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A DESCIDA DOS IDEAIS - O Espírito da Física · que sabe falar e se fazer entender nos fatos, castigando-nos com as suas reações vivas e a sua lógica inflexível. Somente com

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A DESCIDA DOS IDEAIS

P R E F Á C I O ........................................................................................................................................................... 1

I. A DESCIDA DOS IDEAIS. ESTRUTURA DO FENÔMENO ........................................................................... 3

II. A HUMANIDADE EM FASE DE TRANSIÇÃO EVOLUTIVA ..................................................................... 7

III. O CRÍTICO MOMENTO HISTÓRICO ATUAL. O INÍCIO DE UMA NOVA ERA. .............................. 10

V. A EVOLUÇÃO DAS RELIGIÕES..................................................................................................................... 40

VI. SINAIS DOS TEMPOS - JEAN PAUL SARTRE ........................................................................................... 42

VII. OS IDEAIS E A REALIDADE DA VIDA ...................................................................................................... 47

VIII. DESENVOLVIMENTO DO CRISTIANISMO ............................................................................................ 57

X. A CRISE DO CATOLICISMO........................................................................................................................... 68

XI. PSICANÁLISE DAS RELIGIÕES E ............................................................................................................... 74

ASPECTOS DO CRISTIANISMO.......................................................................................................................... 74

XII. CIÊNCIA E RELIGIÃO .................................................................................................................................. 96

XIII. TRABALHO E PROPRIEDADE ................................................................................................................ 102

Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)....................................................................................página de fundo

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 1

A DESCIDA DOS IDEAIS

P R E F Á C I O

Para compreender o significado do presente livro, devemos

vê-lo enquadrado no seio da Obra da qual ele faz parte. Esta é

composta de 24 volumes, ligados sucessivamente um ao outro,

como anéis de uma cadeia. Cada um deles representa uma fase

da construção, um andar, de um edifício único, que constitui a

Obra. Tal estrutura não foi premeditada, mas se deveu ao fato

de cada volume ter sido vivido pelo autor, que teve representa-

do, no desenvolvimento da série, o espontâneo amadurecimento

de seu pensamento e personalidade.

Vejamos, pois, em que ponto da Obra se encontra, em rela-

ção aos outros, o presente escrito. O termo central dela é o li-

vro O Sistema, preparado pelo volume Deus e Universo, atra-

vés do qual o leitor é conduzido àquele, ambos completados

por A Grande Síntese, que os precede e projeta uma visão

mais próxima e acessível, apresentando o aspecto evolutivo do

nosso universo. Colocadas assim as bases teóricas da doutrina,

a ideia apresentada em O Sistema é então desenvolvido mais

detalhadamente no volume Queda e Salvação.

Chegando a este ponto, após toda a teoria ter sido expos-

ta, entra-se agora, com os volumes que se seguem, na fase

das suas consequências e aplicações. Ela é agora transporta-

da ao terreno prático da sua realização, para controle de sua

verdade. Entramos na fase de conclusão da Obra. Assim nas-

ceu o volume Princípios de Uma Nova Ética, que se refere a

problemas de moral, psicanálise, personalidade humana etc.

A ele segue-se o presente volume, A Descida dos Ideais, que,

por sua vez, aborda o problema religioso, tema importante,

pois é através das religiões que se realiza na Terra a descida

dos ideais, interessando à vida no seu ponto central: a evolu-

ção (a salvação, com o retorno a Deus). Estamos preparando

o volume sucessivo a este, Um Destino Seguindo Cristo, no

qual se avança sobre as mais concretas consequências e rea-

lísticas aplicações das teorias básicas, apresentadas na forma

vivida por um indivíduo que as aplica, transportando-as para

a bancada das experiências e das provas da realidade cotidi-

ana, em contato com os fatos, tal como eles se verificam em

nosso mundo. Então a visão global das verdades universais é

observada novamente, em suas particularidades, transferida

para outro nível e dimensão, em função de outros pontos de

referência, situados em nosso plano de evolução. Assim, a

atual zona de pensamento torna-se complementar da teoria

fundamental, pois esta constitui abstração longínqua da rea-

lidade de nosso mundo, enquanto aquela, pelo contrário, pro-

põe-se a submetê-la a controle experimental, para demons-

trar-lhe a verdade. Com Um Destino Seguindo Cristo, a se-

gunda Obra vai chegando ao fim.

Os outros volumes, surgidos ao longo do caminho, represen-

tam ramificações dos conceitos fundamentais, onde se fazem

exposições colaterais exemplificativas e complementares, para

melhor iluminar, detendo-se em problemas secundários. Trata-

se de digressões que, originadas no tema central, comprovam-

no e aprofundam-no, pois ele é o ponto de referência de toda a

Obra. O quadro se completa em sentido não só universal, mas

também particular, compondo-se de tantos elementos quantos

são os vários volumes, ligados ao longo da linha de desenvolvi-

mento de um processo lógico “único”, evidenciado pela sua

continuidade. Só agora, que estamos no final e abarcamos com

um olhar retrospectivo todo o caminho percorrido, pode apare-

cer de maneira evidente, sendo possível formar uma visão de

conjunto, a unidade fundamental de toda a Obra.

Estes volumes finais, dos quais o presente faz parte, são im-

portantes não só porque derivam de um sistema conceptual or-

gânico, mas também porque, em de vez de se apoiarem numa

doutrina particular, apoiam-se sobres bases positivas e univer-

sais, tal como as leis que regem a vida e representam a mani-

festação do pensamento de Deus em nosso plano de evolução.

Estas leis existem e, para funcionarem, como de fato sucede,

não necessitam absolutamente de nossas opiniões. Elas cami-

nham independentemente das verdades sustentadas por qual-

quer grupo humano, seja ele partido ou religião, e, indiferentes

ao fato de as negarmos ou ignorarmos, continuam sempre fun-

cionando, como podemos verificar. Elas abrangem integral-

mente a vida, e isto inclui também a vida espiritual, monopoli-

zada pelas religiões. O ponto de referência, portanto, é sólido,

sendo ele visível, atual e objetivamente controlável, sem neces-

sidade de mistérios, revelações, fé, reconstruções históricas ou

fatos longínquos. Trata-se de um pensamento sempre presente,

que sabe falar e se fazer entender nos fatos, castigando-nos

com as suas reações vivas e a sua lógica inflexível.

Somente com tal visão realista, que abarca todos os aspec-

tos da vida, incluindo os espirituais, é possível convencer as

novas gerações. É com esta finalidade de bem que a usamos e a

oferecemos para a salvação dos valores espirituais, apresen-

tando-a numa forma positiva, tal como se exige hoje, para que

uma ideia possa ser aceita. Novas correntes de pensamentos

estão agora amadurecendo rapidamente. O catolicismo, obri-

gado a se mover, a fim de não ficar abandonado para trás, está

chegando em último lugar, ofegante, e apressa-se em atualizar-

se. Lançando Concílios, vota neles a favor do princípio da li-

berdade de consciência e procura um diálogo com as outras

Igrejas cristãs, abrindo os braços aos irmãos separados, mas

só para que eles façam o esforço maior de aproximação em fa-

vor da Igreja Católica. Sua ação, assim, resume-se a movimen-

tar-se no sentido de salvar a sua posição de domínio.

Por outro lado, o autor, a quem não interessa esta luta re-

cíproca pela defesa do próprio grupo, vê-se constrangido a

resolver seus graves problemas, que são de outra natureza,

tratando de solucioná-los por si mesmo. Ele começa a pensar,

não mais se adaptando a representar, só pelo fato de ser um

fiel, o papel da tradicional ovelha do rebanho, obrigado à

obediência da autoridade. Assim não se detém em inúteis dis-

sensões teóricas, mas, pelo contrário, dispõe-se a enfrentar e

resolver por sua conta os seus próprios problemas. Pode até

achar inoportuno o fato de uma religião, que, ao contrário da

ciência, não é competente na matéria, ter de imiscuir-se nos

seus assuntos, sem ser consultada. Então, pensa ele, sobre

que bases positivas apoia-se a prerrogativa na qual elas se

arrogam o direito de invadir a sua consciência, entrando num

terreno que é dele, onde, portanto, é ilícita qualquer intromis-

são de estranhos? Para falar com Deus, não se necessita de

intérpretes e tradutores. Isto constitui violação de domicílio

espiritual. O indivíduo consciente rebela-se contra esta falta

de respeito ao seu direito de pensar segundo a sua consciên-

cia e conhecimento, tanto mais que semelhante invasão auto-

ritária se faz em nome de Deus.

Por tudo isto, oferecemos nestes livros o conhecimento para

que o indivíduo pense e compreenda por si mesmo, a fim de que

ele forme uma consciência própria para sua vantagem, e não a

serviço dos interesses de um grupo. Sem nenhuma imposição

nem obrigação de acreditar, ele aceitará apenas se quiser, li-

vremente, porque compreendeu e está convencido. Não pedi-

mos fé, não apresentamos mistérios, nem sequer recorremos a

um alto nível teológico. Explicamos tudo claramente, para que

cada um veja e julgue por si próprio. O jogo medieval da obe-

diência, baseado no princípio da autoridade, não impressiona

mais. Hoje, não se chega à adesão por sugestão ou obrigação,

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mas sim por demonstração e convicção. Perante a não solici-

tada intromissão de terceiros na sua consciência, o indivíduo,

por direito de legítima defesa, protege-se, assim como, em ple-

no direito, protege a sua casa e haveres contra qualquer inva-

sor, ou até mesmo com maior direito, porque a casa do espírito

vale muito mais. Deve-se respeitar a propriedade individual, e

não há razões históricas ou teológicas que possam autorizar a

violá-la. No entanto, até mesmo ontem, estas violações foram

realizadas por parte de quem possuía a autoridade e se atuali-

zava ao longo do tempo, de modo que tudo ficava como se nada

tivesse sucedido, porque a autoridade, uma vez reconhecida

pelo fato de ser a mais forte, podia fazer e desfazer a sua ver-

dade como melhor lhe conviesse. Isto pode suceder somente na

mente humana, mas não nas leis da vida, segundo as quais não

é possível apagar gratuitamente nenhum erro, cujas conse-

quências, pelo contrário, é inevitável suportar.

O presente volume, por tratar de problemas religiosos, é

de atualidade. Com ele, a Obra, depois de longo caminho,

chega às suas conclusões também neste terreno. Isto num mo-

mento em que o mundo se encontra perante graves problemas,

que exigem solução urgente, razão pela qual ele se pôs a pen-

sar e tem necessidade de conhecimento. Encontramo-nos todos

numa gravíssima hora histórica, de grandes decisões e trans-

formações. Já não serve o velho e cômodo método de esperar

que a autoridade espiritual decida, para descarregar sobre ela

as responsabilidades que nos pertencem. O indivíduo deve

chamá-las a si, colocando-se de olhos abertos e ânimo sincero

com os seus problemas, perante as honestas e sábias leis da

vida. Nestes livros, procuramos iluminar imparcialmente to-

dos os caminhos, para que o homem, por si próprio, encontre

o seu, devendo ele mesmo pensar, compreender e decidir. Não

buscamos obediência, e sim compreensão. Queremos ajudar,

mas a vida exige que tudo seja ganho com o próprio esforço.

Ela chegou hoje a uma curva do seu caminho, depois da qual

será diferente e, por isso, exigirá métodos diversos. É para

este novo trabalho que procuramos nestes livros preparar o

leitor para enfrentar o futuro. Por isto falamos aqui de ideais

e de sua descida, fazendo-o de forma positiva, porque agora

trata-se de realizá-los a sério, passando das palavras aos fa-

tos. Os ideais estão colocados exatamente neste futuro próxi-

mo, que se aproxima a grandes passos, e eles são uma reali-

dade insuprimível, porque suprimi-los significa estancar o

desenvolvimento da humanidade.

Neste futuro próximo, a ciência se prepara para demonstrar

positivamente que o homem é também espírito e que, como tal,

ele sobrevive à morte, voltando depois a ter experiências no

plano de nossa vida física, prosseguindo cada vez mais em as-

censão, até percorrer todo o caminho evolutivo, que se realiza

com o retorno a Deus. Por este caminho se chegará a uma re-

ligião científica, que eliminará tanto o materialismo ateu como

as religiões fideísticas. A ciência dominará positivamente o ter-

reno que hoje ainda se encontra nebuloso, nas mãos das religi-

ões. Em vez de lutarem para eliminar-se, a ciência e fé se com-

pletarão inteligentemente, de forma recíproca. Teremos então

uma religião científica e uma ciência religiosa. A natureza uni-

versal da ciência positiva eliminará o espírito exclusivista que

separa as religiões atuais, para fazer delas, em vez de diversos

aspectos de verdades em luta, uma só verdade universal.

Não é por meio das tentativas do atual ecumenismo cató-

lico que se chegará à unificação do pensamento religioso

mundial. Este ecumenismo tende a uma unificação muito mais

restrita, apenas entre parentes da mesma família religiosa.

Ele pode, em substância, reduzir-se a um chamado à casa pa-

terna no sentido da absorção de ortodoxos e protestantes no

catolicismo, para que se submetam a Roma. Por outro lado, a

antítese plurissecular entre Reforma e Contra-Reforma, prova

que, no seio da cristandade, seja católica ou protestante, pre-

valeceu o princípio involuído da rivalidade e da luta, e não o

do amor, princípio espiritualmente superior. Estamos, pois,

situados no polo oposto daquela unificação que o amor cris-

tão deveria estar. Eis que à grande unidade de pensamento

religioso não se poderá chegar senão pelas vias da ciência.

E, espiritualmente, isto representa uma grande vantagem,

porque uma ciência sincera e honesta, esclarecendo as posi-

ções, reforçará o verdadeiro espírito de religiosidade, que es-

tá desaparecendo nas atuais religiões empíricas. A religião

científica, porque demonstrada como verdadeira, não pode

permanecer no estado de hipocrisia, impossibilitada de ser

tomada a sério. Esta será a religião do Terceiro Milênio, feita

não de autoridade e palavras, mas sim de livre convicção e de

fatos. Não será proselitista, sectária, fideísta, dogmática, ex-

clusivista, mas sim positiva, racional, demonstrada, convicta,

universal. Nossa Obra será compreendida quando o homem

chegar a este mais avançado grau de evolução.

A isto se chegará não só pela ação positiva e construtiva

das forças do Sistema, mas também pela ação negativa e des-

trutiva das forças do Anti-Sistema, ambas ativas em nosso

mundo. Em relação ao aspecto negativo, observamos agora

dois fatos convergentes, que tendem a levar o mundo a uma

guerra atômica. De um lado, o velho egoísmo, o espírito de

domínio e o instinto de violência, não obstante as religiões, fi-

caram intactos no homem, ainda fechado na lei da luta, quali-

dade involuída do plano animal, situado no lado do Anti-

Sistema. Do outro lado, com semelhante natureza, o homem

chegou repentinamente a ter em seu poder meios de destruição

que, se antes eram limitados e, portanto, não podiam produzir

senão efeitos limitados, hoje, sendo poderosíssimos instrumen-

tos de extermínio, podem chegar ao aniquilamento da humani-

dade. O homem não se encontra absolutamente preparado pa-

ra saber usar com sabedoria semelhante poder novo, pois a

sua forma mental não progrediu com a mesma rapidez e pro-

porção daqueles poderes, tendo pelo contrário permanecido

igual à do primitivo, dirigida em grande parte por velhos ins-

tintos. Em tal situação, é muito duvidoso que ele saiba fazer

bom uso de tais meios. As duas condições, de fato, estão conec-

tadas: imensos poderes e instintos atrasados. Não se sabe re-

solver as divergências entre os povos senão com a força, base

de todo o direito, e as religiões aceitam este estado de fato. Pa-

ra quem ainda não se armou, não resta senão esperar a sorte

dos vencidos. É assim que a posse da bomba atômica se tornou

uma necessidade defensiva para todos. Hoje a guerra se trans-

feriu para esta nova dimensão. Assistimos uma corrida univer-

sal de produção dessas bombas, de maneira que o mundo se

enche cada vez mais delas. Assim, cada dia aumenta a probabi-

lidade de que se inicie uma explosão em cadeia, impossível de

ser detida, o que significa uma carreira para a morte.

A Obra surge neste momento histórico para explicar como

funciona tudo isso e, assim, levar à compreensão e à sabedo-

ria. É mais fácil não considerá-la. Mas não se pode impedir

que os fatos continuem a se verificar segundo nossa ótica,

conduzindo-nos às mencionadas conclusões. De resto, segun-

do as leis da vida, o involuído tarda em compreender, não sa-

bendo aprender a evoluir senão através da dor. A vida sabe

disso e o trata de acordo. Com semelhante biótipo não se pode

chegar à compreensão por outro caminho. A tal resultado

conduzirão dois fatos: 1) A evolução, que impulsiona o homem

para frente, amadurecendo sua mente; 2) A dor, que o castiga,

obrigando-o a pensar. É em tal momento histórico e sobre se-

melhante quadro de acontecimentos apocalípticos que aparece

a Obra, da qual o presente volume faz parte.

S. Vicente, Natal de 1965.

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 3

I. A DESCIDA DOS IDEAIS.

ESTRUTURA DO FENÔMENO

Observaremos neste volume, sob vários de seus aspectos,

um fato fundamental na técnica de realização da evolução,

constituído pelo fenômeno da descida dos ideais. Que significa

isto, porém? Descida de onde? Costuma-se dizer do alto. Mas,

que é o alto? O alto é o Sistema, que, na cisão do dualismo, re-

presenta Deus ou o lado positivo, em oposição ao lado negati-

vo, dado pelo Anti-Sistema, na posição antagônica de anti-

Deus. Para abreviar, indicaremos o Sistema por S e o Anti-

Sistema por AS. O fenômeno central de nosso universo é a evo-

lução. Ela representa o trabalho de reconstrução do S a partir de

suas ruínas, que constituem o AS. Segue-se, em consequência,

que a evolução contém diversos graus de aproximação ao S. O

homem encontra-se num desses graus; o animal, num mais

atrasado; o super-homem, num mais adiantado.

O alto significa, portanto, um grau mais evoluído em compa-

ração com um menos evoluído, que, em relação ao primeiro, po-

de ser definido como involuído. Descida dos ideais do alto signi-

fica transferir a lei de um nível biológico mais avançado para um

menos avançado. Isto representa, para quem vive neste nível,

uma antecipação da evolução, porque a influência do ideal per-

mite realizar a passagem para aquele mais alto nível biológico.

Ao conceito de descida dos ideais poderemos dar uma base posi-

tiva, aderente à realidade da vida, assim como aos efeitos deste

fenômeno poderemos dar depois um sentido espiritual, não só de

evolução biológica positiva, mas também de subida para o ideal,

de ascensão das almas em direção ao Céu. Usa-se neste caso ou-

tras palavras e imagens. Mas, desse modo, podemos saber o sig-

nificado delas com base num positivo ponto de vista biológico.

Uma tal colocação do problema nos dá a chave para com-

preender a estrutura e o desenvolvimento do fenômeno desta

descida. Se, de um lado, temos o alto, que significa níveis de

evolução mais avançados, temos de outro lado o nosso mundo,

que representa níveis mais atrasados. O fenômeno da descida

dos ideais é dado pela conjunção destes dois termos, que se

aproximam um do outro, o lado S tomando corpo no biótipo

evoluído, e o lado AS no biótipo involuído. Na realidade, trata-

se de duas ideias ou princípios distintos, que, incorporando-se

nestes dois biótipos opostos, entram em contato através das

ações e reações de cada um deles, com a finalidade de realizar a

evolução. Tal fenômeno é dirigido pela lei de Deus, que, com

esta descida, está empenhada, assim como o destino de quem

trabalha apoiado nesta lei, em realizar a salvação do ser.

Para compreender o fenômeno da descida, é necessário, an-

tes de tudo, entender como funciona a lei biológica terrestre no

nível humano e quais as técnicas com que suas formas evolu-

em. A existência no plano animal-humano baseia-se na lei da

luta pela vida. No entanto esta não é uma lei universal e defini-

tiva, mas apenas relativa a este plano e, por isso, destinada a

desaparecer com a evolução. Como pode isto suceder?

Eis o que se apresenta na realidade. O ser quer viver e, por

isso, luta. Mas por que motivo é necessário lutar para viver?

Porque o ambiente é hostil e a vida, com o fim de assegurar sua

continuidade, cria com superabundância, para depois selecionar

os melhores, abandonando os outros à morte. Assim, se alguma

espécie encontrar oportunidade e for favorecida por um ambi-

ente adequado, torna-se potencialmente capaz de ocupar todo o

planeta. Mas eis então que, além da adversidade dos elementos,

surge a competição entre indivíduos e raças, justamente como

consequência daquela geração superabundante. Ora, quanto

mais faltar a cada um o espaço vital e os meios para sobreviver,

tanto mais se torna feroz a luta para conquistá-los. É assim que

a luta se torna inevitável, assumindo uma forma tanto mais fe-

roz quanto mais primitivo é o ser, porque, quanto mais ele é

primitivo, tanto mais lhe é hostil o ambiente, que ele ainda não

transformou, para adaptá-lo às suas necessidades, e, quanto mais

hostil é o ambiente, tanto mais dura, violenta, feroz e desapieda-

da é a luta para sobreviver. Além disso, corresponde aos princí-

pios que regem a estrutura de nosso universo o fato de ser a vida

tanto mais carregada de dificuldades e dores quanto mais involu-

ída ela for, isto é, quanto mais longe estiver do S e mais próxima

se encontrar do AS. Com a transformação do ambiente e a con-

sequente melhor satisfação das próprias necessidades, diminui a

necessidade de lutar, reduzindo a violência e a ferocidade exigi-

das para sobreviver. Com a diminuição das resistências hostis à

vida do homem, ele pode, sem perigo para si, diminuir a parcela

de energia que deve consumir na luta. É assim que o sistema de

violência tende, pouco a pouco, a ser eliminado.

Mas, com isso, cessará a luta por completo? Não. A luta

para transformar o AS em S não pode cessar senão no ponto

final da evolução, ou seja, quando se alcançar o S, com a anu-

lação do AS. A luta nasceu da cisão no dualismo e não pode

desaparecer enquanto esta cisão não for sanada, reabsorvendo

o dualismo com a reunificação de tudo no S, através do retor-

no de tudo a Deus.

A luta não cessa, transforma-se. Quando a humanidade

começa a se reunir em grupos sempre mais vastos, organizan-

do-se em sociedade, a ajuda recíproca no comum interesse da

defesa torna menos dura a luta contra o ambiente, tendendo,

portanto, a fazer desaparecer, como menos urgente, o sistema

da força e da violência, que tão profundas feridas deixa em

quem lhes sofre os efeitos. Nesse momento começa, com a

disciplina das leis, um processo de ordenação da vida e de cer-

ceamento daquele sistema, que, mesmo podendo momentane-

amente beneficiar quem o pratica, é uma constante ameaça pa-

ra aqueles contra quem ele é utilizado. Que pode fazer então o

indivíduo, quando ele, desta maneira, precisa lutar cada vez

menos contra um ambiente já dominado sobretudo pelos seus

semelhantes, que o cercam e o oprimem, para torná-lo inócuo,

procurando envolvê-lo e prejudicá-lo.

Então a luta se torna mais sutil, processando-se de forma

legal e moral, armada de astúcia, fraude, engano e dissimula-

ção. Esta é a fase atual, na qual a violência, pelo menos dentro

dos limites de um país, é condenada como delinquência, apesar

de, no caso de ocorrer fora dele e durante a guerra, ser conside-

rada um ato honorífico e de valor. Se, no entanto, a violência é

hoje condenada, a astúcia e o engano estão em plena vigência,

como método de luta pela vida. Com este método, perante as

leis, não se procura obedecer, mas sim evadir-se, assim como,

perante o próximo, não se procura colaborar, mas sim explorar.

Todavia ser agredido e roubado legalmente já representa um

certo progresso em comparação a ser assassinado na estrada. A

própria técnica do delito está, portanto, submetida à evolução,

sendo hoje possível observar que, com isso, evita-se sempre

mais a violência e o derramamento de sangue, para não agravar

a pena legal, procurando-se a posse com artes mais sutis, atra-

vés do furto, que é mais vantajosa.

Vejamos agora aonde nos levará este processo de evolução

da luta. A razão fundamental dela é sempre a mesma: sobrevi-

ver com o menor esforço possível. A vida está pronta a aceitar

tudo o que leva para este fim, buscando o máximo rendimento

em termos de bem-estar, com o mínimo dano próprio. Ora, ape-

sar de em menor grau do que o da violência, o sistema astúcia-

engano ainda contém um mal, dado pelo prejuízo resultante pa-

ra os vencidos, os escravizados e os esmagados. A violência

mata a vítima. A astúcia a deixa viva, mas arruinada. As feridas

permanecem impressas no subconsciente e não são esquecidas.

Antigamente, os vencidos, se quisessem sobreviver, eram obri-

gados a se fortalecer cada vez mais. Porém, agora, pela mesma

razão, são obrigados a se tornar cada vez mais astutos e inteli-

gentes. Eis que novamente, também aqui, o mal é automatica-

mente levado à sua autodestruição.

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4 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

Manifesta-se assim uma tendência a cercar e restringir gra-

dualmente o sistema da astúcia, por duas razões: 1a) Porque o

homem se dará conta do imenso custo que o consequente méto-

do da desconfiança, pelo fato de exigir controle contínuo, repre-

senta como dispêndio de energia e perceberá o quanto é contra-

producente tal método, pelos atritos produzidos e pelos danos

provocados no vencido, cujo resultado é a geração de um mate-

rial negativo que, permanecendo em circulação na atmosfera

respirada por todos, não pode acabar senão caindo em cima de

alguém; 2a) Porque, existindo a probabilidade de que todos so-

fram estas duras consequências, compreender-se-á não somente

a contínua ameaça e a falta de segurança que tal método repre-

senta, mas também a imensa vantagem que é para todos seguir,

pelo contrário, o método da sinceridade e da colaboração.

É por este caminho que, por fim, o sistema de luta acabará

sendo superado. Esta transformação corresponde a um processo

de saneamento do separatismo, fruto da queda. Com isso, será

alcançada a reunificação, fruto da reconstrução evolutiva. Neste

processo, os elementos separados tendem sempre mais a se re-

unir, até se fundirem, reconstruindo o seu estado orgânico ori-

ginal. Temos, pois, três fases, que representam as possíveis po-

sições em que o homem pode se encontrar:

1o) O homem isolado, que luta contra a natureza – Plenitude

do método da força-violência.

2o) O homem reagrupado em sociedade, que deve, portanto,

lutar menos contra a natureza, mas que permanece ainda rival

dos outros componentes do grupo – Desuso do método força-

violência, o qual é substituído pelo método da astúcia-fraude.

3o) O homem integrado no estado orgânico de coletividade,

que, pelo fato de haver, com o método precedente, desenvolvi-

do a inteligência, acabou por compreender quão contraprodu-

cente é o sistema astúcia-fraude e quão vantajoso é superá-lo –

Adoção do método da sinceridade-colaboração, para alcançar

com menor esforço um maior bem-estar.

O problema está em desenvolver a inteligência, para se che-

gar a compreender qual é o método de maior vantagem. Mas é

justamente para alcançar este objetivo que o erro produz sofri-

mento. É por isso que, enquanto não se aprende a eliminá-lo

com uma conduta reta, a ignorância significa dano. Vive-se e

sofre-se exatamente para se aprender.

Atualmente, a humanidade se encontra na segunda das três

referidas posições. Assim se explica como hoje, na Terra, os

ideais, incluindo aqueles representados pelas religiões, tendem

a se manifestar em forma de hipocrisia, gerando então a indús-

tria da exploração do sentimento religioso.

Este desenvolvimento em três graus pode parecer como uma

supressão do egoísmo em favor do altruísmo, mas significa na

realidade a sua dilatação e ampliação, e não destruição. A vida,

sempre utilitária, não permite desperdícios inúteis para os seus

fins, de modo que não admite altruísmos completamente nega-

tivos, totalmente improdutivos. Ela não passa, portanto, do ego-

ísmo para um altruísmo como um fim em si mesmo, mas so-

mente quando isso representa uma vantagem. É por essa razão

que ela supera o método da luta entre egoísmos rivais e o subs-

titui pelo método mais produtivo da solidariedade humana. A

vida não alcança o altruísmo através de sacrifícios contraprodu-

centes, que constituem renúncia antivital, mas sim através de

um egoísmo vital, porque utilitário e sempre mais vasto. Então

o altruísmo não significa mais mutilar-se a si próprio em favor

do egoísmo dos outros, mas sim em ver-se a si mesmo refletido

no próximo, incluindo-o no próprio egoísmo. Desse modo,

forma-se o primeiro núcleo, destinado a se dilatar sempre mais.

Começa-se com um pequeno egoísmo do casal, do qual nasce

depois o do grupo familiar, de onde se chega depois ao de gru-

pos sempre mais vastos: a aldeia, a casta, o partido, a nação e,

por fim, a humanidade. Trata-se de um progressivo processo de

unificação, segundo o princípio das unidades coletivas. Fora do

grupo, ou seja, do recinto da confraternização, existe a guerra,

mas dentro dele há liames de interesses comuns, onde o não

provimento à sobrevivência dos outros significa atraiçoar-se a

si mesmo. Quanto mais o grupo de que se faz parte aumenta,

tanto mais o egoísmo se dilata e a guerra é afastada para mais

longe, afastando-se para limites cada vez mais distantes. Quan-

do esta aliança de egoísmos se tornar universal, não haverá

mais lugar para a guerra. Então, terá desaparecido aquilo que

chamamos de egoísmo, ou seja, aquele egoísmo restrito a um só

indivíduo, pois ele se haverá estendido tanto, que abraçará to-

dos num egoísmo universal, o qual chamamos altruísmo. Hoje,

a multiplicação dos contatos, devido aos novos meios de comu-

nicação, começa a encaminhar a humanidade para ampliações

altruístas cada vez maiores do velho egoísmo.

Segundo as três mencionadas fases de evolução, verifica-se

igualmente o fato de que os meios fraudulentos substituem os

violentos, da mesma forma como, depois, os métodos colabora-

cionistas substituem os fraudulentos. Agora, a humanidade se

encaminha para entrar nesta terceira fase. Assim se transforma-

rá também para o homem a lei da luta pela vida. Trata-se, na

verdade, de uma fase que, apesar de numa forma mais simples e

limitada, já foi alcançada, por exemplo, pelas abelhas e pelas

formigas, fato com o qual se comprova que a vida já conhece

tais métodos. Caminhando-se em frente no caminho da evolu-

ção, primeiramente a violência diminui em favor da fraude, mal

menor que substitui o maior, depois a fraude, por sua vez, di-

minui em favor da sinceridade e da colaboração. Com isto, ex-

plica-se a razão pela qual existe em nosso mundo a mentira,

que é portadora de uma função biológica, e compreende-se

também por que a evolução levará à sua futura eliminação.

Será uma grande conquista e um alívio para todos libertar-

se do peso da hipocrisia, da fadiga de praticá-la e de suportá-la.

Com o desenvolvimento da inteligência, a humanidade chegará

a isto, e o mesmo acontecerá também em relação à guerra. As

religiões e a moral representam a descida dos ideais e traba-

lham neste sentido, para libertar a humanidade dos métodos

fraudulentos da luta pela vida, substituindo-os por um senti-

mento de solidariedade social e de ajuda recíproca, num estado

de colaboração e convivência pacífica. O que nos impede de

chegarmos a viver numa posição mais vantajosa para todos é

somente a ignorância. E não há outro método para eliminá-la,

senão sofrer as duras consequências do estado atual. Sofrer até

ser obrigado a procurar aquela posição melhor – que, com a ex-

periência adquirida, pode ser encontrada mais facilmente – e

depois, para permanecer nela, compreender, com o desenvol-

vimento da inteligência, que isso é melhor. Trata-se de conquis-

tar novas qualidades, porque não adianta sobrepor novos siste-

mas econômicos, sociais ou políticos a indivíduos imaturos.

Trata-se de eliminar o atávico antagonismo individual, desen-

volvendo o espírito de associação, de modo que as forças dos

indivíduos isolados não se eliminem, destruindo-se numa luta

recíproca, mas, ao contrário, possam se somar num estado de

cooperação. Assim se obtém um rendimento imensamente mai-

or, tornando-se muito fácil resolver o problema da sobrevivên-

cia, biologicamente fundamental.

Na terceira das três referidas fases, a orgânica, a atividade

que se substitui à luta do primeiro e do segundo tipo é o traba-

lho. O ambiente onde se vive foi gradualmente domesticado

com a civilização, através das leis e da educação. A violência

foi eliminada da vida social, tendo-se compreendido, por fim,

como é contraproducente esforçar-se tanto para se enganar re-

ciprocamente. Pode-se, então, alcançar a terceira fase num am-

biente não mais hostil, entre companheiros não mais rivais,

porque agora, trabalhando todos juntos, o problema da sobrevi-

vência está resolvido, não havendo mais a necessidade de usar

o método da luta, que era inicialmente necessário para sobrevi-

ver. Mais adiante, observaremos quais outros problemas podem

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 5

surgir depois, quando se supera também esta fase. Veremos

quais os perigos oferecidos por um bem estar assegurado para

um biótipo que, ainda provido da velha forma mental, propor-

cionada aos métodos de vida precedente, não está habituado a

isso. Neste capítulo basta haver constatado a necessidade bioló-

gica pela qual a evolução deve levar à realização do princípio

de solidariedade social, baseado sobre o fato positivo da utili-

dade de se associar, para melhor vencer na luta pela sobrevi-

vência. É assim que se passa da fase de antagonismos entre

egoísmos rivais à da colaboração. Nesta nova posição, o indiví-

duo se sentirá muito mais protegido e com mais potencialidade,

porque não se encontrará mais isolado dentro de uma natureza

hostil, cercado por inimigos, mas sim integrado e funcionando

como elemento dentro de um grande organismo.

A utilidade da associação para vencer na luta pela vida é um

fato positivo, portanto, uma vez que a vida é utilitária, torna-se

inevitável que ela evolua nesta direção. Por isso é fatal que se

acabe passando ao sistema orgânico de cooperação, em substi-

tuição ao atual de guerras econômicas, de luta entre classes so-

ciais e de guerras armadas para a destruição universal. Mas co-

mo poderá, na prática, surgir uma substituição tão radical de

método? O sistema da força, assim como o da astúcia, mesmo

sendo o segundo mais refinado que o primeiro, são sempre ba-

seados num egoísmo fechado em si mesmo e na consequente

desonestidade para com o próximo. Ora, abrir este egoísmo em

direção ao próximo, assumindo a consequente honestidade para

com ele, constitui uma profunda transformação de tipo biológi-

co, um salto evolutivo para um nível superior, representando

um amadurecimento que leva a um modo totalmente diverso de

conceber a vida, o que não é fácil realizar. De que meios dispõe

a natureza e que métodos ela usa para alcançar tal objetivo?

O processo, como podemos observar, já está em ação. Para

eliminar o atual regime de rivalidade, não há outro meio senão

a reação das vítimas, que deverão impor, com a persuasão dos

meios coercivos, o sistema da honestidade, de modo que fique

ferido quem pratica o regime da rivalidade, único processo para

compreender que não é salutar repetir o erro. Quando os débeis

e os ingênuos não se deixarem mais enganar, tendo a indústria

da mentira deixado de dar fruto, não haverá mais razão para que

ela continue sendo praticada. Então ela será abandonada, como

se faz com todas as coisas que já não dão mais rendimento.

Mas, para que isso seja assimilado como qualidades do indiví-

duo, é necessário que, por longa repetição, os desonestos cons-

tatem em si mesmos, pela sua própria experiência, os resultados

danosos do seu método, adaptando-se, então, ao outro método,

que, ao invés de produzir aqueles resultados, oferece vantagens

anteriormente desconhecidas, tornando-se deste modo, por fim,

vantajoso para todos. Trata-se de vencer todas as resistências da

ignorância, que faz acreditar no contrário. Trata-se de mudar de

forma mental, passando para uma nova, o que representa uma

verdadeira criação biológica. Para se fixar na raça, tudo isso

deve entrar nos hábitos sociais, através de um esforço tenaz de

imposição, com um impulso constante nesta direção.

O Evangelho, entendido apenas no seu aspecto negativo de

sacrifício, santifica o indivíduo que o pratica, mas encoraja os

desonestos em seu método de exploração. Enquanto os prejudi-

cados não reagirem, a sua paciência funcionará como fábrica de

vítimas. Se os crucificadores de Cristo tivessem recebido uma

lição imediata, não teriam ficado encorajados pelo seu fácil su-

cesso, que lhes ensinou uma verdade totalmente diferente, se-

gundo a qual não é o amor, mas sim a força e o engano que são

premiados. Estamos na Terra, e não nos céus, e aqui a realidade

biológica nos ensina que o ideal, para se enxertar na vida, deve

seguir as leis deste nível. Em relação à Terra, a crucificação de

Cristo pode ter tido a função de um escândalo, mostrando ao

mundo, durante milênios, a vergonha da humanidade, para que

ela compreendesse a má ação e deixasse de repetir semelhantes

crimes. Quanto ao significado daquela crucificação perante o

Céu, ao mundo não lhe interessa saber. Hoje culpa-se os judeus

por deicídio, como se fosse possível matar Deus! Se assim ti-

vesse sido, eles seriam os seres mais poderosos do universo. No

entanto aquele delito não foi apenas de um povo, mas sim de

toda a humanidade, que o repete até hoje, perseguindo inocen-

tes, inclusive em nome de Deus. Segue-se, então, que tão gran-

de escândalo não deu resultados positivos.

As resistências das coisas velhas são imensas. Enquanto o

egoísmo das vítimas, seguindo as leis do plano humano, não

conseguir organizar-se para se impor ao egoísmo dos que provo-

cam os danos, obrigando-os a respeitar os direitos de todos, ha-

verá sempre lugar para os desonestos, com vantagem para eles e

prejuízo para os demais, não se passando jamais à fase de acor-

do e equilíbrio, na qual se supera esse sistema. Este fato justifica

e torna necessária a presença das leis e das respectivas sanções

punitivas, para estabelecer uma ordem na sociedade. Mas tam-

bém justifica a rebelião, quando essas leis não correspondem à

justiça, sendo feitas por um grupo dominante e a favor dele. Daí

a origem da revolta para estabelecer uma ordem que dê cada vez

menos vantagem para apenas uma parte e seja sempre mais uni-

versal, defendendo os interesses de um número cada vez maior

de pessoas, até chegar a abranger a todos. Então terá sido reali-

zado o salto biológico, vivendo-se num regime de altruísmo, jus-

tiça e honestidade. Permanece, então, de pé o princípio funda-

mental de que a vida não dá nada gratuitamente, mas apenas

oferece aquilo que ganhamos com nosso esforço. O ser quis rea-

lizar a descida do S para o AS, mas, agora, são suas as conse-

quências. Para executar a subida do AS para o S, cabe-nos o tra-

balho de conquista e construção. Cristo apenas nos mostrou o

caminho, colocando-se à frente com o exemplo. Compete-nos

percorrê-lo com nossos próprios pés. Isto significa que o ideal

nos é oferecido do Céu como uma proposta de trabalho. Cabe,

pois, ao homem traduzi-lo em realidade, vencendo todas as re-

sistências do AS, que se opõem à reconstrução do S.

◘ ◘ ◘

Agora que examinamos as bases positivas do fenômeno da

descida dos ideais, podemos melhor compreendê-lo e ver por-

que eles descem ao ambiente humano, cuja lei fundamental é a

luta pela vida. Podemos compreender também por que, não

obstante tanta diversidade, eles procuram enxertar-se num am-

biente que é a sua absoluta negação. Isto se explica com a lei da

evolução. Quem, no caminho da ascensão, está em posição

mais adiantada é submetido a um processo que, para ele, consti-

tui retrocesso involutivo, a fim de tornar possível realizar aqui-

lo que, para o mundo, situado numa posição atrasada em rela-

ção a ele, constitui um avanço evolutivo. Dizemos “ele” porque

os ideais tomam corpo (dado que tudo na Terra adquire uma

forma) primeiramente numa pessoa viva, que os afirma e os

lança, e, em seguida, nas instituições, que os representam e os

transmitem. Precisamente assim se organizam as religiões, que

são o canal mais importante da descida dos ideais à Terra. Co-

mo se realiza então este fenômeno e o que sucede quando tal

realidade, verdadeira no Céu, pretende enxertar-se naquela tão

diferente realidade biológica, verdadeira em nosso mundo?

Na Terra, o homem está de fato sujeito a leis bem diferentes,

que, nada tendo de ideal, obrigam-no a se ocupar em primeiro

lugar do problema da sobrevivência. É natural, portanto, que,

para este objetivo, ele procure utilizar-se daquilo que encontra,

inclusive dos ideais. Estes, por sua vez, querem utilizá-lo para os

seus fins, que são totalmente diferentes. Aos ideais interessa a

salvação da alma, para a grandeza do espírito, mesmo que seja

com o sacrifício da vida terrena. Ao homem interessa sobretudo

a vida terrena, porque esta é concreta e atual, somente se interes-

sando pela outra, quando se trata de deixar a presente. As duas

posições estão invertidas uma em relação à outra. É natural,

então, que cada um dos dois princípios, para não se perder nesse

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6 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

antagonismo, deva buscar o interesse comum. É assim que,

quando uma religião dita normas de vida para transformar o

homem, este procure transformá-las num meio para satisfazer

as suas necessidades de vencer na luta pela vida. Deste modo,

ele adapta a religião às suas próprias comodidades, de maneira

que esta lhe sirva, não a aceitando, se ela não lhe servir. Se a

memória de Cristo chegou até nós, isto se deve em grande parte

à concessão do Imperador Constantino, que permitiu o poder

temporal dos papas, pelo qual o sacerdócio se tornou hierar-

quia, administração de bens, atividade política e carreira. Mas,

para que se continuasse a falar de Cristo, não havia outro meio,

senão transformá-lo em algo deste mundo. Mal necessário, que

é tanto mais grave, quanto mais primitiva for a humanidade,

mas que, com o tempo, vai desaparecendo, porque a tarefa da

evolução é eliminá-lo. É inevitável, portanto, que, para tornar

possível a aceitação de um ideal na Terra, ele deva descer ao

nível de quem vai aceitá-lo, pois este é o dono do ambiente ter-

restre, onde o fenômeno deve realizar-se. E isto deve acontecer

para que o ideal não fique excluído da vida.

Os seres nos quais tomam forma os dois princípios opostos

são, de um lado, o biótipo evoluído, com o gênio, o santo, o

profeta ou o super-homem, e, de outro lado, o biótipo normal

animal-humano. O primeiro é o motor da evolução, o elemento

ativo. O segundo é o elemento passivo, que se deixa arrastar

pelo primeiro. Um ideal demora milênios para ser assimilado

e, quando já cumpriu sua função, por ter sido todo utilizado

num sentido evolutivo, é substituído por outro mais adiantado,

a fim de que a humanidade possa continuar progredindo. No

fundo trata-se de uma troca na qual cada um dos dois termos

dá e, em compensação, pede alguma coisa. O ideal se oferece,

pedindo ao homem o esforço necessário para progredir, e o

homem trata de ganhar materialmente o mais que pode e com a

menor fadiga possível, utilizando o ideal na Terra apenas para

esta finalidade. É assim que surgem como seus representantes

os ministros de Deus, formando a casta sacerdotal, que, pelo

fato de cumprir um serviço, estabelece a indústria da religião,

formando a base terrena indispensável para tornar possível o

ideal tomar forma no plano humano.

