

mas a da mente que os percebe. Daí que o pensamento e o próprio intelecto têm de ser

transcendidos se o que se quer é alcançar a verdadeira realidade. A lógica pode auxiliar nos

esclarecimentos preliminares, mas é um instrumento imperfeito e inadequado para o

conhecimento final (ZIMMER, 1986, 273).

Fig. 34

Saṃjaya narra ao rei Dhṛtarāṣṭra os acontecimentos em Kurukṣetra

A importância de Bhagavadgītā está justamente em apresentar essa característica do

pensamento hindu: há uma transcendência da realidade que vai além do nosso intelecto.

(...) O pensamento bramânico no período das Upaniṣads estava bem equipado para absorver

não apenas as personalidades divinas do panteão védico primitivo, mas também as formulações

filosóficas e devocionais bem mais complexas, da tradição aborígine, não–ária. A

Bhagavadgītā é o documento clássico das primeiras etapas desta adaptação. (...) O texto (...)

não é, de modo nenhum, uma só composição. Críticos ocidentais assinalaram numerosas

contradições; para a mentalidade indiana, no entanto, são precisamente nestas contradições que

esse radica o valor do texto (ZIMMER, 1986, 274).

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Quando o príncipe Arjuna está prestes a enfretar a batalha final contra seus inimigos,

ele é subitamente tomado por medo e por dúvida em derramar sangue. Qual seria o propósito

em aniquilar seus entes familiares, mestres, Bhīṣma, Droṇa, entre outros? Assim, inicia-se

Bhagavadgītā, a canção do venerável senhor, com o rei cego Dhṛtarāṣṭra pedindo a Saṃjaya10

que lhe conte o que está ocorrendo. Vejamos algumas passagens relevantes relacionadas ao

tema da pesquisa:

Capítulo 1

Então, tendo visto os filhos de Dhṛtarāṣṭra perfilados, o pândava

- quando começou a chuva de flechas – Kapidhvaja11

ergueu o arco. (1.20)

Ó Senhor da terra, ele disse o seguinte discurso para Hṛṣīkeśa12

:

“Acyuta13

, para meu carro no meio entre os dois exércitos! (1.21)

para que eu possa ver os que estão perfilados ansiosos para lutar

ao meu lado, ansiosos para lutar neste levante marcial, (1.22)

e para que possa ver aqui reunidos aqueles que nesta guerra

estão dispostos a satisfazer a mente maligna de Duryodhana.” (1.23)

Isso dito por Guḍākeśa14

, ó Bhārata15

, então Hṛṣīkeśa,

estacionando o carro no meio dos dois exércitos, (1.24)

diante de Bhīṣma e Droṇa, e de todos os poderoso da terra,

disse: “Ó Pārtha16

, contempla todos os Kuru aí reunidos!” (1.25)

Então ali o Pārtha via perfilados pais e avôs,

mestres, tios maternos, irmãos, filhos, netos e também companheiros. (1.26)

E sogros e amigos em pé em ambos os exércitos,

ele contemplava, ó Kaunteya17

, todos os parentes ali parados. (1.27)

Com piedade suprema ele dizia o seguinte angustiadamente:

Vendo minha própria gente, Kṛṣṇa, ali postada para lutar, (1.28)

tremem meus braços, e minha boca resseca,

e esse tremor no meu corpo, e meus pelos se arrepiam... (1.29)

Gāṇḍīva18

cai de minha mão, minha pele queima por toda parte;

não consigo ficar em pé, minha mente se move sem rumo... (1.30)

(...)

Que orgulho teremos se matarmos os dhārtaraṣṭra19

, ó Janārdana20

?

Só culpa cairá sobre nós se matarmos essa turba de saqueadores. (1.36)

10

Saṃjaya = “de vitória total, de triunfo completo”; condutor do carro de Dhṛtarāṣṭra; é um bardo que tinha

também a função de difundir e conservar histórias na memória das pessoas. 11

Kapidhvaja = epíteto de Arjuna. 12

Hṛṣīkeśa = epíteto de Kṛṣṇa. 13

Acyuta = epíteto de Kṛṣṇa. 14

Guḍākeśa = epíteto de Arjuna. 15

Bhārata = aqui se refere a Dhṛtarāṣṭra. 16

Pārtha = filhos de Kuntī com Pāṇḍu, ou seja, Yudhiṣṭhira, Bhīma e Arjuna. 17

Kaunteya = “filho de Kuntī”, Arjuna. 18

Gâṇḍīva = nome do arco usado por Arjuna. 19

dhārtaraṣṭra = “filhos de Dhṛtarāṣṭra”. 20

Janārdana = epíteto de Kṛṣṇa.

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Arjuna, diante da dúvida que o atormenta devido à atrocidade, questiona sua atitude e

pede ao seu fiel conselheiro Kṛṣṇa sobre sua hesitação e seu temor, pois ao se dar conta dessa

mente maligna de Duryodhana (1.23), Arjuna percebe a real intenção dos Kaurava. A piedade

(1.28 - kṛpā, em sânscrito) aqui presente possui conotação de ternura, compaixão e lamento,

mas também está no sentido de ser fraco (FONSECA, 2009, 33) e o sentimento de culpa

(1.36 - pāpa, em sânscrito) de Arjuna distingue-se do contexto cristão do sentimento de

pecado. Deve ser entendido aqui como um sentimento de angústia de comportamento mal

conduzido e incorreto perante um grupo social. Assim, o guerreiro Arjuna, confuso sobre seus

deveres, pede a Kṛṣṇa para ser seu mestre espiritual.

Capítulo 2

Saṃjaya disse:

A ele que estava cheio de piedade, e muito aflito, olhos agitados

e cheios de lágrimas, então Madhusūdana21

lhe disse um discurso. (2.1)

O Venerável disse:

Neste mometo tão adverso, de onde te vem esse desânimo, Arjuna,

digno de um anārya22

, de má reputação e que não leva ao Svarga? (2.2)

Não te portes como um desmacho, ó Pārtha! Não te fica bem!

Arranca essa fraqueza vil do coração e levanta, terror dos inimigos! (2.3)

Fig. 35

O desânimo de Arjuna

21

Madhusūdana = epíteto de Kṛṣṇa. 22

anārya = não-ária.

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67

Novamente temos a palavra piedade (2.1) que agora além de significar fraqueza, tem o

sentido de tormento. O desânimo (2.2) de Arjuna mostra-se no âmbito já do desespero e do

abatimento. Ele não sabe mais como lidar com seu comportamento e sentimento de tortura.

Por isso Kṛṣṇa repreende-o em tom severo.

Arjuna disse:

Como eu, Bhīṣma e Droṇa em batalha, ó Madhusūdana,

combaterei com flechas, dignos eles de veneração, ó Arisūdana23

? (2.4)

Não matar os mestres seria menos honroso

que no mundo ter para comer apenas da tigela de um mendigo.

Matar os mestres, porém, só para obter artha e kāma,

só me daria o gosto de chafurdar em sangue. (2.5)

E nem sabemos o que seria mais grave para nós –

nós vencermos ou eles nos vencerem.

Se matarmos aqueles que não queremos que continuem vivos,

esses dhārtaraṣṭra, eles continuarão de pé na nossa frente. (2.6)

Impelido pela culpa de uma fraqueza, indeciso,

eu te peço, a mente completamente confusa quanto ao dharma,

dize-me o que seja positivamente meritório.

Sou teu discípulo, ensina este suplicante. (2.7)

Arjuna ainda inquieta-se diante do sentimento de culpa (2.7 - doṣa, em sânscrito), o

que novamente não se refere a um pecado. Aqui Arjuna angustia-se pelo comportamento de

modo negativo que lhe atormenta, pois transgride a sua consciência diante da falta que

acomete seus atos.

Fig. 36

Arjuna pede conselho de Kṛṣṇa

23

Arisūdana = epíteto de Kṛṣṇa.

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68

Kṛṣṇa, então, desperta em Arjuna a importância em exercer seu dharma para um bem

maior, sem apego aos resultados. O conhecimento é importante, mas ele deve estar atrelado à

ação desprendida do egoísmo. Kṛṣṇa revela que tem ensinado a importância de aceitar as

palavras de seu ensinamento, pois é dessa forma do chamado yôguica devocional é que o

homem encontra sua salvação. O homem deve, portanto, meditar para que através desse

processo possa atingir o samādhi e consequentemente a morada suprema. Samādhi significa:

(...) aquele estado/momento em que o sujeito cumpre/realiza em definitivo alguma operação

em seu interesse, sendo fundamental que esse processo se configure como um movimento

espiritual ou religioso que bem poderia ser definido como uma epifania, no sentido de

“manifestação ou percepção da natureza ou do significado essencial de uma coisa” – não se

tratando, entretanto, de uma apreensão puramente intuitiva nem inesperada (o inesperado é

simplesmente o fantástico, o maravilhoso, o extraordinário). Textos de orientação filo-religiosa

traduzem, ou interpretam (...) a palavra como “concentração total do espírito”, “meditação

religiosa”, “concentração dos pensamentos” etc. (FONSECA, 2009, 58).

O homem não deve, por fim, temer e lamentar pelo perecível nem tampouco pelo

imperecível. Kṛṣṇa, indestrutível e eterno, ensina a Arjuna que o homem não passa de um

corpo, uma matéria que pode ser destruída e dissolvida:

O Venerável disse:

Lamentas pelos que não merecem lamento. E falas com sabedoria.

Pânditas não lamentam pelos que respiram ou deixaram de respirar (2.11)

Além disso, nunca inexisti, nem tu nem esses chefes de homens;

nem cessaremos, todos nós, de nos tornarmos algo. (2.12)

Existe infância, juventude e velhice no corpo da criatura,

E na obtenção de outro corpo. Um mente-firme não se engana. (2.13)

E contatos materiais, Kaunteya, como frio/quente e alegria/tristeza,

Estão sempre indo e vindo, impermanente. Resite a eles. (2.14)

(...)

Diz-se que esses corpos sem-fim são matéria constante,

Indestrutível, imensurável. Por isso, Bhārata, luta! (2.18)

Quem afirma que ela mata e quem pensa que ela é morta,

esses dois nada sabem. Ela não mata nem é morta. (2.19)

(...)

Assim como, após tirar as roupas velhas,

um homem veste outras, novas,

assim também, após tirar as carnes velhas,

o homem se cobre com outras, novas. (2.22)

(...)

Indivisível ela, incalcinável também, e inumectável e irressecável;

ela eterna em toda parte, firme, estável, duradoura. (2.24)

Ela é dita indefinível, impensável, incambiável.

Por isso, sabendo que ela é assim, não deves ficar triste por ela. (2.25)

(...)

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69

A morte é certa para quem nasce, o nascimento para quem morre.

Por isso, quanto ao inevitável não te deves lamentar (2.27)

Os seres têm inícios indefiníveis, meios definíveis, ó Bhārata,

finais também indefiníveis. Então lamentação para quê? (2.28)

Alguém a vê como algo incomum, e outros a dizem incomum.

Outros ouvem ser ela assim, mas mesmo ouvindo ninguém conhece. (2.29)

Esse homem no corpo de todos, Bhārata, nunca será morto.

Por isso, quanto a todos os seres, não te deves lamentar. (2.30)

Kṛṣṇa inicia (2.11) afirmando que um homem sábio não lamenta pela morte ou pela

vida, como Arjuna está claramente fazendo pelos que estão morrendo na batalha, pois nenhum

deles irá morrer de fato. De acordo com o princípio de saṃsāra, apenas os corpos perecem. O

dharma é para sempre e duradoura, referindo-se ao próprio Sanātanadharma (2.24) e os seres,

bhūta, são aqueles sempre passíveis de transformações (2.28). Arjuna, de acordo com Kṛṣṇa,

deve cumprir o seu papel como guerreiro, pois não lhe cabe outra alternativa; como

verdadeiro kṣatriya, este é o seu dharma. Ele deve defender o caminho de seu dharma através

desta guerra. A vida e a morte são de pouca valia diante de algo muito maior, que é o valor

eterno, pois tanto uma quanto a outra são ilusórias e o corpo não passa de matéria perecível.

Não deve, portanto, ficar lamentando-se pelo inevitável, ou seja, a morte corpórea. Arjuna,

assim, deve saber diferenciar entre o corpo perecível e a alma eterna.

Ademais, considerando teu próprio dharma, não deves vacilar.

Não se conhece nada mais dhármico para um xátria do que a luta. (2.31)

Inesperadamente, numa guerra como esta, ó Pārtha, os xátrias

conseguem alegrias, é possível uma porta aberta para o Svarga (2.32)

Mas, se tu não fizeres esta guerra conforme o dharma,

então com teu svadharma24

e tua honra tu te tornarás um erro. (2.33)

E os seres relatarão sobre ti uma desonra infindável,

e a desonra, para quem está acima, é mais desejada que a morte. (2.34)

(...)

Ou morto conseguirás o Svarga ou vencendo desfrutarás a terra.

Por isso, levanta-te, Kaunteya, decide-te pela luta. (2.37)

Considera iguais alegria e tristeza, ganho e perda, vitória ou derrota

- participa da guerra e não te tornarás um erro. (2.38)

(...)

Tua preocupação é com a ação, não com os frutos, nunca!

Não te tornes a causa do fruto da ação, não fiques preso à inação. (2.47)

(...) Quando tua buddhi

25 tiver atravessado os nós da consciência,

então chegarás à aversão ao que será sabido e ao que já é sabido. (2.52)

24

svadharma = conjunto de normas para o comportamento de cada sujeito. 25

buddhi = “iluminar, despertar”; “mente”; para alguns, “espírito”.

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70

Há nessa passagem a síntese de dois pensamentos centrais do Hinduísmo: a pravṛtti

(ação), exemplificado na tradição ritualística védica, e nivṛtti (inação), exemplificado na

tradição renunciante da Upaniṣad tardia. Bhagavadgītā afirma que o indivíduo deve agir e

desempenhar seus deveres apropriados ao seu svadharma (2.33), mas também deve agir sem

apego. Essa doutrina é um dos mais importantes ensinamentos sobre a ética hindu. A tarefa do

homem deve ser executada com ação e trabalho, e não se baseando nos resultados dela. Kṛṣṇa

cria incessantemente o mundo, mas sem se prender a ele. É esse pensamento que ele quer

transmitir a Arjuna: este deve aprender a pravṛtti, mas não se apegar a nivṛtti. Deve, portanto,

dessa forma, sair do círculo kármico através do desprendimento. Isso ocorrerá quando a mente

do indivíduo (buddhi) estiver livre de confusão e erros em sua consciência, que também pode

ser interpretado como ilusão (2.52 – mohakalila, em sânscrito).

Capítulo 3

O Venerável disse:

Neste mundo, ó Anagha26

, desde tempos antigos refiro duas certezas:

o jñāna-yoga27

do Sāṃkhya, o karma-yoga dos yogin. (3.3)

Não é não iniciando uma ação que o homem consegue o naiṣkarmya28

,

nem é pela renúncia a ela que chega ao estado siddhi29

. (3.4)

Nem por um instante um ser-nascido não permanece sem agir por uma ação.

Pelas qualidades inatas de sua constituição, todos sem exceção cumprem ações. (3.5)

Aquele que controla a ação e os sentidos mas deixa a mente lembrando,

um ātman endoidecido pelos objetos dos sentidos – esse é dito de conduta falsa. (3.6)

Mas aquele que mantém os sentidos controlados pela mente, Arjuna,

E inicia, desapegado, o karma-yoga com a ação e os sentidos – esse é superior. (3.7)

Por constituição (3.5), ou seja, a prakṛti, Kṛṣṇa refere-se à matéria que se opõe ao

espírito. É dessa prakṛti que provém as atividades humanas. Assim, ao renunciar aos frutos de

seus atos, Bhagavadgītā dedica-se a ensinar que o desprendimento é o caminho para desfazer-

se dos sofrimentos. Portanto isso significa que o homem deve fazer esse sacrifício da renúncia

para não transtornar a ordem do universo. Para que se possa conservar essa ordem

supervisionada por Kṛṣṇa, o homem deve sacrificar e desprender-se de todos os seus atos. Por

esses atos deve-se entender como ação impessoal, desvinculada às paixões e desejos. É dessa

forma que o homem conseguirá sair de seu círculo do karma. Não deve, portanto, perder o seu

controle, tendo um ātman endoidecido (3.6) alguém que perdeu qualquer ação racional, pois

corre-se o risco de agir falsamente. Assim, o homem deve participar de sua vida cotidiana,

26

Anagha = “sem erro, não merecedor de críticas” – epíteto usual para Śiva, aqui referido a Arjuna. 27

jñāna = “conhecimento”. 28

naiṣkarmya = “estado ou condição resultante do fato de não se praticar uma ação”. 29

siddhi = “cumprir, chegar ao objetivo, obter sucesso num empreendimento”.

