Upload
aline-santos-soares
View
260
Download
38
Embed Size (px)
DESCRIPTION
organizacional
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL
VANISE GRASSI
A CONSTRUO DAS PRTICAS DE CONSULTORIA EM PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL E DO TRABALHO
PORTO ALEGRE 2006
2
VANISE GRASSI
A CONSTRUO DAS PRTICAS DE CONSULTORIA EM PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL E DO TRABALHO
Dissertao apresentada como requisito
parcial para a obteno do grau de Mestre
em Psicologia Social e Institucional.
Programa de Ps Graduao em
Psicologia Social e Institucional. Instituto
de Psicologia. Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
Orientadora: Prof Dr Maria da Graa Corra Jacques
PORTO ALEGRE
2006
3
TERMO DE APROVAO
VANISE GRASSI A Comisso Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertao A CONSTRUO DAS PRTICAS DE CONSULTORIA EM PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL E DO TRABALHO, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dissertao defendida e aprovada em: 07/04/2006 Comisso Examinadora:
_________________________________________________________________
ANA MARIA JAC-VILELA Doutora em Psicologia - UERJ
_________________________________________________________________
JAQUELINE TITTONI Doutora em Sociologia UFRGS
_________________________________________________________________
VERA SUZANA LASSANCE MOREIRA Doutora em Administrao - UFRGS
4
AGRADECIMENTOS
Agradeo aos meus pais, Valmor (in memorian) e Marlise, pela ddiva da vida.
Em especial minha me pelo apoio incondicional e exemplo de integridade,
coragem e competncia.
Aos meus irmos, Marcos e Giovani, que colaboraram das mais diversas
maneiras para que eu conclusse mais essa etapa da minha formao.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela oportunidade de estudo e
aperfeioamento.
professora Dr Maria da Graa Corra Jacques, que acreditou nas minhas
possibilidades e foi grande incentivadora durante toda a minha trajetria no
Mestrado em Psicologia Social e Institucional.
A todos os professores do curso de Mestrado em Psicologia Social e Institucional
da UFRGS, em especial professora Jaqueline Tittoni, que impulsionou a
realizao desse estudo.
professora Cleonice Bosa, por despertar o interesse pelos desafios da
pesquisa.
A todos os funcionrios do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do
Sul, pela disponibilidade em auxiliar na construo desse estudo.
Aos meus colegas de curso, em especial Ticiana Schossler, pela solidariedade
e incentivo.
Priscilla e Aline, pelo apoio precioso na transcrio das entrevistas.
5
A todos os participantes do estudo, que pela sua receptividade e colaborao,
possibilitaram a concretizao dessa pesquisa.
6
No creio que seja necessrio saber exatamente
quem sou. O principal interesse na vida e no trabalho
consiste em chegar a ser algum diferente do inicial.
Se, ao comear um livro, voc souber o que vai dizer no
final, acredita que teria valor escrev-lo?
(Foucault, 1990, p. 45)
7
RESUMO
Este estudo teve como objetivo descrever a trajetria de empresas
pioneiras na prestao de servios em psicologia organizacional e do trabalho no
Rio Grande do Sul, investigando as relaes entre as prticas de consultoria e as
configuraes polticas, histricas e socioeconmicas do contexto de trabalho das
ltimas dcadas. A pesquisa foi desenvolvida dentro da abordagem qualitativa,
fundamentada pelas orientaes do estudo de caso. A primeira etapa da pesquisa
consistiu na realizao de um levantamento sobre os registros de pessoa jurdica
do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS), investigando
dados referentes s atividades desenvolvidas pelas empresas e ao tempo de
atuao no mercado. Foram escolhidas para estudo de caso duas empresas,
pioneiras na prestao de servios em psicologia organizacional e do trabalho,
criadas na dcada de 1970 e que ainda se dedicam ao mesmo campo de
atividades. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os proprietrios
das duas empresas e com os demais funcionrios que trabalham com atividades
vinculadas psicologia. Procedeu-se ainda o exame de documentos das
empresas, como material publicitrio impresso, manuais de treinamento e sites na
internet. Constatou-se que a prestao de servios em psicologia clnica o ramo
de atividades escolhido pela maioria dos proprietrios das empresas em psicologia
com registro no CRPRS. Entre as empresas pioneiras, registradas na dcada de
1970, apenas duas se dedicam prestao de servios em psicologia
8
organizacional e do trabalho e continuam atualmente em atividade na mesma
rea. As empresas estudadas surgem no mesmo perodo, na mesma cidade, com
proprietrios com a mesma formao acadmica e assumem trajetrias distintas.
No existe um processo linear de construo das prticas dos profissionais
dessas empresas, embora possam ser identificadas algumas regularidades nas
suas trajetrias. As prticas de recrutamento e seleo predominavam entre os
servios disponibilizados na dcada de 1970, amplamente favorecidas pelo
contexto poltico e socioeconmico do perodo do milagre brasileiro. Nos ltimos
anos, as transformaes no contexto produtivo promoveram o fortalecimento das
prticas de consultoria, que assumem, para os participantes do estudo,
concepes bastante diversificadas. Ambas as empresas apresentam
funcionamento familiar, mas permanecem profundamente vinculadas imagem e
ao trabalho dos fundadores, psiclogos do sexo masculino. A questo de gnero
aparece como um fator importante para a longevidade das empresas no mercado.
A adaptao ao mercado, atravs da diversificao de atividades e da reproduo
dos processos de enxugamento e terceirizao de servios tambm figuram como
estratgias importantes para a sobrevivncia das organizaes.
Palavras-chave: consultoria; psicologia organizacional e do trabalho; estudo de
caso.
9
ABSTRACT
This study aimed at describing the path of pioneering enterprises in the
offering of organizational and work psychology services in Rio Grande do Sul,
investigating the relationship between the consulting practices and the political,
historical and social-economical configurations of the working environment in the
last decades. The research was developed in the qualitative approach based on a
case study. The first stage of the research consisted of the gathering of the
registrations of juridical person in the Regional Council of Psychology of Rio
Grande do Sul (CRPRS), investigating data related to the activities developed by
the enterprises and the time they are in the market. Two pioneering companies in
organizational and work psychology were chosen for the case study. Both
established themselves in the decade of 1970, and still are devoted to the same
field of activities. Semi-structured interviews were done with the owners of the two
companies, as well as with the employees that work with activities linked to
psychology. Documents of the enterprises as advertising material, training
manuals, web sites were examined. It was verified that services in clinical
psychology were chosen by most of the enterprises in psychology with registration
in CRPRS. Among the pioneering enterprises, registered in the decade of 1970,
only two are devoted to the services in organizational and work psychology and still
continue their activity in this area. The studied companies appeared in the same
period, in the same city, the owners with the same academic formation and
assume different paths. There is not a linear construction process of the
10
professionals practices in these companies, although may be identified some
regularities in their paths. The recruitment and selection practices prevailed among
the services available in the decade of 1970, thoroughly favored by the political
and social economical context of the Brazilian miracle period. Lately, the last
transformations in the productive context promoted the development of the
consulting practices, that assume, for the participants of the study, quite diversified
conceptions. Both enterprises present family operation, but they stay deeply linked
to the image and to the work of the founders, male psychologists. The gender
appears as an important factor for the longevity of the companies in the market.
The adaptation to the market, through the diversification of activities and the
reproduction of the compressing processes and out source services are also
important strategies for the survival of the organizations.
Key words: consultancy; organizational and work psychology; case study.
11
SUMRIO
CONTEXTUALIZAO DA TEMTICA............................................................. 12
OBJETIVOS DO ESTUDO................................................................................. 19
PERCURSO METODOLGICO........................................................................ 21
DESCRIO DAS EMPRESAS......................................................................... 33
A CONSTITUIO DO CAMPO DE SABER PSICOLGICO........................... 43
AS CONFIGURAES DO TRABALHO CONTEMPORNEO......................... 58
CONSIDERAES FINAIS............................................................................... 102
REFERNCIAS.................................................................................................. 108
APNDICES....................................................................................................... 114
ANEXOS............................................................................................................. 117
12
CONTEXTUALIZAO DA TEMTICA
A ltima coisa que se encontra ao fazer uma obra o que se deve colocar em primeiro lugar (Pascal, Pense, frase n 73).
As tentativas de problematizar a prtica em psicologia no so uma
novidade no espao acadmico (COSTA, 2000; SALDANHA, 2004, por exemplo)
e, certamente, no se esgotam com o conhecimento produzido at hoje. Persistem
dvidas inquietantes sobre que propostas de trabalho oferecer em diferentes
contextos e sobre como as integrar ao campo de conhecimento da psicologia.
O surgimento da psicologia como rea de conhecimento vem sendo tema
de estudo de diversos autores (PATTO, 1984; FIGUEIREDO, 1996a, 1996b, 1997;
JAC-VILELA, 2001; CANGUILHEM, 1968; FARR, 1998; FOUCAULT, 2002, entre
outros). Um dos focos de preocupao desses estudiosos delinear com
profundidade o contexto filosfico e cultural no qual a psicologia surge como
conjunto de saberes passveis de profissionalizao. Este estudo empreender a
tarefa de revisar de forma sucinta as razes da psicologia contempornea em
busca da filiao histrica e socioeconmica de um campo especfico de
conhecimento: a psicologia organizacional e do trabalho1.
Os sculos XVII e XVIII, marcados pelo impacto do Iluminismo e pela
consolidao do sistema mercantil-capitalista de produo, abrem as portas para a
1 A terminologia psicologia organizacional e do trabalho foi escolhida nesse estudo por representar a tendncia atual de denominao da especialidade, anteriormente referida como psicologia industrial e/ou psicologia organizacional.
13
emergncia de uma psicologicidade (DUARTE, 2001, p. 35), termo utilizado para
caracterizar a busca por um saber sistemtico sobre a interioridade. A cultura
ocidental moderna buscava a substituio das tradies histricas por um saber
coeso, que produzisse sistemas representacionais aptos ao exerccio da previso,
manipulao e controle do comportamento humano (FIGUEIREDO, 1996b).
Segundo Patto (1984), a perspectiva adaptacionista atravessa a consolidao da
psicologia como cincia autnoma, na Europa do sculo XIX. Pontua a autora:
(...) ideologia adaptacionista como concepo que norteia a ao do psiclogo,
colocando-o pari passu com a ideologia poltica dominante num mundo industrial
oligrquico2 (p. 92).
