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A CONSTRUÇÃO VISUAL DA AMÉRICA EM GRAVURAS: CÓDIGOS DE PERCEPÇÃO E SUAS TRANSFORMAÇÕES Flavia Galli Tatsch IFCH / UNICAMP Bolsista FAPESP [email protected] Esta comunicação é sobre a construção visual da América 1 em gravuras no início da Era Moderna, mais precisamente sobre as primeiras imagens que foram impressas para acompanhar as cartas de Cristóvão Colombo e Américo Vespúcio. Meu objetivo é o de explorar as possibilidades de usar imagens visuais como um meio de suscitar questões inovadoras. Escolhi analisar gravuras porque elas eram um importante e significativo meio de comunicação nas sociedades europeias. A amplitude dos usos das gravuras leva a pensar que seu significado cultural não era uma característica inerente, mas dependia da maneira como era incorporada por um público diversificado – em status social e econômico, assim como no espaço geográfico. As gravuras ofereciam aos numerosos leitores a possibilidade de combinar temas de uma forma desconcertante. Cabe esclarecer que, por leitores, entendo todos aqueles estavam aptos ou não a ler 2 , assim como os próprios artistas que as elaboravam. 3 Para lidar com fontes visuais, o Historiador Cultural deve constituir séries 4 , a partir das quais estabelecerá sua análise. Se for verdade que as imagens pensam, elas devem pensar entre si. 5 Por isso, a constituição de séries é um ponto passivo para a investigação. O confronto das imagens de uma mesma série é indispensável para a análise de cada uma delas; o sentido é dado a partir das diferenças, antes da dialética entre as regularidades e os desvios. Entendo como série um corpus construído pelo historiador(a) a partir de critérios por ele ou ela estabelecidos, que podem ser cronológicos, temáticos, formais, estruturais, iconográficos, etc. Para compreender o significado simbólico das gravuras, é decisivo vê-las através da distinção entre "arte de elite" e "arte popular", conceitos que têm sido impostos pela noção de estética. Não quero dizer que experiências estéticas eram desconhecidas ou que certos artefatos culturais não eram vistos de forma análoga à maneira como vemos as obras de arte hoje. No período abordado, era importante que as gravuras se assemelhassem um pouco com o tema, fosse ele um acontecimento, um retrato, etc. III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 1258

A CONSTRUÇÃO VISUAL DA AMÉRICA EM GRAVURAS: … Galli... · A princípio, deveríamos pensar em uma relação dual entre espanhóis e indígenas. Porém, a figura aponta para uma

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A CONSTRUÇÃO VISUAL DA AMÉRICA EM GRAVURAS: CÓDIGOS DE

PERCEPÇÃO E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Flavia Galli Tatsch

IFCH / UNICAMP

Bolsista FAPESP

[email protected]

Esta comunicação é sobre a construção visual da América1 em gravuras no início da

Era Moderna, mais precisamente sobre as primeiras imagens que foram impressas para

acompanhar as cartas de Cristóvão Colombo e Américo Vespúcio. Meu objetivo é o de

explorar as possibilidades de usar imagens visuais como um meio de suscitar questões

inovadoras.

Escolhi analisar gravuras porque elas eram um importante e significativo meio de

comunicação nas sociedades europeias. A amplitude dos usos das gravuras leva a pensar que

seu significado cultural não era uma característica inerente, mas dependia da maneira como

era incorporada por um público diversificado – em status social e econômico, assim como no

espaço geográfico. As gravuras ofereciam aos numerosos leitores a possibilidade de combinar

temas de uma forma desconcertante. Cabe esclarecer que, por leitores, entendo todos aqueles

estavam aptos ou não a ler2, assim como os próprios artistas que as elaboravam.3

Para lidar com fontes visuais, o Historiador Cultural deve constituir séries4, a partir

das quais estabelecerá sua análise. Se for verdade que as imagens pensam, elas devem pensar

entre si.5 Por isso, a constituição de séries é um ponto passivo para a investigação. O

confronto das imagens de uma mesma série é indispensável para a análise de cada uma delas;

o sentido é dado a partir das diferenças, antes da dialética entre as regularidades e os desvios.

