A Cor Do Sangue-Brian Moore

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reflexões sobre a existência, a descendência e a vida.

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A Cor do Sangue

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A Cor do SangueBrian Moore

1O carro que o conduzia de regresso residncia entrou na Praa da Proclamao entre as nove e as nove e um quarto. No olhara para o relgio desde que sara da reunio. Caa um aguaceiro de Vero. Na praa, as esttuas, telhados e edifcios estavam lustrosos de umidade e o pavimento reluzia. Acendeu o candeeiro de pilha sobre o dossi e leu no as notas que tirara mas um pequeno livrinho de Bernardo de Claraval."No pensais que um homem nascido com razo, mas que no viva, porm, de acordo com ela, no pior, em certo sentido, do que os prprios animais? Porque o animal no se orienta pela razo e tem desculpa, j que este dom lhe negado pela natureza."s vezes, ao ler S. Bernardo conseguia abstrair-se do mundo dos seus deveres e retirar-se para aquele silncio, onde Deus espera e julga. Naquele momento, reparou num carro preto que avanava muito prximo do seu. Voltou-se para olhar. Ao volante ia uma mulher com um leno de seda verde na cabea. A seu lado um homem de barba, que segurava uma pistola, ergueu-a e apontou para ele. Nesse momento, Joseph, o motorista, rodou o volante, indo chocar propositadamente com o carro preto. Atirado de um lado para o outro, como se estivesse dentro de uma centrfuga, foi sacudido, cuspido e lanado violentamente contra o pavimento molhado. Ficou bastante tempo estendido, num atordoamento doloroso, olhando fixamente a irresistvel escurido do cu.Soavam buzinas. Ouviu passos de corrida. Sobre ele, olhando-o, viu uma jovem de leno de seda verde na cabea e rosto a sangrar, salpicado de estilhaos de vidro. Ergueu-se at ficar sentado e viu-lhe uma enorme mancha escura na coxa, no stio em que o sangue lhe repassara o vestido. Est bem? - perguntou disparatadamente. Est ferida?Ela no respondeu. Virou-se e afastou-se rapidamente, a coxear, em direo da Rua do Mercado. O trnsito que entrava na praa abrandava e parava atrado pelo desastre. Ps-se de p e sentiu-se tonto. Quando a viso se tornou mais ntida viu um homem de meia-idade olhando-o, fixamente, de um carro. Est... - o homem hesitou, como se procurasse um nome para lhe chamar. Est bem... Reverncia?Respondeu com um sinal afirmativo. Dirigiu-se para os destroos. Alguns homens estavam a tentar separar o carro preto do seu velho Mercedes. Um deles, um polcia, gritou: Todos juntos! Um... dois... agora!Os carros separaram-se com um som feio.Olhou para os destroos. Estava habituado morte. Fazia parte do seu dia-a-dia. Conhecia o momento exato da sua chegada, o momento da partida da alma. O corpo de Joseph estava todo partido, com um brao mole a sair da manga da farda, uma perna torcida e um p voltado para trs. Mas no tinha o rosto ferido. Estava plido e composto, como se um hbil cirurgio lhe tivesse tirado a conscincia. No momento em que os seus lbios murmuravam palavras de orao, soube que fora negado a Joseph aquilo que ele mais desejara: o conforto dos ltimos sacramentos.A lanterna do polcia desenhou no cho uma linha irregular, lanando um claro cor de laranja no espao, enquanto se desviava do corpo de Joseph para o de outro indivduo. O homem fora retirado dos destroos do carro preto e colocado no meio do foco dos faris. Pequeninos estilhaos de vidro, brilhantes como jias, cintilavam-lhe no rosto barbudo e no nariz ensangentado. Ao inclinar-se sobre ele sentiu um forte cheiro a vodca. Consegue ouvir-me? perguntou.O rosto desfigurado voltou-se para ele, de olhos esbugalhados de fria ou de medo e com a boca aberta, como se fosse falar. O moribundo virou em seguida a cara, bruscamente, como que a mand-lo embora. Mas a bondade de Deus infinita; Ajoelhou-se, fez o sinal-da-cruz e comeou uma orao. Alguns dos presentes descobriram-se em sinal de respeito. Enquanto rezava, dois enfermeiros entraram no foco de luz, estenderam uma maca e agacharam-se para observar o homem de barba. Est bbado disse um deles.O outro ps-se de p e olhou para os circunstantes: Est despachado.Pegaram no corpo e puseram-no na maca e ele olhou novamente para o rosto barbudo e ferido. "Quem ele? Porque tentou matar-me? Joseph salvou-me. Joseph."Um dos enfermeiros aproximou-se e segurou-o, levando-o at luz dos faris, e observando-o, como uma me examina um filho. Como se sente, Reverncia? O que lhe di? No, no. Eu estou bem. Mas h outra pessoa ferida. Uma mulher. Uma mulher? O enfermeiro virou-se para os circunstantes procura. Um homem de bluso deu um passo e entrou na luz dos faris, um ator menor nas luzes da ribalta, cheio de si naquele momento, o seu momento. S houve trs pessoas envolvidas nisto. Os dois mortos e Sua Reverncia disse o homem. Eminncia emendou uma voz l do escuro. Chame-lhe Eminncia. o cardeal.Quem dissera aquilo? Seria um dos "gabardinas", os seguranas que tinham por misso segui-lo? Eles deviam, certamente, ter visto o desastre, a mulher e tudo. Onde esto eles, os homens do Lada azul?Voltou-se para a escurido para l dos faris e perguntou: Est a algum dos senhores?Ningum respondeu. O enfermeiro que o tinha examinado pegou-lhe novamente no brao. Est atordoado, no est? Venha. Vamos lev-lo na ambulncia.Colocaram o corpo de Joseph na calha inferior. A maca em que estava o cadver do homem de barba rangeu quando a enfiaram na calha superior. Ele sentou-se junto de Joseph. Enquanto os enfermeiros fechavam as portas, havia rostos a observ-los. A ambulncia afastou-se, servindo-se da sirene para abrir caminho e calando-a depois, enquanto avanava velozmente pelas ruas desertas e molhadas. Rezou pelo descanso da alma de Joseph. "Dai-lhe o eterno descanso, Senhor, e fazei que sobre ele brilhe a eterna luz." Joseph, com as suas mos duras como madeira, a preguear a faixa carmesim feita em Roma e depois a colocar-lhe cuidadosamente o barrete. "Eu, filho de um moo de estrebaria, fui instrudo, no meu primeiro dia de cardeal, por Joseph, um campons da provncia de Kripke. "Um cardeal tem de ser visto pelo povo, Eminncia." Era o que dizia o velho cardeal. E dizia que as vestes cardinalcias eram purpreas, em memria do sangue que Cristo derramou por ns. "Por isso use-as com honra, Eminncia. Deixe-me ajud-lo a compor a faixa." Joseph. Oh, Joseph!"A sirena da ambulncia recomeou novamente anunciando a sua chegada enquanto entravam no ptio. Conhecia aquele local: o antigo Hospital de Santa Cruz, que agora era o Hospital Marechal Konev, do distrito central. Os enfermeiros instalaram uma cadeira de rodas porttil e empurraram-na, abrindo as portas basculantes, que se escancararam para o receber. Numa sala bem iluminada, com um forte cheiro a desinfetante, esperava-o um grupo de pessoal mdico. Algum devia ter telefonado a anunciar a sua chegada. Um mdico mais velho, de bata branca, avanou para ele, inclinando a cabea respeitosamente, e teria beijado o anel episcopal se ele no tivesse retirado a mo. Conduziram ento a cadeira para um pequeno consultrio e fizeram-no sentar numa mesa de ao alta. Se Vossa Eminncia quiser fazer o favor de despir o casaco e a camisa...Fez o que lhe mandavam. Os enfermeiros cortaram a ponta das calas rasgadas, deixando ver um golpe que percorria a parte inferior da perna. Pediu-lhes que telefonassem para a residncia e pedissem ao padre Malik ou ao padre Finder que passassem por l com um carro. Um mdico mais jovem, que comeara a limpar o golpe, ergueu os olhos e disse que j se tinham antecipado. O mdico mais velho examinou-lhe o peito e ps-lhe tintura de iodo e adesivo num golpe feio que tinha abaixo da clavcula. Ento brilhou-lhe uma luz no olhar. Os olhos do mdico abriram-se mais e observaram-no atentamente. Apenas um arranho. Nada mais. Teve muita sorte, Eminncia. Era um condutor bbado, no era? perguntou o jovem mdico, levantando os olhos para ele. Era? Observou o rosto do mdico e achou-o inocente. A bebida a praga deste pas disse o mdico mais velho. o nosso flagelo nacional.O mdico mais velho disse ao enfermeiro que o levasse aos raios X. S para termos a certeza.O enfermeiro vestiu-lhe uma bata branca e voltou a sent-lo na cadeira de rodas. Enquanto o empurrava pelo corredor, ia sendo seguido por uma mulher forte que levava um bloco-prancheta. Desculpe-me disse ela. Mas precisamos de alguns pormenores. O seu nome e sobrenome. Bem... Stehpen Bem respondeu. Que idade tem? Cinquenta e cinco. Local de nascimento? Nasci aqui. Na cidade.Enquanto falava viu Finder, o seu secretrio para os assuntos diocesanos, vir a correr pelo corredor, ao seu encontro, gordo, plido e assustado. Como est, Vossa Eminncia? Estou bem. Mas Joseph morreu. Trouxeram o seu corpo para c. Por favor, investigue o que vo fazer dele.Levaram-no na cadeira de rodas at sala de raios X e fizeram-no deitar-se numa fria placa de ao. Respire fundo e contenha a respirao. Ouviu o arranhar e o disparar da mquina. J pode expirar.Condutor bbado? O homem de barba poderia estar bbado, mas no era ele o condutor. Quem conduzia era aquela jovem de leno verde, a que se aproximou depois para ver se ele morrera. J acabamos. Pode vestir-se agora.Enquanto abotoava a camisa, entrou na sala uma enfermeira magra e nervosa. Quer que lhe arranjemos alguma coisa, Eminncia? Uma chvena de ch?Viu, pelo crucifixo que ela usava no uniforme, que era freira. No, irm, obrigado! No se lembra de mim, claro disse ela. As Irms de Santa Cruz. Mas eu falei com Vossa Eminncia nas celebraes do nosso jubileu, no ano passado. Sim, sim. Foi em Chernoya. Na Primavera passada.As lgrimas vieram aos olhos da freira. Graas a Deus que foi poupado, Eminncia.O pas precisa de si.Avanou de repente para ele, pegando-lhe na mo e fazendo uma vnia, enquanto lhe beijava o anel.O radilogo saiu de trs do biombo, parou e ficou a olhar, como se houvesse presenciado um ato pornogrfico. Hoje em dia h demasiadas pessoas com carros comentou o radilogo, desabotoando o pesado avental de chumbo e pendurando-o. - Pessoas que no esto a fazer nada pelo pas. Percebeu que com estas palavras o radilogo o estava a pr de sobreaviso. A afirmao era uma declarao de f. O radilogo acreditava no em Deus, mas no Partido.Quando o trouxeram na cadeira de rodas, da sala de raios X, Finder estava espera, no corredor, com o mdico mais velho. Um bom homem, o Finder, mas alarmista. No se podia confiar nele, nem discutir certos assuntos como com Kris Malik. Tenho uns soporferos para lhe dar disse o mdico. J preveni o padre Finder que tem de descansar nos prximos dias. Nunca tomo comprimidos para dormir, doutor. E tenho muito que fazer nos prximos dias. consigo, claro. Mas deu um grande tombo. Foi um milagre ter escapado quase ileso.