Tambm no Brasil, a preocupao com o controle do comportamento
humano est presente em todas as etapas iniciais de desenvolvimento da
psicologia, mas foi, sobretudo, a preocupao com o controle do fator humano no
trabalho que impulsionou a profissionalizao da cincia psicolgica. Carvalho e
Santos (2003) retomam o ponto de vista de Bergamini3 para ilustrar essa
tendncia:
notvel o crescente interesse das empresas brasileiras na procura de novas tcnicas especializadas em avaliao, desenvolvimento, adaptao e compensao de seus recursos humanos. (...) Essas aspiraes dos homens de empresas esto vitalizando o desenvolvimento da rea mais nova de especializao em Psicologia, aquela que diz respeito aos aspectos psicolgicos da organizao empresarial (p. 383).
2 Grifos da autora. 3 BERGAMINI, C. W. Funes do psiclogo na empresa moderna. Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada, v. 24. n. 3, 1972. p.17.
14
curioso que a mesma rea que teve papel importante na legitimao da
psicologia como profisso h algumas dcadas seja atualmente considerada uma
das reas menos legtimas de interveno do psiclogo. A questo da
desvalorizao da atuao do psiclogo organizacional e do trabalho tema da
anlise de Codo (2001). Caracterizado como um executor de atividades
intrinsecamente reacionrias, o anteriormente denominado psiclogo industrial
colocar-se-ia a servio da indstria como instrumento adicional de explorao e
alienao do trabalhador, ao invs de transformar a estrutura produtiva para que
esta venha a satisfazer as necessidades do ser humano.
Um argumento freqentemente utilizado para explicar a classificao
depreciativa das prticas desenvolvidas pela psicologia nas empresas a idia da
aplicao indevida das teorias psicolgicas. De acordo com essa argumentao, o
corpo terico da psicologia, supostamente descomprometido e de carter
essencialmente humanitrio, sofreria uma distoro na sua aplicao em
organizaes privadas. Uma anlise um pouco mais aprofundada denuncia a
fragilidade dessa argumentao. A nfase na classificao depreciativa da
psicologia organizacional e do trabalho ignora que o conhecimento produzido pela
cincia psicolgica como um todo sempre esteve profundamente comprometido
com interesses socieconmicos e polticos especficos de seu tempo. Como Codo
(2001) refere, comum que tal desvalorizao produza apenas a no interveno
no contexto da organizao privada. So crticas que no transformam esse
mesmo contexto, apenas desestimulam a produo intelectual na rea, abrindo
caminho para prticas no reflexivas.
15
Essa proposta de pesquisa comeou a ser construda ainda durante minha
formao acadmica no curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. A experincia de estgio em uma consultoria em psicologia
organizacional e do trabalho confrontou-me com a desvalorizao do psiclogo
que atua em organizaes privadas e, principalmente, com as intensas
contradies entre minha formao acadmica e as demandas de uma empresa
privada. Embora outras experincias de estgio j indicassem que o exerccio da
profisso exigiria a construo de novos conhecimentos e estratgias alm
daqueles consolidados na formao acadmica, a prtica em psicologia
organizacional e do trabalho evidenciou de forma incontestvel o tensionamento
entre as concepes construdas em minha formao universitria e a
possibilidade de transform-las em intervenes coerentes no cotidiano de uma
empresa de capital privado.
Esse tensionamento foi amplamente discutido durante o estgio curricular,
tanto no contexto acadmico quanto na prpria consultoria onde a prtica
supervisionada de psicologia organizacional e do trabalho era desenvolvida,
despertando meu interesse pelo estudo da prtica do psiclogo nas organizaes.
Consultando bases de dados em psicologia (PsycINFO4; IndexPsi5) e o acervo das
bibliotecas de diversas instituies de ensino superior do Rio Grande do Sul
(UFRGS, PUCRS e UNISINOS), percebi que existe uma vasta bibliografia
nacional (JACQUES, 1989, 1999; SPINK, 1996; CODO, 2001, entre outros)
4 Base de dados que contm referncias e resumos de artigos de peridicos, captulos de livros, livros e relatrios tcnicos, bem como referncias de dissertaes e teses, todos na rea de psicologia. Disponvel em http://www.psicologia.ufrgs.br/biblioteca/base. Acesso em 05 out. 2004. 5 Base de dados que contm referncias e resumos de artigos de peridicos nacionais da rea de psicologia. Disponvel em http://www.psicologia.ufrgs.br/biblioteca/base. Acesso em 10 out. 2004.
16
resgatando a trajetria histrica da psicologia organizacional e do trabalho atravs
de reflexes tericas e conceituais. Entretanto, os estudos empricos que
investigam o contexto de ao de consultorias em psicologia organizacional e do
trabalho, particularmente no Rio Grande do Sul, so escassos (MANCIA, 1997;
MARTINS, 2002), sendo que uma das pesquisas que faz referncia ao tema
(MARTINS, 2002) ainda no teve seus resultados publicados na ntegra.
Contrastando com a escassez de estudos na rea e com sua classificao
depreciativa, as atividades de consultoria em psicologia organizacional e do
trabalho se constituem como um dos campos de atuao mais promissores em
termos de mercado de trabalho. A demanda pelas denominadas consultorias de
recursos humanos vem aumentando consideravelmente (OLIVEIRA, 1999) em um
contexto caracterizado pela crescente terceirizao de servios, uma das
tendncias resultantes das recentes transformaes no mundo do trabalho.
As relaes de trabalho contemporneas esto inseridas em um intenso
processo de transformao dos modelos de gesto e organizao da dinmica
produtiva. A globalizao - termo utilizado para aludir a uma multiplicidade de
fenmenos sociais, culturais, econmicos, tecnolgicos e financeiros que ocorrem
desde a dcada de 1970 vem redefinindo as configuraes das relaes
internacionais (SCHERER, 1997). Com ampla influncia nos padres de consumo,
o fenmeno da globalizao fortemente evidenciado nas relaes de trabalho. O
foco no mercado internacional, a descentralizao do processo produtivo e a
implementao de tecnologia de ponta tornaram-se estratgias comumente
associadas sobrevivncia das empresas em um cenrio de competitividade
crescente.
17
Tais estratgias, que permitem um fluxo gil de materiais e informaes,
tambm transformam em uma velocidade surpreendente as relaes e vnculos de
trabalho. Um estilo de gesto de resposta imediata ao mercado somente pode ser
implementado com alteraes profundas no processo de trabalho. Atualmente, tais
alteraes costumam se dar, principalmente, atravs da busca pela flexibilidade
interna ou externa (CASTEL, 1998). Na primeira situao, as empresas recorrem
ao treinamento de funcionrios para que estes se tornem mais flexveis e
polivalentes. O trabalhador das organizaes just in time precisa estar
imediatamente disponvel para se adaptar s flutuaes de demanda, pois a no-
adaptao freqentemente torna-se sinnimo de desemprego. No segundo caso,
as empresas descentralizam as atividades, atribuindo s empresas-satlites as
etapas acessrias do processo de produo. nesse contexto de flexibilidade
externa que as consultorias em diversos campos de conhecimento, incluindo a
psicologia, vm se tornando uma opo de trabalho cada vez mais freqente.
A escassez de estudos e reflexes sobre o tema frente crescente
demanda por atividades de consultoria a principal justificativa para esta proposta
de pesquisa. Esse estudo busca a articulao entre elementos empricos e
pressupostos tericos, de modo a problematizar as prticas de consultoria em
psicologia organizacional e do trabalho como um fenmeno atravessado por
determinaes histricas, polticas e socieconmicas. Parte da questo: como os
profissionais que atuam em consultoria em psicologia organizacional e do trabalho
constroem suas prticas frente s modificaes nos processos e relaes
laborais? Conhecer a trajetria de consultorias gachas e compreender suas
prticas inseridas nas complexas configuraes do cenrio de trabalho
18
contemporneo so os principais objetivos do estudo, que sero detalhados no
captulo seguinte.
Os procedimentos e recursos metodolgicos tambm sero apresentados
em sees subseqentes. As opes metodolgicas sero descritas e discutidas,
tendo em vista sua adequao a uma pesquisa com abordagem qualitativa.
A apresentao dos dados empricos ser articulada junto aos fundamentos
tericos da pesquisa, que esto organizados em dois grandes eixos. O primeiro
eixo contempla a reviso bibliogrfica de estudos referentes histria da
constituio da psicologia como campo de saber. Neste contexto de estudo, ser
abordada a filiao terica da psicologia organizacional e do trabalho aos
pressupostos da psicologia social e da administrao de recursos humanos.
O segundo eixo terico norteador traz para anlise e reflexo as discusses
sobre as configuraes contemporneas dos processos e relaes de trabalho. O
posicionamento terico de alguns autores sobre temticas como desemprego,
precarizao e flexibilizao dos vnculos laborais sero abordados,
contextualizando a constituio das prticas de consultoria. Essa abordagem
buscar ampliar o entendimento das imbricaes socioeconmicas, polticas e
conceituais que norteiam essas prticas.
As temticas emergentes do estudo sero analisadas ao final da
dissertao. Questes de empresa familiar e gnero sero discutidas a partir dos
pressupostos tericos norteadores e serviro como subsdios para complementar
a construo das consideraes finais de pesquisa.