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mas nunca esperando um retorno, uma gratificação, enfim, um resultado. Se Arjuna deixa de

seguir esses ensinamentos, deixará de cumprir seu dharma, acarretando consequentemente um

desequilíbrio no universo cósmico. Portanto, a ação de Kṛṣṇa deve ser imitada por Arjuna,

pois:

Se eu não me mantivesse sempre em ação, infatigável,

os homens, em toda parte, acompanhariam meu caminho. (3.23)

Esses mundos se arruinariam não fosse minha ação agida.

Eu seria o agente do saṃkara30

e o destroçador das criaturas. (3.24)

Como os ignorantes praticam os atos, Bhārata, apegados a eles,

então que o sábio aja, desapegado, agindo para a integração do mundo. (3.25)

(...)

Em toda parte as ações são crias dos guṇa31

da prakṛti32

;

um ātman desorientado pelo ahaṃkāra33

pensa “eu que fiz”. (3.27)

Mas quem conhece o isso-tudo, ó Mahābāhu, por meio da distinção entre guṇa e ação,

ele, pensando “os guṇa agem sobre os guṇa”, não se deixa prender. (3.28)

Os enganados pelos guṇa da prākrti prendem-se às ações dos guṇa.

O tudo-sabe não confunda os nada-sabem, tão lentos de espírito. (3.29)

O dualismo do Sāṃkhya-Yoga, ou seja, a prākrti e o puruṣa não deve ser confundido

com o dualismo mente-corpo do âmbito ocidental, conforme observa Roy W. Perrett (cf.

PERRETT, 1998). No Sāṃkhya, puruṣa em seu estado puro é eternamente imutável e está

associado ao mana34

, ao ahaṃkāra e ao buddhi35

. Todo puruṣa está associado somente a

prākrti.

Kṛṣṇa, enfim, ensina-lhe:

Melhor o próprio dharma, mesmo viguṇa36

, que o dharma de outro sem erro.

Melhor a morte no dharma próprio; o dharma de outro é portador de alarme (3.35)

É nessa passagem que Kṛṣṇa enuncia as distintas obrigações designadas a cada varṇa.

Podemos observar aqui o dharma não só de um kṣatriya, mas também de todos do grupo

social bramânico que vimos anteriormente. Aurobindo analisa essa passagem comparando as

ações dos homens com a de um tigre ou de um fogo ou de uma tempestade (AUROBINDO,

1995, 65). Os homens não podem matar e justificar essa ação afirmando que agiu de acordo

com sua natureza. Tal afirmação não poderia ser feita porque ele não tem a natureza e,

30

saṃkara = “caos, confusão universal”; mais contextualmente “cruzamento de castas”. 31

guṇa = “qualidade”: “bondade” [sattva], “paixão” [rajas] e “trevas” [tamas]. 32

prakṛti = “o que existe (ou se faz) antes”; “natureza, caráter, matéria original”. 33

ahaṃkāra = “o fabricador do eu”; “a ideia da individualidade de alguém”; “autoconsciência”. 34

mana = “pensar”; “mente”; “órgão central, sentido interno de percepção que se sobrepões aos cinco sentidos”. 35

buddhi = “iluminar, despertar”; “mente”; para alguns, “espírito”. 36

viguṇa = “sem guṇa”, “sem qualidade, imperfeito, deficiente, corrompido”.

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portanto, o svadharma do tigre, do fogo ou da tempestade. Ele tem o buddhi (“espírito”,

“mente consciente”) do qual suas ações devem tomar como referência. Caso ele ignore esse

buddhi, caso aja cegamente de acordo com seus impulsos e paixões, então o dharma do seu

ser não estará trabalhando de forma apropriada. Ignorando o buddhi ele será igual a um

animal.

Arjuna disse:

Então impulsionado por que o homem marcha para esse erro,

Contra sua vontade, ó Vārṣṇeya37

, como se uma força o impelisse? (3.36)

O Venerável disse:

Isso é o kāma, isso é o krodha38

– brotados do guṇa rajas39

,

O que tudo-devora, o que tudo-desvirtua. Sabe-o: ela é o inimigo. (3.37)

Kṛṣṇa ensina que os erros são acometidos devido ao kāma que, apesar de ser uma das

quatro metas do homem hindu, ele é também o impulso que leva o homem ao engano. Kāma é,

segundo a mitologia, filho de Dharma, mas marido de Rati, o deus da luxúria. Tanto o kāma

quanto o krodha, filho de Lobha (“cobiça”) e Nikṛti (“fraude”), devem ser observados, pois

são enganadores e ao mesmo tempo sedutores.

Capítulo 4

Os quatro varṇa foram por mim criados considerando os guṇa e os karman.

Eu o fautor deles. Sabe-me entretanto inativo, imóvel. (4.13)

As ações não me atingem, nem é meu um desejo pelo fruto da ação.

Quem se conhece assim não é aprisionado pelo karman. (4.14)

Sabendo disso, os antigos agiram, ávidos de liberação.

Age tu também, como antigamente agiram os antigos. (4.15)

“O que é ação? O que é inação?” Até os kavi40

estão enganados.

Eu te explicarei o que é karman para que, sabendo, tu te liberes do mal. (4.16)

(...)

Abandonado o apego ao fruto da ação, sempre satisfeito, independente,

por mais envolvido na ação, ele não pratica nada nada. (4.20)

Sem desejo, o ātman e a mente domados, liberado de todo apego,

cumprindo uma ação apenas corporalmente, ele não conhece culpa. (4.21)

(...)

Portanto, a dúvida do desconhecimento instalada no coração corta!

Repouse o ātman no conhecimento, firme o yoga, levanta-te, Bhārata! (4.42)

37

Vārṣṇeya = epíteto de Kṛṣṇa. 38

krodha = “ira, cólera, raiva”. 39

rajas = “brilho, pulsação”. 40

kavi = no período védico designava o homem particularmente dotado de percepção e inteligência e

conhecimento, um sábio; nos períodos bramânico e clássico designa o cantor de textos, o poeta.

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Capítulo 5

A firmeza obtida com o sāṃkhya também é conseguida com o yoga.

O sāṃkhya e o yoga são uma coisa só. Quem vê, vê... (5.5)

(...)

O adepto do yoga – o ātman limpo. O ātman controlado, os sentidos dominados,

cujo ātman se confunde com o ātman de todos os seres –não é poluído. (5.7)

(...)

Ātman não-marcado pelas impressões externas, ele encontra no ātman a felicidade.

Ātman unido de união com o brahman, ele consegue uma felicidade indestrutível. (5.21)

(...)

Conquistam o nirvāṇa em brahman os ṛṣi de escuridão diminuída,

Seus ātman afastados das dualidades, são satisfeitos, dedicados a todos os seres. (5.25)

Liberados do kāma e do krodha, as mentes pacificadas,

O próprio ātman conhecido, encontram o nirvāṇa em brahman. (5.26)

Vejamos aqui mais um termo importante no pensamento hindu:

Nirvāṇa: “(...) estado/condição em que não há vento”; (...) “extinção, desaparecimento,

cessação, dissolução, morte”; (...) “fato de se livrar da vida material e se absorver no Ser

supremo”. O nirvāṇa, entretanto, não é a morte do sujeito – e a morte, no sujeito, de sua

relação de desejo/apego para com os objetos dos sentidos, é o estado em que tudo subsiste, mas

não existe “vento”. (FONSECA, 2009, 67)

Segundo Kṛṣṇa, o desprendimento total revelado por ele no capítulo 4 deve ser

alcançado através da prática e domínio corpo-espírito que o yoga ensina. Somente quando o

discípulo concentra sua atenção no divino é que ele alcaçará esse objetivo. Kṛṣṇa ensina na

passagem do capítulo 5 que seu fim último é a união com o Brahman, ou a devoção a ele.

Todos os seres deste universo estão em Kṛṣṇa, tanto a fonte material quanto a espiritual.

Arjuna assim, aceita as palavras de Kṛṣṇa, colocando-se diante desse Ser Supremo como seu

guia. Diante de toda exposição do procedimento correto para devoção, Kṛṣṇa diz a Arjuna que

agora lhe foi ensinado o caminho para a perfeição máxima da vida do homem. Kṛṣṇa ensina a

Arjuna que a felicidade e a paz só podem ser atingidas se seguir os passos do desapego e

assim unir-se ao Brahman. A mente não deve seguir segundo percepções externas, pois elas

são antes de tudo uma ilusão. Aquele que renuncia à vida mundana e ao apego, Kṛṣṇa o

considera o verdadeiro renunciante, o sannyāsin, o verdadeiro praticante de yoga.

Capítulo 7

Entre milhares de homens, talvez um se esforce pelo siddhi.

E, entre os que chegaram ao siddhi, talvez um me conheça em essência. (7.3)

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74

Terra, água, fogo, vento, kha41

, manas, buddhi

e ahaṃkāra – os oito componentes da minha prakṛti. (7.4)

Mas essa é a prakṛti imanente. Sabe que tenho uma prakṛti transcendente,

a tornância da vida, Mahābāhu, pela qual este mundo é sustentado. (7.5)

Tem em mente que isso são as fontes de todos os seres:

eu o provir e a dissolução do mundo inteiro. (7.6)

Nada está acima de mim, Dhanaṃjaya,

tudo está tecido em mim, como fileiras de gemas num fio. (7.7)

Praticando-se o yoga, com o māna (“mente”) voltado para o Kṛṣṇa, ele faz uma nova

ressalva a Arjuna. Não é qualquer um que consegue cumprir o siddhi (“tarefa”), pois o

sucesso não deve objetivar uma recompensa. Somente um dentre vários que tentam

conseguem compreender realmente as palavras de Kṛṣṇa. É através de buddhi, ou seja, o

discernimento, o ahaṃkāra (aquilo que compõe a autoconsciência), entre outros componentes

é que atingem a prakṛti expostas por Kṛṣṇa. Não se deve confundir a prakṛti imanente com a

prakṛti transcendente, pois a primeira é inferior, não elevada, enquanto que a segunda é

superior, transcendental (FONSECA, 2009, 118).

Capítulo 8

Tendo chegado a mim, não recebem novo nascimento

nesse lugar transitório de sofrimento e os mahātman42

chegados ao saṃsiddhi43

supremo.

(8.15)

Os mundos, daqui ao de Brahman, estão sujeitos a um outra vez, Arjuna.

Mas, vindo a mim, Kauteya, não saberás de outro nascimento. (8.16)

Quem sabe que o dia de Brahman dura mil yuga,

e a noite outros mil yuga, esses homens conhecem o dia e a noite. (8.17)

Do imanifesto produzem-se os manifestos na chegada do dia;

na chegada da noite mergulham no que é chamado imanifesto. (8.18)

Essa multidão de seres, tornando e tornando a ser, mergulha,

ó Pārtha, destruída, na chegada da noite e ressurge na chegada do dia. (8.19)

Da mesma forma que chega a noite, chega o dia. Assim como termina um yuga, outro

yuga se inicia. Eis o que Kṛṣṇa ensina a Arjuna a não temer, pois o inevitável não há como ser

impedido. Os praticantes de yoga são os que detêm a ciência desse evento. Por isso Kṛṣṇa diz

a Arjuna que é esse caminho que ele deve seguir.

41

kha = caos 42

mahātman = “grande alma”. 43

saṃsiddhi = “perfeição; êxito”.

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75

Capítulo 9

Os homens que não põem śraddhā44

nessa doutrina-de-vida, ó Paraṃtapa,

não me alcançando caem nas trilhas do saṃsāra e da mṛtyu45

. (9.3)

Fui eu, sem forma manifesta, que desenrolei todo esse mundo.

Todos os bhūta46

estão em mim, mas eu não estou neles (9.4)

Mais: os bhūta não estão em mim –vê minha situação poderosa:

meu ātman carrega os bhūta, não está nos bhūta, é a morada dos bhūta. (9.5)

(...)

Adotando eu um corpo humano, os alucinados me desconhecem,

Desconhecem meu bhāva47

supremo, o grande senhor dos bhūta. (9.11)

(...)

Mas os de grande ātman, Pārtha, submissos a um prakṛti daiva48

,

ligam-se apenas a mim, sabidamente a origem imperecível dos bhūta. (9.13)

(...)

Mesmo quem tenha praticado as piores ações, se se dedicar a mim e a nenhum outro,

que seja considerado um sadhu, pois está apropriadamente determinado. (9.30)

Depressa ele se torna um ātman com dharma e alcança a śānti49

interminável.

Compreende, Kauteya, meu devoto nunca se arruína. (9.31)

Por isso a insistência constante de Kṛṣṇa para que Arjuna se dedique e confie em seu

mentor. Por pior que possa aparentar a ação de Arjuna, se ele seguir seu dharma, ele não

estará caminhando no erro, ou seja, no adharma.

Capítulo 10

O Venerável disse:

De novo, ouve minha fala suprema, Mahābāhu,

que te explanarei para teu bem por te querer bem. (10.1)

Nem as multidões de sura50

nem os grandes ṛṣi conheceram minha origem

- pois eu sou, de todos os modos, a fonte dos deva, dos grandes ṛṣi. (10.2)

Quem me sabe não-nascido, sem-começo, grande senhor do mundo,

ele, não-insensato entre os mortais, é liberado de todos os erros. (10.3)

Buddhi, jñāna, não-insensatez, paciência, veracidade, autocontrole, paz,

felicidade, infelicidade, tornância e destornância, medo e não-medo. (10.4)

Não-violência, equanimidade, contentamento, penitência, esmola, honra e desonra:

procedem de mim os variados e diversos modos de ser dos bhūta. (10.5)

Os sete grandes ṛṣi de antigamente e os quatro manu

procedem de mim: nascidos da mente dos quais procedem todos no mundo. (10.6)

Quem conhece essencialmente minha expansão e meu yoga,

ele com certeza é equipado com o yoga inabalável. (10.7)

44

śraddhā = “crença”; “fé”; “confiança”. 45

mṛtyu = “morte”. 46

bhūta = “os que são de determinado modo porque passaram a ser assim”. 47

bhāva = pronome de tratamento; “mestre”. 48

daiva = “divina”. 49

śānti = “apaziguamento, estado de felicidade espiritual”; “paz”. 50

sura = “brilhar, governar, possuir qualidade/poder sobrenatural”.

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Eu a origem de tudo, de mim tudo deriva:

é pensando assim que aderem a mim os sábios plenamente dotados de bhāva (10.8)

Os sete grandes ṛṣi (10.6) enunciados aqui são aqueles que foram salvos pelo primeiro

avatāra de Viṣṇu, Matsya, para que eles pudessem salvar o mundo após a grande inundação.

Kṛṣṇa demanda de Arjuna devoção à sua doutrina compreendendo-o e imitando-o, pois o que

Kṛṣṇa faz deve servir de modelo de comportamento no universo e na história. No plano

terrestre, onde se encontra a imperfeição, é impossível não se cometer erros, tanto no que

concerne à ignorância quanto no que concerne ao apego. Para alcançar a perfeição, o homem

deve dissolver o indivíduo no seu coletivo, ou seja, “estar” no anônimo. Isso não o isenta de

cumprir o seu dharma; muito pelo contrário: é pelo dharma que cumpre o seu papel no

coletivo. Guṇa (“qualidade”) está em herdar e agir no seu cumprimento. Assim, Arjuna

compreende seu verdadeiro dharma e decide retornar à batalha, agora sem hesitar. Kṛṣṇa não

tinha apenas a função de aconselhar e despertar seu principal discípulo; ele tinha também

como finalidade declarar a toda humanidade a sua doutrina de salvação do mundo pela ação

desinteressada (Karmayoga) e pela devoção (Bhaktiyoga). O Brahman e o ātman residem

dentro de cada um e devem sempre ser observados e refinados, ensina Kṛṣṇa.

Capítulo 11

Arjuna disse:

A fala que por ti foi dita em meu benefício, o supremo segredo

conhecido pelo adhyātman51

, eliminou minha alucinação (11.1)

A origem e a dissolução dos bhūta foi ouvida por mim, elaborada por ti,

ó Olhos-pétala-de-lótus, e também teu māhātmyam. (11.2)

Tudo é como tu mesmo disseste, Parameśvara.

Quero ver tua forma soberana, Puruṣottama52

. (11.3)

Se pensas que ela pode ser vista por mim, Prabhu,

ó Senhor do Yoga, mostra-me teu ātman imperecível. (11.4)

O Venerável disse:

Vê, Pārtha, minhas formas às centenas e aos milhares,

infinitamente diversas em formas e cores, divinas. (11.5)

Vê os āditya, os Vasu, os Rudra, os dois Aśvin e os Marut.

Vê inumeráveis maravilhas jamais vistas, Bhārata. (11.6)

Vê aqui agora inteiro o mundo em meu único corpo, tudo o que se move ou não,

no meu corpo, Guḍākeśa, e o mais que queres ver. (11.7) Mas não me podes ver apenas com teus próprios olhos.

Dou-te o olho divya. Vê meu yoga soberano. (11.8)

51

adhyātman = “próprio; concernente ao próprio indivíduo, à personalidade individual”. 52

Puruṣottama = “Personalidade Suprema”.