Para os cidadãos da Terra, tudo está em seu lugar, de acordo

com a lei do seu plano. Deste modo se explica a razão pela qual

os ideais, quando são trazidos ao nível humano na Terra, não se

nos apresentam íntegros, mas sim torcidos e adaptados. Natu-

ralmente, isto é adequado ao homem normal, que faz para si o

trabalho desta adaptação, mas não para quem assume os ideais

a sério e, por esta razão, encontra-se isolado ou, até mesmo, ex-

cluído e condenado. Deste último tipo, perante a destruição dos

valores morais, tomamos o partido nestes escritos, tratando de

salvar o que for possível. Quem se encontra deslocado na Terra

não é o involuído, que está em sua casa, no seu ambiente, mas

sim o evoluído, que procura levar até lá o ideal. Para poder rea-

lizar a sua missão, ele se encontra na merecida posição de con-

denado a um retrocesso involutivo, o que é um castigo tremen-

do. É o mesmo que condenar um homem culto e civilizado a

viver entre antropófagos, transformados em seus semelhantes, a

cujos hábitos ele deve adaptar-se. Tendo por instinto a prática

da sinceridade e da colaboração, ele deve viver submerso num

mundo de hipocrisia e fraude. E já vimos anteriormente quais

são os diversos graus de evolução.

Podemos assim entender o que significa transportar um in-

divíduo do terceiro grau ao segundo, fazendo uma ideia do

martírio necessário para que ele possa realizar, no seio de um

ambiente biológico involuído, o trabalho de arrastá-lo a um

nível mais alto.

Transportado ao mundo dos involuídos, o evoluído encon-

tra-se em condições de inferioridade na luta para a sobrevivên-

cia. Se, para ele, existem compensações celestiais, isto é coisa

que não interessa para o mundo. A Cristo o mundo respondeu

apenas nas duas formas que lhe serviam: desprezando-o quando

estava vivo e explorando-o depois de morto. Pelo fato de repelir

o método da força-violência assim como o da astúcia-fraude, o

homem do terceiro grau evolutivo, de tipo evangélico, seguidor

de Cristo, não é apto para sobreviver no ambiente terrestre. En-

tão o ideal seria levado a termo somente por poucos pioneiros,

rapidamente liquidados, e nunca poderia se realizar no seio de

nossa humanidade. Isto no entanto significaria o fracasso dos

planos da evolução. Mas, se isto não pode acontecer, como en-

tão a vida soluciona o problema?

Os primeiros seguidores do ideal são poucos, mas têm de

arrastar consigo muitos, com a palavra e o exemplo. A descida

dos ideais somente alcança o seu objetivo, quando tais princí-

pios, por terem sido aceitos em massa, tornam-se um fenômeno

coletivo. Antes desta última fase do seu desenvolvimento, os

ideais se encontram no mundo apenas no estado de germe. Cris-

to, até agora, é apenas uma semente que busca crescer. Quantos

milênios faltarão para que possa chegar a ser uma árvore!

Daí se conclui que a moral evangélica – para a finalidade da

evolução, que é a salvação de toda humanidade, e não de apenas

poucos casos isolados – é de tipo coletivo, ou seja, não é reali-

zável numa sociedade de tipo inferior, formada por involuídos,

onde aquela moral, assim como sucedeu com Cristo, rapidamen-

te liquida o indivíduo que a vive. Ora, a vida pode sacrificar al-

guns poucos indivíduos na sua economia, quando isto lhe serve

para os seus superiores fins evolutivos, mas não pode perder to-

da a massa, em favor da qual precisamente se realiza este sacri-

fício. O problema fundamental da vida é a sobrevivência, en-

quanto a evolução é questão somente secundária, quando haja

uma oportunidade. Eis que o Evangelho, para poder verdadei-

ramente realizar-se como prática, e não apenas como pregação,

presume um estado de reciprocidade que somente será possível

aparecer quando a humanidade, por evolução, tiver alcançado a

terceira fase, com a organização coletiva, na qual a moral do de-

ver não se resolve numa espoliação por parte de quem não a

aplica em prejuízo de quem a aplica, mas resulte de um equilí-

brio dado pela correspondência dos direitos e deveres de cada

um com os direitos e deveres do próximo. Somente então o

Evangelho será aplicável em grande escala, porque não repre-

sentará uma ameaça, mas sim uma ajuda para a sobrevivência.

Se praticar o Evangelho pode ser antivital para o evoluído

isolado no atual mundo involuído, que tem de fato o cuidado de

não o aplicar, esse Evangelho pode, pelo contrário, outorgar

vantagem e bem-estar num mundo de evoluídos, onde só se po-

de usar o método da terceira fase, de sinceridade e colaboração,

que é o único capaz de permitir a eliminação da luta com o mé-

todo da não-resistência. Por si só, transformar-se em cordeiro

entre lobos serve apenas para acabar sendo devorado por eles e

assim engordá-los. Por isto o evoluído não pode tornar-se invo-

luído, já que o seu destino está marcado. Seria absurdo que, a

longo prazo, a vida desperdiçasse as suas energias com o fra-

casso daquilo que ela possui de melhor. Eis que todo este jogo

sobre o qual se baseia a descida dos ideais não pode terminar

senão alcançando o objetivo para o qual existe, isto é, um des-

locamento da humanidade em sentido evolutivo.

Por todos estes motivos, apesar do evoluído realizar uma

grande função biológica, o ideal evangélico, transportado para o

terreno da realidade da vida, torna-se uma utopia, como coisa

fora do lugar. A sociedade humana funciona com princípios

opostos. Não é o estado orgânico colaboracionista que prevale-

ce, mas sim o sistema de grupos, dentro do qual se entrinchei-

ram os interesses, numa espécie de castelo medieval, fechado e

armado contra todos os outros castelos. Portanto uma pessoa não

é julgada pelo seu valor, mas sim pelo fato de estar dentro ou fo-

ra do próprio grupo. Então a primeira pergunta que se faz é: “Ele

é um dos nossos?”. Se for, perdoa-se-lhe muita coisa, mas, se

não for, mesmo que seja santo, ele é sempre um inimigo e, por-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 7

tanto, está errado, devendo por isso ser condenado. Quando se

apreciam as qualidades de um indivíduo, isto não se faz impar-

cialmente, mas sim em função da possibilidade de explorá-las

para o serviço do grupo. Uma vez que o objetivo maior é a so-

brevivência, tudo é concebido e realizado apenas em função de-

la. O grupo se forma e existe precisamente para este fim, no qual

todos os membros estão sumamente interessados. Esta é a força

que os mantém unidos, porque a união os fortifica para se de-

fenderem e vencerem. Assim a apreciação de uma pessoa, con-

forme ela se encontre dentro ou fora do grupo, torna-se muito

diferente. As valorizações humanas são, deste modo, torcidas

em função desta necessidade de luta. Se quisermos julgar objeti-

vamente um indivíduo pelo que ele realmente é, devemos pri-

meiro despojá-lo das suas atribuições exteriores, prescindindo

da sua posição social e despindo-o de todos os adereços com que

se cobre e se esconde, pois só assim poderá aparecer sua verda-

deira pessoa, em vez dos seus sucessos sociais.

Na Terra, portanto, tudo existe em função da luta. O indi-

víduo deve ocupar-se em primeiro lugar deste trabalho e vale

na medida em que pode ser utilizado para este fim. Eis que a

parte mais dolorosa da vida do evoluído, quando não morre an-

tes, é a sua glorificação, porque, mesmo conseguindo com isto

enxertar um pouco de ideal na vida, começa a sua exploração,

sendo então submetido às finalidades humanas, quando se bus-

ca sua adaptação e se dá origem ao seu emborcamento a servi-

ço do mundo. A maior paixão de Cristo não foi certamente a

do Gólgota, mas sim a sua longuíssima crucificação, que já du-

ra dois mil anos, a serviço dos interesses dos homens. Para o

evoluído, a vida não pode ser senão missão e sacrifício. O seu

triunfo está na morte, que o liberta do grande sofrimento do re-

trocesso involutivo, restituindo-o ao seu plano de vida. É assim

que a sua posição negativa no mundo torna-se positiva no Céu.

Ele trabalha para a realização da evolução, explicando com a

palavra e contribuindo com o exemplo, para que se compreen-

da a utilidade de se empregar o método da honestidade e da co-

laboração, em vez da força e do engano. O mundo ri-se dele,

tratando-o como um ingênuo. Quando este ser abre os braços

para colaborar, os outros, farejando nele o indivíduo honesto e

inócuo, acabam por escravizá-lo e espoliá-lo. A morte liberta o

evoluído de tudo isto e o restitui ao seu mundo, que é feito, pe-

lo contrário, de justiça, onde ele deixa de ser um inepto, pois lá

a sabedoria do indivíduo consiste em conhecer o mistério do

ser e, consequentemente, atuar com retidão, e não em descobrir

as tramas do próximo, para tirar proveito.

Que pode fazer ele na Terra? A sua posição aqui é clara. Na

Terra, ele é estrangeiro. Tivemos de falar do evoluído porque ele

constitui o instrumento da descida dos ideais, nosso tema atual.

Continuando a ser cidadão do seu tão diferente mundo, ele desce

para viver a sua verdade, que não pode ser desmentida. Esta sua

posição, ainda que lhe imponha tremendos deveres, desconheci-

dos do involuído, também representa para ele um direito e uma

força. Cada ser funciona segundo a lei do plano ao qual está li-

gado, levando-a consigo aonde quer que vá, seja como utilidade

ou seja como fardo. O evoluído, que, por sua natureza, não entra

na luta do mundo, mas que, para tornar possível o comprimento

de sua missão, tem de resolver o problema da sua sobrevivência,

deve possuir seus próprios meios de defesa e proteção. Trata-se

de um cordeiro que tem de sobreviver entre lobos, de um evan-

gélico que usa o método da não resistência num campo de bata-

lha. E a defesa deste indivíduo interessa à vida, porque ela ne-

cessita dele, uma vez que entregou a ele a tarefa, para ela fun-

damental, de promover a evolução. Será possível que ao involu-

ído inconsciente e destruidor tenha sido deixado o poder de li-

quidar o evoluído, impedindo assim o desenvolvimento da evo-

lução? Será possível que o mal realmente vença o bem, que o in-

ferior vença o superior? Mas, se é certo que o evoluído é um

exilado em terra estrangeira, é verdade também que a lei de sua

pátria o segue e o protege, para tornar possível ele cumprir a sua

missão. Se esta lei permite que o involuído elimine tal indiví-

duo, assim o faz somente quando tenha chegado a hora que con-

vém ao evoluído ir-se embora, porque a sua missão foi cumpri-

da. A lei de Deus é a verdadeira dona de tudo, inclusive do invo-

luído e do mundo. Ninguém pode deter o processo da descida

dos ideais à Terra, pois eles realizam os objetivos da evolução.

Os obstáculos ficam limitados no espaço e no tempo, tendo sido

dado a eles o poder de resistir, mas não de vencer.

Eis o significado, a técnica, os instrumentos e as consequên-

cias da realização na Terra do fenômeno da descida dos ideais.

II. A HUMANIDADE EM FASE DE

TRANSIÇÃO EVOLUTIVA

É inevitável que as concepções humanas sejam antropo-

mórficas, pois foram conquistadas por um cérebro humano,

como resultado das experiências vividas e, portanto, em função

dos conhecimentos adquiridos no ambiente terrestre. Como

pode a mente humana, que é um produto de nossa vida, conter

elementos de juízo e uma unidade de medida que ultrapassem

os limites dela? A nossa capacidade de conceber baseia-se e

eleva-se sobre elementos oferecidos pelos nossos sentidos, que

representam uma abertura para o exterior, estando restritos

apenas a uma determinada amplitude do real e a uma determi-

nada ordem de fenômenos. Tudo aquilo que estas vias de co-

municação impedem a passagem não é percebido e, portanto, é

como se não existisse para nós. Trata-se, por conseguinte, de

um material bem limitado aquele que nós podemos obter atra-

vés destes meios, com os quais foi construída no passado a

nossa forma mental, que é o instrumento com o qual hoje jul-

gamos. Não podemos, portanto, elevar as nossas construções

ideais senão com este instrumento e sobre estas bases simples,

dado que não possuímos outros elementos. Por esta razão, tudo

o que está além destes limites encontra-se fora de nossa com-

preensão, não sendo concebido nem concebível. Assim, se pre-

tendemos elevar-nos a concepções superiores, não podemos

fazê-lo senão com estes nossos meios, ou seja, com a nossa

mente limitada, que tende a reduzir tudo às formas do seu con-

cebível, pois ela, por força das circunstâncias, não pode e não

sabe pensar senão antropomorficamente.

Se nós percebemos somente uma pequena parte da realida-

de, o que haverá então além dela? Apenas recentemente, com

meios indiretos, pelas vias da ciência, o homem começou a se

dar conta de tudo isto. Ele também viu que nem sequer esta par-

te percebida por nós é a realidade, mas apenas uma interpreta-

ção dela, pois se trata de algo obtido através dos nossos limita-

dos sentidos e interpretada com o instrumento de nossa mente,

relativa ao ambiente terrestre. Pode acontecer, então, que o pro-

duto de nossa interpretação seja somente uma distorção da rea-

lidade, condição pela qual o que julgamos ser a realidade não

passaria de uma projeção antropomórfica, construída por nós

com as ideias fornecidas pela nossa vida.

Mas há também um outro fato que influi sobre o nosso mo-

do de conceber. Se tudo o que existe está englobado no trans-

formismo universal, então nem sequer as nossas concepções

podem escapar desse processo, razão pela qual elas têm de ser

relativas e progressivas. É indiscutível que, se o universo se

transforma por evolução, também por evolução se transforma o

órgão mental com o qual o percebemos e julgamos. Portanto

tudo é visto sucessivamente de diversos modos, cada um dos

quais representa uma determinada realidade, relativa ao indiví-

duo que a observa e ao momento que ele faz a observação. Eis

que não possuímos das coisas senão estas nossas sucessivas e

relativas representações, realizadas por nós mesmos. Julgamos

ter alcançado a realidade, mas esta é apenas a realidade que o

indivíduo alcança por si mesmo, naquele dado instante, a qual

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8 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

varia com o observador e o momento, modificando-se para di-

ferentes observadores e, com o decorrer do tempo, para o mes-

mo observador. É assim que as nossas verdades não expressam

outra coisa senão a maneira pela qual elas são vistas e concebi-

das por cada um num dado momento. As verdades são, portan-

to, relativas ao observador e progressivas no tempo.

Uma vez que tal condição depende da estrutura do ser huma-

no, então ela permanece verdadeira também no campo das ver-

dades filosóficas, religiosas, morais, sociais etc. Nenhuma forma

de existência parece ser possível, se não for considerada como

um vir-a-ser, e o homem deu-se conta de que tudo é movimento,

seja no universo físico, no dinâmico ou no espiritual. No campo

das verdades acima mencionadas, o transformismo evolutivo é

ainda mais evidente, porque a psique é ainda mais móvel e varia

mais rapidamente com a evolução, em função das fases sucessi-

vas que ela atravessa. Tais verdades também estão em contínuo

movimento, sendo relativas e progressivas. Este é o patrimônio

mental que nos é dado possuir, o qual se resume em representa-

ções antropomórficas limitadas e a verdades progressivas.

No entanto esta mesma progressiva relatividade leva consi-

go, implícita, a sua compensação. A ideia do transformismo

em marcha exige a ideia de um ponto de chegada, que é tam-

bém o ponto de referência, sem o qual nenhum movimento po-

de ser apreciado. Então a própria ideia de verdade relativa e

progressiva nos leva necessariamente à ideia, oposta e com-

plementar, de verdade absoluta e imutável. O movimento exige

uma meta, um ponto situado fora dele, em função do qual se

realize. Transformismo e relatividade progressiva, não se man-

tém por si sós, mas necessitam de um ponto absoluto que,

cumprindo a função oposta, sirva de suporte. A isso leva o

próprio princípio do dualismo universal, pelo qual cada posi-

ção existe em função do seu oposto, somente sendo possível

reconstruir a unidade através da reunião das duas metades di-

vididas. É como o reencontro do positivo e do negativo e vice-

versa, para formar um mesmo e único circuito.

A contínua e fugidia mobilidade se apoia na solidez do

imóvel, do qual necessita, para que não se perca tudo num futu-

ro imenso, sem equilíbrio, orientação e significado. Esta fluidez

deve ser um movimento na ordem, pois, de outra forma, leva-

ria, ou até mesmo já teria levado há muito tempo, tudo a nau-

fragar no caos. A instabilidade não é admissível senão em fun-

ção de uma estabilidade, assim como a relatividade não se sus-

tém senão em relação a um absoluto. Na lógica da estrutura e

do funcionamento do universo há necessidade de um ponto que

seja não somente o termo final da evolução – como um seu

marco cósmico, último produto do processo ascensional – mas

também o seu ponto inicial, constituindo a partida e a chegada,

o Alfa e o Ômega, de todo o transformismo dado pela existên-

cia; um ponto que abrace, dirija, resuma e justifique todo este

imenso fenômeno, como seu centro; um ponto no qual se inicie

e se resolva a instabilidade do vir-a-ser, a corrida do movimen-

to, a relatividade deste transformístico modo de existir em for-

mas e dimensões sempre mutáveis; um ponto enfim no qual tu-

do deve finalmente deter-se, após ter alcançado a sua plenitude

no aperfeiçoamento total do imperfeito, completando o incom-

pleto, com a superação final de todas as dimensões.

É a própria ideia do relativo no qual vivemos que nos leva,

por reflexo, à ideia do absoluto, mesmo que não nos seja dado

conhecê-lo diretamente. Se o nosso relativismo nos nega a con-

cepção do absoluto e o nosso antropomorfismo não pode alcan-

çá-lo, nem por isso ele deixa de existir. Pelo contrário, é justa-

mente a nossa posição unilateral e, por isso mesmo, incompleta

que, exigindo ser completada, nos indica a posição oposta, uni-

camente na qual isto pode realizar-se. É precisamente o fato de

estarmos colocados apenas num lado do ser que nos faz sentir a

necessidade da presença do seu outro lado, somente em função

do qual se pode completar o nosso tipo de existência.

A esta concepção de uma estabilidade definitiva o homem

pode ter chegado também pelo fato de alguns aspectos da rea-

lidade acessível a ele lhe indicarem isto, se bem que em senti-

do relativo. O transformismo em que ele está submerso pode,

de fato, apresentar algumas zonas ou fases de imobilidade, as

quais, no entanto, podem verificar-se apenas como temporário

descanso ou pausa no caminho, numa aparente suspensão mo-

mentânea do movimento, que mesmo assim continua, porém

não mais como manifestação exterior, e sim como amadureci-

mento profundo, no qual a existência prepara as suas muta-

ções, perceptíveis só quando elas se manifestam na forma exte-

rior. É assim que o vir-a-ser da existência pode parecer sus-

penso, dando a ilusão de imobilidade definitiva. Então é possí-

vel, no meio da relatividade, surgirem pontos aparentemente

fixos e definitivos, momentos de estabilidade nos quais se é

levado a crer que a imutabilidade tenha sido alcançada, apesar

de não serem eles nada mais do que repousos e paragens pas-

sageiros no transformismo. De fato, eles não passam de transi-

tórias posições de equilíbrio, prontas a se romperem, para re-

tomar o caminho. Trata-se de uma momentânea estabilização

de forças contrárias, que se neutralizam no equilíbrio dos im-

pulsos. É nesta posição estática de movimento relativo que,

sem a desintegração atômica, a matéria parece eternamente es-

tável, conforme se julgou no passado. Isto, porém, não impede

que ela esteja pronta a se transformar em energia, quando são

rompidos os seus equilíbrios atômicos internos.

O vir-a-ser da existência não se detém jamais. Porém so-

mente é possível um transformismo como um meio para alcan-

çar um fim, e não como um processo sem solução, que se mo-

vimenta eternamente numa determinada direção. Não pode ha-

ver um transformismo que não seja compensado por um mo-

vimento contrário e complementar, em função de um ponto de

partida e de chegada, dentro dos limites de um dado percurso

ou processo transformístico. Se queremos nos aprofundar, para

compreender a natureza deste movimento, temos de chegar aos

conceitos de involução e evolução, entendendo-os como os

dois períodos opostos e complementares do mesmo ciclo. So-

mente assim tal movimento não se anula no vazio, mas com-

plementa-se com a sua fase contrária, em função do seu ponto

de referência fixo, de partida e de chegada, que lhe imprime

uma direção, sem a qual ele não pode existir. Com isso, a sim-

ples ideia do movimento de vir-a-ser aperfeiçoa-se, transfor-

mando-se numa concepção mais exata, dada por um transfor-

mismo na direção involutiva ou evolutiva. Este é então o duplo

movimento no qual consiste o vir-a-ser e a existência. Isto sig-

nifica que, em nosso universo, não se pode existir senão mo-

vendo-se na direção involutiva ou na direção evolutiva, pro-

gredindo ou retrocedendo, afastando-se ou avizinhando-se de

Deus, que é o princípio e o fim, pois tudo existe em função de

Dele. A estase, neste processo de ida e volta, não pode ser

constituída senão por períodos transitórios, que cedo ou tarde

são retomados no movimento da existência.

O transformismo não é, pois, uma mutação desordenada

qualquer, ao acaso, mas sim um movimento bem regulado, fe-

chado dentro de normas, constituindo um processo fenomênico

bem definido e disciplinado. Sem um tal princípio de ordem

que o dirija, é difícil imaginar como ele possa se realizar. Ora,

tudo isto implica a existência de um esquema diretivo, confor-

me um plano pré-estabelecido, que determina o caminho e, ao

longo dele, as fases de descida e de ascensão. Deve haver, en-

tão, vários níveis de evolução, correspondendo a diversas altu-

ras ou graus progressivos no modo de existir e, portanto, a dife-

rentes posições biológicas, mais ou menos avançadas, conforme

o caminho executado pelo ser em relação ao ponto final de todo

o processo, na direção do qual tudo converge. Eis como pôde

nascer e o que significa a ideia de progresso. Eis como ocorre o

fenômeno do gradual desenvolvimento do ser por evolução.

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 9

Vimos estes conceitos se desenvolverem, ligados uns aos outros

num progressivo concatenamento lógico.

Chegando a este ponto, podemos explicar melhor o signifi-

cado do conceito de verdades relativas e progressivas, do qual

falamos anteriormente. O grau do nosso conhecimento é estabe-

lecido conforme o nível de evolução alcançado pelo instrumento

que possuímos para este fim, ou seja, a nossa mente. Portanto o

conhecimento existe em função da evolução e progride com o

aperfeiçoamento deste instrumento, na proporção dada pelo seu

desenvolvimento. Na natureza, tudo já está compreendido e re-

solvido, o que se comprova pelo fato de já encontrarmos tudo no

estado de funcionamento. Somos nós, portanto, que ainda deve-

remos compreender e resolver tudo. No indivíduo mais evoluí-

do, a dificuldade não reside tanto em compreender, mas sim em

se fazer compreender pelos menos evoluídos do que ele, poden-

do, às vezes, levar até mesmo séculos para eles poderem enten-

dê-lo. Esta é a história dos gênios incompreendidos.

O que impede o conhecimento são os próprios limites do

instrumento mental que o indivíduo tem de utilizar para alcan-

çá-lo. A superação destes limites representa um esforço que o

ser não deseja realizar, sendo tanto menor sua agilidade para

executar tal trabalho, quanto mais involuído for o ser. Quanto

mais atrasado é o indivíduo, tanto mais ele se aproxima da

inércia da pedra, aproximando-se evolutivamente dela. O ser

involuído tem horror às mudanças e opõe resistência a toda re-

novação de ideias, apresentando uma vontade antiesforço que

busca paralisar qualquer ascensão, para ele muito incômoda.

Esta tendência à estagnação chama-se misoneísmo e é devida à

tendência do subconsciente ficar agarrado ao conteúdo arma-

zenado no passado, onde se encontra a linha de conduta mais

segura, pois já foi comprovada pela existência, constituindo

um patrimônio seu, que muito esforço lhe custou para conquis-

tar. Prefere assim, por preguiça, não construir outro patrimô-

nio, quando para viver basta o que já possui.

Os vários graus de conhecimento que a evolução nos ofere-

ce são alcançados com diferentes tipos de inteligência, propor-

cionais ao nível biológico conquistado pelo indivíduo. Para as

formas superiores de conhecimento, os primitivos estão com-

pletamente imaturos. Podem recebê-lo, aprendê-lo, repeti-lo e

possuí-lo em aparência, mas uma coisa é a erudição, outra é

saber pensar. É necessário compreender qual é o tipo de inteli-

gência do involuído, que não é um estúpido. Trata-se de uma

inteligência sempre correspondente ao seu nível evolutivo

animal-humano, possuindo assim a respectiva sabedoria, que é

direcionada e utilizada para a defesa da vida, sendo resultado

do caminho percorrido no passado. Ela limita-se, portanto, a

fins imediatos, sendo adequada para resolver os problema prá-

ticos e próximos, em vez de teóricos e longínquos. A tal bióti-

po, basta-lhe a sagacidade comum, a habilidade do engano e a

arte de tirar proveito de tudo. Com isto ele se crê inteligente, e

esta é de fato a sua inteligência.

Mas o tipo de inteligência se transforma com a evolução,

elevando-se para enfrentar e resolver outros problemas, bem di-

ferentes, que, para o tipo precedente, ficam fora do concebível.

Assim, entre evoluído e involuído, poderá se encontrar o mes-

mo desnível de compreensão que existe entre um homem e um

animal. Com a evolução, a inteligência coloca problemas sem-

pre mais vastos e gerais, mais próximos dos princípios direto-

res, no centro do conhecimento. É em direção a este centro que

avança o ser, afastando-se da periferia ou superfície, onde fun-

ciona a realidade prática exterior. Temos, assim, outro tipo de

inteligência, feita para outros trabalhos e dirigida para outros

fins. Ela abraça horizontes e concentra visões de imensas am-

plitudes, reunindo em si, numa síntese, espaços conceptuais

vastíssimos, libertando-se por abstração da infinita multiplici-

dade do particular. Poder-se-ia chamar a isto de visão telescó-

pica, feita para enxergar longe, em comparação com a outra,

que se poderia chamar visão microscópica, feita para ver de

perto. De fato, trata-se de uma inteligência pequena, limitada ao

contingente, descentrada na multiplicidade do particular, deso-

rientada e dispersa em mil fatos pequenos, dos quais lhe escapa

o significado do plano diretor. No entanto, evoluindo, ela am-

plia sua capacidade de ver tais princípios, dilatando sempre

mais os horizontes que pode perceber.

Os dois tipos de inteligência não se compreendem. O primi-

tivo, justamente por ser ignorante, acredita que possui toda a

verdade, completa e definitiva. O evoluído, pelo fato de saber,

chega a compreender quão mais amplo é o conhecimento, além

das limitadas possibilidades humanas e o quanto, portanto, ele

ainda desconhece. O primitivo liquida rapidamente todos os

maiores problemas do conhecimento, suprimindo-os e limitan-

do-se aos da vida animal. Somente estes são importantes para

ele, que vê o pensador como um inepto para a vida, perdido en-

tre nuvens, fora da realidade, considerando-o uma coisa inútil,

cuja eliminação é necessária. Assim, a forma mental, os desejos,

as emoções e as dores de cada um são completamente diferentes.

Os problemas que o primitivo se coloca e tem de resolver

são mais simples dos que os do evoluído, porém, assim como

acontece com este, são sempre proporcionais à respectiva inte-

ligência. Quem se encontra ainda envolvido nas necessidades

materiais deve, para sobreviver, ocupar-se delas. O interesse

por outros problemas, mais adiantados, pode surgir somente

quando os primeiros já tenham sido resolvidos, atingindo-se

uma fase de civilização mais elevada, na qual a vida seja menos

violenta e feroz, os direitos e deveres estejam estabelecidos e a

satisfação das necessidades materiais para o indivíduo seja ga-

rantida, a fim de que ele, não mais sendo atacado e distraído

por elas, possa dedicar-se a outros trabalhos, construindo uma

forma mental adequada para realizá-los.

Continuemos seguindo o fio de nossa lógica, para ver até

onde ele nos leva. Vimos haver no universo uma previsão e co-

ordenação de trabalho que implica a presença de um pensamen-

to diretor. Este planejamento, segundo o qual se move o pro-

cesso involutivo-evolutivo, não pode ser outra coisa, neste caso,

senão o produto de uma inteligência suprema, a qual pode estar

somente em Deus, pois tudo isso não pode derivar e depender

senão de uma inteligência que esteja situada sobre toda a cria-

ção e que, para poder discipliná-la, tenha condição de compre-

endê-la com a sua mente e envolvê-la com a sua potência, o que

só Deus pode fazer. Eis, então, que aquele plano não é outra

coisa senão a lei de Deus, imposta como regra da existência e

constituindo a base da ordem do universo.

Esta lei não é letra morta, escrita em palavra, mas, pelo con-

trário, está viva e em ação, porque é pensamento e vontade, é

ideia e realização. Quando a criatura se desvia, afastando-se da

Lei, esta o chama de volta para o caminho reto, impelindo-o a

retornar a ela, não só para o bem dele mesmo, mas também por-

que não é tolerável infringir a Lei, pois isto representa um aten-

tado à integridade do plano de Deus, constituindo uma tentativa

de destruí-lo, para à vontade suprema substituir a vontade da

criatura rebelde. Então a reação da Lei tem a sua função, que é

defender este plano, o qual deve permanecer absolutamente ín-

tegro, para ser realizado, pois a salvação do universo está nele,

que determina o caminho de regresso de tudo a Deus, enquanto

o ser, tentando impor o seu desvio, procura sair da órbita traçada

pela Lei. Esta saída do plano estabelecido para tentar uma órbita

diversa, anti-Lei, deve ser liquidada. Este é o princípio funda-

mental, e cada lei o repete na Terra, reagindo com a prisão ou

com o inferno, porque a reação punitiva é a única coisa capaz de

fazer o involuído compreender e induzi-lo a obedecer. Se não

estivesse em questão o seu próprio dano, o transgressor não se

preocuparia em nada com as leis, que permaneceriam uma afir-

mação teórica, sem nenhum resultado prático. Assim a reação da

Lei assume a forma de dor para o violador, o que se justifica

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10 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

como legítima defesa por parte da Lei, pois ela representa o pla-

no de Deus, anteposto à salvação do ser. Portanto, em última

análise, a dor é santa e sábia, pois constitui uma medida provi-

dencial de proteção para, assim, obrigar a criatura a tomar o ca-

minho da sua salvação, que consiste no regresso a Deus.

O plano da Lei guia o caminho da evolução e determina

que ele deve avançar em direção a Deus, seu ponto final. Evo-

luir significa progredir num processo de divinização, o que

implica adquirir as qualidades mais altas do ser, situadas no

cimo da escadaria da subida, dadas por potência de pensamen-

to, inteligência, sabedoria, bondade e espiritualidade, todas

elas qualidades de Deus. Se esse caminho avança nesta dire-

ção, ele tem de consistir num desenvolvimento mental e espiri-

tual. E este é de fato o caminho que verificamos ter sido per-

corrido pela evolução até hoje, subindo desde a matéria, atra-

vés da vida vegetal e animal, até ao homem, que se distingue

justamente pelo seu desenvolvimento cerebral. Por este trecho,

a história de nossa evolução passada nos mostra que esta foi a

direção do caminho imprimida pelo plano diretor, fato pelo

qual somos levados a crer que, sendo esta a lei seguida pelo

fenômeno, ela tem de continuar a se desenvolver no mesmo

sentido, segundo o mesmo princípio.

A consequência desta lógica é que a humanidade – não por

comando de castas religiosas ou de teorias filosófico-morais,

mas sim por lei positiva de evolução, segundo os princípios de

uma biologia mais ampla, abrangendo passado, presente e futu-

ro – tem de continuar a seguir o seu caminho já traçado, que

consiste em se divinizar cada vez mais, ou seja, avançar em di-

reção à espiritualidade. Então, se esta é a vontade da Lei, cada

desobediência leva fatalmente, como já vimos, a uma reação

correspondente, resultando numa sanção contra quem tenta

desviar-se para fora da linha traçada. É, portanto, no sentido da

espiritualização que deve realizar-se o crescimento evolutivo. A

história do passado nos mostra qual deve ser o nosso futuro. Se,

no trecho percorrido até agora, o crescimento evolutivo foi di-

rigido neste sentido, é evidente que esta é justamente a qualida-

de que terá de se acentuar cada vez mais no trecho a percorrer

no futuro, pois a evolução é um processo único e estamos reali-

zando agora apenas uma continuação dele.

Esta é uma descoberta importante, pois nos mostra qual de-

ve ser a direção a seguir agora em nosso caminho evolutivo,

sendo este o sentido no qual a Lei quer que nos movamos, sob

pena de sofrermos suas reações dolorosas em caso de desobedi-

ência. O passo atual é perigoso, pois a maturidade mental al-

cançada pelo homem o coloca perante o dever de tomar sobre si

as responsabilidades que tal madureza acarreta. O homem, nes-

te momento, chegou a um desenvolvimento mental e de consci-

ência que o capacita a assumir a direção do processo evolutivo

no seu planeta, passando a funcionar não mais guiado pelo ins-

tinto, como um animal, mas sim pelo conhecimento, consciente

do plano diretivo da vida, fazendo-se operário inteligente de

Deus e colaborador na execução da Sua lei. O homem, agora,

não pode mais aceitar cegamente, só por fé, os ideais descidos

do Alto, concedidos por revelação, mas deve inteligentemente

compreender o significado e a função deles, para obrar ativa-

mente no sentido de traduzi-los em realidade na Terra.

Os fatos confirmam estas afirmações. Hoje, a humanidade se

encontra realmente numa curva ou virada biológica, atravessando

uma fase de transição evolutiva. Ela está passando de um tipo de

trabalho inferior, que lhe é imposto pela necessidade da luta pela

sobrevivência física num ambiente hostil, para um tipo de traba-

lho superior, dirigido ao desenvolvimento da mente e do espírito,

em ambiente civilizado. A ferocidade e a força bruta, agora, ser-

vem cada vez menos para os fins da vida, cujo interesse é sempre

maior na cultura, no pensamento e na inteligência, porque eles

lhe são mais úteis. E a vida, sem hesitar, escolhe sempre o que é

mais útil para a sua afirmação e para a sua continuação.

Assim, o tipo de vida que nos espera no futuro está eviden-

temente traçado, e não pode ser outro. Este é o passo que a Lei

quer dar no momento atual de nosso desenvolvimento evoluti-

vo. Estas são hoje, para nós, as diretivas do plano de Deus. Este

é o comando ao qual Ele exige que se obedeça. Caso o homem

não siga esta linha de conduta, acabará se colocando numa po-

sição anti-Lei, tendo de suportar as correspondentes conse-

quências dolorosas que vimos. Assim, se o homem se aprovei-

tar do progresso alcançado e das descobertas realizadas, que o

libertam do trabalho físico e de tantas duras necessidades mate-

riais, para utilizar tudo isto somente com a finalidade de se di-

vertir, dirigindo sua inteligência para o mal, e não para o bem,

no sentido destrutivo ao invés do criador, então a Lei certamen-

te reagirá, enchendo o mundo de dor, porque, como vimos, ca-

da violação leva ao correspondente pagamento doloroso. Nes-

sas condições, a humanidade ficará fora da Lei, abandonada a si

mesma para destruir-se com suas próprias mãos.

A conclusão por nós atingida hoje, até aqui, é que a huma-

nidade se encontra em uma encruzilhada: ou ela segue a linha

da evolução, segundo o plano de Deus, que é no sentido da es-

piritualização, avançando em direção ao Sistema, para adquirir

as suas qualidades, ou, pelo contrário, continuando a seguir a

psicologia do passado, feita de egoísmo e agressividade destru-

tivos, acabará por fazer um louco uso dos novos e potentíssi-

mos meios dos quais dispõe. No primeiro caso, ela poderá al-

cançar uma verdadeira civilização. No segundo, ela se autodes-

truirá, e a supremacia da vida sobre o planeta passará para ou-

tras raças animais, inferiores, que substituirão a humana. Espiri-

tualização significa consciência, sentido de responsabilidade e

senso de justiça no uso dos novos poderes; significa assumir in-

teligentemente, sobre a Terra, as diretrizes da vida do homem e

dos seus coinquilinos, não mais com a forma mental tradicional

do involuído, mas sim com a do evoluído. Insistir na psicologia

do passado agora pode significar a morte!

Impulsionar a humanidade em direção à sua inteligente es-

piritualização pode significar salvá-la da destruição. Daí se

conclui quão grande é a importância do trabalho realizado por

todos que, na Terra, trabalham para a descida dos ideais, por-

quanto nestes princípios estão contidos o programa do futuro

desenvolvimento da humanidade, indicando-nos de que modo

deve, agora, continuar na Terra a atuação do plano de Deus, pa-

ra realizar esta nova fase do processo evolutivo. Muitas vezes,

no entanto, o mundo considera estes indivíduos como iludidos,

fora da realidade, e os condena, chamando-os de sonhadores ca-

rentes de sentido prático, enquanto eles, neste momento, repre-

sentam a única possibilidade de salvação para a humanidade na

sua atual fase de transição evolutiva.

III. O CRÍTICO MOMENTO HISTÓRICO ATUAL.

O INÍCIO DE UMA NOVA ERA.

Tratemos de compreender em profundidade o significado do

momento histórico atual. Salta-nos primeiramente à vista o seu

aspecto negativo, que é o mais próximo e já se encontra em

ação. Trata-se de um processo de destruição dos valores do pas-

sado, conquistados com muito esforço nos últimos milênios.

Assistimos à dispersão dos mais preciosos tesouros da espiritu-

alidade, que são premissa indispensável para uma sábia direção

da conduta humana. Paralelamente, nada vemos ser reconstruí-

do no lugar daquilo que está sendo destruído espiritualmente.

Não surgem nem se afirmam novos valores deste tipo em subs-

tituição aos antigos, de maneira que se fica num vazio. A espiri-

tualidade está em liquidação, pois suas velhas formas, cada vez

menos adaptadas à mente moderna, não convencem mais, não

se sabendo ainda substituí-las por outras novas, racionais e ci-

entíficas. Para suprir a falta de provas, as religiões apresentam

suas verdades de um modo fideístico, com base em mistérios,

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 11

numa forma absolutista e autoritária, afastando o homem de ho-

je, que vai assim em busca de outras verdades, mais positivas,

de natureza científica, demonstradas e utilizáveis na prática.

Hoje se pretende colocar o problema da vida de uma forma di-

ferente do passado, sobre bases claras e concretas, e não sobre

abstrações teóricas, colocadas fora da realidade da vida. No en-

tanto sucede que, entre o velho que não serve mais e o novo

que ainda deve ser construído, a conduta humana fica desorien-

tada, faltando-lhe diretivas superiores, razão pela qual ela segue

à deriva, retrocedendo involutivamente em direção à animali-

dade. Assim os progressos da técnica são usados ao contrário,

fazendo-se deles um meio não para alcançar fins superiores,

mas sim para engordar no bem-estar ou para aniquilar a todos

com uma guerra atômica. Então, no meio de tanto progresso, o

mundo fica à mercê dos impulsos elementares, que se prestam

muito mais a fazê-lo perder-se do que a salvar-se.

Procuremos compreender o que está acontecendo. Quando

um fenômeno chega à sua maturação, ele tende irresistivelmen-

te a se precipitar na conclusão e, tal como um parto, deve ne-

cessariamente realizar-se. Neste sentido, a vida oferece os mei-

os e estimula os impulsos necessários, preparando tudo para

que ele se cumpra com facilidade. No entanto, se o ser, em vez

de seguir a Lei até ao fundo, negar-se a isto, todo o processo,

no qual ele se encontra envolvido, desmorona sobre ele mesmo.

Assim, tudo que estava preparado para um avanço em direção

ao melhor transforma-se num retrocesso em direção ao pior.

Este é o tremendo perigo que pesa sobre a humanidade de hoje,

ou seja, que ela se arruíne por não querer fazer bom uso dos

novos poderes conquistados. Tais meios, para não se tornarem

mortíferos nas mãos de um inconsciente, teriam a necessidade

de serem dirigidos por uma nova sabedoria, ainda mais consci-

ente e efetiva do que a dos séculos passados. No entanto, suce-

de que, justamente neste momento, não temos nada além dos

rudimentos do antigo conhecimento, nem sabemos como subs-

tituí-lo. O perigo é grave, porquanto, absorvida nos detalhes e

sem se dar conta do que acontece nas linhas gerais, a humani-

dade está jogando e arriscando o seu futuro destino. Neste pon-

to do caminho da evolução, ela se encontra numa bifurcação.

Se responder ao apelo ascensional da vida, ela subirá a um pla-

no biológico ou nível evolutivo mais avançado, alcançando um

estado de maior civilização, com menos luta, dificuldade e dor.

Se não responder ao chamado, ela retrocederá a um plano bio-

lógico ou nível evolutivo mais atrasado, voltando ao estado sel-

vagem do primitivo e à correspondente dura forma de existên-

cia. O momento é crítico, porque está em jogo uma salvação

imediata, positiva e controlável neste mundo, aquela que todos

compreendem e tomam a sério, porque não é uma fé discutível,

mas sim uma realidade biológica. Se a humanidade não aceitar

a tarefa, recusando-se a atender ao convite, ela poderá amanhã

chorar sobre as suas ruínas, porque, em vez de dar um passo

adiante, para evoluir em direção ao melhor, terá retrocedido um

passo, involuindo em direção ao pior. Quem conhece a estrutu-

ra das leis da vida sabe que tudo isto pode suceder.

O tema da descida dos ideais interessa neste momento, so-

bretudo porque ele nos expõe o programa a ser realizado, além

de representar, evolutivamente, uma antecipação de estados

mais avançados, que esperam ser realizados por nós no futuro.

Chegou a hora da escolha, o momento da curva decisiva, para

dar o salto numa direção ou em outra. Procuramos aqui compre-

ender o que está acontecendo, orientados pelo tratado já desen-

volvido nos precedentes volumes da nossa Obra, porque, sem a

premissa de um sistema filosófico-científico completo, não é

possível se chegar a conclusões positivas. As espetaculares rea-

lizações da ciência nos mostram que algo de excepcional se está

preparando na história da humanidade. Alguma coisa está se

movendo nas vísceras do fenômeno evolutivo. Por isso, incons-

cientemente, o mundo se encontra numa ansiosa agitação, des-

conhecida no passado. Se o salto falha, não se sabe como nem

onde se irá cair. E é perigoso uma tentativa às cegas. Seria ne-

cessário nos movermos orientados no seio do organismo feno-

mênico universal, dentro do qual existimos e de cujas reações

não podemos prescindir, para, através do conhecimento das con-

sequências do que fazemos, sabermos o que deve ser feito. É

imprescindível sermos sábios e previdentes. Mas só poderemos

sê-lo com conhecimento e consciência. Tentando realizar em

nossos volumes uma síntese universal, tratamos de dar uma con-

tribuição neste sentido. Tudo isto é urgente, porque o fenômeno

evolutivo, uma vez que exerce pressão para se realizar, corre em

direção à conclusão do atual período – que é o início de um ou-

tro – para se resolver, seja qual for a nossa escolha, ou a favor da

humanidade, com o seu progresso, ou contra ela, para seu dano e

retrocesso. O deslocamento em direção a novos equilíbrios já es-

tá iniciado. Enquanto a vida avança, o homem, sem compreen-

der o que está sucedendo, resiste com a sua velha forma mental,

amarrado ao seu passado. Diante dele há uma estrada cheia de

luz, ao longo da qual a vida o impulsiona. Mas ele continua

olhando para trás, na direção de um mundo cheio de trevas. Este

é o tempestuoso contraste entre os impulsos opostos do momen-

to atual. Contudo ninguém pode mudar a fundamental razão do

ser, que é evoluir, nem pode paralisar o irrefreável anseio de

progresso, do qual é constituída a vida. Quem tem inteligência,

consciência e meios deveria ajudar no sentido de fazer avançar o

mais rapidamente possível neste caminho, através do qual, por

meio da superação, alcança-se a salvação.