19
OBJETIVOS DO ESTUDO
OBJETIVOS GERAIS
Sistematizar e disponibilizar informaes sobre empresas com registro de
pessoa jurdica no Conselho Regional de Psicologia, Regio 07 (CRP 07),
enfatizando dados referentes ao tempo de atuao e s atividades
desenvolvidas pelas empresas;
conhecer a trajetria de empresas gachas pioneiras na prestao de
servios em psicologia organizacional e do trabalho;
identificar e analisar as relaes entre a construo das prticas de
empresas em psicologia organizacional e do trabalho e as configuraes
histricas, socioeconmicas e polticas do contexto laboral;
OBJETIVOS ESPECFICOS
Identificar as condies histricas e socioeconmicas de surgimento das
empresas pioneiras na prestao de servios em psicologia organizacional
e do trabalho no Rio Grande do Sul;
contextualizar o surgimento dessas empresas gachas na trajetria da
psicologia brasileira;
explicitar as possveis transformaes ocorridas nos servios
disponibilizados pelas empresas referidas, desde seu surgimento at o
momento atual;
20
identificar as prticas dos profissionais que exercem atividades de
consultoria em psicologia organizacional e do trabalho no contexto atual e
os pressupostos tericos que as fundamentam;
investigar as estratgias utilizadas para manter a insero das empresas no
mercado de trabalho ao longo dos anos;
conhecer a avaliao dos participantes do estudo sobre sua formao e o
espao de interlocuo com o meio acadmico;
contribuir para a reflexo sobre a formao acadmica e suas relaes com
as prticas em psicologia organizacional e do trabalho;
21
PERCURSO METODOLGICO
A abordagem metodolgica utilizada nesse estudo foi a da pesquisa
qualitativa. De acordo com Vctora, Knauth e Hassen (2000), o referencial
qualitativo especialmente adequado para a compreenso em profundidade do
contexto em estudo. Entre os pressupostos da pesquisa qualitativa est a
concepo de que ... a realidade social no um todo unitrio, mas uma
multiplicidade de processos sociais que atuam simultaneamente, em
temporalidades diferenciadas (p. 34). Nessa perspectiva, a produo cientfica
torna-se possvel a partir do reconhecimento e da anlise aprofundada desses
processos e seus significados histricos.
Outro pressuposto que fundamentou a escolha pela abordagem qualitativa
o seu carter permanentemente inacabado. O processo de produo de
conhecimento na pesquisa qualitativa est sempre aberto para fatores emergentes
e os resultados so momentos parciais que se integram constantemente a outras
perguntas e abrem novos caminhos produo cientfica (REY, 2002).
Inserido na perspectiva qualitativa, o estudo de caso tem se mostrado uma
estratgia frtil de produo de conhecimento nas cincias humanas e sociais.
Vem sendo amplamente utilizado em diversas reas de conhecimento (sociologia,
psicologia, medicina, administrao, entre outras) como recurso de ensino e
registro. Entretanto, esses tipos de estudo de caso diferem de seu uso em
pesquisa. Quando utilizado para fins de ensino, por exemplo, o estudo de caso
22
prope-se a estabelecer uma estrutura de discusso e debate que envolva os
estudantes no processo de aprendizagem, sem a preocupao de apresentar uma
interpretao completa e aprofundada dos dados. Aqueles que se destinam
pesquisa devem preocupar-se justamente como o maior rigor na apresentao e
discusso dos dados empricos (YIN, 2001).
O estudo de caso especialmente adequado para as pesquisas que
elaboram questes do tipo como ou por que sobre um conjunto contemporneo
de acontecimentos sobre o qual o pesquisador tem pouco ou nenhum controle
(YIN, 2001, p. 28). O autor destaca que esse tipo de estudo surge da necessidade
de compreender e estabelecer relaes entre fenmenos6 sociais complexos.
Essa caracterstica um dos aspectos que o diferencia de outras estratgias de
investigao, como o experimento, por exemplo. Nos experimentos, o fenmeno a
ser estudado propositalmente isolado do seu contexto com o objetivo de analisar
apenas algumas variveis. No estudo de caso, os aspectos contextuais so
fundamentais para a compreenso do objeto de estudo, o que exige o uso de uma
ampla variedade de fontes de dados de pesquisa.
recomendado que a pesquisa emprica no estudo de caso combine vrias
estratgias de coleta de dados, que incluem entrevistas, observaes, anlise de
documentos, uso de dirios de campo e tcnicas de histria de vida. O estudo de
caso pode ser nico ou mltiplo e se aplica tanto a indivduos, quanto a grupos,
instituies/organizaes, eventos ou pases (ROESCH, 1999). Uma das
dificuldades do estudo de caso, apontada por Goldenberg (2000), traar os
6 Expresso utilizada pelo autor.
23
limites do que deve ou no ser pesquisado, pois o objeto de estudo uma
abstrao cientfica construda em funo de um problema a ser investigado.
O estudo de caso nico prefervel quando o fenmeno em questo
constituir-se como um caso raro ou incomum, um caso crtico (decisivo para
avaliar uma teoria j formulada) ou revelador (previamente inacessvel
investigao cientfica). Os estudos de casos mltiplos, por sua vez, so
considerados fontes de dados mais convincentes para que se estabeleam
relaes com as proposies tericas adotadas pelo pesquisador. Tanto o estudo
de caso nico quanto mltiplos prope-se a uma generalizao analtica, ou seja,
quando o pesquisador est tentando generalizar um conjunto particular de
resultados a alguma teoria mais abrangente (YIN, 2001, p. 58).
A pesquisa que fundamenta a presente dissertao seguiu as orientaes
metodolgicas do estudo de caso, investigando o conjunto de processos
socioeconmicos, histricos e polticos que atravessam a construo das prticas
de consultoria em empresas pioneiras no campo da psicologia organizacional e do
trabalho no Rio Grande do Sul. Foram escolhidas duas empresas para estudo,
cujos critrios de escolha sero detalhados na seqncia do texto. A escolha de
organizaes como unidades de anlise uma modalidade de estudo muito
freqente no campo da administrao. Originou-se h cerca de 90 anos na
Universidade de Harvard (EUA) e seu uso est consolidado em diversas
universidades do mundo. A principal vantagem desse tipo de pesquisa a
possibilidade de compreender processos sociais medida que se desenrolam nas
organizaes: permite, entre outros, uma anlise processual, contextual e
longitudinal de vrias aes e significados que se manifestam e so construdos
24
dentro das organizaes (ROESCH, 1999, p. 197-198). Em sntese, permite a
anlise das relaes entre processos histricos e o funcionamento das
organizaes estudadas.
O procedimento que auxiliou na definio das empresas escolhidas para o
estudo foi a realizao de um levantamento de dados, detalhado a seguir.
Levantamento junto ao Conselho Regional de Psicologia do Rio
Grande do Sul
O primeiro procedimento da pesquisa consistiu na realizao de um
levantamento sobre todas as empresas que possuem registro de pessoa jurdica
no Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul - Regio 07 (CRPRS).
Esse levantamento, autorizado pelo rgo referido, fornece um panorama geral,
caracterizando as empresas cadastradas no perodo de janeiro de 1979 a
dezembro de 2004.
De 1979 a 2004, foram registradas 347 empresas no CRPRS. Destas, 269
(77,5%) continuam em atividade. As empresas com registros inativos somam 76
(21,9%) e o restante dos arquivos (duas empresas, correspondentes a 0,6% do
total) no foi localizado (ver figura 1). Tendo em vista os objetivos da pesquisa,
foram consultados somente os registros de empresas que continuam em
atividade. Destes, pde-se ter acesso a 224 arquivos (64,5% do total de registros),
pois o restante (45 arquivos, correspondentes a 13% do total de empresas) no
estava disponvel para consulta. Todos os dados discutidos a seguir referem-se a
esses 224 registros de empresas ativas.
25
ATIVOS INATIVOS NO LOCALIZADOS
269 (77,5% do total)
Arquivos
Consultados
Arquivos no
consultados
224 (64,5% do total)
(83,3% dos ativos)
45 (13% do total)
(16,7% dos ativos)
76 (21,9% do total)
02 (0,6% do total)
TOTAL: 347 (Empresas registradas at o dia 31/12/2004)
Figura 1 REGISTROS DE PESSOA JURDICA DO CRPRS: ATIVOS E INATIVOS
Os arquivos do CRPRS disponibilizam, entre outros, dois dados
fundamentais sobre as empresas cadastradas: a data de incio da atividade da
empresa e a data de registro de pessoa jurdica no Conselho Regional de
Psicologia. Em parte dos arquivos, estas datas no coincidem, o que ocorre
devido a duas circunstncias diferentes: a empresa ter iniciado sua atividade
comercial antes da criao do CRPRS (em 1974); ou a empresa ter sido
cadastrada em ano posterior ao de incio da atividade (ver figura 2). Assim sendo,
nem todas as empresas que comearam a prestar servios em 1995, por exemplo,
registraram-se no mesmo ano. A convergncia das duas datas (incio de atividade
e registro no CRPRS) uma tendncia recente, possivelmente impulsionada pela
consolidao do Conselho Regional de Psicologia como rgo responsvel pela
regulamentao da atividade profissional em psicologia.
26
INCIO DA ATIVIDADE REGISTRO DE PESSOA JURDICA NO CRPRS
ANO
NMERO DE EMPRESAS
PERCENTUAL NMERO DE EMPRESAS
PERCENTUAL
1959 01 0,4% - - 1960 - - - - 1961 - - - - 1962 - - - - 1963 01 0,4% - - 1964 - - - - 1965 - - - - 1966 - - - - 1967 - - - - 1968 - - - - 1969 01 0,4% - - 1970 - - - - 1971 - - - - 1972 02 0,9% - - 1973 01 0,4% - - 1974 01 0,4% - - 1975 - - - - 1976 02 0,9% - - 1977 01 0,4% - - 1978 01 0,4% - - 1979 02 0,9% 04 1,9% 1980 02 0,9% 03 1,3% 1981 02 0,9% - - 1982 01 0,4% 01 0,4% 1983 01 0,4% 04 1,9% 1984 04 1,9% - - 1985 05 2,2% 05 2,2% 1986 04 1,9% 06 2,7% 1987 05 2,2% 04 1,9% 1988 02 0,9% 04 1,9% 1989 04 1,9% 02 0,9% 1990 02 0,9% 03 1,3% 1991 03 1,3% 03 1,3% 1992 08 3,6% 02 0,9% 1993 07 3,1% 03 1,3% 1994 06 2,8% 05 2,2% 1995 10 4,5% 03 1,3% 1996 14 6,2% 09 4,0% 1997 21 9,4% 27 12,0% 1998 08 3,6% 13 5,8% 1999 11 4,9% 12 5,3% 2000 19 8,5% 18 8,0% 2001 11 4,9% 16 7,1% 2002 19 8,5% 23 10,3% 2003 15 6,7% 31 13,8% 2004 07 3,1% 23 10,3% No
especificado 20 8,9% - -
TOTAL 224 100% 224 100% Figura 2 PERODO DE INCIO DE ATIVIDADE E REGISTRO NO CRPRS
27
Embora a profisso de psiclogo tenha sido regulamentada pela Lei Federal
4.119, em 27/08/1962, os Conselhos Federal (CFP) e Regionais (CRPs) foram
criados quase 10 anos depois, atravs da Lei 5.766 (em 20/12/1971), e
efetivamente instalados em 27/08/19747. As polticas de gesto dos Conselhos,
rgos responsveis pela orientao e fiscalizao da atividade do psiclogo, tm
impacto relevante nas prticas da categoria profissional regulamentada. Ao longo
do levantamento de dados, surgiram alguns indicativos dessa influncia como, por
exemplo, o aumento no nmero de registros de pessoa jurdica no ano de 1997.
