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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Natal – RN – 02 a 04/07/2015 1 A Contradição da Morte na Sociedade Moderna: Rejeição da Finitude, Privação do Luto no Cotidiano e o Espetáculo no Jornal Impresso 1 Elenilda Dias de Souza CARLOS 2 Marcília Luzia Gomes da Costa MENDES 3 Maria Cristina Rocha BARRETO 4 Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, RN Resumo Este trabalho busca compreender de que maneira a sociedade moderna lida com a morte e com o luto em seu dia a dia, e com a presença frequente destes temas nos conteúdos midiáticos. Partindo do pressuposto de que a morte é tratada como espetáculo nas produções jornalísticas, e utilizando a AD de orientação francesa como método de análise, o corpus discursivo é composto por quatro publicações do jornal O Mossoroense, na cobertura do assassinato da menina Cínthia Lívia, na cidade de Tibau/RN. Palavras-chave Morte; Luto; Espetáculo; Jornal Impresso; Discurso. Introdução A morte é, talvez, um dos maiores tabus da saciedade moderna. Pode-se observar que em seu cotidiano, as pessoas fogem deste assunto e repelem a expressão de emoções e sentimentos ligados à ideia de perda e da finitude humana. O presente trabalho procura observar como a morte e o luto são tratados na sociedade atual, a partir de um pressuposto de que nos dias atuais as pessoas, pautadas por um discurso de felicidade, têm evitado e ignorado cada vez mais o sofrimento alheio e o próprio. Procura-se também analisar como a morte e o luto são abordados no discurso jornalístico, partindo da hipótese de que nas publicações midiáticas a morte e o luto são representados de forma espetacularizada. O estudo será realizado a partir da Análise do Discurso de orientação francesa, buscando demonstrar como a mídia constrói os discursos acerca da morte em suas 1 Trabalho apresentado no DT 1 Jornalismo do XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste Natal RN 02 a 04/07/2015 2 Estudante do Programa de mestrado em Ciências Sociais e Humanas da UERN, e-mail: [email protected] 3 Docente do Programa de mestrado em Ciências Sociais e Humanas da UERN, e-mail: [email protected] 4 Docente do Programa de mestrado em Ciências Sociais e Humanas da UERN, e-mail: [email protected]

A Contradição da Morte na Sociedade Moderna: Rejeição da ... · A morte, apesar de causar desconforto, é um tema que, por mais que se tente, não se pode fugir dele o tempo todo

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A Contradição da Morte na Sociedade Moderna: Rejeição da Finitude, Privação

do Luto no Cotidiano e o Espetáculo no Jornal Impresso1

Elenilda Dias de Souza CARLOS2

Marcília Luzia Gomes da Costa MENDES3

Maria Cristina Rocha BARRETO4

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, RN

Resumo

Este trabalho busca compreender de que maneira a sociedade moderna lida com a morte

e com o luto em seu dia a dia, e com a presença frequente destes temas nos conteúdos

midiáticos. Partindo do pressuposto de que a morte é tratada como espetáculo nas

produções jornalísticas, e utilizando a AD de orientação francesa como método de análise,

o corpus discursivo é composto por quatro publicações do jornal O Mossoroense, na

cobertura do assassinato da menina Cínthia Lívia, na cidade de Tibau/RN.

Palavras-chave

Morte; Luto; Espetáculo; Jornal Impresso; Discurso.

Introdução

A morte é, talvez, um dos maiores tabus da saciedade moderna. Pode-se observar

que em seu cotidiano, as pessoas fogem deste assunto e repelem a expressão de emoções

e sentimentos ligados à ideia de perda e da finitude humana. O presente trabalho procura

observar como a morte e o luto são tratados na sociedade atual, a partir de um pressuposto

de que nos dias atuais as pessoas, pautadas por um discurso de felicidade, têm evitado e

ignorado cada vez mais o sofrimento alheio e o próprio. Procura-se também analisar como

a morte e o luto são abordados no discurso jornalístico, partindo da hipótese de que nas

publicações midiáticas a morte e o luto são representados de forma espetacularizada.