A humanidade deve escolher entre as duas direções a tomar.

O caminho estabelecido é apenas um, mas pode-se percorrê-lo

para frente, evoluindo, ou para trás, involuindo. Adiante encon-

tram-se os mais requintados valores de ordem psíquica e espiri-

tual. Hoje, o homem tem nas mãos poderes jamais possuídos.

Mas que uso fará deles? Irá empregá-los para se tornar sempre

mais rico, egoísta e corrompido, regredindo ao plano animal,

ou, pelo contrário, irá utilizá-los para ascender a um plano mais

alto, transformando-se cada vez mais num ser de pensamento e

consciência? Estes poderes podem ser utilizados nestas duas di-

reções. Eles permitem um salto de grandes proporções para

frente, porém, se forem mal usados, podem levar a um grande

retrocesso involutivo. Ou se constrói um novo edifício, ou se

fica a descoberto entre as ruínas do velho. Este é um desses

momentos da evolução nos quais o ideal e sua realização assu-

mem um valor especial, diferente do costumeiro. Isto significa

que o ideal não é mais, como se julga normalmente, algo de

utópico, não positivo, estranho à realidade prática, mas, pelo

contrário, ele se introduz nesta realidade como uma necessidade

vital, trazendo um programa a ser realizado com urgência. Tra-

ta-se de um plano necessário para a salvação do mundo, a fim

de evitar que este se perca no retrocesso e de, principalmente,

fazê-lo avançar ao longo do caminho da evolução.

O que está em jogo é imenso. Existe a perspectiva de uma

era de bem-estar, com um novo tipo de civilização, que, liber-

tando o homem da escravidão do trabalho, poderá com isto ofe-

recer-lhe novas atividades, muito mais elevadas, inteligentemen-

te orientadas e realizadas por um biótipo humano mais evoluído,

com outra forma mental. Isto é o que está amadurecendo na pro-

fundidade do fenômeno da evolução. É verdade que a vida não

apresenta ao ser tais problemas, nem solicita semelhantes desen-

volvimentos, quando ainda não chegou a hora. Antes de chegar

o devido momento, a vida prepara longamente o fenômeno, for-

necendo-lhe as condições adequadas, protegendo-o e ajudando-o

depois, para que ele possa realizar-se. Mas, quando tudo está

pronto e o momento da sua realização amadureceu, a vida exige

do ser um esforço proporcional às suas capacidades, responsabi-

lizando-o caso falte da parte dele a resposta adequada, condição

na qual ela deixa recair sobre ele as consequências. Então a lei

de Deus se apropria do fenômeno, e o ser, não tendo poder para

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12 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

torcê-la, pode somente torcer a si mesmo, alterando sua própria

posição em relação a ela. Verifica-se, assim, o chamado fenô-

meno do retrocesso involutivo. A Lei castiga automaticamente

aqueles que, ao chegar o momento no qual tudo amadureceu e

está pronto para avançar, não aceitam a oferta e, buscando fazer

mau uso dela, seguem o impulso evolutivo no sentido inverso,

no qual os novos meios, em vez de serem utilizados para subir

em direção ao S, são aproveitados para descer em direção ao

AS. Querendo com isso repetir o motivo da primeira revolta, é

inevitável que as consequências sejam as mesmas. Assim o ser

se precipita de cabeça no abismo, tendo de ficar ali sepultado,

emborcado, como sucedeu a primeira vez, enquanto não realizar

o trabalho de regresso ascensional.

Não há dúvida que, hoje em dia, a técnica científica e a or-

ganização industrial permitem cada vez com menor trabalho

alcançar uma maior produção, isto é, com menor esforço um

maior bem-estar. Já se fala de dar, além do sábado, também a

sexta-feira e de reduzir as horas de trabalho dos outros quatro

dias. Ora, o perigo reside no fato de que tal abundância de

tempo e enriquecimento de meios não sejam usados em sentido

evolutivo, como um capital para realizar um trabalho mais ele-

vado, mas sim em sentido involutivo, como um capital a ser

dissipado em satisfações de tipo inferior, abandonando-se na

descida e embrutecendo-se na materialidade, ao invés de facili-

tar um impulso mental e espiritual. Saberá o homem fazer bom

uso do aumento de poder que ele hoje tem nas mãos? Depois

de longos milênios de estagnação, durante os quais a humani-

dade jazia em posição estática, julgadas definitivas, chegou o

momento no qual tudo tende a se dinamizar e se pôr em mo-

vimento, seguindo um princípio oposto, para se deslocar e al-

cançar novas posições. Mas o caminho está traçado pela Lei e,

como já deixamos entrever, não pode ser percorrido a não ser

ao longo do percurso involutivo-evolutivo. Ou se avança em

direção ao S, ou se retrocede em direção ao AS. O perigo resi-

de no fato de que, em vez de seguir no sentido de melhorar, di-

rigindo-se em direção ao S, este movimento se realize no sen-

tido de piorar, deslocando-se para o AS. No 1o caso caminha-

se para a salvação; no 2o caso, para a perdição.

O fato não é novo na história e, se bem que em proporções

menores, já ocorreu. Poderia suceder com toda a humanidade o

mesmo fato ocorrido no passado com as classes sociais que

chegaram à fase de aristocracia, em que, assegurada a vitória,

fica estabilizada a posição privilegiada na riqueza e no ócio.

Então, ao atingir tal ponto de sua ascensão, aquelas classes soci-

ais, em vez de continuarem o esforço evolutivo, deixaram-se

descansar, gozando o fruto do trabalho de conquista anterior.

Sucedeu então que, cessando o esforço e o exercício, elas perde-

ram a capacidade e com isto o poder. Assim, iniciou-se a cor-

rupção, o enfraquecimento e a descida destas castas, dando lugar

a outras classes sociais, que sobem do fundo, onde se sofre e se

luta, mas se aprende e se avança. Esta é a história da ascensão,

florescimento e queda das civilizações. Antigamente, este fenô-

meno abarcava somente um limitado grupo humano, ficando pa-

ra algum outro a possibilidade de substituí-lo, tão logo aquele

decaísse. No caso atual, porém, o fenômeno se estenderia a toda

a humanidade, uma vez que, brevemente, com a técnica e o tra-

balho, ela acabará por se encontrar nas condições de abundância

na qual se encontrava o império romano em seu apogeu ou a

aristocracia francesa antes da revolução. O perigo está em que

agora, se toda a humanidade chegar a elevar o seu nível econô-

mico, se difundam nela as perigosas características dos ricos, an-

teriormente limitadas a uma só classe social, as que corrompem

e destroem, por inconsciência dilapidadora, no ócio e bem-estar

gratuito. Isto é o que poderá suceder para a humanidade se ela

não souber transformar a abundância, fruto dos seus novos po-

deres produtivos, num instrumento para um renovado esforço a

fim de continuar avançando, em vez de preguiça e gozo.

Superado o trabalho material, o novo labor deveria ser de

tipo intelectual, cultural, espiritual. Após se haver libertado da

antiga forma de esforço penoso, que o embrutecia, atando-o à

necessidade de satisfazer as suas necessidades mais elementa-

res, seria indispensável que o homem, para não retroceder,

continuasse ainda a sua atividade, mas dirigindo-a no sentido

de conquistas mais altas. No entanto, ele é o mesmo de antes,

conservando a mesma forma mental. Permanece para ele, por-

tanto, o perigo de continuar a se comportar como no passado e,

assim, em vez de se encaminhar em direção a mais altas con-

quistas, começar a se exceder nas satisfações de tipo inferior,

seguindo os seus impulsos de involuído, entregando-se ao abu-

so e excedendo-se na satisfação dos instintos mais atrasados,

em vez de se dedicar à conquista de um progresso ulterior. É

possível, então, vir-se a despertar e fortalecer a besta, em vez

de se construir o anjo ou o super-homem.

O bem-estar, assim, posto nas mãos de um determinado tipo

biológico, ainda não bastante consciente para saber fazer bom

uso dele, poderá produzir mais mal do que bem. Esta condição,

portanto, constituirá um dano para tal indivíduo, e não uma

vantagem, porque a sua atividade, encaminhando-se em direção

extrovertida em vez de introvertida, irá dirigir-se não ao desen-

volvimento da parte espiritual, mas apenas à multiplicação de

comodidades do corpo, como fim em si mesmo, fator evoluti-

vamente de escassa importância. Tomar o bem-estar material

não como meio de progresso, mas como principal objetivo da

vida, é prostituição do espírito, emborcamento de posições,

continuação do caminho em descida em vez de em ascensão.

Assim, ao ideal se substituirá o utilitarismo; à fé criadora, o

céptico cinismo; à fraternidade, o egoísmo; ao progresso, a es-

tagnação. O perigo está em que o bem-estar termine transfor-

mando-se em retrocesso, num requinte e potencialização de

animalidade. Tanto progresso será inútil, se a humanidade qui-

ser entregar-se ao ideal de viver somente para gozar a vida, de-

tendo-se numa exteriorização como fim em si mesma, em vez

de fazer do progresso um meio para alcançar uma interiorização

que utilize os valores materiais para desenvolver os espirituais.

Se o momento é perigoso, ele é, no entanto, também maravi-

lhoso, porque oferece possibilidades desconhecidas noutros

tempos. O que impele a vida sempre para diante é um irrefreável

anseio em direção à felicidade. É o S que sempre chama e atrai

de longe. Não se pode encontrar a felicidade, senão evoluindo

em direção ao S. O erro consiste em buscá-la de modo inverso,

involuindo em direção ao AS. Ao se caminhar para trás, a fim de

se satisfazer com o pior em vez de com o melhor, acaba-se por

encontrar, ao invés de alegria, dor. Ora, necessita-se de muito

mais sabedoria para dirigir um automóvel ou um avião, a fim de

não matar ninguém, do que uma simples carroça! Eis o que se

pode conseguir com tais meios! Existirá hoje, porém, tal sabedo-

ria, ou teremos de conquistá-la duramente, errando e pagando?

Temos, com a libertação do trabalho material, a possibilidade de

dispor de muito tempo, mas que uso saberemos fazer de seme-

lhantes vantagens? É rara a presente oportunidade, e cumpre-nos

aproveitar as circunstâncias atuais, pois não será fácil que ve-

nham a se repetir. O homem se encontra perante perspectivas

ilimitadas, não só com liberdade e poder, mas também respon-

sabilidade, desconhecidos nos séculos passados, tendo-se lança-

do velozmente em direção a radicais mudanças de vida, com

imensa possibilidade de novas realizações, que implicam em

proporcionais consequências de alegria ou dor. Damo-nos conta,

porventura, de que desastre representaria para a humanidade ela

não saber fazer bom uso de tais possibilidades, usando-as, pelo

contrário, no sentido de degradação? Que imensa dor, pois,

constituiria cair e ter de ficar embaixo! Que tremendo trabalho

seria necessário para voltar a subir, a fim de reconquistar a posi-

ção atual! Nada disto é fantasia, pois tudo está estabelecido pe-

las leis que regulam a técnica da evolução.

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 13

Nunca se deve deter o esforço para evoluir. A supressão

das dificuldades a superar e do esforço necessário para vencer

e fazer avançar a vida, acaba por corrompê-la e corroê-la. Es-

tabelecida a satisfação de todas as necessidades e desejos, res-

tam o vazio, a inaptidão e a decadência, por falta desse dina-

mismo vital no qual se apoia a técnica construtiva das qualida-

des. Quem renuncia à sua contínua autoconstrução se destrói.

Pode-se controlar, tanto na vida individual como na história,

quais resultados produz o fácil bem-estar. Tal posição de fa-

vor, a qual, no passado, liquidava apenas uma classe social,

hoje pode estender-se a toda a humanidade, o que significará a

sua destruição em massa. A salvação está em continuar o tra-

balho com atividades mais elevadas, de caráter intelectual e

espiritual, utilizando a libertação das necessidades materiais

para levar a vida a um plano mais alto. Saberá o homem fazê-

lo, ou preferirá corromper-se na inércia, recusando-se a acele-

rar o passo em direção a mais elevados níveis biológicos? Nes-

te sentido, a prosperidade pode constituir um perigo, um ali-

mento agradável, mas venenoso. Saber ser rico é muito mais

difícil e arriscado do que ser pobre. Seria uma coisa nova na

história ver uma sociedade rica que não se arruíne.

Cada conquista perde valor, se não serve para avançar. O

caminho da subida está feito para ser percorrido. A lei é progre-

dir. A evolução é uma pista onde não é possível se deitar para

dormir. A vida reside no movimento. Se ela para, chega a morte.

Todo o universo é movimento e apoia-se no movimento. Hoje, o

homem possui os meios para realizar um grande progresso. Se

isto não suceder, a responsabilidade será sua, assim como as

consequências. Que o momento esteja maduro para transforma-

ções profundas é mostrado pelo estado de agitação em que a

humanidade se encontra. Sente-se, difundida, uma insatisfação

em relação ao passado e uma preocupação em renovar-se a todo

custo. Todos os valores tradicionais estão submetidos a revisão.

Mesmo que não se saiba qual deva ser o novo, o velho está em

liquidação. Faz-se o vazio pela indiscriminada avidez de encher

a vida com novos modos de pensar e agir. Estamos ainda na fase

da tentativa, em que as novas formas nas quais se quer modelar

a nossa existência ainda não apareceram, caminhando-se às ce-

gas à procura de alguma coisa completamente diferente, à qual,

apesar de não sabermos o que é, somos levados por um vago

instinto. A ânsia de renovação é indubitável, apesar de não se

saber onde ela irá desembocar. Por esta estrada se deverá chegar

a um novo tipo de vida, no qual os fermentos agora em ebulição,

tendo-se desenvolvido, estarão afirmados e fixados. Nota-se em

tudo isto a agitação febril do momento crítico, o esforço da con-

quista, a incerteza perante o desconhecido. Isto acontece em to-

dos os campos, em cada manifestação do pensamento e das ati-

vidades humanas. Desde as descobertas científicas até às ideo-

logias políticas, da técnica à moral, das religiões à arte, está

amadurecendo todo um novo modo de ver as coisas e de conce-

ber a vida. Tudo isto se manifesta ainda na forma de uma inde-

finível ansiedade nos espíritos, assaltando o homem como uma

febre em que ferve a ânsia da hora crítica, na qual ele deve de-

cidir se avança ou retrocede. A evolução faz pressão de dentro,

numa obsessão que explode do inconsciente, instando o homem

a avançar com avidez e ir em frente confusamente. Trata-se da

ânsia da expectativa de chegar ao novo estado, que, apesar de

tudo já estar pronto, ainda não pode realizar-se, porque, para

seu aparecimento, necessita ser fecundado pela adesão do ho-

mem, através de seu indispensável esforço. Está em jogo todo o

passado, que trouxe a vida até aqui e está agora fazendo pressão

para ela poder ascender ainda mais.

Este esforço deve ser nosso e livremente desejado. A Lei

guia o fenômeno, prepara tudo e, no momento decisivo, dá-nos

um impulso para frente. Mas nós devemos assumir o esforço

da subida, decidindo-nos a isto espontaneamente. A vida sabe

que agora, se quisermos, existem as condições para alcançar o

objetivo, realizando o salto para frente. Chegou, portanto, o

momento de usarmos nossas forças. Chegando a este ponto da

evolução, existe a possibilidade de superar o fosso. Mas deve-

mos saber superá-lo. Tais condições de favorecimento nos co-

locam na posição de responsáveis. A vida sabe que, se dese-

jarmos, podemos vencer as dificuldades. Devemos, portanto,

saber vencê-las. E, se não o quisermos, a culpa será nossa, as-

sim como todas as consequências.

Tudo está pronto. Falta somente a nossa boa vontade, a

nossa adesão e decisão. Se a conquista e o resultado serão nos-

sos, é justo então que o esforço também seja nosso. Quando

tudo está pronto e as condições favoráveis existem para asse-

gurar o êxito, ajudando no esforço, é culpável negar-se a reali-

zá-lo. Esta é a hora. Amanhã, tais condições poderão não mais

ser encontradas, e não restaria senão o prejuízo, com o qual se

paga o erro. A Lei fez a sua parte para preparar a realização do

fenômeno, e agora ele está maduro. O resto compete ao ho-

mem, que, com o seu esforço, deve realizá-lo.

Eis aí a gravidade do momento histórico, na posição em que

a humanidade se encontra ao longo do caminho de sua evolu-

ção. O que está em jogo é a sua felicidade futura, que pode, pe-

lo contrário, tornar-se a sua infelicidade. Se o homem não sou-

ber decidir-se a subir mais um degrau, então cairá. A Lei quer a

ascensão, e o delito de lesa-evolução paga-se em forma de dor,

tanto maior quanto mais baixo se cai. Então, dada a estrutura da

Lei, não resta senão pagar duramente. Podia-se haver subido, e

se desceu; podia-se haver melhorado, e se piorou. Uma alegria

superior estava à mão, e não resta outra coisa senão a tristeza

do paraíso perdido. Lamentavelmente, parece que tal sistema de

agir está mesmo nos hábitos humanos. Mas isto é lógico para

quem compreendeu que o nosso mundo é o resultado de uma

queda do S no AS. O grave perigo atual é que o homem queira

repetir outra vez este motivo, fazendo prevalecer o impulso do

emborcamento em direção ao AS, e assim, pela oportunidade

de evolução perdida, precipitar-se na involução.

Não se sabe quando ou se a experiência poderá ser repetida,

nem quantos milênios de esforço serão necessários para prepa-

rar novamente as atuais condições, adequadas para se verificar

o fenômeno. O inconsciente coletivo sente confusamente a gra-

vidade da hora. Há no ar uma inquietude indefinida, como de

quem se sente preso nas formas do passado e trata de libertar-

se. Tal como no ensaio de um voo que se tenta com asas ainda

não formadas ou inexperientes, sente-se um nervosismo incom-

preendido no seu verdadeiro significado, como um vago pres-

sentimento apocalíptico. Estes sintomas são interpretados como

patológicos, e procura-se acalmá-los, atordoando-se em distra-

ções, para fugir à compreensão, ao esforço e ao peso da respon-

sabilidade. Busca-se então satisfazer o impulso vital não subin-

do, mas andando para baixo, fugindo aos deveres e à introspec-

ção que no-los indica, procurando eximir-se com as tradicionais

escapatórias e acomodações, resvalando-se pelo caminho fácil

da descida. A humanidade se encontra perante uma bifurcação

da evolução, sem ter plena consciência da gravidade do mo-

mento, no qual se impõe uma escolha que terá depois imensas

consequências, seja no sentido da salvação ou seja no sentido

da perdição. E, uma vez enveredando-se por um destes dois

caminhos, será difícil retroceder e mudar de estrada.

Eis o significado do atual momento histórico. Esta é a hora da

maior conquista da humanidade, mas também da sua maior bata-

lha; a hora das maiores possibilidades, mas também dos maiores

riscos e perigos. Estão se deslocando as posições das bases de

nossa vida. Desmoronam-se as muralhas levantadas pelo passa-

do, dentro das quais não há mais espaço para o nosso pensamen-

to, que tem de se expandir a outros maiores. Construtores de nos-

so eterno destino, aprontamo-nos para subir outro degrau ao lon-

go da escada da evolução, em direção a um mais alto plano bio-

lógico. A revolução já está em ação. Uma revolução verdadeira,

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14 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

que é feita pela vida, acima de todas as outras feitas pelo homem

por interesses ou por política,. De dentro, grita a voz de Deus:

“Avante, Avante!”. A Sua mão está estendida para ajudar a hu-

manidade a realizar o grande salto da transição evolutiva; ajudá-

la a vencer as forças do mal, que lutam para sufocar este desen-

volvimento e transformar a subida em descida; ajudá-la a vencer

as forças do egoísmo, do cálculo e da negação, cuja vontade se-

ria, uma vez mais, que o AS prevalecesse sobre o S.

O presente volume, assim como os restantes conclusivos da

Obra, é, nesta hora decisiva, um sério apelo a quem tenha ouvi-

dos para ouvir, para que seja realizado o esforço da superação

e, assim, escolhido o caminho da salvação, em vez da perdição. ◘ ◘ ◘

Compreendido o significado do atual momento histórico,

vejamos como prever o que de fato poderá suceder.

Segundo a configuração celeste, tal como ela se apresenta no

final de 1964, enquanto escrevo estas páginas, os astrólogos ob-

servam que a conjugação entre Urano e Plutão tem uma influên-

cia de tipo revolucionário, no sentido de destruir as velhas for-

mas. Isto é útil como uma forma de limpar o terreno para novas

construções, preparando o advento da nova era. Plutão representa

a influência no sentido de demolir as estruturas materiais e men-

tais do passado. Urano representa a influência impulsiva, o dina-

mismo criador do novo. Isto indica um contraste entre o despertar

espiritual, que quer realizar-se, e a resistência das forças negati-

vas, que procuram impedi-lo. O momento atual seria, portanto,

uma fase de laboriosa preparação de novos estados futuros.

Com influência menor, Saturno indica, pela sua posição, a

passagem entre duas eras, transição que exerce a função de en-

cerramento das contas, com que se resolve o carma, através da

liquidação do balanço passado e a preparação do futuro. Tudo,

portanto, estaria movendo-se em direção a uma nova era. Ao

trabalho de tal íntima elaboração deve-se aquela agitação febril

de que falávamos anteriormente, própria do momento crítico,

manifestada através de distúrbios neuropsíquicos.

Há, portanto, três elementos em jogo: 1) Uma parte negati-

va, de resistência, devida a influencia do AS; 2) Uma parte po-

sitiva, expressa por um dinamismo psíquico-espiritual, devida à

atração por parte do S; 3) Uma parte representada pelo esforço

que o homem tem de fazer para realizar o salto à frente. Estes

são os impulsos que constituem o fenômeno. Isto pode levar a

desmoronamentos, revoluções, deslocamentos e reconstruções,

mas o caminho da evolução caminha em direção ao alto.

Observemos agora, por via da lógica, como tudo isto poderá

realizar-se. O fato positivo e decisivo para estas profundas

transformações, que já está atuando e atuará sempre mais no

ambiente e tipo de vida humana, é o moderno tecnicismo. A

mais fácil e abundante produção de bens deverá nos levar da fa-

se evolutiva de tipo econômico à de tipo intelectual-cultural-

espiritual, que representa um nível biológico mais avançado. A

evolução da vida se encontraria, assim, num momento decisivo

de seu transformismo, aquele que, segundo a terminologia de

Teilhard de Chardin, leva à passagem da biosfera à noosfera.

Vejamos as causas pelas quais o fenômeno amadurece. Até

hoje, as bases da vida da humanidade foram de caráter econô-

mico. O possuir, sendo a coisa mais necessária para viver, foi

sempre o ponto fundamental de referência, em função do qual

se orientou o modo de pensar e de atuar. Foi assim que se de-

senvolveu uma forma mental humana que, em contradição com

todos os ideais pregados, venera de fato, como supremo e divi-

no valor, o possuir. Sem recursos materiais, não se pode fazer

nada de exterior, que é o meio entendido pela maioria, razão

pela qual também os ideais e as religiões permanecem no mun-

do ainda sujeitos ao domínio destes meios, não sendo possível

se realizarem senão em posição subordinada a eles. O tecnicis-

mo, com a abundância da produção, tende hoje a levar a huma-

nidade para a libertação de tal escravidão econômica. Isto signi-

fica que será outro o ponto de referência segundo o qual se ori-

entará o nosso modo de pensar e agir, o que permitirá a cons-

trução e o funcionamento da nova forma mental humana. Livre

do assalto das necessidades materiais, o homem deverá então

encontrar um outro tipo de trabalho, dirigido à produção de ou-

tro tipo de bens, úteis à vida de outro modo, agora que ela virá

a se encontrar em outra posição ao longo do caminho da evo-

lução. Estes bens são os valores de um mais avançado nível bi-

ológico, até então incompreendidos pelos involuídos, mas cuja

importância então será entendida. Eles são os valores espiritu-

ais, fundamentais no novo plano de vida, como fundamentais

eram os econômicos no precedente. Verdade, moral, escala de

valores, tudo é relativo ao grau de evolução alcançado.

Antigamente, a luta pela vida material era demasiado dura

para que ela não dominasse todas as atividades humanas, tanto

físicas como mentais. Ainda agora, as religiões continuam pre-

gando a renúncia aos bens terrenos, mas elas mesmas, em pri-

meiro lugar, baseiam-se sobre estes bens, em desacordo com o

que elas pregam e condenam. Em pleno acordo, crentes e ateus

lutam pelos mesmos fins concretos, com os mesmos métodos,

pois todos sabem que desinteressar-se dos bens próprios, para

sonhar com ideais, pode significar a morte. Assim, as próprias

religiões são as primeiras a se constituírem em organizações

terrenas que possuem e administram os seus interesses como

todos, mesmo no caso de ordens religiosas baseadas no voto de

pobreza. A fase economista está ainda em pleno vigor, e a no-

va face culturalista, cuja tendência é, pelo contrário, o enrique-

cimento no espírito, é algo que ainda está para chegar. Hoje, o

problema fundamental do homem não está nos bens espiritu-

ais, mas sim nos bens materiais. São estes que dominam tudo,

pois, sem eles, pouco se pode realizar na Terra. Assim o mun-

do está cheio de igrejas frequentadas por gente que, com os fa-

tos, demonstra crer em algo bem diferente.

O problema humano mais vivo está no “meu” e no “teu”.

A luta mundial entre o imperialismo comunista e o imperia-

lismo capitalista é a luta entre o “meu” e o “teu”. O comunis-

mo é uma ideologia de assalto ao sistema do “meu”, constitu-

ído pela propriedade e pelo capital. No entanto, com tal ideal,

ele tomou posse do que pertence aos outros, tirando-o também

do próprio povo, para concentrar tudo nas mãos da classe di-

rigente. É sempre o mesmo jogo, no qual o mais forte tira dos

outros para si próprio. Assim é a natureza humana, e não é

uma ideologia que pode transformá-la. Os fenômenos políti-

cos e sociais não são senão um momento do fenômeno bioló-

gico, cuja expressão é uma consequência do grau de evolução

alcançado. É por isso que o culto da posse hoje é universal,

mesmo dentro dos ideais políticos e religiosos, que se procla-

mam isentos dele. Não há nada que lhe escape. Diz-se: minha

mulher, meu marido, meus filhos, meus parentes, meus de-

pendentes, meus clientes, minha cidade, minha pátria, meu

partido, minha religião e até meu Deus. Tudo é meu, em fun-

ção de mim que sou o dono. O homem vale não pelo que é,

mas pelo que possui. Esta é a estrutura da nossa forma mental,

a base de nossa verdadeira moral.

É isto que, através de uma superabundante produção de

bens, o novo tecnicismo nos permitirá superar, conseguindo as-

sim deslocar o valor do eu daquilo que ele possui àquilo que ele

é. Mas, para passar da tradicional valorização exterior à interi-

or, será necessário aproveitar as novas condições de vida, a fim

de deslocar a atividade do trabalho de tipo econômico-

produtivo para o de tipo intelectual-cultural-espiritual, dirigido

não ao bem-estar material, que estará assegurado, mas à forma-

ção da mais evoluída personalidade do super-homem conscien-

te. Trata-se de uma mutação evolutiva, aquela pela qual, segun-

do Teilhard de Chardin, o ser deixa a biosfera e desemboca na

noosfera, entrando assim, segundo A Grande Síntese , na 3 a fa-

se do fisio–dínamo–psiquismo. Quando o homem tiver supera-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 15

do e organizado em definitivo o dinamismo, dirigindo-o à pro-

dução econômica de bens, ele haverá fixado então, através do

tecnicismo, este funcionamento em forma automática, de ma-

neira que essa produção continuará a se fazer por si mesma.

Assim o homem, uma vez realizada esta obra, que já agora é

sua, poderá dedicar-se à construção de si mesmo num plano su-

perior do edifício biológico e, através de outro tipo de dina-

mismo, dirigir-se à produção de outros bens, de caráter espiri-

tual. Tudo isto é lógico, porque faz parte do plano geral do de-

senvolvimento da evolução, que vai do AS ao S, isto é, da ma-

téria ao espírito. Tudo isto aparece mais evidente no período

atual, porque nos encontramos no momento da passagem de

uma era para outra, em que há mudança de posições e na qual,

devido ao impulso para frente, o transformismo se faz mais rá-

pido, intenso e, portanto, mais visível.

Trata-se de uma transição biológica. Haverá a transforma-

ção do tipo de vida da humanidade nas suas várias manifesta-

ções, como economia, política, literatura, arte, filosofia, ética,

religiões, direito etc., porque mudarão a forma mental, o tipo de

trabalho e as condições do ambiente. Assim as verdades consi-

deradas absolutas, mas que o são somente em relação aos sécu-

los passados, transformar-se-ão em outras verdades, que tam-

bém serão julgadas absolutas, mas que serão relativas em rela-

ção aos séculos futuros, tudo mudando sempre em relação ao

grau de evolução alcançado.

A nova grande ocupação do homem não será conquistar pa-

ra possuir, luta que já não terá razão de existir, quando for su-

perado o estado de necessidade, mas será, pelo contrário, um

trabalho dirigido à conquista de conhecimento e à formação da

consciência. Tudo isto será aceito pela vida, porque, ao mesmo

tempo em que representa um valor biológico, constitui também

um modo mais seguro e completo de defesa, garantindo melhor

a sobrevivência. Estaremos, então, diante de um tipo de luta

praticada com meios mais inteligentes e, portanto, mais eficien-

tes. De fato, não teremos mais o indivíduo em completa igno-

rância, manobrado só pelos instintos e arrastado por eles como

um cego ao longo do caminho da evolução, mas sim um ser

iluminado pelo conhecimento, que assume as diretivas da sua

vida e do fenômeno evolutivo no seu planeta. A luta pela as-

censão continuará, mas, dado o progresso realizado, será sem-

pre mais de tipo S e sempre menos de tipo AS. E sabemos bem

o significado de um tipo e de outro.

De tudo isto pode-se compreender que, desta vez, não se

trata de uma das habituais revoluções, escalonadas em série ao

longo do caminho da história, para realizar pequenas e graduais

transformações, mas sim da conclusão desta série, para iniciar

uma nova, de outro tipo. Em resumo, trata-se de um salto de

uma era para outra, de um processo de transformação que tende

à criação de um biótipo mais evoluído. Hoje, estamos quase no

fim de uma fase de amadurecimento, através do qual o fenôme-

no se precipita na fase seguinte. Estamos na hora do parto. O

feto está pronto. Teremos um recém-nascido: o novo homem,

ainda menino, que os futuros milênios levarão à maturidade.

Processo lento e longo, mas inexoravelmente construído pelo

tempo, que marca o ritmo do transformismo sem nunca se de-

ter. Então, não mais dominará o involuído de hoje, mas sim o

evoluído de amanhã, que, como maioria, imporá as suas leis,

bastante diferentes. Em relação a este último, já explicamos su-

ficientemente, em nossos livros, quão diferentes são a sua for-

ma mental, a sua ética, a sua religião, o seu tipo de trabalho e o

seu objetivo buscado. Ele hoje é exceção e, perante a atual rea-

lidade biológica, constitui uma utopia. Amanhã, ele será esta

realidade. Hoje é uma antecipação isolada, um mártir pisoteado

para abrir caminho aos piores. Amanhã estará no vértice, como

mente diretora da evolução biológica do planeta.

Este é o esplêndido desenvolvimento que nos espera, pro-

gramado pela leis da evolução, se o homem não for louco a pon-

to de querer se precipitar num retrocesso involutivo, abusando

para o mal, na direção do AS, daquelas condições favoráveis

que o impulsionam para o bem, em direção ao S, e dilapidando

assim o fruto da laboriosa maturação dos milênios passados. ◘ ◘ ◘

Ainda com relação a este fenômeno que a evolução está

amadurecendo agora, observemos os seus elementos, a sua téc-

nica e a lógica que a vida usa para desenvolvê-los. Falamos an-

teriormente do culto da posse e da sua correlativa forma mental.

É precisamente neste aspecto que a nova forma mental trans-

formará o homem do futuro. É natural que ele, passando a uma

fase mais avançada de evolução, mude também o seu modo de

conceber a vida, segundo o seu modo de viver e funcionar.

Observemos como o homem está se preparando para entrar

nesta sua mais avançada fase de evolução e a que novo modo

de existência está se encaminhando. A transformação evolutiva

que está amadurecendo na estrutura da massa humana, em

grande parte ainda amorfa, consiste em levá-la cada vez mais

para o estado orgânico. Mais exatamente, esta transformação

consiste em se passar do atual e ainda vigente estado ou modo

de existir, de tipo individualista-separatista, a um outro, contrá-

rio, de tipo orgânico-colaboracionista.

Independentemente do comunismo e fora da sua zona de in-

fluência no mundo, hoje se afirma cada vez mais uma tendência

geral à socialização. O comunismo nada mais é do que apenas

um aspecto da expressão mais ousada, ativa e evidente deste

fenômeno que assalta toda a humanidade: o socialismo. Trata-

se de um fato que se encontra por toda a parte, mesmo em ter-

reno politicamente oposto, envolvendo profundas mudanças no

modo de conceber e colocar os problemas, de agir, de regular as

relações entre os vários elementos da coletividade, enquadran-

do-os numa nova ordem. Pode-se, portanto, verdadeiramente

falar de transformação evolutiva e de fenômeno biológico. As-

sim o comunismo, mais do que um consciente iniciador, seria

só um instintivo seguidor, obediente realizador das leis da vida,

as únicas que sabem onde a humanidade deve chegar e que,

portanto, verdadeiramente dirigem a história. Trata-se de passar

de fato a uma nova forma de vida, coletiva e inteligentemente

organizada, isto é, a um modo de viver mais completo, comple-

xo e perfeito, como é o estado orgânico. Quem entende o signi-

ficado da atual tendência da humanidade à coletivização, com-

preende tratar-se de uma transformação profunda, que, trans-

cendendo o problema político e ideológico, assume a importân-

cia de conquista de uma nova posição biológica, situada numa

mais avançada fase de evolução.

É natural que tal transformação, atuando em profundidade,

seja também psicológica e se estenda a vários setores da ativi-

dade e da natureza humana. Também é natural que o instituto

da propriedade, baseado ainda sobre o velho modelo social

individualista-separatista, ressinta-se deste novo modo de

conceber a vida coletiva. Como reação ao antigo sistema, em

razão da nova maturação evolutiva, explica-se a universal

tendência, mesmo nos países capitalistas, a limitar cada vez

mais o conceito individualista-separatista de propriedade ab-

soluta, através de uma progressiva restrição dos seus abusos,

permitidos pelo princípio atávico de poder ilimitado do dono.

No caso extremo do comunismo, o ataque é frontal, visando

destruir definitivamente o próprio instituto da propriedade.

Nos países capitalistas, ela é atacada em forma mais modera-

da, por sucessivas aproximações, não para destruí-la, mas para

discipliná-la. Acontece, então, que a antiga forma absoluta,

submetida a este processo de cerceamento, limitação e condi-

cionamento, vai sendo lentamente corroída. A propriedade da

fase individualista-separatista não pode sobreviver nesta nova

fase de evolução, a não ser transformando-se num tipo de

propriedade orgânico-colaboracionista, porque toda a socie-

dade humana está se transformando neste sentido e todas as

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16 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

suas manifestações devem seguir o ritmo da evolução, que tu-

do arrasta consigo. Assim, vai desaparecendo o conceito de

propriedade exclusivista-absolutista, que se atualiza paralela-

mente com tudo o mais, tornando-se assim cada vez menos

abuso de egoísmos e sempre mais função social.

Se bem que em diferentes graus, este fenômeno universal de

assalto destrutivo ou de limitação da propriedade tem um signi-

ficado próprio. Ele nasceu e justifica-se como reação aos abu-

sos que se fizeram dela no passado. A humanidade, havendo

amadurecido por evolução, agora consegue vê-los e não está

mais disposta a suportá-los. É necessário compreender que a

evolução, avançando em direção a um estado mais perfeito que

o anterior, tem a função de polir o passado. Assim, para tornar

possível a ascensão, é necessário a propriedade se tornar livre

de todas as superestruturas que a desviaram de sua finalidade e

das incrustações parasitárias que se ergueram por sobre as suas

culpas e defeitos, condição esta verificada numa intensidade

proporcional ao abuso que degenerou a instituição. Então com-

bate-se uma instituição que, por ter sido corrompida, acabou

tornando-se prejudicial, o que significa procurar matar o enfer-

mo, para libertar-se da doença. Sucedeu o mesmo com o assalto

violento do ateísmo contra as religiões. A culpa está no abuso

cometido por elas em nome de Deus. No caso do comunismo, o

ataque contra a propriedade e, portanto, contra quem detém a

posse, é violento em razão da total resistência da parte oposta.

É isto o que obriga a evolução, cuja ação ninguém consegue de-

ter, a usar a força para progredir, quando esta se torna necessá-

ria para avançar. Neste caso, o motivo da violência está na re-

sistência do passado, que não quer renovar-se, razão pela qual,

para dar o salto à frente, a história deve periodicamente recorrer

às revoluções. Se elas acontecem, é porque são úteis à vida, que

de outra maneira não as produziria. E pode-se ver como elas

são úteis ao progresso, ainda que isso se verifique muito tempo

depois. Ninguém admite hoje que seria um bem regressar ao

regime anterior à revolução francesa ou ao poder temporal dos

papas. Mas quem podia condenar naqueles tempos tais regi-

mes? Por isso o ocidente capitalista vai acompanhando, se bem

que lentamente e de longe, o extremismo reformador do comu-

nismo. Pode-se entender também o fenômeno num sentido

completamente diferente do político, vendo-o como um instru-

mento nas mãos de Deus (traduzindo para o cético: meio com o

qual se realiza o pensamento e a vontade da evolução), utiliza-

do para realizar os supremos fins da vida, quando não existe

outro meio a não ser a destruição. Só por ignorância pode-se

chegar a crer que aos interesses egoístas de um grupo ou classe

social seja permitido, num universo em que tudo está regulado,

deter o movimento ascensional da humanidade. E hoje isto se

tem verificado com particular intensidade.

As transformações citadas acima não podem ser considera-

das como um fenômeno isolado, pois arrastam consigo, envol-

vido na mesma corrente, tudo o que, encontrando-se próximo,

seja paralelo, afim ou influenciável de qualquer modo. Tudo

está conexo e repercute, comunicando-se pelas vias físicas, di-

nâmicas e espirituais do universo. Eis então que o vigente mé-

todo de luta pela sobrevivência se ressente destas deslocações.

Até agora, ele se baseava sobre a posse dos bens, ligando-se à

conquista, defesa e conservação deles. Tudo isto, com a evolu-

ção do conceito de propriedade, acaba por se transformar. É

certo que permanece a fundamental necessidade de se procurar

os meios de subsistência. Mas, agora, tal problema deve ser re-

solvido por outras vias. Se, no passado, as bases da vida se

apoiavam na propriedade, o que implicava numa perpétua luta

contra os excluídos, ávidos de apossar-se, porque ser dono sig-

nificava tudo, numa nova fase elas se apoiarão sobre a capaci-

dade e o dever do indivíduo de produzir para a coletividade e

no seu correspondente direito, implícito na fase orgânico-

colaboracionista, de receber daquela sociedade a defesa e a

ajuda necessária para sobreviver, como justa recompensa do

trabalho realizado para vantagem dela. Surge assim, favoreci-

do pelo tecnicismo, um conceito novo: a valorização do traba-

lho, que se substitui ao valor da propriedade. A produtividade

toma o lugar e assume a função que a posse realizava anteri-

ormente. Tudo isto sacode a vida humana da sua posição estáti-

ca e a dinamiza, exaltando a função criadora em vez da conser-

vadora. Tudo isto significa um método diverso de enfrentar e

resolver o problema da existência, de procurar os meios de sub-

sistência, de conduzir a luta pela vida. Esta transformação fixa

na raça dois importantes conceitos: a necessidade de trabalho

para todos e, em paralelo, a necessidade da previdência social.

Veremos, também, que a transformação se torna cada vez

mais vasta, invadindo outros aspectos da vida. Valorização do

trabalho significa valorização do homem, agora dinamizado e,

com isto, elevado a uma nova potência e mais alta dignidade.

Criando com a sua atividade e inteligência, ele passa agora da

sua precedente posição de servo das coisas possuídas, máximo

valor do passado, ao qual ele tinha que se subordinar, para do-

minador delas, reduzidas nas suas mãos a um instrumento cria-

dor. Tudo isso significa que esses meios, que chamamos pro-

priedade e riqueza, deverão ser, para o homem futuro, de tipo

diferente, porque o valor não será medido pelas posses, mas

sim pelas qualidades pessoais e pela capacidade de produção,

baseando-se não na obtenção de bens através do trabalho dos

outros, mas sim no rendimento da própria habilidade e ativida-

de. Então o indivíduo não valerá por ser proprietário de terras e

capitais, mas sim porque possui um cérebro, um conhecimento,

uma consciência e uma grande vontade de trabalhar. Eis o con-

ceito novo que leva o elemento humano ao primeiro plano.

De tudo isto se vê quão profunda, importante e plena de

consequências é a atual transformação evolutiva. Muda com-

pletamente a unidade de medida e o ponto de referência em

função dos quais se julga o indivíduo e se estabelece o seu va-

lor. Ele não vale por aquilo que possui, mas pelo que sabe fa-

zer; não vale pela sua riqueza, mas pelas suas qualidades; não

vale em relação à propriedade, mas em relação ao seu trabalho

e à sua produção. É natural que cada transformação evolutiva,

deslocando a posição do ser para um outro nível ao longo da

escala da evolução, traga consigo também uma deslocação na

posição dos termos da escala de valores. Trata-se de um verda-

deiro avanço biológico, porquanto nasce um valor novo: o ho-

mem, anteriormente em estado de germe. Tal valor substitui

aquele tradicional, constituído pelos bens possuídos. Assim, o

homem consegue libertar-se da escravidão das coisas, das quais

dependia como de um valor máximo, para transformar-se ele

mesmo neste valor. Como se vê, a revolução é profunda, por-

que chega às raízes da personalidade humana, mudando a sua

forma mental, ao mesmo tempo em que desloca as bases eco-

nômicas sobre as quais se apoia a estrutura da sociedade e a

atual técnica da luta pela vida.

Esta transformação traz consigo outras consequências. O ins-

tituto da propriedade, historicamente, representa uma posterior

legalização, para estabelecer juridicamente a favor do proprietá-

rio um aleatório estado de fato ou de posse, formado no início,

fora de qualquer lei, por um livre ato de apropriação. É natural,

portanto, que quantos tenham ficado excluídos de tal conquista,

não compartilhando de suas vantagens, venham a repetir o

mesmo ato, com o mesmo método, em prejuízo de quem o reali-

zou primeiramente. Eis como surgem os ladrões e a necessidade

de uma propriedade armada em contínua defesa contra eles. Eis

que furto e propriedade são duas forças opostas que se equili-

bram no seio do mesmo fenômeno. Uma implica na outra e a le-

va consigo, fazendo, assim que surge, nascer a oposta, porque

ambas fazem parte do mesmo regime e se apoiam sobre a mes-

ma forma mental da avidez egoísta, seguindo sempre insepará-

veis. Proprietário e ladrão, no fundo, são como dois cães à volta

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 17

do mesmo osso. O primeiro luta para continuar sendo dono. Esta

é a substância das defesas jurídicas. E o segundo luta para se

tornar dono. Esta é a substância dos assaltos, manifestando-se

em pequena escala, com o furto, e em grande, com as revolu-

ções. Eis que, para transformar este segundo termo num outro,

eliminando-o nesta sua forma, é necessário transformar também

o primeiro termo, porque, enquanto este continuar sendo o que é

hoje, ele não poderá separar-se de seu fiel companheiro.