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Saṃjaya disse:

Tendo dito isso, ó rajá, então Hari, o Grande Senhor do Yoga,

fez ver ao Pārtha sua suprema forma soberana (11.9)

de bocas e olhos sem conta, espantosas aparências sem fim,

inumeráveis enfeites divinos, infindáveis armas divinas alevantadas, (11.10)

portando guirlandas e vestimentas divinas, ungido de perfumes divinos...

Feito de todos os prodígios, eis o deva infinito dando suas múltiplas caras (11.11)

(...)

O Venerável disse:

Sou o Tempo, que, avançando, faz a destruição do mundo.

Minha função aqui é a supressão das gentes.

Um dia, não importa o que façam todos

enfileirados como soldados em batalhas. (11.32)

Por isso, ergue-te, conquista a glória!

Vencendo os inimigos, delicia-te com um reino próspero.

É por mim que, antes de tudo, eles são mortos.

Sê, hábil arqueiro, apenas meu instrumento. (11.33)

Droṇa e Bhīṣma e Jayadratha

e Karṇa e os outros heróis de batalha:

eu os matarei! Mata também, não hesites!

Combate! Vencerás na luta os rivais! (11.34)

Fig. 37

Kṛṣṇa mostra sua forma universal a Arjuna

Tendo ouvido esses ensinamentos e tendo visto a sua forma universal, Arjuna agora

postado em reverência, submete-se aos ensinamentos de Kṛṣṇa. São então aqueles que se

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devotam a ele, aqueles que meditam e aqueles que praticam o desapego aos frutos das ações

que merecem śānti, “a paz”. Kṛṣṇa afirma, enfim, que as mortes não são diretamente causadas

por Arjuna. Ele é o que age, mas não é o responsável pelas ações. Portanto, deve pegar as

armas e vencer a angústia que tanto o atormenta.

Capítulo 12

Melhor de fato é o conhecimento que as práticas,

a meditação excele o conhecimento,

a renúncia ao fruto dos atos a meditação:

após a renúncia vem imediatamente a śānti. (12.12)

(...)

Aquele que não perturba o mundo nem pelo mundo é perturbado,

que se liberou das agitações da alegria, da cólera e do medo – esse me é caro. (12.15)

Quem é desinteressado, honesto, imparcial, indiferente,

aquele que renunciou a toda atividade frutificante, devotado a mim – esse me é caro. (12.16)

(...)

Mas aqueles que, ouvindo este néctar sobre o dharma, se aproximam

dotados de śraddhā, de mim como seu supremo – esses me são muito mais caros. (12.20)

Por isso, Kṛṣṇa ensina que aqueles que creem nele e se aproximam dele deve chegar

prontificados à prática da meditação, à renúncia, libertos tanto da alegria quanto do temor,

dotados de fé e humildade, confiando nas palavras dele.

Capítulo 13

Arjuna disse:

O que é prakṛti e puruṣa, e o que é kṣetra53

e kṣetrajña54

;

Quero saber o que é jñāna e jñeya, Keśava. (13.1)

O Venerável disse:

Este corpo, Kaunteya, é conhecido como kṣetra.

Quem o conhece é chamado de kṣetrajña. (13.2)

Mas sabe, Bhārata, que em todos os campo eu sou o ksetrajṭa.

O conhecimento do kṣetra e do ksetrajṭa – esse é o vero conhecimento. (13.3)

O que é o kṣetra a que ele é igual, de que se faz a mudança, e de onde vem

[o conhecedor do kṣetra] ouve isso de mim concisamente. (13.4)

(...)

Vou te dizer o que deve ser conhecido – com ele se consegue a imortalidade:

é o brahman supremo, que não tem começo e do qual não se diz ser nem não-ser (13.13) (...)

Está no interior e no exterior dos bhūta, e é imóvel e móvel;

tão sutil que não pode ser conhecido, e está longe e está perto. (13.16)

53

kṣetra = “campo, terreno”. 54

kṣetrajña = “conhecedor do campo/terreno”.

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Indivisível, reside nos bhūta como se fosse divisível;

suporta todos os bhūta, devorando-os ou os criando. (13.17)

É chamado de luz das luzes, a que está além das trevas.

Conhecimento e conhecível, acessível pelo conhecimento, reside no coração de todos. (13.18)

Assim te disse em resumo o que e o kṣetra e também o conhecimento e o conhecível.

Quem, devotado apenas a mim, compreende isso atinge meu bhāva. (13.19)

Kṣetra, então, representa o campo de batalha, mas também aqui fica claro que é o

campo do corpo, onde reside o bem e o mal, onde reside o conflito da alma. A śānti e a

imortalidade da alma residem naqueles que são porque assim são, ou seja, “os que são de

determinado modo porque passaram a ser assim”, dentro do eu, o principal responsável por

conhecer o brahman supremo. As luzes (o bem) superam as trevas (o mal) assim que

despertarem a percepção da presença de Kṛṣṇa. Por isso, é importante que perceba a distinção

entre o corpo (não-eu) e o ātman (eu).

Capítulo 15

Aqueles que não estão orgulhosos nem alucinados,

que dominaram o erro do apego, sempre constantes ao que pertence ao ātman,

que estão além dos fatores duais opostos conhecidos como prazer e dor

e que não são estúpidos – esses trilham o caminho imperecível. (15.5)

(...)

Eu estou sentado no coração de todos;

de mim procedem a memória, o conhecimento e o raciocínio;

eu que posso ser sabido por todos os Veda,

eu sou o autor de Vedānta e quem conhece o Veda. (15.15)

(...)

Aquele que, não iludido, me conhece como o puruṣa mais elevado,

esse sabe tudo, Bhārata, devota-se a mim com tudo seu ser. (15.19)

Tanto o prazer quanto a dor, tudo é parte necessária, pois são pelos pares de opostos

que ambos existem e resistem. Mas somente aqueles que tomam ciência dessa dualidade é que

são dignos de serem imperecíveis tal qual Kṛṣṇa.

Capítulo 16

O Venerável disse:

A destemeridade, a limpeza do sattva55

, a firmeza na aquisição do conhecimento,

a generosidade, o autorrespeito e o sacrifício e o estudo e a auteridade e a retidão, (16.1)

a não-violência, a veracidade, a não-raiva, a renúncia, a calma, a sinceridade,

a piedade pelos bhūta, o desinteresse, a ternura, o pudor e a tranquilidade, (16.2)

55

sattva = “pureza, bondade”; “virtude, altruísmo”.

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a vigilância, a tolerância, a força, a limpeza, a indulgência, a modéstia

- tornam daiva a condição dos seres, Bhārata; (16.3)

a pretensão, o orgulho e a enfatuação, a cólera e a grosseria,

a ignorância – tornam āsura56

a condição dos seres, Pārtha. (16.4)

A condição daiva leva à liberação, a āsura ao aprisionamento.

Não lamentes a condição daiva, Pāṇḍava, nela nasceste. (16.5)

Herdamos todos nós, segundo Kṛṣṇa, o lado daiva e o lado āsura. Devemos, pois,

discerni-los através do conhecimento, praticando a retidão e todas as qualidades referentes aos

sattva. É com esse guṇa que se deve prestar atenção e se dedicar. Kṛṣṇa diz a Arjuna que as

qualidades de um āsura não estão somente no plano do submundo. Podem perfeitamente

serem encontrados entre os homens. Kṛṣṇa enfatiza aqui novamente a Arjuna quais as

qualidades de um daiva, pois os homens tendem a se esquecer constantemente sobre sattva.

Capítulo 17

O Venerável disse:

A crença de cada um está, Bhārata, em conformidade com o sattva.

O homem é feito de crença. Tal a crença, tal o homem. (17.3)

(...)

Culto dos deva, dos dvija, dos guru e dos prājña57

, limpeza, retidão,

brahmacarya e não-violência – isso é chamado austeridade do corpo. (17.14)

Linguagem jamais ofensiva, que é confiável, agradável

e o auto-estudo-meditativo – isso é chamado austeridade da fala. (17.15)

A felicidade mental, a bondade, o silêncio, o domínio do ātman,

a pureza do bhāva – isso é chamado austeridade da mente. (17.16)

Essa austeridade tríplice praticada com crença extremada

pelos homens aplicados ao ganho sem-fruto é chamado sāttvika. (17.17)

Arjuna questiona sobre aqueles que, mesmo não seguindo os ensinamentos dos śāstra,

se continuariam dignos de serem homens de qualidade. Kṛṣṇa então lhe responde ensinando

quais são as atitudes austeras do corpo, da fala e da mente. Kṛṣṇa fala sobre a crença, onde ela

reside e quais as ações que levam enfim o homem ao sāttvika. O relevante são as ações

executadas conforme o sattva e é assim que torna o homem realizador de suas crenças.

Capítulo 18

Arjuna disse:

Desejo conhecer, Mahābāhu, a natureza do saṃnyāsa

e do tyāga58

, ó Hṛṣīikeśa, respectivamente, ó Keśiniṣūdana. (18.1)

56

āsura = entidades malignas; geralmente traduzidas como demônios, espíritos maus. 57

prājña = sábios. 58

tyāga = “abandono"; “auto-entrega”.

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O Venerável disse:

Para os kavi, o saṃnyāsa é a abstenção dos atos inspirados pelo kāmya59

;

para aqueles esclarecidos o tyāga é a renúncia ao fruto de todos os atos. (18.2)

Para racionalistas, deve-se renunciar ao karma por ser um erro;

para outros, não se deve renunciar ao sacrifício, à doação e à austeridade. (18.3)

(...)

Cumpre o ato prescrito, Arjuna, apenas porque ele deve ser cumprido,

renunciando ao apego: eis a renúncia sāttvika. (18.9)

O renunciante dotado de sattva, de dúvidas afastadas, de pensamentos vigorosos,

não odeia a ação desagradável nem se deixa atrair pela agradável. (18.10)

Nem é capaz o mortal de renunciar completamente aos atos:

o renunciante ao fruto do ato é que se torna um renunciante. (18.11)

(...)

O conhecimento, o conhecível e o conhecedor são o estímulo triplo à ação;

o instrumento, a ação e o agente são o tríplice agregador da ação. (18.18)

(...)

Um ação dita sāttvika quando obrigatória, isenta de apego,

cumprida sem ódio ou desejo por alguém não motivado pelo fruto. (18.23)

(...)

O agente livre de apego, que não fala sobre si, dotado de firmeza e

cuidado, não movido pelo sucesso ou insucesso, é dito sāttvika. (18.26)

(...)

Melhor a própria ação sem qualidade que a ação de outro muito bem feita.

Quem cumpre o karma determinado por sua própria natureza não comete erro. (18.47)

Não seja abandonada, Kaunteya, a ação dada pelo nascimento, mesmo com erros.

Todos os resultados estão cercados de erros, como o fogo pela fumaça. (18.48)

A buddhi livre de todo apego, o ātman dominado, o desejo dispensado –

Com renúncia (saṃnyāsa) ele chega à suprema naiṣkarmyasiddhi60

. (18.49)

(...)

Kṛṣṇa relembra a mesma obrigação de kṣatriya a Arjuna (18.47), como foi apresentado

no capítulo 3 (3.35). Se os seres devem seguir o seu dharma, então, não há razão para duvidar

nem hesitar em seguir sua prakṛti de acordo com seu guṇa.

Aurobindo afirma que o jīva (“espírito individual”) é, num contexto de auto expressão,

uma porção do puruṣottama (“Personalidade Suprema”) e que a lei da ação de cada indivíduo

determinado pelo svabhāva (“natureza própria para cada ser”) é nossa reta lei, na qual deve

ser auto lapidado e trabalhado, enfim, é o nosso svadharma (AUROBINDO, 1995, 269).

Devotado a mim, renunciando em mim em pensamento a todas as ações,

ampliando o esforço da buddhi, sê sempre mente-em-mim. (18.57) Mente-em-mim, ultrapassando todos os obstáculos a partir de minha graça,

mas se, cheio de teu ego, não me escutares, tu te arruinarás. (18.58)

Quando, apoiado em teu ego, pensares “não lutarei”,

essa resolução é falsa: tua prakṛti te impulsionará. (18.59)

59

kāmya = “desejo”. 60

naiṣkarmyasiddhi = “perfeição da supressão do ato / perfeição da ação transcendente”.

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A ação que, ligada a ti por nascimento, tu te recusares a fazer por causa de uma alucinação,

Kauteya, tu a cumprirás mesmo contra tua vontade. (18.60)

(...)

Abandonando todos os dharma, procura o único refúgio em mim –

eu te libertarei de todos os teus erros, não te inquietes. (18.66)

(...)

Arjuna disse:

Minha ilusão se foi, obtida a memória graças a ti, Acyuta;

estou firme, minhas dúvidas se foram. Cumprirei tua palavra. (18.73)

É por esse motivo que Kṛṣṇa se revela diante de Arjuna. É preciso conhecer o modelo

a ser seguido. Por isso Kṛṣṇa afirma que é preciso que conheça quem é e como age o Supremo.

Deve compreender tanto a essência da divindade como seus distintos modos de manifestação.

Condenado a agir, o homem necessita cumprir seu dharma, e nesse caso, cumprir como dever,

seguindo cada qual adequado à sua situação distinta. É dessa forma que o homem cumpre seu

papel na história atribuído a sua própria condição.

Fig. 38

Kṛṣṇa e Arjuna em Kurukṣetra

Ao descrever o aniquilamento, Mahābhārata antecipa de certa forma o pralaya (fim

do mundo). A revelação de Kṛṣṇa como senhor desse pralaya traz também à tona sua postura

de oposição a Śiva, mas também o seu complemento. O equilíbrio interno entre o poder

criador de Kṛṣṇa (Viṣṇu) e o poder destruidor de Śiva é ambivalente, pois Kṛṣṇa possui

também autoridade para ressurreição, assim como fez com filho de Arjuna, Abhimanyu.

Isso equivale a dizer que Vishnu, na qualidade de ser supremo, é a realidade última; por

conseguinte, governa tanto a produção como a destruição dos mundos. Está além do bem e do

mal, como o estão, aliás, todos os deuses. (...) O Mahabharata, no entanto – mais exatamente,

em primeiro lugar, a bhagavadgita –, a torna acessível, e portanto popular, em todos os níveis

da sociedade indiana. (...) Desse ponto de vista, o Mahabharata pode ser considerado a pedra

angular do hinduísmo. (ELIADE, 2011, 210-211)

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De acordo com a concepção hindu, a entrada de Deus na luta do Universo não significa a única

e assombrosa entrada da essência transcendental no tumulto das coisas mundanas (...), mas um

evento rítmico, conforme à pulsação das idades do mundo. O salvador desce como contrapeso

as forças do mal durante o decurso de cada declínio cíclico dos acontecimentos mundanos.

(ZIMMER, 1986, 279)

Surendranth Dasgupta observa que segundo o pensador Śaṅkara, ao fundar o sistema

Sāṃkhya analisa a passagem de Bhagavadgītā, procurando enfatizar que o dogma do reto

conhecimento nunca pode ser combinado com deveres védicos ou com deveres recomendados

por escrituras legais (DASGUPTA, 1952, 437). Śaṅkara observa que se através da ignorância

ou através do apego o homem continua a cumprir os deveres baseados nos Veda e se, como

resultado dos sacrifícios, recompensas e austeridades religiosas, a mente deste homem

acredita tornar-se pura e assim adquirir o reto conhecimento relacionado à natureza da última

realidade e, depois disso, quando todos os motivos para as ações estiverem voltadas para si

mesmo, ainda assim continuar a executar os deveres prescritos iguais aos homens comuns e

encorajar outros a se comportarem de forma similar, então essas ações seriam inconsistentes

com o reto conhecimento.

2. A anatomia simbólica em Bhagavadgītā

O conteúdo narrativo de Mahābhārata não pode ser enquadrado simplesmente num

panorama de uma epopeia. As passagens e os personagens tanto divinos quanto humanos são

na realidade uma vasta representação simbólica da condição humana em seus vários aspectos

e percepções. Eliade afirma que “raro são os fenômenos mágico-religiosos que não impliquem,

de uma forma ou de outra, um certo simbolismo” (ELIADE, 2010b, 355).

A rigor deveríamos reservar o termo símbolo para o caso dos símbolos que prolongam uma

hierofania ou que constituem, eles próprios, uma “revelação” inexprimível de outra forma

mágico-religiosa (rito, mito, forma divina). Em sentido amplo, no entanto, tudo pode ser um

símbolo ou desempenhar o papel de um símbolo (...). O vocabulário corrente da etnologia, da

história das religiões e da filosofia admite os dois sentidos da palavra “símbolo” e (...) os dois

sentidos apoiam-se na experiência mágico-religiosa de toda a humanidade. (ELIADE, 2010b,

365)

Os símbolos têm como uma de suas funções remeterem o homem à sua identificação

por meio de uma linguagem, de forma que eles estejam e sejam acessíveis à maior parte de

uma determinada sociedade. Seja essa linguagem inserida num contexto histórico ou psíquico,

o diálogo entre Kṛṣṇa e Arjuna representa a comunicação que há entre um indivíduo e seu

universo particular, e a comunicação com a sociedade em que cada um faz parte. Assim,

Kṛṣṇa e Arjuna não são indivíduos particulares, mas sim um sujeito e seu universo próprio.