2

No fora um milagre, fora simplesmente a vontade de Deus, pensou ao entrar no carro com Finder. E Joseph? perguntou enquanto o carro avanava pela ampla Avenida do Novo Mundo. Devolvem o corpo amanh de manh. apenas uma formalidade.Olhou para trs. Eram seguidos por um Lada azul. Quero o corpo de Joseph na catedral. Celebrarei uma missa pela sua alma. Quando podemos rez-la? Talvez amanh de manh, Eminncia. No temos qualquer compromisso entre as dez e as doze. J algum falou com a mulher dele? No. Acho que no disse Finder. Quando eles telefonaram no disseram que o motorista ficara ferido. Quem telefonou, sabe? No disseram. Alis, telefonaram para o nmero do Secretariado. Foi o padre Krup quem recebeu o recado.O Secretariado, os gabinetes da arquidiocese e os gabinetes do Conselho Episcopal estavam todos situados na residncia arquiepiscopal, na Rua Lazienca. O edifcio, um antigo palcio principesco, fora, como o resto da cidade, arrasado pelos Alemes como ato de retaliao no final da Segunda Guerra Mundial e posteriormente reconstrudo, pedra a pedra, num gesto de orgulho nacional. Esta restaurao perfeita recriou o velho palcio, com todos os seus defeitos, os corredores escuros, as muitas salas de recepo inteis e o ptio central que lhe fazia lembrar o recreio de uma priso. De dia era barulhento e desorganizado, com os gabinetes e corredores ruidosos, cheios de requerentes religiosos e no crentes. A noite os portes estavam fechados: tudo era silncio. Na enorme fachada que dava para a Rua Lazienca, as janelas iluminadas e isoladas brilhavam como estrelas num cu escuro.Mas agora, quando os portes da residncia se abriam para lhes dar passagem e enquanto atravessavam o ptio direito entrada lateral, todas as janelas estavam iluminadas. No trio, para o cumprimentar, estavam os padres do Secretariado, as irms de Nazar, que faziam a lida domstica, os motoristas, os porteiros e os jardineiros. Rodearam-no, solcitos e aliviados, fazendo perguntas e oferecendo palavras de conforto, mas Finder anunciou em voz alta que Sua Eminncia estava doente e ia diretamente para a cama. Espera disse ele a Finder. Teresa, est a?A mulher de Joseph saiu do grupo. Ao ver o seu rosto, sentiu o alvio de um covarde. Ela j sabia. Ps-lhe a mo no ombro. O tecido do vestido da empregada era spero ao toque e ele levou-a at antecmara que ficava ao fundo do trio da entrada. Acendeu a luz e ficou imediatamente cara a cara com uma enorme imagem de Jesus que estava logo a seguir porta. A mo da esttua, erguida no gesto tradicional de bno, parecia avis-lo que fosse discreto.Fechou a porta. J lhe disseram? perguntou.Ela fez um sinal afirmativo. Estivera a chorar e tinha o nariz vermelho e mido. Limpou-o, desajeitadamente, com as costas da mo. Por favor, no se quer sentar um momento? perguntou. Oh, no, Eminncia. Vossa Senhoria que devia estar sentado. Vai haver uma missa pela alma do Joseph, amanh de manh na catedral. Celebrarei eu prprio a missa.Ela abanou a cabea: Joseph sentir-se-a... sentir-se-ia muito honrado, Eminncia. Ele salvou-me a vida, esta noite.Ela olhou-o com surpresa e depois fez um sinal afirmativo. Sim, ficaria muito honrado repetiu. Recomeou a chorar e mais uma vez ele sentiu pena de no possuir aquele dom pastoral que essencial: a habilidade de confortar e consolar os outros em momentos de desgosto. Sem ele sentir-me-ei perdido disse, desesperado, olhando para a imagem de gesso, porque no era capaz de enfrentar as lgrimas de Teresa. A imagem, de mo erguida, parecia apiedar-se dele. De repente, chorou. E por fim, vendo-o chorar, Teresa esqueceu a deferncia que sentia por ele. Pronto, pronto disse ela. Oh, olhe para o seu casaco, est todo cheio de lama, Eminncia. E as suas calas. O que diria Joseph se o visse nesse estado? No se preocupe comigo, Eminncia. V para a cama. E obrigada, obrigada pela missa.Os seus aposentos eram no quarto andar. Finder, que subiu com ele no elevador, insistiu em deixar-lhe os comprimidos que o mdico lhe receitara. A irm Agnes deixara o tabuleiro com a refeio habitual carnes frias, leite quente e bolachas de aveia ao lado da cama de solteiro, que, naquele quarto grande, mobilado no estilo de um quarto de um grande hotel da Europa Central, parecia to deslocada como uma cama de criado num quarto de senhor. Mas ele trouxera a cama para ali e nela dormia, alis, desde os seus tempos de padre, na longnqua provncia de Galm.Sentou-se na cama a desapertar os sapatos, inclinado para a frente, refletindo no espelho do guarda-fato em frente mancha da calvcie no seu cabelo grisalho. Ao endireitar-se viu no espelho as calas rotas e a roupa manchada. Parecia um daqueles pobres bbados que passavam a noite debaixo das pontes do Volya. Ao tirar o casaco tateou procura do relgio. Quando o tirou verificou que o mostrador estava esmagado e lhe faltavam os ponteiros. O relgio fora um presente dos seus alunos da Universidade de Wolna. Duvidou que tivesse conserto. P-lo na gaveta da mesa-de-cabeceira e tirou um outro par de culos de ler, para substituir os que perdera no acidente. Levantou-se e atravessou o quarto, s de pegas, procura do pijama e do roupo que o Joseph sempre lhe deixara preparados todas as noites.Enquanto procurava, algum bateu porta do gabinete que ficava ao lado do quarto.- s tu, Kris?O seu secretrio particular, o padre Krystof Malik, um homem alto e de cabelo grisalho, entrou, com a sua pressa habitual e o seu ar abatido, trazendo uma grossa pasta com papis. Como est, Eminncia? Pensei que ainda estivesses em Gneisk, Kris. Voltei num vo cedo, Eminncia. Queria que soubesse da situao por l. Qual a situao? Bom, como lhe disse, tenho um amigo no gabinete do arcebispo em Gneisk. Foi ele que me telefonou. Parece que lhe pediram que datilografasse um primeiro esboo de uma comunicao que o arcebispo Krasnoy tencionava apresentar, nas comemoraes de Rywald, na prxima tera-feira. Tenho parte desse sermo comigo. E depois? incrvel. Parece pedir uma espcie de manifestao nacional contra o Governo. Nesta altura? Est louco.Sentiu-se novamente tonto. Baixou a cabea e, por um momento, apareceu uma aura amarela no olho esquerdo. Sente-se bem, Eminncia? perguntou Malik. Sim, sim respondeu. O que aconteceu esta noite? Finder disse que foi um condutor embriagado. No foi bem isso. Algum tentou alvejar-me.Malik caiu, sem cerimnia, no sof de cabedal gasto e ficou a olhar macambzio para as biqueiras dos sapatos. Meu Deus! Quem? Eram dois. Um homem e uma mulher. Era ela que conduzia. A Polcia apanhou-os? Ele morreu. Acho que a mulher fugiu. Claro que fugiu, se eles esto por trs disto. Quem est por trs disto? A Polcia de Segurana, Eminncia. No faz sentido. Porque havia a Polcia de Segurana de querer matar-me?O padre Malik abriu a sua pasta de carto e remexeu nos muitos papis que l tinha. Sei que pode parecer exagerado, Eminncia, mas quem sabe o que podem fazer se pensarem que est a tentar incitar o povo revolta? De que que est a falar? Da comunicao do arcebispo Krasnoy, Eminncia. Posso ler-lhe uma parte?Fez um sinal afirmativo de consentimento. As costas tinham comeado a doer-lhe e sentia o ombro a latejar dolorosamente, onde fora ligado. Era como se at quele momento o choque do acidente o tivesse mantido anestesiado. Viu Kris, atrapalhado com os culos, pegar numa folha de papel escrevinhado. "A nao, nesta poca crtica, como uma floresta no final de um vero de tremenda seca. Uma seca espiritual e moral. No cho dessa floresta esto milhes de agulhas de pinheiro. Basta uma fasca para as incendiar. E o que essa fasca? No ser a recente prova de que aqueles que nos governam sentem o maior desprezo pela Igreja? Este comportamento insensvel para com a chefia religiosa da nao podia ser a fasca que incendiar a floresta, com um fogo que limpe e purifique. Muito pode ser destrudo, mas, no fim, a nao ficar mais forte e sero preservadas a sua f e a sua liberdade. Devemos pedir a ajuda de Deus, na presente situao. Devemos unir-nos para mostrarmos a fora da nossa vontade nacional. Aqui, neste lugar, neste dia, no Santurio dos Benditos Mrtires, chamo-vos a apoiar a Igreja nesta hora de necessidade." Tem uma prosa terrvel - comentou. Receio que no seja para rir, Eminncia. E eu disse que era? Que horas so? Vamos tentar apanhar Krasnoy, pelo telefone. Acha isso aconselhvel, Eminncia? O que lhe quero dizer que no vai haver sermo na prxima tera-feira, em Rywald, ou em qualquer outro lugar, alis. No me importa quem possa estar escuta. Na verdade at a forma mais rpida de passar a minha mensagem ao Governo. verdade, mas sabe como o arcebispo Krasnoy. E se ele se recusar a obedecer? Eu sou o primaz. Pode discordar de mim, mas no me provocar abertamente.Nesse momento ouviu um arranhar conhecido na porta do quarto. Dirigiu-se para l e abriu-a. Bashar entrou, era grande como um pnei, aos saltos e a pr-lhe as patas em cima. Para baixo, para baixo! disse ele, mas fez-lhe uma festa enterrando o rosto no plo espesso. O que faria Bashar sem Joseph? Joseph era, de fato, o seu verdadeiro dono. Pobrezinho, pobrezinho disse o cardeal. Voltou-se para Kris Malik: J te disse que o Joseph me salvou a vida, esta noite? No. Quando os viu apontar para mim, chocou com o outro carro. A luz dos faris, o rosto de Joseph, branco, composto e sem vida. Olhou para Kris Malik. Sinto-me perdido, sem ele. Talvez o Tomas o possa substituir como seu motorista e camareiro sugeriu Malik. Posso ento ligar para o arcebispo? Pode. Segurou a coleira de Bashar e levou-o at s bolachas de aveia. Deu uma ao co, fez-lhe uma festa na cabea e instalou-o no seu cobertor aos ps da cama. Eminncia? Sim, Kris? Tenho o arcebispo em linha.Pegou no auscultador, reparando com desagrado no sorriso cmplice de Kris Malik. "Aquele sorriso por minha culpa. No devia ter troado da prosa de Krasnoy. Quando aprenderei a ser um chefe?" Est? voc, Henry? Stephen. A voz alta e arrogante de Krasnoy trouxe-lhe imediatamente ao esprito a imagem do homem: o rosto corado e o lbio inferior grosso e descado. Como est? No estou bem. Acabei de ler o que parece ser parte de uma comunicao que tenciona apresentar na prxima semana, nas festividades de Rywald... Como que teve acesso minha comunicao? No interessa. O que que est a tentar fazer, Henrv, desencadear um banho de sangue? Escrevi-o como um aviso, Stephen, apenas como um aviso. Um aviso a quem? Ao general Urban. A quem havia de ser? Estou a perceber! Roma fez-lhe uma comunicao especial sobre a sua nomeao como primaz do pas? Desculpe, Stephen. Mas muitos bispos, e at clero menor, sentem o mesmo. No podemos voltar as costas ao povo, neste momento. Est a voltar as costas a mim, Henry. Stephen, espero que isso no seja verdade. Esperemos ento que no seja verdade. A sua alocuo, em Rywald, far lembrar a f dos Mrtires de Setembro. Tem de ser uma alocuo sobre Deus e no sobre poltica. Rywald um lugar de peregrinao, no um terreno de ao poltica. Est entendido, Henry?No silncio que se seguiu, ouvia a respirao de Krasnoy. Perguntei se est entendido, Henrv. Est l, Henry?Esperou. Por fim, ouviu dizer: Sim, Eminncia. Entendido.Ouviu l longe, na distante Gneisk, o auscultador ser colocado no descanso. Voltou-se para o sorriso demasiado exultante do padre Malik. Rpido comentou Malik. E direto. Boa noite, Kris comentou ele e reparou na surpresa e num ligeiro mal-estar no rosto do secretrio. Desculpe, Eminncia. Deve estar exausto. Sim, estou cansado. Acho que no devemos referir isto a ningum. No caso da morte de Joseph. Tambm no disse a ningum que tinham tentado alvejar-me. No acho aconselhvel nas atuais circunstncias. Nem sequer disse mulher de Joseph. Est certo? Claro, Eminncia. Muito sensato. Bem, boa noite, Eminncia. Espero que durma bem. Ver-nos-emos amanh. Boa noite.A porta fechou-se. No silncio do quarto, o cardeal virou-se para a lareira. Ali, sobre o rebordo da chamin estava uma velha fotografia a spia de seu pai, to familiar que h anos que no olhava para ela. Mas agora, surpreendentemente, a fotografia parecia ganhar vida. O pai olhava-o, com os olhos cheios de zanga e temor, como se houvesse um perigo qualquer dentro do quarto. Aproximou-se e pegou na fotografia. O pai, de rosto desfigurado pelo enorme bigode, que se usava na poca anterior guerra, encontrava-se em frente de uma fila de estbulos, na alameda principal da coudelaria do prncipe Rostropov, nos arredores da cidade. Vestia cales de montar, casaco de tweed e trazia na mo um pingalim, smbolo da sua promoo de chefe de coudelaria a treinador dos cavalos de corrida do prncipe. E, naquele momento, ao olhar para a fotografia, acudiu-lhe memria o rosto ferido e barbudo do atacante daquela noite. Era, como o de seu pai, um rosto que pertencia ao passado, um rosto de nobreza menor, de nobre rural, que o seu pai teria saudado com um toque de deferncia na aba do seu chapu de montar. Seria possvel? Voltou a pousar a fotografia no rebordo da chamin. Agora tudo possvel. Voltou-se para a grande janela, sem cortinas, que dava, no para o ptio interior, mas para a Rua Lazienca. L estava, estacionado no seu lugar habitual, a um quarteiro dos portes da residncia, o inevitvel Lada azul. O turno da noite era fcil para os "gabardinas". Ele raramente saa depois de anoitecer. Muitas vezes se interrogara se eles dormiriam por turnos ou se se enroscavam e dormiam no carro, mal ele apagava a luz da mesa-de-cabeceira. Olhou para l da rua, para as luzes da cidade, que cintilavam num labirinto vistoso. Mesmo no meio dessas luzes, estendia-se um grosso e coleante brao de total escurido: o rio Volya. Pensou no rio Estige: o barqueiro da morte. Pensou em Joseph.No extremo do quarto havia um pequeno oratrio. Uma vela vermelha ardia sob a litografia do rosto ferido de Cristo, encontrado no sudrio de Turim. Ajoelhou-se em frente do oratrio e baixou a cabea."Exame de conscincia. Fui pouco humilde. Esta noite fui arrogante na forma de tratar com Henry Krasnoy. Permiti-me tambm entrar em conflito com o padre Malik, devido ao meu comentrio malvolo. Levei-o a troar de um dos vossos arcebispos. E Joseph? Aceitei a Vossa vontade? No deveria ter-me alegrado por Joseph ter ido para junto de Vs? Devia tambm lembrar-me de que esta noite dois homens morreram por minha causa. Aquele homem que tentou matar-me, dai-lhe a paz, Senhor.Eu sou o Vosso servo, criado por Vs. Tudo quanto tenho veio de Vs e por Vs. Nada me pertence. Devo fazer tudo por Vs, apenas por Vs. Esta noite, na reunio, estava obcecado pela poltica. Pensava no perigo para o nosso pas. No pensei no sofrimento que Vos causamos com a nossa atuao. Minha culpa, minha mxima culpa."