Ora, sucede que a atual transformação evolutiva procura jus-

tamente transformar aquele regime num outro, de tipo diferente,

o que leva implicitamente à eliminação de todas as consequên-

cias do primeiro. Esta dissertação não teria sentido, se existisse

uma propriedade verdadeiramente justa, exclusivamente fruto de

trabalho e economia. Tal tipo também pode existir, mas em pe-

quena escala, pois não é certamente com este método que se fa-

zem as riquezas. Eis que, para os males atuais, não existe outro

remédio senão uma mudança de método, e isto é o que se está

preparando hoje. É certo que, caso se queira obter paz, libertan-

do-se do furto e das revoluções, será necessário chegar a um

acordo entre quem tem e quem não tem. Enquanto não for as-

sim, o que não tem andará a caça do que tem, e este, por sua vez,

deverá viver armado em seu castelo. Esta é a luta entre comu-

nismo e capitalismo. Não estamos aqui tomando partido por ne-

nhum programa político. Isto é só uma constatação imparcial do

funcionamento das leis da vida e das inevitáveis consequências

do tipo de forma mental que dirige o atual animal humano. Dia

virá em que o conteúdo do “meu” será diferente, quando ele já

não será o que possuo como tesouro acumulado, mas sim o que

sei fazer, o que possuo como proprietário da minha própria ca-

pacidade de produzir. Neste dia cairão automaticamente as ame-

aças que hoje pesam sobre a propriedade. Este novo tipo de pro-

priedade será, assim, inerente à pessoa, e ninguém poderá roubá-

la, nem por furto nem por revolução. Os ladrões jamais poderão

levar as nossas qualidades pessoais.

Esta transformação pode levar a consequências ainda mais

vastas. Superada a fase do regime separatista do “meu” e do

“teu”, acaba por cessar o estado de guerra que dela deriva. Tal

estado, tanto para os indivíduos como para as nações, é a ine-

vitável consequência de uma propriedade nascida da posse e

utilizada com fins exclusivistas, gerando assim a classe dos

esfomeados, prontos ao assalto. Todos os momentos de cada

fenômeno estão conexos, um contido em germe no outro, com

todas as suas consequências. Com os referidos problemas está

conexo também a questão da multiplicação não controlada,

sobre a qual voltaremos mais adiante. Até hoje, a vida foi in-

duzida à conquista com o método da multiplicação das massas

humanas, lançando-as ao assalto dos povos mais ricos. É as-

sim que propriedade e reprodução são fenômenos interdepen-

dentes, porque a segunda leva à necessidade de conquista de

um espaço vital à custa da primeira, enquanto esta, represen-

tando os meios para a existência, estabelece os limites da se-

gunda. Numa sociedade civil e organizada, estes fenômenos

deveriam ser inteligentemente regulados, e não deixados ao

arbítrio dos inconscientes. As guerras, com as destruições e

dores que custam, não poderão ser eliminadas, enquanto a

causa primária não for eliminada. Vivemos num mundo de

leis, constituído por uma engrenagem de causas e efeitos, de

onde não se pode sair. Cada tentativa neste sentido é um erro

pelo qual se paga. A liberdade que conduz para fora da ordem,

violando os equilíbrios da vida em prejuízo dos outros, não

pode levar a uma conquista, mas somente à reação do ofendi-

do, trazendo não a vitória, mas sim a guerra.

Por que isto? Parece um destino maléfico, que persegue o

homem desde que ele apareceu sobre a Terra. É a sua posição

ainda de involuído, devido ao seu baixo grau de evolução, que

o prende dentro da prisão do seu estreito egoísmo, ligando-o

assim a uma forma mental que, perseguindo-o como uma

condenação, coloca-o em luta com todos. A causa primária es-

tá nesta forma mental atrasada da natureza humana; está no

fato de não ter o homem ainda sabido evoluir até ao ponto de

formar uma consciência coletiva, que o leve a disciplinar-se

numa ordem na qual todos possam espontaneamente colaborar

em paz, para o proveito comum.

Mas por que o involuído é egoísta e possui semelhante forma

mental, causa de tantos dos seus males? A razão para isto tem

uma raiz mais profunda. O ser, devido à sua revolta, é um decaí-

do, mergulhado na cisão. Do originário estado orgânico unitário,

ele, no início dos tempos, emborcou-se e fragmentou-se no sepa-

ratismo, condição na qual permanecerá, enquanto não conseguir,

evoluindo, reconstruir-se naquele estado de origem. A vida,

chegando com a humanidade ao mais alto nível evolutivo do

planeta, está agora tentando os seus primeiros passos para se re-

aproximar da reconstrução daquele estado originário. Eis o mais

remoto e profundo significado do coletivismo hoje na moda, vis-

to em função das grandes transformações desejadas pela evolu-

ção. Por isso a hora presente toma esta direção no desenvolvi-

mento da história, e por isso também este é o trabalho que agora

cabe ao homem realizar, para passar a um grau de civilização

mais avançada. Eis, assim, não somente as razões da condena-

ção à luta pela vida e às guerras entre os povos, mas também o

seu remédio. Só a evolução pode nos libertar dos trabalhos for-

çados de tal tipo de existência, inerente aos involuídos. A vida

terrestre já conhece este tipo de vida organizada, porque realizou

os seus primeiros esboços nas colônias de insetos (abelhas, for-

migas) e, num grau bem mais elevado, nas colônias de células

(organismo humano). Nelas, nenhum elemento se levanta contra

o outro, estando todos espontaneamente ligados por um egoísmo

coletivo unitário, e não individual separatista.

Hoje, assistimos ao início de um processo unificador da

humanidade, o qual implica na formação de um biótipo funci-

onando com outra forma mental, que leva a atuar e a viver de

modo diferente. Tal unificação, portanto, é o resultado de uma

coletivização decorrente da convicção do ser, no sentido de

formar parte de um novo sistema, o que implica naturalmente

a abolição das revoluções e das guerras. Novo biótipo, nova

forma mental, nova concepção da vida e nova maneira de se

comportar, estas são as sucessivas mudanças, ligadas em ca-

deia, que poderão levar a uma nova civilização, feita para

perdurar, fixando-se na raça humana. A evolução, no passado,

deu prova de saber realizar transformações bem mais profun-

das. Com ela, tudo pode gradualmente mudar. O homem se

civiliza, tornando-se mais inteligente e menos feroz. A ativi-

dade humana, de tipo cada vez mais pacífico e menos guerrei-

ro, torna-se mais produtiva, de modo que os novos cérebros

conseguirão compreender quão prejudicial é para todos o mé-

todo da agressividade. De resto, está na lógica de todo o pro-

cesso evolutivo que se deva realizar um passo mais em frente,

na obra de reordenação que vai do AS ao S.

A vida segue vias utilitárias, e o ser aceita o que lhe traz van-

tagem. Na prática, não há quem deixe de ver a conveniência

concreta de dirigir as próprias energias no sentido da produção

de bens, em vez do tormentoso esforço destrutivo das guerras.

Com o novo método, a vida se torna muito mais rica, além de fi-

car mais bem defendida, e isto com muito menor desperdício de

energias do que com o velho método ainda vigente. Não se po-

derá fugir à compreensão da facilidade que é resolver o tremen-

do problema da sobrevivência através do desenvolvimento da

inteligência, aplicada como meio pacífico de produção, e não

como instrumento de furto e agressão. É precisamente por estas

vias que a evolução tende a levar o ser em direção a contínuos

melhoramentos, reabsorvendo a dor e criando a felicidade.

Observemos agora um outro aspecto desta tendência à uni-

ficação do fenômeno evolutivo. É incontestável, hoje, que o

aprofundamento do conhecimento leva à especialização. E po-

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18 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

de parecer que tal método conduz à separação, e não à unifica-

ção. Ele se fraciona, porque permite a cada um se aperfeiçoar

no próprio ramo, oferecendo assim a possibilidade de realizar

um trabalho melhor dentro da própria capacidade e função. No

entanto a especialização oferece o perigo de um afastamento e,

portanto, de isolamento de cada cérebro especializado. Então,

para não se acabar no caos de uma Torre de Babel, surge uma

necessidade paralela de coordená-los, a fim de se poder atingir

o estado de colaboracionismo que a vida aspira, próprio da fa-

se orgânica. Se a vida não corrigisse, com um equivalente im-

pulso unificador, o impulso divisionista da especialização, o

resultado não seria construtivo, mas sim desagregante, e a evo-

lução, ao invés de avançar para a unificação, retrocederia para

o separatismo. Mas a tendência unificadora é mais forte do que

o impulso separatista e, por isso, está destinada a vencer. Nós a

vemos manifestar-se na formação das grandes unidades políti-

cas no mundo, agora já reduzidas apenas a duas principais, que

um dia deverão acabar por formar uma só. É assim que, junto

com a compensadora tendência à unificação, sente-se hoje a

necessidade de uma síntese universal orientadora. Até as reli-

giões procuram aproximar-se através do diálogo, para chegar a

uma compreensão unificadora.

Devido à evolução, nada pode deixar de se dirigir à unifi-

cação. Isto se deve, conforme já explicamos em outro lugar1,

ao princípio das unidades coletivas, pelo qual os elementos,

em vez de se separarem com a especialização das suas funções,

são retomados no círculo de organizações cada vez mais vas-

tas, que incluem as unidades componentes menores, escalona-

das por grandeza e complexidade ao longo do caminho da evo-

lução. Eis que a crescente diversidade à qual o aperfeiçoamen-

to conduz acaba por se tornar um elemento não de cisão, mas

sim de unificação, porque demanda uma contínua integração,

que funde todos e cada um dos elementos componentes. Ve-

mos que a vida utiliza este método de aproximação colabora-

cionista, tendendo ao que se poderia chamar de simbiose uni-

versal. Os elementos constitutivos do átomo se fundem dentro

dele num sistema; a seguir, os átomos se juntam em outros sis-

temas mais complexos, formando as combinações químicas

dos corpos; as moléculas, por sua vez, coordenam-se no siste-

ma celular, enquanto as células se unem umas às outras, para,

funcionando em conjunto, formarem órgãos e organismos. Es-

tas já tão complexas unidades coletivas são os primeiros ele-

mentos constitutivos de unidades ainda mais vastas. Assim, no

homem, a união de indivíduos faz a família, depois o grupo

familiar, a cidade, o partido, a nação, a raça e, por fim, a hu-

manidade. É lógico pensar que o processo unificador não pode

deter-se neste ponto, devendo continuar com uma união de to-

das as humanidades, até chegar a um estado orgânico unifica-

dor de todas as formas de existência do universo.

Temos observado por quantos caminhos a evolução humana

está hoje amadurecendo. Cada desenvolvimento está conectado

com outro, provocando-o ou sendo por ele condicionado. O fe-

nômeno básico é uma transformação do biótipo humano, o qual

agora evolui no tocante às qualidades cerebrais, significando isto

a transformação da sua forma mental, ou seja, do seu modo de

conceber a vida, de resolver os problemas e, em consequência,

de orientar sua ação, que será mais inteligente, pacífica e efici-

ente. Agora, a evolução não é mais orgânica, concernente ape-

nas às formas, pois atingiu com o homem o seu mais alto nível,

começando a se tornar de tipo espiritual. O amadurecimento se

faz cada vez mais profundo; penetra no interior, em direção à

substância do existir; atua internamente, nas raízes do ser; assal-

ta os órgãos diretivos; tudo isto para que, depois, o próprio ho-

mem venha a projetar os resultados no exterior, com a sua ação,

1 V. A Nova Civilização do Terceiro Milênio – Cap. V. “As Grandes

Unidades Coletivas”. (N. da E.)

realizando o seu pensamento no plano concreto. Disto nasce, en-

tão, uma transformação do ambiente, que passa a oferecer con-

dições de vida diferentes, as quais permitem por sua vez uma

evolução mais avançada. Assim nasceu a ciência e, como con-

sequência desta, a técnica, que facilita a produção de bens e en-

riquece o homem, libertando-o das duras necessidades materiais

e do estado de luta feroz para sobreviver. A técnica produziu os

utilíssimos meios de comunicação, para aproximar os elementos

distantes e mantê-los em contato, sem o que não é possível che-

gar à compreensão recíproca, à colaboração e, por fim, ao estado

orgânico unitário. Quantos gênios, no passado, realizaram esfor-

ços desesperados nesta direção evolucionista, mas não tiveram

sucesso, porque lhes faltavam os numerosos meios que a técnica

oferece! Só hoje se começa a compreender a possibilidade de

uma civilização mundial única, porque foram abertas todas as

estradas do mundo, o que significa circulação e comunicação

não só de mercadorias e pessoas, mas também de pensamento.

Hoje busca-se concretizar os ideais de unificação, com a fusão

econômica de vários Estados, coisa anteriormente inconcebível.

É a evolução que exerce pressão para romper as portas do sepa-

ratismo. E, da mesma forma que escancarou as portas e derru-

bou os muros que fechavam as cidades medievais, ela hoje des-

trói alfândegas, limites, nacionalismos e racismos separatistas,

para se aproximar cada vez mais da fusão num só organismo.

Vemos, então, que também o progresso da mecânica pode ser

útil ao desenvolvimento do pensamento.

Então as coisas mais díspares, aparentemente distantes,

acabam por convergir e cooperar para o mesmo fim. O pro-

gresso da medicina e o conhecimento das leis da vida poderão

permitir ao homem tomar a direção do fenômeno da evolução

biológica do planeta, o que é indispensável numa humanidade

que atingiu o estado orgânico. Em tal regime de ordem, não se-

rá admissível uma multiplicação descontrolada, que desconsi-

dere as imensas consequências demográficas, econômicas e

sociais. Uma sociedade orgânica será, em cada um dos seus

elementos, responsável pelas consequências de cada ato, e na-

da será abandonado à liberdade dos inconscientes. Então serão

isolados, como elementos de desordem, todos que, dando nas-

cimento desordenado a novos seres, atentam contra a ordem

coletiva; serão considerados como uma fonte de perigo social

todos que procurem lançar no seio da coletividade – a qual terá

depois de suportar o seu peso, arrastando-os – loucos, doentes,

incapazes, esfaimados, desviados ou criminosos, estes últimos

prontos a conquistar a vida para si, assaltando o próximo. Uma

vida melhor não poderá ser alcançada senão numa posição de

ordem, de previdência e de disciplina.

Nestas novas condições de vida, muitos conceitos muda-

rão. Assim como o conceito de propriedade passará cada vez

mais do sentido de exploração egoísta ao de função mais no

interesse coletivo do que individual, também o conceito de

autoridade passará cada vez mais do sentido de posição de

domínio, sempre em vantagem de quem a detém, ao de função

social, como serviço a favor da coletividade. Trata-se de alte-

rações interiores profundas, de convicções e forma mental,

com importantes consequências no funcionamento da organi-

zação social. Dessa forma, o princípio de autoridade, nascida

como opressão escravagista, transforma-se em benéfica po-

tência diretora e protetora da vida.

A relação de tais transformações poderia continuar com as

diversas alterações delas decorrentes. É toda uma frente de

amadurecimento que avança, cuja base está na maturação evo-

lutiva do biótipo humano, da sua mente e da sua capacidade de

compreender, que dirige a sua atividade criadora e representa o

centro genético das suas obras. É esta maturação, associada à

ciência dela derivada, que levará ao completo domínio das for-

ças da natureza. Isto significa não só potencialização e valori-

zação do trabalho que o homem realiza, mas também um avan-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 19

ço em direção a um tipo de trabalho de técnica especializada,

que exige uma cultura prévia e, portanto, implica um processo

de intelectualização, porquanto a atividade se transfere do plano

do esforço físico do servo ao plano da função mental do diri-

gente. Mas este novo tipo de vida não será possível senão no

seio de uma nova civilização, que possa, através da sua organi-

zação, deixar o indivíduo livre do assalto das necessidades ma-

teriais, às quais hoje tudo se encontra subordinado, permitindo-

lhe dedicar-se a coisas mais elevadas do que a procura pelo di-

nheiro, cuja obtenção se impõe atualmente como finalidade

principal de toda a sua atividade. Isto será facilitado pelo fato

de, no estado orgânico, estar implícita a existência de uma nova

função social, através da qual a coletividade se converte em

protetora do indivíduo, até agora abandonado às suas próprias

forças e em luta contra os seus semelhantes. Esta função de

proteção, até hoje, coube somente ao grupo e dirigiu-se apenas

em favor dos próprios componentes, enquanto cada grupo luta

contra os demais. Deste sistema medieval, primitivo e separa-

tista, de castelos armados sempre em guerra entre si, sejam par-

tidos políticos, religiões, coligações de interesses, nações etc.,

passar-se-á ao já mencionado princípio das unidades coletivas,

através de sucessivos reagrupamentos cada vez maiores, até ao

máximo, que os abraçará a todos, fundidos dentro da mesma

unidade: a humanidade. Então, ao invés de luta entre indivíduos

que se conhecem somente em termos de rivalidade, cada qual

indiferente aos problemas dos outros, chegar-se-á, pelo contrá-

rio, à colaboração entre todos, para que sejam resolvidas as

questões. O progressivo aumento das previdências sociais em

todos os países do mundo e em todos os setores da vida humana

expressa o desenvolvimento deste fenômeno.

Tudo isto manifesta a fase de superação em que o mundo

se encontra hoje, através da qual ele é levado em direção a um

desenvolvimento mental capaz de conduzi-lo à espiritualização

no mais vasto sentido, porquanto qualquer capacidade de cará-

ter mental representa sempre um valor superior à de tipo físico,

guerreiro e material, ultrapassando aquele velho estilo ainda

tão apreciado em nosso mundo. Também a ciência é conheci-

mento e, por isso, não pode deixar de conduzir à consciência e

ao progresso em direção ao espírito. É para este tipo de pro-

gresso que se move a evolução. Tudo que é atividade de inte-

lecto é vida no seu mais alto grau de desenvolvimento. O fato

de máquinas substituírem o trabalho muscular, levando assim a

passar da atividade física às funções nervosas e cerebrais, re-

presenta, pelas suas consequências, uma transformação de al-

cance biológico. Agora, o maior problema da vida, que é asse-

gurar a sua continuação, será resolvido com base somente na

inteligência, e não na violência. A consequência será a forma-

ção de um novo biótipo, espiritualizado no mais vasto sentido,

fruto destas novas condições de existência. É assim que do in-

voluído poderá nascer o evoluído, do animal humano do pas-

sado poderá nascer o verdadeiro homem.

Não é possível aqui passar em revista todos os momentos

desta complexa maturação. Podemos apenas concluir que este

quadro confirma a existência de uma curva no caminho da evo-

lução, na qual se dá a passagem de uma era para outra, através

de um processo de maturação, cujo momento crítico chegou.

Ele tende à formação de um tipo humano mais evoluído, que

será o elemento constituinte de uma nova civilização, baseada

sobre outros princípios, alcançados com uma outra forma men-

tal. Quem tem olhos para ver e cérebro para pensar compreende

que estamos num momento crucial e decisivo, de tremendo es-

forço, grave perigo e excepcional potência criadora. A nossa

época parece de destruição, mas representa o trabalho necessá-

rio de limpeza do terreno, sem o que não se pode reconstruir.

Para a vida poder desenvolver-se em novas formas, mais avan-

çadas, é necessário ela se libertar das coisas velhas, que ocu-

pam o espaço disponível e a impedem.

Cada século deve criar algo próprio, segundo suas mais di-

versas capacidades e de acordo com as possibilidades do mo-

mento histórico. Mesmo nos períodos de decadência, a vida

consegue criar algo, ainda que seja um fruto corrompido por

demasiada maturação. Hoje estamos em decadência, mas apenas

como imprescindível função de eliminação do passado. Sob este

terreno coberto de despojos, ferve e está despontando um mundo

novo. Compete a nós fazê-lo nascer. Somos nós, seres viventes,

que incorporamos as forças da vida em ação. Nós, humanos,

somos os construtores de nosso destino. A vida é uma inteligên-

cia que pensa e dirige, e não apenas uma abstração fora da reali-

dade. Mas ela também é vontade de realização, cuja concretiza-

ção se realiza através do homem, que se torna o seu braço exe-

cutor. Em épocas mais avançadas, um homem mais evoluído

compreenderá e realizará esta íntima colaboração entre a grande

inteligência que dirige o funcionamento do universo e a sua pe-

quena inteligência, que serve de operário inteligente.

O atual esforço criador para gerar a nova civilização cabe a

nós, e dele devemos ser instrumentos heroicos, numa nova épo-

ca de conquistas sobre-humanas. Neste momento, como em to-

das as horas apocalípticas, as grandes diretivas estão nas mãos

de Deus, enquanto o trabalho pequeno da execução está nas

mãos do homem. A ele caberá o esforço, a luta e o perigo, para

que seja merecido e lhe pertença o resultado.

◘ ◘ ◘

Agora que falamos da expectativa de tão esplêndido desen-

volvimento, mudemos em relação a ele o ponto de vista, para

olhar não o futuro do mundo, mas sim o presente. Damo-nos

por ventura conta do atual tipo biológico e de quais as condi-

ções de ambiente a que tudo isto deve ser aplicado? Certamen-

te, o involuído atual, dada a sua natureza, não está, de modo al-

gum, pronto a dar de imediato tão grande salto para frente. Sem

dúvida, o tecnicismo transformará o ambiente terrestre e as

condições de vida do homem, produzindo depois profundas al-

terações também em sua natureza. Mas quanto tempo será ne-

cessário para que tudo isto possa tornar-se realidade? Falar hoje

em abundância de meios e de um tipo de trabalho intelectual

superior em países subdesenvolvidos, onde se morre de fome e

reina o analfabetismo, pode parecer uma trágica mentira e um

insulto à miséria. No entanto o progresso, com o ritmo alcança-

do hoje, deverá chegar até lá, levando o mundo todo a este ní-

vel. Tendo em vista este fato, agora que observamos o fenôme-

no com uma ampla perspectiva futura, em relação aos seus de-

senvolvimentos longínquos, procuremos então compreendê-lo

também segundo uma perspectiva mais específica, em relação

aos seus desenvolvimentos mais próximos, num futuro mais

imediato, tendo em conta, sobretudo, o homem atual e a imensa

distância que o separa de tais conquistas.

Que valor têm na Terra as coisas superiores do espírito? Em

nosso mundo, o ideal pode existir somente enquanto pode ser

explorado. Mas isto, neste nível, é justo, porque, antes de pen-

sar em evoluir, é necessário assegurar a continuação da vida. Só

quando estiver garantido o necessário para resolver este pro-

blema, será possível enfrentar outros, mais altos. Quem é assal-

tado pela fome não pode ocupar-se de cultura e espiritualidade.

De fato, debaixo de toda e qualquer pregação de ideal, a reali-

dade que existe é a feroz luta pela vida, que, em nosso nível,

representa a mais profunda verdade. Tributa-se grande admira-

ção e veneração pelos valores espirituais, mas apenas em teoria,

pois, na prática, apreciam-se e buscam-se de fato os valores

materiais. Utilizam-se os ideais então para outros fins, como,

por exemplo, constituir um rebanho bom e manso, sujeito, as-

sim, à obediência, para ser ordenhado, como é função dos pas-

tores fazer. Este é o ambiente no qual o involuído se encontra à

vontade, pois é proporcional aos seus instintos e necessidades.

Quando o involuído tropeça com os ideais, que, pregados aos

quatro ventos, não lhe servem para nada em sua vida terrena,

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20 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

qual opção pode tomar, senão tratar de utilizá-los como instru-

mentos para sobreviver na luta pela existência? Um selvagem

que encontrasse um aparelho de televisão não saberia utilizá-lo

senão como uma caixa comum, para colocar dentro o que lhe

pudesse servir, porque mais não compreenderia.

Assim a exploração dos ideais por parte do involuído não é

mentira, porque ele não pode compreender-lhes o significado.

Ele não tem margem para coisas que não lhe servem para viver

na Terra, seu problema premente de cada minuto. Exigir que,

em tais condições, ele se ponha a evoluir, lutando pelos ideais,

enquanto tem de lutar por coisas bem mais urgentes, representa

um atentado à sua vida, sendo natural então que ele se defenda

como pode. Tudo o que lhe vem à mão ele deve utilizar para

sobreviver num mundo hostil, que não admite sonhos. O evolu-

ído se rebela contra o que julga prostituição, mas, por olhar pa-

ra o céu, é considerado um tonto pelo involuído, pois arruína-se

na terra. O antecipador do futuro, por mais nobre que seja sua

ação, é julgado um inepto por quem busca primeiro resolver o

problema de viver no presente. Quem, para sobreviver, necessi-

ta primeiramente das coisas concretas que servem ao corpo, não

sabe o que fazer dos maiores valores do espírito. Nas duras

condições de luta do ambiente terrestre, quem esquece este fato

e, em vez de cuidar dos reais problemas da vida prática, perde-

se, indo atrás do espírito, é um louco que procura a morte. É as-

sim que, na Terra, reino dos involuídos, está tacitamente con-

vencionado que o ideal deve ser explorado para fins materiais,

porque para outra coisa ele não pode servir.

Depois de haver projetado neste quadro as condições espiri-

tuais de nosso mundo e ter visto como ele está ainda submerso

no seu baixo nível evolutivo, não estando preparado para um

salto de improviso à frente, perguntamo-nos se agora, que a

técnica poderá permitir uma abundância de bens, menor traba-

lho e mais tempo livre, bastará isto para tornar possível o invo-

luído compreender o valor dos ideais? Será tal condição sufici-

ente para que ele sinta o gosto das coisas superiores do espírito

e mude a sua forma mental, assumindo uma nova, que o induza

a praticar um tipo de esforço totalmente diferente, dirigido a

conquistas que até agora tão pouco interessam? O profundo ins-

tinto do atual subconsciente humano se formou como conse-

quência das ferozes condições do ambiente em que o homem

teve de viver no passado, sendo produto delas. Se tais condi-

ções mudam, certamente aquele subconsciente vai-se adaptando

a elas, experimentando e aprendendo. Mas, para se adaptar à

nova situação, assimilar a mudança e se transformar definiti-

vamente, até fazer de tudo isto qualidades e instinto próprios, é

necessário muito tempo. Deve-se formar uma nova simbiose

com o ambiente, um novo tipo de convivência mútua.

Se tomarmos um tosco aldeão e o colocarmos num trono,

poderá ele tornar-se um senhor requintado? E quanto tempo será

necessário para que isso possa acontecer? Não basta enriquecer

um primitivo para que ele possa de repente transformar-se num

ser civilizado. O primeiro uso que ele vai fazer da riqueza será

desperdiçá-la em disparates. Antes que possa aprender a atuar de

maneira diferente, ele deverá atravessar e assimilar novas expe-

riências, entregando-se a abusos e pagando as suas consequên-

cias, até aprender, à sua custa, a saber fazer sábio uso dos novos

meios. Como pode conhecer os perigos da riqueza e abundância

quem não provou senão as duras consequências da miséria? É

justamente a experiência que nos permite reconhecer o erro, tão

logo incidamos nele. Mas como se pode, na primeira vez, reco-

nhecê-lo e nele não cair, quando ainda não foram provadas as

suas tristes consequências, sobretudo por ele se apresentar como

salutar correção do erro oposto, cujos duros efeitos já se conhe-

cem? Como fazer compreender a quem suporta as dores da fome

a necessidade de evitar as dores que uma indigestão provoca?

Vejamos o que sucede, quando se oferece abundância de

tempo disponível e de bem-estar a indivíduos não preparados,

incapazes de saber se dirigir pela própria disciplina interior. O

regime a que estavam habituados no passado era trabalho for-

çado e miséria, de maneira que o seu mais alto ideal consistia

na supressão destes dois males, para compensá-los em sentido

oposto, com ócio, licenciosidade e abundância, buscando em

demasia tudo quanto lhes faltava anteriormente. Antes de che-

gar à mudança, o primitivo se encontra adaptado às suas duras

condições de vida, tendo formado para si, com o tempo, uma

natureza adequada a elas. Forma-se então, entre indivíduo e

ambiente, uma determinada regra de convivência. Ora, quando

o valor de um dos dois termos se desloca, nasce um desequilí-

brio entre eles, surgindo a necessidade de adaptação para se

harmonizarem em novos equilíbrios. Quando o indivíduo vive

debaixo de uma determinada pressão, é natural que, se esta for

suprimida, salte a mola da reação. Isto é inevitável, e é o que

sucede nas revoluções. Para evitar tal consequência, seria ne-

cessário manter a pressão ou, melhor ainda, não dar lugar a tal

estado de pressão. Uma repentina alteração das condições de

vida de indivíduos despreparados para saber utilizá-las bem,

não pode deixar de provocar instintivas reações de abuso, ten-

dentes a compensar em primeiro lugar as dolorosas carências

precedentes com a imediata realização desse ideal de gozo, por

tanto tempo comprimido no subconsciente. Sucede, no entanto,

que tais reações, dirigindo-se além de toda e qualquer medida,

em sentido não evolutivo, devem ser depois corrigidas, para

serem levadas de volta à ordem, com uma reação proporcional

ao erro, em termos de sofrimento.

O primeiro uso que o involuído poderá fazer do novo bem-

estar será o abuso. Terminada a compressão forçada da priva-

ção, o impulso instintivo saltará para o abuso, indo no sentido

oposto, para super saciar-se de tudo aquilo cuja falta antes se

sentia, porque era essa a forma de felicidade concebida na con-

dição anterior. Assim o primeiro movimento de um involuído é

a procura de uma super-satisfação dos instintos primitivos: gu-

la, orgulho, ócio, sexo etc. É natural que o animal, uma vez li-

vre da pressão que o disciplinava, restitua um impulso no senti-

do oposto ao que ele estava submetido.

O momento seguinte representa a escola que ensina a as-

similar os frutos da experiência. Tem-se de suportar os prejuí-

zos que se seguem ao abuso, até se aprender a eliminá-lo. As-

sim o indivíduo aprende a se autodiciplinar, fazendo sábio uso

das coisas. Pouco a pouco, com a regular satisfação, forma-se

o hábito, condição que acalma a ansiedade e leva à saciedade.

Uma vez atingido este ponto, o impulso inferior em direção ao

excesso pode ser eliminado, porque se formam novos equilí-

brios. As novas posições se normalizam e a saciedade se torna

constante, exigindo sempre menos abuso, o qual vai assim,

automaticamente, diminuindo até desaparecer. Então foi

aprendida a nova lição, e o indivíduo, superada a oscilação

entre carência e excesso, pode deixar de lado o problema, já

resolvido, das necessidades materiais e cuidar, através de ou-

tras experiências, da solução de problemas mais complexos e

da conquista de valores mais altos.

Assim a transformação biológica do involuído em evoluído

é alcançada gradualmente, através destas oscilações e adapta-

ções sucessivas. Somente quando o indivíduo tiver superado o

passado, eliminando suas carências e saciando os seus velhos

desejos com uma regular satisfação, poderá nele surgir outro ti-

po de desejos e a necessidade de satisfazê-los. É assim que,

pouco a pouco, emergem primeiramente as aristocracias e, de-

pois, as seguem, subindo de baixo, outras classes sociais, se-

guindo todos o mesmo caminho ascensional, no qual atraves-

sam o mesmo processo de transformação. Em princípio, a alte-

ração das condições de vida levará, como primeiro efeito, ao

desencadeamento dos velhos impulsos até então comprimidos.

Uma vez que se lhes ofereceu a possibilidade de se desafoga-

rem livremente, o primeiro resultado não poderá ser outro se-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 21

não uma satisfação excessiva. Portanto, num primeiro momen-

to, ao invés da passagem para uma vida superior, teremos, pelo

contrário, um reforço da vida inferior. Isto automaticamente le-

va a outro resultado, que é, primeiramente, ter de suportar as

dolorosas consequências do abuso, para depois, através destes

sofrimentos, ter de aprender uma autodisciplina e construir uma

consciência, elementos básicos para a conquista dos valores es-

pirituais. Estas são as fases do fenômeno.

Num primeiro momento, portanto, o processo não resulta

em evolução, mas sim num reforço do precedente estado de

involução, que não pode ser superado, enquanto o esforço

necessário para se libertar dele não for cumprido. Tal esfor-

ço é induzido pela dor decorrente do abuso, a qual faz desa-

parecer toda a satisfação. No previdente jogo de forças que

determina o fenômeno, esta satisfação é, automaticamente,

levada ao excesso, para que a dor a transforme em insatisfa-

ção e, assim, o indivíduo, recebendo um contragolpe, seja

levado por ela à superação. Eis que, na economia da evolu-

ção, o nascimento espontâneo do abuso tem uma função de-

finida, porquanto conduz a uma inversão de valores, elimi-

nando os velhos e estabelecendo os novos. Sabemos que o

sofrimento representa o agente corretivo do erro, tendo a

função de endireitar as posições. Somente assim o homem

poderá aprender a viver num plano mais elevado. Somente

depois de tal série de experiências, a técnica moderna poderá

dar fruto em sentido evolutivo. Esta análise nos mostra que,

muito provavelmente, o primeiro resultado imediato será um

retrocesso involutivo, pois, em princípio, a tendência será

usar os novos meios com a velha forma mental, o que levará

a uma retomada dos defeitos do passado, potencializada pe-

los novos poderes. Por exemplo, o primeiro uso que se faz

das invenções modernas é com a finalidade de guerra. Quan-

tos estragos serão necessários ainda, até que o homem

aprenda a usar tudo isso de um modo melhor? Depois, como

acontece com todos os erros, este também será corrigido pe-

la dor, da qual se compreende assim a função e a necessida-

de. Reabsorvido o erro, o mal ficará neutralizado e o fenô-

meno se concluirá num progresso evolutivo.

Não esperemos, portanto, que o progresso técnico trans-

forme o homem imediatamente e seja, por si só, suficiente pa-

ra determinar nele o avanço mental, cultural e espiritual de

que falamos. O novo bem-estar poderá ser utilizado neste sen-

tido pelos indivíduos maduros, encaminhados já há tempo. Pa-

ra muitos, porém, ainda involuídos, tal elevação de nível de

vida poderá levar primeiramente ao ócio, aos gozos de tipo in-

ferior e aos vícios, desencadeando de novo os desejos inferio-

res, como um requinte no mal. Quando o centro espiritual de

um indivíduo está embaixo, neste nível ficam também as sua

manifestações. Não se pode pretender que um primitivo saiba

responder diversamente daquilo que ele é, assim como não se

fazê-lo utilizar os seus meios com um cérebro diferente da-

quele que possui. Cada ser, quando se encontra em condições

favoráveis ao seu desenvolvimento, somente poderá desen-

volver seu próprio tipo, que depois, então, ele adapta às novas

condições de vida. Mas, no princípio, ele só poderá crescer e

se fortalecer segundo aquilo que já é. Se damos a uma planta

venenosa meios para prosperar, isto irá levá-la a se tornar

mais potente no seu veneno. Assim, um escorpião, uma ser-

pente ou um macaco, se forem ajudados, irão se tornar cada

vez mais escorpião, mais serpente e mais macaco. A constru-

ção espiritual, para elevar-se a um mais alto plano de existên-

cia, é fenômeno lento e complexo, constituindo uma matura-

ção em profundidade. Para alcançá-la, é necessário lutar, so-

frer e vencer. Não basta, para construir o homem, a gratuita

ampliação das mais favoráveis condições de vida exterior. A

evolução é uma laboriosa conquista, levando em direção à fe-

licidade, que deve ser ganha, para ser merecida.

IV. ENCONTRO COM TEILHARD DE CHARDIN

I – Os Pontos Básicos

Quando, na vida, encontramos um indivíduo que tem as

nossas mesmas ideias e sentimentos e vemos que passou pelas

mesmas vicissitudes que passamos, sentimo-nos irresistivel-

mente atraídos para ele, movidos pelo sentimento de simpatia

fraterna. Por este motivo, falo de Teilhard de Chardin.

Os pontos de contato são três: 1) As teorias defendidas; 2)

Os sofrimentos morais causados pela dolorosa posição de in-

compreensão e condenação por parte das autoridades religiosas;

3) A paixão pelo Cristo, concebido racionalmente como ponto

de convergência da evolução da vida. Observemos os três pon-

tos, para compreender o pensamento e a nobre figura moral

deste cientista, filósofo e crente, assim como o significado da

sua obra perante a renovação atual do mundo. Este exame po-

derá nos levar mais além do caso particular, para observações

de caráter e interesse geral.

1) As teorias defendidas por Teilhard de Chardin e pelo autor.

Em Teilhard encontramos os seguintes conceitos: transfor-

mismo, evolucionismo, estrutura orgânica do universo e tendên-

cia do ser a alcançar um estado cada vez mais orgânico, de uni-

ficação. O homem é um elemento consciente, que, existindo em

função de um todo organizado, é destinado a se tornar sempre

mais consciente desse todo e dessa organicidade. A evolução é

orientada por um íntimo impulso telefinalístico, em direção a

um ponto conclusivo: Deus. O fim supremo da existência é a

convergência das diversas consciências individuais na consciên-

cia única e total do centro Ômega, último momento e fim da

evolução: Deus. Teilhard nada mais acrescenta. Mas tudo isto

implica e deixa entrever a possibilidade lógica de que este ponto

possa ser também o Alfa de todo o processo, que, para ser com-

pleto, deve conter ainda a sua contrapartida involutiva preceden-

te, como demonstramos claramente no volume O Sistema .

Continuemos, escutando o que nos diz Teilhard. O universo

está completamente impregnado de pensamento, que se torna

cada vez mais evidente com a evolução da vida, através da

crescente complexidade estrutural alcançada desse modo pela

matéria. Eis um panpsiquismo que é um pan-espiritualismo e

um monismo, mas que, apesar de poder parecê-lo, não é mate-

rialista, pois, aqui, o materialismo é impulsionado até se tornar

espiritualismo. O condenadíssimo evolucionismo darwiniano

não é expulso, mas sim adotado, resultando implícito e logi-

camente enquadrado neste muito mais vasto evolucionismo,

que compreende também o espírito. A função da vida consiste

em fazer surgir este espírito, avançando em direção a ele atra-

vés de um transformismo biológico (o darwiniano), cuja fun-

ção não é senão servir de veste exterior, como um instrumento

de expressão, experimentação e laboração de um outro trans-

formismo mais substancial, de tipo psíquico, escondido na pro-

fundidade, que anima a forma.

Teilhard intuiu nódoas de consciência incipiente mesmo nos

mais ínfimos graus da existência, no plano físico do universo.

Para ele, a matéria inorgânica é, antes, uma matéria pré-vivente

e, num sentido lato, pré-consciente. A evolução levou esta

consciência a se revelar imensamente mais avançada e potente

no homem. Ora, dado que a organicidade do todo implica uma

lógica, seria absurdo que a evolução se detivesse neste ponto do

caminho, sem continuá-lo. Teríamos um processo partido ao

meio, que de repente para, sem completar toda a sua trajetória,

deixando de alcançar a necessária conclusão, ambas implícitas

na lógica do desenvolvimento do próprio fenômeno. E que

imensos horizontes nos abre para o futuro o conceito – impres-

cindível – de um prolongamento do processo evolutivo!

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22 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

Hoje, portanto, um cientista nos confirma que a matéria está

cheia de vida e a vida cheia de inteligência. Nós acrescentamos,

então, que Cristo pode ser proposto à ciência positiva como su-

perbiótipo do futuro, supremo modelo que a raça humana pode-

rá atingir com a evolução, e o Evangelho, como a lei social da

unidade coletiva representada pela super-humanidade do futuro.

Não obstante as tentativas humanas de conciliação, o Evan-

gelho nos apresenta Cristo e o mundo como dois inimigos in-

conciliáveis, que, no entanto, devem coexistir na Terra. Mas é

necessário compreender o que Cristo entendia por mundo. Isto

não quer dizer que Ele seja contrário à vida. Ele se referia a um

estado de fato, dado pelo que o mundo – imerso ainda num es-

tado primitivo animal, pleno de egoísmos e lutas ferozes – era e

ainda é. Cristo condenava somente esta forma de vida inferior.

A inconciliabilidade não se refere a um mundo de evoluídos e

civilizados, porquanto Ele quer transformar a forma de vida da

humanidade atual justamente num tipo mais avançado, que o

Evangelho chama de Reino dos Céus. Com um mundo assim

evoluído, Cristo está plenamente de acordo, o que se confirma

justamente pelo fato de, nesta condição, a lei do Evangelho se

realizar plenamente. Ele veio para nos ensinar qual é este novo

modo de viver, dando-nos as normas para isso no Evangelho.

Voltando a Teilhard, vemos que ele, orientando-se assim,

resolve o dualismo espírito-matéria, segundo o qual a obra de

Deus parece encontrar-se dividida num antagonismo entre bem

e mal, Deus e Satanás, cisão na qual o cristianismo se debateu

durante milênios. Teilhard resolve o conflito em favor do espí-

rito, ao qual ele chega através do materialismo científico, le-

vando-o até às suas mais audazes consequências. Assim, par-

tindo da teoria da evolução, ele a desenvolve até levá-la aos

seus mais elevados resultados. Ele não nega a matéria como a

ciência a vê, mas acrescenta-lhe o que a ciência ainda não viu: a

alma, mostrando o sopro espiritual que explica as suas funções

e que, mostrando-nos as suas razões, justifica a sua existência.

Assim, a matéria se torna transparente e luminosa de conceito,

sendo que, ao invés de significar a negação, é elevada a expres-

são do pensamento de Deus. Tudo é e continua sendo feito por

este pensamento. Isto representa a afirmação racional e a des-

coberta científica da sua presença em tudo o que existe, de-

monstrando a imanência de Deus.

Fica assim esclarecido o sentido de todo o processo da evo-

lução, numa síntese lógica e harmônica, na qual as verdades

provadas pela ciência concordam com os princípios finalísticos

da concepção religiosa. Chega-se a uma conciliação dos extre-

mos opostos, a uma fusão orgânica, a uma unificação. Tudo isto

pode parecer um materialismo místico, mas também pode cons-

tituir as bases científicas do cristianismo, o qual se aproveitaria

delas, pois atualmente não as possui, fato que o mantém fora do

terreno positivo da ciência. É assim que Teilhard foi julgado

por alguns um novo São Tomás, como cristianizador não mais

de Aristóteles, e sim de Marx e de Darwin. Poderia deste modo

ser sanada a cisão entre ciência e fé, para elas passarem da ini-

mizade à colaboração. Muito teriam elas para dizer uma à outra.

Então a fé teria finalmente bases positivas e a ciência poderia

ser iluminada e vivificada pelo espírito.

O evolucionismo darwiniano permaneceria, mas apenas ex-

teriormente, limitado à forma. Intimamente, ele seria constituí-

do pela evolução de um pensamento nele imanente, estando as-

sim impregnado e orientado para um correspondente e exato te-

lefinalismo. Naquele evolucionismo, até agora entendido mate-

rialmente, há lugar de sobra e inclusive existe a necessidade da

presença de um centro de pensamento continuamente criador,

ou seja, de Deus. Assim, a matéria, de inimiga inerte do espíri-

to, vincula-se, logo nos primeiros graus, ao processo universal

da revelação do espírito, verdadeira e fundamental realidade do

universo. O homem, no seu nível, faz parte deste processo.