Esse aspecto foi discutido com funcionrios do CRPRS, que associaram o
incremento no nmero de inscries mudana de gestores do Conselho
Regional de Psicologia, ocorrida no ano de 1996. A nova poltica de gesto do
CRPRS, caracterizada pela intensificao na fiscalizao das atividades das
empresas cadastradas e na regularizao das empresas que funcionavam sem
registro, foi apontada por funcionrios do CRPRS como causa principal para o
significativo aumento no nmero de cadastros em 1997.
Os registros do CRPRS tambm permitem identificar a(s) rea(s) de
atuao das empresas cadastradas, atravs dos objetivos definidos no contrato
social. importante salientar que a maior parte dos proprietrios indica mais de
uma rea de atuao dentre os objetivos da empresa, englobando uma ampla
gama de servios disponibilizados, o que dificulta a sistematizao dos dados. No
presente estudo, os critrios utilizados para a classificao das reas de atuao
em psicologia foram os mesmos que servem de parmetro para delimitar as
especialidades institudas para pessoas fsicas. O credenciamento de psiclogos 7 Dados disponveis em www.crp07.org.br (acesso em 30/09/2005).
28
por especialidades, institudo pelo Conselho Federal de Psicologia (Resoluo
n02/01)8, estabelece um conjunto de atribuies especficas a cada especialidade
(psicologia clnica, escolar, psicomotricidade, entre outras). Com base nessa
descrio, foi realizada a classificao de rea de atuao das empresas ativas
cadastradas no CRPRS (ver figura 3). O percentual total supera os cem por cento
devido j referida conexo entre diversas reas de atuao presente nos
objetivos de uma mesma empresa.
O vnculo dos profissionais de psicologia com a rea clnica um aspecto
interessante que emerge do levantamento de dados. Ao definir a rea de atuao
da empresa, nos objetivos do contrato social, os proprietrios da maioria das
empresas em atividade (40,6%) optaram pela prestao de servios em psicologia
clnica. As prticas em psicologia organizacional e do trabalho, e
ensino/pesquisa/formao tambm ocupam posio de destaque na preferncia
dos profissionais, com 37% e 31,7% dos registros, respectivamente. Outro fator de
destaque a formao de sociedade entre psiclogos e profissionais das mais
diversas reas de atuao (medicina, fisioterapia, pedagogia, administrao,
engenharia, entre outros) na constituio das pessoas jurdicas.
8 Dados disponveis em www.crp07.org.br (acesso em 10/11/2004).
29
REA NMERO DE EMPRESAS
PERCENTUAL
Psicologia Clnica 91 40,6%
Psicologia Organizacional e do
Trabalho
83 37%
Ensino/Pesquisa/Formao 71 31,7%
rea no especificada9 56 25%
rea da sade/social10 42 18,7%
Comrcio/Representaes
comerciais
25 11,2%
Psicologia Escolar/Educacional 14 6,2%
Outros11 11 4,9%
Psicopedagogia 10 4,5%
Psicologia Social/Comunitria 07 3,1%
rea administrativa/financeira12 04 1,9%
Psicologia Hospitalar 03 1,3%
Psicologia Jurdica 02 0,9%
Psicologia do Esporte 01 0,4%
Psicomotricidade 01 0,4% Figura 3 REA DE ATUAO DAS EMPRESAS
Com base no levantamento realizado no CRPRS, foram escolhidas trs
empresas para realizao de estudo de caso. Os critrios de escolha foram:
9 rea no especificada: O objetivo descrito no contrato social no especifica a rea da psicologia qual a empresa se dedica. Por exemplo: Prestao de servios em psicologia. 10 rea da sade/social: Servios em medicina; fisioterapia; fonoaudiologia; nutrio; terapia ocupacional; assistncia social. 11 Outros: Servios em engenharia eltrica; formao de condutores; processos qumicos industriais; fotografia; atividades artsticas. 12 rea administrativa/financeira: Assessoria econmica/financeira; pesquisas de mercado; comrcio exterior.
30
- principal rea de atuao da empresa: a prestao de servios em
psicologia organizacional e do trabalho foi a atividade selecionada, em coerncia
com o tema de pesquisa. A definio dos servios especficos da rea de
psicologia organizacional e do trabalho foi realizada de acordo com a resoluo
02/2001 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), em conjunto com o Catlogo
Brasileiro de Ocupaes do Ministrio do Trabalho (ver Anexo I);
- perodo de incio da atividade e tempo de atuao no mercado: foram
selecionadas as empresas que iniciaram suas atividades na dcada de 1970 e
que permanecem em atividade na rea de psicologia organizacional e do trabalho.
As trs empresas escolhidas efetuaram registro de pessoa jurdica entre 1970 e
1979 e so as nicas (nesse perodo) em cujos contratos sociais constam
atividades relacionadas rea de psicologia organizacional e do trabalho.
Ao entrar em contato com os proprietrios das empresas, constatou-se que
uma delas no presta mais servios nessa rea, restringindo suas atividades
principais prtica clnica. Esse fato indica a possibilidade de que outras
empresas cadastradas tenham mudado sua rea de atuao ao longo dos anos e
no tenham atualizado o contrato social. Os estudos de caso foram realizados,
portanto, somente com as outras duas empresas, que permaneceram prestando
servios em psicologia organizacional e do trabalho, ambas com registro efetuado
em 1972. O tempo de atuao no mercado de trabalho foi um critrio decisivo na
escolha das empresas, pois permite maior riqueza de dados referentes aos
processos histricos, polticos e socioeconmicos que marcaram a trajetria
dessas organizaes.
31
Os participantes do estudo foram os proprietrios das duas empresas
escolhidas para pesquisa e os profissionais que nelas exercem atividades
relacionadas psicologia. Aps a escolha das empresas, foi realizado um primeiro
contato com os participantes, com o propsito de explicar os objetivos do estudo e
a metodologia de trabalho utilizada. O termo de consentimento livre e esclarecido
(ver Apndice I) foi obtido a partir desse contato inicial.
A realizao de entrevistas semi-estruturadas foi a principal fonte de dados
empricos da pesquisa. Embora partissem de eixos norteadores (ver Apndice II),
as entrevistas assumiram caractersticas singulares, de acordo com o profissional
entrevistado. Como afirma Goldenberg (2000), citando Becker13: No possvel
formular regras precisas sobre as tcnicas de pesquisa qualitativa porque cada
entrevista ou observao nica: depende do tema, do pesquisador e de seus
pesquisados (p. 57). As entrevistas foram transcritas e posteriormente
disponibilizadas a todos os participantes do estudo para que estes as
reformulassem ou confirmassem o contedo expresso nas transcries dos
depoimentos.
Outra fonte de informaes para pesquisa foi a anlise de documentos das
empresas. Estes documentos incluram, alm dos arquivos do CRPRS, todo o
material publicitrio impresso (em perodos anteriores e atualmente), assim como
as informaes disponveis nos sites das empresas na internet. Alm dos
documentos referidos, tambm foram analisados manuais de treinamento
utilizados pelas empresas e publicaes referentes a servios prestados, todos
disponibilizados pelos proprietrios ou funcionrios vinculados s organizaes. A 13 BECKER, H. Mtodos de pesquisa em cincias sociais. So Paulo: Hucitec, 1994.
32
observao da rotina de trabalho dos participantes, etapa da coleta de dados
prevista no projeto de pesquisa, no pde ser realizada devido s restries de
acesso percebidas durante o trabalho de campo.
A anlise dos dados foi baseada nos pressupostos gerais para estudo de
caso, referidos por Yin (2001). O autor salienta que existem poucas estratgias
definidas para anlise no estudo de caso e que a produo de conhecimento est
intimamente vinculada ao estilo de pensar do pesquisador, apresentao
cuidadosa dos dados e anlise acurada de possveis interpretaes alternativas
para os dados. Como estratgias gerais para auxiliar a anlise dos dados
empricos, o autor prope duas alternativas.
A primeira, e mais importante, seguir as proposies tericas que
fundamentam o estudo de caso, estabelecendo relaes e novas interpretaes a
partir dos pressupostos tericos norteadores. A orientao terica serviria,
portanto, como guia de anlise para o estudo de caso, auxiliando o pesquisador a
definir os seus focos de ateno e os dados que sero deixados em segundo
plano. A segunda estratgia consiste em desenvolver uma descrio do(s) caso(s)
que organize o estudo, servindo de base para estabelecer nexos futuros com as
proposies tericas.
Esse estudo partiu de uma descrio sucinta da trajetria e da estrutura
organizacional das duas empresas escolhidas para estudo de caso, seguindo-se
uma anlise em que se discutem os dados empricos e suas conexes com os
pressupostos tericos norteadores do estudo.
33
DESCRIO DAS EMPRESAS
EMPRESA ALFA*
Em maro de 1972, surgia a empresa Alfa. Pioneira na prestao de
servios em psicologia industrial (hoje denominada psicologia organizacional e do
trabalho), a empresa surge da sociedade entre um psiclogo e um administrador
de empresas. Esse psiclogo, graduado pela Pontifcia Universidade Catlica do
Rio Grande do Sul (PUCRS), tambm realizou formao no Instituto de Seleo e
Orientao Profissional da Fundao Getlio Vargas (ISOP/FGV), em perodo
anterior graduao.
Embora inclua no contrato social a prestao de servios em psicologia
clnica, a Alfa tem sua trajetria marcada pelo campo organizacional. No princpio,
os servios prestados pela empresa podiam ser sintetizados em quatro atividades
principais: recrutamento, seleo de pessoal, treinamento e poltica de salrios.