Entendo como série um corpus construído pelo historiador(a) a partir de critérios por ele ou

ela estabelecidos, que podem ser cronológicos, temáticos, formais, estruturais, iconográficos,

etc.

Para compreender o significado simbólico das gravuras, é decisivo vê-las através da

distinção entre "arte de elite" e "arte popular", conceitos que têm sido impostos pela noção de

estética. Não quero dizer que experiências estéticas eram desconhecidas ou que certos

artefatos culturais não eram vistos de forma análoga à maneira como vemos as obras de arte

hoje. No período abordado, era importante que as gravuras se assemelhassem um pouco com

o tema, fosse ele um acontecimento, um retrato, etc.

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As estratégias interpretativas utilizadas em minha pesquisa contam com algumas

questões, a saber: como as informações etnográficas originais foram transformadas de modo a

produzir imagens visuais? Que diferentes contextos influenciaram a criação dessas gravuras?

O que importa aqui é como devemos entender os códigos de percepção da América e suas

transformações. Em que condições as gravuras tornam-se realmente de uma operação de

tradução e / ou lugares de enunciação ... Em outras palavras, tentarei descobrir a retórica da

alteridade em operação nas imagens, para determinar algumas das figuras empregadas, assim

como procurarei compreender alguns dos seus procedimentos.

O eco do Novo Mundo chegava à Europa rapidamente. A escrita foi o meio de

comunicação privilegiado, já que poucos cronistas e conquistadores se ocuparam com a

representação visual. As origens dessa lacuna eram diversas: as expedições não contavam

com artistas que pudessem criar as figurações a partir da observação direta; tampouco os

cronistas eram habilidosos o suficiente para fazê-lo.

Assim, a construção visual das primeiras imagens da América se deu pelas mãos

daqueles que nunca pisaram no continente recém-descoberto. Na falta de desenhos ou esboços

realizados in loco, existia a possibilidade de se apropriar das descrições textuais (e o que dizer

da dificuldade de transformar palavras em imagens); de repertórios do imaginário medieval,

transferir imagens de outras culturas ou introduzir características e artefatos europeus na

figuração dos ameríndios.6

De modo geral, muito se escreveu sobre a suposta incapacidade europeia parra

assimilar a alteridade do Novo Mundo. Assim como sobre a tendência a “familiarizar” as

diferenças de acordo com padrões culturais pré-estabelecidos.7 Sob este aspecto, o que eu

estou propondo, certamente, não é novo.

Se pensarmos que a pena e o buril não conseguiam capturar totalmente as

particularidades da realidade da América, a história das percepções a partir das imagens deve

levar em conta uma série de filtros. Um deles é a relação entre imagens e textos. Uma imagem

não é um texto; mas enquanto irredutivelmente diferentes, os domínios verbal e visual

perpassam e influenciam um ao outro.

As primeiras imagens da América ilustravam cartas e folhas volantes. O esforço de

interpretação desses textos, por parte dos mestres gravadores e impressores, deveria levar em

conta dois aspectos: de um lado, a formação de uma imagem mental8 de uma situação não

mais acessível de modo direto; por outro, a leitura de uma imagem literária perpassada por

diversos topoi. Em outras palavras, as xilogravuras eram traduções de traduções, que

procuravam transformar os textos em imagens visuais compreensíveis ao público.

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Em 1493, as primeiras gravuras sobre a América foram publicadas, em Basileia,

acompanhando a edição latina de Insulis Inventis9, de Cristóvão Colombo. Primeiro o genovês

e, em seguida, os mestres gravadores, procuraram traduzir o Outro. Como nos lembra o

historiador francês, François Hartog, a retórica da alteridade, própria das narrativas de

viagem, dividia o mundo em duas partes: o mundo em que se conta e o mundo que se conta.10

Nesse processo o narrador traduz o Outro para si próprio, operando a tradução a partir da

inversão.