Num plano de existência muito mais alto, a evolução se realiza

no homem, que não só exprime uma fase do fenômeno, mas é

também arrastado pelo movimento de todo o processo em dire-

ção a planos de existência cada vez mais altos. O progresso so-

cial revela então a sua mais profunda natureza, que se constitui

num processo biológico cuja direção, sobretudo agora, o ho-

mem deve assumir, guiando com sua inteligência a evolução.

Até hoje, ela se realizou apenas mediante um jogo de determi-

nismos, estabelecidos e impostos pelas leis da natureza. Trata-

se, agora, não mais de aceitar passivamente a evolução, mas

sim de conduzi-la, tornando-nos conscientes dos seus fins, co-

mo operários de Deus, para colaborarmos na obra de constru-

ção do nosso setor de existência. Então o homem não viverá

mais à mercê das leis da natureza, mas sim consciente e respon-

sável, dirigindo o seu próprio destino.

Teilhard trata assim de chegar a uma “Nova Teologia”, em

que tudo se santifica por meio da universal presença do pensa-

mento de Deus imanente. Chega-se a uma “Santa Evolução”,

que corrige o velho criacionismo pueril antropomórfico, não

mais adaptado à mente moderna. É um novo evolucionismo,

consagrado no altar de Deus. O mundo se move, e mesmo aque-

les que não queiram isso têm, forçosamente, de mover-se. O

transformismo substitui a velha imobilidade. Podemos ver assim

o que há de verdade no panteísmo evolucionista, tão indiscrimi-

nadamente condenado. Pode haver algo mais vital do que ver

Deus por toda a parte e, através de uma visão evolucionista do

universo, não poder concluir senão com a sua espiritualização?

Não poderá tudo isto nos conduzir a um cristianismo racional-

mente mais aceitável para quem pense, com base num Evange-

lho mais demonstrado e convincente, levando-nos ao mesmo

tempo a uma ciência espiritualizada, mais nobre e santa?

Eis a vida levada à sua verdadeira essência. A substância

da existência, dada pela estrutura mais íntima do ser, é de na-

tureza psíquica. A vida é pensamento coberto de morfismo. A

espiritualidade, base das religiões, é colocada no ápice da

evolução. Cristo, então, é um superego que, hoje, é transcen-

dente, mas que, amanhã, será para a raça humana o ponto de

chegada, no qual o egoísmo separatista, vigente na luta pela

sobrevivência, será substituído pela solidariedade coletiva

unitária do amor evangélico universal. Assim, Teilhard nos

apresenta uma maravilhosa espiritualização do universo, ele-

vada sobre bases científicas. O Evangelho representa uma

transformação das leis biológicas, na qual se dá uma imensa

revolução, representada pela passagem da vida de um nível de

evolução a outro superior.

Quisemos reproduzir em traços genéricos o pensamento

fundamental de Teilhard, com a alegria de ver que ele corres-

ponde plenamente ao pensamento exposto em nossa Obra, que

atinge agora o seu 21o volume, em mais de 8000 páginas. Uma

tal concordância de conceitos com as ideias de um cientista de

tão grande valor, na pessoa de um cristão honesto e convicto,

cheio de bondade e cultura, significa que as ideias sustentadas

por nós não podem estar cientificamente erradas e muito menos

podem, ainda, ser moral e teologicamente condenáveis, como já

se pretendeu. Os escritos das duas partes são contemporâneos

(Teilhard 1881–1955)2, período no qual ambos apareceram em

ambientes e países completamente diferentes, sem que tivesse

havido conhecimento recíproco. O mundo começa a compreen-

dê-los somente agora, e isto parece nos mostrar que, na primei-

ra metade de nosso século, o pensamento humano quis, através

destes dois caminhos, exprimir os mesmos conceitos em forma

diversa, porque a humanidade está chegando a uma nova matu-

ração e tem necessidade deles. Tanto é assim que, devido a Tei-

lhard, a religião mais conservadora se prepara para examiná-

los, pois tem necessidade de se atualizar. Por isso o caso deste

cientista é importante e desperta interesse, uma vez que pode

2 Pietro Ubaldi (1886-1972) – (N. da E.)

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 23

ser útil para as religiões alcançarem o nível das últimas desco-

bertas científicas, perante as quais elas ficaram atrasadas.

Se é certo que as conclusões coincidem no conjunto, há, no

entanto, uma diferença entre os dois casos, pelo fato de se de-

senvolverem em posições e com métodos diversos. Como reli-

gioso, Teilhard estava, desde o início, preso às afirmações cate-

góricas da sua fé, em favor das quais, pelo fato de não poder

afastar-se delas, tinha de concluir a todo o custo, sem possibili-

dade de escolha. Isto podia pesar sobre a interpretação dos fatos,

levando-o a torcê-la num determinado sentido, em prejuízo da

verdade objetiva. Ora, a investigação do cientista deve ser livre.

A este trabalho não se pode antepor ou impor premissas axiomá-

ticas, pois assim, mais do que à descoberta, tende-se à concilia-

ção, ficando a objetividade comprometida pelo preconceito, o

que leva a realidade a ser vista através de uma particular forma

mental, já pré-estabelecida. O recinto dentro do qual o pensa-

mento é permitido mover-se, para investigar e concluir, fica li-

mitado por barreiras. Tudo isto paralisa a investigação e não é

científico. Em nosso caso, pelo contrário, desde que os fatos nos

indicassem e exigissem de uma forma positiva, tínhamos a li-

berdade de chegar a qualquer conclusão. A nossa finalidade era

apenas descobrir a verdade, e não concordar com uma religião.

Foi possível, assim, chegar a conclusões mais vastas, aceitáveis

mesmo fora das religiões, inclusive pelo materialismo ateu, ape-

sar de serem elas de natureza ideal e espiritual.

Nos dois casos, não só as condições de trabalho mas também

os métodos foram diferentes. Normalmente parte-se da constata-

ção positiva dos fatos, alcançada com a observação e a experi-

ência, para poder depois, construindo e verificando as hipóteses

com as quais tratamos de explicá-los, obter e fixar então uma te-

oria provada por eles como verdadeira, ou seja, os princípios ge-

rais segundo os quais os fenômenos observados funcionam. O

pensador vai, assim, sempre subindo do particular ao universal,

tratando de se elevar para conseguir a visão de conjunto mais

vasta possível e, portanto, mais apta para orientação.

Em nosso caso, o método seguido, pelo menos no princípio,

foi o oposto. Aplicou-se o processo dedutivo, e não indutivo.

Procedeu-se do universal para o particular, em vez do particular

para o universal, partindo-se do princípio diretivo, e não bus-

cando orientação. Os mesmos fatos, no entanto, que constituem

para a ciência um ponto de partida, são também examinados

por nós num segundo momento, com o mesmo método científi-

co da experiência e observação, mas somente com a finalidade

de verificar se eles confirmam a correspondência da visão geral

com a realidade. Portanto ela está primeiramente orientada da

teoria em direção aos fatos e, posteriormente, dos fatos em di-

reção à teoria. Assim eles são utilizados para o controle da teo-

ria, de modo que esta, em vez de permanecer visão destituída

de provas racionais, demonstra, através dos fatos, ser verdadei-

ra e corresponder à realidade.

Somente com este segundo método, que chamamos intuiti-

vo, pode-se chegar a uma visão universal do todo, penetrando

com mentalidade positiva um terreno no qual a ciência, com o

seu método, não pode chegar. Este é o modo pelo qual se pode

chegar ao terreno das maiores visões teológicas, que apenas

são obtidas com o único método possível: a intuição. É certo

que se trata de um voo. Mas, sem alçar voo, não se pode alcan-

çar os princípios universais da existência. Trata-se de um voo

longo, após o qual se desce à Terra, trazendo a fotografia da

visão obtida, para colocá-la em contato com os fatos e, assim,

verificar se ela é verdadeira. Havendo procedido dessa manei-

ra, temos verificado que os fatos confirmam a visão, razão pela

qual podemos dizer que ela corresponde à realidade. Não havia

outra maneira para obter a síntese universal, algo de que a ci-

ência ainda está muito longe.

Teilhard deu a orientação, de modo que já é possível come-

çar não somente a raciocinar cientificamente sobre problemas

espirituais, mas também a intuir religiosamente sobre proble-

mas científicos. Pode-se chegar ao ponto de admitir que o pro-

duto da revelação contida no cristianismo poderia ser tomado

seriamente em consideração pela ciência, como hipótese de tra-

balho, para explicar a parte que os fatos demonstraram corres-

ponder à realidade. Assim uma revelação positivamente contro-

lada poderia ser aceita pela ciência. A última confirmação de

qualquer verdade somente pode ser confiada a uma verificação

capaz de demonstrar que os fatos realmente funcionam como

essa verdade afirma. Este é o único modo através do qual as in-

tuições ou revelações podem dar garantias de segurança.

Apesar de tudo, o mundo caminha, e ninguém tem o poder

de pará-lo. Até há poucos anos, a teoria da evolução foi com-

batida nos ambientes religiosos. Hoje, porém, para a quase to-

talidade dos biólogos, a evolução é um fato estabelecido, uni-

versalmente aceito, e não mais uma hipótese. A maior parte

dos cientistas já não põe em dúvida que, biologicamente, o

homem provém do mundo animal superior. Mas a evolução

não é fenômeno que possa ser limitado à vida, porque, numa

visão universal, tudo – portanto todas as formas de existência –

deve estar incluído nela, se não quisermos ficar fechados so-

mente num setor do fenômeno da evolução, limitados a apenas

um trecho do seu desenvolvimento.

Teilhard nos apresenta uma evolução universal, dividida

em três grandes etapas: matéria, vida e espírito. No mesmo

sentido, o Prof. Marco Todeschini (Bérgamo-Itália) também

nos falou de psicobiofísica. O universo astronômico nos ofe-

rece, com a matéria dos planetas, a base física, que constitui a

geoesfera. Esta, por sua vez, é coberta de revestimento viven-

te, que representa a bioesfera, cuja função consiste em reve-

lar, através da vida, a consciência. Surge assim o elemento

que constitui a nooesfera, formando um novo revestimento,

feito de pensamento e consciência. Trata-se, portanto, de três

fases sucessivas, sendo que cada uma, depois de alcançada e

vivida, eleva-se sobre as precedentes.

Este conceito de um crescente psiquismo e cerebralização

do ser reproduz em palavras científicas o conceito da progres-

siva espiritualização cristã, dado pela ascese da alma em dire-

ção a Deus. Neste caminho que conduz ao espírito, encontra-

mos o fio condutor de toda a evolução. A cosmogênese inicia o

processo. Este continua e se prolonga na biogênese, que de-

semboca por sua vez na noogênese. Pode-se assim, finalmente,

compreender o significado do processo evolutivo, observando-

o alinhado ao longo do seu eixo principal, que nos mostra o

início, o desenvolvimento e a meta, desde o princípio até ao

fim. O Ômega, ponto de chegada, está hoje presente entre nós

em forma de ideal, que está esperando a nossa evolução, para

se realizar no futuro, apresentando no seu resultado a compen-

sação de tantas das nossas fadigas, dores e perigos. A escalada

evolutiva, descoberta e provada pela ciência, vai em direção a

Deus, tal como as religiões já ensinaram com outras palavras.

Agora, não mais vivemos nem ascendemos como cegos. Por

tudo isto e pelo fato de ter a ciência conseguido conhecer o

caminho que o homem percorreu para chegar até aqui, pode-

mos deduzir qual será este caminho amanhã e até onde ele nos

levará. No terreno das nossas conquistas espirituais, a fé das

religiões é substituída agora pela certeza científica.

Voltando à comparação com a nossa obra e suas concepções,

constatamos que a cosmo-bio-noogênese de Teilhard correspon-

de ao físio-dínamo-psiquismo de A Grande Síntese. Ele também

tentou uma síntese da fenomenologia universal até ao campo fi-

losófico e teológico, ou pelo menos transparece dos seus escritos

uma tentativa de orientação universal neste sentido. No entanto

ele concebeu os três momentos ao longo dos quais se desenvolve

o eixo central da evolução como sendo: matéria, vida e espírito, e

não como matéria, energia e espírito. Isto se explica pelo fato de

que ele, sendo sobretudo geólogo e paleontólogo, não valorizou

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24 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

adequadamente, na economia do universo, a importância da físi-

ca nuclear e do fenômeno da desintegração atômica, coisas que

então acabavam de aparecer. Passando diretamente da matéria à

vida, Teilhard não viu seu termo intermediário, a energia, sem a

qual não se explica a origem da vida por evolução. Ele não expli-

ca a passagem da química inorgânica à química orgânica, que re-

presentam apenas formas exteriores, e não a substância do fenô-

meno. Escapou-lhe a continuidade do processo evolutivo, que,

através da desintegração atômica (base da gênese dinâmica), vai

da matéria à eletricidade (a forma de energia mais evoluída) e, a

partir desta, passa então à substância da vida, constituída não pela

forma orgânica, mas sim pelo psiquismo que a constrói e a dirige,

cuja origem é elétrica, como fica demonstrado pela natureza ner-

vosa e cerebral de sua base de apoio.

Quando se escreveu A Grande Síntese, por volta de 1933,

com uma física nuclear ainda no início, tais afirmações podiam

parecer fantasia. Mas hoje procura-se provar experimentalmen-

te a verdade da teoria das origens elétricas da vida. Em 1952, o

químico americano S. L. Miller, pensando que a vida pudesse

estar relacionada com a descarga elétrica do raio, tratou de re-

produzir em laboratório as condições em que a Terra deveria

encontrar-se antes do aparecimento da vida. Infelizmente, ele

não pôde adiantar suficientemente as suas experiências. Ora, o

bioquímico inglês Cyril Pannamperuma, através das suas expe-

riências, concluiu que a matéria inorgânica, sob a ação das des-

cargas e raios cósmicos, pode transformar-se em matéria orgâ-

nica, sendo a energia necessária para isso dada pelo raio.

Existem, portanto, algumas diferenças com Teilhard. Mas o

ponto novo e central, dado pela afirmação de que a vida serve

para desenvolver e revelar o espírito, foi captado também por

ele e admitido plenamente, o que, dentro do cristianismo, signi-

fica uma revolução bem longe de ser pequena. Acrescente-se

ainda o fato de podermos, com a nossa teoria, explicar também

a tremenda lei da luta pela vida, que leva os seres a se devora-

rem reciprocamente. Esta luta, se bem que feroz, justifica-se

como meio para o desenvolvimento da inteligência, processo

que, obrigando ao esforço para a defesa, inicia-se desde os pri-

meiros planos da existência e vai-se revelando, de forma cada

vez mais evidente, como um processo de espiritualização,

quanto mais o ser avança no caminho da evolução.

Há ainda uma outra diferença com Teilhard. Mesmo falando

de “nova teologia”, ele não atinge as primeiras origens do uni-

verso, referentes à criação e suas consequências, nem o resulta-

do final desta imensa obra. Fica, então, sem explicação como

tenha sido possível, das mãos de um Deus sapiente, bom e per-

feito sair o mal, a dor e a morte, não se explicando também co-

mo a Sua unidade possa ter sido (por Ele ou por outros) despe-

daçada no dualismo em que existimos. Teilhard, no seu volume

L’activation de l’ernegie, chega a definir o mal como um efeito

secundário, subproduto inevitável do caminho do universo em

evolução. O problema do mal, diz ele, já não se configura, por-

que é estatisticamente impossível que, numa multidão de fenô-

menos, em vias de acomodação, procedendo por tentativas,

como se desenvolve a evolução, não se verifiquem os casos in-

completos, mal terminados, discordantes da ordem geral. Res-

pondemos, no entanto, que o mal, a dor e a morte não são inci-

dentes menores da evolução, aos quais não se dá importância,

pelo contrário encontram-se tão profundamente radicados no

fenômeno da existência, tentando comprometê-la a cada passo,

que, para salvá-la desta ameaça, é necessária a presença contí-

nua e a atividade saneadora da potência criadora de Deus.

Portanto Teilhard, como sistema filosófico e teológico,

deveria ser pelo menos completado, para esgotar o assunto.

Mas ele era sobretudo cientista e, além disso, neste outro ter-

reno, devido à sua posição eclesiástica, estava ligado a uma

ordem estabelecida, da qual lhe era proibido sair, tornando-se

difícil libertar-se dela.

O significado e importância do pensamento de Teilhard es-

tá, sobretudo, nesta tentativa do cristianismo de se aproximar

da ciência e assimilar suas conclusões, até ontem condenadís-

simas. As religiões representam uma enorme massa, cuja mai-

oria possui uma forma mental elementar, lentíssima para com-

preender e evoluir. Assim cada alteração de pensamento deve

ser feita com extrema prudência, para não se perder o equilí-

brio, ultrapassando os limites da compreensão. Mas a evolução

está hoje apressando o passo. E temos aqui um sacerdote acu-

sado de panteísmo, monismo, materialismo, evolucionismo,

darwinismo, marxismo e até comunismo, sendo em muitos as-

pectos comparável a Rosmini, razão pela qual ouvimos falar e

escutamos com interesse.

Eis assim, em ambiente eclesiástico, uma tentativa seme-

lhante à nossa, de realizar uma síntese na qual se unem, como

elementos complementares, os dois termos até agora em antíte-

se, ciência e fé, matéria e espírito. A nossa tentativa, no entan-

to, foi mais livre como pesquisa da verdade, porque, como já

assinalamos, não estávamos obrigados a concluir conforme

premissas preestabelecidas. Todavia não se pode deixar de re-

conhecer em Teilhard o grande mérito de haver tratado de santi-

ficar o pecado de ser evolucionista (de que tantas vezes foi acu-

sado), agora transformado em santa evolução. Estranho modo

de avançar das religiões, apesar de afirmarem que permanecem

imóveis! Mas ao divino impulso da evolução não há conserva-

dorismo que possa resistir.

Agora, já não se pode dizer que Darwin esteja errado, por-

quanto a evolução se tornou um fato inegável. Suas ideias se

tornam aceitáveis neste momento, não só porque a substância

da evolução pode ser considerada como um desenvolvimento

de consciência, constituindo-se num fato interior, mas também

porque a sua mutação morfológica é dada pela transformação

de uma veste exterior, que acompanha uma evolução mais pro-

funda, na qual se encontra a sua verdadeira substância, consti-

tuída pela ascensão espiritual em direção a um estado de per-

feitíssima consciência, cujo destino é se juntar a Deus. Dina-

mizada assim, a vida se move, transformando-se num caminho

em direção a uma meta estabelecida, visão segundo a qual po-

demos enxergar um imenso destino, que corresponde ao ho-

mem realizar no futuro.

A evolução se santifica, porque agora, além da sua face

natural, vê-se dela também uma outra: a divina. Então, aceita-

se o natural como elemento que conduz ao divino, enquanto o

divino é aceito como levedura imanente e razão final do natu-

ral. A evolução é assim entendida em sentido lato, como um

processo que faz avançar a matéria, transubstanciando-a espi-

ritualmente, santificando-a e, assim, conquistando cada vez

mais consciência no homem e acima dele, até que o Alfa se

reúna ao Ômega, com o retorno da criação ao criador. Desta

maneira, o crescimento geológico e biológico desemboca na

noogênese, terminando com a vitória final do espírito (puro–

pensamento), já expresso por Carrel, quando ele falou da

“emersão do espírito da matéria”.

Consola-nos, porém, o fato de ver como o catolicismo, que

colocou no “Index” meus escritos, onde tais ideias foram

apresentadas, prepara-se hoje, se bem que por outras vias, pa-

ra aceitá-las. Ele é constrangido pela lógica persuasiva dessas

ideias e pela difusão delas nos ambientes culturais, para se

salvar da expansão do ateísmo, porque hoje se pensa mais e

quem pensa exige ser convencido para aceitar a verdade, pois

a forma como esta é apresentada atualmente não satisfaz mais

esta necessidade da mente moderna. No entanto, atualmente,

parte do “rebanho” é constituída por ignorantes e supersticio-

sos, sendo a outra parte composta por ateus, que são exterior-

mente ótimos praticantes. É necessário o catolicismo se tornar

mais convincente, para resolver o problema da sobrevivência

de uma fé que ameaça ser superada.

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 25

2) Os sofrimentos morais devido à dolorosa posição de incom-

preensão e condenação.

Teilhard foi mandado para Nova York, para lá morrer em

condições de verdadeiro exílio, depois de uma vida cheia de

amargura, devido à dificuldade cada vez maior de tornar conhe-

cidos os seus escritos. O seu problema era de consciência, di-

zendo respeito a um cientista que, havendo descoberto a verda-

de, trata de levá-las para o terreno religioso, a fim de iluminar

os crentes que, honestamente, desejam conhecer mais além da

fé, para ficarem convencidos.

Sem dúvida, vivemos num momento evolutivo de transição,

no qual a ciência avança vertiginosamente no conhecimento,

transpondo as portas do mistério. Com isto, a velha forma men-

tal se transforma em uma nova, na qual o modo tradicional de

apresentar as verdades de fé torna difícil aceitá-las. Em Teilhard,

o drama é duplo, pois ele não somente tem de admitir conscien-

temente as novas verdades que lhe apareceram, das quais, ainda

que não ortodoxas, estava convencido, mas também deve torná-

las conhecidas de todos os que tinham necessidades delas para

sair da dúvida, da falta de fé e da insatisfação em que se encon-

tra a mente moderna, perante problemas postos de lado ou não

resolvidos com clareza convincente. O drama foi devido à sufo-

cação destes dois santos impulsos, sofrido em nome do bem,

pois que, segundo a lei de Deus, o bem é progresso.

Muitos não querem fazer o esforço de pensar e se arriscar

com o novo, preferindo permanecer seguros nas concepções

tradicionais. Na comodidade da própria preguiça, considera-se

então como elemento perturbador quem, por ter sede de luz, pa-

rece rebelde à velha ordem e quer conhecer e fazer conhecer,

subir e fazer subir, pois arde numa contínua tensão espiritual,

com a qual perturba os que dormem quietos numa aquiescência

passiva, chamada por eles de fé e ortodoxia. A muitos não inte-

ressa um maior conhecimento nem a conquista da verdade, mas

sim o grupo humano do qual cada um faz parte, o seu poder ter-

reno e o seu engrandecimento pela conquista de prosélitos. Não

há nada na vida que não se baseie na luta, razão pela qual todo

grupo humano é levado a tomar uma posição de defesa, encas-

telando-se no sectarismo, na intransigência e no dogmatismo,

qualidades necessárias para poder resistir e sobreviver. O pro-

blema não é de religiões mas sim de tipo biológico, porque esta

é a lei da vida no seu atual grau de evolução.

Além e acima do universo físico, Teilhard viu, movido mais

pela razão do que pela fé, o universo psíquico, percebendo uma

nova dimensão, dada pelo espírito, que é o terreno supersensí-

vel das religiões. O cosmo, para ele, é um organismo em funci-

onamento e em evolução, orientado no sentido de fazer surgir e

desenvolver a inteligência. Com isto, Teilhard realiza uma espi-

ritualização da matéria e da ciência, estendendo assim o terreno

das religiões ao infinito e fazendo delas um problema de inte-

resse universal. Eis então que estas, neste caso, ao invés de fe-

charem as portas, como se estivessem perante um inimigo, de-

veriam abri-las, para conseguirem assim uma imensa expansão.

O problema para o cientista crente não é tanto compreender tu-

do isto, para ele evidente, mas sim fazer os outros compreende-

rem, assim como para o evoluído o problema maior foi e será

sempre fazer os involuídos avançarem.

Assim como Santo Agostinho resumiu Platão e São Tomás

resumiu Aristóteles, cada um deles formulando o cristianismo

segundo a linguagem do seu tempo, é de se esperar também que

as religiões admitam igualmente, em seu favor, a formulação

realizada por Teilhard destas mesmas verdades, segundo a lin-

guagem racional-científica de nosso tempo. Ele sentia a neces-

sidade de realizar um exame crítico do pensamento teológico,

para se atualizar perante as conquistas da ciência, que o deixa-

vam ficar para trás, enquanto as religiões, encaminhando-se pa-

ra Deus, deviam, como seria lógico, estar na vanguarda, em vez

de serem as últimas a chegar, arrastadas, contra sua vontade,

pelo progresso do pensamento laico. Estando em contato com

Deus, fonte de sua inspiração, as religiões deveriam ser as pri-

meiras a compreender a verdade, e não as últimas. E quem sen-

te, como Teilhard, tais exigências sente também o dever de fa-

lar, oferecendo a sua contribuição. Mas, se as religiões não en-

tendem e resistem, ele a oferece à humanidade, que tem hoje

necessidade desta ideia para poder progredir, não obstante as

religiões negarem qualquer interesse por tais problemas.

Teilhard costumava dizer: “se eu não escrevesse, sei que

atraiçoaria”. Procuremos explicar o caso com uma imagem. Ofe-

receram a um homem uma semente preciosa, para que ele a plan-

tasse no seu vaso, mas aquela semente não combinava com aque-

le vaso, porque era diferente das outras contidas ali, deste modo

ele a lançou num campo. No vaso, aquela semente, mesmo es-

tando defendida, poderia apenas crescer em terreno limitado, o

que a teria impedido de se desenvolver. Caso continuasse lá, ela

teria permanecido fechada num ambiente restrito, sem poder ex-

pandir-se. No campo, pelo contrário, a semente pôde desenvol-

ver-se livremente, até se tornar uma grande árvore, o que não po-

dia acontecer dentro do vaso. Foi, portanto, um bem para a se-

mente ter sido lançada para fora. Assim uma ideia, representada

por aquela semente, pode tornar-se e de fato se tornou universal.

Eis o que acontece quando um grupo humano de ideias restritas

rejeita uma ideia fecunda, capaz de novos desenvolvimentos.

Há outra imagem ainda. Dois galos, fechados numa gaiola,

estavam bicando-se, tentando destruir um ao outro, cada um

pensando em vencer, para ser o dono da capoeira. Eles, porém,

não percebiam que estavam sendo levados ao mercado e que,

pouco depois, acabariam os dois na panela. Assim também se

comportam as religiões rivais, enquanto se avizinha o cilindro

compressor do comunismo ateu, que se prepara para nivelá-las

todas na mesma liquidação.

Que fazer então? Este é o grau de evolução da humanidade

atual, e explicar não serve para nada. O nível de unificação ho-

je alcançado não vai além da família e dos grupos particulares,

sejam religiosos, econômicos ou políticos, todos sempre limi-

tados em função de determinados interesses comuns. Grupos

mais vastos, nacionais ou raciais, estão apenas em formação.

Cada unificação na Terra não chega a alcançar senão o grau de

partido ou castelo fechado, armado e em luta contra os vizi-

nhos, que também estão em estado de guerra, para não serem

destruídos, sendo a destruição do outro justamente o objetivo

de todos eles, a fim de garantir para si próprio o triunfo. En-

quanto a humanidade não superar esta fase de sua evolução,

deverá ficar submetida às leis deste plano biológico inferior. O

evoluído que trate de elevá-la a um nível superior, para funci-

onar com outras leis e segundo uma outra compreensão da vi-

da. Em tal mundo, ele será sempre um intruso, um solitário,

um condenado, como foi Teilhard de Chardin.

Este biótipo, justamente devido à sua posição avançada, en-

contra-se fora dos grupos, porque o seu fim não é a defesa de

nenhum deles, onde se encontraria encerrado, mas sim o pro-

gresso da humanidade. Perante o grupo, tal indivíduo pode es-

colher entre dois caminhos, segundo a sua própria natureza: a

liberdade ou a obediência. No primeiro caso, ele pode, segundo

a sua consciência, alcançar o seu ideal, entregar-se à busca da

verdade, pensar e falar livremente, cumprir a sua missão, no en-

tanto permanece isolado. Não tendo declarado sua adesão e

obediência a nenhum grupo, ele não depende de ninguém, mas

também não recebe a defesa de que necessita para viver traba-

lhando pelo seu ideal. Se ele não se une aos fins de algum gru-

po, ninguém está disposto a fazer-lhe gratuitamente o trabalho

de protegê-lo. São estas as leis da vida no plano humano, e é

necessário ter a honestidade de reconhecê-las e declará-las tal

como são. Se esse indivíduo não pagar com sua submissão o

seu pão, qualquer atividade intelectual lhe será impedida pela

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26 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

necessidade de ter, ele próprio, de lutar pela existência. No se-

gundo caso, não haverá esta necessidade e ele gozará da vanta-

gem de uma proteção que garante sua vida, dando-lhe tranqui-

lidade para trabalhar. Mas o pensamento e o trabalho ficarão

submetidos àqueles do grupo ao qual ele pertence. Deverá, por

isso, pensar e trabalhar no interesse do grupo, que, por fornecer

o pão, tem o direito de exigir dele obediência espiritual e física.

Quem dá e protege o faz para si próprio e, portanto, tende a es-

cravizar. Quem recebe deve dar em troca obediência. Isto por-

que ao trabalho espiritual é dado valor nulo no mercado das

coisas humanas, de modo que a liberdade de pensamento e a

atividade correspondente é coisa permitida apenas para quem

possui independência econômica.

Observando, porém, as coisas pelo lado oposto, vemos que

o grupo não é culpado de tudo, porquanto está, por sua vez,

empenhado na luta pela sua existência, devendo, por isso, fazer

dos seus membros os seus soldados, para manter a sua unidade,

defendendo-a dos assaltos externos. Ao grupo não interessa a

evolução, mas apenas a sua sobrevivência, que é a coisa mais

urgente. A isto ele é constrangido pelas condições da vida ter-

restre. O evoluído, pelo contrário, antecipa a evolução e, em

vez de conservar e consolidar as posições, tende a fazê-las

avançar. Em razão desta oposição de intenções, tal biótipo é

temido e combatido como um perigo. Ele não representa a con-

servação, mas sim a arriscada aventura do progresso, que é pre-

cisamente aquilo que os imaturos, acomodados na sua preguiça,

não querem. O reformador, desejando implantar uma nova or-

dem, sacode as bases do castelo no qual o grupo se aninha, le-

vando desordem às sua filas, condição da qual os inimigos es-

tão prontos para se aproveitar. É necessário compreender que a

vida é um estado de guerra pela sobrevivência. Urge, portanto,

como primeira coisa, a defesa e só depois, como luxo de ricos,

é admitida a evolução. Tais tentativas de avançar são desloca-

mentos perigosos, dissipação de forças em tentativas que debili-

tam o grupo, sendo, assim, consideradas saltos na escuridão.

Quem os provoca deve, portanto, ser eliminado.

Perante o idealista, atraído pelo céu, está a dura realidade

da vida, e não é lícito a ninguém esquecer, nem por um minu-

to, que se trata de uma luta desesperada. Para quem é especia-

lizado nessa luta e não sabe fazer outra coisa, tudo isto pode

parecer um engano. Mas, para o idealista, dotado de outras

qualidades e dedicado a outros trabalhos, o problema é bem

diverso. Ele desejaria desesperadamente gritar que, na Terra,

não há lugar para o ideal. A humanidade deveria ajudar estes

indivíduos, que trabalham pelo seu progresso. Mas o que, de

fato, importa para a humanidade? Ela tem outras coisas para

fazer, como pensar em matar e destruir tudo com as guerras,

buscando enriquecer e gozar a vida.

O problema que o caso de Teilhard nos fez recordar é sobre-

tudo de biologia e interessa à humanidade, porque constitui o

problema de evolução da vida. O ideal, antecipação da evolu-

ção, realiza-se na Terra através de diversos tipos de instrumen-

tos. Não interessa condenar a ninguém, mas sim conhecer a

técnica desta realização. Temos, portanto, de um lado os márti-

res do ideal, e de outro os administradores e usufrutuários do

ideal. Os primeiros, pouquíssimos, trabalham pela conquista de

posições mais avançadas. Os segundos, a maioria, ocupam-se

em conservá-las, utilizando-as para si. Durante este processo,

que vai desde o sacrifício do mártir à mecânica burocrática e ao

parasitismo, o impulso do iniciador se desfaz, cansa-se, esgota-

se, afundando-se no lodo humano, túmulo do ideal.

A massa, que forma o corpo da humanidade, é constituída

por homens do segundo tipo, e eles lutam contra os do primeiro,

tentando reduzi-los ao seu nível. O inovador, por sua própria na-

tureza e pela posição na qual esta o coloca, já fixou o seu destino

de incompreensão, isolamento e perseguição. Terá de trabalhar

em condições difíceis, porque, em vez de seguir os interesses

imediatos do grupo, aqueles que os componentes veem e sentem

melhor, ele procura os interesses superiores e longínquos, que

aqueles não veem e, por isso, não entendem. Para poder traba-

lhar em paz, ele deveria concordar com o grupo. Mas, assim, te-

ria de renunciar à sua iniciativa, à sua independência espiritual e,

portanto, ao seu ideal. O drama existe, porquanto o mundo não

quer ser incomodado e, assim, afasta os indivíduos que tratam

de fazê-lo progredir. Este é o drama de Teilhard de Chardin.

Historicamente, é fácil constatar que a humanidade, antes de

santificar, dá-se o gosto de sacrificar, trabalho nada espiritual da

parte de quem o executa, mas que faz indubitavelmente parte da

técnica da santificação. Isto nos é demonstrado em nosso tempo

pelo caso do Padre Pio de Pietralcina (Itália).

O que deve fazer então o indivíduo? Como se deverá resol-

ver o caso e como o resolveu Teilhard? Se o mundo não quer

ser salvo, o indivíduo, no entanto, deverá salvar-se a si mesmo.

Para compreendermos, devemos nos referir à moral positiva

contida nas leis da vida. Antes de tudo, por que razão a autori-

dade possui o direito de condenar? Tê-lo-ia, se isto correspon-

desse a um critério da justiça. Mas não corresponde, visto que a

condenação do que se considera hoje prejudicial fica contradi-

tada pela aprovação de amanhã, quando o mesmo fato acaba

sendo considerado vantajoso. Este dizer e desdizer, à mercê das

circunstâncias e das mudanças de opinião dos indivíduos que

julgam, tem muito de provisório, incoerente e irresponsável,

não estando de acordo com um tribunal de justiça. Será honesto

aprovar uma ideia nova somente depois que todos a aceitaram,

quando defendê-la não representa mais nenhum risco ideológi-

co? Assim consegue-se avançar sem perigo algum de enganar-

se, mas é deprimente ser o último a chegar, arrastado pelos ou-

tros, a quem se deixa a responsabilidade das novas afirmações,

a fadiga da pesquisa e a incerteza da tentativa, mas sem se abrir

mão da apropriação dos resultados, quando tudo leva ao êxito.

Quem é imparcial, porém, justifica tudo isto. A vida se ba-

seia na luta, e o grupo tem necessidade de defesa para sobrevi-

ver. É pela sua própria conservação que o grupo luta contra as

coisas novas, nas quais ele vê uma tentativa de destruição do

passado, sobre o qual se baseia a sua existência. Trata-se, por-

tanto, de um caso de legítima defesa contra um perigo, uma

ameaça de morte. O direito de julgar e condenar baseia-se nos

seguintes fatos: 1) A posição de mais forte que o grupo tem pe-

rante o indivíduo, bastando isto, na Terra, para conferir o direi-

to de estabelecer qual é a lei e, portanto, de julgar. O grupo é

mais forte porque constitui maioria perante o indivíduo, que,

estando isolado ou em minoria, é mais débil e, por isso, não tem

direitos. 2) A necessidade imperiosa do grupo se defender, para

sua conservação, exercendo o sagrado direito de todos à vida.

E quanto ao indivíduo? Será que para ele, pelo fato de estar

só e ser minoria, sem dispor do poder proveniente do número,

não haverá justiça, ficando-lhe negada a possibilidade de traba-

lhar para realizar o ideal e, assim, de fazer progredir a vida? O

drama consiste no conflito entre os dois termos. De um lado, tal

indivíduo, por intuição e raciocínio, compreende a importância

e a verdade das suas novas afirmações e, sendo honesto, sente

que deve comunicá-las aos seus próprios semelhantes, para o

futuro progresso deles, pois, pelo fato de tê-la visto, não pode

fazer outra coisa senão enunciar a nova verdade. Do lado opos-

to, encarregada da defesa dos interesses do grupo, a autoridade,

mais preocupada com sua própria conservação e a conservação

do grupo do que pela pesquisa da verdade, quer permanecer fiel

às velhas coisas, nas quais baseia a sua posição, rejeitando e

condenando por isso qualquer novidade.

As finalidades são opostas. O reformador busca o progres-

so, o grupo e a autoridade que o dirige querem continuar a vi-

ver com a menor fadiga e riscos possíveis. Em virtude disto, é

lógico que a autoridade imponha silêncio ao inovador. Assim o

proíbem de falar e publicar, impedindo-o de pensar, compre-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 27

ender e defender a verdade da qual está convencido. Então as

duas partes em conflito se transformam em dois inimigos em

luta, cada um com boas razões para agir à sua maneira. O ino-

vador atenta contra a tranquilidade e a segurança do grupo, o

qual então se defende. A autoridade atenta contra a liberdade

do espírito, querendo manter o pensamento dentro do grupo,

para detê-lo ou torcê-lo, paralisando as mais nobres funções do

ser. Isto não é senão um aspecto da luta entre o evoluído, que

quer fazer progredir o mundo, e o involuído, que não se quer

deixar redimir com este progresso.

Isto é contra Deus, mas pode ser feito em nome de Deus.

Trata-se de sufocação espiritual, negação de ascensão, mas a

autoridade pode fazê-lo porque, sendo mais forte, tem razão

contra o indivíduo, que, isolado, é mais débil. Por isso ele deve

submeter-se, apesar de lutar por um fim muito mais alto do que

aquele pelo qual luta a autoridade. Todavia trata-se de duas

funções, ambas necessárias: uma perante os homens, por neces-

sidade terrena, outra perante Deus, por necessidade do ideal.

Disto se deduz que, se, de um lado, a autoridade, segundo seu

ponto de vista, tem o direito de condenar, de outro lado, o con-

denado, segundo seu ponto de vista, tem o dever moral, perante

Deus e a sua consciência, de não renegar o seu pensamento e

continuar a sua obra. Foi exatamente assim que agiu Teilhard.

Mais acima, quisemos justamente encontrar e expor as razões

que justificam a sua conduta, para nos convencermos de que se

trata de um bom exemplo. Baseamo-nos na observação das leis

biológicas do grupo, que são verdadeiras para qualquer grupo e,

portanto, também para o religioso.

Teilhard obedeceu à autoridade, sofrendo em silêncio, mas

sem nunca renunciar às suas ideias. Às almas simples do povo

ele não ofereceu o escândalo da desobediência, exemplo que

todos estão mais dispostos a imitar e que oferece para muitos a

oportunidade de se sentirem autorizados a seguir o caminho do

mal. Para o homem do ideal, lançado em direção ao futuro, isto

é martírio, mas a ignorância humana assim o exige. Ele o sabe e

aceita. A posteridade depois julgará com outros critérios, sendo

que a autoridade tem tempo para entender e inverter o seu juí-

zo. É assim que, hoje, tudo quanto pode ser útil vai sendo reabi-

litado, passando-se a aceitar também o que já não se pode dei-

xar de admitir. Vai-se então desenterrando o que foi condenado

ao silêncio, com cautelosas sondagens da opinião pública, para

ver até onde é possível se atualizar sem correr perigo.

Aqui estamos só como observadores imparciais do fenô-

meno, para explicar o seu funcionamento. Havia também um

outro lado de Teilhard. Ele comia o pão da ordem religiosa de

que fazia parte, à qual estava moralmente comprometido a

permanecer fiel. Sendo honesto, sentia o dever de não se rebe-

lar contra a família à qual passara a pertencer, que o havia cri-

ado e agora o protegia em seu seio. Obrigações práticas entre

dar e haver, pequena contabilidade terrena, mas que os hones-

tos têm em conta, porque receber sem dar em troca é explorar.

Mas nem todos têm um sentido tão perfeito de honestidade. Há

os que, feridos no orgulho, revoltam-se abertamente, para sa-

tisfazer a própria reação pessoal. Passam então para outro gru-

po, no qual, conservando o mesmo espírito sectário, continuam

lutando contra o grupo que primeiramente os hospedara, de-

monstrando com isso tratar-se de um homem de partido, que,

esteja de um lado ou do outro, permanece sempre o mesmo,

sem sair da sua velha forma mental.

Que aconteceu então com o espírito do inovador honesto,

que não obstante respeita a autoridade? Quais são os seus direi-

tos e as suas compensações? Para ele existe o caminho da paci-

ência, do trabalho e do martírio, que é também o da sua santifi-

cação. Observemo-lo, pois ele pode servir de exemplo e guia a

quem se encontre em semelhantes situações.

Lemos no volume O Jesuíta Proibido, de G. Vigorelli:

“Não está ainda escrita a história secreta da „redução ao silên-

cio‟ de Teilhard de Chardin. Dos dois interlocutores, um está

sempre ausente e, mesmo quando se faz presente, castiga, mas

não entra no diálogo; a mão, a cada vez que castiga, esconde-se

(...), drama sumamente cruel, que durou mais de quarenta anos,

mais ardente porque ficou coberto pelas cinzas”.

O seu confrade Padre Pierre Leroy, no seu livro Pierre Tei-

lhard de Chardin tel que je l’ai connu, testemunha: “Incompre-

endido e condenado ao silêncio, sofre de angústias, que algu-

mas vezes o aniquilam (...), com paciência suportava uma prova

que esmagaria os corações mais fortes. Quantas vezes, na inti-

midade dos nossos encontros, o havíamos visto abatido (...).

Sofria de crises de angústia, que mais tarde deveriam tornar-se

mais agudas (...). Tinha crises de choro que o destroçavam.”

E Vigorelli continua: “(...) além do silencio, foi-lhe imposto

o exílio (...) morria de dor por aquele exílio prolongado. Supli-

cou muitas vezes aos superiores um regresso, ainda que breve,

à Europa, à França (...), as perseguições não cessavam (...). Não

lhe era proibida qualquer tomada de posição teológica e filosó-

fica, mas se chegou, depois do seu último afastamento de Paris,

a negar-lhe também o livre exercício da sua atividade científica

(...). Objetavam-lhe: „Porque levantas todos estes problemas,

em vez de se contentar a ensinar o catecismo?‟ (...). Mas quem

levantava aqueles problemas não era Teilhard, mas sim os seus

contemporâneos, e ele não podia iludi-los”.

“Morreu em 1955, em Nova York, seu último exílio depois

de outros longuíssimos (...). O seu enterro não foi acompanha-

do por mais de dez pessoas (...), ali ficou, uma vez mais no

exílio, e não foi ainda permitido trazer para sua pátria os seus

despojos mortais (...)”.

“Teilhard obedeceu e não se revoltou nunca, mas jamais re-

nunciou à sua verdade, negando-se a considerá-la uma heresia,

porque a ciência a legitimava e demonstrava (...), obedecia,

baixava a cabeça (...), mas não aceitou, mesmo no menor deta-

lhe, renegar as suas ideias ou sequer suavizá-las. A solução que

Teilhard deu à crise foi caracterizada por total ausência de rup-

tura, intolerância, desobediência ou quaisquer velhos recursos e

táticas lesivas (...), o importante era permanecer fiel às suas

próprias ideias (...). As ideias devem esperar o seu momento

apropriado. A paciência, se é secundada pela intrepidez, pode

valer mais que a revolta. Teilhard não se revoltou, mas nunca se

deteve. Não abdicou. Rejeitou qualquer compromisso (...). Tei-

lhard nunca foi contra a Igreja; quem sabe se neste momento é

a Igreja que não pode mais ir contra ele (...). „Não posso mu-

dar‟, dizia, e não mudou nunca; a esperança nunca o abando-

nou, nem a certeza que um dia os seus adversários mudariam; e

um pouco de tudo isto já está acontecendo”.