O estudo será realizado a partir da Análise do Discurso de orientação francesa,

buscando demonstrar como a mídia constrói os discursos acerca da morte em suas

1 Trabalho apresentado no DT 1 – Jornalismo do XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Natal – RN – 02 a 04/07/2015 2 Estudante do Programa de mestrado em Ciências Sociais e Humanas da UERN, e-mail: [email protected] 3 Docente do Programa de mestrado em Ciências Sociais e Humanas da UERN, e-mail: [email protected] 4 Docente do Programa de mestrado em Ciências Sociais e Humanas da UERN, e-mail: [email protected]

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produções. O foco da análise será a cobertura feita pelo jornal O Mossoroense sobre o

caso da morte da menina Cínthia Lívia, assassinada em julho de 2012, na cidade de Tibau,

RN. O corpus discursivo é composto por quatro publicações do jornal no referido mês,

buscando além de observar como os discursos são construídos, identificar também se

esses discursos se apresentam de maneira espetacularizada.

Por fim, buscam-se ainda, a partir das hipóteses aqui levantadas, apontamentos

sobre uma possível “incoerência” no comportamento de indivíduos que rejeitam a morte

em suas rotinas, mas a consomem como espetáculo através dos jornais.

1- A morte e o luto sob a ótica sociológica

A morte, apesar de causar desconforto, é um tema que, por mais que se tente, não

se pode fugir dele o tempo todo. Castells (2005, p. 544) reforça que “a morte é e foi o

tema central das culturas ao longo da história, seja reverenciada como a vontade de Deus,

seja afrontada como o último desafio humano”. Entretanto, o homem vem buscando, cada

vez mais, não se deparar com o assunto, evitando falar, reduzindo rituais, e isolando a si

mesmo e aos outros em seus processos de luto. “Quando retrocedemos no tempo e

estudamos culturas e povos antigos, temos a impressão de que o homem sempre

abominou a morte e, provavelmente, sempre a repelirá” (KÜBLER-ROSS, 1998, p. 14).

A maneira de reagir perante a morte e às emoções a ela relacionadas varia de

acordo com cada sociedade e de acordo com a época. Rezende (2010) demonstra que os

sentimentos são tributários das relações sociais e do contexto cultural em que emergem.

Segundo Koury (2003) as formas de lidar com a morte e o morrer na nossa sociedade

passaram por grandes transformações no século XX. Se antes uma boa morte era a morte

esperada, a morte que permitisse ao moribundo se despedir de todos os seus entes

queridos e se arrepender de seus erros, com os avanços da medicina, essa aceitação deu

lugar a uma batalha incessável até o último instante, batalha essa que confina o enfermo

nos hospitais, afasta-o de sua família, e o condena a uma morte solitária. Além disso, o

surgimento de doenças contagiosas e epidemias transformaram a morte em questão

sanitária no Brasil urbano. As emoções em torno da morte passam, então, por um

processo de mudanças. De acordo com Solomon (2001), as emoções são julgamentos. A

causa de uma emoção é um fato. As emoções mudam com o nosso conhecimento das

causas dessas emoções. O conhecimento do risco à própria saúde ao ter contato com o

morto começa a afastá-lo da presença dos vivos.

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Em sua pesquisa, Koury (2003) demonstra que no Brasil essas mudanças

começaram a acontecer na década de 50 do século XX. As sociedades industrializadas e

o crescimento da população urbana simplificaram os rituais funerários, o corpo do morto

deixou de ser velado em casa, os longos cortejos deixaram de ser praticados, os rituais

religiosos passaram a ser suprimidos, e com isso veio também o abandono das expressões

públicas de sofrimento. “A morte parece ter se tornado um tabu, uma coisa inominável,

na qual não se deve falar em público nem tampouco obrigar os outros a fazê-lo”

(KOURY, 2003, p. 55).

Ao falar sobre as reações do homem perante a morte, Ariès (2000) comenta que

antigamente morria-se sempre em público. As pessoas se reuniam para se despedir do

moribundo. Porém, segundo o autor, a morte foi retirada do dia a dia das sociedades

modernas, banida da vida cotidiana. “O distanciamento em relação ao morto e às pessoas

que o perderam parece ser a característica principal da nova sensibilidade que começa a

tomar forma, mais e mais nítida, na sociedade brasileira urbana dos últimos anos”

(KOURY, 2003, p. 21).

