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A Crise Da Humanidade Européia e a Filosofia - Husserl

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Crise da Humanidade Européiaa de Edmund Husserl

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A CRISE DA HUMANIDADE EUROPIA

E A FILOSOFIA

2 Edio

PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DO RIO GRANDE DO SUL

CHANCELER Dom Dadeus Grings

REITOR Ir. Norberto Francisco Rauch

CONSELHO EDITORIAL Antoninho Muza Naime

Antonio Mario Pascual Bianchi

Dlcia Enricone

Jayme Paviani

Luiz Antonio de Assis Brasil e Silva

Regina Zilberman

Telmo Berthold

Urbano Zilles ( Presidente)

Vera Lcia Strube de Lima

Diretor da EDIPUCRS Antoninho Muza Naime

EDIPUCRS

Av. Ipiranga, 6681 Prdio 33

C. P. 1429

90619-900 Porto Alegre RS

Fone/Fax: (51) 33203523

E-mail: [email protected] www.pucrs.br/edipucrs/ EDMUND HUSSERL

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPIA E A FILOSOFIA Introduo e traduo de Urbano Zilles

2 Edio

Coleo:

FILOSOFIA 41

PORTO ALEGRE

2002

Copyright da EDIPUCRS

1 edio: 1996

FICHA CATALOGRFICA

H972c

Husserl, Edmund

A crise da humanidade europia e a filosofia / Edmund Husserl; introd. e trad. Urbano Zilles. 2 ed. Porto Alegre:

EDIPUCRS, 2002.

96 p. (Coleo Filosofia; 41)

ISBN: 85-7430-285-6

1. Filosofia Alem 2. Fenomenologia I. Zilles, Urbano II. Ttulo. III. Srie.

CDD 193

142.7

Ficha elaborada pelo Setor de Processamento Tcnico da BC PUCRS

Proibida a reproduo total ou parcial desta obra sem a autorizao expressa desta Editora

Capa: Jos Fernando Fagundes de Azevedo

Digitao: Mariane Schneider

Diagramao: Isabel Cristina Pereira Lemos

Diagramao da verso digital: Paolla Monticelli

Reviso: O tradutor

Impresso: Grfica EPEC, com filmes fornecidos

Coordenador da Coleo: Dr. Urbano Zilles

SUMRIO

Introduo / 6

A FENOMENOLOGIA HUSSERLIANA COMO MTODO RADICAL / 8

1 - Dados biogrficos e obra de Husserl / 9

2 - O que caracteriza a fenomenologia husserliana? / 11 3 Como chegar subjetividade transcedental? / 13

3.1 - Ausncia de pressupostos / 14

3.2 - Carter a priori / 15

3.3 - Evidncia apodtica / 16

4 - A intencionalidade da conscincia / 18

5 - Reduo ou epoqu / 23

6 - A intersubjetividade transcendental / 25

7 - Em que consiste o mtodo fenomenolgico? / 26

8 - A crise da humanidade europia e a fenomenologia / 27

8.1 - Nova perspectiva fenomenolgica / 29

8.2 Lebenswelt ou mundo da vida / 31

8.3 - A teleologia / 35

8.4 - A perspectiva filosfica / 37

9 - Deus como tlos do universo / 39

A CRISE DA HUMANIDADE EUROPIA E A FILOSOFIA / 43

INTRODUO Comment by Denise Nunes: O termo fenomenologia tem varios significados determinados por seus diversos pensadores

Etimologicamente a palavra fenomenologia significa cincia ou teoria dos fenmenos.

O termo fenomenologia, a partir de seu timo, tambm foi usado em contexto no-filosfico. O filsofo positivista Ernst Mach (1838-1916), predecessor do Crculo de Viena, postulou uma fenomenologia fsica geral. No sculo XX Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955) designa de fenomenologia ao estudo de uma dialtica da natureza centrada no homem (Le phnomne humain), estabelecendo em torno dele uma ordem coerente entre os diversos elementos do universo.

Na filosofia, antes de Husserl, Lambert utilizou a palavra, no sculo XVIII, na quarta parte do Neues Organon (1764), que intitulou fenomenologia ou teoria da aparncia ilusria e suas variedades, para fundamentar o saber emprico. Numa carta a Marcus Hertz (25/2/1772) Emmanuel Kant anuncia seu propsito de escrever uma obra sobre os limites da razo e da sensibilidade.

Pretendia escrever uma fenomenologia geral como propedutica metafsica, mostrando os limites entre o mundo sensvel e o mundo inteligvel, propsito que realiza na esttica transcendental da Crtica da razo pura (1781).

G. W. F. Hegel (1770-1831) na sua obra Fenomenologia do esprito

(1807) define a fenomenologia como o saber da experincia que faz a conscincia. Mas hoje o sentido vigente o elaborado por E. Husserl desde as Logische Untersuchungen (1900- 1901) e trabalhos posteriores. Designa fenmeno tudo que intencionalmente est presente conscincia, sendo para esta uma significao. O conjunto das significaes chama de mundo. Portanto, a fenomenologia husserliana deve ser distinguida do fenomenismo.

Como Husserl chegou fenomenologia?

Buscando na filosofia o fundamento para a matemtica e a lgica, nas investigaes Lgicas primeiro refuta o psicologismo. Desenvolve a fenomenologia como cincia fundamentadora, baseando-se na anlise reflexa do contedo do ato de pensar enquanto manifesta a realidade (fenmeno). Para encontrar o fundamento, segundo ele, preciso colocar-se acima da mera experincia prtica e despir-se de todos os preconceitos, orientando-se apenas por uma evidncia apodtica, ou seja, destituda de toda a possibilidade do seu contraditrio. Para isso distingue a atitude transcendental da atitude natural. Esta ltima aquela em que espontaneamente

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vivemos, acreditando na existncia do mundo exterior. Caracterstica da atividade filosfica a atitude transcendental na qual evidente o mundo enquanto consciente (transcendental).

A influncia da fenomenologia de Husserl sobre pensadores posteriores marcante. Mas seu influxo extrapola o campo da filosofia estendendo-se ao campo da tica, da psicologia, da sociologia, do direito, etc. Entretanto resta um aspecto fundamental no esclarecido. Trata-se do fenmeno ou objeto intencional. No exigir este nele implicadas tanto a realidade existencial do sujeito cognoscente como a realidade exterior?

Neste sentido parece que Husserl deu um passo importante em suas ltimas obras que, depois de 1930, giram em torno da crise das cincias europias e da fenomenologia transcendental. Nessa fase critica o objetivismo ou a pretenso de que a verdade do mundo apenas se encontra naquilo que enuncivel no sistema de proposies da cincia objetiva. Na Krisis Husserl indaga o porqu do fracasso das cincias, perguntando pela origem dessa crise, redescrevendo a trajetria da razo ocidental e constata que as cincias se afastaram, pela matematizao do mundo da vida, substituindo-o pela natureza idealizada. Elabora uma ontologia do mundo da vida no qual tenta superar o antagonismo entre o objetivo-naturalista e o subjetivo-transcendental do pensamento moderno. Enraza tanto a explicao das cincias naturais como a compreenso dos saberes culturais, lutando contra a absolutizao do paradigma cientfico, que empobrece os problemas humanos.

Julgando que essa fase, na obra de Husserl, fecunda e que seus textos dessa fase ainda no foram traduzidos para o portugus, sendo nossos estudantes muitas vezes privados do acesso aos mesmos, neste trabalho, depois de uma introduo geral fenomenologia husserliana, anexamos a traduo do texto de sua palestra proferida em 1935 no Kulturbund de Viena na verso mais breve como foi publicada por Paul Ricoeur em edio bilnge, em 1977. O texto alemo, no qual nos baseamos, o apresentado pelo Dr. Stephan Strasser do Arquivo Husserl de Lovaina.

Foram as categorias cio mundo da vida e de horizonte que, reelaboradas, ao que parece, constituem a raiz da fenomenologia do Dasein em M. Heidegger, na fenomenologia da percepo de M. Merleau-Ponty, no pensamento de H. G. Gadamer, J. Habermas e K. O. Appel e na hermenutica de P. Ricoeur. Dessa maneira julgamos contribuir para que nossos estudantes tenham acesso ao que h de mais rico e vivo nos vrios caminhos da filosofia contempornea.

Porto Alegre, 15 de maro de 1996.

Urbano Zilles

Urbano Zilles

A FENOMENOLOGIA

HUSSERLIANA COMO MTODO RADICAL

Em 1938 faleceu Edmund Husserl (1859-1938), pai do movimento fenomenolgico contemporneo. A fenomenologia husserliana , em primeiro lugar. uma atitude ou postura filosfica e, em segundo, um movimento de idias com mtodo prprio, visando sempre o rigor radical do conhecimento.

Edmund Husserl foi, sem dvida, um dos filsofos mais fecundos de nosso sculo. Esta fecundidade mede-se por uma dupla razo. Primeiro, pela sua gigantesca produo filosfica e pela qualidade de grande nmero de pensadores que teve como discpulos. Em segundo lugar, destacou-se como o criador da fenomenologia, sendo reconhecido como um dos grandes clssicos do pensamento ocidental.

Husserl procurou descrever acuradamente o mundo como, aparece na conscincia, em todos os seus aspectos, buscando insaciavelmente rigor absoluto, apaixonado pela idia cartesiana da fundamentao radical da filosofia e, com ela, de todas as cincias. Perseguiu uma renovao radical da filosofia no seu conjunto.

1 - Dados biogrficos e obra de Husserl

Edmund Husserl nasceu em 1859 em Prosnitz (Morvia), de famlia judia, mas indiferente no campo religioso. No perodo de 1868-1876 estudou em Viena e Olmutz. De 1876-1878 estudou Matemtica, Fsica e Astronomia na universidade de Leipzig. No perodo de 1878-1881 prosseguiu seus estudos na universidade de Berlim. Durante 1881 estudou na universidade de Viena, perodo no qual tambm se dedicou ao Novo Testamento. Em 1883 doutorou-se em Viena com a tese Sobre o clculo das variaes. A seguir, foi nomeado professor auxiliar de Weierstrass, em Berlim, tendo que suspender suas atividades por motivos de sade.

Depois de realizado o servio militar, dedicou-se leitura de Aristteles e Fenomenologia do Esprito de Hegel. No perodo de 1884-1886 freqentou cursos de F. Brentano, em Viena. Em 1886 batizou-se na Igreja Luterana. Durante 1886-1887, por recomendaes de Brentano, preparou sua livredocncia com C.Stumpf, em Halle.

No perodo de 1887 a 1901 foi professor na universidade de Halle, anos do descobrimento da fenomenologia (Investigaes lgicas). Em 1901 foi nomeado professor na universidade de Gt-tingen. Neste perodo amadureceu a elaborao da fenomenologia (Idias relativas a uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenolgica). Em 1916 foi nomeado professor em Freiburg, funo que exerceu at 1929. Em 1935 fez sua palestra sobre a filosofia na crise da humanidade europia em Viena; em novembro do mesmo ano falou na

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universidade de Praga sobre a crise das cincias europias e a fenomenologia. Morreu em 27 de abril de 1938.

Os intrpretes costumam distinguir trs etapas no pensamento de Husserl, relacionadas a trs das suas principais obras. Fala-se do Husserl das Investigaes lgicas caracterizadas por um logicismo essencialista; das Idias como o idealismo transcendental; da Crise com o vitalismo historicista.