Vimos assim, com respeito a Teilhard, a sua vida de conde-

nado, a sua atitude perante a autoridade. Penetremos agora no

seu espírito, para compreender “os segredos mais profundos

que se debatiam somente na sua própria consciência, num diá-

logo direto com Deus”. Em Teilhard existe uma “exaltação re-

ligiosa, até mesmo mística, que chega à exuberância, investe e

transcende a sua obra, à qual ele permaneceu ligado a vida toda

e que, apesar de não lhe ter servido de salvo conduto para a

Igreja, seguramente o serviria perante Deus”.

Que nos ensinam estes fatos relatados aqui? Perante o mun-

do, incompreensão, condenação e martírio. Perante as próprias

ideias, das quais em consciência se está convencido, fidelidade

absoluta. Obediência, submissão e humildade, tudo aquilo que

de exterior e formal o mundo exige, mas inviolável liberdade

do espírito, tudo o que de interior e substancial o mundo não

vê. Perante Deus, comunhão, exaltação e segurança. Qual é,

portanto, o balanço de quem se encontra como Teilhard? No

passivo, está o ataque do mundo (o silêncio imposto e o exílio),

suportado com paciência, mas tornando-se um meio de santifi-

cação. Não existe nada tão grande como a inocência persegui-

da, que sofre para respeitar um ideal de ordem e disciplina. Este

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28 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

sofrimento tem valor e dá o seu fruto. Logicamente, tudo aquilo

que é culpa e dano segundo o mundo transforma-se em virtude

e recompensa perante Deus. Mas também existe o ativo, dado

pela própria santificação, pela afirmação da inviolabilidade da

liberdade do espírito e, sobretudo, pelo fato de sentir-se puro

frente a Deus, gozando a satisfação de, no íntimo da própria

consciência, contar com o Seu consentimento, vizinhança e

ajuda. É segundo a sua natureza, a qual se revela assim, que o

indivíduo escolhe colocar-se do lado do mundo ou do lado de

Deus. Estes problemas não interessam à maioria, que não está

nestas condições, mas são graves e vivíssimos para o homem

espiritual, que se encontra nelas.

O que desejamos conhecer bem é como tal indivíduo conse-

gue viver, qual o seu ativo e com quais forças ele pode susten-

tar-se, para resistir àquela sufocação de alma. Se o dever da

obediência procura matá-lo nas suas mais altas inspirações, de-

verá ele aceitar a sua morte espiritual, o que equivale a consen-

tir no seu próprio suicídio? Não! Apesar da renúncia espiritual

e da obediência que lhe é imposta, ele possui para si dois imen-

sos recursos para sobreviver: a inviolabilidade do espírito, no

qual nenhuma autoridade humana pode penetrar, e a tranquili-

dade da sua consciência perante Deus, convencido da sua pró-

pria retidão e inocência. Deste modo, ele traz consigo a sensa-

ção da presença de Deus e a segurança do seu consentimento e

ajuda. Ele sabe que existe um outro tribunal, superior a todos os

do mundo, com uma justiça que não erra. Nesta confia e a ela

se entrega. Vê-se possuindo uma riqueza de potência, de segu-

rança e de paz que ninguém lhe pode tirar. Refugia-se em Deus,

e nenhum tribunal humano poderá alcançá-lo. Esta é a força do

mártir: a derrota terrena, que diante de Deus é triunfo.

Porém há mais ainda. As leis da vida garantem o triunfo fi-

nal do ideal, pelo qual o homem espiritual se sacrifica. Diz o ci-

tado volume: “Depois de cinquenta anos de proibições e de

admoestações, as ideias revolucionárias de Teilhard abrem ca-

minho. O Concílio Ecumênico, atualmente em curso, está na

verdade entrando justamente no sulco salutar daquelas ideias,

sendo que a Igreja terá tudo a ganhar e nada a perder, se decidir

absolver Teilhard, depois de tê-lo ignorado, contrariado, con-

denado (...). Está em execução a liquidação da era constantinia-

na e do espírito sectário da Contra-Reforma (...). É um progra-

ma indubitavelmente teilhardiano”.

Por conhecer as leis da vida, o indivíduo sabe que o fenô-

meno deve realizar-se deste modo, já que esta é a linha natural

de seu desenvolvimento. Então ele se submete a estas leis e es-

pontaneamente aceita tudo isto por convicção. A evolução deve

ser o resultado de um esforço, de modo que a sua realização se-

ja o prêmio de uma fadiga. Este galardão pertence, por direito,

ao mais evoluído, que avança à frente dos outros, os quais, por

sua vez, representam a resistência a vencer, o obstáculo a supe-

rar, as trevas a iluminar. Embaixo, na retaguarda da evolução,

está o mundo. Na direção do alto se lança o evoluído, seguindo

em frente, avançando em direção a Deus, distanciando-se do

mundo. Ele não está do lado do mundo, mas sim do lado de

Deus, que o espera, o convida e o impulsiona para diante,

atraindo-o e ajudando-o. A enorme força e a grande compensa-

ção do condenado, mesmo que a condenação tenha sido feita

em nome de Deus, é estar ao lado da verdade e da justiça de

Deus, é encontrar-se ao lado de Sua lei, que estabelece no fim a

vitória do bem sobre o mal, o domínio da afirmação sobre a ne-

gação. A força de quem sofre lutando pela verdade está no fato

de que, assim, ele trabalha para avançar na direção determinada

pela evolução, sendo, portanto, arrastado em cheio por sua cor-

renteza. O idealista, hoje condenado, sabe que o futuro lhe per-

tence. Ele leva consigo o impulso irresistível da divina vontade

da evolução, que exige a ascese. É precisamente através deste

biótipo que se realiza tal impulso, cuja inabalável vontade é

conduzir tudo e todos em direção a Deus. E de que poder dis-

põem os homens contra quem tem a seu favor as leis da vida e a

ajuda de Deus? Quem alcançou o plano do espírito vive acima

do mundo. Nesta condição, nenhuma pressão ou submissão po-

de mais alterar tal estado de fato. Quem viveu tais experiências

pode compreender o que estes conceitos significam.

Mas, observando as coisas de outro ponto de vista, poderí-

amos perguntar se os tribunais humanos têm o direito de infligir

dores a um inocente? Mesmo segundo as leis do mundo, não

seria isto um abuso de autoridade? Mas tal reação se justifica

pelo fato de cumprir a função de defender o grupo, sendo que,

na desesperada luta pela vida, não há lugar para a debilidade. O

grupo reclama o seu direito à legítima defesa de sua existência,

sendo justo, portanto, que esmague qualquer um que atente

contra ele. As forças em defesa do inovador condenado não de-

vem vir da Terra. Esta representa a parte inferior da existência,

a parte negativa, adequada à resistência. Aquele indivíduo per-

tence, pelo contrário, ao Céu, que representa a parte superior,

mais vizinha de Deus, a parte positiva e dinamizadora. Neste

caso se verifica o mesmo antagonismo que se estabeleceu ime-

diatamente entre Cristo, o maior dos inovadores em favor da

evolução humana, e o mundo, que se dispôs a ser seu inimigo,

respondendo à redenção com a crucificação.

Portanto, para quem compreendeu a estrutura do fenômeno,

tudo está no seu lugar. Cada um age como é, revelando com is-

to a sua natureza. Dado o estado involuído da humanidade, não

é possível obter nada melhor do que isto. Certamente amanhã,

graças ao trabalho de mártires inovadores, o mundo será dife-

rente. Mas cabe a eles o trabalho de transformar a humanidade

com o seu próprio sacrifício. O caso de Cristo nos mostra que,

também com Ele, em idênticas condições, verificou-se o mes-

mo fenômeno, em relação ao comportamento da classe sacerdo-

tal diante da proposta de inovações. O que mais, no entanto,

pode pedir o condenado, senão estar do lado de Cristo, ser tra-

tado como Ele foi tratado, sofrer pelo progresso, que é a reden-

ção, como Ele sofreu, permanecendo junto a Ele, irmanado na

mesma dor e pela mesma causa? Que honra, que alegria e que

amor maiores podem existir? Que se pode pedir mais?

Cada um reage segundo a sua natureza, revelando-a desse

modo. Agindo prontamente segundo a lei da luta, que é a lei do

seu plano, o primitivo se rebela contra a autoridade, manifes-

tando com isso a sua involução. O evoluído, pelo contrário, tem

em mente o “perdoa-lhes porque não sabem o que fazem” e

obedece. Mas ele pode refugiar-se no céu, onde é impossível a

autoridade alcançá-lo, pois, no tribunal de Deus, os homens não

são admitidos a julgar.

Uma humanidade mais inteligente e civilizada saberá um

dia evitar tais conflitos dolorosos de consciência, saberá defen-

der a fé mais por convicção do que por obrigação, saberá abrir

os braços para compreender os novos problemas e as necessi-

dades de quem, buscando honestamente, tem sede de verdade,

em vez de afastar a quem pede mais luz. Tais casos, como o de

Teilhard, não poderiam acontecer mais. Se eles se verificam,

obrigando o investigador honesto a se refugiar em Deus, ape-

lando para Ele, é porque há alguma coisa que não funciona no

sistema atual. Por que sepultar no silêncio, oprimindo as cons-

ciências, certos problemas novos, que o mundo tem necessida-

de de resolver, para poder continuar a crer como deseja, mas

não pode porque não chega a ver claro, como hoje a mente mais

madura o exige? Não se pode impedir de pensar a quem tem

cabeça, nem se pode cortá-la somente porque, para quem não a

tem, não lhe apetece pensar. E, quando pensar se torna uma

coisa proibida, pensa-se então por conta própria, fora das reli-

giões, que são assim colocadas de lado, como coisa inútil. Para

elas, isto significa falência e morte. O investigador honesto, por

sua vez, está obrigado, por uma questão de consciência, a re-

solver os problemas que mais o preocupam, discordando de

quem entende a fé como inércia espiritual e construindo uma

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 29

por sua conta. Apesar de condenado devido à reação dessa inér-

cia, ele representa, no entanto, a levedura do espírito, sendo

mais crente e religioso do que os próprios ortodoxos. O resulta-

do de tudo isto é um rebanho de adormecidos, agradáveis por-

que obedientes, mas passivos e inúteis perante Deus.

Um espírito antievolucionista pode representar as forças ne-

gativas, cuja função é deter a ascensão em direção a Deus. Que-

rer ficar parado, abaixando todos ao nível dos mais inertes, po-

de constituir um delito contra a evolução espiritual, que devia

ser a maior finalidade das religiões. É certo que se deve contro-

lar e disciplinar, para não gerar anarquia, mas paralisar, mesmo

que isso seja feito em nome de Deus, é contra o próprio Deus.

As religiões perdem sua função e atraiçoam o seu fim, quando

o indivíduo, para encontrar luz e compreensão, deve dirigir-se a

outro lugar. A autoridade fica espiritualmente derrotada, quan-

do surge um conflito entre ela e a consciência, mas o indivíduo

honesto tem convicção do seu dever de obedecer a Deus em vez

de obedecer à autoridade humana. Não é lícito violar o sagrado

direito de pensar e de procurar a verdade. Pode até mesmo

acontecer que um indivíduo, formalmente fora de uma religião,

seja mais religioso e esteja mais próximo de Deus do que um

seu adepto, em plena ortodoxia.

As reabilitações póstumas não podem sanear a condenação.

Como são tardias, elas servem somente para as finalidades dos

outros, e não para a obra do missionário. Este, para se manter

na sua função produtiva, tem necessidade do consenso de seus

contemporâneos, da ajuda em vida, da compreensão imediata

do seu próprio tempo. Acercar-se do próximo com compreen-

são pode ser uma forma de caridade cristã e de amor evangéli-

co, enquanto é anticristã a atitude contrária.

Nas religiões deveria existir uma seção de livres investiga-

dores, uma espécie de laboratório para as experiências do espí-

rito, um instituto de investigação religiosa. Diz Teilhard: “Es-

tou preocupado com o fato de faltar à Igreja um órgão de inves-

tigação (diferente de tudo o que existe e se desenvolve à sua

volta) (...). Esta investigação é uma questão de vida ou de morte

(...) Fato que pode surpreender os teólogos na sua vida tranquila

(...). Há, hoje, problemas que queimam, os quais ninguém colo-

ca claramente nem defronta, senão em alguma conversa reser-

vada. Existem ideias, ainda em bruto e parcialmente equivoca-

das, mas libertadoras, que germinam e morrem no espírito de

indivíduos isolados. Necessitaria, penso, de um órgão para re-

colher, centralizar e purificar tudo isto, diria quase um „labora-

tório‟ dedicado a estas experiências (...). Isto para prevenir um

cisma entre a vida humana natural e a Igreja”.

De fato o cisma atual é o mais perigoso, porque não se apre-

senta na forma já conhecida, como se dava no passado, com o

surgimento de uma nova religião inimiga, a qual se podia com-

bater, mas aparece como morte do espírito e do sistema de to-

das as religiões, com a sua extinção no materialismo e na ciên-

cia, que simplesmente não as tomam mais em consideração.

Assim, no meio da indiferença geral, o pensamento dirigente

não se interessa mais e as abandona.

O objetivo da intuição anteriormente mencionada deveria

ser o reconhecimento da necessidade não só de conservar, mas

também de progredir. Como na ciência, também nas religiões,

a investigação deveria ser livre, e não fechada e condenada. As

várias doutrinas deveriam ter, como tudo o que existe, também

uma porta aberta para o caminho da evolução. Seria necessário

superar aquela psicologia morta, pela qual comodamente se

afirma que todos os casos possíveis já foram vividos e que, por

experiência dos séculos, já foi dada resposta a todas objeções,

estando tudo já previsto e resolvido. O fato é que, enquanto as

religiões procuram detê-lo, o pensamento humano caminha e,

justamente por elas quererem detê-lo, ele se pôs a caminhar

por sua conta, fora das religiões, que são deixadas para trás

e esquecidas, com todo o devido respeito, no meio das coisas

velhas, que, não servindo mais, são colocadas no museu. As-

sim nasceu a indiferença, o materialismo, o ateísmo e outros

males semelhantes. Os micróbios patogênicos estão por toda a

parte, mas o seu ataque vitorioso depende da nossa predisposi-

ção e debilidade orgânica. Ninguém pode fugir às leis da vida,

que está sempre pronta a liquidar tudo quanto não sirva mais

para cumprir a devida função.

3) A paixão por Cristo, racionalmente concebido como ponto

de convergência da evolução da vida.

Também em Teilhard encontramos uma concepção mais

ampla de Cristo. Aparece-nos assim a visão de um Cristo uni-

versal, quase super-religioso, num sentido que está acima do

sectarismo separatista no qual as religiões tendem a se dividir,

de um Cristo que, em vez de se isolar numa delas em oposição

às demais, tende a uni-las todas, sendo concebido com a forma

mental da imparcialidade científica, em termos vastíssimos, li-

gado às leis biológicas e situado no ponto de convergência para

a última meta divina da evolução da vida.

Trata-se de um Cristo muito maior, eixo espiritual do mun-

do, alcançável tanto pelas vias do misticismo como pelas vias

da ciência, ponto Ômega tanto desta como da fé, significado e

conclusão da história, princípio, guia e cume da evolução, só

concebível desta maneira hoje devido à atual maturação do

pensamento humano. Um Cristo total, não só religioso e fecha-

do no passado, mas também progressista, atual e social. Um

Cristo que aceita a luz advinda do pensamento científico e re-

conhece o caráter sagrado da investigação, nobilitando-a e san-

tificando-a, porque é santo todo o conhecimento, como função

e produto do espírito; um Cristo que, ao invés de contra, está

com a ciência, com a ânsia de saber, com o espírito da indaga-

ção, com a paixão de evoluir; um Cristo que se desenvolve ago-

ra em dimensões vastíssimas, dentro da mente humana, a qual

está hoje apta a concebê-Lo com outras medidas; um Cristo

que, sendo mais racional, presente, dinâmico, universal, unitá-

rio, é síntese suprema de fé, de pensamento e de vida.

É necessário, portanto, refazer o nosso conceito do Cristo,

que permaneceu entre nós como imagem feita de matéria, cru-

cificado e morto, com a finalidade de nos recordar, para ver-

gonha nossa, daquilo que fizemos a Ele. Dos esconderijos on-

de Ele, jazendo coberto de pó atrás dos utensílios de culto, pa-

rece ter-se refugiado para escapar do mundo, é preciso fazê-Lo

sair, para que ressuscite vivo entre nós. Temos necessidade de

um Cristo que esteja junto a nós em todas as horas, convivendo

conosco dia e noite, assistindo a todos os nossos pensamentos

e obras, tomando parte em nossas alegrias e dores, e não um

Cristo com o qual só nos encontramos em horas fixas ou quan-

do decidimos penetrar no recinto dos templos, onde O isola-

mos fora de nosso mundo. Um Cristo imanente, próximo, que

enfrenta conosco os nossos problemas e nos ajuda a resolvê-

los, em vez de desaparecer transcendente nos céus, inalcançá-

vel na sua glória; um Cristo que orienta a dinâmica da vida,

operando junto de nós, no imenso esforço criador da era mo-

derna, potencializando-o com os seus imensos valores espiritu-

ais. Um Cristo não mais monopolizado nas mãos dos seus mi-

nistros e fechado no âmbito de uma só religião; um Cristo que

se possa venerar, sem ter que litigar com as outras religiões, e

amar em outras formas, ainda que não ortodoxas; um Cristo

que se avizinha dos espíritos com amor, e não apenas para jul-

gar e punir, afastando-os com os raios da vingança; um Cristo

feito de concórdia para fundir, e não de rivalidade para dividir,

sendo seguido porque convence e convencendo porque fala

com compreensão à inteligência, em vez de apenas condenar

como um perseguidor de heréticos; um Cristo que é refúgio da

pureza, fora de toda a sujidade humana, inclusive daquela es-

condida sob as aparências de religião.

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30 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

Eis algumas palavras de Teilhard de Chardin na sua Messe

sur le Monde: “Já que, Senhor, aqui nas estepes da Ásia, eu não

tenho nem pão, nem vinho, nem altar, me elevarei por sobre os

símbolos, até à pura Majestade do Real, e vos oferecerei, eu,

vosso sacerdote, em cima do altar da terra inteira, o trabalho e a

dor do mundo (...). O meu cálice e a minha patena são a pro-

fundidade de uma alma amplamente aberta a todos os esforços

que se estão elevando de todos os pontos do globo a fim de

convergirem no espírito (...). A oferta que Vós, Senhor, verda-

deiramente esperais, não é outra senão o engrandecimento do

mundo agitado pelo transformismo universal”.

Cristo pertence a toda a humanidade, e nenhuma religião

pode possuí-Lo com exclusividade. Não se pode isolá-lo num

templo particular ou num grupo humano, porque Ele está no

centro da biologia universal do espírito. Este Cristo, de dimen-

sões cósmicas, superior a todas as formas e dimensões huma-

nas, situado no centro de uma super-religião de substância, no

vértice da evolução da vida no planeta, nos antípodas da nossa

baixa existência terrena, sempre presente para curar com o Seu

divino esplendor a nossa cegueira e sanar com a Sua potência e

bondade as misérias de nosso pobre mundo, é o Cristo que, jun-

to a Teilhard, eu venero e amo.

II – Ciência e Religião

Voltamos a falar, para compreendê-lo melhor, do pensa-

mento de Teilhard de Chardin. Observando os fenômenos, so-

bretudo no seu íntimo significado, ele chegou a uma visão do

plano geral da existência, no qual domina o princípio da evolu-

ção, que faz do ser um transformismo em marcha. O conheci-

mento do passado hominal fez Teilhard entrever as perspectivas

em direção às quais se encaminha aquela marcha e, portanto,

aquilo que o homem poderá no futuro realizar na Terra. Então

Teilhard se sentiu iluminado por uma súbita luz orientadora. Se

tudo caminha, é porque tudo se dirige a uma meta que, com es-

te movimento, deverá ser alcançada. Tudo tende a completar-se

e aperfeiçoar-se, porque sobe de encontro a um centro, em dire-

ção ao qual tudo quanto existe se eleva, à medida que vai evo-

luindo. Não se trata de um centro físico do universo, mas de um

centro-síntese, no qual a pulverização fenomênica se coordena

e se organiza, chegando assim, da dispersão periférica, a um es-

tado unitário, orientado em direção àquele centro. A evolução

revela-se-nos como um fenômeno de síntese múltiplo, que rea-

liza muitas coisas, levando à ascese, ao aperfeiçoamento e ao

melhoramento, mas também alcançando a complexidade, a or-

ganicidade e a unificação. O ponto de chegada é o Todo-Uno.

Quando a consciência de uma verdade tão vasta e poderosa

lampejou no seu espírito, Teilhard não pôde deixar de gritar: Eu-

reca! Ele tinha sido conduzido até ali pela ciência, que, apoiada

nos fatos, caminhava com o seu passo seguro. Não podia, por-

tanto, duvidar. Tudo isto lhe diziam os fatos com mil vozes con-

cordantes e convergentes. Então ele, tendo-se dado conta que es-

te era o significado da existência, não pôde deixar de ver as con-

sequências desta sua descoberta. Eis como ele acabou por se de-

dicar, além da ciência, à filosofia, à metafísica e à teologia.

Ora, todo grupo humano, de qualquer espécie, seja escola fi-

losófica, religiosa, teológica etc., tem o seu patrimônio de idei-

as e terminologia própria, a sua forma mental e linguagem par-

ticular, que enquadram o pensamento, cristalizando-o, e é den-

tro destes padrões que o grupo pretende encerrar e limitar tam-

bém o pensamento de quem enfrenta os problemas por eles tra-

tados. Mais tarde, quando aquele pensamento chega a uma fase

avançada de velhice e de consequente cristalização, fixando-se

numa codificação de normas mecânicas para uso de uma de-

terminada organização humana, tudo se estanca e, naquele

campo, a evolução para. Então o novo é simplesmente julgado

errado e, portanto, condenado. As verdades tratadas por aquele

grupo e escola se tornam propriedade sua e, portanto, são reser-

vadas e intocáveis. No entanto isto é justo, afinal elas foram

construídas por eles, que têm assim o direito de possuí-las com

exclusividade e de defendê-las como coisa própria. O erro está

em querer dar à posse da verdade um sentido diverso e maior

do que o de legítima propriedade, reservada para uso e vanta-

gem de quem a possua. O erro está no fato de grupos e escolas

pretenderem dar um valor universal, eterno e absoluto às suas

verdades particulares, que, como tudo na Terra, não podem ser

senão relativas e progressivas no tempo.

O que aconteceu então a Teilhard? Aconteceu como acon-

tece a todos inovadores, quando eles, vendo mais longe do

que os outros, quiseram fazê-los ver mais longe também, para

além dos limites das verdades já vistas e codificadas por eles.

É neste ponto que aparecem as condenações. Os precursores,

desde Cristo a Galileu etc., são condenados como heréticos.

Estamos observando imparcialmente o mesmo fenômeno, que

se apresenta em todos os tempos e lugares, religiões e parti-

dos, porquanto constitui um fenômeno biológico, o qual se ve-

rifica segundo uma lei da vida, toda vez que um indivíduo

mais progressista queira arrastar os mais atrasados para frente

no caminho da evolução.

Eis o que aguardava Teilhard quando, ao ser iluminado pela

visão de uma verdade muito mais vasta e convincente, sentiu-se

impulsionado a gritá-la ao mundo. Foram novos conceitos, ex-

pressos com uma nova linguagem, que, soando dissonantes

àqueles ouvidos, habituados à velha terminologia tradicional, fo-

ram julgados estranhos e inaceitáveis para aquela forma mental,

acostumada aos destilados processos lógicos da filosofia e teo-

logia, parecendo um terremoto numa cidade adormecida, uma

tempestade de absurdos sobre um lago tranquilo ou sobre um

jardim bem tratado. Então os conservadores se precipitaram em

levantar barreiras de defesa, para calar aquele escandaloso “eu-

reca”, que pretendia resolver tudo, fazendo abandonar a velha

estrada sobre a qual caminhava tão bem a sua antiga sapiência.

Este foi o martírio de Teilhard, assim como o de todos os

inovadores: tropeçar nestes obstáculos, colocados no meio do

caminho, para tentar deter a evolução. Tropeçar, cair e lacerar a

carne, pois quem é velho teve tempo de se tornar poderoso na

Terra, mantendo bem agarrado nas mãos o fruto do trabalho

executado no passado, com a propriedade adquirida de concei-

tos, doutrinas, organizações, instituições, leis, autoridades etc.,

estando, por lei biológica, sempre pronto a usar estas suas for-

ças como arma para defender a sua sobrevivência.

Mas a visão de Teilhard é esplêndida. Ele a vê e fica fasci-

nado por ela. Os outros não a veem e a negam. Mas por que as

autoridades condenam com tanta pressa? Talvez porque tenham

medo do novo. Certamente que, dada a estrutura das leis da vi-

da, o novo deve representar para o velho uma ameaça contínua,

porque tende a superá-lo e substituí-lo. É a vida que avança.

Assim se explica esta reação. Mas Teilhard viu e não pôde ca-

lar. Discute-se nos ambientes tradicionais se ele podia ou queria

fazer teologia ou filosofia. Ora, se é justo que a solução de de-

terminados problemas constitua uma propriedade reservada, por

ser o produto de certos ambientes particulares, nem por isso se

pode declarar que tudo seja reservado como propriedade, com o

propósito de excluir os outros de um dado terreno fenomênico,

de um determinado tipo de investigações e conclusões, de um

setor do conhecimento. Como é possível pôr limites ao pensa-

mento humano? Com que direito se pode proibir ao cientista de

ultrapassar os resultados imediatos? Como impedir que ele olhe

mais longe do que outros e, assim, saia do terreno da ciência,

para expandir-se na filosofia, metafísica e teologia? É impossí-

vel seccionar o conhecimento em compartimentos estanques,

isolar um problema dos outros ou deter-se no exame de um fe-

nômeno e de uma lei, sem ver em cada campo todas as conse-

quências. Isso é impossível num universo unitário, que, mesmo

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 31

com tudo se subdividindo depois em infinitas ramificações, é

regido por um princípio central único.

Como pretender que alguém, ao ver o novo, não seja imedi-

atamente levado a colocá-lo na vida, no lugar do velho? Impe-

di-lo é atentar contra o progresso, é delito de lesa-evolução.

Quem viu é levado a se transformar em reformador, para fazer

o mundo progredir. Eis uma razão a mais para reforçar a con-

denação por parte dos poderes constituídos.

O problema é que se trata de indivíduos mais evoluídos. Por

isso mesmo é difícil que possam ser subitamente compreendi-

dos e aceitos. Eles, pelo fato de serem mais avançados, veem

que muitas posições estão ultrapassadas e necessitam ser reno-

vadas. Os outros, menos evoluídos, não se dão conta de nada.

Para estes, o mundo se encontra bem e deve permanecer como

está. Ressurge sempre o princípio biológico da luta. Os jovens

rebentos devem abrir caminho à força entre as ruínas das velhas

árvores decadentes, que não cedem o posto à nova vida, en-

quanto têm forças para resistir.

Como pode um cientista que viu, não fazer da sua ciência

também uma filosofia e teologia, invadindo, mesmo que não o

queira, estes terrenos reservados? Ele sente que sua filosofia e

teologia são as do futuro, aquelas que o mundo procura, porque

quer viver e resolver cada vez melhor os seus problemas. Per-

cebe instintivamente que, se renunciasse a ocupar-se deles,

adormecendo sem lutar para avançar, ficaria abandonado à

margem do caminho da vida.

Quando, num terreno, encontramos escrito: “Propriedade re-

servada. Proibido o ingresso a estranhos”, seguimos para outro

lado, e a bela propriedade fica intacta e deserta. Mas ela se torna

vazia e morta, porque não é habitável uma casa que foi reduzida

a um museu de antiguidades, e a vida, que ninguém pode deter,

vai então desenvolver-se em outro lugar. Foi para evitar tudo is-

to, apesar de, por obediência, ser-lhe proibido, que Teilhard quis

entrar nos terrenos reservados à filosofia e à teologia e entrar ne-

les como cientista, com conceitos novos e vivificantes.

A teoria evolucionista nos dá um conceito novo do univer-

so e da existência. O todo não foi feito por Deus de uma só

vez, para sempre, de improviso, num dado momento. Pelo

contrário, ele está continuamente se formando. O todo é resul-

tado de uma criação contínua, obra de um Deus sempre ativo

e presente, e não de um Deus que, uma vez tendo realizado

sua criação, afastou-se dela, para ficar inerte, contemplando-a

do alto de Sua glória, separado do fruto de Sua obra, que con-

tinua a existir estaticamente, por si mesma, agora independen-

te da ação do Seu criador. Para imaginar a atividade de Deus,

o homem não tinha em sua mente outro modelo, senão aquele

acessível a ele na Terra, quando se constrói qualquer coisa.

Assim, inconscientemente, aplicou a Deus esta sua concepção

antropomórfica, da qual não podia sair, porque não lhe era

possível superar os limites em que o seu concebível estava

encerrado, fixados pela sua experiência.

Hoje, tende-se a substituir a concepção antropomórfica e es-

tática da Bíblia por uma outra, dinâmica, mais verossímil, que

melhor convence a mente moderna, mais madura. Certamente,

a superação dos velhos conceitos tradicionais é laboriosa, mas

fatalmente ocorrerá. O homem já não é mais considerado se-

gundo uma concepção egocêntrica, que o torna único objetivo

da criação, situado num planeta que é o centro do universo. O

orgulho pode ser considerado culpa, quando há um rival que

por ele se sente lesado e, por isso, o condena. Mas, quando é de

todos, o orgulho se torna uma autoexaltação coletiva e, na falta

de uma reação contrária, é aceito por consenso universal, de

modo que, sendo vantagem para todos, torna-se verdade. Hoje,

vemos o homem como elemento de uma imensa unidade orgâ-

nica. Ele não nasceu de uma vez, feito num só momento, mas é

antes o resultado de um longo caminho percorrido, de formas

biológicas inferiores superadas, que o precederam e encontram

nele a razão da sua existência, a continuação do seu caminho e

a coroação da sua obra evolutiva.

Trata-se de uma concepção nova, muito mais vasta e dinâ-

mica, que nos abre a mente para horizontes imensos. Ora, con-

forme já nos foi demonstrado pela ciência, sabemos que existe

um caminho evolutivo. Se pensarmos, então, até aonde este ca-

minho poderá nos levar, quão grandiosa visão se abre diante de

nós! Religião, ética, espiritualidade, ideais, tudo adquire um sig-

nificado positivo, uma possibilidade de atuação concreta. Estas

abstrações se tornam vivas e atuantes em nossa existência, não

só como aspirações, mas para se realizarem em função do gran-

de fenômeno da evolução. Só assim poderemos retirar as velhas

concepções filosóficas e teológicas das estantes empoeiradas,

onde têm sido respeitosamente conservadas, e trazê-las para jun-

to de nós, a fim de que se transmudem em formas de vida. Deve-

ríamos compreender que o novo não surge para matar o velho,

do qual a vida fatalmente escapará, mas somente para substituí-

lo, processo esse cuja finalidade é permitir a continuação da vida

em novas formas, que não excluem as do passado, mas somente

as completam e as fazem avançar. Não há doutrina religiosa ca-

paz de deter estas leis, que são as leis da vida. Eis o que querem

os inovadores, e eis o que irresistivelmente, através deles e utili-

zando-os como seus instrumentos, impõe a evolução.

Do evolucionismo nasce, no lugar da velha moral estática,

uma moral dinâmica. A nova ciência nos diz que a vida evolui

em direção à espiritualização, sendo este, portanto, o nosso

porvir. O passado nos mostra qual deverá ser o futuro, porque

este não pode ser senão o prolongamento daquele, como sua

continuação lógica. A nossa vida adquire assim um significado

profundo, porque ela existe na direção de uma meta que pode-

mos racionalmente prever qual seja. Caminha-se e sabe-se para

onde se vai. Daquilo que nos mostra a nossa história geológica

e paleontológica, podemos positivamente deduzir qual será o

nosso futuro. Caminhamos em direção a novas grandes afirma-

ções no campo intelectual e espiritual, com infinitas conse-

quências de todo o gênero. Tudo assume um valor construtivo.

O processo evolutivo tem as suas leis, mas o trabalho de reali-

zá-lo está em nossas mãos. Somos nós que temos de executá-

lo. Nós somos os construtores de nós mesmos, cooperando

com a contínua obra criadora de Deus. Nunca estamos sozi-

nhos. Todas as outras formas de existência estão junto de nós e

vão avançando conosco, no mesmo caminho. A ciência já co-

meça dirigir-se para uma síntese, cerzindo os retalhos da espe-

cialização em que ela se ramifica e se subdivide. Ligando os

vários momentos do conhecimento, ela se orienta em direção à

unificação de todos os fenômenos num princípio central. Fatos

isolados, dos quais primeiramente não se conhecia o nexo re-

cíproco, integram-se numa complexidade orgânica e funcional,

até formarem uma imensa sinfonia, na qual se sente encontrar

a suprema visão do universo.

Será irreligioso tudo isto? Mas esta é precisamente a mais

elevada religião do futuro, a do homem inteligente e consciente,

que substituirá o homem ignorante e instintivo de hoje. E, para-

lelamente, a ética também se transformará. A esta religião maior

é possível que as atuais resistam. Hoje, porém, vivemos no mo-

mento crítico da virada. Atingimos o ponto em que o homem,

por haver avançado ao longo da evolução, vê-se obrigado a in-

verter a sua posição, pois não gravita mais em direção ao polo

negativo do ser, representado pelo fundo da involução, que

chamamos de Anti-Sistema (AS), mas sim em direção ao polo

positivo, representado pelo vértice da evolução, seu ponto de

chegada, que chamamos Sistema (S). Assim, à força de subir,

evoluindo do Anti-Sistema para o Sistema, o homem acabou por

entrar no campo gravitacional prevalentemente positivo, saindo

e afastando-se cada vez mais daquele prevalentemente negativo.

Esta é a mais profunda revolução da vida, pois agora o seu

centro de atração muda, de modo que o sinal do seu campo de

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32 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

ação se inverte de negativo para positivo. De hoje em diante

tenderá a prevalecer o positivo sobre o negativo. Positivo e ne-

gativo significam dois tipos de existência opostos, sendo o se-

gundo vivido nos planos inferiores, e o primeiro, nos planos

superiores, mais evoluídos.

Certamente trata-se de conceitos novos, os quais nós, junto

com Teilhard, também sustentamos, diferindo apenas nos deta-

lhes, não sendo surpresa eles desconcertarem as velhas formas

mentais, que não estão habituadas a estas ideias. É natural, en-

tão, que conceitos e terminologia sejam diferentes. No entanto,

apesar de cada um vê-lo de modo diferente, o pensamento fun-

damental que rege o universo é uno e não pode deixar de ser

percebido, desde que o indivíduo tenha os olhos adaptados e

saiba abri-los para ver. Desaparece, assim, a oposição entre es-

pírito e matéria, que são apenas pontos diferentes de um mesmo

transformismo fenomênico. Física e moral baseiam-se num

princípio comum. Ciência e espírito, conhecimento e moral,

têm as mesmas raízes. E Teilhard não podia deixar, ele tam-

bém, de ver a unidade fundamental de todas as coisas. Quem

viu compreende e ama a Teilhard, porque ele também viu.

Quem não viu não compreende e o condena, pois, usando a sua

pequena e velha medida, feita para medir limitados conceitos

antropomórficos da Terra, não pode compreender as ilimitadas

concepções astronômicas do homem do futuro.

É natural, partindo de gigantescas premissas, que já não seja

possível concluir unicamente em favor de um grupo particular

humano. Superada a forma mental egocêntrica, que criou para si

um universo antropomórfico, já não é possível fazer dos princí-

pios ideais um meio para sustentar interesses humanos. Deverá

assim, automaticamente, desaparecer o sectarismo partidário e o

separatismo religioso. Estas são as fases primitivas do pensa-

mento religioso, que, para descer à Terra, foi obrigado a sub-

mergir na sua lei, que é a luta de todos contra todos pela sobre-

vivência. A religiosidade do futuro transcende a Terra, o nosso

mundo e as sua organizações, não podendo encerrar-se nas fór-

mulas de nenhuma religião particular, todas isoladas entre si,

num clima de divisionismo e de disputa pela sua própria inter-

pretação da mesma verdade, rivais e dispostas a se combaterem

umas às outras. A cosmogênese não pode culminar e se exaurir

num só profeta. Trata-se de uma religiosidade tão vasta, que po-

de abarcar todas as formas de vida, incluindo não só aquela en-

contrada na matéria, mas também a dos outros seres que vivem

nos planetas das mais longínquas galáxias. Os conceitos tradici-

onais não servem mais. Isto, porém, não significa destruição, e

sim ampliação. Está para surgir um novo testamento de todas as

religiões, que irá inicialmente fundi-las ou, pelo menos, aproxi-

má-las uma das outras, irmanando-as, como se constituíssem as-

pectos diversos e complementares da mesma verdade. Sem des-

truir nada, este novo testamento não só continuará o velho, res-

peitando-o, mas também o ampliará, completando-o. Ele será

oferecido pela ciência a uma humanidade que sentirá a necessi-

dade e terá a capacidade de compreender. Esta nova humanidade

sucederá à do passado, que, sem tal necessidade e capacidade,

não sabia fazer outra coisa, limitando-se a crer.

O que pode impressionar o homem é a angustiosa sensação

de sentir-se um átomo perdido na imensidão do universo. No

passado foi o medo das feras, do inimigo e dos elementos de-

sencadeados. Hoje, a ciência nos fez ver um infinito cheio de

novos mistérios e de vazios, descobrindo a possibilidade de

perigos ainda maiores. E ela quer chegar até à Lua, para saber

o que existe lá. Daquele medo nasceram as religiões, para nos

dar uma proteção, tornando útil a divindade. Foi delas que

nasceu a fé, para nos consolar e, com isso, suprir tudo que

ainda não se sabe. Mistérios, religiões e fé estão de fato uni-

dos por estreito parentesco.

Ora, a tarefa da evolução humana é justamente aquela que a

ciência está realizando hoje, ou seja, substituir cada vez mais o

mistério e a respectiva fé pelo conhecimento, para mudar a posi-

ção do homem, afastando-o cada vez mais das trevas da igno-

rância (AS) e levando-o em direção à luz do conhecimento (S).

Crer, então, segundo as religiões, mas conhecer cada vez mais

segundo a ciência; crer cada vez menos com os olhos fechados,

como ignorantes, e cada vez mais com os olhos abertos, como

conhecedores; empurrar sempre o mistério para mais longe de

nós, iluminando a estrada com a nossa inteligência. Fazer isto

significa trazer Deus cada vez um pouco mais para a Terra, ao

invés de ficarmos passivos na expectativa. Devemos nos tornar

ativos, manifestando a nossa vontade no esforço de conquistar.

No entanto vemos que se procurou fazer do mistério um cômodo

refúgio, para nele se aninharem os preguiçosos, inimigos de toda

a febre de pesquisa e de toda a novidade que perturbe o seu so-

no. Mas Deus quer que realizemos o nosso progresso; quer que

seu pensamento e sua vontade se manifestem cada vez mais em

nossa vida; quer que O compreendamos e com ele colaboremos

como seus operários, para subirmos. Porém Deus não desce à

Terra gratuitamente. O homem deve realizar o esforço de se ele-

var em direção a Ele, para Dele extrair aquilo que pode sentir e

compreender. Cabe-nos subir a montanha da evolução com nos-

sas pernas. Devemos carregar a cruz da redenção em nossos

ombros, porque é absurdo nos servirmos dos ombros de Cristo,

para que seja ele o crucificado em vez de nós.

A ciência é um esforço da inteligência para subir a Deus,

mesmo quando O nega, pois, nesse momento, ela representa a

tarefa de resolver os problemas e descobrir a verdade com seu

próprio trabalho, por si mesma, em vez de aceitar tudo pela fé,

gratuitamente, já resolvido, sem labor, abandonando-se passi-

vamente nas mãos de um Deus que invocamos para nos socor-

rer. A época da concepção estática do universo e da vida, que

encorajava a nossa inércia mental, qualificando-a como virtude,

está superada. Hoje, abre-se o caminho para a concepção dinâ-

mica, pela qual percebemos que o paraíso não se conquista so-

mente com a negação da vida terrena e com a renúncia, mas so-

bretudo pela afirmação de um modo positivo, trabalhando e

conquistando no terreno do pensamento e do espírito. Então, se

a ciência foi, em princípio, considerada inimiga das religiões,

porque perturbava o sono de quem, tendo-se acomodado dentro

delas, via nas descobertas uma ameaça (pois destruíam o misté-

rio, seu elemento de domínio), hoje ela representa o caminho

para chegar à religião do futuro, que, tal como a ciência, será

universal, sem possibilidade de escapatórias, verdadeira para

todos, convincente porque demonstrada pela lógica e pelos fa-

tos. Uma religião que, por ser mais inteligente e consciente, re-

presentará uma posição espiritual mais avançada, com um mai-

or grau de compreensão do pensamento de Deus.

◘ ◘ ◘

Assim como Teilhard de Chardin não pôde deixar de gritar

“Eureca”, quando teve a visão da unidade orgânica do universo,

também não pode deixar de gritar “Eureca” quem, tendo obtido

por sua conta a mesma visão, percebeu que já não se encontra

mais só, pois viu que outro também a obteve, encontrando nele,

no percurso da mesma estrada, um companheiro e um amigo. De

resto, é natural que sejam vários a ver a mesma coisa. A verdade

em si é uma só. A nova realidade pré-existe à nossa descoberta.

Esta não cria nada, apenas revela o que já está resolvido pela na-

tureza e em funcionamento, sem que disso tenhamos consciência.

Eis que começa a se delinear a nova religião científica, raci-

onal, comprovada, convincente, aquela que as religiões deverão

ter como referência e alcançar, se quiserem sobreviver na mente

moderna. Já não mais apenas revelação e tradição, mas também

ciência, uma ciência que se prolonga na religião, elevando-se e

continuando no plano do espírito, para se completar com crité-

rios positivos no terreno ético e social. Esta é a tendência atual

do desenvolvimento da ciência, no sentindo de se dilatar cada

vez mais, invadindo todos os campos do pensamento e da ação.

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 33

Não se trata apenas de transformar as religiões, para que sejam

concebidas diversamente, mas também de transformar a ciência

atual, para que dela se adquira um novo conceito. Então o mate-

rialismo, o agnosticismo, o cepticismo, o ateísmo, tornam-se

coisas superadas. A mente humana, pelo menos nas suas gran-

des linhas e orientação geral, avança em direção à solução do

problema do conhecimento, o que implica também a resolução

de muitos outros problemas menores. É inegável que as barrei-

ras do mistério, anteriormente imóveis, estão retrocedendo. Is-

to, porém, é fruto de um trabalho que se realiza fora das religi-

ões e sem a sua participação, porque a maior preocupação delas

não é a pesquisa de mais vastas e profundas verdades, mas sim

a conservação dos velhos dogmas, sobre os quais se baseiam as

suas posições terrenas. Sendo assim, o progresso do pensamen-

to, dado que não pode ser parado, continua a avançar por sua

conta, deixando para trás as religiões.

O próprio Teilhard afirma a possibilidade de um novo mé-

todo de pesquisa, por nós já sustentado e praticado, que é a su-

peração do racional por meio da intuição. O problema do co-

nhecimento não se esgota mais no estudo dos aspectos positivos

e científicos da natureza, mas exige que a investigação seja le-

vada até ao prolongamento espiritual e místico daqueles aspec-

tos. Quando se chegou a compreender que matéria e espírito,

hoje concebidos como dois termos antagônicos inconciliáveis,

são redutíveis à mesma substância fundamental, os atritos entre

a forma mental da ciência e das religiões podem desaparecer,

sendo possível fundir, numa só, as duas concepções do ser. Elas

assim, em vez de se excluírem, integram-se, tornando-se indis-

pensáveis uma à outra, como duas partes da mesma unidade.