O Novo Mundo era familiar e estranho antes de ser novo. Até a época dos grandes

descobrimentos, a Ásia, mais precisamente a Índia, era o espaço por excelência do estranho,

do fictício. No imaginário europeu dos séculos XV-XVI, a América passara a representar esse

papel. Se a inversão é uma operação de tradução que permite passar do mundo que se conta

ao mundo em que se conta, qual é o mundo que se conta? A América ou a Índia? Vejamos

como as gravuras operavam alguns elementos de inversão, tornando-as inteligíveis.

Se olharmos para Insulis Inventis (figura 1), vemos uma galé. Não era possível

atravessar o Atlântico com esse tipo de embarcação, mesmo assim o artista preferiu

representá-la para sugerir o “grande comércio e o “lucro” narrados por Colombo. Mais à cima

à direita, vemos dois homens em um pequeno barco. Provavelmente, o da esquerda é

Colombo oferecendo um presente a um nativo.

(figura 1) Cristóvão COLOMBO. De insulis inventis. Basileia, 1493 Xilogravura Coleção Brasiliana da Universidade de São Paulo, São Paulo

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Há um detalhe muito interessante nessa cena para o qual devemos prestar atenção: ele

e seu companheiro estão usando toucados orientais. Por que estes dois homens estão

“disfarçados” como mercadores asiáticos? Esta é uma curiosa inversão operada pelo mestre

gravador. A princípio, deveríamos pensar em uma relação dual entre espanhóis e indígenas.

Porém, a figura aponta para uma inversão e um terceiro elemento é inserido. Temos, agora,

três termos: os europeus, os indígenas e os mercadores asiáticos. As relações se tornam mais

complexas e se estabelecem da seguinte forma: entre indígenas e europeus, entre indígenas e

asiáticos, entre europeus e asiáticos.

A introdução do toucado oriental conferia a Colombo e seus marinheiros um aspecto

muito difundido pelas ilustrações que acompanhavam diversas narrativas de viagem. Também

instalava um processo de ambiguidade que tornaria os descobridores próximos e, ao mesmo

tempo, distantes dos indígenas.

No primeiro caso, dá-se um duplo programa de transformação. Ora, a expectativa de

Colombo era a de chegar à Ásia e estabelecer comércio com os súditos do Grande Khan, tal

qual Marco Polo. Nesse sentido, a artimanha do toucado oriental sugere que Colombo estaria

a ponto de realizar a mesma façanha do navegador veneziano. A aproximação é inevitável.

Como se pode notar, De Insulis Inventis parte do mesmo princípio das imagens que

ilustravam o manuscrito Devisement du Monde ou Le Livres des Merveilles, realizado em

Paris, ca. 1410-1412, que acompanhava a descrição que Marco Polo fez do efervescente

comércio de Curmos [Ormuz]11 (figura 2). Colombo “imita” Marco Polo e,

concomitantemente, os comerciantes asiáticos. O mesmo se esperava do comportamento dos

indígenas – leia-se, os habitantes das Índias Orientais, por quem são tomados. Daí a

aproximação dos três elementos: indígenas, europeus e asiáticos.

(figura2) Marco POLO. “Mercadores chegam a Curmos [Ormuz]” Le Devisement du Monde ou Le Livres des Merveilles. Manuscrito copiado em Paris, ca. 1410-1412. Iluminuras realizadas pelo Maître de la Mazarine e colaboradores. Biblioteca Nacional de França, Manuscrits, Français 2810 fol. 14v

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É exatamente nesse ponto que o distanciamento se instala. O comércio deveria inseri-

los em um mesmo sistema, mas não é o que acontece: os indígenas não oferecem qualquer

tipo de relação comercial como deles se esperava. Eles fogem. Cabe, então, a Colombo –

agora despido da aura do navegador veneziano – procurar estabelecer um tipo de comércio

pacífico com os desconhecidos habitantes das Índias.