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Esse simbolismo, seja de forma parcial ou total, é remetido através de matáforas a uma

experiência única num aspecto religioso e sagrado, pois a interpretação de cada um é remetida

também a uma realidade individual, realidade esta de forma transcendente, na qual ultrapassa

ou até mesmo anula os limites da realidade concreta. Segundo Eliade, “(...) todo simbolismo

aspira a integrar e a unificar o maior número possível de zonas e de setores da experiência

antropocósmica, (...) todo o símbolo tende a identificar a si próprio o maior número possível

de objetos, de situações e de modalidades” (ELIADE, 2010a, 371).

2.1. Os irmãos Pāṇḍava e os irmãos Kaurava

O rei de Hastināpura Pāṇḍu é filho do rei Vicitravīrya (filho da princesa Satyavatī e do

rei Śantanu) e da princesa Ambalika. Devido a uma maldição expelida pela divindade

Kindama, Pāṇḍu não poderia ter filhos com suas esposas Kuntī e Mādrī. Se os tivesse, Pāṇḍu

estaria condenado à morte imediata. Assim, Kuntī evoca a ajuda do sábio Durvasa para que

pudesse dar herdeiros a Pāṇḍu. Durvasa, então, condede-lhe a ajuda das divindades Dharma,

Vāyu, Indra e Aśvinau. Assim, nascem os cinco irmãos Pāṇḍava. Portanto, Yudhiṣṭhira,

Bhīma, Arjuna e os gêmeos Nakula e Shadeva, apesar de serem filhos do rei Pāṇḍu, nasceram

por intervenção do deuses.

Yudhiṣṭhira (“aquele que se mantém firme”, “aquele sem inimigos”) é filho de

Dharma, senhor do universo e representante da virtude. Apesar de estar na posição de ser o

sucessor do reino, não deseja herdar este destino. Ironicamente, justo ele, filho de Dharma,

não quer seguir seu dharma. Quando perde seu reino no jogo de dados, poderia ele no fundo

ter sentido alívio? Recupera-o uma vez, mas jogo tudo na segunda aposta e é dessa forma

condenado ao exílio. Parecia a princípio estar abalado, mas não evitou a tragédia quando

poderia tê-la feito. Bhīma (“o destemível, o terrível, o formidável”) é filho de Vāyu, senhor

dos ventos, da atmosfera, da respiração; Arjuna (“aquele que possui luz, é o claro, o brilhante,

transparente, aquele que pratica ação pura”) é filho de Pāṇḍu e Kuntī, com intercessão do

deva Indra, deus da tempestade, senhor dos céus; Nakula (que significa “o mais belo”) e

Shadeva (que significa “mil deuses”), são filhos gêmeos das divindades gêmeas Aśvinau,

deuses da medicina, aquele que domina os cavalos. Dos cinco irmãos, Yudhiṣṭhira é o mais

justo, o correto e o gentil. Arjuna é o guerreiro ideal, nobre, generoso e bravo; Bhīma é o

bruto, com grande poder físico, desprovido de inteligência, mas que não possui malícia.

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Fig. 39

Na parte inferior, a figura central é Yudhiṣṭhira; as duas figuras à sua esquerda são Bhīma e Arjuna; os gêmeos

Nakula e Shadeva estão à sua direita; Draupadī, a esposa dos cinco, encontra-se à direita de todos. Acima deles,

Kṛṣṇa envolvo por uma serpente – Templo de Desavatar, em Deogarh, Índia.

Duryodhana (que significa “aquele que é difícil de lutar contra”, “difícil de conquistar”

ou “difícil de ser vencido”) é o mais velho dos Kaurava. Dotado de grande força física e de

habilidade de grande guerreiro, sua principal arma era o manuseio do bastão. Ele é a

encarnação de Kali, a deusa do mal. Seu irmão Duḥśāsana (“aquele que é difícil de destruir”)

era igualmente cruel e foi o responsável pela humilhação que Draupadī sofreu na frente de

todos da corte após Yudhiṣṭhira perdê-la no jogo de dados (Livro II). Duryodhana representa

o egoísmo humano. Não é motivado a ser o filho perfeito tampouco se importa com a família.

É guiado por uma força da qual nenhum membro da família consegue controlá-lo. Por isso,

aqueles que estão ao seu redor são arrastados para a guerra. Ele é o símbolo daqueles que são

autoconfiantes em demasia. Ele se recusa a mostrar qualquer fraqueza; nem mesmo aceita a se

submeter às exigências de seus primos quando estes querem reaver suas propriedades após o

tempo de exílio.

A atitude de Duryodhana provoca oposição daqueles que estão próximos a ele,

principalmente de seu pai Dhṛtarāṣṭra. Seu capricho é fortemente criticado por ignorar os

laços familiares e é inclusive acusado de ser o “assassino da família” devido a este egoísmo e

ganância. Ele nem mesmo se preocupa em levar a família à destruição. Isso o torna o

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verdadeiro vilão, o lado obscuro que leva um grupo às ruínas. Ele não só, portanto, representa

um rei mau, ele é também é o mal, como analisa Angelika Malinar (MALINAR, 2007, 45).

Ser o rei das terras que ele tanto demanda faz dele alguém que representa a perda do

autocontrole, portanto aquele que não sabe seguir os ensinamentos do Sāṃkhya-yoga. Esta

perda de Duryodhana desclassifica-o de governar um reino. Mas ele, de certa forma, é um

cumpridor de seu dever como kṣatriya – não ceder e lutar pelo seu status. Um dos principais

deveres de um guerreiro é jamais se submeter a alguém e nisso, ambiguamente, Duryodhana é

fiel. Duryodhana, ressalta Vaidya, possui de certa forma seu próprio encanto (VAIDYA, 1904,

51), por ele ser fiel à suas determinações e ambições.

Finalmente, há o Karṇa, filho bastardo de Kuntī, portanto meio-irmão dos Pāṇḍava.

Kuntī, ao gerar Karṇa com o deus do Sol, abandona seu filho num rio e só o reencontra anos

mais tarde. Karṇa é sombrio e amargo, mas dotado de uma incrível habilidade bélica, que se

equipara a de Arjuna. Apesar de ser um Pāṇḍava, torna-se aliado de Kaurava.

As ações dos dois grupos de irmão são evidenciadas não dentro exclusivamente do

entorno das disputas de reino. As rivalidades foram desencadeadas devido às ações de outros

personagens também. Podem estes a princípio parecerem secundários, mas sem eles a

narrativa não teria seguido em frente. Dhṛtarāṣṭra é um rei frágil, mas sempre com tendência a

agir corretamente. No entanto, é facilmente persuadido pelo mal. Por ele ter dividido o reino

em duas partes, foi desencadeada a principal fissura entre os dois clãs. Apesar de ser cego, ou

talvez justamente por sê-lo assim, observa as ações dos irmãos Pāṇḍava e dos irmãos Kaurava

à distância através de seu mentor e narrador Saṃjaya. Yudhiṣṭhira, Bhīma, Arjuna, Karṇa,

Draupadī, Droṇa, Bhīṣma e Kṛṣṇa são os modelos de virtude devido às suas ações e

determinações, mas todos eles, sem exceção, possuem fraquezas e cometem erros.

2.2. O divino que se personifica

Na cultura hindu, as orações feitas aos deuses como Indra personificava o sacrifício no

qual tinha como objetivo, entre vários, manter o rta, ou seja, a força que mantinha a ordem

entre o universo cósmico e o homem. Os hindus creem que as manifestações do divino sejam

bastante abundantes. Nota-se esse fato pelas inúmeras divindades postas em templos e altares

domésticos. Essa crença acabou por resultar em numerosas manifestações em forma e figuras

variadas, seja ela em forma de animal ou homem / mulher, ou combinação parte animal, parte

humano. A maioria dos hindus acredita que essas manifestações surgem de tempos em tempos

na Terra no intuito de proteger o bem e destruir o que quer que seja que obstrua a harmonia

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cósmica. É também fato que muitos hindus acreditam que todas as manifestações divinas

provêm de um único Ser supremo.

Em sânscrito, a palavra murti significa “forma” ou “encarnação”. São as “imagens”

que os hindus expõem em formato concreto para que possam cultuar suas divindades em

templos ou lares, apesar de que muitas vezes creem que não se deve impor as ideias humanas

que deus tenha gênero ou número. Assim, durante os rituais, para alguns hindus, mesmo o

deus personificado deixa por alguns instantes de ser uma matéria sólida e concreta para se

tornar algo além de um símbolo. É ele o Brahman, aquele que está além da compreensão

racional humana.

Embora os Upanixades suponham que brahman está para além da compreensão humana, os

textos chamados Puranas (“Antigas [compilações]”) afirmam que esta entidade divina assume

uma forma e um nome para tornar-se acessível à humanidade – e por isso os hindus referem-se

ao ser supremo como sendo ao mesmo tempo nirguna (“sem atributos”) e saguna (“com

atributos”, tais como graça e misericórica). Há textos que identificam o ser supremo de

diversas maneiras como Vishnu (“Onipresente”), Shiva (“Auspicioso”) ou a Deusa é uma de

suas muitas manifestações, como Shakti (“Energia”), Durga e Kali (NARAYANAN, 2009, 24).

O sentido desses deuses faz parte de um caráter específico do hindu, cujo contexto

expressado tanto nos textos quanto nos sentimentos e consciência dos indianos estão além da

aparência fenomenal. Essas anatomias simbólicas em sua natureza estão também em māyā,

mas não em um aspecto necessariamente negativo. Possuem, acima de tudo, um aspecto

qualitativo para expressar essa consciência e vivência do homem hindu.

Nas palavras de Gandhi, Kṛṣṇa é a personificação do verdadeiro conhecimento e da

perfeição. É uma perfeição imaginária, mas no Hinduísmo a encarnação é atribuída àqueles

que realizaram algum feito extraordinário à humanidade. Por isso Kṛṣṇa ensina a Arjuna a

segui-lo; a sua realização está em imitá-lo, pois segundo Bhagavadgītā, Kṛṣṇa é a própria

imagem da perfeição.

Em Mahābhārata as divindades estão presentes em toda a narrativa. Mas elas não são

uma presença inacessível, sem corpo, sem imagem. Elas se personificam, interagem com os

personagens, mas agem com o único propósito de mostrar, por vezes de forma aparentemente

cruel, os erros que os homens não percebem. Dentre os deuses hindus, Indra sem dúvida

ocupa um lugar permanente de honra em Mahābhārata. Era o executante dos atos da batalha,

combatia as trevas e matava os demônios.

No entanto, em uma das passagens de Mahābhārata, no Livro V (Udyogaparva),

vemos qual o papel de um deus. No Livro, Dhṛtarāṣṭra argumenta que os Pāṇḍava são

invencíveis porque os deuses estão do lado deles e que por isso Duryodhana estaria em

posição de desvantagem. Duryodhana não aceita esta teoria do “apoio divino” apontando para

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isso uma falha de cunho lógico nas palavras de seu pai. Duryodhana rejeita sob a alegação de

que se deuses são deuses, é porque eles representam os valores da renúncia e deveriam estar

desapegados às emoções humanas; além disso, a divindade deveria estar conectada ao poder

do sacrifício.

Assim, os deuses não poderiam tomar o “terceiro partido” num conflito humano

porque os poderes deles são baseados em seus desapegos a todas as obrigações sociais e

inclinações pessoais. Eles possuem seus poderes desde que eles não os usem para propósitos

mundanos. No entanto, por outro lado, o poder dos deuses está restringido às dependências

ritualísticas porque ele é chamado durante o sacrifício executado por qualquer sacerdote que

conheça corretamente as invocações. Assim, Duryodhana se autoproclama o senhor de todos

os seres e que é capaz de lidar com problemas humanos tanto quanto um deus, e as divindades,

ao tomar partido entre os dois clãs, perde seu status divino, segundo argumento de

Duryodhana.

2.3. A metáfora dos sentidos na batalha

Kurukṣetra toma como metáfora tanto o corpo quanto a alma humana, uma batalha

entre os impulsos do bem e do mal. Dhṛtarāṣṭra e Pāṇḍu são respectivamente “a escuridão” e

“a claridade”. A batalha seria em essência um conflito entre os filhos da escuridão, as trevas

(filhos de rei cego) com a luz (filhos de rei com olhos atentos). Mas há algo muito mais

elaborado nessa epopeia. Há “um jogo simbólico dos brâmanes, por quem foi concebida a

biografia fisicamente impossível de Vyāsa” (CAMPBELL, 1994, 263). Aparentemente a luz

deveria ser o oposto das trevas, mas nessa versão indiana não há o melhor ou o pior. Existem

ambos que devem ser equilibrados e refinados, estando, portanto, fora do patamar de um juízo

de valor. Vyāsa, filho de Satyavatī,interpreta assim, o papel das forças ambivalentes que não

tem como finalidade última determinar quem triunfará.

As metáforas dessa dualidade estão representadas já no início da epopeia, antes

mesmo da guerra efetivamente tomar forma. As viúvas Ambika e Ambalika, respectivamente

mães de Dhṛtarāṣṭra e de Pāṇḍu, já se mostraram serem a escuridão e a luz, mas ambas são

complementares no que concerne a fraqueza humana. O que as metáforas representam são o

desencadeamento e envolvimento do mundo ilusório de māyā.

(...) a figura da rainha Satyavati, que nesta lenda representa toda a ironia do jogo de māyā, é a

mãe tanto de Vyasa quanto dos dois jovens reis que morreram. O mistério cósmico de māyā

tem três poderes. O primeiro é o de obscurecer, tornar oculto brahman; o segundo, o de

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projetar a miragem do mundo, e o terceiro, o de revelar brahman através da miragem. Satyavati

em seu barco transportava iogues para a outra margem e nessa função representava o poder

revelador de māyā; mas ela também transportava passageiros da margem de lá para a de cá e

com isso obscurecia e projetava. A serviço do desejo do bondoso rei Santanu, que ficou com

ela na margem de cá, ela se tornou a força ativadora de toda a esfera e de toda interação de luz

e sombra no universo do Mahābhārata (CAMPBELL, 1994, 265).

Entra em cena posteriormente, portanto, o diálogo que vimos no capítulo anterior, no

qual Arjuna, não compreendendo seu conflito, pede a Kṛṣṇa que esclareça suas dúvidas

(Bhagavadgītā 11.5).

Bhagavadgītā está impregnado de temas religiosos. Prega a união total no Ser Único

que Kṛṣṇa, tomando a sua forma universal, ensina a Arjuna o que há de mais valoroso em seu

pensamento. No ápice da batalha entre os Pāṇḍava e os Kaurava, Kṛṣṇa torna-se o conselheiro

de Arjuna e aproveita o dramático momento para proclamar não só o dharma de Arjuna, mas

também a sua doutrina de salvação do mundo, o Karmayoga e sua implicação com o

Bhaktiyoga. Kṛṣṇa não é ninguém senão o herói que veio para salvar a humanidade,

exterminando o demônio.

Encontramo-nos assim em presença de dois sistemas especulativos: o monismo e o dualismo;

mas o Gita não adota uma doutrina particular com dogmas definidos e rígidos num quadro

ortodoxo, ele representa antes uma orientação religiosa, apaixonada, que permanece na tradição

hindu (LEMAÎTRE, 1958, 40).

O poema, de fato, representa a batalha entre o bem e o mal, ou seja, entre deva (deus) e

āsura (demônio), entre dharma e adharma. Dessa destruição de grandeza cósmica ressurge

um mundo novo simbolizado pelo retorno de Parīkṣit, neto de Arjuna, quando esse havia

morrido pelo impacto que sua mãe Uttarā recebeu em seu ventre (Livro 10).

Essa grande batalha de Kurukṣetra foi decidida por Brahmā, o deus da criação. Seu

propósito era aliviar a Terra de uma crescente multiplicação da população e porque eles já não

mais se recordavam de seu dharma. Assim, Brahmā pede aos deuses e aos demônios que

surgissem entre os homens para provocarem uma guerra escatológica. Mahābhārata descreve

portanto, o fim de uma era e de um pralaya (fim do mundo) para que possa emergir um

mundo novo. Yudhiṣṭhira e Parīkṣit, neto de Arjuna, seriam os representantes deste novo

reino. Essa criação e destruição ordenada por Brahmā simboliza o fim de uma idade cósmica,

uma conclusão do ciclo de uma era mítica, o yuga.