Hoje, estes dois aspectos parciais e complementares da mesma

verdade estão se combatendo, cada um pretendendo constituir o

todo, e não uma parte. Ambos negam um ao outro, quando são

apenas duas afirmações incompletas, que se procuram uma à

outra, para se completarem, como duas perspectivas da mesma

realidade, observada sob dois pontos de vista diversos e em

função de pontos de referência diferentes.

Hoje, o conhecimento está entrando em uma nova dimensão

da cosmogênese. A mente humana é levada pela evolução a

amadurecer até chegar à compreensão de novas concepções.

Daí nasce uma forma mental nova, da qual deriva uma trans-

formação da vida do homem em todos os campos. Até um pas-

sado recente, o homem se julgava nascido rei do mundo, a obra

prima de Deus, num universo feito para ele. Hoje, o nosso pla-

neta tornou-se um grão invisível num universo que milhares de

anos-luz não bastam para atravessar, onde a nossa humanidade,

perante a vida universal espalhada nas galáxias, pode reduzir-se

a uma microscópica cultura de bacilos. O homem está superan-

do a forma mental pueril, segundo a qual fazia a sua interpreta-

ção antropomórfica do universo. Começa-se a pensar tudo outra

vez, em termos de uma nova cosmogênese, com dimensões

imensamente mais amplas. Somente no começo, tudo isto podia

levar ao ateísmo os iniciadores da ciência, demasiadamente

apressados em concluir. Hoje, tudo isto leva a Deus, mas atra-

vés de um modo mais elevado e completo de concebê-Lo. A

tendência mais adiantada não é a destruição da ideia de Deus,

mas apenas a superação daquela ideia particularmente humana

que o homem, até agora, produziu com a sua cabeça, limitando-

se a projetar-se a si próprio. A luta é apenas contra o antropo-

morfismo, mas as religiões a entenderam como se fosse contra

elas, porque se identificavam com este antropomorfismo. Com-

batê-lo era interpretado como combater essas religiões, quando

o que se combatia era o modo de conceber Deus, ilógico e ina-

ceitável, que levava ao ateísmo. E, combatendo o antropomor-

fismo, lutava-se contra aquele ateísmo, em favor das religiões,

que ele ameaçava. O que leva ao ateísmo não é a ciência, mas o

antropomorfismo religioso. Somente deste há necessidade de

nos libertarmos, e jamais da ideia de Deus.

Houve uma época em que a evolução aparecia como uma

ameaça às verdades religiosas e, por isso, era condenadíssima.

Atualmente, ela pode ser entendida como uma sua confirma-

ção. O conhecimento do passado animal do homem nos leva a

vê-lo ao longo de um caminho de contínuas superações, o que

significa observá-lo em função do seu futuro super-humano,

no qual aquilo que se deve realizar é a espiritualidade intuída

pelas religiões, é o ideal por elas sustentado, é o reino dos céus

proclamado por Cristo. Eis então que, em pleno acordo tanto

com as religiões e a moral por elas pregada como com o evo-

lucionismo científico, pode-se implantar uma antropologia va-

ticinante, que estuda a antropogênese, para levá-la adiante e

orientá-la em direção ao futuro, transformando-se num guia

iluminado da evolução do homem. Realizações até hoje impos-

síveis para as religiões, que têm estado fechadas numa ordem

de conceitos totalmente diversa.

Como sustentamos no volume Princípios de uma Nova Éti-

ca, trata-se de chegar a uma moral positiva, científica, racio-

nal, demonstrada, para substituir a atual, que é empírica, pro-

duto instintivo do subconsciente. Isto não significa que esta

não tenha o seu significado e valor, pois tudo quanto é produto

da vida, que sempre sabe o que faz, tem sempre o seu valor.

Porém, neste caso, perante produtos mais evoluídos, controla-

dos pela razão, a moral vigente constitui um produto mais

elementar e involuído, como são os provindos do subconscien-

te, depósito das experiências inferiores do passado. Repete-se

sempre o motivo do velho e do novo testamento. E isto tam-

bém prova a evolução. O velho permanece, porém é arrastado

mais adiante. Não se trata de destruição, mas sim de superação

por amadurecimento. A vida nunca destrói em sentido absolu-

to, somente transforma, e é neste sentido de ressurreição que

elimina o velho. Este íntimo trabalho da existência nunca se

detém, e ninguém poderá detê-lo jamais.

Continuando a ler Teilhard, notamos que ele soube ver e

sustentar uma outra grande verdade, a qual nos leva a conceber

a vida de outro modo. Para compreender o homem, é necessário

vê-lo como ele realmente é, em função das leis biológicas que

regem o plano de evolução no qual ele se encontra situado, e

não abstratamente, separado desta realidade em nome de prin-

cípios a ela estranhos. Tudo que diz respeito ao homem, cada

produto da sua atividade – ética, economia, política, religião

etc. – é entendido em função das leis da vida, dentro das quais

ele se move e às quais, sem saber, obedece. Todo fenômeno

que se refere ao homem é, portanto, uma função biológica –

única forma de se poder compreendê-lo – e está, como fenôme-

no antes de tudo biológico, inteligentemente dirigido aos fins

da evolução. Também tudo isso nós sustentamos e explicamos.

Até hoje o homem foi, por instinto, inconscientemente guia-

do por estas leis. Trata-se agora de conhecê-las, para saber aon-

de elas nos dirigem, a fim de, tanto quanto possível, segui-las

com conhecimento e consciência, intervindo ativamente em co-

laboração com elas, para acentuar sua ação com a adesão de

nossa vontade, o que nos permitirá alcançar melhor o fim su-

premo em direção ao qual tudo está evoluindo, que constitui a

nossa verdadeira vantagem. A biologia se tornará assim uma ci-

ência universal tão vasta, que abarcará também uma biologia do

espírito, uma biologia do ideal, uma biologia das religiões, da

teologia, da ética, da economia, da política, porque tudo aquilo

que o homem faz é uma expressão das leis da vida e em função

delas é realizado. A questão é conhecê-las. A observação dos fa-

tos as revela, e podemos lê-las escritas na realidade, onde as en-

contramos em pleno funcionamento. Então aparecem os víncu-

los que ligam e levam à unidade as várias formas de pensamento

e de atividade humana. Todas elas nada mais são do que a mani-

festação de um contínuo trabalho de amadurecimento evolutivo,

de uma íntima elaboração da vida para subir, sendo apenas mo-

mentos diversos, no espaço e no tempo, de um mesmo cresci-

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34 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

mento orgânico e universal: a evolução, que, em seu irrefreável

impulso, arrasta a vida e, portanto, tudo que existe.

Eis a grande concepção teilhardiana: a cosmogênese em

contínua ascensão e a constatação de que o homem, agora tor-

nado adulto, está maduro para tomar a direção da evolução da

vida no seu planeta e, por isso, deve assumir conscientemente

essa tarefa, tornando-se responsável por ela. Nessa imensa tare-

fa não falta trabalho para as religiões, que deveriam inteligen-

temente cooperar na realização das leis da evolução e do seu

imenso programa de ascensão, que representa o conteúdo fun-

damental daquelas religiões. Não se trata da morte das religi-

ões! Trata-se da morte da sua forma atual atrasada, para ressur-

girem numa outra mais avançada e potente. Como sempre,

também neste caso, que não pode constituir exceção, a vida

destrói só para reconstruir mais acima. Seria absurdo o contrá-

rio, dado que a tendência suprema da vida é subir. As religiões

deveriam compreender a grande vantagem que representa para

elas transferirem-se para tais dimensões superiores, nas quais,

queiram elas ou não, a vida hoje exige que se situe quem quiser

sobreviver. É inútil resistir às suas leis, e quem o fizer será eli-

minado, sendo deixado para trás no caminho da evolução.

Eis as palavras de Teilhard3: “Até agora, a antropologia

havia sido considerada, de uma maneira geral, como uma pura

descrição do homem do passado e do presente, individual e

socialmente. De agora em diante, o seu princípio central de

interesse deveria consistir em guiar, promover e operar a evo-

lução do homem. Os não biólogos esquecem muitas vezes

que, sob as variadas regras da ética, da economia e da política,

encontram-se inscritas na estrutura de nosso universo certas

condições gerais e imprescritíveis de crescimento orgânico.

Determinar, no caso do homem, estas condições básicas do

progresso biológico, deveria ser o campo específico à nova

antropologia: a ciência da antropogênese, a ciência do desen-

volvimento ulterior do homem”.

Conceitos novos e vitais de Teilhard, que sustentávamos

antes de conhecê-lo4. Não podemos verdadeiramente compre-

ender o homem, colocando-o dentro de uma biologia que, evo-

lutivamente, ele ainda não alcançou e cujas leis, portanto, não

são as suas. Isto serve para educá-lo, mas não para compreen-

der as razões da sua conduta. O homem deve ser visto em fun-

ção da biologia do animal, porque esta é a biologia do seu pas-

sado, através da qual o próprio homem se construiu como ele é

hoje, porque este é o caminho percorrido por ele para chegar

até aqui, com a sua história escrita no seu subconsciente, que

constitui a forma mental que o dirige. Certamente, dizer ao

homem que Deus o criou à sua imagem e semelhança pode ser

útil para efeitos educativos, enquanto o investe de uma digni-

dade que ele, através da sua conduta, sente-se compelido a res-

peitar. Se quisermos, porém, compreender o homem nos seus

impulsos, instintos e ações, devemos vê-lo em função das for-

mas de vida já vividas por ele, na sua posição no topo da esca-

la zoológica, da qual ele emerge, mas faz parte, ou seja, obser-

vá-lo em relação à sua posição biológica, e não metafísica,

pois, ainda que esta represente o futuro a ser vivido, o homem

ainda conserva em si os traços mais profundos daquela outra,

já vivida, bem diferente do tipo metafísico.

Todavia é necessário também admitir que apenas a biologia

do animal não basta para compreender o homem inteiramente,

porque ele não é feito somente de recordações do passado, mas

também de pressentimentos do futuro, ainda que sejam vagos.

Aquela biologia se completa, portanto, com a biologia do espí-

rito e do ideal, que existe na crista da onda da evolução, onde

vivem isolados alguns precursores do futuro.

3 GUENOT – Conferência do padre Teilhard ao “Viking Fund” (N. do A.) 4 Problemas do Futuro – Cap. III: “Experiências em Biologia Trans-

cendental” (N. da E.)

Mas é verdade também que seria um erro crer na possibili-

dade de se chegar a esta biologia do espírito apenas por abstra-

ções metafísicas, sem ligação com a biologia do animal, pois é

desta que aquela superestrutura deriva, é sobre esta que ela se

baseia e se eleva e é nesta que ela tem as suas raízes e prece-

dentes, que a explicam e justificam. De um polo a outro, há di-

versos níveis evolutivos, tratando-se do mesmo fenômeno em

continuação de desenvolvimento. Somente assim, havendo

compreendido o passado, poderemos não apenas compreender a

existência de uma biologia do espírito, mas também prever ra-

cionalmente seu futuro desenvolvimento e o conteúdo dos esta-

dos superiores aos quais a evolução, elevando-se logicamente

sobre aquele passado, poderá nos levar.

Não se pode esquecer qual a estrutura da matéria prima bio-

lógica a ser elaborada, que, constituindo as bases da nova criação

evolutiva, deve ser levada adiante pelo progresso. Mesmo nas

supremas criações espirituais, é necessário sempre ter em conta a

realidade biológica e jamais se separar dela, para não naufragar,

isolando-se em sonhos fora da vida. Esta é a verdadeira posição

equilibrada, ou seja, aceitar como ponto de partida a natureza

animal do homem – mesmo sendo ele destinado a alcançar os

mais altos planos espirituais – e deste ponto de partida subir de-

pois até aonde, ao longo do processo evolutivo, o amadurecimen-

to permitir. Não nos iludamos, então, com voos de fantasia, pen-

sando que isto seja fácil, como sucede com muitos que preten-

dem refazer o mundo. A velha natureza humana de base é muito

resistente e não pode ser transformada num só dia. Até Cristo te-

ve de levar em conta as leis biológicas do planeta, limitando-se a

trazer apenas leves retoques e melhoramentos àquele fundo ani-

malesco que constituí a base da natureza humana.

Compreendido tudo isto, ou seja, que não podemos entender

a conduta humana de outro modo a não ser reportando-nos à sua

substância biológica, em função das leis de nosso plano evoluti-

vo, poderemos perguntar-nos então qual o significado daquelas

construções metafísicas de que falávamos agora, não no caso

excepcional dos raros pioneiros da evolução, mas sim no caso

comum de tantos grupos humanos de massa, incluindo os religi-

osos, que sobre aquelas construções baseiam a própria organiza-

ção e existência. Para quem está habituado ao controle positivo

das teorias, levando-as ao contato com os fatos, as diversas con-

cepções filosóficas e teológicas podem parecer o resultado da

imaginação, com afirmações situadas fora da realidade, que elas

ignoram. Não obstante, biologicamente, pode-se justificar tudo

isto como um instintivo produto do inconsciente, sabiamente de-

sejado pelas leis da vida, com uma finalidade precisa, que é al-

cançar a sobrevivência através da luta. Tratar-se-ia então de um

produto do subconsciente, com o fim de assegurar tal sobrevi-

vência, entrincheirando-se por detrás de uma ideologia, para uti-

lizá-la como um meio de sugestionar os crentes e, dessa forma,

obter o respeito, o que constituiria uma arma psicológica para

substituir a força, visando paralisar a agressividade dos outros

na luta e, assim, garantir a segurança própria. Desta maneira,

pode-se biologicamente justificar a posição do grupo. As cons-

truções metafísicas seriam então um produto instintivo, nascido

da vida para sua defesa própria, e, mesmo se tratando da emana-

ção de planos evolutivos superiores, cujas construções descem

ao nosso mundo para civilizá-lo, constituiriam, no entanto, um

material ideal super-humano que é adaptado ao ambiente terres-

tre, para ser assim utilizado com objetivos totalmente diversos,

transformado em meio de luta pela vida. Eis como pode ser en-

tendida e aplicada a biologia do espírito, quando ela é usada pe-

los imaturos, ainda situados no nível da biologia do animal.

Com tal concepção biológica, podemos explicar-nos fatos

cuja razão, de outro modo, não chegaríamos a compreender. As

ideologias, seja qual for o seu tipo, constituem o castelo dentro

do qual, quando não se pode usar a força, o grupo se entrinchei-

ra e se defende. É por isso que as ideologias, sejam elas religio-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 35

sas ou políticas, exigem fé, o que significa consentimento, ade-

são e, por fim, obediência, que é o ponto fundamental no qual

cada grupo insiste, porque constitui a base do seu poder. Os

elementos do fenômeno são sempre os mesmos: proselitismo

para estender o domínio e autoridade para mantê-lo. No plano

biológico do ideal, tais coisas são contraproducentes, antivitais,

absurdas, mas, no plano biológico animal do homem, são ques-

tão de vida ou de morte. Neste nível, o ser tem de resolver a

qualquer custo o problema tremendo da sobrevivência, onde

não há margem para sonhos e o ideal é loucura que mata. Eis

porque, à volta do castelo em que se refugia o ideal, é necessá-

rio construir muros de defesa contra a instintiva agressividade

destruidora do homem involuído, devendo o grupo constituir no

centro uma autoridade que comande os seus súditos, mesmo

que seja só pela fé, e sujeitá-los à obediência. É uma posição de

guerra. Parece uma contradição, porque inverte os princípios do

ideal. Mas esta forma invertida é a única que pode ser assumida

por algo que pertence a um plano biológico superior, quando

desce a um inferior. E esta é de fato a forma na qual constata-

mos a existência dos ideais na Terra.

Condenar não resolve. É necessário antes de tudo compre-

ender e explicar. Os fatos nos mostram que até mesmo Deus,

quando se manifesta na Terra, não viola suas leis, mas antes as

respeita. A verdadeira revolução, a grande transformação, só

pode realizar-se passando a um plano de vida superior. Mas,

enquanto não se consiga, por evolução, sair de um determina-

do nível biológico a que se pertence, fica-se encerrado dentro

das suas leis, às quais se deve obedecer. A reação que dá razão

ao ideal verifica-se somente no momento em que o indivíduo,

por ter progredido bastante, está maduro para se evadir do seu

plano biológico inferior e entrar no superior. Assim sucedeu

também com Cristo, em quem, enquanto ele esteve vivo na

Terra, o ideal foi crucificado. Ele somente pôde triunfar como

vencedor quando, estando morto, encontrou-se fora do plano

biológico humano, e não antes.

Pudemos assim explicar a contradição existente no fato de

que o ideal, se quiser resistir e sobreviver na Terra, deve então

aceitar aquilo que ele mesmo condena, submetendo-se à neces-

sidade de defender os valores espirituais com os métodos do

mundo, empregando até mesmo a força, ainda que isso esteja

em evidente contradição com o Evangelho. Não é essa a histó-

ria do cristianismo, que impulsionou inquisições e guerras san-

tas, mas é teoricamente baseado no princípio do amor e da não

resistência? Só assim, enfrentando biologicamente tais pro-

blemas, pode-se compreender o significado do que vemos

acontecer no mundo. Se as coisas funcionam de tal modo, en-

tão devem ter as suas razões. Observando o fenômeno do pon-

to de vista biológico, colocamo-nos não diante do homem, pa-

ra que ele explique e justifique o seu procedimento, mas sim

perante a inteligência da vida, pois ela sabe bem o que faz e é a

única capaz de nos dar uma resposta exaustiva. Para compre-

ender, é necessário sair da forma mental corrente, situada no

terreno dominado pelas leis do plano biológico animal-humano

vigentes na Terra, e observar as coisas, antes, em função de

planos biológicos diferentes, superiores, abraçando uma visão

mais vasta ao longo do caminho da evolução. Se observarmos

o fenômeno não com referência a um só tipo social, econômi-

co, político ou religioso etc., mas sim com critério biológico,

podemos, elevando-nos sobre o particular, alcançar o univer-

sal. Encontramo-nos, assim, diante de princípios que funcio-

nam da mesma forma nos campos mais diversos, como sucede

com o princípio já observado da autoridade e da obediência,

presente tanto nas ordens religiosas como nos ambientes mili-

tares, tanto no catolicismo como no comunismo. Descobrimos

então que, todas as vezes que se estabelece uma estrutura hie-

rárquica, típica das organizações humanas, cada coisa tem a

sua razão de ser, mesmo que ela seja bem diversa daquela ofi-

cialmente apresentada, com a qual, às vezes, procura-se escon-

der a verdadeira. É natural, de resto, que, movendo-se tudo

num ambiente de luta, apoiado em posições de combate, a ver-

dadeira razão de tantos expedientes seja escondida, camuflada

sob outras razões aparentes, para não revelar ao inimigo a pró-

pria estratégia. Mas somente chegaremos a compreender tudo

isto e, assim, a verdadeira razão destas posições, que parecem

culpáveis e contraditórias, se enfrentarmos o problema tocando

na sua substância, que é de natureza biológica.

Chegando a este ponto, perguntamo-nos se as construções

ideais seriam realmente, debaixo das aparências, apenas uma

ficção com o objetivo de exploração prática, para mascarar os

próprios movimentos frente ao inimigo? Será possível que tais

construções existem apenas para esconder uma tão baixa finali-

dade, sem nenhum significado melhor? Não! A sua existência

também representa de fato um pressentimento do futuro, uma

antecipação tendente a realizá-lo na forma oferecida pelo ideal.

Tais construções podem, assim, ter ainda outro significado, re-

presentando uma posição e função diversas no plano da biolo-

gia do espírito, não mais de guerra. Então a luta dos grupos ba-

seados num ideal, para a sua defesa e sobrevivência, pode exis-

tir também para realizar uma outra função, que é a luta pela de-

fesa e sobrevivência do ideal na Terra, de modo que aqui ele

possa cumprir a sua missão evolutiva.

Podemos compreender como tudo isto sucede, recordando

que estas duas biologias, com as suas respectivas leis, represen-

tam a vida em dois níveis seus, dois graus de evolução, e que

esta vai do Anti-Sistema (AS) ao Sistema (S). Ora, é lógico que

seja prevalentemente do tipo AS o que é inferior, e o que é evo-

lutivamente superior seja do tipo S, tipos dos quais conhecemos

as qualidades que os caracterizam. É lógico também que a vida,

estando não só na Terra mas em toda a parte, possa conter, mis-

turados, indivíduos mais atrasados, do tipo AS, e outros mais

avançados, do tipo S. Então cada um deles, segundo a sua natu-

reza e respectiva forma mental, verá tudo de acordo com ela e

tenderá a reduzir tudo dentro dos limites da sua capacidade

conceptual e do seu plano de evolução. Eis então que, de acor-

do com o diferente tipo biológico, a compreensão e a realização

do mesmo princípio também será diferente. Assim o ideal, na

Terra, poderá ser compreendido e realizado diversamente, con-

forme se trate de um involuído, tipo AS, funcionando no âmbi-

to da biologia do animal, ou de um evoluído, tipo S, funcionan-

do no âmbito da biologia do espírito.

Sucede então que, enquanto o evoluído é um instrumento de

descida do ideal à Terra para o progresso da humanidade, o in-

voluído é naturalmente levado a ver este ideal sob seu ponto de

vista inferior, situado no plano da biologia do animal. Por isso o

involuído tende a abaixar e reduzir o ideal ao seu nível, para fa-

zer dele o uso que acabamos de ver, utilizando-os não em fun-

ção de princípios superiores, mas sim para desfrutar de tudo em

sua vantagem na luta pela própria sobrevivência. É natural que o

involuído tenda a arrastar tudo para o seu plano de evolução e,

portanto, não saiba fazer outro uso do ideal, a não ser procurar

extrair dele uma vantagem material. Enquanto o evoluído tende

a levantar tudo em direção ao S, a tendência do involuído é

afundar tudo em direção ao AS. O primeiro purificará tudo que

tocar, o segundo contaminará tudo, destruindo os valores espiri-

tuais que o primeiro constrói. Enquanto a tendência constante de

um é endireitar o AS no S, a do outro é de emborcar o S no AS.

Dessa forma, podemos explicar o que sucede no mundo.

É assim que os ideais, observados do ponto de vista do in-

voluído, podem parecer loucura antivital, perigo de morte, por-

que estão contra o seu mundo e pretendem desviá-lo para outras

finalidades, que não são as do seu plano biológico, o qual re-

presenta todo o seu reino. Os ideais são, portanto, negados e re-

pelidos, ou então bastante torcidos, para se adaptarem à Terra.

Mas vemos também que, na sua luta para vencer em seu nível,

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36 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

toda a sabedoria do mundo, quando observada do lado oposto,

sob o ponto de vista do evoluído, pode parecer igualmente lou-

cura antivital, porque seguir quimeras, com resultados transitó-

rios e fictícios, não conduz à ascese, que é o objetivo da vida,

nem à afirmação no plano espiritual, que é o mais importante.

Então, para seguir em direção ao alto, ele despreza e repele a

sabedoria do mundo, que somente é reconhecida de acordo com

o ponto de referência escolhido para o seu julgamento. É fato

concreto que cada um quer e deve, antes de tudo, realizar-se no

seu plano de evolução, conforme a sua própria natureza.

Queremos aqui provar positivamente, e não só pela via da

fé, que seguir o ideal não é aquela estupidez que o mundo crê e

sustêm nos seus juízos. Por isso enfrentamos o problema dessa

forma. Com algumas afirmações avançadas, escandalizamos

possivelmente os espíritos sensatos, mas, se realmente quiser-

mos compreender a realidade, é necessário ter coragem de en-

cará-la de frente, em todos os seus aspectos, mostrando inclusi-

ve aqueles sobre os quais se costuma calar e deles dizendo o

porquê. Quisemos permanecer positivos, porque só assim se

podia dar ao ideal e à biologia do espírito as bases sólidas que a

ciência requer, capazes resistir à crítica dos inimigos deles.

É natural que o ideal, ao descer no ambiente terrestre, base-

ado na luta, seja entendido e utilizado em proveito do involuí-

do que nele vive, ficando assim reduzido a uma mentira. Outra

coisa não se lhe pode pedir. Como se pode pretender que um

tipo biológico AS se torne de repente um tipo S? Como é pos-

sível que um tipo AS, que foi construído com a evolução ter-

restre e que ainda está situado ao nível da biologia animal, po-

nha-se a viver o Evangelho, se, por atávica experiência, pro-

fundamente impressa no seu ser, ele sabe que, desarmando-se

como o Evangelho quer, fica vencido na luta e, por isso, deve

morrer? Como se pode pretender que a vida aceite num nível

biológico inferior aquilo que, pelo fato de pertencer um nível

biológico superior, resulta antivital em um nível inferior, no

qual o Evangelho, como todo ideal superior, lei do futuro, re-

dunda em um absurdo biológico? Se a maioria costuma somen-

te pregar o Evangelho, como não se limitar apenas a seguir a

corrente que o uso impõe? E isso sem jamais admitir que o

Evangelho possa ser tomado a sério e que exista para ser vivi-

do. O involuído, ao contrário, com plena convicção, pensa em

evadir-se dele honrosamente e, assim, fabrica para si mesmo

um manto de hipocrisia. O homem são e normal sabe muito

bem que o Evangelho, integralmente aplicado, representa um

perigo de vida para ele, que tem, portanto, direito à legítima

defesa. Sendo assim, se a revolta declarada é condenada, se-

gundo a moral biológica do seu plano, não há razão para que

ele não deva recorrer ao engano. Eis como o Evangelho, na

Terra, pode transformar-se numa escola de hipocrisia.

A verdadeira conclusão é que, se queremos evoluir, deve-

mos passar das zonas que gravitam em direção ao AS para as

que gravitam em direção ao S, superando a biologia do animal,

para nos tornamos cidadãos da biologia do espírito. Trata-se de

começar a viver em função de outras finalidades. Hoje vive-se

mais ou menos animalescamente. É necessário transformar a

tremenda vontade de viver que existe em todos nós numa von-

tade de evoluir, porque evoluir é o que dá significado e valor à

vida. O supremo imperativo ético é convergir todos os esforços

para evoluir em direção ao ponto Ômega, dado pelo S, o que

dá, também cientificamente, um significado profundo e um va-

lor superior à vida. É contraproducente, na economia do indiví-

duo, viver só em função de limitadas realizações terrenas, imer-

so na biologia animal, na estupidez de uma luta de todos contra

todos, para matar e ser morto. A ciência deve entrar na vida pa-

ra dirigi-la com inteligência. Em nossos pensamentos e ações,

devemos nos mover orientados pelo conhecimento. Religião e

ciência devem cooperar para atingir, por caminhos diferentes,

este conhecimento, de maneira a iluminar a nossa existência,

porque não podemos e não queremos mais viver nas trevas da

ignorância. O mundo tem necessidade de uma visão orientadora

global, que satisfaça sua sede de conhecimento e a sua necessi-

dade de sábias diretivas, inspirando-lhe confiança. Se religião e

ciência não se aliarem para alcançar tal visão, tudo se afundará

em nós, porque, com uma ansiedade de adultos, mais exigentes

no conhecimento do que as crianças, as trevas, para nós, são

muito mais insuportáveis do que foram nos séculos passados,

quando a falta de maturidade tornava possível vivermos num

estado de ignorância, inconscientemente tranquilos.

Os conceitos expostos acima nos permitem trazer o ideal e a

espiritualidade ao seio da ciência e de seus critérios positivos,

pois dão um significado biológico a estes valores superiores,

pertencentes a um plano de existência mais avançado, que o ser

terá de alcançar por lei de evolução, concepção cientificamente

lógica e aceitável. Assim se explica racionalmente a função bio-

lógica das religiões, da ética, do direito e das diversas institui-

ções sociais, mostrando-se o porquê de tudo existir em relação

aos fins que a evolução da vida quer atingir com tais meios. Tu-

do, portanto, é biologia, sendo que cada manifestação da vida

individual e social representa uma posição ao longo do caminho

do progresso evolutivo. Então, enquadrado assim em função das

leis da vida, tudo é entendido e, portanto, resolvido com critérios

antes de tudo biológicos. Esta realista concepção biológica nos

explica a conduta humana em muitos de seus aspectos, além das

preconcebidas abstrações filosóficas e teológicas.

Este conceito constituirá uma psicanálise da humanidade,

para eliminar seus complexos atávicos, como o instinto bélico,

a ganância, o espírito de domínio, a estupidez do orgulho, a in-

saciabilidade do gozo etc., os quais, tendo sido assimilados no

duro passado, constituem, de agora em diante, defeitos antivi-

tais. Compreender finalmente, sem hipocrisias e ilusões, como

a vida verdadeiramente funciona, significa não somente tentar

inteligentemente não incorrer mais, por inconsciência, em mui-

tos erros loucos, que depois é necessário pagar duramente, mas

também realizar ao mesmo tempo uma purificação dos pecados

herdados do passado e uma retificação psicológica, para não

cometê-los mais no futuro. Para isto, por exemplo, concorrerão,

sem estarem mais separados como inimigos, o confessor de um

lado e o psicanalista do outro, mas um confessor perito inclusi-

ve em psicanálise, que possua uma consciência ética da espiri-

tualidade, da filosofia e das religiões, a fim de ser, além de mé-

dico da psique, também dirigente de consciências. Quando ti-

vermos sinceramente analisado e compreendido tudo que nas

religiões se tornou emborcamento do ideal a serviço da anima-

lidade, muito mal poderá ser superado e eliminado.

Quando se compreender o significado do método da fé,

usado pelas religiões, os racionalistas da ciência não poderão

mais condená-lo. A fé tem potência criadora. Portanto tudo

aquilo em que acreditamos existe no mundo espiritual. A fé

abre as portas da alma em direção a mundos superiores e tem,

assim, o poder de nos fazer sentir aquilo que, de outro modo,

ficaria escondido no ultrassensível. Quando o homem, para

evoluir, deve resolver o problema de conquistar um futuro que,

por ser supernormal, é desconhecido para ele e, sendo-lhe

apresentado apenas no estado nebuloso de ideal, ainda necessi-

ta concretizar-se em formas que o fixem à vida humana na Ter-

ra, não há outro sistema, caso se queira avançar, senão anteci-

par a realização da existência daquele ideal, fazendo-o apare-

cer na mente do indivíduo, através de imagens que o represen-

tem e o fixem com sua repetição, conduzindo-o paralelamente

a manifestações exteriores que o expressem. Ora, este é o mé-

todo praticado pelas religiões para a descida do ideal na Terra,

através de lenta assimilação consuetudinária, por via interior e

exterior, mental e material. Obtém-se assim uma convergência

entre a fé e a prática, com ambas alimentando-se reciproca-

mente, de maneira a levar o indivíduo a realizar o ideal em si

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 37

mesmo, como qualidade própria, construindo assim a sua indi-

vidualidade sempre mais completa e perfeita.

Podemos descobrir nas religiões uma sapiente técnica cons-

trutiva de formas mentais superiores, que acabam por se fixar

definitivamente na vida, levando-a um passo adiante no cami-

nho da evolução, que de agora em diante, como já vimos, cons-

titui um processo de espiritualização. Por longa experiência, as

religiões tentaram aperfeiçoar esta sua técnica, de modo que es-

ta pudesse continuar a funcionar mesmo quando os instrumen-

tos humanos dos quais ela dispõe para a administração do culto

fossem imaturos, incapazes de compreender qualquer ideal. Isto

prova que, na prática, mesmo o ideal, se quiser descer à Terra,

deve ter em conta a realidade biológica, considerando o materi-

al humano no estágio em que se encontra.

Voltemos com um exemplo ao tema da fé e à sua potência

criadora. Quando acreditamos firmemente que as palavras do

sacerdote, ao consagrar a hóstia, fazem o espírito de Cristo des-

cer nela, transformando assim a sua substância, então, mesmo

provando-se quimicamente não ter havido nenhuma transubs-

tanciação, vemos que a nossa fé criou um fato positivo, com

existência verdadeira, fazendo a nossa representação mental do

Cristo estar bem localizada naquela hóstia, como uma presença

real Dele. Ora, no plano mental, para quem acredita, basta isto

para existir de fato o Cristo naquele lugar. É uma existência

subjetiva, mas quando ela é multiplicada por um grande núme-

ro de pessoas, torna-se uma existência objetiva, baseada sobre

um íntimo testemunho coletivo. Assim, avizinhamo-nos deste

problema com a psicologia positiva da ciência. A presença ob-

jetiva de Cristo, espacialmente localizado num suporte material,

é outra questão, e aqui não entramos nela. Mas é certo que a re-

alidade objetiva absoluta não existe nem mesmo para a ciência,

porquanto a presença do observador interfere na observação.

Quisemos assim observar os métodos das religiões. Eles

procuram ser até hoje um meio de educação, um instrumento de

evolução. Amanhã, se elas souberem atualizar-se com o pro-

gresso do pensamento humano, expresso pelo avanço da ciência

inclusive no terreno delas, poderão constituir, no seio da pró-

pria ciência, um elemento indispensável da biologia do espírito.

◘ ◘ ◘

Encontramos em Teilhard um outro conceito importante. Ele

sustenta a existência de um ponto Ômega, em direção ao qual

todo o universo tende a evoluir. Mas este conceito, como Tei-

lhard não poderia deixar de entrever, implica também em outro,

segundo o qual este ponto Ômega é também o ponto Alfa, signi-

ficando isto que o ponto de chegada do transformismo deve

coincidir com o seu ponto de partida. Teilhard não focou a sua

intuição sobre este conceito, mas certamente o viu, ainda que de

longe. Uma vez descoberto pela ciência o fenômeno da evolu-

ção, ela não pode deixar de ter de admitir também o fenômeno

oposto, isto é, a involução. O processo não pode ser apenas uni-

lateral, somente evolutivo, sem conter também, para ser comple-

to e equilibrado, a sua parte inversa e complementar, compondo-

se assim, em correspondência ao período evolutivo, também do

respectivo período involutivo. Eis-nos aqui perante a teoria da

queda, que voltamos a encontrar nas religiões e nas suas revela-

ções. Esta é a teoria do S e AS, por nós sustentada e detalhada-

mente explicada, que forma o esqueleto do processo transfor-

místico do universo. Teilhard não chegou a declarar explicita-

mente que esta é a linha máxima do transformismo do ser, mas

cada palavra sua concorda com esta concepção. É em direção a

ela que, como guiado por um pressentimento, ele se orienta e a

presume, mesmo sem expressá-la. Ele não podia deixar de pres-

sentir esta verdade, porque ela está escrita na lógica dos fatos,

para que seja vista por quem saiba ler no seu íntimo significado.

Há, porém, o fato de que, segundo Teilhard, o ponto Ôme-

ga somente seria alcançável através do catolicismo. No en-

tanto este não é apenas o ponto para o qual convergem todas as

religiões, mas também o ponto de convergência da evolução de

todas as formas da existência, mesmo aquelas para nós inima-

gináveis, não redutíveis aos limites das nossas concepções ter-

restres e muito menos às de uma religião particular. Nisto Tei-

lhard deve ter obedecido à necessidade que lhe foi imposta pela

sua posição social, de não se afastar de certas conclusões pré-

fabricadas nas suas investigações filosóficas. Trata-se de um

antropomorfismo de tipo bíblico, ao qual não se pode reduzir a

vastidão das concepções cósmicas hoje atingidas. Tal posição,

então, não é científica. Não se pode limitar Deus e monopolizá-

Lo em exclusividade, fechando-O dentro de uma religião parti-

cular. Era possível chegar a tal redução com o Deus antropo-

mórfico do passado, mas já não o é mais hoje, com o Deus de

dimensões cósmicas que a ciência nos faz entrever.

No entanto é possível explicar biologicamente a razão deste

caso, referindo-se ao conceito já afirmado acima, segundo o

qual podemos entender a conduta humana, reportando-nos às

leis biológicas que dirigem o homem, mesmo sem o seu conhe-

cimento. Ele as obedece porque elas formam a sua natureza, de-

finem o seu biótipo e constituem as leis do seu plano de vida. E,

como já nos referimos, o homem não pode fugir a elas, senão

evoluindo para um nível evolutivo superior. Ora, a lei do nível

humano atual é o egocentrismo, e o homem deste tipo concebe

a existência em forma egocêntrica, vendo-a em função do pró-

prio eu ou do grupo do qual ele faz parte. Sendo assim, ele ten-

de a reduzir tudo a si próprio, concebendo tudo antropomorfi-

camente, em função de si mesmo e do seu grupo. É assim que

podemos explicar como uma religião tende a reduzir e fechar

nos seus limites o ponto Ômega, para aprisioná-lo no seu pró-

prio egocentrismo, fazendo-se centro do universo. Consideran-

do esta forma mental, podemos entender como esta necessidade

foi imposta a Teilhard pelo grupo, sob pena de ser expulso dele.

A este fato se deveu a necessidade de lhe terem sido impostas

semelhantes premissas às suas investigações filosóficas.

E Teilhard foi obediente. Quem sabe mais é também mais

razoável, encontrando-se acima do mundo e dos seus juízos.

Ele chamava ao seu caso de “o cisma entre a metade do mundo

que se move e a outra metade que não quer avançar”. Teilhard

era uma antecipação do futuro e queria andar para frente. O

grupo é feito para permanecer na Terra, nas posições conquis-

tadas, gozando dos seus frutos, sem trabalho e sem perigos, e,

mesmo quando maneja o ideal, o faz sobretudo em função da

Terra, que é o seu mundo. Sucede que muitos foram condena-

dos nas mesmas condições de Teilhard, mas cada um, segundo

sua conduta, revelou a sua natureza. O involuído, que vive no

nível do egocentrismo, revolta-se e separa-se do grupo, para

declarar-lhe guerra, instalado no seio de um grupo inimigo. O

evoluído, que vive no nível espiritual, obedece e permanece no

seu posto de dever, fiel aos seus próprios compromissos, mas

não abandona a sua ideia, pelo contrário, continua a vivê-la

mais intensamente, uma vez que não se pode coagir o espírito,

e a esconde dentro de si, compensando-se assim de não poder

comunicá-la aos outros, que não compreendem. Quando é ne-

cessário, deve-se respeitar a vontade do próximo de permane-

cer na ignorância. Quem tem uma vida interior sabe viver, ain-

da que seja apenas interiormente (e que vida!), mesmo quando

lhe seja negado manifestar-se exteriormente. Quando não é

possível realizar o trabalho de fazer evoluir os outros, realiza-

se o trabalho de evoluir a si próprio. Dizia Teilhard numa carta

ao Geral dos Jesuítas: “Não posso renunciar a mim mesmo.

Mas já não me ocupo de propagar as minhas ideias, senão de

aprofundá-las pessoalmente”.

Deste modo, permanecem intactas nele a sua concepção e

convicção. De semelhantes visões profundamente sentidas, fru-

to de raciocínio e intuição, nasce uma segurança que ninguém

pode perturbar. Além disso, a compreensão no silêncio aumenta

a convicção, porque o silêncio nos induz a expandir-nos em

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38 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

profundidade em vez de em superfície, de modo que a visão se

torna mais clara e se potencializa. Também aqui funcionam as

leis, que, embora situadas no campo psicológico e espiritual,

são sempre leis biológicas, das quais não se pode prescindir

nestes casos. Mas quem atua segundo os sistemas humanos

comuns, não pensa em tais leis, deixando de levar em conta as

reações derivadas delas. A compressão aumenta a reação, e

quando esta não pode desabafar-se para o exterior, porque lhe

está impedido o caminho ou porque o indivíduo, por ser evoluí-

do, recusa as revoltas terrenas, então a reação se desabafa em

direção ao interior, exaltando o tom da vida espiritual, potencia-

lizando-a a tal ponto, que, por si só, constituirá toda a vida do

indivíduo. Aproveita-se então a derrota exterior, terrena, para

realizar por si mesmo um progresso interior profundo e viver a

sua própria existência num plano evolutivo mais elevado, subs-

tituindo a compressão material e a derrota terrena por uma ex-

pansão espiritual e uma vitória sobre o mundo. Isto é o que sig-

nifica a obediência de Teilhard de Chardin.

A vida é evolução, e evolução é conquista, implicando, co-

mo tal, luta e esforço contínuo. Onde o homem de tipo corrente

se compraz em desperdiçar as suas energias em atritos recípro-

cos, até chegar às destruições bélicas entre os povos, o homem

evoluído transporta este espírito de luta e esforço conquistador

a um terreno biologicamente mais avançado e mais intensamen-

te criador. Ele é o maior guerreiro, mas como evoluído, em

forma pacífica. É o maior revolucionário, mas revolucionário

do pensamento. A evolução deverá levar à paz mundial, ponto

que se encontra no caminho da ascensão do homem, pois favo-

rece sua própria conservação e sobrevivência, objetivo da sua

vida. Semelhante paz, no entanto, não será inércia, com a sus-

pensão da luta e do esforço, mas sim a sua continuação em di-

reção a objetivos superiores, a fim de que a vida, seguindo sua

lei, não se detenha nunca no seu trabalho de conquista e ascen-

são. A isto nos querem levar as leis da vida. E foi neste sentido,

o qual revelou a sua natureza, que Teilhard trabalhou para a sua

elevação, assim como para a elevação do mundo.

Esta ideia, dada pelo conceito de evolução, foi combatida a

princípio pelo próprio cristianismo. No entanto ela nos deveria

encher de esperança e entusiasmo, porque contém a promessa de

um grande futuro. Só ela já bastaria para nos dar a coragem de

enfrentar a vida com todas as suas lutas, perigos e dores, porque

tudo isso leva a uma superação que, pelo seu valor e posição,

representa uma melhoria grandemente recompensadora. No seu

progresso, parece que a vida vai tateando no escuro. Ela tenta,

falha muitas vezes e tenta novamente, mas, no fim, a vitória é

sua. Provam-no as posições superiores que conseguiu conquis-

tar. Mas seriam estas tentativas verdadeiramente cegas ou, pelo

contrário, estariam intimamente iluminadas por uma luz que as

dirige? Esta luz não aparece, porque está escondida, sepultada

nas profundidades do inconsciente, que parece treva, mas que,

apesar de envolvido na obscuridade, é luz, e luz que luta para se

libertar desta obscuridade, para se tornar novamente resplande-

cente em sua pureza, para se redimir do seu culpável desmoro-

namento nas trevas da ignorância. Não é este o grande drama do

ser? As religiões captaram este ponto central, e ninguém é mais

evolucionista do que elas, mesmo quando negam a evolução.

Nada pode cancelar esta lei de ascensão, porque ela se encontra

inscrita na vida e funciona sem que ninguém possa detê-la, in-

dependente de tudo e acima de qualquer juízo humano.

Não há forma de existência que não esteja enquadrada ao

longo do caminho desta grande marcha evolutiva do universo.

O homem chegou finalmente ao ponto de se dar conta deste fe-

nômeno, perguntando-se aonde levará amanhã este imenso mo-

vimento. Geologia e Paleontologia mostram-nos o caminho

percorrido, que é fatalmente continuado a cada minuto que pas-

sa. Não existe ser algum que não faça parte deste caminho. To-

dos vivemos canalizados dentro dele, e cada um, a seu modo,

não pode deixar de segui-lo. Os mais atrasados buscam rique-

zas, honras e poderes, enquanto os mais evoluídos se lançam a

conquistas de outro tipo. O cientista estuda a natureza, para

compreender os seus segredos. Os grandes navegantes desco-

briram novos continentes. Agora pretende-se alcançar o mundo

planetário. De mil maneiras e situados em diversas alturas, to-

dos, intimamente, querem subir, de modo que a vontade de vi-

ver é, na realidade, vontade de evoluir. Elevar-se é a razão e o

verdadeiro conteúdo da vida. É para isso que existimos.