A atividade de recrutamento consistia no conjunto de aes destinadas
divulgao de vagas de trabalho e contato com candidatos dispostos a se
submeter ao processo seletivo. A seleo de pessoal era a etapa subseqente,
que consistia na realizao de uma bateria de testes psicolgicos e entrevistas
para a escolha dos candidatos indicados s vagas. O treinamento englobava uma
ampla gama de atividades (palestras, trabalhos com grupos, entre outras) cujo
* O nome foi trocado para preservar a identidade dos participantes.
34
objetivo principal era promover a capacitao para o trabalho. J a poltica de
salrios surge como uma proposta de servio especfica do perodo. O psiclogo
proprietrio caracteriza esse momento:
(...) o pessoal comeou a gostar muito de pesquisa de salrios, ficou muito em moda na dcada de 60 e poucos, 70.
Essa atividade consistia basicamente em uma pesquisa realizada pela Alfa
com empresas de grande, mdio e pequeno porte, da regio metropolitana de
Porto Alegre. Os gerentes de recursos humanos recebiam formulrios nos quais
informavam o nome dos cargos da empresa e os salrios pagos aos funcionrios
que ocupavam tais funes. Os dados eram compilados e serviam de parmetro
para os empregadores definirem a remunerao dada aos seus empregados, de
acordo com o mercado. Segundo ele, esse servio foi favorecido
(...) por um momento de mercado, em que a inflao era muito violenta. O empresrio no tinha condies de aferir se ele estava pagando corretamente, se tava pagando a mais ou se tava pagando a menos. (...) Quem recebia aquele livro (com a pesquisa) podia estabelecer dentro da empresa dele, a praticamente custo zero, todo um plano de cargos e salrios.
A empresa Alfa, inicialmente localizada no centro de Porto Alegre, contava
com o trabalho dos proprietrios, de uma auxiliar administrativo (esposa do
psiclogo proprietrio) e mais duas psiclogas, que elaboravam os laudos para
seleo de pessoal. Tambm integravam o grupo de funcionrios da empresa uma
datilgrafa, um office-boy e uma faxineira. A auxiliar administrativo refere que a
demanda pelo servio de seleo de pessoal naquele perodo era to intensa que
35
os psiclogos chegavam a elaborar mais de 300 laudos para cargos diversos em
apenas um ms:
(...) o que me gravou muito foi realmente l no gabinete que a gente chegou a fazer trezentos e tantos (laudos) por ms. Acho que foi 368 o nmero mximo.
No final da dcada de 1970, incio dos anos de 1980, a empresa comeou a
sentir o impacto de uma crise de mercado. A gradativa reduo da demanda pelo
processo de seleo de pessoal foi um dos principais sinalizadores dessa crise. A
auxiliar administrativo salienta:
Uma empresa se no tem dinheiro, como que ela vai se dar ao luxo de fazer uma seleo. Eles j cortam por a, cortam pessoal, cortam... infelizmente isso.
A reduo da contratao de pessoal nas empresas se refletiu no cotidiano
da Alfa. Com a queda da demanda por um de seus principais servios, a Alfa foi
reduzindo o seu quadro funcional at ficar apenas com os scios proprietrios e a
auxiliar administrativo. Algum tempo depois, o scio administrador recebeu uma
outra proposta de trabalho e decidiu se afastar da sociedade. Entretanto, o registro
de pessoa jurdica s foi efetivamente alterado no final dos anos de 1990, quando
a filha do casal que mantinha a empresa substituiu o administrador na sociedade
limitada. A filha, que tambm psicloga, refere que, atualmente, no exerce
atividades dentro da rea de psicologia organizacional e do trabalho. Dedica-se,
exclusivamente, prtica clnica, de forma independente, embora utilize o espao
fsico da empresa para os seus atendimentos.
36
O proprietrio fundador afirma que hoje no contam com nenhum outro
profissional no quadro fixo da empresa, que est em sua segunda sede. A
contratao temporria de funcionrios a opo da Alfa quando assume
compromissos que exijam maior nmero de profissionais. Atual scio majoritrio
da empresa, ele continua no comando da Alfa, auxiliado por sua esposa. Os
servios de recrutamento, avaliao psicolgica para seleo e promoo de
pessoal, e treinamento ainda fazem parte das atividades da empresa. A prtica de
poltica de salrios, no entanto, foi em grande parte abandonada pela Alfa, pois,
segundo o proprietrio, esse tipo de servio no tem mais o impacto que tinha no
perodo de grande inflao. Tal atividade surge apenas como uma das opes do
extenso pacote de servios disponibilizados pela Alfa atravs da prtica de
consultoria.
Embora j fizesse parte das opes de servios da Alfa h muitos anos, a
consultoria assumiu um papel importante no cotidiano da empresa apenas
recentemente. O proprietrio caracteriza a consultoria como sendo um trabalho
(...) lindo, lindo. (...) Ento, voc faz o qu? Voc toma conta de toda a administrao de recursos humanos, a parte tcnica.
Na parte tcnica, ele inclui a definio da estrutura organizacional, com a
descrio de funes e hierarquia de cargos (organograma); o treinamento
semanal de grupos executivos ou de lideranas, que inclui palestras e discusses
sobre a rotina de trabalho; e o atendimento clnico de funcionrios das empresas
contratantes:
37
Ento tudo muito bonito, voc imagina, voc faz psicologia organizacional a mais pura possvel, tu acompanha estratgias da empresa, essa coisa toda, e acompanha o pessoal, d assistncia ao pessoal, enfim, o objetivo dar todo um amparo equipe de funcionrios.
A paixo e o entusiasmo do scio fundador pela profisso transparecem ao
longo das entrevistas, assim como o orgulho que sente por ter criado e mantido
uma empresa pioneira em psicologia organizacional. A continuidade de seu
trabalho, atravs da filha, a grande esperana do psiclogo:
E ela (a filha) vai tocar, n. (...) Ento eu tenho uma grande esperana que a Alfa v aos 60 anos, porque ela tem tudo pra continuar.
38
EMPRESA BETA*
Foi no ano de 1972 que trs psiclogos tiveram a idia de montar uma
empresa de prestao de servios em psicologia organizacional e do trabalho. Um
projeto simples que um dos scios fundadores descreve:
(...) no houve assim um maior planejamento, claro, a gente planejou os passos mnimos, bsicos: secretria, telefone, instalaes.
A localizao da primeira sede da empresa no centro de Porto Alegre era
uma caracterstica comum s empresas criadas naquele perodo:
E a idia era no centro exatamente porque naquela poca no tinha essa distribuio geogrfica de escritrio, tudo que era escritrio era no centro.
O comeo da empresa foi difcil, mas compensado pelo intenso ritmo de
atividades que caracterizaram a segunda metade da dcada de 1970. Os servios
de recrutamento e seleo, pilares das atividades da Beta naquele perodo, foram
fortemente favorecidos pelo contexto socioeconmico brasileiro. O mesmo scio
fundador descreve esse momento:
Ento com o boom dos anos 70, a segunda virada da dcada de 70, comeou o milagre brasileiro ento tinha muito ingresso de mo-de-obra nas empresas, principalmente nas indstrias, ento ns acompanhamos esse movimento.
* O nome foi trocado para preservar a identidade dos participantes.
39
A demanda pelos servios de recrutamento e seleo possibilitou o
crescimento da Beta. A empresa, que contava inicialmente apenas com a sede em
Porto Alegre, abriu mais trs filiais, duas na capital gacha e uma na regio
serrana do estado. A filial na regio serrana era administrada por um dos outros
scios fundadores da empresa. As duas filiais em Porto Alegre atendiam a
pblicos diferenciados:
Tinha uma filial (...) que atendia mo-de-obra de baixo custo e tinha uma filial de executivos.
No incio da dcada de 1980, ingressaram dois novos scios na Beta: um
psiclogo e um administrador. Aos poucos, alguns scios foram deixando a
empresa at que, em 1984, um dos fundadores comprou a parte dos scios que
restavam e seguiu como nico proprietrio da Beta. A partir de 1988, a empresa
concentrou suas atividades em apenas um local, onde permanece at hoje.
Aps a dissoluo da sociedade, a gama de servios disponibilizados pela
empresa aumentou consideravelmente: alm da avaliao psicolgica, do
recrutamento e da seleo de pessoal, a empresa passou a oferecer treinamentos
(abertos e in company) e consultoria organizacional. A viso empreendedora do
scio remanescente j se manifestava antes da dissoluo da sociedade, quando
ele comeou a se dedicar, de forma independente, promoo de eventos em
recursos humanos, atividade que no interessava aos demais proprietrios. Os
eventos cresceram nos anos seguintes e foram incorporados s atividades da
empresa.
40
Na dcada de 1990, a empresa deixa de realizar recrutamento de pessoal,
opo motivada por fatores que o proprietrio fundador esclarece:
(...) paramos com o recrutamento porque, primeiro, porque comeou a haver mais desemprego do que emprego e, segundo, que tava assim muito aviltado no mercado, o pessoal j no queria fazer com exclusividade, ento se tornou, em vez de trabalho tcnico, se tornou uma correria pra ver quem chegava primeiro com o candidato. Ento ficou muito pobre em questo de tica e possibilidade de fazer um bom trabalho.
Atualmente, a coordenao de congressos em recursos humanos e a
atividade de consultoria so os principais servios disponibilizados pela Beta. O
atual proprietrio e scio fundador caracteriza a consultoria como o trabalho de
agentes externos de mudana organizacional:
(...) s vezes trabalhando a diretoria, s vezes trabalhando com a rea de RH, s vezes trabalhando com as duas ao mesmo tempo, ento, o foco quase sempre em mudana, mudana de comportamento, mudana cultural, pra isso tem que fazer diagnstico, tem que fazer as intervenes. Algumas vezes tem que fazer intervenes de grupo, a gente trabalha muito com dinmica de grupo.
A diversificao de atividades uma das estratgias s quais o fundador
atribui o fato de a empresa vir se mantendo no mercado h tantos anos:
(...) se ainda fosse de recrutamento como ela comeou, ela teria deixado de existir h muito tempo.