3Um toque na porta, apressado e quase sub-reptcio, arrancou-o orao. Eminncia? murmuraram.Era uma voz que ele reconheceu. Levantou-se e dirigiu-se para a pesada porta. Sim? o Bujak.Abriu a porta. Bujak, o porteiro da noite, entrou atarantado, fazendo uma rpida vnia com a cabea. O padre Finder mandou-me dizer-lhe, Eminncia. A Polcia de Segurana est l em baixo. A esta hora da noite? O que que eles querem? Vo subir, Eminncia. Recebe-os?Enquanto o porteiro falava, viu os homens surgirem ao cimo da escada: trs "gabardinas" e, atrs deles, Finder, a protestar: J disse que Sua Eminncia est a dormir. No tm o direito de entrarem aqui.Mas eles j o tinham visto. Avanaram determinantemente. Ouviu l no quarto Bashar rosnar. O que vinha frente trazia um chapu de palha cor de coco que o fazia parecer um turista americano, mas o seu rosto era o de um membro da nomenklatura, daqueles que consideravam a sua Igreja, a sua posio e ele uma afronta ao poder. Cardeal Bem? Sou eu.O homem estendeu-lhe um carto plastificado. Por baixo da fotografia, lia-se: "Major. Polcia de Segurana Internacional." Normalmente no se davam ao trabalho de mostrar identificao. Por isso devia ser grave. Porque que os portes estavam trancados? perguntou o homem. Porque passa das oito horas. Fechamos os portes s oito horas. Os portes no deviam estar trancados aos representantes do povo. Ah, sim? No fecha a porta de sua casa quando regressa noite, major? O seu pessoal no queria receber-nos. Tentaram impedir-nos de entrar. Lamento esse fato. O que posso fazer pelos senhores? Tenho instrues para que nos acompanhe, imediatamente. Pode trazer uma pequena mala. So estes os seus aposentos? So, mas um momento. Vou convosco para onde? Se no se importam vou telefonar ao ministro dos Assuntos Religiosos.Nesse momento viu a fria (ou seria medo) nos olhos do homem. Tenho instrues para no o deixar telefonar a ningum.Olhou para l do homem e viu que um dos outros tirara sub-repticiamente uma pistola do bolso. Apontou para a arma e perguntou: O que que isso significa? Venha disse o de chapu de palha castanho. Estou a pedir-lhe delicadamente. Meta algumas roupas e artigos de higiene num saco. O suficiente para alguns dias, apenas. Mas despache-se. Apresentaremos queixa disse Finder. Queixar-nos-emos ao mais alto nvel.O de chapu de palha castanho recuou. Por aqui, se faz favor.Um dos outros "gabardinas" ficou no corredor e o terceiro, o da pistola, entrou no quarto, para se certificar de que no havia l ningum escondido. Bashar rosnou e ouviu-se algum barulho. Merda! gritou o homem. Tirem-mo de cima!Correu para o quarto e surpreendido viu que Bashar encurralara o homem e estava de p, nas patas traseiras, a mostrar os dentes. Bashar! exclamou surpreendido. No se assuste. Ele no morde. inofensivo. Ah ? comentou o homem da Segurana e mostrou a mo que estava a sangrar. Teve sorte por eu no lhe ter dado um tiro. Peo imensa desculpa. Espere disse ele e dirigiu-se casa de banho com o do chapu de palha castanho atrs dele. O que que est a fazer? perguntou o do chapu. Espere a.Mas ele ignorou o aviso. Abriu o armrio dos medicamentos, tirou a tintura de iodo e uma ligadura, e depois voltou-se para o quarto e gritou: Bashar, deitado! Cabisbaixo e a abanar a cauda, Bashar voltou para o seu cobertor. Pegou no polcia pelo brao e levou-o at ao lavatrio da casa de banho. Venha c, vamos limpar isso. Lamento imenso. Ps a gua a correr para o lavatrio e meteu a mo do homem l debaixo. No temos tempo disse o major da Segurana. Claro que tem tempo afirmou. Secou a mo do homem e f-lo sentar-se na borda da banheira. Ajoelhou-se depois na sua frente e destapou o frasco de desinfetante. O Bashar no tem raiva, mas acho que mesmo assim devia levar uma injeo antitetnica.O major voltou-se e saiu da casa de banho. Onde est a sua mala? perguntou e, em seguida, disse alto: Tragam esse outro padre e digam-lhe que faa a mala do cardeal.Quando aplicou a tintura de iodo, o polcia franziu os olhos. Desculpe. Deve doer. Mas o ferimento no fundo. Fique quieto.Ouviu Finder gritar l de fora: Quer que lhe faa a mala, Eminncia? O que quer que ponha? Espere. No sei porque que est tudo com tanta pressa.Acabou de ligar a mo do polcia, ps-se de p e voltou ao quarto. Disse que era por alguns dias? Para onde me leva? Para a priso? No, no respondeu o major da Segurana. Fora at janela e espreitara. Voltara-se e havia suor no seu rosto. Era uma noite quente de Agosto, mas mesmo assim o suor era excessivo. Padre Finder, ligue-me para o gabinete do ministro. O gabinete do ministro est fechado afirmou o major. Alm disso, j lhe disse que tenho instrues para que no telefone a ningum. Posso perguntar porqu? Por favor, quer comear a fazer a mala?Foi at ao guarda-roupa procura das camisas. As batinas estavam l penduradas. Era um traje pouco prprio para andar de um lado para o outro dentro de uma cela. Viu-se rapidamente no espelho triplo e reparou nas calas rotas nos joelhos. Tenho de mudar de roupa disse ao major. Est bem, mude.Ficaram a olhar, enquanto ele se despia e enfiava um fato clerical de Vero. Vestiu-se e calou com dificuldade uma pega, cobrindo a perna que estava ligada. Sentou-se, apertou os cordes dos sapatos e quando acabou ergueu o olhar para o major da Segurana: Posso perguntar aonde me levam? Levamo-lo sob custdia respondeu o major. Foi-nos dito que pedssemos a sua cooperao e a do seu pessoal. Ningum deve saber que saiu do edifcio. So essas as instrues que tenho. Porque? Porque houve hoje um acidente. Tem conhecimento disso? Tenho. Desculpe, Eminncia interrompeu Finder. Mas ser que no percebi? A Polcia disse que foi um condutor embriagado. Isto apenas um truque destes senhores, tenho a certeza.Ignorou Finder. Tirou uma pequena mala do fundo do guarda-roupa e meteu-lhe umas camisas. Abriu uma gaveta procura de pegas e roupa interior. Preciso do meu brevirio. Padre, pode fazer o favor de mo trazer. Est em cima da minha secretria. Despache-se, se faz favor insistiu o segurana. Tirou o chapu de palha e comeou a limpar o suor da fita interior. No respondeu minha pergunta. O que que quer dizer "sob custdia"?O major encolheu os ombros: assim que se chama.O cardeal foi casa de banho buscar o estojo de higiene. Como est a sua mo? perguntou ao outro polcia.Ele no respondeu. Mal meteu os artigos de higiene dentro da mala, o major fechou-a e agarrou nela. Est bem, vamos. O seu brevirio, Eminncia disse Finder, estendendo-lho. - Quer que telefone ao nncio apostlico? Acho que no. Alis, parece-me que monsenhor Danesi est de frias. Deve estar provavelmente em Itlia. J lhe disse que no pode telefonar a ningum insistiu o major.Desceram a escada. No trio esperavam as irms de Nazar e Bujack, o porteiro da noite. Onde est o padre Malik? perguntou. No sei, Eminncia respondeu uma das freiras.- Acho que saiu depois de jantar.Junto porta do trio viu um quarto "gabardina", que fez um sinal afirmativo ao major. Tudo pronto.Conduziram-no pelas cozinhas at entrada de servio nas traseiras do edifcio. Esta porta no dava para a Rua Lazienca, mas para uma pequena rua lateral chamada Mokotowa. Na rua esperavam dois carros. Finder, esgueirando-se a seu lado, disse em latim: Contatarei com o bispo Wior e avisarei tambm o gabinete do nncio.Ele respondeu tambm em latim: No quero, por agora, preocupar Roma com isto. Primeiro tente saber para onde me levam. Parem com isso disse o major. Isso latim? latim, no ? Eu frequentei a escola beneditina.Estavam agora porta de servio. Os homens da Segurana bloquearam a porta impedindo as freiras e Finder de o seguirem at l fora. Em cada um dos carros estava um condutor paisana. Os carros no eram os habituais Ladas azuis, mas uma carrinha velha e um Volvo vermelho. Deduziu que seriam carros-espies, utilizados pela Polcia para vigilncia. O major da Segurana levou-o at ao Volvo vermelho e instalou-o no banco de trs. O condutor do Volvo estava a limpar as janelas de trs com um produto que impedia de ver de dentro para fora e de fora para dentro. O major da Segurana sentou-se no banco da frente e o outro polcia atravessou a rua a correr e subiu para a carrinha, que arrancou frente do Volvo. Os carros no viraram direita na Rua Lazienca, continuaram pela Rua 28, meteram por ruas secundrias at chegarem Praa Velha. Para que priso vou? perguntou ao major da Segurana. Com certeza que no vou para a Cidadela. No vai para a priso respondeu o major. Ficar bem instalado. No somos seus inimigos. Vamos tir-lo da cidade por uns dias. Apenas para o proteger. Quem que tentou matar-me?O major no respondeu.