Em 1938, com a ameaa destruidora do nazismo, o franciscano Hermann Leo van Breda transportou clandestinamente cerca de 40.000 pginas de manuscritos estenografados (em sua maioria na taquigrafia de Gabelsberg) e inditos de Husserl para a universidade catlica de Lovaina (Blgica), onde foi fundado o Arquivo-Husserl, que publica suas obras na coleo chamada Husserliana e estudos sobre a fenomenologia na coleo Phaenomenologica. At fins de 1992 foram publicadas as seguintes obras na Husserliana pela editora Martinus Nijhoff, Haia (Holanda) e em Dordrecht:

1 - Meditaes cartesianas e conferncias de Paris; 2 - A idia da fenomenologia; 3 - Idias diretrizes para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenolgica I; 4 - idias diretrizes para zona fenomenologia pura II, (1913); 5 - idias diretrizes para uma fenomenologia pura III; 6 - A crise das cincias europias e a fenomenologia transcendental; 7 - Filosofia primeira I(1923-1924); 8 - Filosofia primeira II(1923-1924); 9 - Psicologia fenomenolgica (1925) 10 - Por uma fenomenologia da conscincia do tempo imanente (1893-1917); 11 - Anlise de uma sntese passiva (19 18-26); 12 - Filosofia da aritmtica (1890-1901); 13 - Sobre a fenomenologia da intersubjetividade I (textos de 1905-1920); 14 - Sobre a fenomenologia da intersubjetividade II (1921-1928); 15 - Sobre a fenomenologia da intersubjetividade III (1929-1935); 16 - Coisa e espao (1907); 17 - Lgica formal e transcendental; 18 - Investigaes lgicas I; 19 - Investigaes lgicas II; 20 - Investigaes lgicas: volume complementar; 21 - Estudos sobre aritmtica e geometria (1886-1901); 22 - Ensaios e recenses (1890-1910); 23 - Fantasia, conscincia imaginativa e recordao (1898-1925); 24 - Introduo lgica e teoria do conhecimento (1906-1907);

25 - Ensaios e conferncias (1911-1921); 26 - Lies sobre teoria da significao (1908); 27 - Ensaios e conferncias (1922-1937); 28 - Lies sobre tica e teoria dos valores (1908-1914);

29 - A crise das cincias europias e a fenomenologia transcendental (volume complementar) (1934-37).

Husserl nunca foi nem ser um filsofo popular. Sua obra de mui difcil interpretao. Entretanto sua atitude e seu mtodo fenomenolgico impuseramse em amplas esferas do conhecimento, Exerceu influncia no s sobre as filosofias da existncia (Heidegger, Sartre) mas tambm sobre o neotomismo e sobre a filosofia em geral, sobre o direito, as cincias da linguagem, como sobre a esttica, a sociologia e a psicologia. Sua contribuio mais importante consiste na elaborao rigorosa e sistemtica do mtodo fenomenolgico e na descrio rigorosa da atitude fenomenolgica.

2 - O que caracteriza a fenomenologia husserliana?

A palavra fenmeno antiga na histria da filosofia ocidental. A palavra fenomenologia agrupa a palavra fenmeno e logos, significando etimologicamente o estudo ou a cincia do fenmeno. Por fenmeno, no sentido originrio e mais amplo, entende-se tudo o que aparece, que se manifesta ou se revela. Originariamente a palavra fenmeno refere-se ao que existe exteriormente, ou seja, fenmenos fsicos. Primeiro os gregos usaram o termo para a manifestao do ser numa ntima unidade entre o ser e aparecer. Com o tempo passou a entender-se por fenmeno a aparncia enganosa, oposta realidade. Assim Plato usa o termo para designar o mundo sensvel, em oposio ao mundo inteligvel. Nesta perspectiva, Protgoras j afirma que podemos conhecer o que aparece, o fenmeno, mas no o que est atrs dele, o que se oculta. Embora tal dissociao entre aparncia e ser no tenha sido aceita por Aristteles, nem por Toms de Aquino, passou a vigorar na filosofia moderna, sobretudo no fenomenismo de D. Hume, para quem o fenmeno, nico objeto de nosso conhecimento, est separado da coisa em si.

I. Kant canonizou tal separao entre o fenmeno e a coisa em si sem,

todavia, indicar como a coisa em si que produz o fenmeno. Este o que aparece como objeto de nossa experincia em oposio coisa em si (nomenon). Assim a fenomenologia de Kant concebe o ser como o limite da pretenso do fenmeno, permanecendo o prprio ser fora do alcance da razo pura. Distinguindo entre objetos da experincia (fenmenos) e coisas em si, transcendentes experincia e incognoscveis, contudo admite um postulado metafsico, fazendo coincidir o campo-limite do conhecimento com os limites da experincia no tempo e no espao. Com o postulado da coisa em si quer mostrar uma realidade independente de nossa mente. Hegel, em sua Fenomenologia do Esprito, reabsorve o fenmeno no conhecimento sistemtico do ser.

Parece que foi J. H. Lambert quem usou pela primeira vez o termo

fenomenologia em seu Novo rganon (1764) para designar a teoria da iluso sob suas diferentes formas. Kant usa o termo phaenomenologia generalis numa carta a Marcus Hertz (1772) para designar a disciplina propedutica que, segundo ele, deve preceder a metafsica. Com Hegel, atravs da Fenomenologia do Esprito (1807) o termo entrou definitivamente na tradio filosfica, tornando-se de uso corrente.

Kant e Hegel, todavia, concebem de maneira diferente as relaes entre o fenmeno e o ser ou o absoluto. Como, para Hegel, cognoscvel o absoluto, este pode ser qualificado como Esprito e a fenomenologia , ento, uma filosofia do absoluto ou do Esprito. Cabe filosofia mostrar como este est presente em cada momento da experincia humana, seja ela religiosa, esttica, jurdica, poltica ou prtica.

Edmund Husserl considera inaceitvel o postulado de que aquilo que aparece na experincia atual no a verdadeira coisa. Deu novo significado fenomenologia, encerrando o fenmeno no campo imanente da conscincia. Husserl no nega a relao do fenmeno com o mundo exterior, mas prescinde dessa relao. Prope a volta s coisas mesmas, interessando-se pelo puro fenmeno tal como se torna presente e se mostra conscincia. Sob este aspecto, deu um sentido mais subjetivo palavra fenmeno, elaborando uma fenomenologia que faa ela mesma s vezes de ontologia. Segundo ele, o sentido do ser e do fenmeno so inseparveis. A fenomenologia husserliana pretende estudar, pois, no puramente o ser, nem puramente a representao ou aparncia do ser, mas o ser tal como se apresenta no prprio fenmeno. E fenmeno tudo aquilo de que podemos ter conscincia, de qualquer modo que seja. Fenomenologia, no sentido husserliano, ser pois o estudo dos fenmenos puros, ou seja, uma fenomenologia pura.

Segundo Husserl, fenomenologia no sinnimo dc fenomenismo no sentido de que tudo que existe seja apenas um fenmeno da conscincia. A reflexo sobre os fenmenos da conscincia , entretanto, o ponto de partida para examinar os diferentes sentidos ou significados do ser e do existente luz das funes da conscincia. Atravs deste mtodo pretende chegar a um fundamento certo e evidente do ser e de suas aparies. A tarefa da fenomenologia , pois, estudar a significao das vivncias da conscincia.

Husserl colocou-se como tarefa de toda a sua vida, ao menos a partir de 1908, a fundamentao ltima da filosofia, decisiva para o futuro, na forma de uma cincia de rigor. A particularidade da filosofia, segundo ele, est no fato de no ser uma disciplina especfica entre outras, mas abrange os problemas fundamentais e metdicos de todas as cincias positivas como cincia dos fundamentos. Portanto, a renovao da filosofia tambm significar uma reorientao de todas as cincias. Essas, por sua vez, no so simples teorias logicamente estruturadas mas desembocam em tcnicas e possuem uma relevncia de vida ao menos indireta na medida em que so destinadas a contribuir ao bem-estar e a felicidade do homem atravs da melhoria da qualidade de vida.

Como filsofos, segundo Husserl, devemos orientar-nos para o mundo interior, que chama de transcendental enquanto chama o mundo exterior de transcendente. Deste modo o ser transcendente o ser real ou emprico enquanto o transcendental o irreal ou ideal, mas no fictcio. Prope-se explorar as riquezas da conscincia transcendental, pois, segundo ele, o filsofo no precisa recorrer ao mundo transcendente. Cabe-lhe buscar a evidncia apodtica ou indubitvel na subjetividade transcendental atravs da descrio dos fenmenos puros. S na volta s coisas mesmas o filsofo encontrar a realidade de maneira plenamente originria e com evidncia plena. Portanto, a fenomenologia no se prope estudar puramente o ser, nem puramente a representao do ser, mas o ser tal como e enquanto se apresenta conscincia como fenmeno.

A fenomenologia tem por vocao ser prima philosophia e, por isso, a radicalidade do pensamento cartesiano. O caminho genuno da atividade filosfica a reflexo. Parte do cogito e de suas cogitata, do eu, das vivncias do ego. Por isso o mtodo fenomenolgico consiste no acesso ao campo da conscincia para submet-lo anlise. Ego cogito cogitatum o esquema do mbito da anlise fenomenolgica. Como todo cogitare se orienta para algo intendio- na fenomenolgica fala-se de anlise intencional como seu mtodo prprio de investigao.

3 Como chegar subjetividade transcendental?

J nas Investigaes lgicas (Tomo 2, 1 parte) Husserl dizia: Significaes que no fossem vivificadas seno por intituies longnquas e imprecisas, inautnticas se que isto acontece atravs de intuies quaisquer- no nos puderam satisfazer. Nos queremos voltar s coisas mesmas. Segundo Husserl, o discurso filosfico sempre deve manter contato com a intuio. Do contrario redunda em conversa vazia. O retorno intuio originria a fonte de verdadeiro conhecimento. Por isso no convm que a impulso filosfica parta das filosofias feitas, das opinies de grandes pensadores, mas das coisas e dos problemas, tendo um ponto de partida imediato.

Segundo Husserl, quando um fato se nos apresenta conscincia, juntamente com ele captamos uma essncia(Wesen, eidos). Se, por exemplo, ouvimos diferentes sons, neles reconhecemos algo de comum, uma essncia comum. No fato, portanto, captamos sempre uma essncia. As essncias so as maneiras caractersticas do aparecer dos fenmenos. No so resultados de uma abstrao ou comparao de vrios fatos. Para poder comparar vrios fatos singulares, j preciso ter captado uma essncia, ou seja, um aspecto pelo qual eles so semelhantes. O conhecimento das essncias intuio diferente daquela que nos permite captar fatos singulares. As essncias so conceitos, isto , objetos ideais que nos permitem distinguir e classificar os fatos.