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Capítulo III – Possibilidades de leitura sobre as percepções do bem e do mal

As distinções e os pares de opostos que aparentemente são representados em

Mahābhārata são percepções que captamos segundo conceitos que nos foram concebidos

dentro de um âmbito ético do bem e mal inseridos em um juízo de valor. Mas vimos que as

representações dos Pāṇḍava e dos Kaurava vão muito além disso. Não se limitam a um mundo

material e palpável. Esses pares estão num contexto entre dharma e adharma, a reta conduta

diante da devoção, no qual não é possível existir um sem o outro.

Vimos como Kṛṣṇa executa o seu papel durante a batalha. Leva Abhimanyu, filho de

Arjuna, a seguir o combate mesmo sabendo que devido a sua pouca idade, não teria chances

de vencer o inimigo. Ghaṭotkaca, filho de Bhīma, também recebe o mesmo destino fatal por

ter sido enviado para o meio da batalha. Kṛṣṇa também ordena que Arjuna atire em Karṇa

quando este se encontra indefeso com o seu carro preso à terra. É dessa forma que Vyāsa

relata o dharma de cada um. O que designamos “mal” não existe na realidade no Hinduísmo

clássico. Há o adharma ou o pāpa, que em sânscrito significa “defeito” ou “imperfeição”,

portanto, algo mais próximo ao “erro” e consequentemente, o mal. Essa abstração é necessária

para que possamos compreender que tratamos de mundos distintos de percepções, como

Zimmer observa:

A estéril divisão do mundo em matéria e espírito resulta de uma abstração do intelecto e não

deve ser projetada sobre a realidade porque é da natureza da mente estabelecer diferenças,

formular definições e discriminar. Declarar que “há distinções” é apenas constatar a atuação de

um intelecto que apreende. Os pares de opostos percebidos refletem não a natureza das coisas,

mas a da mente que os percebe. Daí que o pensamento e o próprio intelecto têm de ser

transcendidos se o que se quer é alcançar a verdadeira realidade (ZIMMER, 1986, 273).

1. O discernimento e o equilíbrio interno como bem-estar

Arjuna, ao tomar consciência de seu dharma, não só decide seguir os ensinamentos de

Kṛṣṇa, mas também percebe claramente que as suas ações são postas em prova para que

mostre ser fiel e leal a Kṛṣṇa. O discernimento quanto à sua reta conduta o faz despertar que

sem ele jamais encontraria o seu bem-estar. Isso significa não só no âmbito pessoal, mas

também o equilíbrio do ciclo do universo.

Kṛṣṇa ensina-lhe que tanto a alegria quanto a tristeza, o ganho ou a perda, a vitória ou

a derrota, fazem parte da batalha. Deve, portanto, ser um agente ativo ao participar dela, pois

dessa forma Arjuna não se afastará de seu dharma. Por isso, Kṛṣṇa afirma:

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Não existe esforço sem êxito, não é conhecida qualquer depreciação.

Mesmo só um bom bocado de dharma protege de um grande temor. (2.40)

Una é a buddhi fundada no discernimento, ó Kurunandana,

mas multiformes e infindas são as buddhi dos sem-discernimento. (2.41)

Os ignorantes que se satisfazem com os ditos dos Veda, ó Partha,

falam falas floreadas, afirmam “não existe diferente” (2.42)

(...)

Jungido à buddhi, abandona aqui ambos o meritório e o demeritório.

Por isso, aferra-te ao Yoga: Yoga é adequação nas ações. (2.50)

O discernimento (vyavasāya), segundo Kṛṣṇa, consiste em ter o reto conhecimento,

baseando-se em um pensamento bem-formado perante suas impressões e percepções que lhe

foram surgidas. Aquele que tem o seu ātman bem-resolvido, sem vacilo, sem impurezas e sem

dúvidas terá a mente (buddhi) esclarecida. É através das ações do Yoga que Arjuna alcançará

o seu bem-estar (kauśala) e como consequência, a buddhi tranquila.

Caso Arjuna tivesse desistido de seguir seu dharma e interrompido a batalha,

afirmando que seria um equívoco continuar com o fratricídio e o extermínio, ele teria

desequilibrado a assimilação de suas ações. A interrupção da batalha, que a princípio teria a

intensão de prevenir um mal maior, na realidade estaria provocando exatamente o efeito

oposto. O apego ao resultado não é senão o māyā que Kṛṣṇa tanto quer provar a Arjuna. A

busca pelo bem-estar é árdua e é preciso lutar para que possa obtê-lo. Mas mesmo uma vez

obtido, não deve acreditar que será eterno, pois para obter o discernimento é preciso muitas

vezes percorrer um caminho incessantemente e às vezes pode até vir a ser ilusório.

No entanto, não é só Arjuna que representa essa luta pelo equilíbrio do bem-estar;

Yudhiṣṭhira igualmente representa a força e a necessidade desse equilíbrio interno, pois é ele

mais um representante de mokṣa, ou seja, o desapego e a consequente libertação. Quando ele

resiste em iniciar a batalha, quando ele resiste em assumir o reinado, discute com ninguém

menos que Arjuna, justo este que também resiste em seguir seu dharma. Yudhiṣṭhira é

confuso e por vezes faz parecer que é fraco. Não resiste à jogatina, mesmo sabendo que não

tem habilidade; não impede que sua esposa passe por humilhação ao perdê-la na aposta.

Experimenta, portanto, o lado obscuro da natureza humana: o vício, a covardia e a fraqueza.

No entanto, é o personagem que representa igualmente a integridade humana, pois no final da

batalha, ao se retirar nas florestas, ruma em direção às montanhas do Himālaya e quando lá

recebe ordens de Indra para abandonar o seu fiel companheiro da jornada, um cão,

Yudhiṣṭhira firmemente desobedece-o dizendo-lhe que jamais faria tal coisa mesmo que isso

provoque a ira de Indra e fizesse com que Yudhiṣṭhira não possa subir ao reino de svarga.

Com essa provação, Indra lhe permite ascender a svarga. Lá, ao encontrar seus inimigos, pede

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a Indra que o leve onde seus familiares estão. Não abandona seus familiares, mesmo eles

estando em agonia na escuridão do naraka, preferindo isto às maravilhas do svarga, sendo

esta a sua última provação.

Podemos dizer que, de forma ampla, Yudhiṣṭhira é aquele que através da longa

epopeia de Mahābhārata representa o que é o discernimento, o que é o cumprimento de um

dharma e consequentemente a luta para alcançar o bem-estar, e que Arjuna é aquele que,

representado pelo diálogo com Kṛṣṇa, mostra-nos essas mesmas buscas na passagem de

Bhagavadgītā.

1.1. Uma ideia acerca de dharma

Dharma deriva da raiz DHṚ “colocar, montar, dar forma”; com o sentido de “forma, fôrma,

modelo”, designa o conjunto de direitos e deveres a serem seguidos por todos aqueles que

pertencem a um determinado grupo social ou recortado na sociedade. Embora incluam

constrições e permissões coletivas, cada sujeito – conforme sua profissão, seu sexo, sua idade

etc. – tem suas particularidades a cumprir. Costuma-se traduzir a palavra por Norma, Lei,

Direito, Justiça, Costume, Tradição, Moral, Piedade, Religião. É tudo isso junto e mais alguma

coisa. Seu contrário é o a-dharma. Os dois conceitos fazem parte do fundo temático de todo o

Mahābhārata (FONSECA, 2009, 36).

A palavra dharma também significa “suster, sustentar, carregar, o que mantém unido

ou erguido” (ZIMMER, 1986, 128). Ou ainda “dever, retidão, ética” (NARAYANAN, 2009,

50). Como podemos notar, não há uma única tradução que possa definir com precisão este

termo. Este subcapítulo, portanto, não tem como objetivo mostrar a distinção entre os termos

“ética” e “moral”, pois dharma não se limita somente ao contexto da lei e do costume

construídos por um grupo de sociedade, como religião, modos de comportamento, deveres

sociais, virtude, mérito moral ou justiça. É tudo isso, mas inclui-setambém noções sobre

qualidade, caráter, função social e padrão de reta conduta.

Traçaremos aqui uma ideia sobre o dharma hindu, ou seja, uma ideia sobre uma “lei”

no contexto hindu, aquele que perdura enquanto o universo existir e que sucumbe no instante

em que o mundo extinguir. O dharma de um indivíduo é a manifestação de um ser enquanto

este é (sat). Isso significa que seria impensável ser um hindu sem um dharma. Sat

literalmente significa “ente ou existente”, ou também “verdadeiro, essencial, real”. Sat, enfim,

significa “bom, virtuoso, certo, adequado, o Bem” (ZIMMER, 1986, 130) e o próprio nome

da religião hindu Sanatanadharma significa dharma eterno ou universal, como já vimos.

Dharma, obrigações religiosas e sociais do bom homem hindu, segundo ordem

cósmica, é parte essencial do Hinduísmo. Como vimos no capítulo I dessa pesquisa, seu

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conceito tem origem nos textos do Ṛgveda, no qual inicialmente usava-se a terminologia ṛta

para designar essa ordem. O tratado sobre dharma encontra-se fundamentalmente nos textos

de Manusmṛti, importante fonte sobre as leis e costumes hindus. De acordo com esses textos,

o varṇāśramadharma (capítulo I) enaltecia as obrigações (dharma) do homem hindu de

acordo com seu grupo (varṇā) e seu estágio de vida (āśrama).

O Manusmṛti tem uma forte ligação com o Mahābhārata, pois Mahābhārata descreve

dois pontos importantes do pensamento hindu: a luta entre o bem e o mal, e o dharma e

adharma, mas não só no patamar individual. O confronto desses opostos adquire uma

importância de proporção universal, pois a percepção de ambos rege tanto a vida cósmica

quanto todo o equilíbrio da existência social e pessoal. Quando o dharma se desequilibra, o

universo também se desequilibra; ele entra em caos. É o que vimos no capítulo I quando

mencionamos a degeneração do yuga. O homem, então, segundo o pensamento hindu, é o

responsável pela harmonia e desarmonia da existência, e também pela manutenção do

universo. Ao se esquecer de seu dharma (como estava prestes a acontecer com Arjuna no

meio da batalha), surge uma divindade (no caso, Viṣṇu reencarnado como Kṛṣṇa) para fazer

com que os homens se recordem dos seus verdadeiros papéis.

Nesse sistema (de castas), quem recebe as mais altas posições e honras não é o rei ou o

milionário e sim o sábio, o santo, o mahātma (que literalmente significa “magnânimo”:

Espírito ou Eu [ātman] grande [mahānt])”, (...) pois é dele que deriva toda a ordem da

sociedade. O rei, a bem dizer, é apenas o administrador dessa ordem; os agricultores e os

mercadores fornecem os materiais que dão corpo à forma; e os trabalhadores (śūdra) são

aqueles que contribuem com o necessário labor físico. Assim, todos estão harmonicamente

concatenados para revelar, preservar e experimentar a grande imagem divina. Dharma é a

doutrina dos deveres e dos direitos de cada indivíduo numa sociedade ideal e, como tal, é a lei

ou espelho de toda ação moral (ZIMMER, 1986, 41).

Brahmā cria, Viṣṇu preserva e Śiva destrói. Estes são os princípios básicos desses

deuses. Mas são os homens os principais responsáveis pela destruição do universo (destruição

esta diferente da destruição de Śiva). Essas três divindades observam de yuga em yuga o

comportamento dos homens. Ao perceberem que o dharma individual está entrando em

desequilíbrio, os deuses intervêm e “engolem” o universo de forma que ultrapassa a realidade

humana.

O mal em Bhagavadgītā se refere à carência de discernimento e ao excesso de avidyā

(“ignorância”), algo que não havia durante o Satyayuga. Não é um mal relacionado à

“maldade” que atinge fatores externos ao homem. Diferentemente de outros animais que

matam ou ferem por questões de sobrevivência e de preservação de sua espécie, a natureza do

homem não limita sua agressividade somente nesses itens. Sua agressão ultrapassa esse

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campo, pois o orgulho e a ganância são partes inerentes da sua sobrevivência. Apesar dos

requisitos do dharma de cada indivíduo serem bastante claros e inflexíveis, o homem entra em

conflito com os seus deveres por ter um discernimento distinto do resto dos animais. O

homem quer saber o porquê dos acontecimentos de sua vida. Arjuna quer saber o motivo de

todo os eventos que ele está vivenciando. Esse questionamento leva-o a angústia, a um

“vacilo”, algo que não se nota nos animais por terem eles uma espontaneidade infalível ,

observa Jean Delumeau (DELUMEAU, 2002, 350).

Mahābhārata narra esse esquecimento do homem, a falta de discernimento e a

ignorância como principal causa do Kaliyuga. Era preciso que os deuses interviessem

novamente no ciclo cósmico e assumissem seus avatāra para que o dharma pudesse ser

restaurado. O mokṣa e o sannyāsa, respectivamente a libertação e a renúncia, não foram feitos

para qualquer indivíduo, pois nem todos conseguem chegar a essa etapa, como vimos no

capítulo I. Mas são dois fatores que levam o homem a saírem do ciclo de saṃsāra. O homem

é uma engrenagem essencial para o funcionamento harmonioso do universo. Mas quando ele

começa a pensar como indivíduo e não como coletivo, acaba desencadeando esse

desmoronamento caótico do equilíbrio. O bem-estar não pode ter um fim individual nem

tampouco isolado. Kṛṣṇa bem afirma isso a Arjuna: a não ação dele e a sua dúvida será a ruína

de seu dharma.

Alf Hiltebeitel aponta algumas possibilidades sobre o dharma como sendo o foco

central do tema de Bhagavadgītā (HILTEBEITEL, 2010, 118): o primeiro e o mais simples é

considerar a euforia descrita por Arjuna sobre Kṛṣṇa como “o protetor do dharma eterno”. O

capítulo 11 revela esse mérito, mostrando ser o auge de Bhagavadgītā, quando Kṛṣṇa revela

suas diversas formas (Bhagavadgītā 11.5). O segundo ponto está no capítulo 18 quando Kṛṣṇa

ordena Arjuna a abandonar todos os dharma e a procurar Kṛṣṇa como único refúgio para que

assim consiga se libertar dos erros (Bhagavadgītā 18.66). Hiltebeitel afirma que no capítulo 9

há também um dos momentos em que Kṛṣṇa fala sobre dharma, no sentido de seu

ensinamento ou doutrina, quando Kṛṣṇa afirma (retomando parte do capítulo II desta

dissertação):

O Venerável disse:

Para ti, tão cândido, esse jñâna secretíssimo vou expor,

acompanhado do vijñāna – conhecendo-o te livrarás do inauspicioso. (9.1)

É a ciência régia, o segredo régio, a suprema purificação;

vinda com evidência, segundo o dharma, prazerosa de fazer, imperecível. (9.2)

Os homens que não põem śraddhā nessa doutrina-de-vida, ó Paraṃtapa,

não me alcançando caem nas trilhas do saṃsāra e da mṛtyu. (9.3)

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Seguindo sua doutrina, portanto, Kṛṣṇa assegura a Arjuna que não cairá no submundo,

aqui interpretado como a prisão dentro do ciclo de saṃsāra e da eterna repetição de morte

(mṛtyu). Dos capítulos 12 a 16, Kṛṣṇa faz uma pausa para dizer a Arjuna alguma das mais

profundas implicações sobre Bhagavadgītā. Os capítulos 12 e 16 podem ser lidos de forma

contínua como uma discussão acerca da virtude e do vício inseridos nas pessoas de diferentes

naturezas. Kṛṣṇa, assim, descreve quem são as pessoas caras e quais ele considera pessoas de

erro. Os capítulos 13 e 15 são os que apresentam o campo de batalha como metáfora de nosso

corpo e que, portanto, é a morada do nosso dharma. É nesse kṣetra que tanto cultivamos

quanto destruímos o dharma. E é no capítulo 14 que Kṛṣṇa indica como atingir o verdadeiro

dharma e, portanto, consequentemente, a verdadeira felicidade:

O Venerável disse:

Luz, atividade e alucinação, Pāṇḍava:

presentes, não as odeia; ausentes, por elas não anseia. (14.22)

Quem, completamente indiferente, não é perturbado pelos guṇa;

quem, dizendo “os guṇa estão em processo”, fica à parte, imóvel; (14.23)

quem, o mesmo na alegria e na tristeza, em paz consigo, argila pedra ouro iguais,

o mesmo o agradável e o desagradável, firme, o mesmo a censura e o elogio, (14.24)

o mesmo na honra e na desonra, o mesmo para amigos e inimigos,

abandonado todo empreendimento – esse, dizem, ultrapassou os guṇa. (14.25)

E quem se serve, sem sair do caminho, com um yoga de devoção,

esse, ultrapassados os guṇa, se integra, pronto, no brahman. (14.26)

Porque eu o suporte do brahman, do imortal e do imperecível,

Da estrada do dharma e da felicidade final. (14.27)

1.2. A questão ética em Bhagavadgītā

Distintamente da ideia de uma reta conduta como nos é concebido no ocidente (não

matar, não mentir, não roubar, não agredir etc.), a ética hindu inserida em Bhagavadgītā nos

remete a um outro âmbito: a do cumprimento do dharma. A princípio, parece impensável

vermos alguém ferir e matar o próximo, como ocorre desde o princípio na narrativa de

Mahābhārata (a começar pela deusa Gaṅgā, que mata seus filhos por estar presa a uma

maldição). No entanto, cumprir uma tarefa e seguir rigidamente o seu dharma é em si ser

ético no Hinduísmo.