4

No era um hotel nem uma priso. Quando o levaram do carro s viu um vestbulo comprido, um lano de escadas sem passadeira, um corredor e um quarto. O quarto tinha uma cama de solteiro, dois cadeires cobertos de pelcia coada, uma mesa e uma escrivaninha de pinho. Sobre a chamin obstruda estava um par de chifres de veado. As janelas tinham portinholas. Mal o deixaram sozinho abriu imediatamente as portinholas. L fora tudo era escurido. Ficou deitado, mas sem dormir. Muitas horas depois viu uma luz cinzenta espalhar-se pelo cho. Levantou-se sentindo os ombros a latejar de dor e foi novamente at s portinholas. Abertas, revelaram um ptio rodeado por um muro alto de pedra. Ali, algumas galinhas esgaravatavam furiosamente, num monte de sementes h pouco ali lanadas. Enquanto debicavam aqui e alm, deitavam olhares amedrontados e nervosos. Irracionalmente, pensou: "Tambm elas so prisioneiras neste lugar."No extremo do ptio viu um trator enferrujado. Do outro lado do muro um campo lavrado. No havia outros edifcios no horizonte. Pelo campo lavrado vinha um homem a caminhar. Trazia um casaco de couro e um chapu de caador e uma espingarda preparada, para que de um momento para o outro a pudesse apontar e desfazer qualquer pequeno animal. Mas o homem no era um caador. No outro extremo do campo surgiu outro homem, tambm de casaco de couro e trazendo uma espingarda. O segundo homem acenou ao primeiro e depois afastou-se, desaparecendo-lhe da viso. Eram da Polcia de Segurana. As galinhas, o trator, o edifcio, que pareciam ser a propriedade de algum nobre rural de antes da guerra, no passavam de disfarce para iludir os passantes. Aquele local era, muito provavelmente, uma daquelas casas secretas para onde o regime levava pessoas que haviam sido importantes e que, de repente, desapareciam.Apalpou-se procura do relgio e lembrou-se que se partira. Levantava-se normalmente s seis e meia para dizer missa na capela da residncia. Naquele dia teria adiado aquela missa para celebrar uma na catedral, por alma do Joseph. "Joseph. Espero que o Finder se lembre de tratar disso. Mas algum se lembraria fosse do que fosse depois da noite anterior? O que faro os bispos quanto ao meu desaparecimento? Tentaro tornar pblico o fato de eu ter sido preso? Espero que no. Isso podia desencadear o "fogo" que Krasnov est a pedir."Olhou at ao extremo do campo vazio. O Sol erguia-se no cu por trs de uma difana neblina. Ia estar um dia quente, um daqueles dias de Vero em que as praas e as ruas da cidade ficam sufocantes e viscosas, em que os nervos ficam flor da pele e as pessoas se sentam s varandas, semidespidas, a beber ch gelado e a queixar-se de que no h stio onde se possa encontrar alvio para aquele calor. Dias em que as igrejas da cidade ficam vazias, escuras, frescas e calmas. Mas ningum pensa em l ir.Desviou-se da janela e, inclinando a cabea, comeou as oraes da manh. Ao fim de vrios minutos ouviu passos l fora no corredor. Virou-se na direo do som e reparou, pela primeira vez, que havia um lavatrio no quarto e que lhe tinham deixado sabo e uma toalha. Procurou o estojo de higiene e comeou a fazer a barba. Quando abriu a torneira ouviu algum tossir no quarto ao lado. A pessoa que tossiu caminhou ento pelo quarto e abriu a torneira. A parede devia ser pouco espessa. Foi at l, bateu hesitantemente e esperou.O seu toque foi correspondido. Ol disse ele, levantando a voz. Fale baixo respondeu um homem do outro lado da parede. Quem voc? Um padre. Ah ? Eu tambm sou. Sou o padre Prisbek. Como se chama? Bem. O cardeal Bem? Sim. Ento verdade disse a voz do outro lado da parede. Trouxeram-no para c ontem noite? Sim. H quanto tempo est aqui? Vm a murmurou a voz. Ouviu novamente passos no corredor. Os passos pararam no quarto ao lado do seu e ouviu vozes a murmurar, o barulho de uma porta a abrir-se e passos a retirarem-se. Voltou parede e bateu. Est a?No obteve resposta.Ouviu gritos ao longe, como se algum desse ordens. Depois, de novo passos. Desta vez dirigiram-se diretamente para a sua porta. Uma chave rodou na fechadura.Naquela manh o major da Segurana vestia uma camisola de malha e calas de bombazina verde. Trazia um tabuleiro com um copo de ch, uma colher, um pozinho com manteiga e dois pequenos boies, um com mel e outro com acar. Bom dia disse o major, entrando e pondo o tabuleiro em cima da mesa. No sabamos se tomava seu ch com acar ou com mel, por isso trouxe as duas coisas. Obrigado respondeu o cardeal. O major sorri de forma delicada e encaminhou-se novamente para a porta. Voltarei em breve. Espere. Gostava de falar com algum com autoridade e j. Claro respondeu o major. urgente. Sim afirmou o major , com certeza.A porta fechou-se. Reparou que o major no voltara a fech-la chave. Quando os passos se afastaram pegou no copo de ch e foi at janela. L em baixo, no ptio caminhavam duas pessoas de um lado para o outro falando em voz baixa e acalorada. Um era padre, um homem alto e jovem de barba ruiva e espigada. A outra pessoa era uma mulher de meia-idade que usava um toucado curto e um hbito azul. No reconheceu a que ordem pertencia. Procurou os "gabardinas" que deviam estar a guard-los. Mas no havia "gabardinas" no ptio. Olhou para l do muro, na direo do campo, onde vira os dois polcias da Segurana disfarados de caadores, a patrulhar. Mas no se avistavam polcias da Segurana. Subitamente e sem pensar gritou l para baixo: Oi! Vocs ai em baixo!A freira parou de falar e olhou para cima. Depois disse: No tem havido notcias de que tenham sido presos padres. O ministro para os Assuntos Religiosos afirmou-me que at os padres mais direita haviam sido libertados. Ou teria havido nova onda de prises nas ltimas vinte e quatro horas?Afastou-se da janela e lembrou-se de que o major se esquecera de fechar a porta chave. Pousou o copo do ch, abriu a porta e saiu para o corredor. O quarto ao lado do seu estava agora vazio e a porta escancarada. Olhou l para dentro. Havia um lavatrio e uma cama despojada de almofadas e de cobertores. Continuou a caminhar pelo corredor. Pelo silncio sentia que no havia mais prisioneiros naquele andar. Ao fundo do corredor havia um lano de escadas sem passadeira, de que se lembrava da noite anterior. Desceu. Na parede leu um aviso impresso, desbotado pelo tempo.