A Beta foi gradativamente sendo transformada em uma empresa com
funcionamento familiar. Os atuais proprietrios so, alm do scio fundador, sua
esposa e dois de seus filhos. A empresa conta em seu quadro fixo com oito
41
pessoas: o proprietrio fundador; sua filha, que tambm psicloga e atua na
empresa na rea organizacional; seu filho, responsvel pelo campo de informtica
na empresa; sua esposa, psicloga que atua na coordenao dos eventos; uma
psicloga que responsvel pela avaliao psicolgica e tambm trabalha na
organizao dos eventos; e mais trs funcionrios que auxiliam nas atividades
administrativas da empresa (secretariado, entre outras). A esposa do fundador
tambm scia proprietria de outra empresa, que funciona no mesmo endereo
que a Beta, mas tem sua rea de atuao direcionada ao atendimento em
psicologia clnica. O filho tambm proprietrio de uma outra empresa no ramo de
informtica.
O futuro da Beta um assunto que permanece em aberto na empresa. O
fundador planeja, a partir da segunda metade de 2006 recuar estrategicamente,
concentrando suas atividades no servio de consultoria e deixando a gesto geral
e o futuro da empresa sob a responsabilidade da filha e da esposa. Embora
considere a hiptese de assumir o comando quando o pai se afastar, a filha
reconhece que a imagem da Beta ainda est muito associada figura do fundador
e prefere postergar a discusso da questo sucessria. A esposa e a outra
psicloga que trabalha na empresa afirmam que esta se mantm devido ao
empenho do fundador e acreditam que seja pouco provvel que a Beta continue
existindo sem ele.
Para facilitar a compreenso do texto, ser utilizada uma nomenclatura
diferenciada para cada uma das psiclogas que atuam na empresa Beta:
42
PSICLOGA A: scia-proprietria da Beta, atua na gesto da empresa e
nas atividades de consultoria; filha do proprietrio fundador.
PSICLOGA B: scia-proprietria da empresa, atua na organizao dos
eventos em recursos humanos; esposa do proprietrio fundador.
PSICLOGA C: no scia-proprietria da Beta e no possui vnculo
empregatcio com a empresa; atua nos servios de avaliao psicolgica, nos
cursos abertos e na organizao dos eventos de em recursos humanos.
43
A CONSTITUIO DO CAMPO DE SABER PSICOLGICO: a
filiao terica da psicologia organizacional e do trabalho
A psicologia enquanto rea de saber se constitui como um espao de
disperso terica e prtica que abriga uma multiplicidade fragmentada de sistemas
tericos e propostas de interveno (FIGUEIREDO, 1996b). Para compreender
um campo de tantas divergncias e enfoques conflitantes, diversos psiclogos tm
buscado uma reflexo sobre o movimento histrico subjacente constituio da
psicologia e suas implicaes no plano das prticas sociais.
A busca pelos processos histricos que possibilitaram a emergncia de um
saber psicolgico exige a imerso nos valores que constituem a cultura ocidental
moderna. no espao de consolidao da sociedade moderna que o objeto de
estudo primordial da psicologia, o indivduo, toma forma enquanto categoria do
esprito humano (MAUSS14 apud JAC-VILELA, 2001, p. 179). A falncia das
formas de vida coletiva do mundo feudal, reguladas pelas tradies e pela
obedincia a autoridades inquestionveis, implicou em uma perda dos referenciais
estveis sobre os quais se estabeleciam existncias relativamente protegidas
(FIGUEIREDO, 1996b). No sistema feudalista, as pessoas tinham sua identidade
associada posio na comunidade, aos laos de parentesco, de corporao de
ofcio ou feudo a que pertenciam. Entretanto, entre os sculos XVI e XVIII, o
contexto ocidental sofre diversas transformaes, entre as quais se pode destacar
14 MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. So Paulo: EPU/Edusp, 1974.
44
a quebra da hegemonia catlica, atravs do movimento da Reforma, coexistindo
com a revoluo cientfica proporcionada pelo modelo cartesiano de produo de
conhecimento. A consolidao da economia capitalista, baseada na propriedade
dos meios de produo, e os movimentos polticos liberais (entre os quais se
destaca a Revoluo Francesa) so outros aspectos fundamentais que marcam
essa transio (JAC-VILELA, 2001). Nesse contexto, o ser humano antes
atrelado s amarras servis do mundo feudal, transforma-se em indivduo,
supostamente livre e soberano.
O liberalismo aparece como um dos plos centrais na emergncia do
espao de saber psicolgico. Figueiredo (1996a) argumenta que na articulao
de trs eixos axiolgicos que a psicologia se constitui como campo de saber: o
liberalismo e o romantismo em suas diversas verses, e o regime disciplinar, com
suas propostas de regulamentao e controle da vida e do corpo.
No plo do liberalismo, os valores e prticas do individualismo reinam
absolutos, atravs do ideal de um eu soberano, que define, conhece e controla a
si mesmo, delimitando caractersticas identitrias capazes de permanncia e
invarincia ao longo do tempo. Ao plo do romantismo, pertencem os valores da
espontaneidade impulsiva, da singularidade, das identidades atravessadas pelas
foras da natureza e da histria. E, ao plo do regime disciplinar, que acaba se
sobrepondo aos demais, pertencem as prticas de poder que se exercem tanto
sobre as identidades reconhecveis segundo o princpio da razo funcional, quanto
sobre as identidades constitudas ao sabor das determinaes contextuais. Nas
relaes de complementaridade e conflito que unem e separam cada um desses
plos que se configura um espao no qual as experincias individuais e coletivas
45
ganham outro sentido. Esse cruzamento complexo, que o autor denomina como o
territrio da ignorncia (FIGUEIREDO, 1996a, p.149), balizava e baliza os
processos de constituio subjetiva.
Para este mesmo autor, a falncia das tradies histricas possibilitou a
instaurao do projeto epistemolgico da modernidade, como uma nova instncia
para a produo e validao de crenas e fazeres (FIGUEIREDO, 1996b). Com a
consolidao do positivismo nas cincias naturais, a busca por sistemas coesos,
aptos ao exerccio dos clculos e s previses exatas, configura-se como a
estratgia mais legtima de produo de conhecimento cientfico.
Assim, a psicologia do sculo XIX nasce com a preocupao de alinhar-se
com as cincias da natureza e encontrar no homem o prolongamento das leis que
regem os fenmenos naturais (FOUCAULT, 2002). Essa psicologia positivista
ancorava-se no pressuposto de que o conhecimento cientfico deve passar pelo
estabelecimento de relaes quantitativas, pela construo de hipteses e pela
verificao experimental. O mtodo experimental agiria como uma espcie de
purificador, permitindo a construo de um sujeito epistmico pleno, livre de
quaisquer determinismos naturais ou sociais (FIGUEIREDO, 1996b). Esse
conhecedor ideal, cone do liberalismo, seria capaz de construir sistemas
representacionais lgicos e coesos que se tornariam garantias de certezas sobre o
mundo.
O que surgia como promessa de legitimidade, acabou criando um parodoxo
que marca a produo de conhecimento na psicologia at hoje. Buscando
reconhecimento, a psicologia se props uma tarefa contraditria: submeter a vida
interior do indivduo ao domnio tcnico obtido atravs da descoberta de leis e
46
regularidades, mas partindo do pressuposto de que a subjetividade anti-cientfica
(senso comum da era moderna). Em outras palavras: se a psicologia no se
propusesse a controlar seu objeto de estudo, no se caracterizava enquanto
cincia natural; entretanto, o seu objeto de estudo era justamente aquilo que as
cincias naturais consideravam hostil prtica imparcial de pesquisa
(FIGUEIREDO, 1997).
Controlar, adaptar e racionalizar so os objetivos primordiais de uma
psicologia que persegue o ideal de rigor e de exatido das cincias da natureza.
Embora o projeto pioneiro de Wundt englobasse a pesquisa em psicologia
experimental (parte das Naturwissenschaften15) e a pesquisa em psicologia social
(parte das Geisteswissenschaften16), a gerao de seus discpulos relega a
segundo plano os estudos socioculturais do fundador e opera algumas
transformaes conceituais que marcam todo o desenvolvimento posterior da
psicologia. Nos estudos subseqentes, os pesquisadores positivistas substituem a
conscincia pelo organismo como foco de anlise. Essa mudana foi um passo
importante para se considerar a psicologia como parte das cincias naturais e
marcar a transio da filosofia para a biologia como disciplina-me da psicologia
(FARR, 1998). Desse modo, o desenvolvimento posterior da psicologia se d nos
moldes de uma perspectiva funcionalista, que concebe a adaptabilidade como
sinalizador de sade mental.
No mbito do trabalho, o primeiro texto que discute as relaes entre
psicologia e o contexto laboral data do incio do sculo XX. O livro de Hugo
15 Corresponde, no mundo de fala inglesa, s cincias naturais. 16 rea de estudo das cincias humanas e sociais.
47
Mnsterberg17, publicado em 1913, tinha como objetivo apresentar a contribuio
da psicologia para o campo industrial em expanso (SPINK, 1996). Nesse perodo
de consolidao da razo cientfica, principalmente nos Estados Unidos, a
premissa de que para cada problema haveria uma soluo racional se tornou
ponto de partida para a psicologia aplicada. Ocorreu uma ciso artificial entre a
construo experimental de uma base conceitual e a aplicao desta a problemas
especficos. Esse caminho unidirecional que parte da teoria legitimada
cientificamente para a sua operacionalizao em um mundo que precisa ser
consertado, aliado a uma supervalorizao da eficincia tcnica em uma
organizao vista como mquina, contribuem para que a expanso da psicologia
no mundo dos negcios ocorra sem grandes problemas:
Qualquer possvel tenso entre os valores do psiclogo e o novo campo em expanso foi aliviada por uma ideologia profissional e gerencial voltada importncia da satisfao pessoal para o indivduo alocado num posto de trabalho que melhor para suas habilidades (SPINK, 1996, p. 179).
O cenrio no setor produtivo era especialmente favorvel aproximao
com a psicologia. Os princpios do taylorismo enfatizavam a seleo de homens
com aptides necessrias cada atividade, a instruo dos trabalhadores eleitos
a fim de evitar o gesto intil e a perda de tempo, e a estimulao mxima dos
trabalhadores produo (PATTO, 1984). Seleo, treinamento e motivao so
as trs noes essenciais para uma atuao sob a perspectiva taylorista, e
pautada pela lgica da Escola da Administrao Cientfica que a psicologia se
insere no espao laboral. 17 MNSTERBERG, H. The psychology of industrial efficiency. Boston: Houghton Mifflin, 1913.