A ética hindu não deve ser limitada somente ao preceito da primeira ordem moral no

que concerne sobre as ações obrigatórias e proibidas construídas e impostas por uma

sociedade. Tais ensinamentos da ética hindu já aparecem no Dharmaśāstra e em outros textos

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hindus. Ética hindu trata, segundo Roy W. Perrett, além desse primeiro preceito, basicamente

sobre duas outras questões: “o que devemos fazer?” e “por que devemos fazer isso?”

(PERRETT, 1998, 1). Deve-se em última instância, portanto, analisar sobre o que significa

ser correto e o que significa agir bem dentro do Hinduísmo e não em outro contexto. É nesse

contexto que Arjuna pergunta: “por que devo fazer isso?” e “o que devo fazer para seguir em

frente?”.

Perrett observa em primeiro lugar, que a justificativa do svadharma não precisa

depender exclusivamente na passagem de Bhagavadgītā. Ou seja, ele afirma que é verdade

que os autores do Hinduísmo clássico sustentam que dharma é comentado inicialmente e

essencialmente nos śruti (o que foi “revelado”), particularmente os Veda. Mas é sabido

também que mesmo todos os textos védicos não são suficientemente ricos em explicitar a

constituição adequada da ciência do dharma. Por isso é preciso que o sentido de dharma seja

complementado pelo corpo dos textos do smṛti (o que foi “memorizado”), ou seja, o grupo de

textos dos quais Bhagavadgītā pertence. Além disso, a ética hindu está relacionada

diretamente com outro conceito: o de responsabilidade. Embora o indivíduo seja o agente

intencional das ações, ele não é necessariamente responsável moralmente por elas. Em outras

palavras, embora Arjuna seja o condutor da ação, ele não é responsável pela sua ação e suas

consequências, desassociando-as, dessa forma, de sua responsabilidade. O que Bhagavadgītā

ensina é o caminho dessa dissociação das ações. Não se deve conduzir as ações associando-as

ao fim (ao fruto) delas. Deve-se, portanto, desresponsabilizar as ações éticas dos resultados

finais. Bhagavadgītā mostra que o corpo que age não é na realidade “meu” ou “eu”, ou seja,

as ações que fluem a partir dele não pertencem em última instância ao indivíduo:

Quem age fundamentando os atos no brahman, abandonando o apego,

não é mais atingido pelo erro que a água na folha de lótus. (5.10)

Pelo corpo, pelo manas61

, pela buddhi, apenas pelos sentidos

os yogin, abandonando o apego, acionam uma ação para a limpeza do ātman. (5.11)

Adepto, abandonando o fruto da ação, consegue uma śānti estável;

não-adepto, apegado ao fruto pela incitação de kāma, continua preso. (5.12)

Isso significa que é um engano crer que eu sou o meu corpo da ação. Se levar a

interpretação por esse caminho, significa que o indivíduo assume a responsabilidade moral

das ações corporais, o que seria oposto ao que Kṛṣṇa quer ensinar. Esse dualismo prakṛti

61manas = “pensar”, “mente”, “órgão central, sentido interno de percepção que se sobrepões aos cinco sentidos”.

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(“matéria”) e puruṣa (“espírito”), esse ensinamento sobre responsabilidade da ação ética, é

apresentado por Kṛṣṇa quando este aborda o tema sobre o Sāṃkhyayoga para Arjuna:

O homem a quem eles não afetam, ó touro entre os homens,

um mente-firme na alegria e na tristeza, esse partilha da imortalidade. (2.15)

Sabe-se que o que não é não passa a ser e o que não passa a ser não é;

a conclusão sobre ambas as visões se dá aos olhos de todos. (2.16)

Saiba que é indestrutível tudo o que por ela é penetrado.

Nada causa a destruição do que não se desperdiça. (2.17)

Diz-se que esses corpos sem-fim são matéria constante,

Indestrutível, imensurável. Por isso, Bhārata, luta! (2.18)

Quem afirma que ela mata e quem pensa que ela é morta,

esses dois nada sabem. Ela não mata nem é morta. (2.19)

Este homem a quem Kṛṣṇa se refere é o próprio puruṣa, o portador do espírito e

espectador da prakṛti. A śarīrin (corpo), ou seja, a matéria constante (2.18) não pode ser

dissolvida. Portanto, Arjuna não tem nada a temer, pois o que o impedia de continuar a

batalha era o pensamento de que ao ferir os corpos eles seriam destruídos.

O objetivo final do ensinamento de Kṛṣṇa está em atingir o mokṣa. Na tradição hindu

este mokṣa está associado à libertação do ciclo de saṃsāra, o eterno renascer, e à teoria do

karma. Mas esse pensamento sobre o ciclo do sofrimento não opera somente na transição

uma vida para outra, mas opera também dentro do próprio nascimento ocorrido no momento.

Segundo análise feita por Perrett, existe uma “teoria geral do karma” da qual, baseado nos

textos de Bhagāvādgītā, cada ação resulta em dois distintos resultados (PERRET, 1998, 21): a

ação que resulta em prazer ou dor e a ação que tende a repetir essa ação. Há, portanto, o

phala (“fruto da ação”) e o saṃskāra (“disposição de repetir a ação”). Em Bhagavadgītā,

Kṛṣṇa ensina a Arjuna a renunciar todas as preocupações referentes aos frutos de suas ações e

enfatiza que enquanto o phala é inevitável, o saṃskāra é evitável. Isso significa afirmar que

um indivíduo é perfeitamente apto a controlar seus hábitos e libertar-se ele mesmo desse ciclo

de saṃsāra. De acordo com Bhagavadgītā, essa libertação não é feita cessando-se as ações, o

que em realidade seria impossível, mas adotando uma atitude de desprendimento.

A ética no Bhagavadgītā, portanto, caminha por um outro viés: a de agir porque assim

se deve. Por isso dharma é traduzido como ética, moral, virtude, reta conduta, entre outros. O

matar na batalha de Kurukṣetra é uma ação ética, pois o guerreiro kṣatriyas faz-se um homem

justo por cumprir não só o seu dever, mas também seu destino. Sua ação não pode ser

delegada a outro e não pode ser evitada. A recusa de Arjuna passa então a ser visto como um

capricho e ignorância, e não como bravura por poupar vidas humanas. “Liberte-se dos

resultados, pois eles são ilusórios”, afirma Kṛṣṇa. Aja, mas desprenda-se da responsabilidade

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dos resultados. A morte, a vida, o svarga, o naraka são, em última instância, ilusórios: é o véu

de māyā que a ignorância humana insiste em usar. Considerar os Kaurava como inimigo, os

corpos mutilados como crueldade, angustiar-se pelas mortes de amigos e familiares, tudo isso

é resultado de māyā. Ao se livrar dela, o homem consegue discernir e perceber o que é afinal

um homem ético e também perceber que esse discernimento faz parte da condição humana.

2. A condição humana

Em Bhagāvādgītā, o episódio da crise de Arjuna e posterior ensinamento de Kṛṣṇa

através dos três importantes darśana (Vedānta, Sāṃkhya e Yoga) demonstra uma revelação

relacionada à condição humana pelas vias de libertação. Kṛṣṇa mostra-lhe os meios que ele

deve cumprir para seguir a sua função de kṣatriya desprendendo-se de seu karma. “Em linhas

gerais, as revelações de Krishna versam sobre: 1) a estrutura do Universo; 2) as modalidades

do ser; 3) as vias que cumpre seguir para obter a libertação final” (ELIADE, 2011, 212).

O Vedānta, o Sāṃkhya e o Yoga ensinam respectivamente a atividade ritualística, o

conhecimento metafísico através do que é o verdadeiro ātman e o caminho que conduz o

ātman ao Brahman através da prática do yoga. Mostram que a ambivalência, a equivalência e

a conciliação dos contrários são características do pensamento indiano. Bhagavadgītā assume

e valoriza essa historicidade da condição humana principalmente através dos atributos

humanos mostrados por Kṛṣṇa.

O bem e o mal são itens inseparáveis da condição humana, sejam eles para

demonstrarem a limitação humana, sejam eles para nos fazer perceber a nossa ignorância. O

que Kṛṣṇa insiste em mostrar a Arjuna é que essa limitação e ignorância estão relacionadas ao

esquecimento da origem divina que este kṣatriya possui. A intenção de Kṛṣṇa é de fazê-lo

recordar que a dor, a morte e o mal não possuem caráter degenerativo. Eles são necessários

para que o homem possa perceber que as coisas materiais (incluindo a vida) são ilusórias e

perecíveis.

Assim, em Mahābhārata são apresentados assuntos relacionados a nossa vida

cotidiana e, portanto, há no contexto da narração circunstâncias que permeiam a condição

humana trazendo à tona as questões e respostas das quais são investigadas na vida de um ser

humano. A epopeia não baseia seu entendimento sobre a vida humana relacionada à revelação

divina ou sobre pressupostos filosóficos propriamente ditos, segundo análise levantada por

Chaturvedi Badrinath (BADRINATH, 2007, 13). Nem tampouco ela pergunta sobre as

definições das coisas que permeiam a vida humana. Ela, na realidade, trata sobre os lakṣaṇa

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(“atributos”) dos quais como essas coisas são conhecidas, reconhecidas e expostas. É um dos

principais pontos que Kṛṣṇa quer ensinar a Arjuna. Não é um conceito e sim um viver

segundo percepção dos atributos. É dessa forma que as discussões sobre o dharma e a verdade

procedem, enumerando esses lakṣaṇa da forma como eles são conhecidos ou como se

tornaram conhecidos.

A condição humana está na complexidade que existe quando discutimos sobre os

atributos e a sua relação com a questão de como eles se refletem no relacionamento com o seu

ātman e com a presença do outro. Diante desse relacionamento, de que forma uma pessoa

alcançaria sua meta final, o mokṣa e como seria, afinal, o relacionamento de um indivíduo

com a sua liberdade? Primeiramente, é necessário que se reconheça uma linha divisória que

determina onde começa e onde termina o que se compreende por liberdade e isso, de certa

forma, é bastante arbitrária. A complexidade da vida não nos fornece uma resposta clara e

definitiva. O que Mahābhārata nos sugere é que essa linha divisória e os limites não podem

ser quantificados porque a própria vida não se limita em conceitos ou linhas divisórias.

Badrinath exemplifica afirmando que a verdade, por exemplo, não é um conceito. Ela é, na

realidade, um entendimento.

O dharma, a verdade, a liberdade, a dor, e outros lakṣaṇa, nenhum deles pode existir

isoladamente como um simples conceito ou ideia. Qualquer um deles precisa na realidade de

um outro para poder existir. Esse relacionamento de codependência é que faz existir o

autoconhecimento e o conhecimento do outro, e isso é, enfim, parte integrante da condição

humana apresentada em Mahābhārata.

Além disso, Mahābhārata nos mostra que vida é para ser compreendida e vivida,

mesmo que paradoxalmente, pois assim é a vida humana: “a realidade é composta por

oposições”, afirma Badrinath (BADRINATH, 2007, 16). Para se equilibrar um lado, é

necessário que exista um outro para contrabalanceá-lo. Quando Dhṛtarāṣṭra propõe a divisão

de reinado igualitariamente entre os irmãos Kaurava e os Pāṇḍava, metaforicamente, o

equilíbrio entre o bem e o mal, Duryodhana, não se contentando, quer assumir todo o reinado

de Kurukṣetra quebrando assim, a ambivalência do universo. Há, acima de tudo, o paradoxo

da própria vida, que consiste na existência da morte, biologicamente, emocionalmente e

espiritualmente. Um não existe sem o outro. Por isso a morte foi criada. As manifestações dos

opostos são simultâneas e não consequências. O bem e o mal caminham juntos, assim como o

prazer e a dor.

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100

2.1. A dor e a morte como uma necessidade

“O corpo é dor porque é o lugar da dor; os sentidos, os objetos [dos sentidos] e as percepções

são sofrimentos porque conduzem ao sofrimento; o próprio prazer é sofrimento porque é

seguido de sofrimento” (ANIRUDHA, apud ELIADE, 2011, 50).

Gautama Buddha afirmava que tudo era dor. Ela é parte da experiência humana e o

sofrimento é parte da condição humana. Isso não implica necessariamente que essa dor tenha

um cunho pessimista. Ela faz parte do processo para se chegar ao mokṣa. Devido também a

esse princípio é que os sábios e os ascetas hindus retiram-se do mundo, isolando-se das

pessoas, praticando o desapego tanto aos bens materiais quanto às ambições. É a certeza de

que pela dor e com a dor o homem transcenderá sua condição. “Por outro lado, o homem não

é o único que sofre; a dor é uma necessidade cósmica” (ELIADE, 2011, 50). Mas, ao mesmo

tempo que ela é estimuladora, é também um fator impeditivo das ações.

Por isso Kṛṣṇa diz a Arjuna que a dor por ele sentida não deve ser angustiante a ponto

de fazê-lo descumprir seu dharma. Ela é necessária por impulsionar a propiciar o andamento

do curso do universo. E para que Arjuna consiga obter a sua superação e consequente

salvação, ele deve seguir as palavras de Kṛṣṇa e nada mais. “A ‘salvação’ implica a

transcendência da condição humana” (ELIADE, 2011, 51). Arjuna em seu momento de

tristeza desabafa:

Não consigo ver como eliminar essa dor

que me resseca todos os sentidos

mesmo que tenha domínio sem igual na terra

ou poder sobre o reino dos sura. (2.8)

No pensamento indiano, a dor e o sofrimento foram cultivados com o propósito de

obter a liberdade das experiências e também dos sentimentos. Da mesma forma, a felicidade e

o prazer são algo para serem temidos por serem transitórios e tudo que é transitório merece

pouco valor por ele produzir no final nada além da dor. A partir desse pensamento, criou-se a

conclusão de que tanto o prazer quanto a felicidade apenas são camufladores de duḥkha

(“dor”).

Se há a noção de que a dor é algo que deve ser evitada, então também é verdade que a

felicidade seja igualmente recusada. Caso contrário, o desapego, a renúncia, a negação e a

abstinência, todos eles diretamente relacionados à dor e ao sofrimento seriam retirados do seu

verdadeiro contexto, sendo distorcidos e equivocadamente rearranjados, tornando-os apenas

atributos negativos. Um sannyāsa, por exemplo, não é um renunciante do mundo e da alegria,

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como usualmente é caracterizado. Mas ser um sannyāsa significa a busca pelo estado do

conhecimento da verdadeira posição em que se encontram os atributos humanos na sua

natureza.

Existe em Mahābhārata muito mais passagens sobre dor, raiva, ódio, traição e

vingança do que amizade, ternura e amor. O que há é mais amor por violência do que a

vontade de libertar-se da violência. A ganância de Duryodhana, o ódio de Karṇa, a força bruta

de Bhīma, o orgulho de Yudhiṣṭhira e a covardia de Arjuna são todos forças destruidoras que

Mahābhārata constantemente narra como condição humana. Os personagens, na realidade,

ferem-se antes mesmo de ferirem os outros. Não é um autoflagelo. Essa ferida, nascida seja

do ódio ou da covardia, corroe por dentro todos aqueles que nutrem a vaidade. Mas também é

verdadeiro afirmar que essa ferida é a força motriz dos personagens da epopeia.

Vyāsa conta a Mṛtyu (“Morte”) que ela foi criada por Brahmā para aliviar a Terra do

peso intolerável que ela passou a carregar pelo crescente aumento descontrolado da população

dos seres vivos. Mṛtyu, portanto, veio a esse mundo com a tarefa de devorar esses seres. Mas

Mṛtyu não tolera essa dor, pois não quer ser considerada como assassina, e quando ela

lamenta e chora, Brahmā é que colhe suas lágrimas. Ela exige que Brahmā lhe dê explicação

sobre seu nascimento, pois para ela seria insustentável carregar o medo e o ódio que os filhos,

os parentes, os amigos e outros membros participantes da batalha teriam dela. Mṛtyu implora

que Brahmā a liberte desse seu dharma.

No entanto, Brahmā explica-lhe o quão importante é a sua presença. Assim, Mṛtyu

obedece às ordens de Brahmā, mas ela o adverte afirmando que a ganância, a raiva, a inveja, o

ciúme, a confusão das percepções, a vergonha, tudo isso devorará aqueles que incorporarem

esses sentimentos antes mesmo de ela agir. Brahmā diz a Mṛtyu que seu sentimento de

lamentação é inútil, pois parte das lágrimas que ele colheu caíram sobre a Terra e elas se

tornarão doenças que nascerão do próprio corpo dos seres vivos. A morte, portanto, será

causada pelo próprio corpo e não pela Mṛtyu. Brahmā, então, diz a ela que dessa forma não

estará cumprindo o adharma. Os homens serão, portanto, responsáveis pela deterioração dos

próprios corpos. Mṛtyu não será a causadora das mortes. Ela apenas trará a morte como

consequência àqueles que não souberam reconhecer e usar os bons atributos e refinar o seu

ātman.