ESCOLA DE PECURIA DO DISTRITO DE OSTROFINSTRUO:JAN. 4 - MAIO 30 SET. 1 - DEZ. 23Do lado esquerdo do vestbulo havia uma enorme cantina. Estava vazia. Em cima das mesas de madeira encontravam-se boies de picles e pratos sujos. Ao lado direito do vestbulo viu uma sala com quadros verdes, carteiras e uma estante.Tudo estava vazio. L longe, no outro extremo do edifcio, ouviu um pequeno som, que gradualmente se transformou no som de pessoas que se aproximavam. A porta verde que havia ao fundo do vestbulo escancarou-se e apareceu o major da Segurana. Sorriu. Ento encontrou o seu caminho pela escada, segundo vejo. Mas tenho boas notcias. Desculpe no ter ido ter novamente consigo, mas est toda a gente numa reunio. Quem toda a gente? Que lugar este? Oh, o lugar no importante comentou o major da Segurana. Mas tenho boas notcias para si.O cavalheiro que quer ver est agora disponvel. Por aqui, por favor.Passaram pela porta verde e entraram num corredor que ficava nas traseiras do vestbulo e que ele calculou ir dar s cozinhas. Num dos lados do corredor havia uma pequena sala, uma espcie de gabinete, com avisos referentes a uma escola de agronomia, pregados num quadro de cortia, e uma enorme escrivaninha com tampa corredia atulhada de tabuleiros cheios de papis. escrivaninha estava um homem sentado a escrever. Levantou o olhar e indicou uma cadeira sua frente. O major sorriu e retirou-se, fechando a porta.O homem que estava escrivaninha vestia um fato de alpaca cinzento, que parecia ser o uniforme no oficial dos mais elevados cargos da Segurana. A partir da nuca tinha um cabelo ralo e levantado que parecia uma aurola. A pele era rosada e limpa, como se tivesse acabado de sair de um banho de vapor, e fumava um longo cigarro russo, metade filtro, metade tabaco. Expirou o fumo, sorrindo por trs dele, como se fosse uma mscara. Sou o coronel Poulnikov da Segurana Interna disse. Creio que queria falar-me. Desejava falar com o ministro para os Assuntos Religiosos imediatamente. Estou autorizado a falar pelo ministro.Olhou para o homem. No havia sinais de hostilidade no rosto do coronel Poulnikov. Anteriormente, sempre que falara com os "gabardinas", o clima fora de excessiva civilidade de ambos os lados. Claro que nunca antes se passara nada de semelhante. Diga-me, coronel, a sua inteno insultar-me? No percebo. Sou o cardeal-primaz deste pas, o chefe da Igreja. Antes sempre se me dirigiram usando o ttulo de Eminncia, os seus colegas, o ministro e at o prprio primeiro-ministro.O rosado do homem passou a rubor, o que o fez parecer mais jovem do que anteriormente. Peo perdo, Eminncia. Estava desatento. Peo-lhe que aceite as minhas desculpas. Receio ter tido pouca experincia no trato com cardeais. Est certo. Passemos adiante. Quer dizer-me, por favor, porque que fui preso e trazido para aqui? E que lugar este? uma faculdade de agronomia, Eminncia. De momento, no est em funcionamento, devido s frias de Vero. Por isso a tomamos como sua residncia temporria. No est preso, Eminncia. Est sob custdia, apenas por uma semana, mais ou menos. Providenciamos para ter um padre que vos sirva de capelo, ajudante ou l como se chama. Como disse, no estou familiarizado com a terminologia clerical. E temos uma freira, a irm Marta, que vos servir de governanta. Temos esperana de que a sua estada entre ns seja agradvel e decorra sem incidentes. Pegou numa cigarreira com inscries em alfabeto cirlico. Vossa Eminncia no fuma? O senhor russo?O coronel pareceu corar mais uma vez. Bom, surpreende-me ouvi-lo perguntar isso, Eminncia? Creio que a sua me era da provncia de Kripke, tal como a minha. Desculpe. No tinha o direito de ser mal-educado. Acho que estou um bocado confuso esta manh. Querer ter a bondade de me explicar a razo do Governo para explicar esta situao de "custdia"? Sim! Claro que sim! Algum, suspeitamos que um fantico de algum grupo direitista... ainda no identificamos o homem que morreu, porque tinha papis falsos... mas, como ia dizendo, algum tentou mat-lo a noite passada. E temos razes para crer que a sua vida ainda corre perigo. Agora, opinio do ministro que, se tal tentativa tivesse xito, causaria grande instabilidade civil e poria em risco o Estado, de forma que...O coronel no acabou a frase e, em vez disso, expeliu fumo como se imitasse uma exploso. Por isso, achamos que at localizarmos este grupo terrorista melhor que se desconhea o seu paradeiro, mesmo pelas autoridades da Igreja. Porqu, posso perguntar? Porque temos razes para acreditar, Eminncia, que este grupo pode estar ligado a elementos reacionrios dentro da prpria Igreja. Quer dizer que essas pessoas que querem matar-me so catlicos? Na opinio do ministro, Eminncia, isso mais do que uma suposio, um fato. Ridculo. ? As bochechas cor-de-rosa do coronel Poulnikov coraram novamente, como se alguma coisa o tivesse chocado. A sua voz ergueu-se, ficando beira da fria. Para eles, Vossa Eminncia o prelado que traiu a sua Igreja, o cardeal que se vendeu aos comunistas. Deu a Csar o que era de Deus.Ele ficou a olhar fixamente para o homem. isso que dizem de mim?O coronel, curiosamente embaraado, fez um aceno afirmativo e riu-se: , Eminncia, . E eram capazes de me matar? Alguns deles eram. A faco de lunticos, creio.O silncio que se seguiu no pequeno gabinete atabafado foi cortado pelo zumbido de uma varejeira contra os vidros. O sol matinal, com calor de Vero, espalhou-se sobre os enormes tabuleiros de correspondncia que estavam na escrivaninha do coronel. H autoridade no que afirma: todos os dias se banha numa torrente de palavras inspiradas pelo medo e a ambio, em relatrios secretos de conversas imprevidentes, em denncias inspiradas pelo dio, em palavras ditadas pela tortura. O papel do Estado conhecer estas coisas. A Igreja no tem servios de informao que se lhes comparem. Diz que no sabe quem so essas pessoas? No, senhor, ainda no. Mas temos a esperana de que se permanecer aqui, como nosso hspede, alguns dias, conseguiremos descobrir os responsveis. Agora tenho de falar com o ministro. Receio que no seja possvel, Eminncia. Tem de ser possvel! Tem conhecimento, claro que tem, que na prxima tera-feira a festa do jubileu celebrada em Rywald? Tenho de assistir a essas cerimnias. Diga ao ministro que se eu no puder assistir a essas cerimnias, ele vai ter problemas entre mos. Que tipo de problemas, Eminncia? No quero discutir isso consigo.O coronel levantou-se e fez uma vnia antiquada. Falarei com os meus superiores, logo que possa. J tomou o pequeno-almoo? J. Talvez queira ir dar agora um passeio. Est uma bela manh. Um passeio? Onde? No ptio da priso?O coronel sorriu: No, no. Isto no uma priso, Eminncia. Foi at porta e abriu-a. L fora, no corredor, o padre de barba ruiva estava sentado numa cadeira de fundo de palha e lia o brevirio: Padre Prisbek?O padre levantou-se. Sim. Sua Eminncia gostaria de ir dar um passeio.O coronel voltou-se a sorrir e fez novamente uma pequena vnia. Contact-lo-ei muito em breve, Eminncia.O padre de barba fez um sinal de cabea para que o seguisse, como se estivessem prestes a iniciar um passeio obrigatrio de qualquer escola ou orfanato. Seguiu o padre ao longo do corredor e passou a porta verde entrando no vestbulo da frente. Ali, sentada num banco, estava a freira, forte e de meia-idade, de mos pousadas no colo. Olhou para ele timidamente e depois ps-se de p, baixando a cabea num gesto de respeito. Esta a irm Marta disse o padre de barbas.Ela inclinou mais uma vez a cabea. E eu sou o padre Prisbek. Baixou a voz at se tornar um murmrio. Ns j falamos. Pela parede. Vamos l para fora? perguntou a freira e olhou em redor com o ar furtivo do prisioneiro. Mas no havia ningum no vestbulo. Prisbek abriu a pesada porta da frente e saram os trs.Alm das galinhas achavam-se no ptio quatro vacas frsias metidas em baias e perto do trator enferrujado algum amontoara vrios sacos de adubo. Dirigiram-se a um porto que Prisbek abriu, levantando uma pesada barra de ferro que tinha atravessada. L fora caminharam cuidadosamente evitando um charco de esterco de vaca no stio onde os animais se haviam reunido espera de serem levados para dentro do estbulo. Por aqui, Eminncia avisou Prisbek e apontou para uma zona coberta de madeira. Ali adiante est calmo. um bom stio para dar um passeio. A freira, lanando um novo olhar furtivo, ps-se a seu lado enquanto caminhavam pela vereda que ia dar ao bosque. Ficamos penalizados com o que ouvimos dizer sobre o motorista. Os inocentes, Eminncia, esses que sofrem. Quem que lhe contou do meu motorista?Novamente ela olhou com ar furtivo, embora para grande surpresa dele no parecesse haver guardas em redor. Os "gabardinas", foram eles que nos disseram esta manh. Ento h quanto tempo c est, irm? H trs dias, Eminncia. E voc? perguntou a Prisbek, que ia um passo atrs. H trs dias tambm, Eminncia. Fomos trazidos para c os dois no mesmo dia. Porqu?Prisbek encolheu os ombros: No sei. Disseram-nos que vinha para ficar e que tnhamos de ajudar a tornar a sua estada to confortvel quanto possvel. Contudo, o acidente s se deu ontem noite comentou o cardeal, parando a fim de olhar para os dois. Mas eles continuaram a andar, como se ele no tivesse dito nada. Por fim, a freira disse na sua voz murmurada: Acho que nos trouxeram para c porque lhe querem agradar, Eminncia. O que que quer dizer? Porque que o Governo havia de querer agradar-me? Porque o respeitam, Eminncia. Sabem que est a ajudar, tanto quanto lhe possvel.Olhou para ela sub-repticiamente enquanto continuavam a andar. Tinha um grande sinal peludo na face. Havia algo na sua atitude furtiva que o perturbava e, recordando o que ela dissera, conclua que no estava ali presa. Ela e Prisbek eram provavelmente membros da Organizao do Clero Patritico, aquele grupo de religiosos catlicos formado pelo padre Bialy, apadrinhado pelo Governo, porque haviam aceitado os objetivos e a legislao do Partido. Por isso no havia ali guardas. Aqueles eram os seus guardas.Voltou-se e olhou para o padre de barba. Que parquia a sua, padre Prisbek? Eu no tenho parquia nenhuma a meu cargo. Ento, onde que est sediado?Viu o homem hesitar. Talvez no fosse sequer padre. Depois respondeu: Sou professor de Matemtica no Seminrio de Majanow.Era mentira. Majanow pertncia diocese do bispo Bednortz e era tudo menos um alfobre de clero patritico. No entanto, deviam ter preparado aquele homem para desempenhar o seu papel. Onde esto os guardas? perguntou em latim. Esto a observar-nos do muro respondeu imediatamente Prisbek."Ento, padre." E quais foram os deveres de que os "gabardinas" o incumbiram, padre Prisbek? Devo agir como seu capelo. Devo providenciar para que possa celebrar missa aqui. E a si, irm? Disseram-me que Vossa Eminncia tem uma lcera no estmago e que precisa de uma dieta especial. Devo supervisionar as suas refeies. Esto desatualizados. Como diz, Eminncia? J no tenho dieta especial. Alis, isso irrelevante. Sairei daqui logo que fale com o ministro para os Assuntos Religiosos.Viu-os trocar olhares. O ministro seu amigo, Eminncia? perguntou a freira. Claro que no! Mas no um inimigo sugeriu a freira, com o seu estranho sorriso. Ou seja, no o v como um inimigo, pois no, Eminncia? No penso em ningum como meu inimigo. Nem a irm devia pensar.Tinham chegado ao bosque. Na sua frente viu, entre as rvores, um caminho que levava a uma pequena clareira, onde havia uma mesa de piquenique e bancos de madeira. Enquanto caminhavam pela vereda, ouviram um som ensurdecedor, por cima das suas cabeas.Como uma sombra de morte, uma mancha escura tapou o Sol. A forma negra materializou-se ento num enorme jato de passageiros, qual charuto prateado, e que voava baixo sobre as rvores, como se se fizesse pista. Ao olhar para cima viu de imediato as marcas nas asas e identificou-as como LOT, a insgnia das linhas areas polacas, que voava para a capital duas vezes por semana. Um avio de um vo internacional a passar to baixo deveria querer dizer que no estavam longe da cidade. Como o barulho se mantivesse, olhou para Prisbek. Tinha na boca uma pergunta, que no ousava formular. Prisbek iria mentir. Prisbek e a freira podiam ter sido ali postos para lhe captar confidncias, que ajudassem os "gabardinas" a conhecer as suas idias. No devia fazer perguntas.Pensou em Joseph. Quando entravam os trs na clareira onde estava a mesa de piquenique, parou e virou-se para Prisbek: Disse que providenciou para que eu pudesse celebrar missa aqui. Sim, Eminncia. Muito bem, ento. Gostaria de celebrar missa esta manh por alma do meu motorista. Poder ser? Claro, Eminncia. Vamos ento tratar disso.