A fenomenologia pretende ser cincia das essncias e no dos fatos. cincia de experincia, que descreve os universais que a conscincia intui quando se lhe apresentam os fenmenos. As essncias no existem apenas no interior do mundo perceptivo. Recordaes e desejos tambm tm a sua essncia, apresentando-se de modo tpico conscincia. Assim as proposies lgicas e matemticas so juzos universais e necessrios porque so relaes entre essncias. Pela referncia s essncias ideais, a fenomenologia possibilita o que Husserl chama as ontologias regionais. Regies so a natureza, a sociedade, a moral e a religio. Estudar essas ontologias regionais ento significa captar e descrever as essncias ou modalidades tpicas com que os fenmenos sociais, morais ou religiosos aparecem conscincia. Husserl contrape a essas ontologias regionais a ontologia formal ou a lgica.

Para fundamentar uma filosofia como cincia de rigor, segundo Husserl, exigem-se trs condies: a) ausncia de pressupostos; b) carter a priori; c) evidncia apodtica.

3.1 - Ausncia de pressupostos

Husserl tenta filosofar a partir dos problemas da vivncia da conscincia prescindindo do mundo exterior ou do que outros grandes pensadores j disseram, pois teorias podem ser no s uma ajuda mas tambm um obstculo para chegar s coisas mesmas (fenmenos). A fenomenologia deve ser cincia dos fundamentos e das razes, ou seja, uma cincia radical, uma cincia dos fundamentos originrios: No das filosofias que deve partir o impulso de investigao, mas, sim, das coisas e dos problemas (A filosofia como cincia de rigor, p. 72). Em As idias I escreve que em nossas afirmaes fundamentais nada pressuporemos, nem sequer o conceito de Filosofia, e assim queremos ir fazendo adiante. A epoqu filosfica, que nos propusermos praticar, deve consistir, formulando-o expressamente, em nos abstermos por completo de julgar acerca das doutrinas de qualquer filosofia anterior e em levar a cabo todas as nossas descries no mbito desta absteno ( 18).

Husserl constatou que nos congressos encontram-se os filsofos mas no as filosofias. Incansavelmente tenta submeter a filosofia a uma revoluo cartesiana para libert-la de todo o preconceito possvel e fazer dela uma cincia verdadeiramente autnoma e radical atravs do mtodo fenomenolgico. A nica fonte do conhecimento, para o fenomenlogo. a evidncia que caracteriza os dados imanentes da conscincia.

3.2 - Carter a priori

H dois campos de experincia ou conhecimento evidente: a experincia ou evidncia emprica - intuio de fatos individuais - que serve de base para as cincias empricas ou dos fatos e a evidncia intelectual - intuio eidtica - que serve de base para as cincias eidticas. Como a intuio emprica do individual um dar-se do objeto individual originariamente, tambm a intuio eidtica um dar-se do eidos ou essncia - objeto universal.

Para tornar a filosofia cincia de rigor, ela no se deve fundamentar em dados empricos, ou seja, nos fatos, mas num a priori universal. Husserl parte de idealidades porque s essas so vlidas, independentemente da contingncia dos fatos, para constiturem aprioridade radical para todas as cincias. Parte das coisas mesmas (no dos fatos) como se apresentam em sua pureza conscincia. Segundo ele, a conscincia, ao ser estudada em sua estrutura imanente, mostra-se como algo que ultrapassa o plano emprico e emerge como condio a priori de possibilidade do prprio conhecimento, ou seja, como conscincia transcendental. Cabe, ento, fenomenologia descrever a estrutura do fenmeno como fluxo imanente de vivncias que constituem a conscincia (estrutura constituinte). Enquanto a conscincia transcendental constitui as significaes a priori de possibilidades de conhecimento. Nesta perspectiva, a lgica tem carter normativo a priori e no deve ser confundida com o psicologismo, pois a empina incapaz de fornecer as condies da apodicidade, condies que se encontram numa regio a priori da pura idealidade de carter universal, necessrio e normativo que fundamenta todo o verdadeiro conhecimento. Assim a fenomenologia torna-se ela mesma o a priori das cincias.

O postulado da fenomenologia que o fenmeno seja ao mesmo tempo logos. O sentido do fenmeno lhe imanente e pode ser percebido. Em outras palavras, todo o fenmeno tem uma essncia, que no se reduz ao fato. A intuio da essncia distingue-se da percepo do fato, pois a viso do sentido ideal que atribumos ao fato materialmente percebido que nos permite identificlo. Se, por exemplo, uma criana trabalhar sem compasso, dir que a forma vagamente oval, que desenhou em seu caderno, um crculo. A essncia persiste como pura possibilidade, como necessidade que se ope ao fato. Por isso h tantas essncias quantas significaes nosso esprito capaz de produzir. As essncias constituem uma espcie de armadura inteligvel do ser, tendo sua estrutura e suas leis prprias. Elas so o sentido a priori no qual deve entrar todo mundo real ou possvel. Assim pode-se obter uma compreenso a priori do ser, independentemente da experincia efetiva porque a intuio de essncias intuio de possibilidades puras.

Veremos que, na fase caracterizada pela crise, Husserl desenvolve a fenomenologia no a partir do a priori eidtico, nem formal-kantiano, mas a partir de um a priori concreto material originariamente vivido e que nos dado previamente toda interveno. o Lebensumwelt ou Lebenswelt enquanto conjunto estrutural da experincia imediata e fundamento originrio do sentido.

Em sntese, a fenomenologia no poder recorrer a qualquer resultado cientfico como um dado disponvel. Neste sentido Husserl critica Kant por partir do fato das cincias positivas para depois formular a pergunta pela possibilidade do conhecimento. E para no pressupor aquilo que est em questo retoma, contra Kant, o esprito mais radical do cartesianismo, eliminando o recurso a qualquer saber j dado. E Husserl vai mais longe, criticando Descartes por estabelecer uma continuidade entre o discurso filosfico e o discurso cientfico na concepo de uma filosofia que deve proceder more geometrico. Para que seja preservada a autonomia da fenomenologia frente s cincias preciso ter conscincia de que no fala dos mesmos objetos sobre os quais fala a cincia, no utilizar seus resultados nem seu mtodo.

3.3 - Evidncia apodtica

Em geral entende-se por evidncia um saber certo e indubitvel. Entre os antigos, a evidncia costuma ser considerada como um fato objetivo, como o manifestar-se de um objeto qualquer como tal. Significa o aparecimento do que verdadeiramente e por isso to manifesto que exclui a possibilidade de dvida e, portanto, de erro. A evidncia um critrio de verdade e de certeza.

Descartes afirma no aceitar nunca alguma coisa como verdadeira a no ser que ela se reconhea evidentemente como tal, isto , evitar diligentemente a precipitao e a preveno; e no compreender nos prprios juzos seno o que se apresenta to clara e distintamente ao prprio esprito, que no se tenha nenhuma ocasio de p-lo em dvida(Discurso do Mtodo, 24 parte). Descartes reduz a evidncia clareza e distino de idias vinculando-a intuio. Para ele, evidncia aquilo que eu percebo clara e distintamente.

Husserl trata muitas vezes da evidncia. Nas Investigaes descreve-a como preenchimento da inteno (II, 39). Devolveu-lhe o carter objetivo enquanto designa o manifestar-se de um objeto como tal conscincia. Afirma que a evidncia surge quando h uma equao completa entre o pensado e o imediatamente dado.

Husserl adverte que a evidncia no pode ser considerada uma voz mstica que nos grita de um mundo melhor: aqui est a verdade. Nas Investigaes lgicas diz que h evidncia sempre que haja adequao completa entre o intencionado e o dado, quando se d um preenchimento da inteno, i., a inteno receba a absoluta plenitude do contedo, a plenitude do prprio objeto. Esta evidncia no simplesmente a da percepo. Refere-se a algo imediatamente dado, anterior toda a teoria, construo ou hiptese, situado ao nvel da vivncia fenomenolgica.

A fenomenologia torna-se filosofia primeira pela auto-reflexo radical e, por isso, universal. Na atitude plenamente reflexa, o filsofo observar as

coisas na sua pureza original e imediata, deixando-se orientar exclusivamente por elas. Nesta atitude de evidenciao poder descrever o imediatamente dado conscincia: O fundamental no passar por alto que a evidncia esta conscincia que efetivamente v, que apreende (o seu objeto) direta e adequadamente, que evidncia nada mais significa que o adequado dar-se em si mesmo (A idia de fenomenologia, p. 88). Pouco mais adiante conclui: Com o emprego do conceito de evidncia, podemos agora dizer tambm e, porque a temos, ela no implica enigma algum; portanto, tambm no o enigma da transcendncia; vale para ns como algo de inquestionvel de que nos permitido dispor. No menos temos evidncia do universal: objectalidades e estados de coisas universais surgem-nos em auto-apresentao e esto dados no mesmo sentido, portanto, inquestionavelmente; e esto autodados adequadamente no sentido mais rigoroso (ibidem. p. 90).

Para construir, pois, uma filosofia como cincia de rigor s posso admitir como vlidos juzos hauridos da evidncia apodtica. Tal s posso obter mediante vivncias da conscincia em que as coisas se me apresentam por si mesmas. Nas Meditaes cartesianas estabelece como primeiro princpio: Tomando, como filsofo, meu ponto de partida, tenho para o fim presumido uma cincia verdadeira. Por isso, eu no poderia evidentemente nem ter nem admitir como vlido juzo algum, se eu no os tomar na evidncia, isto , em experincias onde as coisas e os fatos em questo me so presentes, eles mesmos ( 5).

Sem a evidncia, segundo Husserl, no podemos falar de fundamentao radical. Para isso no satisfaz qualquer evidncia. Exige-se uma evidncia apodtica, ou seja, com ausncia total de dvida. O caminho para chegar a este fundamento radical da filosofia e da cincia , segundo Husserl, a fenomenologia como mtodo de evidenciao.

Para chegar ao fenmeno puro, Husserl suspende o juzo em relao existncia do mundo exterior (transcendente). Descreve apenas o mundo como se apresenta na conscincia, ou seja, reduzido conscincia. Tal suspenso ou colocao entre parnteses chamou epoqu. Portanto, no duvida da existncia do mundo exterior, mas simplesmente o pe entre parnteses ou o idealiza ou o reduz ao fenmeno: a reduo .fenomenolgica. No fenmeno, por sua vez, procede a sucessivas redues em busca da essncia: a reduo eidtica. Assim entende a fenomenologia como anlise descritiva das vivncias da conscincia depuradas de seus elementos empricos para descobrir e apreender as essncias diretamente na intuio.

O efeito da epoqu a reduo esfera transcendental: as vivncias puras, a conscincia pura com seus correlatos puros e seu eu puro. O dado imediato resultante da reduo transcendental a vivncia pura, cujos elementos notico e noemtico so objeto da anlise intencional fenomenolgica. Alcanada a esfera transcendental, pela epoqu, como dado de evidncia apodtica, o fenomenlogo proceder em sua tarefa especfica, que consiste na anlise dessa esfera e daquilo que nela efetivamente se d.

O idealismo fenomenolgico de Husserl no nega a existncia do mundo real. Quer deixar claro que o mundo sempre contedo de meu saber, contedo de experincia, contedo de meu pensar, em sntese, contedo de minha conscincia. Neste ponto a atitude fenomenolgica se distingue da atitude natural.