A aproximação dos três elementos se desfez. A ilustração procura traduzir o momento

mesmo em que Colombo oferece algo aos nativos, como o navegador descrevera em seu

diário: “dei-lhes muitas coisas bonitas, para que se afeiçoassem a nós”. Era preciso conquistar

a afeição para depois estabelecer trocas comerciais. O que não era necessário entre

comerciantes europeus e asiáticos. A impressão subjetiva do testemunho visual dava espaço

a uma nova realidade. O processo de apreensão se dava de forma ficcionalizada, moldada por

topoi literários.

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(figura 3) Cristóvão COLOMBO. [Vulgarização de Giuliano Dati]. Storia della inventione delle nuove insule di Channaria indiane tracte duna pistola di Xpofano cholombo. Roma: Eucharius Silber, 15 de junho de 1493. Xilogravura Biblioteca Colombina, Sevilha

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Gostaria de comentar uma segunda imagem (figura 3) resultante da leitura do texto de

Colombo. Em junho de 1493, o poeta, humanista e teólogo Giovanni Dati traduziria para o

italiano a carta do Almirante. Dati produziu uma vulgarização, interferindo livremente no

texto original, suprimindo passagens inteiras e inventando outras novas. Em 15 de junho de

1493, a pedido de Giovanni Filippo de Lignamine (ca. 1428-?)12, Giovanni Dati traduziria

para o italiano a carta de Colombo. Essa versão seria conhecida como Storia della inventione

delle nuove insule di Channaria indiane tracte duna pistola di Xpofano cholombo. A

comissão e a impressão de Storia della inventione... coincidiram com a chegada em Roma de

uma embaixada espanhola, cuja missão era a de “conseguir a aprovação papal da tomada de

posse das ilhas recém descobertas”.13

Vemos, em primeiro plano, uma cidade europeia; à esquerda, o rei Fernando de

Aragão sentado em seu trono com o braço apontando para um grupo de indígenas enquanto

Colombo o observa de sua caravela. As várias cenas tentam condensar toda a narrativa do

Almirante.

Aqui, procurarei aplicar o mesmo procedimento de antes. Há um “sinal”14 muito

interessante na cena que retrata a primeira tentativa de fazer contato com os nativos. Essa

pista tem um papel de grande importância na análise, pois abre uma grande janela para

compreender a operação de tradução de Dati. As modificações do conteúdo informativo

operadas por Dati foram acompanhadas por modificações também na xilogravura;

provavelmente, o mestre gravador não tinha acesso à carta original para comparar os textos.

Na verdade, é um detalhe que acompanha a figuração de um dos indígenas na primeira fileira:

uma barba. Esse indício, que não correspondia com as observações de Colombo, revela como

imagem e texto estavam imbricados e procuravam cumprir uma mesma função expressiva.

Dati e o gravador estavam imbuídos do Pathosformel15, nos termos de Aby Warburg,

do mito do Homem e da Mulher Selvagens, transferidos para o Novo Mundo.16 Dati

procurava traduzir o Outro, da mesma forma que Colombo. Se na primeira imagem analisada,

a inversão de dava a partir do toucado oriental, agora ela se dava por analogia com o Outro

interno europeu. O programa de transformação não estava mais na analogia entre europeus e

comerciantes asiáticos frente aos nativos, mas nos ameríndios/homens selvagens frente aos

europeus. O esforço de interpretação/tradução de Dati levava-o a reproduzir uma imagem

mental acessível que se refletiu tanto na imagem literária como iconográfica. Os pré-conceitos

vieram a reboque.

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Colombo havia escrito para tornar o outro familiar, para localizar. Américo Vespúcio

fez o contrário: enfatizou tanto seu encontro com os “bárbaros” que os costumes dos nativos,

variado e diverso, não deixava espaço para o familiar ser aplicado. E aqui, gostaria de ampliar

minha análise para além da relação imagem/texto permeada por lugares da memória. Agora,

tenho em vista xilogravuras que demonstravam muito mais uma vontade de enunciar o Outro,

tendo como ponto de partida o relato em si, do que operar discursos embasados por topoi.