Toda essa rejeição pode estar ligada também ao medo que o homem tem de sofrer

e de expor que está sofrendo. As pessoas, em seu dia a dia, não querem saber das tristezas

das outras, pois estão engajadas em livrar-se de suas próprias amarguras. Vivemos em

uma época dominada pelos discursos da felicidade como um direito e quase como uma

obrigação. O indivíduo tem o direito e a necessidade de ser feliz o tempo todo e deve

esconder sua tristeza, seus sofrimentos, suas dores e o luto, para não contagiar os outros.

“Podemos ser felizes, seremos felizes, devíamos ser felizes. Temos o direito à felicidade.

Este é, com certeza, o nosso credo moderno” (MACMAHON, 2006, p. 12).

Diante dessa “obrigação” de ser feliz, a morte é cada vez mais rejeitada. Castells

(2005, p. 544), explica que essa “é uma característica distinta de nossa nova cultura, a

tentativa de banir a morte de nossa vida”. O autor comenta ainda que a morte está fora de

moda e que a privação ao luto é o preço a se pagar para alcançar a ideia de eternidade de

nossa existência.

Podemos evidenciar a morte como um assunto desagradável e delicado ao

observarmos o trabalho de Kübler-Ross (1998), intitulado Sobre a morte e o morrer, no

qual a autora relata a respeito das dificuldades de se falar com as crianças sobre este

assunto, e que os parentes, muitas vezes, usam de eufemismos, criando pequenas fábulas

(“vovô está num lugar melhor, descansando em um jardim florido com os anjos”) para

evitar falar abertamente sobre o que aconteceu. As leituras sobre o tema revelam que a

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necessidade de fugir ou mascarar a realidade sobre a morte não estão presentes apenas na

fase da infância. De uma maneira geral, a morte não é um tema que agrada e por isso, é

evitado; e o sofrimento pela perda não é bem-vindo nos lugares públicos.

2- A espetacularização da morte

Contraditoriamente ao que foi visto no tópico anterior, apesar de repelir a morte

de suas vidas e de rejeitar a expressão das emoções do luto em seu cotidiano, as

sociedades modernas são, ao mesmo tempo, audiência para os grandes espetáculos

midiáticos sobre a morte envolvendo pessoas desconhecidas. A morte está presente na

mídia e tem um lugar de destaque nas grandes coberturas, principalmente no que se refere

às celebridades, grandes autoridades, casos polêmicos, singulares, que envolvam grande

violência ou injustiças. É possível encontrar variados tipos de mortos nas páginas dos

jornais impressos, como: “os mortos acidentais; os mortos dos conflitos, das guerras e das

revoluções, que passam a fazer parte da história; e o Grande Morto, que se destaca pelo

seu nome, pela sua fama” (NEGRINI, 2011, p. 05).

Em sua obra A Sociedade do Espetáculo, Debord (2003, p. 13) explica que “toda

a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia

como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai

na fumaça da representação”. O conceito de espetáculo tem relação com a representação

e, no caso do espetáculo midiático, com o sensacionalismo. Ainda de acordo com o que

ressalta Debord (2003, p. 16) “o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de

toda a vida humana, socialmente falando, como simples aparência”.

Em nossa sociedade, os meios de comunicação de massa utilizam-se de aspectos

da realidade, produzindo, selecionando, excluindo e transformando-os, reproduzindo

parcialmente essa realidade e formando a opinião pública (PACHECO, 2005). O

espetáculo midiático alcança grandes públicos e um dos seus principais componentes é o

sensacionalismo. Pacheco (2005, p. 11) ressalta que “o sensacionalismo na mídia não é

novidade, desde o século passado os meios de comunicação têm explorado

acontecimentos com conteúdos apelativos, com matérias capazes de emocionar ou

escandalizar”. Os conteúdos espetacularizados têm o poder de mexer com as emoções do

público, recorrendo, muitas vezes, a temas de cunho emocional, pessoal e dramático.

Embora não seja um termo abordado apenas no âmbito das produções midiáticas,

o conceito de espetáculo hoje se encontra significativamente associado aos campos

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cultural e midiático (Rubim, 2002). A tradição desse tipo de produção nos conteúdos

jornalísticos é antiga, e ganhou força com os chamados “jornais populares” que faziam

sucesso na França no século XIX. Segundo Pacheco (2005, p. 11), “por relatarem fatos

mais chocantes, eram os mais procurados pela população da época. Ao longo do tempo,

o mesmo modelo de fazer notícia foi ganhando força e atualmente é utilizado por parte

dos meios de comunicação”.