4 - A intencionalidade da conscincia

A conscincia, segundo Husserl, intencionalidade, ou seja, s existe como conscincia de algo. A anlise da conscincia abrange a descrio de todos os modos possveis como alguma coisa ideal ou real dada imediatamente conscincia. Nesse sentido tornou-se clebre o lema husserliano da volta s coisas mesmas (Zu den Sachen selbst!). Entende por coisa (Sache) no objetos fsicos, mas o fenmeno como o imediatamente dado conscincia, isto , como se apresenta ou manifesta conscincia. Trata-se de prescindir do emprico, de preconceitos e pressupostos, do singular e do acidental, para chegar s essncias dadas, as quais so o objeto inteligvel do fenmeno, captado numa viso imediata da intuio.

A fenomenologia husserliana parte, pois, da vivncia imediata da conscincia: Toda a vivncia inteletiva e toda a vivncia em geral, ao ser levada a cabo, pode fazer-se objeto de um puro ver e captar e, neste ver, um dado absoluto. Est dada como um ente, como um isto-aqui (Dies-da), de cuja existncia no tem sentido algum duvidar (A idia da fenomenologia, p. 55-56).

A fenomenologia prope partir de uma situao sem pressupostos para esclarecer as condies das quais depende nosso conhecimento. Nas cincias empricas fazemos todo o tipo de pressuposies. O fsico, p. ex., pressupe a validade da matemtica; o matemtico pressupe a validade da lgica, etc. A fenomenologia no pretende fazer pressuposies que tenham que ser justificadas em outro campo.

Galileu possibilitou o conhecimento do mundo objetivo, empregando um mtodo que se tornou o modelo de racionalidade nos tempos modernos. Mas, segundo Husserl, a objetivao da natureza, obtida por Galileu, no conduz ao ser das coisas e, assim, a objetividades ideais. A natureza idealizada passou a substituir a natureza pr-cientfica. A matematizao da natureza violentou o ser natural. De acordo com Husserl, as cincias positivas so ingnuas enquanto prfenomenolgicas como a vida cotidiana ingnua. Viver consiste em comprometer-se com o mundo que nos d a experincia atravs do pensar. Mas viver tambm agir e valorar. Enquanto toda a cincia , de certa forma uma cincia do ser no mundo, do ser perdido no mundo, s a fenomenologia, atravs da anlise radical da intencionalidade, poder ser a cincia das cincias, justamente por perder o mundo atravs da reduo fenomenolgica para encontr-lo pela anlise da intencionalidade da conscincia. Para isso preciso passar de uma atitude ingnua a uma atitude transcendental na qual a conscincia constitui o mundo como fenmeno puro.

No sculo XIX houve uma redescoberta da doutrina clssica da intencionalidade por Brentano, Husserl e M. Scheler. Este conceito da escolstica medieval, tanto da rabe como da latina, baseia-se numa observao de Aristteles no livro da Metafsica. Ao descrever o que uma relao, Aristteles exemplificou com o saber. Toda a idia, inclusive a mais simples, comea por ser uma relao entre um objeto enquanto tal e enquanto nosso objeto. Mas o saber tem como caracterstica que um de seus elementos, o objeto, no necessariamente tem que ser real: a idia enquanto nossa idia, ou seja, por parte do sujeito.

Husserl desenvolve o mtodo de mostrao das estruturas implcitas da experincia, definindo o conceito de intencionalidade como: a) conscincia de algo; b) conscincia de si mesmo. A partir de Descartes explica-se o conhecimento como relao entre duas coisas: a coisa que est na conscincia (idia) e a que est fora. A primeira a representao da segunda. Ora, Husserl abandona a idia de representao, distinguindo, na conscincia, o ato que conhece (noese), que ao configurar os dados os dota de sentido, e a coisa conhecida (noema). O objeto (noema) intencional, ou seja, est presente na conscincia sem ser parte dela. E esta coisa que interessa fenomenologia.

Husserl, em Idias I, expe um exemplo: Nosso olhar, suponhamos, volta-se com um sentimento de prazer para uma macieira em flor num jardim... ( 88). Na atitude comum ou natural, tal percepo consiste em colocar primeiro a existncia da macieira no jardim, depois em relao a essa macieira real a macieira representada na conscincia correspondente real. Como conseqncia haveria duas macieiras: uma no jardim e outra na conscincia. Para Husserl, as coisas no acontecem assim. Recorrendo anlise intencional, no partimos da macieira em si, porque dela nada sabemos, nem da macieira representada, porque tambm dela nada sabemos. preciso partir das coisas mesmas, isto , da macieira- enquanto- percebida, ou seja, do ato de percepo da macieira no jardim, pois essa a vivncia originria. Atravs da epoqu s atendemos percepo como vivncia, prescindindo de suas relaes reais. A nica coisa que permanece a percepo e o percebido, o visto desde um ponto de vista eidtico na pura imanncia da conscincia de minhas vivncias. A vivncia de percepo, fenomenologicamente reduzida, tambm percepo da macieira em flor, vivncia que nela conserva todos os matizes com que aparecia realmente. Assim a macieira em flor, como objeto de minha vivncia de percepo, o correlato intencional da vivncia, seu contedo noemtico, resultante da noese, do ato de conscincia, pelo qual se reduz unidade de sentido a multiplicidade de dados da sensao (hyl). Enquanto a noese e a hyl so elementos da prpria vivncia, o noema seu correlato intencional ou componente intencional.

A radicalidade e universalidade do saber fenomenolgico situa-se, pois, no plano da conscincia, da subjetividade transcendental. Dada a bipolaridade imamente/intencional de toda a vivncia, distinguem-se dois modos correlativos da investigao fenomenolgica, embora de fato no haja separao real entre os mesmos: a) um, orientado para a pura subjetividade (fenomenologia notica) e b) outro, orientado para aquilo que pertence constituio da objetividade para a subjetividade (fenomenologia noemtica).

Para Husserl, uma coisa a indubitvel existncia real do mundo e outra coisa compreender e fundamentar essa existncia. O mundo existe para ns como produto intencional. A nica tarefa e funo da fenomenologia husserliana salvar o sentido deste mundo, o sentido em que este mundo vale para qualquer homem como realmente existe. A fenomenologia , pois, uma tomada radical da conscincia do que o homem em si mesmo. Deste modo, o sentido do orculo dlfico conhece-te a ti mesmo significa, antes de tudo, a penetrao do homem dentro de si mesmo. Tal penetrao s possvel enquanto capaz de ter conscincia de algo. Neste sentido conclui as Meditaes cartesianas com a idia de S. Agostinho: Noli foras ire, in te redi, in interiore hominis habitat veritas.

A partir de um ponto de vista objetivo, poderia perguntar-se, se Husserl no reduz o ser prpria conscincia, abrindo-se esta, pela intencionalidade, no ao outro como era entendida a intencionalidade na filosofia medieval mas s a si mesma. Neste caso a fenomenologia, no fundo, no passaria de autoconhecimento (Selbstauslegung), separando o ser intencional do real. Ou volta, de maneira sutil, a idia de que o conhecimento representao?

A intencional idade husserliana corresponde correlao conscinciamundo, sujeito-objeto, mais originria que o sujeito ou o objeto, pois esses s se definem nessa correlao. A intencionalidade fenomenolgica visada de conscincia e produo de um sentido que permite perceber os fenmenos humanos em seu teor vivido.

Husserl definiu a fenomenologia como a teoria dos fenmenos puros, dos fenmenos da conscincia pura. Mas o que entende por conscincia? D, sobretudo, trs sentidos: a) a conscincia como conjunto de todas as vivncias, ou seja, a conscincia como unidade; b) a conscincia como percepo interna das vivncias psquicas, ou seja, o ser consciente; c) a conscincia como vivncia intencional. O ltimo o mais importante e Husserl dedicou-lhe longo captulo j nas Investigaes lgicas. Para ele, a conscincia uma corrente de experincias vividas, num rio heraclitiano, que se colhe a si mesma. Por isso interessa-o mais a percepo imanente, que a do cogito cartesiano, cujo objetivo so as experincias vividas (recordar, imaginar, desejar, etc.), ou seja, o cogitatum, pois tais experincias so dadas diretamente conscincia, uma vez que a percepo da experincia vivida a viso direta de alguma coisa que se d ou que pode dar-se na percepo como absoluta e no mais como identidade das aparncias que a esfumam (Idias 1, 44).

Enfim, a estrutura da conscincia como intencionalidade uma das grandes descobertas de Husserl. Dizer que a conscincia intencional significa: toda a conscincia conscincia de algo. Portanto, a conscincia no uma substncia (alma), mas uma atividade constituda por atos (percepo, imaginao. volio, paixo, etc.) com os quais visa algo. Husserl vale-se da noo de intencionalidade para esclarecer a natureza das experincias vividas da conscincia. A intencionalidade de natureza lgico-transcendental, significando uma possibilidade que define o modo de ser da conscincia como um transcender, como o dirigir-se outra coisa que no o prprio ato de conscincia. Distingue duas espcies de intencionalidade: a) uma intencionalidade temtica, que o saber do objeto e saber deste saber sobre o objeto; b) uma intencionalidade operante, que a visada do objeto em ato, ainda no refletida. A primeira tenta alcanar a segunda, que a precede, sem nunca consegui-lo. O saber consciente s se exerce sobre este fundo de irreflexo nessa dimenso de vida que j sentido porque visada de objeto, mas sentido ainda no formulado.

E o que a vivncia (Erlebnis) da conscincia? tudo que encontramos na conscincia. As vivncias intencionais orientam ou impulsionam o sujeito para seu objeto. A intencionalidade nada mais significa que esta particularidade que tem a conscincia de ser conscincia de algo, de trazer, em sua qualidade de cogito, seu cogitatum em si mesmo (Meditaes cartesianas, 14). A intencionalidade representa uma caracterstica essencial da esfera das experincias vividas porquanto todas as experincias tm, de uma forma ou de outra, intencionalidade... A intencionalidade aquilo que caracteriza a conscincia em sentido grave e concordante em indicar a corrente da experincia vivida como corrente de conscincia e como unidade de conscincia (Idias I, 84).

Por um lado, intencionalidade significa que a conscincia s existe como conscincia de algo. Por Outro, o objeto s pode ser definido em sua relao com a conscincia por ser sempre objeto- para- um- sujeito. O objeto s tem sentido para uma conscincia que o visa. Assim as essncias no existem fora do ato de conscincia. Nesse sentido a fenomenologia husserliana busca a descrio dos atos intencionais da conscincia e dos objetos por ela visados, ou seja, pela anlise notico- noemtica.

Se a conscincia intencionalidade, s pode ser analisada em termos de sentido. E aqui sentido , em primeiro lugar, os sentidos; depois direo: enfim, significao. A conscincia no coisa, mas aquilo que d sentido s coisas. O sentido no se constata maneira de uma coisa, mas se interpreta. a conscincia intencional que faz o mundo aparecer como fenmeno, como significao, pelo fato de ser um cogitatum intencionado pelo sujeito.

Podemos dizer que a filosofia grega, como a antiga e medieval, voltam-se para os princpios objetivos do mundo, numa ideao essencialmente eidtica. Tais princpios eram concebidos como essncias subsistentes em si e por si. O cristianismo introduz a conscincia como instncia fundamental e, a filosofia moderna, refugiou-se reflexivamente nela e, a partir dela, v o mundo e seus princpios objetivos. Husserl reassume a tenso entre a eidtica da filosofia antiga e a conscincia crist no sentido filosfico medieval, numa atitude de equilbrio. Na fenomenologia eidtica assume a filosofia eidtica antiga e medieval e, na fenomenologia transcendental, assume o idealismo moderno, ou seja, a moderna filosofia da conscincia. Assim, a partir de Husserl, renascem, por um lado, o movimento da filosofia dos objetos ideais e dos valores da filosofia antiga e medieval e, por outro, a filosofia da existncia do cristianismo e da filosofia moderna.