É o caso, por exemplo, da versão alemã da Lettera a Soderini de Américo Vespúcio,

publicada por Johannes Grüninger, em 1509, na cidade de Estrasburgo. Como vemos em

outras xilogravuras da Europa do Norte utilizadas para ilustrar os textos de Vespúcio, esta

edição procurou "tecer e costurar" diferentes pedaços da narrativa juntos, tentando montar

uma imagem visual do Novo Mundo.

Grüninger decidiu ilustrar as cenas mais chocantes narradas pelo florentino: a morte

trágica de um dos marinheiros. Três xilogravuras foram elaboradas por um mestre anônimo

especialmente para esta edição. Grüninger se destacava de seus pares por recusar-se a

reaproveitar matrizes de madeiras de outras edições17. Todas suas imagens eram “inéditas”.

Na primeira xilogravura (figura 4), vemos dois homens conversando: provavelmente

Vespúcio instruindo seu tripulante. Ato contínuo, no centro da imagem, o homem que

conversava com o Piloto Maior procura fazer contato com o grupo de indígenas (homens,

mulheres e crianças) que o observa de longe.

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(figura 4) Americo VESPUCCI. Diβ Büchlin Saget, wie die zwe durchleüchtigste herre her Fernandus K. zu Castilien und herr Emanuel K. zu Portugal haben das weyte mif ersuchet und findet vil Insuln, vnnd eine Nüve welt von wilden nacketen Leüten vormals vnbekant. Strasburg: Johannes Grüniger, 1509.

Na imagem seguinte (figura 5), o tripulante é atraído por três mulheres que o entretêm

enquanto outra se aproxima por trás, armada de uma clave com a qual matará o europeu. Na

terceira gravura (figura 6), o corpo do marinheiro já foi desmembrado por um homem com

um machado (diga-se de passagem, arma inexistente na América nesse período) que é

observado por uma mulher. A cena procurava inserir os indígenas em seu suposto cotidiano:

daí a representação das casas (em forma de sino, como descritas), do grupo na parte inferior

da imagem, do homem urinando em público sem qualquer constrangimento.

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(figura 5) (figura 6)

Muito já se disse sobre esse homem urinando em público. Estudiosos tendem a afirmar

que esse era um aspecto do comportamento do Homem Selvagem. Convém lembrar que

Vespucci era um homem educado, que freqüentava a corte dos Medici. Sua escrita estava

totalmente permeada pelos códigos sociais de comportamento que vinham sendo inseridos

paulatinamente nas sociedades europeias no início da Era Moderna18. Por isso deixava

entrever as mudanças da fronteira do embaraço frente à exibição pública das funções

corporais.19 Fazer necessidades em público não era uma prerrogativa dos nativos,. Portanto,

não vejo a descrição do homem urinando como um efeito sensacionalista. Pelo contrário, era

uma observação etnográfica, bem como quaisquer outras encontradas no texto.

Eu concordo com o historiador catalão Joan-Pau Rubiés, para quem a diversidade e a

riqueza da etnografia da Renascença exigem precauções contra possíveis generalizações.20 No

entanto, não estou dizendo que deveríamos ignorar alguns elementos tradicionais. É claro que

essas imagens foram permeadas por lugares de memória e, para usar um termo de Frances

Yates, imagines agentes21 do Paraíso, da Queda e do mito do Homem Selvagem. A estes eu

acrescentaria outros. Por exemplo, em relação à imagem do canibalismo, eu gostaria de citar

cenas de martírio e de certos aspectos de um modelo culinário tipicamente europeu.

No entanto, a imagem de Grüninger abre a possibilidade para outras leituras, bem

diferente do obtido a partir das xilogravuras impressas junto com as cartas de Colombo e

Vespúcio. Apesar de todos os elementos em jogo que criaram uma imagem distorcida dos

indígenas, percebo muito mais uma vontade de trabalhar seguindo os escritos do que uma

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dificuldade em apreender a alteridade. No limite, cabia aos leitores realizar os procedimentos

de aproximação entre as narrativas e as subjetividades.