5O altar em que transformou o po e o vinho no corpo e sangue de Cristo era, na realidade, a secretria de um qualquer professor virada para um quadro poeirento, onde ainda havia vestgios de inscries de giz. Durante a missa, abstrara-se, como sempre, do que o rodeava, mergulhado no mistrio e no milagre do santo sacrifcio. Mas, naquele momento, ao fazer a genuflexo perante este simulacro de altar e ao levantar-se, dizendo as palavras que indicavam sua pobre audincia que a missa terminava, pensou naquelas missas celebradas em prises e campos de concentrao por padres como ele, muitos dos quais haviam morrido no cativeiro, durante os longos anos da ocupao alem. Era um rapazito de quinze anos quando os primeiros tanques soviticos chegaram s ruas da capital, fazendo recuar os Alemes, quarteiro arrasado a quarteiro arrasado. Enquanto outros rapazes da sua gerao lamentavam ser demasiado jovens para entrar na luta, ele sentir-se-ia defraudado na honra de sofrer a priso e a violncia em nome de Cristo. Agora, ao recordar essa poca, voltou-se para encarar os seus carcereiros, fazendo o sinal da bno, e viu, entre as carteiras da sala de aula, o padre Prisbek, que ajudara missa, e, ajoelhada a meio da sala, a estranha freira. Junto porta, com as armas de caa penduradas ao ombro, estavam os dois homens de casacos de couro e a entrar vinha o major da Segurana. Este parecia perturbado. Olhava, no para o altar, mas para o quadro que estava por trs, e, reparando que era observado, fez um sorriso. um estranho local para uma cerimnia religiosa, Eminncia. No muito. Tambm so celebradas nalgumas prises, no so? No sei respondeu o major da Segurana, passando do altar improvisado para o quadro. Pegou no apagador. Deviam-lhe ter limpo isto disse com um sorriso falso. Queremos mostrar todo o respeito por si."O que que est no quadro que ele quer esconder?" Observou o major enquanto ele apagava as garatujas. Apenas uma era decifrvel e decorou-a. Segundos depois o apagador sumia-a. Se tem vontade de demonstrar o seu respeito por mim, encontrar, com certeza, maneira de me pr em contato com o ministro Mazur.O major pareceu satisfeito ao ouvir isto. Com certeza. Vim mesmo dizer-lhe que consegui alguma coisa. Se quiser fazer o favor de me seguir. Padre Prisbek.O padre de barba ruiva deu um passo em frente. Estendeu a estola a Prisbek e desapertou as fitas da casula, que Prisbek lhe arranjara. Depois seguiu o major por entre as carteiras espalhadas. Desta vez, quando chegaram ao vestbulo, no passaram pela porta verde, nem entraram no gabinete do coronel Poulnikov, mas subiram trs lanos at ao topo do edifcio.Ali, numa ampla sala vazia, como um sto, com teto esconso e cho poeirento, o homem chamado coronel Poulnikov estava sentado com outro homem, em cadeiras articuladas, ambos debruados sobre uma comprida mesa, na qual estavam trs telefones de campanha, um transmissor de onda curta e uma caixa de metal que continha material eletrnico pouco vulgar. O coronel ps-se de p imediatamente e fez a sua vnia antiquada. Apreciou o seu passeio, Eminncia? Lembre-se de que se tiver alguma queixa eu estou aqui para o ajudar.Ele ignorou o comentrio e perguntou: Ento, o ministro? Claro!O coronel fez sinal ao outro homem que estava por trs da mesa. Este calava botas verdes de borracha, enlameadas nos saltos, perneiras de bombazina castanha e um casaco molhado como se acabasse de regressar do trabalho no campo. Deu manivela do telefone de campanha, depois olhou para o pequeno monitor da caixa. Est a entrar em contato disse, apontando uma cadeira articulada, junto ao segundo telefone de campanha. Sente-se a, por favor.Ouviu-se uma campainha. O homem de botas de borracha pegou no primeiro telefone de campanha, ouviu e depois apontou para o segundo. Atenda esse, Eminncia.Fez o que ele lhe dizia. Normalmente, quando telefonava da residncia para os gabinetes ministeriais da Rua Lubinova, os seus secretrios falavam com os secretrios ministeriais e depois, num gesto de respeito pelo Estado, ele decidia esperar, pronto para o momento em que o ministro atendesse o telefone. Mas, desta vez, quando pegou no auscultador, tinha algum sua espera. Est l? perguntou uma voz que no lhe era familiar. Est? Daqui fala o cardeal Bem. Eminncia, sou Starin, o vice-ministro. O ministro est em Gudno e no podemos contat-lo telefonicamente. Est a decorrer l um encontro do Clero Patritico. Foram-me dados poderes para agir na sua ausncia. Starin? J nos conhecemos? J sim, Eminncia, mas duvido que se lembre.Os trs homens observavam-no o coronel, o major da Segurana e o homem de botas de borracha enquanto ele tentava recordar um rosto que se ligasse quela voz. Foi na reunio de Abril? No, senhor. Como se recorda, foi uma reunio particular entre Vossa Eminncia e o ministro. Sim, sim, foi. Conhecemo-nos antes disso, Eminncia. Mas, tal como disse, isso no importante. No se lembraria. Ento, em que posso ser-lhe til? No pedi que me trouxessem para aqui. Nem pedi para ficar sob "custdia". O meu desaparecimento nesta altura ser uma ameaa maior para a estabilidade do que qualquer hipottica conspirao contra a minha vida. No h nada de "hipottico" na conspirao contra a sua vida. Algum tentou mat-lo e temos razes para crer que tentar novamente. Muito bem. Ento, quem que est a tentar matar-me? No sabemos, Eminncia. possvel que sejam catlicos a quem desagrada a sua poltica. Mas isso ridculo. Catlicos a tentarem matar um padre catlico. Acho que isso no faz qualquer sentido, senhor Starin.Enquanto falava, viu os trs homens trocarem olhares. No percebeu o significado daqueles olhares. A voz ao telefone disse ento: Deixe-me fazer-lhe uma pergunta, Eminncia. O que faria se dentro de trs dias nas celebraes do jubileu, em Rywald, a Igreja anunciasse que j no existe concordata entre a Igreja e o Estado e que chegou a altura de o povo deste pas desafiar abertamente o Governo, numa manifestao da vontade nacional?Ficou a olhar fixamente os rostos que o observavam. Percebeu que tinham ligado qualquer dispositivo que lhes permitia ouvir Starin do outro lado da linha. Tambm eles o coronel, o major da Segurana e o homem das botas de borracha esperavam a sua resposta. Se me dissessem isso responderia assim: sou o chefe da Igreja deste pas e, como tal, sou a nica pessoa com poder para apresentar um ponto de vista desses. E rejeitaria uma tal declarao publicamente e de imediato.Viu de novo os rostos perscrutadores trocarem olhares disfaradamente. Starin respondeu ento: isso de fato o que pensamos, Eminncia. Por isso, est a ver. Se existir uma tal conspirao, ou seja, uma conspirao para usar as festividades do jubileu para fins contra-revolucionrios, ser-lhes-ia necessrio afast-lo primeiro. Matando-me? O vosso problema que pensam que toda a gente utiliza os vossos meios. No acabei, Eminncia. Supondo que essa gente, esses fanticos, no digo que representem a maioria dos catlicos deste pas, supondo que essa gente, esses fanticos, como disse, o matam e arquitetam depois uma histria falsa sobre essa morte. Que histria falsa? Aquela conversa parecia um sonho. Nos sonhos, as ameaas mais improvveis pesam com enorme plausibilidade. E, agora, a voz do outro lado do fio falou com uma fora prpria de um sonho. Uma histria falsa dizendo que foi morto por ns, Segurana Interna, porque temamos que o seu sermo apelasse revolta declarada. Mas essas pessoas so catlicas. J disse isso, Eminncia. E depois? Matar-me seria um pecado mortal. No estou certo de que concordariam consigo comentou a voz. A morte de um traidor um crime ou um ato de patriotismo?Os trs homens observavam-no. Os olhos azuis-claros do coronel Poulnikov estavam fixos nele, sem pestanejar, como se fossem os olhos de um retrato. "O que hei-de dizer? Como poderei convenc-los?" Mas eu no devo desaparecer. Sobretudo se o que diz verdade. Como posso evitar derramamento de sangue, aqui fechado... nesta quinta, ou l o que isto?Quando ele disse isto os trs homens voltaram-se uns para os outros e o coronel fez um sinal afirmativo, como que confirmando qualquer coisa. Nesse momento ouviu-se um estalido. Est? Est l? perguntou, mas a linha tinha sido cortada. O homem das botas de borracha pegou no outro auscultador, deu manivela do telefone de campanha e voltou a pousar o auscultador no descanso. A chamada est terminada disse sem se dirigir a ningum em especial. Creio que terminou comentou o coronel. No vale a pena voltar a ligar. Mas importante. No percebem que se vai haver uma revolta vo precisar da minha ajuda? Lamento, mas temos de nos contentar com isto at nova ordem comentou o coronel. Quer voltar para o seu quarto?Era intil. Fez um sinal afirmativo e o major da Segurana levantou-se de imediato e veio ter com ele. Tinha um ar inexplicavelmente irritado. Ento eu acompanho-o sugeriu o major indo com ele at porta. Ao sair, o coronel levantou-se e fez uma ligeira vnia de despedida. O das botas de borracha ligou a bateria da caixa eletrnica.Quando comearam a descer a escada, o major, que ia frente, voltou-se e disse: Quando eu era rapaz li umas coisas sobre maus padres... percebe, como aqueles papas, os Brgias, gente muito corrupta, que era cruel e gananciosa. Perguntei ao meu pai coisas sobre isso e ele disse que era apenas propaganda manica... tudo mentira. Mas sempre me perguntei e ainda me pergunto: o que far de um homem como o senhor corrupto? Poder? Est a querer dizer que eu sou corrupto?O major parou na escada e depois continuou a descer, enquanto respondia: Estou. E porque que pensa isso? Acredito que far seja o que for para manter o seu poder. Para se manter o chefe da Igreja, - aqui.Tinham chegado ao fim do primeiro lano e iam entrar no segundo. Olhou para o cimo do cabelo do major, luzidio de brilhantina, um passo sua frente. No admira que vocs, comunistas, no consigam entender a nossa gente. Vem tudo no vosso espelho distorcido. Ah, sim? O que que Vossa Eminncia quer dizer com isso? perguntou o major. Quero dizer que o poder o que vos interessa. No a mim.Chegaram ao fim do segundo lano e o major precedeu-o pelo corredor que ia dar ao seu quarto. O major abriu a porta, que no estava fechada chave, e ficou na soleira espera que ele entrasse. Ento no est interessado no poder comentou o major. No posso acreditar. O que queria que eu pensasse? Que quer ser um santo ou um mrtir, isso? Estou aqui na terra para servir Deus. Isso e s isso. Tretas. A religio no est sequer metida na sua pele. um carreirista, o que o senhor . Espero que esteja enganado.O major sorriu, com um sorriso furioso. No, no me parece. Voltou as costas e deixou a porta aberta. O almoo s duas horas. Vimos busc-lo.

6Algures nas cozinhas, que no se viam, um rdio emitia msica de dana, uma melodia de antes da guerra que ele recordava dos tempos de escola. O entrechocar de pratos indicava que estavam ali a trabalhar pelo menos duas pessoas. A uma enorme mesa, que era uma tbua montada num cavalete, na sala de jantar da escola, estava sentado sozinho com o padre Prisbek, enquanto que na outra extremidade os guardas, com as armas encostadas aos bancos, se iam servindo de couve-roxa. Noutra mesa igual, em frente da dele, estavam o coronel, o major da Segurana e o homem das botas de borracha, que se serviam de uma terrina de batatas cozidas que depois passaram a Prisbek. A freira veio da cozinha trazendo uma travessa com salsichas pequenas. Ao passar por ele disse: Queira aguardar um momento, Eminncia, temos ovos cozidos para si. Sei que no pode comer coisas condimentadas e isto condimentado. Eu sei que condimentado. So salsichas Karamalinker, as minhas preferidas. Vou comer algumas. Tem a certeza de que quer? Claro! J lhe disse que no estou a dieta. Salsichas Karamalinker. De primeira. Tambm so as minhas preferidas comentou o coronel. Eu gosto das Dalancas disse o homem das botas de borracha. Aquelas que tm a pele rIja. Falam daquelas salsichas polacas, como que se chamam... Debreciners... mas no tm semelhana com as nossas Dalancas. como o presunto polaco afirmou o coronel. No se compara com o nosso presunto, sobretudo com o produto sem sal, de Galina, que conhecido dos especialistas. O melhor presunto do mundo? No tenho razo, Eminncia? - perguntou o major.Ele fez um sinal afirmativo, enquanto observava o homem das botas de borracha a espalhar abundantemente mostarda nas salsichas. "Porque ser que as pequenas naes, como a nossa, se gabam de acontecimentos triviais: do presunto famoso em todo o mundo ou da equipa de hquei no gelo?" E quanto nossa msica e literatura disse olhando diretamente para o coronel , j fomos famosos nisso. E ainda somos concordou o coronel. Stanislaus Lork ganhou, em Viena, o Prmio Internacional de Literatura... Quando foi? No ano passado?... H dois anos?Fez-se um silncio sbito mesa. Viu o major da Segurana baixar a cabea, como se algum tivesse falado na morte. Claro que ele no o melhor exemplo emendou o coronel. A sua obra foi considerada decadente. Decadente? Isso no sei lanou o homem das botas de borracha enquanto estendia a mo para o boio de picles. No leio fico, nem poesia, nem nada dessas coisas. Mas sei que no gosto de gente que foge para o Ocidente quando as coisas se tornam difceis. Lork no fugiu disse acaloradamente o padre Prisbek. Foi empurrado para fora. Bom, seja como for comentou o homem das botas de borracha. Ele agora no passa de um animalzinho de estimao do Ocidente. Como aqueles artistas no exlio que andam por Paris ou Nova Iorque a falar do seu sofrimento enquanto ns... parou a frase a meio. Como que entramos neste assunto? perguntou irritado.O major da Segurana, que tinha estado calado, respondeu em voz baixa: Foi o cardeal quem puxou o assunto. Freqentou a escola jesuta, no frequentou, Eminncia? Frequentei e o vosso primeiro-ministro tambm. Ah, sim? O coronel pareceu surpreendido. Nesse momento entrou a freira vinda das cozinhas. Quem quer ovos cozidos? Fi-los para Sua Eminncia, mas se algum dos senhores...?O coronel abanou a cabea e limpou a boca a um guardanapo de papel. So catorze e cinqenta disse o homem das botas de borracha. Levantaram-se os dois ao mesmo tempo. Pode lev-lo a dar outro passeio, se ele quiser disse o coronel a Prisbek. Depois ele, o major e o homem das botas de borracha saram. Bom, algum quer estes ovos? perguntou a freira.Um dos guardas armados levantou a mo.