A forma como a morte é representada na cobertura jornalística é repleta de

imagens fortes, com grande apelo emocional, que visam mexer com as emoções do

público, e chamar sua atenção para o fato. A espetacularização dos fatos noticiosos na

mídia reflete uma busca por prender o espectador, dando prioridade ao insólito, ao

excepcional e ao chocante (Canavilhas, 2001).

No impresso, não raras vezes, a morte é o tema central das publicações, com

destaque nos cadernos de polícia e nas capas dos jornais. E se este tema continua sendo

abordado de forma tão intensa, pode-se supor que existe um público consumidor desse

tipo de informação. Requena (1999) afirma que o espetáculo consiste da relação dialética

entre dois fatores: a atividade oferecida e um determinado sujeito que a contempla. Deste

modo, podemos dizer que se os espetáculos são produzidos, é porque existe uma demanda

por parte do público. Negrini (2011, p. 03) afirma que “os espetáculos de violência e

morte são atrativos ao grande público. [...] mesmo os que dizem não gostar de violência

acabam sendo atraídos por contemplá-la nos meios de comunicação e acabam se

interessando por notícias com este conteúdo”.

Esta afirmação pode se tornar ainda mais válida se for levado em conta o sucesso

dos blogs especializados em casos de polícia, que expõem as tragédias sem censuras, sem

delicadeza, que estampam suas publicações com a morte em suas mais variadas formas,

apresentando imagens de casos de violência e brutalidade contra as vítimas. “É

característica do espetáculo que a realidade seja levada para a cena de forma dura, nua e

crua. Assim, quanto mais completa, global e natural for o real que o público vai ter acesso,

maior será a probabilidade do noticiário de captar audiência” (NEGRINI, 2011).

Apesar de não abordar o tema de maneira tão dura quanto os blogs, o jornal

impresso apela para outros artifícios para chamar a atenção, substituindo o excesso de

sangue, pelas lágrimas, pela comoção pública, pela exposição do sofrimento, este mesmo

sofrimento com o qual o homem se nega a deparar-se em sua vida cotidiana.

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3- O discurso jornalístico sobre a morte: O Mossoroense e o caso Cínthia Lívia

Como enfoque para a análise deste trabalho, o corpus discursivo é composto por

quatro matérias publicadas no jornal O Mossoroense, na cobertura do caso da morte da

menina Cínthia Lívia, assassinada após tentativa de estupro na cidade de Tibau/RN, em

julho de 2012. Entre os conteúdos analisados estão três capas e uma publicação no

caderno de polícia. A análise será centrada nas imagens e nas manchetes, considerando

que são os elementos que mais chamam a atenção do público.

O caso da menina Cínthia Lívia ganhou grande repercussão no Rio Grande do

Norte devido à forma como a garota foi morta. Um conhecido da família estrangulou a

criança de 12 anos após tentativa de estupro e jogou o corpo dentro de um poço, em uma

casa que costumava ser alugada por temporada na cidade praiana onde os envolvidos

moravam e na ocasião não havia ninguém ocupando o imóvel. O desaparecimento de

Cínthia Lívia ocorreu no sábado, 21 de julho de 2012, o fato foi noticiado pela mídia no

dia 24. E só no dia 26 foi que moradores da cidade, curiosos com o mau cheiro vindo da

casa, encontraram o corpo da garota. Após investigações, a polícia identificou o assassino,

um conhecido da família de Cínthia, que, segundo as reportagens divulgadas em O

Mossoroense, tinha a confiança da vítima, e depois de interrogado, confessou o crime.