Mahābhārata mostra que cada indivíduo possui um relacionamento com o seu ātman.

Sejam em forma de desejos, ações ou emoções, esse relacionamento possui suas

particularidades tanto no corpo quanto na mente de cada um. Mas esse relacionamento

abrange âmbitos individuais e coletivos. Novamente a morte possui igual peso nesse

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relacionamento. A dor, a morte, a dor pela morte foram criadas para despertar no homem a

importância dos opostos. Assim, não há motivos para lamentação, pois todos os atributos

relacionados ao prazer são transitórios: a beleza, a juventude, a riqueza, a saúde. Nada é

estável: o acúmulo acaba em destruição, a subida em queda e a vida, em morte. Os esforços

humanos, portanto, são perecíveis. Essas são as razões pelas quais há mais dor do que prazer:

porque todos os objetos do prazer são transitórios; porque mesmo que tudo seja interminável,

o desejo em si criará mais dor do que prazer por ela provocar mais triṣṇā (“sede”), ou seja,

dor; e porque todas as coisas desejadas pelos homens são sementes que dão frutos da dor.

Eliade faz a seguinte colocação sobre a dor universal:

Para que se avalie o papel considerável da Bhagavadgita na história religiosa da Índia, cumpre

evocar as soluções propostas pelo sanquia, pela ioga e pelo budismo. (...) A descoberta da “dor

universal” e do ciclo infinito das reencarnações havia orientado a busca da salvação numa

direção precisa: a libertação devia implicar a recusa de seguir os impulsos da vida e as normas

sociais. (...) Em síntese, a salvação pressupunha um ato de ruptura: a desvinculação do mundo,

lugar de sofrimento e prisão amontoada de escravos (ELIADE, 2011, 216).

Quando Arjuna afirma que a dor resseca todos os seus sentidos, ele inclui, além dos

cinco sentidos físicos (olfato, paladar, tato, audição e visão), o sentido da mente. Ou seja, ele

não consegue nem mais dominar o seu manas (“mente”), tamanho é o seu sofrimento. Só

poderá se livrar dessa dor quando perceber que ela é apenas māyā. Quando o homem esquece-

se do seu ātman torna-se refém e prisioneiro do sofrimento, da dor e do mal. Mas uma vez

desperto, ele consegue obter a sua liberdade.

2.2. A questão do mal em Bhagavadgītā

O homem pode ser tanto amigo quanto inimigo de si mesmo. Segundo Bhagavadgītā,

caso ele siga o caminho das tentações, seu ātman declinará para o mal, tornando-se, assim, o

inimigo de seus próprios interesses. Por outro lado, é dever dele próprio esforçar-se para

erguer-se dessa queda para poder alcançar o patamar do desapego dos prazeres. As dualidades

envolvidas entre amigo/inimigo, conquistador/conquistado, poder de ascenção/declinação

estão presentes nas distinções entre o ātman elevado e o ātman declinado. Somente quando o

ātman elevado domina o ātman declinado é que o homem se torna amigo de si mesmo. O

homem que fracassou na tarefa de dominar suas próprias paixões, prazeres e apegos, este se

tornará seu próprio inimigo. Kṛṣṇa ensina a Arjuna:

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Que o ātman pelo ātman se eleve; que o ātman não se destrua;

o ātman é mesmo o amigo do ātman; e o ātman é o inimigo do ātman. (6.5)

O ātman é amigo de quem tem ātman, por qual ātman o mesmo ātman foi vencido;

quem não tem ātman, o ātman se move em inimizade com o ātman como um inimigo. (6.6)

Quem tem o ātman vencido, está acalmado, eis um ātman supremo organizado

no frio como no quente, na felicidade quanto na tristeza, na honra como na desgraça. (6.7)

Assim, somente quando o ātman domina suas tendências inferiores e se eleva para o

plano superior é que ele dominará o mal. Um dos principais meios para conquistar esse nível,

ensina Kṛṣṇa na passagem acima de Bhagavadgītā, é tomando o caminho do yoga, ou seja, o

caminho da meditação que domina ao mesmo tempo o corpo e a mente.

Segundo pensamento indiano, quando o problema do mal aparece, surge na realidade

de ordem prática, ou seja, a afirmação de que tudo é na verdade sofrimento. No entanto, o mal

apresentado em Bhagavadgītā não deve ser interpretado nem tampouco compreendido como

algo que “prejudica o próximo” ou “fere si mesmo” no sentido mais restrito da expressão ou

no sentido do senso comum da palavra. Como vimos anteriormente, ele é tão necessário

quanto a dor. O mal em Bhagavadgītā não é senão o adharma do Hinduísmo, ou seja, o não

cumprimento do dever do homem segundo sua designação. Aquele que não age em

conformidade do seu dever estaria comprometendo não só o curso de sua vida, mas também o

curso existente relacionado com o outro, pois o homem não nasce como um indivíduo isolado.

Ele nasce para cumprir e agir seguindo seu dharma, pois só dessa forma ele estará

contribuindo com o percurso do vasto mundo complexo da humanidade. Mas antes de tudo,

ele precisa dominar o mal que existe em seu ātman.

Kṛṣṇa dialoga com Arjuna ensinando-lhe que através da devoção às palavras dele e

através do desapego às coisas mundanas como medo, dúvida, hesitação e angústia, é que

Arjuna, que alegoricamente representa as nossas próprias dúvidas, alcançará a realização

interna e consequentemente o encontro com seu ātman elevado. Enquanto o homem estiver

afastado do seu dharma ele estará causando o mal tanto no âmbito pessoal quanto no âmbito

universal; enquanto ele estiver em estado de angústia e hesitação estará enfrentando adharma.

Pāpa, como vimos na introdução do capítulo III, é termo sânscrito que designa o mal

tanto moral (crueldade, vício, perversão etc.) quanto natural (doença, terremoto, tornado etc.),

ou até mesmo culpa (Bhagavadgītā 1.36). Aparece já nos Veda, mas com distinções de

conceito entre ambos (moral e natural), observa Wendy Doniger O’Flaherty. Por vezes é

traduzido também como cometer um pecado62

. Mas segundo pensamento indiano, o pecado é

possível de ser cometido mesmo sem a vontade do pecador. Se, portanto, o mal não é uma

62

“commit a sin” (cf. O’FLAHERTY, 1980, 7)

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falta voluntariamente cometida pelo homem, então também é verdade que o karma não

resolverá o problema do mal. O mal, a princípio não é o que fazemos; é o que nós não

gostaríamos que faça a nós, afirma O’Flaherty (O’FLAHERTY, 1980, 6-7).

No Livro III de Mahābhārata (3.182)63

Vaiśampāyana, discípulo de Vyāsa, explica

para Yudhiṣṭhira através do sábio Markandeya64

como surge o mal entre os homens:

O senhor dos seres nascidos, ele mesmo surgido antes de todos, criou, para todos

os seres incorporados, corpos que eram imaculados, puros, e obedientes a

impulsos virtuosos, ó mais sábio dos descendentes de Kuru! Os homens antigos

tinham todos os seus desejos realizados, eram dados a modos louváveis de vida,

falavam a verdade, eram religiosos e puros. Todos eram iguais aos deuses,

podiam ascender ao céu à sua vontade, e podiam voltar novamente; e todos

passavam de um lugar para outro à vontade. E eles tinham sua morte e sua vida

também sob seu próprio controle; e eles tinham poucos sofrimentos; não tinham

medo; e tinham seus desejos realizados; e eles estavam livres de incômodos;

podiam visitar os deuses e os santos magnânimos; sabiam de cor todas as regras

virtuosas; eram auto-controlados e livres de inveja. E eles viviam muitos milhares

anos; e tinham muitos milhares de filhos. Então no decorrer do tempo eles vieram

a ser restringidos a andar somente sobre a superfície da terra, dominados por

luxúria e cólera, dependentes para subsistência de mentiras e truques, subjugados

pela cobiça e insensatez. Então aqueles homens pecaminosos, quando

desencarnados, por causa de seus atos injustos e profanos, iam para o inferno de

uma maneira tortuosa. Repetidas vezes eles eram atormentados, e, repetidas

vezes eles começaram a arrastar sua existência miserável neste mundo

admirável. E seus desejos não eram realizados, os objetivos não cumpridos, e seu

conhecimento tornou-se inútil. E seus sentidos estavam paralisados e eles se

tornaram receosos de tudo e a causa dos sofrimentos de outras pessoas. E eles

eram geralmente marcados por atos maus, e nascidos em famílias inferiores; eles

se tornaram maus e afligidos por doenças, e o terror de outros. E eles se tornaram

de vida curta e pecaminosos e eles colhiam os frutos de seus feitos terríveis. E

cobiçando tudo, eles se tornaram ímpios e indiferentes em mente, ó filho de Kunti!

O destino de cada criatura depois da morte é determinado por suas ações neste

mundo. Tu me perguntaste onde este tesouro de ações dos sábios e dos

ignorantes permanece, e onde eles desfrutam dos resultados dos seus atos bons

e maus! Escute às regras sobre este assunto! O homem com seu corpo sutil

original criado por Deus armazena um grande estoque de virtude e vício. Depois

da morte ele abandona seu frágil corpo (exterior) e nasce imediatamente outra vez

em outra ordem de seres. Ele nunca permanece inexistente por um único

momento. Em sua nova vida suas ações o seguem invariavelmente como sombra

e, frutificando, fazem seu destino feliz ou miserável. O homem sábio, por seu

discernimento espiritual, sabe que todas as criaturas estão determinadas a um destino imutável pelo destruidor e que são incapazes de resistir à fruição de suas

ações em sorte boa ou má. Este, ó Yudhishthira, é o destino de todas as criaturas

mergulhadas em ignorância espiritual. Agora ouça sobre o caminho perfeito

alcançado por homens de percepção espiritual elevada! Tais homens são de

63

Cf. tradução de Eleonora Meier <http://www.shri-yoga-devi.org/textos.html> 64

Markandeya = sábio nascido na família de ṛṣi Bhrigu

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grande virtude ascética e são versados em todos os escritos profanos e sagrados,

diligentes em realizar suas obrigações religiosas e devotados à verdade. E eles

prestam homenagem devida aos seus preceptores e superiores e praticam Yoga,

são perdoadores, continentes e enérgicos e devotos e são geralmente dotados de

todas as virtudes. Pela conquista das paixões eles são quietos em mente; por

praticar Yoga eles ficam livres de doença, medo e tristeza; eles não são inquietos

(em mente). No decurso do nascimento, maduro ou imaturo, ou enquanto

abrigados no útero, em todas as condições, eles com olhos espirituais

reconhecem a relação da sua alma com o Espírito supremo. Aqueles Rishis de

grande mente de conhecimento positivo e intuitivo passando por esta arena de

ações voltam novamente para a residência dos celestiais. Os homens, ó rei,

alcançam o que eles tem por consequência da graça dos deuses, do Destino ou

das suas próprias ações. Não pense de outra maneira. Ó Yudhishthira, eu

considero como o maior bem aquele que é considerado assim neste mundo.

Alguns alcançam felicidade neste mundo, mas não no seguinte; outros alcançam

no seguinte, mas não neste. Alguns, além disso, alcançam felicidade neste assim

como no mundo seguinte; e outros nem aqui nem no mundo seguinte. Aqueles

que tem riqueza imensa brilham todos os dias com corpos bem enfeitados. Ó

matador de inimigos poderosos, sendo viciados em prazeres carnais, eles

desfrutam de felicidade somente neste mundo, mas não no próximo. Mas aqueles

que são dedicados a meditações espirituais e ao estudo dos Vedas, que são

diligentes em ascetismo, e que debilitam a energia de seus corpos por realizarem

seus deveres, que subjugam suas paixões, e que se abstém de matar qualquer

ser animado, aqueles homens, ó matador de teus inimigos, alcançam felicidade no

próximo mundo, mas não neste! Aquele que primeiro vive uma vida pia e adquire

riqueza virtuosamente no tempo devido e então casa e realiza sacrifícios, alcança

felicidade neste e no mundo seguinte. Aqueles homens tolos porém que não

adquirem conhecimento, nem são dedicados ao ascetismo ou caridade ou a

aumentar sua espécie; ou em realizar os prazeres e diversões deste mundo, não

alcançam felicidade nem neste nem no mundo seguinte. Mas todos vocês são

proficientes em conhecimento e possuidores de grande poder e força e energia

celeste. Para o extermínio (dos maus) e para servir aos propósitos dos deuses,

vocês vieram do outro mundo e tomaram seu nascimento neste! Vocês, que são

tão valentes, e dedicados ao ascetismo, exercícios de autodomínio, e ordenanças

religiosas, e que gostam do esforço, depois de terem realizado grandes feitos e

gratificado os deuses e Rishis e os Pitris, finalmente no devido tempo alcançarão

por suas próprias ações a região suprema, a residência de todos os homens

virtuosos! Ó ornamento da linhagem de Kuru, que dúvidas não cruzem tua mente

por causa destes teus sofrimentos, pois esta aflição é para o teu bem!’"

Quando o ṛṣi comenta sobre o “decorrer do tempo”, O’Flaherty abre a possibilidade de

que ele possa estar se referindo ao Kaliyuga ou talvez simplesmente descrevendo o mal que

surgiria posteriormente encarnado em desejo e raiva, e assim, subsequente perda da pureza e

da imortalidade dos homens (O’FLAHERTY, 1980, 23). Os corpos físicos se tornariam

corruptíveis quando se tornarem moralmente corrompidos.

O Kaliyuga termina a era dos homens com uma grande chama e inundação. O tema

sobre a inundação aparece na antiga mitologia indiana quando Viṣṇu surge como avatāra de

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106

um peixe (Matsya). Essa inundação não ocorre para punir os homens da sua fraqueza, mas é

simplesmente um evento natural inevitável que deve ocorrer para fazer dessa grande

inundação uma representação do fim de uma era, o yuga. Ela representa, na realidade, uma

grande “lavagem” ou “limpeza” que também é representado nos rituais de purificação. Mas a

inundação, assim como a chama que marca o fim do Kaliyuga, ocorre quando a fraqueza entre

os homens começa a prevalecer. Além disso, o Kaliyuga está quase sempre marcado por uma

superpopulação, o que denota também a necessidade de aliviar o peso através do extermínio

dos homens, seja por uma inundação, seja por uma batalha de grandes proporções.

Viṣṇu destrói o mal aflorado em Kaliyuga para prevenir uma ruptura iminente, uma

descontinuidade entre mal existente nos homens de Kaliyuga e o bem que virá a existir nos

homens de Satyayuga, a Era de Ouro. Kalkin, o último avātara de Viṣṇu, atua para antecipar

o inevitável retorno de Satyayuga, fazendo com que ocorra a natural passagem do mal para o

bem, que acontece no fim de Kaliyuga, assim como ocorre a natural passagem do bem para o

mal no final de Satyayuga. É necessário, portanto, que haja uma fase de transição entre eles.

Por isso, é nomeado ciclo de yuga. Não existe um hiato entre as eras. Quando Viṣṇu assume o

avātara de Kṛṣṇa, aponta essa mesma questão sobre o ciclo da era para Arjuna, no capítulo 11

de Bhagavadgītā, mostrando que Kṛṣṇa, e somente ele, é o senhor do tempo:

O Venerável disse:

Sou o Tempo, que, avançando, faz a destruição do mundo.

Minha função aqui é a supressão das gentes.

Um dia, não importa o que façam, todos

enfileirados como soldados em batalhas. (11.32)

Por isso, ergue-te, conquista a glória!

Vencendo os inimigos, delicia-te com um reino próprio.

É por mim que, antes de tudo, eles são mortos.

Sê, hábil arqueiro, apenas meu instrumento. (11.33)

A mitologia hindu sobre o mal e sobre a morte relaciona estreitamente essas duas

dimensões. Embora os deuses hindus ocasionalmente provem que são relutantes em

compartilhar a boa vida, parece que os hindus sempre consideraram a morte como uma

representação do mal, afirma O’FLAHERTY (O’FLAHERTY, 1980, 212). O tempo que

determina a morte é o fator que em muito dos mitos sobre a origem do mal representa uma

imagem destrutiva. Em Mahābhārata, morte é tempo destrutivo. Na ausência da morte, a terra

torna-se sobrecarregado e, devido a esse fato, os homens devem ser mortos. Da mesma forma

que Brahmā ensina a Mṛtyu que não se deve temer a morte dos homens, Kṛṣṇa ensina a

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Arjuna na passagem abaixo que ele também justifica a morte desde que não mate sob

influência do desejo e da raiva.