7s quatro horas, quando terminou as vsperas, no seu quarto, que agora considerava uma cela, ouviu um motor de automvel l fora. Foi at janela e viu l em baixo, no ptio, o coronel e o homem das botas de borracha treparem para um caminho enlameado, nas traseiras do qual estavam umas pranchas compridas, daquelas que usam os construtores. O coronel gritou qualquer coisa que ele no ouviu e alguns dos homens de casaco de cabedal abriram o porto da quinta. O camio saiu.Estivera a chover. Os paraleleppedos do pavimento do ptio estavam molhados. L por cima, rugindo sobre o edifcio, um enorme avio descia das nuvens, baixando como se se preparasse para aterrar. Viu que era um avio de passageiros da companhia sovitica Aeroflot. Quando o barulho do avio diminuiu, ouviu algum bater porta. Sim?A porta abriu-se. Era o padre Prisbek. Trazia um impermevel amarelo do tipo dos que se usam em barcos vela. Trazia outro, que lhe estendeu, dizendo: Deram-me isto. Quer ir agora dar um passeio? Fora dos muros? Sim. No puseram qualquer objeo. Muito bem, ento. Pegou no impermevel e seguiu Prisbek pela escada. No havia ningum vista no trio nem nas salas adjacentes. Prisbek abriu a porta da rua e atravessaram o ptio, onde os homens de casaco de cabedal lhes abriram o porto como haviam feito ao caminho do coronel momentos antes. Acha que vai chover outra vez? perguntou Prisbek a um dos homens, quando passavam pelo porto. No se preocupe que no passar de um aguaceiro - foi a resposta.Caminharam pela vereda que levava ao bosque. Ningum parecia segui-los. Olhou disfaradamente para Prisbek, reparando que ele tinha a cara manchada por um eczema, por baixo da esparsa barba ruiva. Lembrou-se da forma acalorada como Prisbek respondera, defendendo Lork, o escritor que preferira o exlio. "Poderei confiar nele?" Diga-me, por acaso pertence ao Clero Patritico?Prisbek parou e voltou-se: Est com certeza a brincar, Eminncia! Bom, essa idia passou-me pela cabea. Como sabe, o Clero Patritico trabalha estreitamente com o Governo. So traidores ripostou Prisbek. Estou surpreendido por pensar, por um momento sequer, que eu pertena a essa escumalha. Ento, porque que est aqui? Fui trazido para c. O meu papel funcionar como seu capelo e eu concordei. Pensei que isso o ajudaria. Mas deve saber que sou eu que nomeio os meus capeles.Prisbek hesitou e respondeu: Claro, mas no se pode esperar que eles saibam isso, pois no?Olhou novamente para Prisbek enquanto continuavam a caminhar em direo ao bosque. H aqui uma coisa que me faz confuso confessou o cardeal. Porque que nos permitem passear sozinhos fora dos muros? H guardas, mas no esto a vigiar-nos. Porque pensa que ser?Prisbek encolheu os ombros: Disseram-me que seria intil tentar fugir. Estamos por aqui perdidos no meio de nenhures. Foi o que o coronel disse. Estamos? H minutos passou um avio sovitico a fazer-se pista para aterrar. No podemos estar longe da cidade. Acha? perguntou Prisbek. Acho, e se esse o caso, deve haver uma estrada principal aqui perto. No sei. Olhe, Eminncia, no quero ser pessimista, mas no vejo como poderamos fugir. Por uma razo: no temos transporte.Haviam entrado no bosque e iam caminhando pela vereda que ia dar mesa de piquenique abandonada. Contudo, tenciono tentar.Apressou o passo. Enquanto vestia o impermevel amarelo pensava: "Isto far-me- parecer menos com um padre." Com Prisbek atrs de si, passou pela mesa de piquenique e, abandonando a vereda, debatia-se com a espessa vegetao baixa. Duas vacas a mugir, assustadas, surgiram debaixo das rvores, quando ele se aproximou. Ouvia Prisbek, ofegante, atrs de si. Incongruentemente, recordou-se de uma conferncia que dera no Inverno anterior exortando o clero a fazer mais exerccio e a manter o corpo em forma. Aquele homem tinha metade da sua idade. Continuou a caminhar. sua frente viu a orla do bosque e para l dela os campos arados. Entraram num desses campos e olharam em volta. Alguns melros levantaram vo dos sulcos e voaram para longe. Olhou todo o campo, depois voltou-se para Prisbek, que ali estava, ofegante, virando a cabea para um lado e para outro, como se procurasse um inimigo. Ento, Prisbek, o que acha? Damos uma corrida? Para onde? inquiriu Prisbek com as palmas das mos para cima num gesto de impotncia. Onde estamos? Olhe disse, apontando. No extremo do campo havia uma pequena estrada secundria, no era uma vereda de quinta, mas uma superfcie alcatroada. Comeou a caminhar, quase a correr pelo campo arado, com os ps enterrando-se na terra mole. Ouvia Prisbek atrs de si. Continuou, ali em campo aberto, um pouco espera dum tiro. Eminncia, acho melhor voltarmos para trs. Porqu? O que que voc ? Um padre ou um polcia? Devamos voltar para trs! insistiu Prisbek. Parecia histrico. Meu Deus, quer que o abatam? Se for essa a vontade de Deus, serei abatido. Entretanto decidamos. Que direo vamos tomar?Tinham chegado a uma estrada secundria. Parou e olhou para o bosque, tentando perceber em que direo o avio vinha a descer. Por favor, Eminncia, oua-me pediu o padre Prisbek. Vo descobrir-nos. E quando nos levarem de volta vo fechar-nos. Seria mais fcil se regressssemos agora. Faa como quiser disse ele a Prisbek. Eu vou por aqui. Apontou para a estrada e comeou a caminhar. Dali a um minuto ouviu passos atrs de si. "Vir ele atrs de mim como meu carcereiro ou como meu aliado? Por que razo estamos livres? Ou ser que estamos mesmo livres?"Prosseguiu. L adiante, na encosta da colina, havia um pequeno edifcio de cuja chamin saa fumo e, no tosco ptio em frente, pastava um cavalo. Era o nico vestgio de habitao humana em qualquer dos lados da estrada. Olhou para trs e viu Prisbek a caminhar apressadamente, a vrios passos de distncia. Tudo estava calmo, com aspecto rural e adormecido. Era uma quente tarde de Vero. De repente, houve uma certa agitao na sua frente, quando duas ovelhas de focinho preto saram da estrada, lutando para conseguirem passar por um buraco na sebe, para um campo de trigo.Havia pouco trnsito naquela estrada. Pensou no caminho enlameado em que o coronel e o homem das botas de borracha haviam partido, um caminho carregado de pranchas de madeira. "Porque viajava a Segurana num veculo daqueles a no ser para enganar a populao da regio? No querem que ningum saiba que eu estou aqui. Ento, porque nos permitem caminhar por esta estrada?" Eminncia, Eminncia!Prisbek, uns vinte metros abaixo da estrada, estava sentado beira de um valado, agarrado coxa, como se lhe doesse. O que se passa? O meu joelho. Torci qualquer coisa."Ser truque? Mas se est mesmo com dores uma vergonha abandon-lo." Voltou atrs, relutantemente, e foi ter com o padre de barba ruiva. Consegue andar? Venha que eu ajudo-o.Prisbek tentou levantar-se desajeitadamente, mas, franzindo o sobrolho, voltou a sentar-se. V, continue. Eu fico aqui. No me agrada deix-lo.Prisbek levantou os olhos e disse num tom de amargura: Deixe-me, deixe-me. Isso no lhe interessa. Meteu-me nisto. Sim. Acho que sim. Ficou ali por um momento a pensar. Se no pode andar, vou ver se consigo arranjar ajuda. Ajuda? Que ajuda? Continue, continue, deixe-me. Adeus, Eminncia. Farei o que puder disse e voltou-se, afastando-se.A estrada estendia-se sua frente, vazia e silenciosa. "Porque me sentirei como Judas, ao abandonar este homem, que pode, por sua vez, ser um bode expiatrio, trazido para aqui para me armar uma cilada? A simples caridade exigiria que no condenasse Prisbek, sem conhecer o seu motivo. Ajudai-me, Senhor!"Sempre que rezava e durante o ato da orao, tentava abrir aquela porta interior que d acesso ao silncio de Deus, de Deus que esperava, observava e julgava. Pensou nas festividades do jubileu que se aproximavam, na tera-feira seguinte, nos milhares e milhares de peregrinos que subiriam a montanha de Jasna at igreja construda h j duzentos anos em honra dos Mrtires de Setembro. Ali, num local dedicado a Deus, podia encadear-se uma srie de acontecimentos que lhe viesse destruir as facilidades obtidas: o direito de ter escolas de catequese, o direito de publicar literatura religiosa, o direito liberdade de culto e o direito de construir igrejas em novos territrios. Tudo isso desapareceria. Em vez disso, haveria tanques nas ruas, tortura em salas secretas, prises a transbordar, espancamentos e mortes. "Ajudai-me, Senhor. Fazei com que eu esteja em Rywald nesse dia. Tenho de ser visto. Tenho de ser ouvido."