A fenomenologia de Husserl no pretende ser um mtodo ou sistema filosfico definitivamente estruturado. Com Heidegger, seu aluno, podemos dizer que compreender a fenomenologia captar suas possibilidades. Por isso fecundou e ainda fecunda novos domnios do conhecimento humano. A fenomenologia descreve a essncia do homem como questo de sentido, como ser presente, capaz de integrar cincia e filosofia no mundo concreto da vida, sem desconhecer que a tomada de conscincia crtica da realidade pressuposto de sua transformao histrica.

5 - Reduo ou epoqu

A intencionalidade conduz reduo, ou seja. colocao entre parnteses da realidade como a concebe o senso comum. Husserl chama a concepo do senso comum de atitude natural qual ope a atitude fenomenolgica, segundo a qual o mundo nada mais do que o que ele para a conscincia, ou seja, fenmeno. No que o filsofo duvide das coisas existentes, mas as pe entre parnteses no as utilizando como fundamento de sua filosofia. Para fazer da filosofia uma cincia de rigor dever fundamentar-se em algo que indubitavelmente evidente. O problema da epoqu no a existncia do mundo, mas seu significado. Assim, ao contrrio de Descartes, a relao fenomenolgica de Husserl deixa o ego cogito cogitatum, pois a nica coisa que absolutamente evidente o cogito com seus cogitata.

A fenomenologia prope-se como tarefa analisar as vivncias intencionais da conscincia para a perceber o sentido dos fenmenos. O prprio da estrutura notico- noemtica ou intencional da conscincia fazer-me descobrir, na conscincia ou no sujeito e somente a, um objeto (fenmeno). No citado exemplo da macieira, a macieira real permanece no jardim, pois no transplantada para o sujeito. Na verdade a macieira percebida s existe enquanto percebida.

Na atitude natural, a conscincia ingnua v o objeto como exterior e real. Na atitude fenomenolgica o objeto constitudo na conscincia. E a fenomenologia torna-se o estudo da constituio do mundo na conscincia. Constituir significa remontar pela intuio at a origem, na conscincia, do sentido de tudo que , origem absoluta. Mas no s o mundo constitudo, recebe seu sentido na conscincia ou no sujeito, mas o prprio sujeito se constitui pela reflexo sobre sua prpria vida irrefletida. A reduo fenomenolgica faz, assim, o mundo aparecer como fenmeno. Embora a gnese de seu sentido perceptvel na vivncia da conscincia, nem tudo est dito sobre o sentido dessa vivncia. Na fase da fenomenologia transcendental, que vai desde idias diretrizes (1913) e culmina nas Meditaes cartesianas (1929), Husserl coloca o acento sobre o sujeito ao qual preciso ligar a conscincia na qual se constitui todo o sentido. A vivncia da conscincia o nico irredutvel. Mas esta vivncia vivida por um sujeito ao qual se referem os objetos do mundo real ou ideal e de onde adquirem significaes. Este sujeito constitui-se continuamente e a fenomenologia torna-se exegese de si prprio (Selbstauslegung), cincia do eu ou egologia. Esse sujeito o eu transcendental, no o eu emprico.

Para alcanar as essncias preciso purificar o fenmeno de tudo que no essencial, ou seja, preciso reduzir (reduo eidtica). A essncia se definir, segundo Husserl, pela anlise mental como uma conscincia da impossibilidade, ou seja, como aquilo que impossvel conscincia pensar de outro modo. Identifica-se este invariante atravs das diferenas, definindo a essncia dos objetos dessa espcie, ou seja, definindo aquilo sem o que seria impensvel. Este processo Husserl chamou de variao eidtica. A essncia , pois, o sentido ideal do objeto produzido pela atividade da conscincia.

Para chegar fenomenologia transcendental pura, Husserl introduz a reduo e a epoqu. Assim coloca entre parnteses a existncia do mundo, no para duvidar de sua existncia, mas suspender apenas o juzo em relao a esta existncia. A essa suspenso de juzo designou-a com o termo epoqu, j usado pelos cticos pirnicos gregos para significar a suspenso ou absteno de qualquer assentimento por no reconhecerem razes suficientes para eliminar a incerteza. Husserl introduz a epoqu como instrumento de depurao para chegar a um radicalismo reflexo na procura das evidncias apodticas. Portanto, no pretende duvidar da existncia do mundo, nem suprimi-la. Quer, isto sim, encarar o mundo apenas sob o aspecto de fenmeno, ou seja, como se apresenta conscincia. a reduo conscincia. Como a epoqu j significa reduo, os dois termos so empregados, geralmente, pelo prprio Husserl como equivalentes. O filsofo deve buscar a evidncia apodtica: Se a apreenso reflexiva se dirige para a minha vivncia, apreendo alguma coisa em si mesma de carter absoluto, cuja existncia no pode, em princpio, ser negada; ou seja, inteiramente impossvel ver que essa coisa no . Muito embora seja uma fico aquilo que se apresenta, a prpria apresentao, a conscincia que finge, no pode ser fictcia (Idias I, 46). Portanto, para chegar evidncia apodtica preciso colocar entre parnteses tudo que me exterior: outras pessoas e o prprio Deus. Devemos partir do mundo reduzido s vivncias da conscincia. A deciso de praticar a epoqu resulta de um ato livre, inteiramente dependente da vontade.

Na conscincia, muitas vezes, as vivncias se apresentam na singularidade concreta. Refletindo sobre esses fenmenos singulares, posso sujeit-los a uma srie de variaes arbitrrias em busca do invariante ou da essncia. Desta forma pratico a reduo eidtica. Surge, ento, um fenmeno novo, uma essncia purificada.

Se eu quiser atingir o terreno firme das evidncias apodticas devo ir alm da reduo eidtica. Terei que por entre parnteses a prpria existncia do eu e dos seus atos. S assim alcanarei o eu absoluto, o eu transcendental e com ele o mbito da experincia genuinamente filosfica. Esta a reduo transcendental.

Atravs dela chegamos ao contato imediato com as coisas que se nos apresentam na sua evidncia originria na conscincia. Agora no possumos simplesmente o mundo, mas apenas a conscincia do mundo. O filsofo dever reduzir sua ateno para esse novo mundo da conscincia pura.

6 - A intersubjetividade transcendental

Se tudo o que eu posso entender como verdadeiro ser no outra coisa que um acontecimento intencional de minha prpria vida cognoscente, para Husserl, isso no significa que a percepo seja o nico modo de conhecer a realidade. Existe outro modo vlido de experincia: a experincia mediata, ou seja, atravs do corpo animado que tenho do outro. A isso chama de Einfhlung. O que se me apresenta atravs do corpo animado (Leib) outra subjetividade que irredutvel a mero polo intencional da minha subjetividade. Dessarte, o idealismo transcendental situa-se no plano da intersubjetividade transcendental. Assim a reduo fenomenolgica conduz a duas estruturas universais da vida reciprocamente fundadas: minha vida e a do outro.

Husserl distingue entre minha esfera originria ou primordial e uma esfera primordial alheia, assunto que desenvolve na 5 Meditao cartesiana e em muitos outros textos. Diz Husserl que eu sou para mim, e todo outro eu o para mim, sujeito de sua primordialidade e das intracepes (Einfhlungen) por ele motivadas.

Embora Husserl distinga a vida imanente do prprio eu, nela encontra-se implcita a imanente vidas dos outros, sem confundir-se com a prpria esfera primordial. H uma recproca apercepo intersubjetiva do eu e de seu oposto (sein Gegenber). O oposto do eu tem que ser outro eu. Ao ego s pode opor-se, propriamente, um alter ego. Na experincia do meu prprio corpo radica a experincia que tenho de corpos alheios e, por sua mediao, tenho experincia da subjetividade alheia, de uma segunda vida transcendental distinta da minha.

A sntese da coexistncia monadolgica de todos os eu em recproca autoapercepo , por sua vez, uma sntese que constitui a natureza (o mundo) comum para todos. Eu, como mnada modalmente originria, tenho como vlido meu horizonte de autoestranhamentos, de outras mnadas, constitudo eu nele como mnada singular de um ns, como universo de equivalentes mnadas existentes, que se implicam em recproca validade e segundo um total sentido ontolgico. Este ns a intersubjetividade transcendental na qual se constitui o mundo com validade objetiva para todos. Existe, assim, com fundamento na experincia transcendental, uma pluralidade de seres que so em si e para si e que para mim s se do no modo de outro, como alteridade.

Nas Meditaes cartesianas Husserl afirma, no 56, a identidade entre intersubjetividade e comunidade de mnadas. Partindo de mim mesmo como mnada original (Urmonade), chego a outros enquanto sujeitos psicofsicos. Mas numa compenetrao inteletual do horizonte original do outro, descubro que a percepo de nossos corpos e a vivncia da alteridade recproca. A partir desta vivncia dc homognea alteridade recproca se constitui a comunidade humana, apercebendo-me, simultaneamente, de minha prpria humanidade.

A comunidade humana no fechada, mas est aberta comunidade universal csmica. Esta intersubjetividade transcendental ou comunidade universal de mnadas apresenta as seguintes caractersticas: a) Constitui-se puramente em mim, no ego que medita; b) constitui-se para mim a partir de minha pura intencionalidade; e) mas tal que, ao constituir-se em cada modificao de outros, a mesma, apenas num modo subjetivo de diferente apresentao; d) constitui- se, por sua vez, como portadora necessariamente do mesmo mundo objetivo; e) propriedade essencial deste mundo transcendental constitudo em mim, por necessidade eidtica, a de ser tambm um mundo humano; f) est constitudo com maior ou menor perfeio na interioridade psquica de cada um dos homens em vivncias intencionais, em sistemas potenciais da intencionalidade: g) este sistema potencial da intencionalidade implica um horizonte indefinidamente aberto.

7 - Em que consiste o mtodo fenomenolgico?

A fenomenologia consiste na tentativa de descrever o fundamento da filosofia na conscincia na qual a reflexo emerge da vida irrefletida do comeo ao fim. Podemos resumir os seguintes aspetos da fenomenologia husserliana:

a) um mtodo derivado de uma atitude, que presume ser absolutamente

sem pressupostos, tendo como objetivo proporcionar ao conhecimento filosfico as bases slidas de uma cincia de rigor, com evidncia apodtica;

b) analisa dados inerentes conscincia e no especula sobre cosmovises, isto , funda-se na essncia dos fenmenos e na subjetividade transcendental, pois, as essncias s existem na conscincia;

c) descritivo, conduzindo a resultados especficos e cumulativos, como no caso de investigaes cientficas; no faz inferncias nem conduz a teorias metafsicas;

d) como conhecimento fundado nas essncias um saber absolutamente necessrio, em oposio ao conhecimento fundado na experincia emprica dos fatos contingentes

e) conduz certeza e, por conseguinte, uma disciplina a priori;

f) uma atividade cientfica no melhor sentido da palavra, sem ser, ao mesmo tempo, esmagada pelas pressuposies da cincia e sofrer suas limitaes. Busca a raiz de toda a atividade filosfica e cientfica.