A cobertura feita pelo jornal teve início com o desaparecimento da criança. No dia

24 de julho de 2012 foi publicada uma foto da menina em sua capa comunicando o fato:

Imagem 1 - O Mossoroense, 24 de Julho de 2012

A notícia repercutiu em outros jornais, em alguns blogs e programas de TV. A

imprensa potiguar ajudou nas buscas por informações sobre o paradeiro da menina até o

dia 26 de julho, quando o corpo de Cínthia foi encontrado. No dia seguinte o assunto foi

destaque em O Mossoroense que trazia em sua capa a foto da garota, publicada

anteriormente, a foto do acusado pelo assassinato com o rosto coberto e uma foto grande

do local onde o corpo foi encontrado, na qual observam-se o carro do Instituto Técnico-

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Científico de Polícia (ITEP) e homens do corpo de bombeiros, alguns deles, com

máscaras de oxigênio para que pudessem fazer a remoção do corpo já em estado de

decomposição. Na manchete desta edição, o jornal dá destaque para um suposto

envolvimento amoroso entre a mãe da vítima e o assassino.

Imagem 2 - O Mossoroense, 27 de Julho de 2012

Dando sequência à cobertura do caso, no dia 28 de Julho de 2012 o jornal traz o

assunto mais uma vez como tema central de sua publicação. Desta vez, uma série de

imagens apresentam ao público a comoção da família e o impacto que o caso provocou

na pequena cidade de Tibau. A capa desta edição apresenta um resumo cronológico dos

fatos que aconteceram após a morte da garota. Com isso, pode-se identificar traços de

uma representação espetacularizada, segundo Negrini (2011), a espetacularização é uma

forma de repassar ao público as ilusões de que estão acompanhando o fato jornalístico em

sua essência. A autora complementa dizendo que “o detalhamento da informação sobre a

mortalidade, com a explicitação de minúcias de como a morte ocorreu, também é uma

forma espetacular de chamar a atenção do público” (NEGRINI, 2005, p. 09).

A primeira imagem mostra ao centro um pequeno caixão branco, a população,

familiares e amigos reunidos para o sepultamento de Cínthia. A segunda imagem é

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posterior a do sepultamento e apresenta um grupo de moradores da cidade derrubando o

muro da casa de Poliano Cantareli, autor do crime. Na terceira foto a população revoltada

ateia fogo na casa do assassino, e na quarta e última fotografia (a de maior destaque)

pode-se ver a casa quase completamente destruída, um grupo de pessoas que observa o

local e algumas pessoas que ainda atiram pedras nos escombros. O jornal faz questão de

frisar que apesar do ato revoltoso, a família de Poliano não estava mais no local e ninguém

se feriu durante a ação.

Imagem 3 - O Mossoroense, 28 de Julho de 2012 Imagem 4 - O Mossoroense, 28 de Julho de 2012

Imagem 5 - O Mossoroense, 28 de Julho de 2012 Imagem 6 - O Mossoroense, 28 de Julho de 2012

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Imagem 7 - O Mossoroense, 28 de Julho de 2012

O discurso produzido por essa sequência de imagens aciona as emoções do

público, podendo despertar sentimentos de compaixão e solidariedade com a família da

vítima, tristeza pela forma trágica como a criança foi morta, revolta contra o assassino e

por fim, a sensação de que algum tipo de vingança ou justiça foi praticada pelos

moradores ao destruírem a casa do assassino. O discurso do jornal preza pela isenção da

população revoltada, colocando-a como justiceira e frisando que os danos cometidos

foram apenas materiais, já que o imóvel estava vazio e ninguém se feriu com a ação do

grupo.

Para finalizar a série de reportagens, O Mossoroense traz na última edição do mês

de julho uma matéria sobre o desdobramento do caso no caderno de polícia. Passada quase

uma semana, o assunto já não ganha grande destaque na capa do jornal. O conteúdo

apresenta especulações sobre suposto envolvimento amoroso da mãe e da irmã da vítima

com o assassino. A manchete principal dá destaque para a versão das duas mulheres que

negam o relacionamento com Poliano Cantareli, que aparece em uma fotografia, desta

vez com o rosto revelado ao público, e ao lado da foto dele, a mesma foto da garota que

vinha sendo veiculada em publicações anteriores.

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Imagem 8 - O Mossoroense, 31 de Julho de 2012

O jornal já havia falado sobre o suposto envolvimento amoroso na publicação do

dia 27 de Julho, na qual afirmava em sua capa que o assassino era um “ex-amante” da

mãe de Cínthia. No dia 31, mais uma vez, a vida pessoal das pessoas envolvidas é exposta

e especulada nas páginas do periódico.