8No silncio daquele local o nico som existente fora o crocitar dos corvos e os seus passos na estrada. Mas um rudo, que ia aumentando de volume, f-lo erguer a cabea. L frente, numa curva da estrada, surgiu um pequeno carro que avanava lentamente. Parou. O carro aproximou-se. No tejadilho viu um objeto redondo. Um holofote. Polcia. No a Polcia de Segurana, que viajava em Ladas azuis, sem distintivo, mas a Polcia vulgar, cujo carro estava marcado simplesmente com a insgnia amarela, vermelha e azul do Estado. O tipo de carro de Polcia que se encontra em qualquer estrada. Comeou novamente a caminhar, aconchegando o impermevel amarelo ao pescoo para esconder o seu cabeo eclesistico. Vinham dois polcias fardados no carro. Apressou o passo. Deveria cumpriment-los meneando a cabea quando passasse?A uns vinte metros, o holofote do carro comeou a funcionar, espalhando luz vermelha naquele final de tarde. O carro parou. Um dos polcias saiu, apontando para ele e fazendo-lhe sinal para ficar onde estava. Depois, o polcia aproximou-se, estendendo naturalmente a mo, com o ar de um homem habituado a mandar. Documentos?Tinha sempre no bolso do casaco uma carteira velha, com a fotografia da sua falecida me, um atestado mdico com o seu tipo de sangue e a sua histria clnica e o carto plastificado que era emitido para todos os cidados. "Se j andam minha procura intil resistir. Mas se uma verificao policial de rotina, o meu carto no diz mais do que o meu nome prprio e apelido, local de nascimento e idade." Tirou o carto da carteira, mas, ao faz-lo, foi obrigado a abrir o impermevel amarelo, revelando o cabeo clerical ao olhar do polcia. Este verificou o carto e devolveu-o dizendo: O que que faz aqui? O meu carro avariou-se respondeu, surpreendido por ter mentido to facilmente. Onde? Uns quilmetros atrs. Onde vai? No sei. Estamos perdidos. Estamos? Quem?Era demasiado tarde para encobrir o deslize. Alm disso, Prisbek estava ferido e precisava de ajuda. Eu e outro padre. Onde est o outro? Um bocado l mais em baixo. Magoou-se no joelho e no consegue andar. Entre no carro disse o polcia. Ali... para trs.Fez o que lhe diziam. O polcia sentou-se frente ao lado do motorista. H um segundo l em baixo, na estrada disse o polcia ao condutor. O carro arrancou lentamente. Ele olhava para a frente. Prisbek estaria escondido na vala? Ento? gritou o polcia. No sei disse, voltando a apear-se. Se calhar voltou para o nosso carro. No sei. Entre ordenou o polcia. Quando se instalou novamente no banco de trs ouviu o condutor dizer: So quatro e cinqenta. Se nos vamos pr procura do outro, faltamos chamada para a mudana de turno. Tens razo v concordou o primeiro. V, voltemos para trs. Vou lanar a mensagem pelo rdio. No, espera a. O motorista virou o carro e a toda a velocidade afastou-se da zona do bosque. Se lanas agora a mensagem pelo rdio, podem mandar-nos procur-lo. Vamos esperar e mandar a mensagem j mais perto da cidade. Oh, timo comentou o outro e, voltando-se para trs, sorriu maldosamente: Voc chama-se Stephen, eu tambm. Ento temos o mesmo santo padroeiro. verdade. A minha me costumava fazer um piquenique para os midos, nesse dia. Qual o seu outro nome? Peter. No. Refiro-me ao apelido. Estava no carto, mas esqueci-me.Sentiu a garganta apertar-se-lhe. Bem respondeu. Bem? Oh, esse o nome do cardeal. Do seu chefe. Pois . um nome bastante vulgar. Bem do distrito de Biala, no ? perguntou o condutor. Acho que ele do distrito de Biala.Podia ser uma armadilha, mas no lhe pareceu. Eram polcias vulgares a patrulharem uma estrada vulgar. Ou talvez andassem a patrulhar para evitar que as pessoas se aproximassem daquela falsa escola de agronomia? No, no de Biala. da cidade, tal como eu.Continuaram em silncio durante uns momentos. A certa altura o condutor disse: Est atolado at ao pescoo, padre. Porqu? Esta rea reservada. O condutor voltou-se para o colega. No lhe disseste? Ainda no. Porque que o outro fugiu, padre? perguntou o condutor. Ele no fugiu. V dizer isso ao comandante Majewska. J lhes disse. O nosso carro avariou-se e ele tinha o joelho magoado. Provavelmente voltou para trs e foi sentar-se no carro.Mas os polcias pareceram desinteressados. Tinham comeado a mexer no rdio e agora ouviu-se uma voz que anunciava: "Um a zero ao intervalo. As equipas regressam das cabinas. Danielski est de volta! Est recuperado!" Com que ento o Danielski! Tem cuidado, Blgica! comentou o primeiro polcia.Futebol. Lembrou-se que a Taa do Mundo era naquela semana. O polcia ouvia o relato que recomeara, enquanto ele pensava em Prisbek. "Ento ele est do lado deles. Quando ele os avisar de que desapareci, ser que me pem a Polcia local no encalo? Se assim for, quando estes entrarem em contacto pelo rdio ser o fim."Quase no mesmo momento o condutor desligou o rdio. A voz do comentador calou-se. Os polcias puseram-se a olhar, subitamente, para a frente com toda a ateno. Aproximava-se um veculo. Um caminho salpicado de lama. A princpio no teve a certeza, mas depois viu as pranchas de construtor a sair dele. Quem so? perguntou um dos polcias. o pessoal da Escola Agrcola de Ostrof disse o outro. So fixes.O caminho aproximou-se. frente vinha o coronel e o homem das botas de borracha. Instintivamente, baixou a cabea, escondendo a cara, pondo a mo na testa. "Esto de volta. No sabem nada a meu respeito. No sabem nada."Quando o caminho passou por eles, os polcias desinteressaram-se e ligaram novamente o rdio. O narrador gritava: "Kroch tem a bola e passa-a a Damon. Damon vem da esquerda."O caminho passou muito rente, porque a estrada era estreita. No o viu passar, porque voltou a cara para o outro lado da estrada. Parecia que o corpo lhe estremecia, mas no estava a tremer."Danielski, em luta com Damon, rouba-lhe a bola. um espanto este jogador! Domina a bola. Oh, bom trabalho de ps... passa um defesa belga, prepara o chuto... remata! Gol!" Ei, conseguiu! gritaram os polcias em unssono. Lentamente, como se estivesse a ser atacado, encolhendo-se, arriscou-se a olhar pelo vidro traseiro do carro da Polcia. O caminho j ia a uns cem metros, dirigindo-se para a curva da estrada."Que espectculo!" dizia o narrador. "Os colegas de equipe abraados. A multido nas bancadas completamente louca. um grande momento, aqui, no Estdio de Cherny!"Bruscamente um dos polcias baixou o rdio e comentou com voz preocupada: Merda! Estive a pensar. Se comunicarmos que apanhamos um padre e que ainda est outro na zona reservada, o Majewska vai lixar-nos. Devemos entrar em contato, mal encontremos um estranho, e ficar espera de ordens. Certo concordou o outro. E mal nos apanhe em infrao logo uma participao por escrito. Merda!Ligaram novamente o rdio e ouviu-se o rugido da multido no estdio de futebol e o tom exaltado do narrador. Mas percebeu que os polcias estavam a servir-se do barulho para encobrir a conversa que mantinham em voz baixa. Depois, recostaram-se no assento.A paisagem, acidentada, vazia e sem outras estradas, comeou gradualmente a mudar. Mais adiante, a estrada metia-se por uma srie de curvas e, l em baixo, num vale, viu uma pequena povoao, pouco maior do que uma aldeia, com algumas ruas, um largo, um campanrio de igreja e uma rua principal que no conduzia a lado nenhum. O campanrio era tpico das igrejas mais pequenas da sua diocese e os telhados das casas eram do estilo alemo, vulgares naquela zona do pas. Chegaram primeira estrada, que cruzava com aquela, e abrandaram, enquanto um grupo de homens passava de bicicleta, levando marmitas de alumnio e capacetes com luzes incorporadas. Percebeu que eram mineiros. Ao chegarem s primeiras ruas, o carro da Polcia diminuiu a marcha, os polcias desligaram o rdio e avanaram, como se procurassem alguma coisa. O carro comeou a subir uma alameda estreita e inclinada, dirigindo-se a um local que parecia uma lixeira. O condutor dirigiu-se para l e estacionou beira de uma pedreira escarpada. Ao fundo da pedreira havia grandes montes de lixo dispostos de tal forma que pareciam edifcios em runas. Gaivotas, volteando e rebuscando, moviam-se num bando inquieto sobre aquela pestilncia. O polcia, que no ia a conduzir, voltou-se para trs e abriu a porta traseira do carro. Pronto, padre, Saia.Iriam abat-lo? Porque haviam de o abater? Eram polcias vulgares de uma patrulha vulgar. Nada sabiam sobre ele.Mas hesitou. Subitamente sentiu medo. Porqu? perguntou. Porque eu fui menino de coro respondeu um dos polcias e o outro riu-se. No, estou a brincar! Vamos dar-lhe uma oportunidade. No pergunte porqu. Fazemos uma coisa por si e o senhor faz outra por ns. Nunca o apanhamos e o senhor nunca nos viu. Veio a p at aqui para dizer que o seu carro se avariou. No sabia que ia a atravessar uma zona reservada. No estou a dizer que acreditamos em si. Mas isso agora no interessa. Espere disse o outro polcia. Se fosse a si, padre, no dizia que tinha deixado l o carro. No diria nada. Ia apenas tentar chegar a casa. Certo? Agora saia.Ele desenrolou-se do banco de trs e saiu. A porta do carro bateu com fora. O automvel girou numa curva em U e afastou-se alameda abaixo. Estava sozinho, com as gaivotas que volteavam, olhando para a pedreira, com a sua cidade de lixo e as ruas fantasmagricas de detritos malcheirosos. Era como se tivesse sido exilado ali, abandonado, destitudo do posto e de privilgios, que conhecera durante tantos anos. Agora, era um homem perseguido, procurado pelas foras do Estado, que haviam tentado prend-lo. Olhou para o desfiladeiro assombrado pelas gaivotas. sua mente, como uma velha frmula mgica, semiesquecida, acudiam as palavras: "Pro nolflwe Jesu contumelias pati." Sofrer em nome de Jesus. " esse agora o meu destino e tenho de agradecer por isso. A minha tarefa servir-Vos. Por essa tarefa tenho de estar em liberdade."

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Levou a mo ao cabeo e desabotoou-o, tirando-o depois. Tirou tambm o peitilho roxo que revelava o seu estatuto episcopal. Embrulhou o cabeo num leno branco e atirou-o para o desfiladeiro do lixo e ficou a v-los separarem-se e carem entre as gaivotas que volteavam e comiam. Abotoou a gola do impermevel amarelo ajustando-a ao pescoo. Lembrou-se e tirou o anel episcopal e meteu-o no bolso das calas. Virou-se e comeou a caminhar pela alameda estreita que levava auto-estrada."Tenho de encontrar um telefone. Mas os telefones do Secretariado devem estar sob escuta. Se telefonar o mesmo que dizer Polcia de Segurana onde estou. E, se como disse o coronel da Segurana, tenho inimigos dentro da prpria Igreja e isso podia proporcionar-lhes oportunidade de me assassinarem, revelando-lhes o meu paradeiro."Pensou imediatamente em Jan Ley. "Com Jan no tenho necessidade de me identificar. Ele conhece-me a voz, os meus pensamentos, os meus temores e as minhas dvidas. Talvez lhe possa telefonar deste povoado."Uns minutos depois alcanava a estrada e viu na sua frente uma garagem e um ptio cheio de bilhas de gs butano. A garagem estava fechada, as bombas de gasolina pareciam no estar a funcionar, mas, no ptio anexo, um rapaz carregava uma bilha de gs num carrinho de ferro enferrujado. Foi ter com ele. Desculpe. O meu carro avariou-se a uns quilmetros daqui. Acho que estou perdido. Como se chama este lugar? Este lugar? Ricany respondeu o rapaz. Obrigado. Tm telefone? No, no h telefone. Obrigado.Continuou a andar. Tivera razo quando pensara nos mineiros. Ricany era uma aldeia de minas de carvo a uns duzentos quilmetros da capital. Tentou recordar-se se conhecia alguns nomes de membros do clero local, mas claro que no se lembrou. Sempre fora mau para fixar nomes e Ricany no era o tipo de local muito mencionado em assuntos diocesanos.Enquanto caminhava pela rua principal viu um dos novos mercados livres que o Estado concordara em permitir, um amontoado de bancas ao ar livre, que vendiam de tudo, desde roupa usada a cassetes de msica rock. Mais adiante havia a praa da aldeia e a Cmara Municipal, um edifcio renascentista, com um relgio de torre ornamentado, que marcava cinco e vinte. Na parte lateral da cmara havia um vistoso letreiro vermelho proclamando a Semana da Amizade Sovitica e anunciando um circo russo, grtis para toda a gente. Reparou que a data coincidia com as celebraes de tera-feira em Rywald. No ficou surpreendido. Fora planejado para que assim acontecesse. Era um sinal do desconforto que o Governo sentia. Naqueles dez anos de bispado e sete de cardinalato vira o poder do Estado ir-se desgastando enquanto que a Igreja, apesar dos seus erros, assumira uma influncia cada vez maior no esprito das pessoas. O Partido fortalecera insensatamente esse poder, despojando a Igreja de todos os seus bens anteriores guerra e deixando-a to pobre como o prprio povo. E, no entanto, como ele sabia, este poder da Igreja no era real. Era o tipo de poder que ele, como cardeal, teria tido no sculo XVI. Nesses tempos, o cardeal tornara-se o chefe de Estado no interregno entre a morte de um rei e a coroao do seu sucessor."Hoje governo num vazio semelhante. No porque o povo ame Deus, mas porque teme os seus governantes. O reino de Deus no pode ser deste mundo. Por isso ando por estas ruas como um fugitivo."Naquele momento viu, erguendo-se por cima dos atarracados telhados alemes de cor vermelha, um estreito campanrio encimado por uma cruz. Parecia um sinal. Apressou-se por entre as bancas do mercado apinhado de gente, baixando instintivamente a cabea para no ser reconhecido. Mas enquanto passava pelos vendedores ambulantes que apregoavam, pelos homens e mulheres mal vestidos que remexiam nos poucos jeans americanos que estavam expostos, em casacos de Inverno usados, em sapatos blgaros, em fotografias e posters de estrelas de cinema estrangeiras, em pistolas de brinquedo e em peas soltas de automvel, ningum olhou para ele, no houve nenhuma mulher idosa que lhe fizesse um respeitoso cumprimento de cabea, com o qual essa gerao saudava um padre. Ele, que como cardeal raramente andava sozinho, que estava habituado ajuda dos seus assistentes para encontrar um lugar, para instalar uma tribuna, a ter um carro que o aguardava sada, que j se habituara ao fato de a sua faixa carmesim atrair os olhares, olhava agora para rostos inexpressivos, como se, de repente, se tivesse tornado invisvel.Continuou, de olhos postos no campanrio sua frente. Virou numa ruela estreita onde uma inscrio quase sumida numa parede incitava solidariedade com a greve dos mineiros, que se havia dado dois anos antes. Viu dois polcias aproximarem-se. Parou, confundido. Mas os polcias passaram. Virou uma esquina e viu a igreja mesmo sua frente, um edifcio pequ