Husserl distingue cincias da atitude natural e cincias da atitude fenomenolgica. O objeto da fenomenologia a conscincia mesma como resduo da epoqu praticada, a conscincia pura no sentido eidtico transcendental e no psicolgico, pois a psicologia, como cincia dos fatos, tambm fica entre parnteses. As cincias da atitude natural ou dogmtica partem de uma objetividade dada, sem question-la. A fenomenologia parte do questionamento de qualquer objetividade dada e a reduz mera vivncia em que se d, para torn-la objeto de anlise. Por isso a fenomenologia a cincia crtica fundamental e situa-se no plano da evidncia apodtica. O objeto prprio da fenomenologia no , diretamente, o campo das essncias, mas da essncia da vida da conscincia.

Husserl busca um fundamento slido para a filosofia e a cincia, uma cincia do radical. Tenta estabelecer uma filosofia primeira, criando uma cincia fundamental da subjetividade pura. A conscincia atuante este fundamento primeiro de toda a objetividade. Tal filosofia primeira a fenomenologia como a cincia descritiva eidtica da conscincia pura transcendental ou doutrina pura descritiva das essncias das estruturas imanentes da conscincia. A filosofia tornar-se- cincia de rigor quando nos fizer tomar conscincia de que as construes tericas do esprito no podem restringir-se descrio objetivista dos fatos individuais e subsistentes em si mesmos. Como cincia rigorosa, exigir de ns uma postura fenomenolgica que nos conduzir s razes ltimas dc todas as coisas. E verdade que, na fase da crise. Husserl busca este fundamento, de alguma forma, no mundo da vida (Lebenswelt).

8 - A crise da humanidade europia e a fenomenologia

O pensamento de Husserl passou por longa e profunda evoluo. No perodo de Halle (1887-1901) escreveu as Investigaes; no perodo de Goettingen (1901-1916) elaborou sua fenomenologia pura e produziu as Idias; mais tarde, em Friburgo, na Floresta Negra (1916-28), produziu a fenomenologia como novo transcendentalismo ou idealismo caracterizado nas Meditaes cartesianas. Nos ltimos anos, j aposentado na universidade, refletiu sobre a crise das cincias como expresso da crise da cultura contempornea.

No perodo de 1934-1937, Husserl dedicou-se ao tema da Crise das cincias europias e a fenomenologia transcendental. Nesse perodo aborda problemas que. a seu ver, conduziram crise. Persegue a origem dessa crise at a moderna matematizao das cincias para abordar a diviso ou ruptura surgida entre o objetivismo fisicalista e o subjetivismo transcendental. Estuda a histria da filosofia moderna desde Descartes, Locke, Berkeley, Rume at Kant. Propese a superar esse abismo atravs da fenomenologia, buscando o fundamento do sentido, oculto s cincias. Nesse perodo elaborou o texto sobre A crise da humanidade europia e a filosofia. Nesse perodo Husserl quer mostrar o acesso ou o caminho fenomenologia transcendental a partir do mundo da vida e da psicologia.

O texto apresentado originou-se de uma conferncia que Husserl fez no dia 7 de maio de 1935 no Kulturbund de Viena. Essa conferncia Husserl pronunciou numa situao determinada. Em 1928 foi aposentado (emeritiert), ou seja, foi dispensado de sua atividade de ensino na universidade. Em 1930 reconheceu que M. Heidegger, seu ex-aluno e sucessor na ctedra, assumira posio diferente da sua. Em 1933, os nazistas chegaram ao poder, na Alemanha, e a comeou a ascenso de um irracionalismo que provocou uma crise poltica e cultural. Com isso enfrentou um problema pessoal por ter sangue hebreu. Mas no deixou de fazer uma anlise profunda dessa nova situao, detectando o perigo que ameaava a humanidade europia, esta humanidade que esquecera sua tradio espiritual vinda desde a antiguidade grega, embora estivesse proibido de manifestar-se publica- mente em seu prprio pas. Husserl responsabilizou os filsofos e os cientistas pela crise por terem deixado de servir razo. Segundo ele, o sculo da cincia desviou-se da razo.

Na oportunidade que lhe foi dada em Viena. Husserl evoca a herana cultural que constitui a base comum da civilizao ocidental. Posiciona-se contra o desvio racionalista, e, ao mesmo tempo, contra certo irracionalismo, expondo sua prpria concepo. Ope-se ao racionalismo ingnuo dos sculos 17-18 com sua concepo das tarefas infinitas da razo humana; e ao objetivismo reinante nas cincias positivas, de modo especial na psicologia objetivista, pela conscincia cientfica do esprito enquanto esprito. Suas palavras ecoam como uma profisso de f: e, portanto, as idias so mais fortes que todas as foras (Husserliana VI, p. 335). Stefan Strasser, profundo conhecedor da fenomenologia de Husserl, no prefcio que escreveu edio francesa (bilnge:

alemo e francs) chama este texto de um manifesto no verdadeiro sentido da palavra (E. Husserl. La crise de lhumanit europenne et la philosophie. Paris,

Aubier Montaigne, 1987, p. 5). Poderia chamar-se esse texto tambm de testamento poltico de Husserl.

Para Husserl, a existncia da crise um fato cio qual se deve tomar conscincia. Esta crise refere-se s cincias europias e ao homem europeu; refere-se Europa como maneira espiritual de ser, ou seja, Europa como ente cultural: Em sentido espiritual, a Europa engloba manifestamente os domnios ingleses. os U.S.A., etc. Trata-se aqui de uma unidade de vida, de uma ao, de uma criao de ordem espiritual, incluindo todos os objetivos, os interesses, as preocupaes e os esforos com as instituies e as organizaes. Nelas atuam os indivduos dentro das sociedades mltiplas de diferentes complexidades, em famlias, raas, naes, nas quais todos parecem estar interior e espiritualmente vinculados uns aos outros e, como disse, na unidade de uma estrutura espiritual. Husserl no compartilha a resignao nem o pessimismo do existencialismo, na poca, pois cr no poder da razo humana e tenta um diagnstico das causas dessa crise para s depois receitar o remdio. Constata: h uma herana da histria que o objetivismo cientfico; um esquecimento trgico: o Lebenswelt ou o mundo da vida; a fenomenologia poder encaminhar para uma soluo ou superao dessa crise:

Nesta conferncia quero tentar suscitar um novo interesse para o to freqentemente tratado tema da crise europia, desenvolvendo a idia histricoflosfica (ou o sentido teleolgico) da humanidade europia. Ao expor a funo essencial que, neste sentido, tem a exercer a filosofia e suas ramificaes, que so nossas cincias, a crise europia tambm ganhar uma nova elucidao (Husserliana VI, p. 314).

Confuses espirituais e polticas nas primeiras dcadas do sculo XX haviam despertado, no continente europeu, a conscincia de uma crise, que Husserl compartilhou com muitos contemporneos. De maneira mais acurada que outros, viu a ameaa cultura europia condicionada pela crise da filosofia. Essa ltima, para ele, consistia essencialmente na ameaa da cientificidade da filosofia. Depois de 1910 no faltam ponderaes nesse sentido em seus escritos. Este dado importante para entender a obra tardia caraterizada como crise das cincias europias.

8.1 - Nova perspectiva fenomenolgica

Na obra fenomenolgica de Husserl salientamos dois aspectos diversos a partir de 1913. Comea com as Idias (1913), obra que foi caracterizada de idealismo transcendental. Esta etapa estende-se at as Meditaes cartesianas (1931). Em grandes linhas, pode dizer-se que, nesta etapa, centra a anlise fenomenolgica sobre o sujeito como suporte do ato de conscincia e instncia constituinte do sentido do mundo. Sob certo aspecto at se pode dizer que a fenomenologia assume a forma de egologia. O ego transcendental age como suporte das vivncias da conscincia.

Posteriormente, no final de sua vida, na fase caracterizada pela crise (1930-1938), busca um novo acesso fenomenologia atravs da histria. Depois de 1920, Husserl preocupa-se com o comeo da fenomenologia. Pela primeira vez posiciona-se, explicitamente, na questo da histria e tematiza a historicidade da filosofia. Na conferncia de Viena (1935) j trabalha com determinado conceito de histria. Concebe-a como transcender da atitude natural, que permanece nos simples dados, para desenvolver uma teoria filosfica, que, em sua nova perspectiva, significa uma certa epoqu do interesse originrio, para captar o ente em sua globalidade. Com essa reivindicao da totalidade, segundo o intrprete Walter Biemel, emerge a idia de infinito, que decisiva para a humanidade ocidental (Husserliana, VI, p. XVIII). Essa nova perspectiva no significa um rompimento com a fase anterior, mas um enriquecimento de seu programa fenomenolgico pela perspectiva da histria e da vida. Nesta segunda fase Husserl preocupa-se com as evidncias pr-lgicas, com o mundo dos valores, com o sentido da existncia pessoal e coletiva, etc., Entretanto, como na primeira fase, continua em busca de um saber apodtico e universal e de seus fundamentos.

Husserl denuncia a crise da civilizao do nosso tempo, interpretando-a como uma crise das cincias europias. Situa essa crise no nos fundamentos teorticos, mas no fracasso das cincias na compreenso do homem. A origem da crise a convico de que a verdade do mundo apenas se encontra no que enuncivel no sistema de proposies da cincia objetiva, ou seja, no objetivismo. Este pe de lado as questes decisivas para uma autntica humanidade. Com isso a cincia perde importncia para a vida e o mundo.

Em a crise, Husserl elabora uma reconstruo da tradio filosfica na perspectiva fenomenolgica tomando a teleologia da razo histrico-crtica como ponto de referncia. No se preocupa com detalhes de erudio histricocrtica. Coloca a questo: qual a caracterstica essencial, ou seja, o eidos, do europeu, dessa forma espiritual de ser? Traa um esquema na medida em que interessa fenomenologia para mostrar a idia-fim ou o tlos-intrnseco que preside a atividade filosfica no Ocidente atravs dos sculos. O modo de ser prprio, este modo espiritual de ser realizou-se, pela primeira vez na Grcia, entre os sculos VII-VI a.C. com o aparecimento de uma nova atitude diante do mundo. Dessa atitude emergiram novas formas do esprito, que constituram um sistema cultural novo, a saber, a filosofia como a entenderam os antigos gregos: como cincia universal, cincia do universo, cincia da unidade total de todo ente. Foi o interesse pela totalidade, pelo universal que produziu o desenvolvimento das diferentes cincias particulares, ramificando- se a filosofia, a cincia una, em mltiplas cincias particulares. Centra sua reflexo sobre os seguintes momentos: o fundamento originrio do filosofar na Grcia antiga como forma de saber universal e nico sobre a totalidade do ser; reabilitao durante o Renascimento do ideal originrio, modificado agora pelo recurso matemtica como instrumento formalizante; volta de Descartes e do empirismo ingls para a conscincia, embora com a ambivalncia da racionalidade matemtica; giro radical de Kant para a subjetividade como fundamento da cincia, sem todavia conseguir realizar uma filosofia transcendental. Esses momentos da histria do pensamento so destacados por Husserl como tentativas precursoras da fenomenologia, mas insuficientes. A fenomenologia, enfim, assume a idia originria da filosofia como realizao conseqente de um saber fundamental, apodtico e transcendental. At certo ponto, Husserl aplica a epoqu s filosofias do passado enquanto sistemas que ignoraram o Lebenswelt como lugar da experincia absoluta.