Ou morto conseguirás o Svarga ou vencendo desfrutarás a terra.

Por isso, levanta-te, Kaunteya, decide-te pela luta. (2.37)

Considera iguais alegria e tristeza, ganho e perda, vitória ou derrota

- participa da guerra e não te tornarás um erro. (2.38)

Kṛṣṇa ao argumentar a importância que Arjuna tem em mãos para seguir o curso do

universo, convence-o a não temer o que não é real (a morte, a dor, o mal). Podemos dizer, por

fim, que Bhagavadgītā é a coluna vertebral de Mahābhārata e como tal explora, anuncia,

estuda e expõe principalmente o peso e a relevância que o homem hindu deve considerar

sobre dharma, karma, saṃsāra e yoga. O corpo é perecível, portanto não se deve lamentar

pela sua deterioração. O medo é tão necessário quando a dor o é, pois sem eles não se pode

existir a coragem (representada também por Arjuna). Deve se cumprir o dharma individual e

o coletivo universal, para não desencadear o caos. Aqueles que se esquecem de qualquer um

dos itens acima, estes sim, são os causadores do mal universal. O homem ético hindu precisa

sempre lembrar e ser lembrado disso. Mas a deterioração da memória do homem parece ser

inevitável, pois o ciclo de yuga sempre estará rodando e assim fazendo com que Mṛtyu

cumpra seu dharma: talvez a única divindade que nenhum homem jamais deixará de conhecer.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se faz uma tradução de termos estrangeiros deparamos com alguns problemas

que já explicitamos na introdução desta dissertação: o de cometermos impropriedades na

tentativa de fazer o leitor compreender um universo explorado por olhos estrangeiros.

Tradução ou retradução, leitura ou releitura, a tarefa não é fácil ainda mais quando se trata de

fazer uma análise comparativa entre dois mundos em duas épocas bastante distintas: a Índia

do séc. X a.C. e o “mundo ocidental” da nossa era. Ao analisarmos o termo dharma e a ética

hindu, o risco de expor contradições é grande, mas, ao mesmo tempo, talvez seja esse risco

que nos levará a querer conhecer e obter mais informações a respeito daquele universo tão

distante.

Quando os sanscritistas e hinduístas afirmam que a datação precisa dos fatos históricos

não é muito relevante, é provável que isso signifique que o contexto dos acontecimentos seja

sempre mais relevante do que na cronologia exata e o acúmulo de fatos. Tanto o

Mahābhārata quanto o Bhagavadgītā são documentos arqueológicos que, de forma poética,

expõem de forma bastante original um “era uma vez...” que perdura até os dias de hoje.

O que essa pesquisa propôs foi fazer uma exposição preliminar da história da Índia

antiga. Para tanto, fez uma breve apresentação da formação do país, seguida dos principais

itens que representam o Hinduísmo e a presença da literatura, que é a experiência que mais

representa a religião, a filosofia e o pensamento hindu: o Bhagavadgītā. Ao final, dentre

vários pontos elucidados pelos personagens Kṛṣṇa e Arjuna, surge uma ideia sobre dharma e

como este está envolvido no contexto das ações do bem e do mal como parte da condição

humana.

A partir da hipótese, a pesquisa levou à conclusão de que o conceito sobre o bem e o

mal no Hinduismo, mais especificamente, a passagem do Bhagavadgītā, possui uma

complexidade e uma gama de significados que não pode ser reduzido a um juízo de valor. O

bem e o mal, dharma e adharma, Pāṇḍava e Kaurava são partes inerentes e integrantes do

equilíbrio interno e externo do universo hindu. Para isso, a ideia sobre māyā tem também um

importante papel no diálogo, pois é o principal “vilão” do temor de Arjuna. A morte, o

inimigo, a batalha são sempre ilusórios, fruto da nossa ignorância. Portanto, não levemos o

termo “ignorância” de forma pejorativa. Como Kṛṣṇa ensina a Arjuna, ela também é parte da

condição humana, cuja finalidade não é nada além do que tornar o homem apto a buscar

conhecimento, sem se render a estagnação e desistência.

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109

Este tipo de pesquisa acadêmica que lida com a construção do conhecimento através

da percepção (a percepção do desconhecido) acaba sendo inevitavelmente inconclusiva. Mas

pode apontar algumas questões que levam a refletir sobre grandes temas, como o tempo da

vida, o tempo da morte, a ética, a condição precária do ser humano e, talvez, aquilo que nos

faz sentir mais vulneráveis: os limites entre o bem e o mal. Nesse sentido, tanto Mahābhārata

quanto Bhagavadgītā são documentos arqueológicos que não lidam apenas com o passado,

mas com uma potência inesperada para alimentar a vida.

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110

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116

GLOSSÁRIO

Acyuta: epíteto de Kṛṣṇa

ādhi: “primeiro”; “começo”

adhyātman: “próprio”; “concernente ao próprio indivíduo, à personalidade individual”

āgamas: manuais de culto e adoração

ahaṃkāra: “o fabricador do eu”; “a ideia da individualidade de alguém”; “autoconsciência”

āhiṃsā: “não-violência”

amṛta: néctar que mantém a juventude dos deuses

anagha: “sem erro”; “não merecedor de críticas”

anārya: “não-ária”

anuśāsana: “instrução”

Araṇyakas: Livros das Florestas

Arisūdana: epíteto de Kṛṣṇa

artha: “posses materiais”; “riquezas”

ārya: povo nômade que passou a habitar a Índia

āśramas: “etapas da vida”

āśramavāsika: “vida eremita”

āsura: “entidades malignas”; geralmente traduzidas como demônios, espíritos maus

Āśvamedhika: Sacrifício do Cavalo

Atharvaveda: Veda de preces e encantamentos

ātman: “eu”; “alma humana”; “si-mesmo”

bāla: “criança”; “menino”; “infantil

Balarāma: irmão de Kṛṣṇa

Bhāva: pronome de tratamento; “mestre”

bhūta: “os que são de determinado modo porque passaram a ser assim”

Brahmā: deus da criação; força criadora do Universo; um dos Trimūrti

Brahman: “Espírito Absoluto” ou “o Supremo”

brāhmaṇ: brâmane, sacerdote

Brāhmaṇa: texto védico; exposição dos rituais compostos pelos sacerdotes védicos de 1000 a

800 a.C.; são instruções para os procedimentos litúrgicos

Buddha: 9º avatāra de Viṣṇu; teria surgido na quarta e última era, a Kaliyuga

buddhi: “iluminar, despertar”; “mente”; para alguns, “espírito”

daiva: “divina”

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darśana: “ponto de vista”, “visão”, “compreensão”, “doutrina”, “maneira de ver as coisas”

deva: “deus”

Dharma: divindade que representa a Lei

Dharmaśāstras: código de leis; inclui-se aqui o código de Manu

Dharmasūtra: textos sobre moral, ética, lei e política

dhārtarāṣṭra: “filhos de Dhṛtarāṣṭra”

Divya: “divino”

duḥkha: “dor”

Dvāparayuga: Era de Bronze

dvijas: “nascidos duas vezes”

Gāṇḍīva: nome do arco usado por Arjuna

gotra: família bramânica

Gṛhyasūtra: ritual doméstico e ritos de passagem

Guḍākeśa: epíteto de Arjuna

guṇa: “qualidade” - “bondade” [sattva], “paixão” [rajas] e “trevas” [tamas].

hotṛ: sacerdote que conduz o ritual do Rig Veda

Hṛṣīkeśa: epíteto de Kṛṣṇa

Ikṣvāku: nome do primeiro rajá da dinastia da genealogia dos personagens do Mahābhārata

Itihāsas: épicos Mahābhārata (Bhagavadgītā) e Rāmāyāna

Janārdana: epíteto de Kṛṣṇa

jāti: “grupo de nascimento”

jīva: “espírito individual”

jñāna: “conhecimento”

Kaliyuga: Era de Ferro

Kalki: 10º avatāra de Viṣṇu

Kalpasūtra: breves textos sobre ritual, ética e leis

kāma: “desejo”; “prazer”

kāmya: “desejo”

Kapidhvaja: epíteto de Arjuna

Karmayoga: Yoga da ação desinteressada

Kaunteya: “filho de Kuntī”; Arjuna

kha: caos

krodha: “ira, cólera, raiva”

Kṛṣṇa: 8º avatāra de Viṣṇu, teria surgido na era de Dvāparayuga

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kṣatriya: guerreiro

kṣetra: “campo, terreno”

kṣetrajña: “conhecedor do campo/terreno”

Kūrma: 2º avatāra de Viṣṇu

lakṣaṇa: “atributos”

Madhusūdana: epíteto de Kṛṣṇa

Mahāprasthana: a Grande Jornada

Mahātman: “grande alma”

Manas: “pensar”; “mente”; “órgão central, sentido interno de percepção que se sobrepões aos

cinco sentidos”

Manu: lendário legislador, compilador do “Código de Manu” sobre o dharma

Matsya: 1º avatāra de Viṣṇu

mausala: bastão

māyā: “mudança”; “ilusão”

mokṣa: “libertação”

mṛtyu: “morte”

naiṣkarmya: “estado ou condição resultante do fato de não se praticar uma ação”

naiṣkarmyasiddhi: “perfeição da supressão do ato”; “perfeição da ação transcendente”

Narasiṁha: 4º avatāra de Viṣṇu

padma: “flor de lótus”; simboliza a pureza e a verdade que está por trás de māyā

pantchdjanya: concha de Viṣṇu; possui os cinco elementos da criação (ar, fogo, água, terra e

éter)

pāpa: “culpa”; “mal”; “erro”

Paraṃtapa: epíteto de Arjuna

Paraśurāma: 6º avatār de Viṣṇu

Pārtha: filhos de Kuntī com Pāṇḍu (Yudhiṣṭhira, Bhīma e Arjuna)

parva: livro

phala: “fruto da ação”

prājña: sábios

prakṛti: “matéria”; “o que existe antes”; “forma ou condição original ou natural de alguma

coisa”; “natureza, matéria original”;“forma natural, forma primitiva; “matéria original, oposta

ao espírito”

pralaya: “fim do mundo”

Purāṇas: coletâneas de mitos, lendas, instruções de adoração às divindades

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puruṣa: “natureza espiritual”; “eu”; “homem”; nome do espírito como passivo e espectador

da prakṛti

puruṣottama: “Personalidade Suprema”

rajas: “brilho, pulsação”

Rāma: 7º avatāra de Viṣṇu

Ṛgveda: Veda dos hinos em forma de poema

ṛṣi: sábios-videntes

ṛta: “próprio, adequado”; “honesto, verdadeiro”; “lei, regra”; “adaptar-se”

sabhā: “corte”

Sāmaveda: Veda dos cantos e melodias

saṃhitā: coletâneas de hinos, organizados em dez maṃḍalas, recitados por sacerdotes

saṃkara: “caos”; “confusão universal”

saṃsāra: encarnação de uma alma preexistente em novos corpos

saṃsiddhi: “perfeição”; “êxito”

saṃskāra: disposição de repetir ações

sannyāsa: “aquele que abandonou os negócios mundanos”; o asceta que se dedica à

meditação e ao estudo dos textos filo-religioso, um religioso mendicante

śānti: “apaziguamento, estado e felicidade espiritual”; “paz”

śarīrin: “corpo”; “matéria que pode ser destruída/dissolvida”; “cadáver”

sattva: “pureza”; “ bondade”; “altruísmo”

Satyayuga: Era do Ouro

sauptika: “guerreiros adormecidos”

siddhi: “cumprir”; “chegar ao objetivo”; “obter sucesso num empreendimento”.

Śiva: deus da transformação e da destruição

śloka: estrofes de dois ou quatro versos

smṛti: o que foi “memorizado”

śraddhā: “crença”; “fé”; “confiança”

Śrautasūtra: ritual de sacrifício

śruti: o que foi “revelado”; “ouvido”

strī: “mulher”

sudarshana: roda de energia de Vishnu que representa o controle dos seis sentimentos

sura: “brilhar”; “governar”; “possuir qualidade, poder sobrenatural”

sūtra: “fio; tecido”; “frase; texto”; fórmula verbal de reverência e saudação a pessoas

insignes e aos deva”; “prece”

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svadharma: conjunto de normas para o comportamento de cada sujeito

svarga: “lugar de muito brilho”; lugar mítico habitado pelos deva, cuja tradução aproxima-se

à palavra “céu” ou “paraíso”

svargārohana: ascenção para o svarga

Tetrāyuga: Era de Prata

triṣṇā: “sede”

tyāga: “abandono"; “auto-entrega”

udyoga: “esforço”

Upaniṣad: ensinamento do mestre para seu discípulo sobre a revelação de Brahman / Ātman

vaiśya: agricultores

Vāmana: 5º avatāra de Viṣṇu

Varāha: 3º avatāra de Viṣṇu

varna: “cor”; “categoria”

Vārṣṇeya: epíteto de Kṛṣṇa

Veda: “saber”, no duplo sentido de conhecimento e revelação

Vedāṅga: disciplinas auxiliares dos Vedas

Vedānta: “fim do Veda”

viguṇa: sem qualidade, imperfeito, deficiente, corrompido

Viṣṇu: deus da preservação

Yajurveda: Veda das prescrições ritualísticas

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Fig. 3

http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:Yugas-

Ages-based-on-Sri-Yukteswar.png

Acesso: 06.abr.2013

Fig. 4

http://sanathanadharmahinduismo.blogspot.com.br/2010/07/indra.html

Acesso: 06.abril.2013

Fig. 5

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Vayu_Deva.jpg

Acesso: 06.abril.2013

Fig. 6

http://www.gregorius.jp/presentation/page_57.html

Acesso: 10.mar.2013

Fig. 7

http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:Matsya

_painting.jpg

Acesso: 10.mar.2013

Fig. 8

http://krishna.by/pic/photos/krishna/avatar/

Acesso: 13.mar.2013

Fig. 9

http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:Varaha

_avtar,_killing_a_demon_to_protect_Bhu,_c1740.jpg

Acesso: 10.mar.2013

Fig. 10

http://www.dollsofindia.com/product/folk-art-paintings/vishnu-as-narasimha-avatar-killing-

demon-hiranyakashipu-orissa-paata-painting-on-canvas-BZ34.html

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Fig. 11

http://livehappyenjoylife.blogspot.com.br/2013/01/ten-famous-vishnu-incarnations-in.html

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Fig. 12

http://trustearthpulse.com/blog/the-hindu-deities-parāma/

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Fig. 13

http://www.payer.de/somadeva/soma024.htm

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Fig. 14

http://www.divinebrahmanda.com/2010/05/lord-krishna-eighth-avatar-of-lord.html

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Fig. 15a

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Fig.15b

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Fig. 16

http://swamivishwananda-cz.blogspot.com.br/2011/01/o-kalki-avatarovi.html

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Fig. 17

http://www.spanda-yoga.com/blog/index.html?gubun=2&PHPSESSID=

fd1ab02235368a33dc1262f451fcb7ec

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Fig. 18

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Fig. 19

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Fig. 20

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Ravi_Varma-Shantanu_and_Satyavati.jpg

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Fig. 21

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Fig. 22a

http://sandeepyc.blogspot.com.br/2013/01/hoysaleshwara-temple-halebid.html

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Fig. 22b

http://www.flickr.com/photos/13289475@N05/4956997573/

Acesso: 25.maio.2013

Fig. 23

http://www.topnews.in/regions/Kurukṣetra

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Fig. 24

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Pandu_and_Kunti.jpg

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Fig. 25a

http://www.harekrsna.com/sun/features/12-12/features2659.htm

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Fig. 25b

http://vedang.me/weblog/Mahabharata/2012/09/21/draupadi-and-the-pandavas/

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Fig. 26

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Fig. 27

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Fig. 28

http://krishnastore.com/bishmas-final-teachings-on-bed-of-arrows-h-krishna-1450.html

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Fig. 29

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Krishna_Advising_on_the_Horse_Sacrifice.jpg

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Fig. 30

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Kunti_Gandhari_Dhrtarashtra.jpg

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Fig. 31

http://readtiger.com/wkp/en/Yudhisthira

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Fig. 32

http://en.wikipedia.org/wiki/File:The_sage_Vyasa_and_the_king_Janamejaya..jpg

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Fig. 33

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Bhagavad_Gita,_a_19th_century_manuscript.jpg

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Fig. 34

http://bbtcomunica.com/galeria/ventanas/olympus-digital-camera-61/#main

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Fig. 35

http://back2godhead.com/the-basic-scientific-guidebook-of-spiritual-realization-bhagavad-

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Fig. 36

http://www.actualitte.com/justice/russie-le-livre-sacre-hindou-bhagavad-gita-sauve-

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Fig. 37

http://indianjourneys.wordpress.com/2009/12/06/deogarh/

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Fig. 38

http://www.hoparoundindia.com/haryana/city-guides/Kurukṣetra.aspx

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Fig. 39

http://indianjourneys.wordpress.com/2009/12/06/deogarh/

Acesso: 13.mar.2013