48
A inquestionvel neutralidade da cincia e da tcnica, aliada valorizao
das competncias individuais, funcionaram como um eficiente instrumento de
incremento da produtividade e dissociao dos laos de solidariedade entre os
trabalhadores. Entretanto, o crescente agravamento dos conflitos nas relaes
laborais, o decrscimo da produo e os altos ndices de absentesmo e
afastamento por doenas indicavam que ainda faltavam pressupostos que
garantissem s organizaes uma aparncia mais dinmica, saudvel e produtiva.
Surge, ento, uma corrente de pensamento, idealizada pelo psiclogo australiano
Elton Mayo, que apontava para a necessidade de ampliar a compreenso sobre
os fatores psicolgicos relacionados ao desempenho. Baseada no princpio da
cooperao entre diversos nveis hierrquicos, a ento chamada Escola das
Relaes Humanas consolida a participao da psicologia nas organizaes com
o objetivo de identificar, canalizar e dissolver os conflitos relacionados ao trabalho.
Segundo Spink (1996), o potencial conflitivo entre a influncia taylorista na
psicologia e os pressupostos da Escola das Relaes Humanas no aconteceu na
prtica a as duas tendncias acabaram por coexistir, criando to somente uma
falsa dicotomia entre os chamados psiclogos tecnicistas e os humanistas.
a partir do Movimento das Relaes Humanas que a aproximao com a
produo terica da psicologia social norte-americana se consolida (JACQUES,
1999). Estudos sobre atitude, motivao, liderana e comportamento grupal
desenvolvidos por essa vertente da psicologia social foram essenciais s prticas
da ento chamada psicologia industrial. Os princpios de equilbrio, adaptao e
cooperao norteiam as atividades propostas e se fundamentam em pressupostos
associados perspectiva funcionalista da psicologia social e ao modelo biolgico.
49
Esse modelo inspira o uso da expresso organizao, que se difunde e se
consolida nas teorias da administrao, expressando a concepo de que
qualquer sistema em mudana constante sobrevive somente atravs da
adaptao ao ambiente. O enfoque sistmico alcana o psiclogo, que deixa de
ser industrial para ser organizacional. A psicologia organizacional amplia seu
espao de atuao e pela primeira vez assume o formato de consultoria
empresarial (JACQUES, 1989), que vai adquirir diferentes configuraes conforme
as demandas do contexto produtivo.
Tanto o chamado psiclogo industrial quanto o organizacional buscam no
instrumental da psicologia os recursos para os propsitos de adaptao do
homem ao trabalho. Perspectiva adaptacionista identificada por Patto (1984) como
a matriz que homogeniza a heterogeneidade da psicologia em diferentes campos
de aplicao, e que tambm se faz presente na trajetria histrica da psicologia no
Brasil.
no perodo da Repblica Velha (1889-1930) que se criam as condies
para a primeira tentativa de regulamentao da profisso de psiclogo no Brasil,
empreendida por Waclaw Radecki. Nessa poca j eram utilizadas tcnicas ditas
psicolgicas, como os testes para exame de doentes mentais e crianas em
instituies mdicas e educacionais (ANTUNES, 2004). A incipiente psicologia,
desenvolvida como auxiliar das prticas mdicas, pedaggicas e jurdicas postula
o normal, o adequado, o adaptado, ela se inclina sobre os obstaculizadores da
ordem para melhor os examinar18 (JAC-VILELA, 2001, p. 183).
18 Grifos da autora.
50
Em 1924, Radecki inicia seu trabalho de criao de um Laboratrio de
Psicologia Experimental na Colnia dos Psicopatas do Engenho de Dentro.
Radecki pretendia transformar o Laboratrio em Instituto de Psicologia, no qual
deveria funcionar a Escola Superior de Psicologia, destinada formao de
profissionais da rea. Seu projeto foi concretizado em 1932, quando o Decreto-Lei
21.173 criou o Instituto de Psicologia, destinado, principalmente, investigao
experimental do fenmeno psquico (ESCH; JAC-VILELA, 2001). Entretanto, o
Instituto teve vida curta. Em apenas sete meses, o projeto pioneiro de Radecki foi
frustrado pela falta de recursos oramentrios e pela presso de grupos mdicos e
catlicos.
Ainda na dcada de 1920, surgem as primeiras experincias sistemticas
de aplicao da psicologia s questes do trabalho no Brasil (ANTUNES, 2003).
Entretanto, na dcada de 1930 que o desenvolvimento dessa rea se intensifica.
O crescente processo de industrializao iniciado no governo de Getlio Vargas
traz novas preocupaes sobre o controle do fator humano, especialmente no que
diz respeito ao desenvolvimento de aptides e ao aprimoramento tcnico do
indivduo no trabalho:
A Psicologia veio inserir-se num panorama em que a preocupao com a maximizao da produo tornava-se um imperativo, contribuindo com a produo de conhecimentos e tcnicas necessrias ao empreendimento da racionalizao do trabalho e da administrao cientfica do processo produtivo (ANTUNES, 2003, p. 88).
A busca por novas formas de gesto que contivessem o crescente processo
de organizao operria tornou-se uma preocupao de diversos empresrios
51
brasileiros. So os princpios tayloristas/fordistas que servem de base e
justificativa para a implementao de novos regimes disciplinares nas indstrias. O
vnculo da psicologia com os pressupostos da Escola de Administrao Cientfica
do processo produtivo podem ser exemplificados pelo depoimento do proprietrio
da Alfa quando define o que era trabalhar em psicologia em meados da dcada de
1950:
(...) trabalhar na rea de psicologia, que seria recrutamento, seleo e treinamento (...) e mais alguma coisa ligada ainda rea de otimizao de servios, racionalizao de servios, estudos de tempos e movimentos, era por a a coisa.
Como parte desse projeto de modernizao e cientifizao dos processos
administrativos, houve uma nova iniciativa de regulamentao das prticas
psicolgicas (ANTUNES, 2003). Myra y Lpez, fundador do Instituto de Seleo e
Orientao Profissional da Fundao Getlio Vargas (ISOP/FGV), em 1947, um
dos profissionais que impulsiona a nova tentativa de profissionalizao da
psicologia (ESCH; JAC-VILELA, 2001). O ISOP funcionava como laboratrio,
escola e centro irradiador de certa produo psicolgica, ampliando e espectro de
aplicaes e derivaes tecnolgicas da mesma (ESCH; JAC-VILELA, 2001, p.
19). Preocupava-se, prioritariamente, em auxiliar os psicotcnicos a encontrar
solues para problemas de ajustamento dos homens a uma sociedade em pleno
processo de industrializao. O surgimento do ISOP marca um momento histrico
no qual a psicologia industrial e organizacional comea a se estabelecer como
territrio especial de pesquisa e interveno (CARVALHO; SANTOS, 2003).
52
A formao essencialmente prtica do ISOP salientada pelo proprietrio
da Alfa, ex-aluno da instituio:
A preocupao era essencialmente prtica, essencialmente prtica, primeira coisa assim. (...) Eles pegaram todos os testes que tinham dentro do ISOP e ns nos submetamos ao teste, conferamos o teste, vamos porque tnhamos errado e como funcionava o teste. E assim passvamos por todos os testes e depois passamos a aplicar os testes. E assim foi. E a fomos pra personalidade, tudo acompanhado por leitura e reunio de esclarecimento. No havia, no era um curso formal.
A nfase da formao na psicometria e a superioridade do ensino do ISOP
na anlise estatstica de testes so referidas pelo proprietrio fundador da Alfa:
E, por exemplo, eu disse melhor que a nossa faculdade, pelo menos em estatstica. Um dia eles pegaram l e disseram: olha vocs descem vo no arquivo e eu quero que vocs peguem 100 dossis cada um. De fulanos que se submeteram a testes l. (...). E trouxemos os 100 envelopes e a, a partir da, ns aprendemos a fazer distribuio de freqncia, como que funcionava a distribuio de freqncia, clculo de mdia, mediana, moda, estabelecer desvio padro, quartis, decis, percentis. Depois de tudo isso feito, a partamos pra estabelecer o estudo das correlaes, a correlao de um teste de inteligncia verbal com um outro teste que tambm presumidamente mensuraria a inteligncia verbal, ou o fator V. Ento qual o tipo de saturao teria o teste, tem correlao ou no tem correlao. Ento, voc v assim, era muito prtica, muito objetiva, essa foi a formao.
O mesmo participante tambm destaca a qualidade e a seriedade da
formao no ISOP:
Eles tm uma liberdade do aprendizado e com uma coisa assim psico muito difcil de se ensinar. E funciona assim: tem que ler, ler, ler, tem que estudar, isso era o princpio deles.
53
A tentativa de oficializar a prtica profissional do psiclogo envolve o ISOP
e o Instituto de Psicologia da Universidade do Brasil. Em 1953, surge o primeiro
curso de psicologia, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-
RJ). Frente s crescentes movimentaes pela regulamentao da profisso, o
Conselho Nacional de Educao solicita s Associaes e Institutos de Psicologia
sugestes referentes legalizao do exerccio profissional. Em resposta essa
solicitao, foi criado, no mesmo ano, o primeiro anteprojeto de Lei de
normatizao da categoria, elaborado em conjunto pela Associao Brasileira de
Psicotcnica (ABP) e pelo ISOP (ESCH; JAC-VILELA, 2001).
Esse projeto tornava evidente a distino entre cincia bsica e aplicada
em sua proposta de currculo mnimo, refletindo o embate entre os tericos
(representados pelos profissionais do Instituto de Psicologia da Universidade do
Brasil e da PUC-RJ) e os prticos (representados pelos profissionais da ISOP).
Entretanto, o Conselho Nacional de Educao rejeita o projeto de 1953, no
permitindo a atuao do psicologista na rea clnica sem a superviso de um
mdico. Aps algumas reformulaes e tentativas de conciliar os interesses
corporativistas mdicos com a regulamentao da prtica psicolgica, uma nova
proposta elaborada, substituindo o exerccio da prtica psicoterpica pela
soluo de problemas de ajustamento como funo do psiclogo. Como refere
Esch e Jac-Vilela (2001, p. 19):
Com pequenas reformulaes, este o contedo da Lei 4119, finalmente aprovada em 27 de agosto de 1962. Junto com ela, o Conselho Federal de Educao aprova o parecer 403, que estabelece o currculo mnimo e a durao do curso de Psicologia.