A questo fundamental, que coloca, a seguinte: Como o desenvolvimento gigantesco das cincias modernas pode conduzir a uma crise das cincias que, simultaneamente, representa uma crise da humanidade europia? Constata que o telos, que emergiu da filosofia grega para a humanidade europia, de querer ser uma humanidade a partir da razo filosfica, foi perdido com o desenvolvimento das cincias. Estuda porque as cincias fracassaram.

Para Husserl, a crise das cincias manifesta a crise da humanidade como projeto racional. O projeto do homem europeu, constitudo na antiga Grcia, traou um projeto poltico racional para configurar a vida humana a partir da razo. A guerra de 1914 mostrou o fracasso como possibilidade inerente cultura moderna. Suas anlises vo desde a considerao da crise epistemolgica do psicologismo at a crise generalizada das cincias europias que significou uma crise antropolgica. Para superar essa crise preciso restaurar a f no projeto terico, prtico e poltico originrio, corrigindo os erros implcitos na epistemologia. Desta forma a fenomenologia recuperar uma concepo do homem que tem como centro o sujeito racional, fundado no nos fatos, mas na razo. O homem no um mero fato mundano, mas o lugar da razo e da verdade, a subjetividade transcendental. A razo no causada pelas circunstncias do mundo, mas o que por si mesma.

8.2 Lebenswelt ou mundo da vida

A fase da crise de Husserl caracteriza-se pelo conceito do Lebenswelt (mundo da vida). Ope o Lebenswelt ao mundo das cincias. Tenta fundamentar o ltimo no primeiro, no mundo pr-cientfico. Segundo ele, a prpria cincia emerge de algo anterior ela mesma, do campo das experincias pr-cientficas e pr-categoriais, ou seja, de um a priori concreto, que chama de Lebenswelt ou Lebensumwelt. Em outras palavras, pergunta pelas condies a priori de possibilidade das cincias ao nvel histrico e existencial.

O Lebenswelt um tema presente no pensamento de Husserl desde o comeo. Em Gttingen denomina-o Erfahrungswelt ou mundo da experincia. A reconduo da cincia a sua origem no mundo da vida, como a crtica da psicologia cientfica, exige a constituio da cincia do mundo da vida e uma psicologia fenomenolgica. O mundo da vida a fonte do sentido dos conceitos cientficos. Se esses no puderem referir-se ao mesmo carecem de sentido.

Husserl considera o mundo da vida como origem (Ursprung) e fundamento (Boden) das cincias objetivas. Se o mundo da vida, por um lado, era a origem das cincias objetivas, por outro, era-lhe claro que tinham esquecido essa origem. Este era, para ele, um momento da crise das cincias. Considerava o mundo da vida como um novo ponto de partida no caminho para a fenomenologia transcendental, sobretudo para a subjetividade transcendental, da qual brotam, em ltima anlise, no s as cincias objetivas mas o prprio mundo da vida. Dessa maneira, na fenomenologia husserliana, o mundo da vida exerce uma dupla funo: a) a funo de fundamento (Bodenfunktion) em relao s cincias e b) a funo de fio condutor (Leitfadenfunktion) para o retorno da fenomenologia subjetividade constitutiva do mundo.

O que Husserl entende por Lebenswelt?

A reduo ao mundo da vida quer dizer colocar entre parnteses o que se refere a ele. Entretanto a epoqu no o recurso de um realista escrupuloso, mas o mtodo para o acesso experincia transcendental por vocao rigorosamente filosfica. Por mundo da vida Husserl no entende, pois, o mundo de nossa atitude natural, na qual todos os nossos interesses tericos e prticos so dirigidos aos entes do mundo. Na atitude fenomenolgica trata-se de suspender nossa ateno nesse horizonte para ocupar-nos exclusivamente com o prprio mundo da vida, ou seja, como tem lugar para ns a permanente conscincia da existncia universal, do horizonte universal de objetos reais, efetivamente existentes. O objeto da investigao fenomenolgica sobre o mundo no tanto o ser do mundo quanto seu sentido. O interesse terico da atitude fenomenolgica dirige-se exclusivamente ao universo da subjetividade no qual se nos d o mundo como existente. A cincia do mundo da vida a cincia da subjetividade, a cincia do universal como da preexistncia (Vorgegebenheit) do mundo como fundamento de toda e qualquer objetividade. Contemplar o mundo a partir da nossa atitude fenomenolgica significa v-lo pura e exclusivamente do modo como adquire sentido e validade existencial em nossa vida de conscincia e em configuraes sempre novas. A cincia do mundo da vida tem, pois, por objeto o estudo da vida transcendental e de sua atividade constituinte.

o mundo histrico-cultural concreto, sedimentado intersubjetivamente em usos e costumes, saberes e valores, entre os quais se encontra a imagem do mundo elaborada pelas cincias. O Lebenswelt o mbito de nossas originrias formaes de sentido, do qual nascem as cincias. Para Husserl, o mundo da vida um a priori dado com a subjetividade transcendental. O erro do objetivismo foi esquec-lo ou desvaloriz-lo como subjetivo. As teorias lgico- matemticas substituram o mundo da vida pela natureza idealizada na linguagem dos smbolos. Cabe fenomenologia recuper-lo, tir-lo do anonimato, pois o humano pertence, sem dvida, ao universo dos fatos objetivos; mas, enquanto pessoas, enquanto eu, os homens tm fins, perseguem metas, referem-se s normas da tradio, s normas da verdade; normas eternas.

Husserl, nessa fase de sua fenomenologia, coloca a tnica no mundo da vida, na experincia pura e no a priori pr-categorial, embora mantenha o sujeito transcendental como um polo de referncia. Na crise, vincula o eu e o Lebenswelt na correlao conscincia-mundo. Com isso consegue novas perspectivas para a intencionalidade e a intersubjetividade. pois agora aplica ambos os conceitos ao mundo como histria e como teleologia. Em sntese, tenta recuperar o mundo da vida atravs de um regresso ao mundo que precede toda a conceitualizao metafsica e cientfica, ao mundo pressuposto ou Lebenswelt.

Segundo Husserl, preciso recolocar a subjetividade transcendental no centro da reflexo para recuperar o mundo da vida, das experincias prcientficas originrias sobre as quais historicamente so constitudas as prprias cincias. A prpria raiz das evidncias lgico-matemticas encontra-se, pois, no mundo da vida. O universo de idealidade das cincias modernas nasce no prprio mundo da vida, pois constitudo a partir das formas sensveis das coisas na experincia cotidiana. Pela imaginao, a partir delas se desenham as formas geomtricas ideais puras, que no so as reais mas de corpos idealizados. Erroneamente passou-se a considerar tais idealidades como objetivas. Desta forma idealizou-se a natureza pensando-a de acordo com o paradigma das idealidades matemticas. Esqueceu-se que o processo de idealizao feito pela matematizao galileana da natureza , antes de tudo, produto da subjetividade pensante. Que relao ainda permanece entre o mundo do qual fala o fsico e aquele do qual fala o poeta ou do qual todos falamos na linguagem cotidiana?

Quando Husserl se ocupa da funo do mundo da vida como fundamento das cincias objetivas costuma relacionar com essas a concepo galileana de natureza. Com esta associao quer mostrar que, desde Galileu, a cincia emergente desconhece o carter metodolgico de sua atividade com a pretenso de captar com seus instrumentos o mundo tal como na verdade, por detrs do vu de nossa experincia cotidiana subjetiva e relativa. Tal pretenso ontolgica, para ele, foi de conseqncias equivocadas tanto no racionalismo clssico como no empirismo.

Mundo da vida, no sentido de mundo experimentado pelo homem, significa uma realidade rica, polivalente e complexa, que o prprio homem constri. Mas, ao mesmo tempo, o Lebenswelt constitudo pela histria, linguagem, cultura, valores... Quando se fala de experincia ingnuo querer reduzi-la empina sensvel do mundo fsico. A experincia, sem dvida, um ato da conscincia. Vinculando a experincia ao mundo da vida, ou seja, ao mundo pr-cientfico, pode falar-se de experincia esttica ou religiosa, enfim, de experincia da subjetividade. De modo algum a experincia pode ser reduzida ao mundo das cincias fsico-objetivas. Husserl busca, pois, a experincia alm da experincia da natureza das cincias objetivas enquanto vinculada categoria do Lebenswelt. Assim o Lebenswelt um a priori das cincias, cujos resultados passaro a integrar o mesmo, que traduz as condies de possibilidade de um mundo como mundo histrico, com suas tradies, com seu presente e horizonte aberto ao futuro. A cincia no s emerge do mundo da vida, mas tambm repercute sobre ele, convertendo-o em um mundo impregnado cientificamente. Assim pode dizer-se que a constituio das cincias implica uma constituio cientfica do mundo da vida.

Na fase da crise, Husserl integra a polaridade sujeito- objeto no mundo da vida como horizonte de conhecimento e como suporte das cincias. Dessa forma toda experincia encontra-se condicionada e determinada por um horizonte prdado. Sujeito e objeto encontram-se englobados pelo mundo e pela histria: o mundo da vida. Este atua como fator mediador do que se d no objeto e na conscincia. O Lebenswelt no uma soma de objetos mas o mundo do subjetivo do qual emerge toda a atividade humana. O homem exerce sua funo de criar fatos culturais no mundo da vida. Entre esses fatos est o mundo objetivo das cincias e dos instrumentos tcnicos. Tambm esses so produto histrico com finalidades e procedimentos que mudam. A categoria de horizonte supe que cada experincia, cada dado ou cada palavra, se encontra num nexo global de sentido proveniente da intencionalidade subjetiva. Os dados e as experincias singulares compartilham ser e sentido com a totalidade na qual se inserem. O horizonte, entretanto, constitui uma totalidade aberta e viva.

As cincias apresentam uma viso do mundo na qual predomina o objetivismo, a quantificao, a formalizao, a tecnificao, etc. O mundo da vida, pelo contrrio, apresenta- se como um mundo de experincias subjetivas imediatas, dotado em si mesmo de sentido e finalidade, pr-dado para explicitao conceptual. Entre ambos, entre o mundo da cincia e o mundo da vida, instaura-se um processo dialtico de maior ou menor distanciamento. O mundo expresso no modelo cientfico, interpretado por uma ideologia ou cosmoviso, permanece mundo, mas um mundo mutilado ou parcial. um empobrecimento da realidade rica do mundo da vida do qual no deixa de ser um ato derivado. O sentido da cincia legitima-se, em ltima instncia, no mundo da vida. S este confere fundamentao axiolgica, estrutura intencional e doao originria de sentido prpria cincia. E o mundo da vida tem um ndice temporal ou histrico. O mundo da vida representa a dimenso interior do sujeito e da histria. A crtica de Husserl ao objetivismo da cincia gira, pois, em torno de dois aspectos: a) o esquecimento do sujeito e de seu mundo vital; b) a perda da dimenso tica, pois o mtodo matemtico objetivista renuncia explicitamente a tomar posio sobre o mundo do dever-ser. O mundo da vida , para Husserl, um mundo que tem o homem como centro. Por isso, s o retorno subjetividade transcendental poder recuperar o sentido do humanismo e superar o desvio objetivista. Ser sujeito transcendental, no entanto, no significa outra coisa que um modo particular de existncia do prprio sujeito humano enquanto esse desenvolve, ao mximo, suas possibilidades reflexivas.