Considerações finais

O presente trabalho buscou analisar como o tema sobre a morte e o luto é tratado

na sociedade atual e como este mesmo tema é abordado no discurso jornalístico, partindo

da hipótese de que nas publicações midiáticas a morte e o luto são representados de forma

espetacularizada. Buscaram-se ainda apontamentos sobre a “incoerência” no

comportamento de indivíduos que rejeitam a morte em suas rotinas, mas a consomem

como espetáculo através dos jornais. Para que a análise pudesse ser realizada, o corpus

discursivo selecionado foi composto por quatro edições do jornal O Mossoroense, sobre

o caso do assassinato da menina Cínthia Lívia, na cidade de Tibau/RN, em julho de 2012.

A partir do pensamento de autores como Koury (2003), Castells (2005), Kübler-

Ross (1998), entre outros, demonstrou-se que na sociedade moderna o tema da morte é

evitado, os rituais funerários e os processos de luto foram reduzidos, a morte se tornou

uma questão sanitária devido às doenças que surgiram no século XX, os avanços da

medicina fizeram com que houvesse uma maior resistência à morte, o que resulta em um

número maior de pessoas que morrem solitárias nos hospitais, internadas até o último

suspiro numa luta incessável pela vida. Além disso, a sociedade moderna, pautada por

um discurso de felicidade, evita falar sobre a morte e rejeita o luto, que se torna cada dia

mais, um processo de sofrimento silencioso e solitário.

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Observou-se também que a representação da morte no jornal impresso é feita de

maneira espetacularizada, com conteúdos que remetem ao sensacionalismo, com grandes

coberturas, e grandes espetáculos montados em cima do desdobramento dos casos, com

sequências de reportagens que se utilizam de conteúdos chocantes e de cunho dramático

para envolver o público e mexer com suas emoções.

Para demonstrar como a morte espetacularizada é representada no jornal impresso,

foram analisadas quatro edições do jornal O Mossoroense acerca da cobertura do caso da

morte da menina Cínthia Lívia. Baseando-se em Debord (2003) e Negrini (2011),

constatou-se que o discurso produzido pelo jornal espetaculariza os acontecimentos

através da exploração de sentimentos, exposição da intimidade das pessoas envolvidas,

riqueza de detalhes, cobertura repetitiva com foco no desenrolar da história, demonstração

das emoções e dos efeitos que o caso provocou na população da cidade de Tibau, e

exposição dos dramas humanos. Além disso, sendo O Mossoroense o jornal mais antigo

do estado ainda em circulação, diante de seu alcance e de sua credibilidade, o espetáculo

é reforçado com grande propagação em todo o interior do estado do Rio Grande do Norte.

O que se observa até aqui, é que as mesmas pessoas que repelem a morte, que

evitam o luto, que se negam a falar sobre o tema, que não querem aceitá-la em suas vidas,

assistem, mantendo uma certa distância, a espetáculos midiáticos que retratam a morte de

outras pessoas, pessoas desconhecidas, distantes de suas realidades, e talvez por isso, o

tema não pareça tão indesejado assim, tendo estas pessoas a possibilidade de desligar a

TV, fechar a página de internet, deixar o jornal de lado e ignorar o tema na hora que

tiverem vontade, não sendo, deste modo, obrigadas a lidar com estes fatos quando eles

estiverem causando incômodo.

Esta constatação pode ser reforçada através das palavras de Castells (2005) de que

diante da necessidade entre os indivíduos modernos de apagar a morte de suas vidas, a

representação repetitiva feita através da mídia, abordando a morte do outro contribui para

que ela – a morte – se torne inexpressiva, de um modo que a exposição da morte do outro

contribua para um afastamento da ideia que o indivíduo possa ter de sua própria morte.

Por fim, com base no que diz Kübler-Ross (1998), pode-se afirmar que em seu

inconsciente, o homem não pode conceber a ideia de sua própria morte e por isso, acaba

acreditando em sua imortalidade. Deste modo, a cobertura midiática sobre a morte do

outro é aceitável como uma forma de confirmação dessa crença inconsciente na própria

imortalidade, onde o indivíduo se alegra e suspira aliviado diante da tragédia alheia:

“ainda bem que não fui eu”.

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Referências

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