54
No Rio Grande do Sul, o primeiro curso de psicologia regulamentado foi o
da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Esse curso
aparece como a base da formao em psicologia para todos os psiclogos
entrevistados, de ambas as empresas. Fundado no dia 30 de junho de 1953, foi o
primeiro curso de psicologia criado na regio sul do pas19 em nvel de ps-
graduao. Como curso de graduao, passou a funcionar em 1963. Para os
fundadores das empresas Alfa e Beta, era a nica opo de formao disponvel
em psicologia naquele perodo. O proprietrio da Alfa relata o dia em que
descobriu que a PUCRS oferecia o curso de psicologia:
E a pra total felicidade minha, um dia eu resolvi e fui na PUCRS, que era no Rosrio. E o curso de psicologia era um curso de ps-graduao, eu tinha um curso tcnico (...), ento no podia nem fazer o curso de ps-graduao em psicologia. Ento eu fui na PUCRS pensando, estrategicamente, eu disse: ah, eu vou fazer um curso qualquer de filosofia (...), sei l, um curso que tenha eu fao, que depois eu fao o ps-graduao em psicologia (...). E quando eu cheguei na secretaria do Rosrio, l da PUCRS, eu disse: vim me inscrever num curso e queria fazer psico, mas no tem psico e ele (o secretrio): quem que disse que no tem psico, comeou psico agora e t encerrando (a matrcula) hoje. E por artes do demo, ele aceitou o meu nome e eu entrei no curso de psicologia. (...) Primeira turma.
Com a regulamentao da profisso no Brasil e com os egressos dos
primeiros cursos de graduao, a psicologia amplia seu campo de aplicao,
inserindo-se em diversas reas de trabalho. A industrializao crescente no Brasil
foi a grande propulsora para o desenvolvimento da chamada psicologia
organizacional e do trabalho, que se configurou como uma rea historicamente
importante para a profissionalizao da cincia psicolgica. Entretanto, o vnculo
19 Disponvel em www.pucrs.br (acesso em 15/02/2006).
55
da psicologia com o espao industrial/organizacional sempre foi considerado
problemtico para a interveno do psiclogo. Duas razes principais podem ser
apontadas para essa dificuldade. Primeiramente, o campo de saber psicolgico se
configura em estreita conexo com as prticas mdicas e educacionais, da a
maior legitimidade das intervenes nas reas clnica e de aprendizagem. Aliado a
isso, nas organizaes privadas os dilemas do capital se apresentam em sua
forma mais ntida, entrando em choque com os iderios humanistas da psicologia
(SPINK, 1996).
Os questionamentos que atingem a psicologia organizacional e do trabalho
emergem de um movimento crtico que se consolida em meados da dcada de
1970. Esse movimento, que prope uma reviso dos pressupostos
epistemolgicos, tericos e metodolgicos que aliceram a prtica legitimada de
cincia, alcana a psicologia social, especialmente na Amrica Latina. Um dos
principais reflexos desse processo foi a transformao do olhar direcionado s
prticas em psicologia, especialmente em psicologia organizacional e do trabalho.
Embora as crticas possam ser generalizadas a todos os campos de insero do
psiclogo, a prtica de psicologia organizacional tem sido a mais questionada,
principalmente pela explicitao de seus componentes ideolgicos (JACQUES,
1999).
A anlise crtica aponta que os psiclogos organizacionais tm,
historicamente, concebido o trabalho como conjunto de categorias simplificadas
(gesto, tarefa, funo, hierarquia) e se envolvido na administrao de conflitos e
competncias relacionadas diviso de trabalho (SAMPAIO; CODO, 1995). A
ltima pesquisa nacional oficial sobre o psiclogo brasileiro indica que a grande
56
maioria dos psiclogos que atuam na rea organizacional referiu executar as
atividades de seleo, aplicao de testes, recrutamento, acompanhamento de
pessoal e treinamento (Conselho Federal de Psicologia, 1988).
Uma das explicaes para que a prtica do psiclogo organizacional e do
trabalho se volte ao estudo isolado de temas, sem a problematizao do
fenmeno social, recai, em parte, na ciso artificial que se estabelece desde as
primeiras configuraes curriculares: o pressuposto original de que a psicologia
problematizada onde se teoriza e no onde se aplica nega a possibilidade de uma
prxis voltada compreenso ativa de um mundo social processual (SPINK,
1996). justamente atravs do rompimento da imagem negativa de trabalho
reduzido reproduo do capital, que uma nova aproximao entre a psicologia
organizacional e a psicologia social crtica se delineia. A nfase no trabalho, como
constituinte do humano, e a prtica da psicologia organizacional e do trabalho
como parte do fenmeno do trabalho e no alheio a ele permite uma tentativa de
reconfigurao do campo. Como refere Spink (1996, p. 183):
(...) cabe aos psiclogos que militam no campo organizativo a tarefa mais difcil da legitimao do fenmeno do trabalho e das formas que a atividade humana assume com o espao de pesquisa e produo de conhecimento no sobre o trabalho ou sobre as organizaes, mas sobre a psicologia da vida associativa, a psicologia social a psicologia. Cabe a estes rejeitar a falsa separao da teoria e da prtica, do puro e do aplicado e sua hierarquizao profissional implcita. (...) Poder, dominao, ideologia, conflito social e de classe no habitam um espao prprio alheio academia; os campos de saber tambm tm seu cotidiano.
Dentro da proposta de problematizar a construo das prticas em
psicologia organizacional e do trabalho como parte do fenmeno do trabalho,
57
atravessada por configuraes histricas, polticas e socioeconmicas, torna-se
absolutamente imprescindvel uma anlise das transformaes que marcam os
processos e relaes laborais nas ltimas dcadas.
58
AS CONFIGURAES DO TRABALHO CONTEMPORNEO: as
imbricaes socioeconmicas, histricas e polticas que norteiam
a prtica em psicologia organizacional e do trabalho
Falar sobre o trabalho humano um desafio contnuo. A atividade produtiva
engendra possibilidades de exerccio da subjetividade e de inscrio nas relaes
sociais, assumindo sempre um significado scio-cultural (TITTONI, 1994). As
relaes laborais so permanentemente ressignificadas a partir de diferentes
contextos histricos e socioeconmicos e de diferentes perspectivas de anlise.
Foi no contexto de fortalecimento das sociedades industriais que a noo
de trabalho foi associada sua forma institucionalizada, o emprego (LIEDKE,
1997). A relao social de assalariamento tornou-se o modelo desejvel de
trabalho, vinculado qualidade e proteo social. Embora o trabalho assalariado
tenha assumido configuraes diferenciadas de acordo com o grau de
desenvolvimento das economias e da organizao dos trabalhadores na luta por
direitos e protees sociais, o perodo posterior segunda guerra mundial
fortaleceu a viso otimista relacionada ao assalariamento. Aumento de
produtividade, ampliao do nvel global de emprego, expanso dos servios
pblicos e polticas de bem-estar social trouxeram dinamismo atividade
econmica em diversas naes ocidentais (GALEAZZI, 2002).
Entretanto, a aparente estabilidade capitalista do ps-guerra deu espao a
um processo de transformao descrito por Harvey (2004, p. 117): So
59
abundantes os sinais e marcas de modificaes radicais em processos de
trabalho, hbitos de consumo, configuraes geogrficas e geopolticas, poderes e
prticas do Estado, etc. A concepo que compreende as relaes
contemporneas de trabalho em um amplo processo de reestruturao,
impulsionado pelo quadro crtico que envolveu a economia capitalista dos anos de
1970, parece ser um consenso entre autores diversos (CASTEL, 1998; ANTUNES,
1999; SINGER, 1999). O contexto de estagnao e recesso na economia,
agravado pelas presses inflacionrias impostas pelo cartel de exportadores de
petrleo, deflagrou uma crise profunda em pases que anteriormente ostentavam
intenso ritmo de crescimento econmico (SINGER, 1999). A concorrncia no livre
comrcio internacional, caracterizada por disputas intensificadas entre os grandes
grupos transnacionais e monopolistas, e a necessidade de controlar as lutas
sociais (em um perodo em que as greves atingiram seu auge) desencadeou uma
grande reviravolta no processo produtivo, cujo impacto se estende aos dias atuais
(ANTUNES, 1999). Reviravolta que se caracteriza pelo surgimento de diversas
estratgias institucionais e organizacionais que objetivam a retomada da
lucratividade e da produtividade.
Este conjunto de estratgias definido essencialmente por dois fatores: as
transformaes na organizao do processo de trabalho e a introduo de
tecnologia microeletrnica, que possibilitam um ajuste mais rpido s exigncias
de um mercado instvel e cada vez mais competitivo (BAUMGARTEN, 2002). A
constituio de formas flexveis de gesto do processo produtivo e a
implementao intensificada de inovaes tecnolgicas so aspectos importantes
do processo de reorganizao capitalista, que envolve tambm o desenvolvimento
60
de um aparato ideolgico que centraliza no indivduo o poder de ao
transformadora, remetendo a atuao coletiva a um plano secundrio (ANTUNES,
1999).
Essas mudanas, iniciadas nos anos 70, constituem-se em um tema
controverso, com diversas possibilidades de compreenso. Antunes (1999) discute
tal controvrsia quando apresenta as perspectivas de diferentes tericos. Cita
Sabel e Piore20 como defensores das recentes transformaes na dinmica
produtiva, caracterizadas por esses autores como uma forma de relao entre
capital e trabalho mais favorvel do que a do modelo taylorista/fordista. A
produo flexvel possibilitaria o surgimento de um trabalhador mais qualificado,
participativo, multifuncional, polivalente e satisfeito com o seu espao de trabalho.
Contrapondo-se essa perspectiva, Tomaney21 (apud ANTUNES, 1999)
sinaliza que as mudanas no estariam ocorrendo em direo a uma nova
concepo das relaes de trabalho, mas sim em prol de uma intensif