O mundo da vida conota os componentes cotidianos da existncia pessoal anteriores atividade cientfica, significando a situao do sujeito na relao intencional com um contexto histrico social que envolve o sujeito cognoscente e o objeto conhecido. E o mundo gerado anonimamente pela colaborao humana que se cristaliza em prxis humana convencionada. Este o mundo do qual as coisas e as palavras saem de encontro imediato ao homem; o mundo no qual parece, a Husserl, possvel restabelecer a conexo entre cincia, tica e vida, pois a cincia apenas uma modalidade particular de conduta prtica, compartilhando as orientaes pr-cientficas existentes no mundo da vida. Husserl descobre que o erro do objetivismo comea onde a razo moderna esquece o mundo ordinrio e cotidiano dos homens.

Enfim, analisando o mundo da vida, a filosofia conquista horizontes sempre novos, pois, detrs das concretizaes descobre a atividade e a criatividade intencional da subjetividade. Para Husserl, autntica anlise de conscincia , pois, hermenutica da vida da conscincia. Resta mostrar que a fenomenologia o telos, o fim, ou seja, o movimento latente para o qual tende a prpria fundao da cultura filosfica. A cosmoviso de Husserl est centrada no conceito de teleologia.

8.3 - A teleologia

Quando Husserl fala da crise das cincias no questiona sua cientificidade, em suas aplicaes tcnicas, nem seus mtodos. Questiona, isto sim, opes subjacentes atividade cientfica como tal e ao seu desenvolvimento. Atravs dessa anlise pode mostrar que a histria do pensamento moderno uma busca do sentido da vida humana (teleologia). A crise das cincias , em ltima anlise, crise de sentido. Quando Husserl fala de crise das cincias refere-se, pois, ao seu significado para a vida humana. Em outras palavras, o lugar da crise o projeto de vida, o mundo tico-poltico porque o mundo da cincia foi separado do mundo da vida concreta. Da mesma forma, a tcnica desinteressa-se de seus fins para concentrar-se nos meios. Por isso, a razo ltima da crise da humanidade europia a perda de teleologia e, conseqentemente, do sentido da vida. Caber fenomenologia reconciliar o mundo da cincia e da tcnica com o mundo da vida a partir da teleologia inerente ao ltimo.

O humanismo ocidental caracteriza-se, desde sua origem, pela presena de uma idia filosfica e de uma intencionalidade teleolgica. Mas o mundo cientfico contemporneo um desvio desta teleologia, um desvio do ideal da filosofia como tarefa infinita. A conscincia da crise uma oportunidade para superar a ingenuidade da cincia moderna, fundamentando-a no mundo da vida e nas intencionalidades que a orientam.

Para Husserl, a racionalidade fenomenolgica est vinculada histria e teleologia. As possibilidades que a teleologia oferece no so possibilidades do ser em si, mas possibilidades da liberdade. A condio temporal e teleolgica do mundo da vida pode expressar-se com a palavra intencionalidade. A subjetividade realiza-se na medida em que se transcende a si mesma por opes da liberdade.

Refletir sobre a histria, para Husserl, equivale a meditar sobre seu sentido. Desta maneira a filosofia husserliana da histria sustenta-se pela idia de finalidade ou tlos. o tlos ou o fim, que orienta a histria da humanidade europia, consiste na realizao da razo mediante a elaborao de uma filosofia concebida como saber fundamental, uno e universal: O tlos espiritual da humanidade europia, no qual est compreendido o tlos particular das naes singulares e dos homens individuais, situa-se num infinito, uma idia infinita, para a qual tende, por assim dizer, o vir-aser espiritual global (Husserliana VI, p.320-321).

Por meio da anlise da histria, Husserl quer deixar manifesto o sentido que orienta os acontecimentos filosficos e cientficos da modernidade. Para consegui-lo, precisa retornar ao mundo da vida e redescobrir o tlos subjacente ao mesmo, o tlos esquecido pela cincia e pela tcnica modernas. A recuperao do sentido da cincia passa por um retorno estrutura teleolgica do mundo da vida. A teleologia coincide com a estrutura tendencial e intencional de todo o ser. Ter teleologia equivale a estar orientado para a auto- realizao de si mesmo, para a verdade de si mesmo, para a prpria evidncia. Assim a teleologia expressa o dinamismo das coisas enquanto tendem perfeio num progresso infinito. A realidade manifesta uma intencionalidade universal, significando uma teleologia universal: Creio que ns sentimos que nossa humanidade europia est inata uma entelequia que domina todas as mudanas de formas europias e lhe confere o sentido de uma evoluo em direo a uma forma de vida e de ser para um polo eterno (Husserliana VI, p. 320).

Husserl pergunta pela Europa: que Europa? Enquanto no um marco geogrfico, mas um espao humano, um modo de vida, uma possibilidade humana surge a pergunta: que o homem europeu? E o projeto de humanidade esboado na antiga Grcia, do qual a Europa se sente herdeira, apenas um igual a outros?

Husserl centra suas reflexes no projeto Europa, vinculado ao comeo da fenomenologia e, ao mesmo tempo, apresenta a fenomenologia como o telos e cumprimento da inteno filosfica. Est convencido de que a Europa um projeto de racionalidade universal, da qual europeus tomaram conscincia reflexa. Europa um projeto de configurar-se a partir da razo, a partir do exerccio racional livre de comunidade, expresso em sua filosofia. Esta representa uma nova etapa na histria da humanidade, uma etapa necessria para continuar o desenvolvimento humano. A etapa da racionalidade autoconsciente de si mesma supe uma racionalidade implcita em etapas anteriores. Os filsofos devem colocar-se a servio dos fins da filosofia, ou seja, a servio de uma nova humanidade.

8.4 - A perspectiva filosfica

A crise atual tem como causa principal o objetivismo cientfico reinante, pois este esqueceu o mundo da vida e a subjetividade transcendental. As cincias reduziram-se a puro conhecimento dos fatos, reduzindo o saber e o homem a meras coisas. Por isso o objetivismo ou a interpretao psicofsica do mundo, apesar de sua evidncia aparente, no passa de uma unilateralidade ingnua. preciso, segundo Husserl, superar a ingenuidade do racionalismo objetivista para recuperar um racionalismo autntico, capaz de compreender os problemas do esprito. Ora, a experincia do mundo da vida ocorre a nveis pr-cientficos. A cincia, ao contrrio, procede de um mundo j constitudo, pr-dado. Husserl quer recuperar esta esfera pr-cientfica da vida e criar conscincia de que o saber apenas uma dimenso parcial do mundo da vida. Este muito mais amplo e muito mais rico que o mundo da cincia. A fundamentao das cincias remete, pois, a um campo de evidncias primeiras as quais constituem o mundo da vida. Desta forma as cincias manifestam-se como meias construes de outras evidncias mais originrias, ou seja, as evidncias do Lebenswelt. Com isso o saber cientfico define-se como mero processo de idealizao da realidade concreta, cuja conscincia se verifica no mundo da vida. A crise consiste, pois, no fato de a reduo objetivista do saber ter desvinculado a atividade cientfica do mundo concreto do homem. A cincia assim formalizada nada tem a dizer ao homem sobre suas necessidades vitais, perdendo o sujeito como suporte de experincias pessoais e das intencionalidades que motivam os atos humanos.

Para Husserl, a superao da crise acontecer quando a filosofia se interessar de novo pelo homem e suas criaes culturais, pela sociedade e seus sistemas de valores. Ser preciso que a filosofia se distancie do formalismo cientfico e se aproxime do mundo da vida, ou seja, dos problemas concernentes existncia humana. A matematizao e formalizao da cincia moderna, segundo ele, produzem efeitos desconcertantes nas humanidades e na filosofia. As pretenses de um mtodo nico, de uma linguagem unificada e unvoca conduzem a uma reduo fsico - matemtica do ser, da racionalidade e da verdade. Aplica-se uma fsica ao psquico, submetendo-a a um processo de objetivao e idealizao, que perde as dimenses subjetivas da vida espiritual. A reduo do psquico ao fsico implica uma total dependncia do primeiro em relao ao segundo. Com isso aliena-se o mundo do sujeito no mundo do objeto. O psiclogo converte-se em fsico da alma (psiqu).

Husserl quer recuperar a instncia transcendental para superar a crise das cincias e da civilizao moderna. Para tanto preciso desenvolver um saber que interprete a realidade como autoexegese do eu (Selbstauslegung) a partir das vivncias originrias do sujeito, de seu Lebenswelt. S reconhecendo a razo e a liberdade como atributos da subjetividade poder libertar-se o homem de processos objetivantes que esquecem o mundo da vida concreta.

Ser homem , na concepo husserliana, um processo constante in fieri, sempre perfectvel, com maior ou menor aproximao de um ideal. Este processo regido pelo eidos do humano, ou seja, pela razo. Ser homem , antes de tudo, possibilidade, pois todo o homem encontra-se orientado pela racionalidade. Tomar conscincia dessa orientao para a razo constitui outro processo histrico. Na teoria como na prtica, o homem desenvolve sua orientao teleolgica tomando conscincia de sua entelequia racional. Em qualquer situao o homem transcende o plano dos fatos ao exercer a crtica dos mesmos e formular novos projetos que lhe permitam super-los.

A cultura ocidental, desde o pensamento grego, realiza-se sobre a teleologia. O sentido da histria coincide com a realizao da razo e isso significa: A razo o especfico do homem, enquanto essncia, que plasma sua vida em atividades e hbitos pessoais. A vida um vir-a-ser contnuo, penetrado por uma intencionalidade a desenvolver-se. No o mtodo nem o universo de idealidades que conferem sentido s cincias modernas mas o mundo da vida enquanto suporte de toda atividade terica e prtica. O mundo da vida do sujeito o lugar que d sentido e finalidade ao agir e ser.

Husserl constata a crise como um fato pr-histrico e busca na histria suas causas e solues. Nisso est uma nova perspectiva da fenomenologia. O ego transcendental agora aparece como razo histrica. Husserl enfrenta a histria nas trs dimenses constituintes da temporalidade: a) o presente enquanto situao de crise; b) o passado filosfico e cientfico enquanto gnese do presente; c) o futuro enquanto tlos que orientar a superao da crise mediante a recuperao de uma racionalidade universal.

Os pensadores, inseridos numa tradio movida pela idia-fim, compartilham a racionalidade teleolgica, que preside o acontecer histrico e contribuem para a realizao do tlos para o qual a histria se encaminha. O tlos encontra-se no presente como o entendido e antecipado. Os projetos filosficos encarnam uma intencionalidade legada pela tradio e assumida pelos pensadores. A reflexo sobre o passado ajuda a esclarecer o que os filsofos e a filosofia intencionam ou pretendem. Cada filsofo nutre-se da histria. A meditao histrica de Husserl permite descobrir que tipos de racionalidade e sentido presidem o acontecer europeu. Para isso, todavia, precisa transcender a mera narrao de fatos histricos para penetrar no sentido interno dos mesmos, na teleologia interna que os orienta. O pensador recorre histria no como ingnu