1 Esta comunicação apresenta parte da minha pesquisa de doutorado em História, cujo tema é

a construção da imagem visual da América ao longo do século XVI.

2 Além da elite e dos letrados, há que se pensar em uma clientela de leitores populares

razoavelmente ampla. Nesse sentido, seguimos os termos de Roger Chartier, para quem os

“leitores populares” eram camponeses, trabalhadores e mestres de ofício, comerciantes,

burgueses, artesãos, lojistas. Ou seja, “todos aquellos que no pertenecen a ninguna de las

tres togas (para usar una expresión de Daniel Roche): la toga negra, es decir, los curas; la

toga corta, es decir, los nobles; la toga larga, es decir el mundo numeroso y diverso de los

oficiales, grandes o pequeños, de los abogados y procuradores, de las gentes de pluma, a las

que hy que añadir esos otros doctos, también portadores de toga, que son los hombres de

medicina.”CHARTIER, Roger. “Estrategias editoriales y lecturas populares, 1530-1660”. In:

Libros, lecturas y lectores en la Edad Moderna. Madrid: Alianza Editorial, 1994, p. 94.

3 Neste caso, o artista exercia, ao mesmo tempo, dois papéis: o de agente, que produz sua obra

para criar uma experiência na mente do observador, e o de espectador, pois é ele o primeiro a

absorver o resultado dessa operação.

4 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço

Provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.23, n°45, pp. 11-

36, 2003.

5 BASCHET, Jérôme. Inventivité et sérialité des images médiévales. Pour une approche

iconographique élargie. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 51e Année, No. 1 (Jan. - Feb.,

1996), pp. 93-133.

6 STURTEVANT, William C. “First Visual Images of Native America”. In: CHIAPELLI,

Fredi (ed.). First Images of America. 2 vols. Berkeley: University of California Press, 1976,

pp. 417-419.

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7 ELLIOTT, John H. El Viejo Mundo y el Nuevo. Madri: Alianza Editorial, 2000.

8 Faz-se necessário um rápido esclarecimento sobre como são compreendidos os termos

imagem, imagem visual e imagem mental. A palavra imagem é ambígua: serve tanto para

definir a “representação gráfica, plástica ou fotográfica de pessoa ou de objeto”; assim como a

“representação mental de um objeto, de uma impressão”, “produto da imaginação, consciente

ou inconsciente; visão”. Sem a pretensão de esgotar as problemáticas relacionadas a tais

conceitos, entendo que uma imagem pode ser construída entre a aparência e o ser, entre uma

representação mental e o meio a partir do qual ela se manifesta. Para este trabalho, adoto a

abordagem de W.J.T. Mitchell, em que a imagem é pensada a partir de duas formas distintas:

entre um objeto concreto (pintura, escultura, gravura, etc.) derivado de um ato deliberado de

representação e o mental, menos voluntário, “entidade imaginária, uma imago psicológica, o

conteúdo dos sonhos, memórias e percepção”. A primeira chamaremos de “imagem visual”, a

segunda “imagem mental”. Ver: MITCHELL, W.J.T. What do pictures want? The lives and

loves of images.Chicago: The University of Chicago Press, 2005, p.2; MITCHELL, W.J.T.

Picture Theory. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1994, p. 4.

9 COLOMBO, CRISTÓVÃO. De insulis inventis Basileia, 1493(a). Xilogravura. Coleção

Brasiliana da Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em:

<http://www.brasiliana.usp.br/bbd/bitstream/handle/1918/00623500/006235_COMPLETO.pd

f. > Acesso em 10 de março de 2010.

10 HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do Outro. Belo

Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 230.

11 “On arrive alors à la mer Océane. Sur ses rives, il y a la cité de Curmos, avec son port. Les

bateaux y abordent chargés d'épices, de pierres précieuses, de perles, d'étoffes d'or et de soie,

de dents d'éléphants et de bien d'autres marchandises. Les marchands les vendent à d'autres

marchands qui eux-mêmes vont en faire commerce à travers le vaste monde. Curmos est une

ville très commerçante. D'elle dépendent de nombreuses cités et châteaux. Elle est la capitale

du royaume.” In : POLO, Marco. “Mercadores chegam a Curmos [Ormuz]”. In: Le

Devisement du Monde ou Le Livres des Merveilles. Manuscrito copiado em Paris, ca. 1410-

1412. Iluminuras realizadas pelo Maître de la Mazarine e colaboradores. Biblioteca Nacional

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de França, Manuscrits, Français 2810 fol. 14v. Disponível em:

<http://expositions.bnf.fr/livres/polo/index.htm> Acesso em 19 de maio de 2010.

12 Giovanni Filippo de Lignamine, nascido em Messina, foi um impressor ativo em Roma

entre 1469 e 1481. Em 1493, Lignamine era um “domestico familiare dell’illustrissimo Re di

Spagna christianissimo”, como aponta o colofão da carta.

13 WAWOR, Gerhard. “La visión del Nuevo Mundo: Cristóbal Colón, Giuliano Dati, Pedro

Mártir”. In: KOHUT, Karl e ROSE, Sonia V. (Eds.). Pensamiento europeo y cultura colonial.

Textos y estudios coloniales y de la independencia, vol. 4. Frankfurt Am Main: Vervuert

Verlag/ Madrid: Iberoamericana, 1997, p. 303.

14 GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma científico”. In: Mitos, emblemas,

sinais. Morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, pp 143-179.

15 WARBURG, Aby. La Rinascita del Paganesimo Antico. Contributi alla storia della

cultura. Firenze, La Nuova Italia, 1966.

16 BARTRA, Roger. Wild Men in the Looking Glass. Ann Arbor: University of Michigan

Press, 1994; BERNHEIMER, Richard. Wild Men in the Middle Ages. A study in art,

sentiment and demonology. New York: Octagon Book, 1979; WHITE, Hayden. “As formas

do estado selvagem. Arqueologia de uma idéia”. In: Trópicos do Discurso. Ensaios sobre a

crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1994.

17 COLIN, Susi. “The Wild Man and the Indian in Early 16th Century Book Illustration”. In:

FEEST, Christian (ed.). Indians & Europe. An interdisciplinary collection of essays. Alano

Verlag, 1989, p. 16; BIETENHOLZ, Peter G. e DEUTSCHER, Thomas B. Contemporaries of

Erasmus. A Biographical Register of the Renaissance and Reformation. Toronto: University

of Toronto Press, 1995, p. 140.

18 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Editor, 1990, pp.135-136.

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19 “E, quando vão evacuar – que eu o diga com todo respeito - , contraídos, fazem tudo para

que ninguém os veja: mas o quanto nisso são decentes, ao urinar mostram-se sujos e

desavergonhados, tanto homens quanto mulheres, pois de fato muitas vezes vimos que,

estando a falar conosco, em nossa presença urinavam de modo muitíssimo despudorado.” In:

VESPÚCIO, Américo. Novo Mundo. As cartas que batizaram a América. Tradução das cartas:

Janaína Amado, Luiz Carlos Figueiredo e João Ângelo Oliva Neto. São Paulo: Editora

Planeta do Brasil, 2003, p. 74.

20 RUBIÉS, Joan-Pau. “Imagen mental e imagen artística en la representación de los pueblos

no europeos. Salvajes y civilizados, 1500-1650”. In: PALOS, Joan Lluís y CARRIÓ-

INVERNIZZI, Diana (dirs.). La historia imaginada. Construcciones visuales del pasado en la

Edad Moderna. Madri: Centro de Estudios Europa Hispánica, 2008, pp. 327-357.

21 YATES, Frances A. A Arte da Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 103.

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