A nossa humanidade está entrando agora na fase psíquica.

Antigamente, os pouquíssimos que pensavam dirigiam os po-

vos como se estes fossem rebanhos de ovelhas. Hoje, todos

começam a pensar um pouco. Descobrem-se valores e dimen-

sões novas, pensando-se de uma maneira diferente daquela dos

nossos antepassados. Mesmo sendo egoístas e inimigos, ainda

assim nos vemos obrigados a viver e pensar cada vez mais cole-

tivamente, organicamente unidos. Forma-se então uma enorme

massa de vida e pensamento, que envolve e domina todo o pla-

neta. O homem se apropriará dos segredos e das forças da natu-

reza. É em direção a uma imensa vitória da potência do pensa-

mento que se quer orientar o caminho da vida. A maior desco-

berta do século é haver entendido o imenso trabalho de desco-

brimento que é necessário fazer ainda.

No princípio, tudo isto não foi mais que um confuso conjun-

to de obscuros mas trágicos esforços realizados pela vida, para

subir, e pelo pensamento, para reencontrar-se e manifestar-se

cada vez mais conscientemente. Tudo feito às cegas, sem se sa-

ber porque e para onde, movido por um irresistível instinto, co-

mo o de um cego que, mesmo não vendo, sente que a luz existe

e a procura. Quem deu à vida este anseio de progresso, esta ân-

sia de evoluir, de expandir-se, de firmar-se contra tudo e contra

todos os elementos desencadeados, de enfrentar os animais fero-

zes, o terror do mistério e as trevas da ignorância? No entanto,

apesar de tantas dificuldades, esse impulso soube conduzir a vi-

da até aqui, formando o homem, no qual começa a brilhar a luz

do pensamento. Como podia, por evolução, este “mais” surgir

do “menos” que o precede, se este “menos” não houvesse conti-

do alguma vez este “mais”? Seria como se, escondida em uma

semente, não estivesse contida a planta a ser restituída à luz. Eis

aí a maravilha. A evolução, pelo aperfeiçoamento das formas fí-

sicas, faz emergir uma qualidade nova do ser, entrando numa

sua fase superior, dada pelo pensamento. É neste sentido que ela

está dirigida e é para lá que nos levará. Assim como os primei-

ros selvagens do planeta não podiam imaginar a que ponto che-

garia o homem com a evolução até hoje, também não podemos

imaginar, hoje, até onde nos levará um dia a evolução. Perante

tais perspectivas, vale verdadeiramente a pena viver.

O estudo do homem pré-histórico ensinou muito a Teilhard,

e ele nos conta a visão que o impressionou. A partir daí, encon-

tramos os principais pontos de contato entre a Obra e o pensa-

mento de Teilhard de Chardin.

A crise do mundo moderno é, no fundo, uma crise de pen-

samento, devida à sensação do vazio resultante da derrocada

das velhas metafísicas, operada pela ciência. Antigamente, dada

a formas mental do seu tempo, elas bastavam para dar uma res-

posta às grandes incógnitas, permitindo deduzir uma ética sufi-

ciente para dirigir a vida. Essas construções, ainda que não es-

tivessem comprovadas cientificamente e não correspondessem

à realidade, chegando até mesmo a deixar o mistério em pé,

confortavam e civilizavam, induzindo ao bem, prometendo aos

bons o apoio de Deus. Com a perspectiva de um prêmio ou de

uma pena, apoiando-se no instinto utilitário da vida, elas edu-

cavam segundo um princípio de justiça, impondo, segundo ele,

determinadas normas de conduta, ao mesmo tempo em que sa-

tisfaziam as necessidades psicológicas das massas, tirando-lhes

o medo do desconhecido, do fim da existência no nada, assegu-

rando a tão desejada continuação da vida e dando a ela uma me-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 39

ta. As religiões cumpriam assim uma função de proteção e de

progresso, biologicamente suficiente para justificar a sua pre-

sença em nosso plano evolutivo.

Hoje, a ciência destruiu estas velhas construções metafísicas

e, sem saber substituí-las por outras que possam desempenhar a

mesma função, deixou deste modo o mundo com muitos pro-

blemas sem solução. Teilhard quis satisfazer esta necessidade

humana de ter uma resposta a essas interrogações, procurando

dar uma satisfação às próprias exigências psicológicas, de não

mais se basear em sistemas, conceitos e terminologias tradicio-

nais, e sim na ciência. Fez então o que os homens de ciência

não ousam, ou seja, levou-a até às suas consequências metafísi-

cas e espirituais, entrando no campo das religiões e conseguin-

do assim satisfazer essas necessidades psicológicas, mas com a

vantagem de oferecer uma resposta menos empírica e mais po-

sitiva, produto da lógica e dos fatos e, portanto, mais aceitável

ao mundo moderno, porque mais convincente. Este é, no pre-

sente estado de desenvolvimento do pensamento humano, o

único trabalho que se podia fazer atualmente e que temos para-

lelamente tratado de fazer. Hoje, a obra de Teilhard nos confor-

ta, mostrando-nos a necessidade de se chegar a uma ciência

mais completa e a uma religião mais demonstrada.

Assim a ciência se torna metafísica e a metafísica se torna

científica. As conexões entre os elementos do plano físico en-

contram correspondência com aquelas que existem entre os

elementos do plano espiritual. Entre os diferentes níveis de

existência há uma ressonância dos mesmos princípios. Damo-

nos conta de que nos encontramos num universo no qual os fe-

nômenos estão orientados em direção a um fim, fundidos num

funcionamento orgânico unitário, iluminados por um pensa-

mento interior, que nos mostra seu significado e sua razão de

ser. Teilhard intuiu, como nós, a presença de diferentes planos

biológicos, com suas próprias leis, que são relativas a cada um

deles e que dirigem neles o funcionamento do ser. Nos diferen-

tes níveis, estas leis correspondem umas às outras e são encon-

tradas harmonicamente coordenadas, conectadas analogicamen-

te, revelando-se afinal fundidas no seio de uma lei universal

única, que representa o pensamento de Deus. A visão é unitária,

orientando e compreendendo tudo dentro de si.

Abarcando tudo, esta visão nos conduz do caminho diver-

gente do fracionamento na análise a um caminho convergente

em direção à síntese. É assim que nos foi possível, como o foi

também para Teilhard, sair do isolamento da especialização

num só problema, para enfrentar a questão em seu conjunto –

social, religioso, econômico, psicológico, científico etc. – por-

que, a partir da orientação nas linhas gerais, éramos guiados na

descida em cada campo, o que não seria possível, se não se ob-

tivesse primeiro uma visão global do todo. Isto nos permitiu es-

tudar o homem na sua realidade integral, formada pelo conjunto

do seu ser físico-psíquico, vendo-o como ele verdadeiramente

é, e não fracionado e abstratamente dividido em compartimen-

tos isolados, abstração esta que pode ser útil para se efetuar es-

tudos, mas que não corresponde à realidade. Assim ciência e

moral, integrando-se alternadamente, protegem-se e comple-

tam-se nos aspectos fisiológicos, religiosos, econômicos, soci-

ais, metafísicos etc., terminando por se unirem num funciona-

mento coletivo único, fundamentalmente unitário, como tam-

bém unitária é a visão a que se chega do homem integral, visto

na sua totalidade e concebido como uma síntese.

Uma ciência que se faz metafísica e uma metafísica que se

faz ciência, podem satisfazer de um modo mais completo o

instinto religioso do homem. Este instinto tem a sua função

biológica, porque representa um impulso para o supernormal

que nos espera no futuro e, enquanto expressa uma tendência

a realizá-lo, constitui uma antecipação de um estado que a

evolução ainda não realizou, mas que já existe na sua fase

preparatória de aspiração e de ideal, em vias de concretizar-se

e fixar-se na mente, nos costumes e nas instituições humanas,

começando por uma aspiração, por uma necessidade indefini-

da, e terminando por codificá-la, para continuar em seguida

com o mesmo processo, avançando cada vez mais. Assim a

humanidade acaba sendo moldada pelo ideal, seguindo e rea-

lizando visões cada vez mais elevadas.

Este instinto, imposto pelas leis da vida para evoluir, exis-

tiu sempre, mas é natural que, com o progresso, exija uma sa-

tisfação cada vez mais aperfeiçoada. Em suas fases primitivas,

o homem não podia adorar senão um Deus feito à sua imagem

e semelhança, porque não sabia conceber algo melhor. Atual-

mente, o Deus cósmico, que a ciência nos deixa entrever, já

não cabe dentro das velhas concepções religiosas. As nossas

ideias evoluem intimamente relacionadas ao progresso da

nossa capacidade de concepção. A religião de amanhã se unirá

à ciência e deverá se basear em postulados racionalmente de-

monstrados, se quiser ser aceita.

Antigamente, essa necessidade não existia, porque não

existia a ciência nem a respectiva forma mental moderna. Bas-

tava a tradição, com um vasto acordo de aceitação sobre de-

terminadas soluções, para que o instinto religioso ficasse satis-

feito. A crença se baseava na confiança. Era suficiente que al-

gum filósofo ou teólogo dissesse algo, para que isto fosse acei-

to como verdade. A humanidade ainda infantil contentava-se

com verdades já feitas, confeccionadas já prontas para uso, e

não podia analisá-las, pois não sabia nem queria pensar, prefe-

rindo delegar as faculdades do pensamento aos dirigentes. A

vida funcionava então fora das dimensões do pensamento, que

representava a barreira ante a qual se detinha a maioria. Gozar,

roubar e matarem-se uns aos outros, eram as ocupações prefe-

ridas, para as quais o homem se sentia mais bem equipado. A

forma mental era simples, e as necessidades psicológicas, limi-

tadas. Para iluminar o mundo, eram suficientes as intuições de

poucos homens geniais. O rebanho, só para não ter de pensar

muito, seguia satisfeito, porque as religiões também lhe ofere-

ciam concepções antropomórficas fáceis de entender, que cor-

respondiam aos seus gostos. As massas e os dirigentes, como

eram do mesmo nível evolutivo, estavam de acordo, e este

consentimento, universal porque era produto do mesmo bióti-

po, era suficiente para fazer a verdade. Em relação ao desen-

volvimento da vida naquele momento, tudo ia bem. Mas, uma

vez que ela avançou, aqueles problemas e necessidades avan-

çaram também, exigindo soluções e satisfações que o passado

já não sabia mais dar. Uma vez suprimido o consenso coletivo,

base do valor da tradição, caiu também aquela base sobre a

qual se apoiavam as religiões. Deste modo, elas correm o risco

de permanecer na Terra só para uso dos primitivos ainda so-

breviventes, sem seguidores cultos e convictos, e ficar assim

fora da vida, como ruínas mortas do passado.

Eis o valor das metafísicas de tipo científico que Teilhard

e a nossa Obra anunciam e preparam. Sobre elas terão de se

basear as religiões, porque, hoje, somente tais metafísicas

podem satisfazer as novas necessidades psicológicas da hu-

manidade. O instrumento religioso permanece, mas agora,

tendo-se aperfeiçoado, já não pode aceitar as verdades empí-

ricas que antes o saciavam. Para os novos estômagos, é ne-

cessário alimento diferente. O instinto religioso é um impulso

em direção ao alto, tendendo para o S (ponto Ômega), subsis-

tindo por isso em todos os planos de evolução, ainda que de

acordo com a forma, as exigências e a perfeição de cada um

deles. E tal instinto subsistirá até que se sacie completamen-

te, alcançando a meta do caminho evolutivo, que é Deus. O

instinto religioso responde a um princípio biológico e existe

em função da evolução. Assim se explica Teilhard no mo-

mento atual, permitindo-nos compreender a importância bio-

lógica que, devido à sua função evolutiva no seio das leis da

vida, têm a sua obra e outras do seu tipo.

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40 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

Os seguros e tranquilos repetidores das coisas velhas, se

bem que mais perfeitos na técnica e exatos na forma, não co-

nhecem o trabalho dos criadores do novo, ignorando a difi-

culdade que significa expressá-lo com propriedade nos velhos

termos, feitos para outros conceitos, e se fazer entender por

quem, sustentando que tudo foi já pensado, dito e resolvido,

acredita que nada se pode acrescentar. Entre o velho e o novo

é sempre difícil o entendimento. Trata-se de duas funções ne-

cessárias, mas situadas em posições contrárias. Fidelidade à

verdade é o termo que muitos usam para denominar a incapa-

cidade do velho de sair do tipo de estrutura segundo a qual foi

construída a sua forma mental na juventude. O seu medo de se

mover e de se aventurar no abismo do mistério, querendo as-

sim deter o tempo e a evolução, é chamado de fé. Mas, junto a

este tipo, existem também os dinâmicos, ardentes, conquista-

dores de novos conhecimentos, ansiosos sempre de saber,

descobrir e progredir. Trata-se de dois modos diferentes de

conceber, que, colocados perante o problema do conhecimen-

to, comportam-se de forma oposta. Assim, quanto mais igno-

rante é o indivíduo, mais crê saber tudo e possuir toda a ver-

dade e tanto menos tem curiosidade por conhecer mais do que

sabe. Perante o conhecimento, ele fecha as portas, como con-

tra um inimigo. Pelo contrário, quanto mais sabe um indiví-

duo, mais tem consciência de saber pouco e não possuir toda a

verdade, e mais curiosidade sente por conhecer mais do que

sabe. Deste modo, o primeiro, porque gravita em direção ao

AS, resiste ao impulso da evolução para o S, enquanto o se-

gundo, porque gravita em direção ao S, acompanha este im-

pulso e, assim, sobe em direção à luz. Colocá-los em contato

significa opor o positivo ao negativo, colocar frente a frente

dois pensamentos opostos. Cada um deles não pode fazer ou-

tra coisa, senão continuar sendo aquilo que é, repetindo o que,

dado o seu modo de conceber as coisas, para ele é a verdade.

Um a entende como um grande impulso para frente, enquanto

o outro a julga como uma zelosa conservação do passado. As-

sim como a forma dinâmica desejaria anular a estática, a for-

ma estática desejaria anular a dinâmica.

É necessário admitir que existem cérebros diferentes, que

pensam de maneira diferente, cada um podendo funcionar so-

mente no âmbito da sua forma mental e sendo incapaz de en-

tender a linguagem de outras psicologias, que se movem em

função de outros pontos de referência. Pode suceder então que

se algo, para um, significa uma grande verdade, para outro

constitui palavreado sem sentido. Destes dois raciocínios dife-

rentes, cada um aprendeu, possui e, por isso, gosta de repetir o

seu, com ele medindo e julgando tudo. Quando dois interlocu-

tores discutem, é porque falam duas linguagens diferentes e,

por isso, não se compreendem. Isto é o que sucede entre ciên-

cia e fé. Cada uma delas fala a sua língua, que o outro lado

não compreende porque fala uma diferente, pensando com ou-

tra forma mental. Para entender as duas, seria necessário co-

nhecer as duas línguas e possuir as duas estruturas psicológi-

cas, condição na qual se compreende então que os dois pen-

samentos não são inimigos, mas sim complementares. Porém

eles permanecem inimigos, porque cada um conhece só o seu

idioma, e não o do outro. Teilhard conhecia os dois e tratou de

fazer das duas verdades uma única. Mas os seus leitores e juí-

zes continuaram entendendo apenas uma delas e, portanto,

condenando-o ou exaltando-o segundo o que, de acordo com

seu próprio idioma, podiam dele assimilar. Assim cada juiz,

segundo as suas categorias mentais e os seus quadros psicoló-

gicos, escandalizou-se ou entusiasmou-se conforme as verda-

des que formavam o seu próprio patrimônio mental. Podemos,

deste modo, explicar a adversidade dos juízos com respeito a

Teilhard e a demasiada demora, não obstante a grande impor-

tância da sua Obra e a das outras do seu tipo, para o seu reco-

nhecimento e aceitação pelo mundo.

V. A EVOLUÇÃO DAS RELIGIÕES

Antigamente, as diretivas da vida humana apoiavam-se so-

bre verdades absolutas, que não podiam ser modificadas. Isto

correspondia à concepção estática que se fazia do mundo na-

quele tempo, considerando-se a Terra como o centro imóvel do

universo. Hoje a humanidade, atingindo uma forma mental di-

nâmica, que corresponde à concepção de uma Terra movendo-

se dentro do movimento do universo, foi levada à ideia de uma

verdade progressiva e relativa, em constante evolução. Tudo

então é concebido como um vir-a-ser. Até mesmo a existência é

percebida como um transformismo que, assim como ela, não

pode ser detido. É verdade que esta existência se realiza e se

manifesta através de uma forma que a define e a fixa. Mas tam-

bém é verdade que esta forma vai sempre mudando e, por isso,

permanece apenas por um período determinado, ficando limita-

da no espaço de um dado segmento ao longo da trajetória do

tempo, esgotado o qual ela desaparece, para, depois de ter se

desfeito, aparecer sob outra forma. Trata-se, portanto, apenas de

uma forma temporária, continuamente sujeita a desaparecer pa-

ra reconstruir-se. Eis que a existência de todas as coisas em

nosso universo está encerrada dentro da lei do tempo, que ja-

mais deixa de marcar o ritmo do seu fatal transformismo, im-

pondo uma contínua renovação, indispensável para que se pos-

sa realizar a evolução. Portanto, apesar de permanecermos agar-

rados às formas, tendo a ilusão de ser possível detê-las e, assim,

fazê-las permanecer como elas são, a experiência nos ensina

que, na realidade, as coisas não são como as vemos manifesta-

rem-se, pois o que delas existe de fato é apenas a sua duração, a

sua trajetória no tempo, cujo ritmo, como um relógio, marca o

passo do seu incessante transformismo.

A mente humana abandonou hoje a ideia do absoluto imó-

vel para colocar-se no relativo em movimento, porque se deu

conta, por amadurecimento evolutivo, que esta é a realidade da

vida. Este fato deslocou as velhas bases das religiões, fundadas

em outros conceitos. Entretanto elas se mantêm com a velha

forma mental, resistindo assim às novas tendências. Nasce daí

um contraste entre as duas concepções e exigências opostas,

que são dificilmente conciliáveis, pelo menos enquanto a evo-

lução não tiver terminado de atravessar a presente fase de tran-

sição. As massas foram educadas segundo a primeira forma

mental, tendo registrado e assimilado este modo de conceber, e

isto não é fácil de mudar rapidamente, pois as ideias têm uma

vontade própria, que, uma vez lançada numa direção determi-

nada, tende a continuar nela por inércia. As mentes, para terem

uma sensação de segurança e não se equivocarem na formação

da própria conduta, têm necessidade de crer que alcançaram a

última verdade, absoluta e imóvel, pois somente uma tal verda-

de parece capaz de garantir uma segurança na qual se confie to-

talmente. De outro modo, seria como querer basear a ética ape-

nas em princípios relativos, flutuantes e, portanto, discutíveis.

Para merecer a obediência destas mentes, necessita-se de uma

verdade imóvel, dogmaticamente fixada, absolutamente segura

e definitiva nas suas afirmações. Uma verdade que mudasse e

se contradissesse não seria mais verdade. Ela deve, como é

apropriado à psicologia humana, ser sempre verdadeira, e não

hoje sim e amanhã não. Então, para estas mentes, a verdade de-

ve ser infalível comando de Deus, que já sabe tudo, e não uma

progressiva aproximação humana daquela verdade.

No entanto a mente, evoluindo, começou a perceber que as

coisas estão situadas diversamente. Ela compreendeu então que

o ser humano não possui absolutos e que ele, de fato, não sabe

senão atingir progressivamente uma sucessão de valores relati-

vos, os quais, através da evolução, aproximam-no cada vez

mais do absoluto. Este, no entanto, é somente o ponto final desta

ascese, encontrando-se hoje muito longe de ser alcançado. E

ainda bem longe dele estão também as religiões, que, no entanto,

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 41

por representarem um pensamento sobre-humano, deveriam sa-

ber tudo. Elas estão ainda cheias de mistérios e de pontos inde-

finidos a serem esclarecidos e definidos. Estão repletas de pro-

blemas não resolvidos, que precisam ser resolvidos e que vão

sendo resolvidos pela intervenção de mentes laicas e pelo ama-

durecimento do pensamento humano, conforme o princípio

acima mencionado das verdades relativas e progressivas, atra-

vés de sucessivas aproximações de um absoluto ainda longín-

quo para o concebível humano.

Por isso nos encontramos diante do contraste entre duas

exigências opostas, que se tenta em vão conciliar. Eis a razão

pela qual as religiões não possuem de fato o conhecimento ab-

soluto e total, capaz de oferecer uma solução definitiva. Se elas

o possuíssem, não haveria mais mistérios ou pontos discutíveis,

nem interpretações diversas da verdade, com perspectivas par-

ticulares ou visões antagônicas, condenando-se uma às outras, e

o pensamento religioso estaria à frente, em vez de, como fre-

quentemente acontece, ter de ser arrastado pelo processo laico

da ciência. As religiões esperam e aceitam grande parte da ver-

dade, proveniente da evolução da mente humana, que vai pro-

gressivamente, por sua conta, conquistando e oferecendo expli-

cações cada vez mais completas. Isto é comprovado pelo fato

de que, hoje, as religiões não estão à testa do progresso do pen-

samento humano, tendo a ciência acabado por seguir adiante

sozinha, deixando-as de lado, prescindindo delas como se não

existissem. Isto é uma simples constatação do fato.

Ora, o fato de não possuir o conhecimento não elimina, para

as religiões, a necessidade de afirmar que o possuem. Elas de-

vem sustentar que atingiram a verdade, enquanto apenas seguem

o caminho geral de alcançá-la através de progressivas aproxima-

ções, que aparecem pelo amadurecimento evolutivo das facul-

dades mentais humanas. Apesar de tudo, as religiões também se

encontram submetidas à condição de terem de caminhar, porque

não se pode existir senão caminhando, no entanto, ao mesmo

tempo, creem e fazem crer que estão imóveis. De um lado, elas

não podem mostrar que se transformaram, para não cair em con-

tradição com os seus princípios absolutos e eternos. Mas, por

outro lado, não podem deter o fluir do tempo, pelo qual elas, as-

sim como tudo mais, são arrastadas e transformadas, não lhes

sendo possível escapar às leis da existência. É assim que, se não

quiserem ficar para trás em posições atrasadas, mesmo se decla-

rando absolutas e imóveis, elas têm de se transformar, como to-

das as outras manifestações da vida, seguindo a grande marcha

da evolução, à qual nenhum ser pode subtrair-se.

De tal contraste entre inovadores e conservadores resulta o

fato de que as religiões, ao invés de favorecer o progresso do

pensamento, tendem, pelo contrário, a travar o seu desenvol-

vimento. Assim o pensamento tem de avançar por si mesmo,

com o seu próprio esforço, arrastando consigo o peso morto

de quem, para não se mover e impedir os outros de avançar,

resiste, mas está pronto, quando lhe é conveniente, a aceitar as

novas verdades. Na Terra, as velhas verdades são defendidas

porque os princípios servem de base para manter posições que

ninguém está disposto a abandonar. A resistência é devida a

razões práticas. Foi sobretudo por esta razão que o Sinédrio se

opôs a Cristo. Sustenta-se uma verdade quando ela é útil à vi-

da, que, na sua economia, assim exige. Mas a procura de novo

conhecimento para aprofundar a verdade interessa somente a

pouquíssimos antecipadores da evolução, tomados por uma

ardente curiosidade de saber, ultrapassando as massas, que

permanecem alheias a tudo isto.

Falamos em termos gerais, com base em conceitos biológi-

cos, expondo as leis da vida, que são as mesmas para todos. Ne-

las estão incluídas todas as manifestações humanas e, portanto,

também as religiões. É inútil, então, distinguir entre uma e outra.

O homem é o mesmo e faz as mesmas coisas em todas as religi-

ões. O que muda é somente a forma, as palavras, o estilo. Trata-

se de leis biológicas que funcionam para todos os seres situados

no nível evolutivo em que se encontra a raça humana na sua

média. Um exemplo disso está no fato de que a base mais forte

de uma amizade é a presença de um inimigo comum. A fraterni-

dade entre os seguidores de um grupo nasce e se reforça, quando

se condenam os de outro grupo. Estas são as leis biológicas que

vemos aplicadas por toda parte. Passar de uma religião para ou-

tra não suprime o espírito sectário, que é qualidade humana.

◘ ◘ ◘

Mas há ainda uma outra razão pela qual as religiões tendem

a ficar paradas nas suas posições do passado. Não é só a pre-

guiça de pensar ou o medo de que, tocando o velho edifício dos

princípios sobre os quais se baseiam suas posições materiais,

este venha a desmoronar. A função das religiões não é somente

teórica, para afirmar princípios, mas também prática, para diri-

gir as consciências e educar as massas. Estas têm as suas exi-

gências psicológicas e, como são lentas para compreender e se

mover, conservam tenazmente as posições estabelecidas. É ao

nível destas massas, adaptando-se às suas necessidades, que as

religiões, se quiserem funcionar, devem descer, porque aquele é

o material que elas têm de elaborar.

Ora, fazer descer àquele nível novidades repentinas, pre-

tendendo deslocar subitamente os lentos movimentos consue-

tudinários, sobre os quais se baseia a técnica da assimilação

dos princípios destinados a fabricar o homem que vai substitu-

ir o animal, pode ocasionar, em vez de progresso, anarquia e

desordem. Em vez de fazer progredir, uma inovação pode es-

candalizar. Pensa-se que Deus nunca deve mudar de critério.

Na realidade, porém, uma verdade, para ser aceita na Terra,

deve esperar que os cérebros amadureçam e, assim, tornem-se

capazes de compreendê-la. O fato de, a princípio, não ser ad-

mitida, prova que a verdade é relativa e não pode existir senão

em função dos cérebros nos quais tem de penetrar. A base

concreta sobre a qual as religiões – apesar de possuírem ver-

dades mais avançadas, recebidas por obra de videntes superio-

res – apoiam na Terra suas verdades religiosas é o consenti-

mento coletivo, que, em vez de ser apenas uma afirmação teó-

rica, tem uma existência real nas mentes e é aceito por parte

das massas, formando uma corrente psicológica de fé capaz de

introduzir aqueles conceitos na vida. Estes, portanto, são ver-

dadeiros enquanto gozarem de tal consentimento, sendo acei-

tos pela corrente de pensamento. O paganismo, com seus deu-

ses e templos existiu como verdade, enquanto houve quem

acreditou nele, porém, tão logo a humanidade deixou de crer

nele, parou de existir e não foi mais verdade.

Por isso, quando a crítica busca destruir a fé na qual as re-

ligiões se baseiam, estas se rebelam, pois sabem que a destrui-

ção desta base psicológica, onde elas estão apoiadas, irá matá-

las e, assim, matará também a casta de ministros que as repre-

sentam. Se cai a forma mental, cai também a religião que sobre

ela se baseia. O suporte é psicológico. Os princípios existem

na mente de quem crê, mas isto porque e somente enquanto

eles acreditam. Criar uma corrente psicológica diversa, signifi-

ca na prática destruir tudo. Compreende-se, assim, porque o

maior trabalho de todas as religiões consiste em lutar para

manter de pé a forma mental coletiva que as sustém. Por isso

elas procuram basear-se no absoluto, no imutável, no eterno,

sendo levadas também ao dogmatismo, com afirmações que

concluem em inviolabilidade e indestrutibilidade, para resistir

na luta contra todos os assaltos. Trata-se de um problema de

sobrevivência. Foi com tais meios que, para seu poderio, o

cristianismo lutou contra o Império na Idade Média.

A substância biológica sobre a qual se erguem as verda-

des religiosas é justamente este consentimento coletivo, pa-

trimônio humano que custou esforços de milênios para poder

ser assimilado e fixado na raça. Isto, portanto, representa um

precioso valor biológico, o qual é necessário conservar, mas

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42 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

não para ficar estagnado aí dentro, e sim para ser utilizado

como base de novos desenvolvimentos. Assim como o juda-

ísmo foi precioso para o cristianismo, este será precioso para

se alcançar elevações ainda maiores.

Tais transformações evolutivas sobrevêm, como em todos os

amadurecimentos humanos, através de lentas incubações e ter-

minam por repentinos saltos para diante, que se chamam revolu-

ções. Elas também existem nas religiões, porque esta é a forma

do progresso evolutivo em todos os campos humanos. Quando

chega a hora do salto, a revolução se concentra em torno de um

chefe. Então há luta. Perante o mundo, ele não aparece como um

condutor de verdades superiores, o que interessa a bem poucos,

mas sim como um agitador das posições adquiridas, que na Ter-

ra são fundamentais. Nele se vê sobretudo um novo pastor, que

quer expulsar os velhos, para substituí-los na direção e posse do

rebanho. Isto é o que de Cristo compreendeu o hebraísmo. Para

as velhas religiões, o novo que surge é sempre um herege, de-

vendo, por isso, ser destruído em nome de Deus.

Esta é a razão pela qual as religiões temem qualquer um que

desperte as consciências, porquanto é mais cômodo que estas

permaneçam no sono. Afinal, verdades novas e conceitos mais

avançados não servem para as massas, que se adaptam antes à

lenta repetição mecânica secular, feita sem pensar, para se ori-

entarem em direção ao alto, mas cansando-se o menos possível.

E as religiões devem servir às massas, feitas de almas primiti-

vas, cuja exigência é que lhes seja servido um alimento a elas

proporcionado. E servi-lo é justamente a função dos adminis-

tradores do ideal. Ambas partes acabam por caminhar em acor-

do, porque, no fundo, pastor e rebanho desejam a mesma coisa.

O primeiro quer estabilidade, para não perder sua posição ter-

rena, enquanto o segundo quer reduzir ao mínimo o esforço de

evoluir. É assim que, quando aparece um ser como Cristo, aca-

bam por crucificá-lo. E quem quer segui-Lo encontra-se perante

a muralha da incompreensão humana, cuja resistência lhe im-

põe um lastro imenso a arrastar para frente.

Este é o jogo que acontece em nosso mundo, no atual nível

evolutivo. Existem, como dizíamos há pouco, verdades religio-

sas que constituem um patrimônio precioso. Este foi longamen-

te elaborado e acumulado com esforço, por obra milenária de

sugestão educadora, fixada na psique das massas, que represen-

ta hoje uma corrente de pensamento coletivo imponente. Tudo

isto merece respeito, sendo um capital biológico que deve ser

defendido. Mas também existe o progresso, que leva à conquis-

ta de ideias novas, e estas têm de ser fixadas na psique das mas-

sas. Mesmo quando a ciência, avançando, descobre que as ve-

lhas verdades estavam equivocadas, não se pode destruí-las de

repente, porque elas devem e têm de cumprir a sua função bio-

lógica no nível e no momento em que nasceram e existem. So-

mente destruir o velho nada deixa em seu lugar, e no vazio não

se pode viver. É necessário, então, não destruir de repente todas

as coisas velhas, mas sim transformá-las pouco a pouco em no-

vas, de maneira que possam ser substituídas sem deixar vazios,

nos quais não se saberia mais como dirigir-se. Assim, vemos

que, mesmo deixando de pé a ilusão de se possuir verdades ab-

solutas, exigida pelo mundo, vive-se na realidade em função de

verdades relativas e progressivas, como afirmamos.

Deste modo, ainda que sustentando verdades absolutas, po-

de-se obedecer à exigência de um movimento contínuo em di-

reção ao absoluto, por aproximações sucessivas. Evidentemen-

te, o instinto humano de subir leva ao desejo de uma rápida sa-

tisfação, antecipando assim a chegada do ponto final da evolu-

ção, que é o absoluto, dando-o como alcançado. Mas este pon-

to, de fato, está longe. Então é mais verdadeiro e mais condi-

zente com a realidade permanecer positivo, reconhecendo que

estamos longe daquele ponto, mas que nos avizinhamos dele a

cada dia, evoluindo. Portanto é imprescindível renovar-se, mas

procurando destruir o menos possível, para deixar de pé o que

de bom e utilizável possa existir no passado. É justo, por lei da

vida, que os jovens substituam os velhos, mas não é necessário

que os jovens os matem por este motivo. Basta esperar que os

velhos morram. Assim, quando uma religião, por falta de matu-

ridade coletiva, não está em condições de aceitar novas verda-

des, a única solução é esperar. Mais tarde, ela irá procurá-las,

porque se terá apercebido de que foi superada por elas. Então,

com medo de não chegar a tempo, a religião correrá para incor-

porar as novas verdades, que ela mesma condenou inicialmente.

E, de fato, é isto que costuma acontecer.

Esta é a técnica da evolução das religiões. Eis a mecânica

do contínuo e fatal movimento para fazer avançar quem diz e

crê permanecer imóvel. Conforme nos mostra o exemplo de

Cristo e de muitos de seus seguidores menores, isto é o que

aconteceu, acontece e poderá acontecer em todas as religiões.

VI. SINAIS DOS TEMPOS - JEAN PAUL SARTRE

Trata-se de um caso pequeno, porém adequado a nos revelar

as condições espirituais de nosso mundo atual. E isto é o que

mais interessa observar. O Prêmio Nobel da Literatura de 1964

foi outorgado a Jean-Paul Sartre. Quem era Sartre?

Em primeiro lugar, é absurdo negar a existência de Deus,

como o faz Sartre. De uma coisa que verdadeiramente não exis-

te não se possui sequer a ideia, e quando se nega sua existência,

é porque essa coisa é conhecida, o que significa que existe. E

quanto mais se nega sua existência, tanto mais o próprio fato de

negá-la prova que ela existe. Mas, então, o que se quer negar

quando se nega a Deus? Com a própria negação, pretende-se

destruir não a existência de Deus, o que é impossível, porque

ela não depende das nossas opiniões, mas somente a afirmação

e a ideia alheia de que Deus existe. Isto não passa de uma guer-

ra entre pensamentos humanos opostos, fato com o qual a exis-

tência objetiva de Deus nada tem a ver. Assim ele continua

existindo independentemente das afirmações ou negações hu-

manas, que não vão além de quem as expressa e, obviamente,

nenhum poder tem sobre a existência de Deus.

Não tendo bases objetivas, a negação de Sartre não é o re-

sultado positivo de observações baseadas em fatos e deduções

racionais deles extraídas. A sua negação é simplesmente um es-

tado psicológico seu, como reação aos duros sofrimentos que

encontrou na vida. Arrastado pela Segunda Guerra Mundial,

com sua terra invadida, oprimido e isolado, forçado ao silêncio,

a uma vida subterrânea, num ambiente inimigo, prisioneiro

num campo alemão de concentração, cavou dentro de si, no seu

eu, e extraiu essa filosofia desesperada que se chama existenci-

alismo. Os seus romances apresentam uma série de crises emo-

cionais, tristemente vividas por pessoas atormentadas. A sua

mais importante obra filosófica é um tratado com cerca de 700

páginas, intitulado L’être et le Néant5.

“Diz-me como reages e direi quem és”. Golpes na vida há

para todos. Diante deles, cada indivíduo reage de forma distinta

e, com isso, revela a sua verdadeira natureza. Não sendo positi-

va a sua filosofia, a única coisa que Sartre pode nos oferecer é

nos mostrar seu tipo de reação. Ao expressá-la, atribui a causa a

Deus, ao absoluto, à filosofia, ao mundo, mas, na realidade, ex-

pressou apenas a sua reação pessoal, não fazendo mais do que

se revelar a si mesmo, elevando a sistema filosófico, como

premissa axiomática e indiscutível de cada afirmação sua, a sua

forma mental, o seu temperamento, o seu tipo de personalidade

e, portanto, seu modo de reagir. Pode-se afirmar isto porque,

em iguais condições de opressão e de dor, outros indivíduos, de

diferente estrutura mental e moral, reagiram de um modo to-

talmente diverso e, fazendo aflorar elementos opostos aos ne-

gativos, responderam não com uma reação egocêntrica contra

5 O Ser e o Nada

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 43

Deus, mas sim com a afirmação de Sua ordem vitoriosa sobre o

mal, reencontrando nessa ordem, em defesa da própria vida, o

manancial da própria potência espiritual.

Então, a filosofia de Sartre não é uma filosofia de potência,

apoiada em bases positivas, mas sim de fraqueza, porque se

apoia sobre bases negativas, tal como o egocentrismo do indi-

víduo que se auto eleva, pretendendo substituir-se a Deus; não é

uma filosofia de esperança e salvação, mas de desespero e per-

dição; não é a filosofia de quem vence, mas de quem fica derro-

tado na luta pela sobrevivência. A própria vida, medindo tal fi-

losofia negativa com o seu metro biológico positivo, condena-a

perante o supremo fim da sobrevivência, como sendo uma coisa

gasta, decadente, antivital. Nietzsche, outro negador de Deus,

teve pelo menos, se bem que emborcada, uma fé involuída, mas

poderosa e vital, acreditando num super-homem bestial, arre-

medo de herói satânico, que tem a força de se erguer num desa-

fio diante de Deus, possuindo a coragem de conduzir, sozinho

contra todos, uma luta sobre-humana para se manter e vencer

em posição de anti-Deus, como dominador do caos.

Em Sartre não há sequer esta força positiva que, apesar de

involuída e horrorosa, ainda assim constitui uma tentativa de

potência e grandeza. Em Sartre, a vida retrocedeu um passo a

mais em direção à anulação. Ele expressa e personifica o pro-

cesso humano, hoje em andamento, de destruição dos mais al-

tos valores morais, que são a única perspectiva de um futuro

melhor, a esperança na qual a vida se aferra, a antecipação do

ideal ao longo do caminho da evolução para dar a força de che-

gar até lá. Em vez de avançar para ascender e viver sempre

mais, Sartre nos canta a marcha fúnebre da vida. Em lugar de

despertar o espírito com altos conceitos vivificantes, a mente se

esvazia no nada, a alma se apaga sem esperança, tudo se afunda

na negação. Sartre se enxerta na anulação espiritual e moral dos

tempos modernos, que ele simboliza e reflete, descendo ainda

mais do que Nietzsche. A pintura, a escultura, a música – nas

suas loucas expressões, negadoras de qualquer princípio de

harmonia ou beleza e feitas de deformações involuídas que se

querem fazer passar por profundos conceitos – assim como ou-

tras formas da arte e do pensamento, encontram-se hoje em fase

de destrucionismo. Vivemos na época das demolições.

É verdade que a velha casa está podre e está sendo destruí-

da. Mas a vida ao negativo é morte. Em nossos dias há que se

contrapor à negação uma paralela afirmação, que permita à vida

ressuscitar em outra forma. De momento não se veem sinais de

reconstrução de uma nova casa, que, no entanto, é necessária

para se poder viver em qualquer lugar. Sartre é simplesmente

um destruidor que tende ao vazio, através da anulação das idei-

as fundamentais, fruto do trabalho milenar que conduziu à con-

quista dos mais altos valores da humanidade, os quais são, pe-

rante a evolução, inclusive biológica, de primeira necessidade.

Os homens práticos, de ação, poderão zombar destas afirma-

ções, para eles teóricas e fora da realidade da vida. Mas não sa-

bem que a demolição espiritual implica, como consequência, na

demolição material – a qual representa a última fase do mesmo

processo de destrucionismo – fazendo-se, nesta forma concreta,

compreensível a todos, quando já é demasiado tarde para deter

o movimento. Mesmo que o mundo não compreenda isso, a

destruição dos valores espirituais, que constituem o mais preci-

oso tesouro para o homem atual, leva à destruição dos materi-

ais, dano provocado por ele próprio com a inconsciência de

uma criança que, brincando com um revólver carregado, poderá

matar-se a qualquer momento. Para melhor satisfazer a voraci-

dade do estômago, é mais prático e de tangível utilidade imedi-

ata eliminar o esforço de fazer o trabalho de alimentar o cére-

bro. Assim se goza e se engorda. Possuirá, porventura, o estô-

mago a sabedoria e a consciência para dirigir os movimentos do

corpo? Aonde irá ele terminar, se for abandonado a si próprio?

Assim como a defesa e a sobrevivência do corpo depende da di-

reção do cérebro, que o move, também a conservação dos bens

materiais depende da existência das diretivas espirituais. Hoje,

neste mundo, devido à potência dos meios destrutivos, é neces-

sário redobrado juízo para não acabarmos nos matando a todos,

impulsionados por desapiedados egoísmos. Vai-se perdendo a

cabeça ao eliminar esses freios espirituais, feitos de ordem e

justiça, que são os mais aptos para nos salvar.

É alarmante que o mundo tenha respondido à tendência des-

trucionista de Sartre sem reagir ou se rebelar, mas sim seguin-

do-o. Isto é grave, porque prova também que o mal não é a ex-

ceção de um caso individual, mas sim um fato coletivo, dado

por uma corrente psicológica, expressa com a filosofia da mo-

da, que se chama existencialismo. Se não se trata de um caso

isolado e isolável, se o mundo aceita Sartre, se este é o tipo de

pensamento que a Europa, à frente, como representante do pon-

to mentalmente mais avançado – o cérebro do mundo – lança

como modelo de vida, então devemos crer que tudo está se des-

fazendo, porque o cérebro está gasto e segue à deriva, sem dire-

tivas. Estamos, pois, em fase de involução ao invés de evolu-

ção; caminha-se para trás, e não para diante. Quem conhece as

leis da vida sabe que terrível coisa significa, em termos de em-

brutecimento e dor, um retrocesso involutivo. Quando a cabeça

se põe a olhar para trás, todo o corpo a segue e se põe a cami-

nhar na mesma direção. Se não há reação ao mal, este entra e

vence, destruindo o organismo. Quando, na alta cultura, encon-

tra ressonância o que é corrosivo e destrutivo, então é a própria

vida que está ameaçada nas suas primeiras origens espirituais.

Isto não é questão de fé ou de opinião. Falamos em termos de

uma biologia positiva do espírito, que, para quem a conhece, é

cientificamente controlável. Quando vemos que os bons exem-

plos passam despercebidos, sem despertar eco algum nos espíri-

tos, quando vemos que os maus exemplos são espontaneamente

seguidos, despertando ecos, interessando à crítica e encontran-

do seguidores, então devemos concluir que se deu a precipita-

ção pelo caminho da negação e o pior está por acontecer, por-

que se vai em direção ao vazio e ao nada, onde a vida se apaga.

O fato de, neste ano de 1964, ter sido conferido a Sartre o

Prêmio Nobel de Literatura, que representa o pensamento ofici-

al, julgado o melhor produzido em nosso tempo, confirma as

precedentes afirmações, havendo motivo, então, para se crer

que foi conferido em sentido oposto ao desejado pelo próprio

Alfred Nobel, fundador do prêmio. Pode-se assim compreender

o erro e o perigo que este estímulo representa. Não se trata ape-

nas de ter tirado uma ajuda para os construtores, mas de ter aju-

dado aos destruidores, acelerando a velocidade na descida. Não

se pode deixar de ver em tudo isto uma vingança histórica, lan-

çada em direção destrutiva, que se inicia no campo espiritual e

que, no terreno material, está sendo preparada com a contínua e

sempre mais difundida construção de bombas atômicas. Assim,

o destrucionismo no campo espiritual chegará até às últimas

consequências no campo material. Vivemos num universo em

que tudo está ligado e repercute de um polo ao outro, de modo

que nenhum movimento pode isolar-se das suas repercussões.

Falamos de vingança histórica. Não é possível que a ameaça

de um cataclismo possa ser justificada como resultado somente

da inabilidade ou inexperiência de quem o provoca. Mesmo que

na superfície seja ao contrário, o que rege na profundidade da vi-

da é um princípio de justiça, pelo qual o que nos acontece, em

bem ou em mal, é merecido. Assim, quando durante séculos

acumularam-se erros e culpas, continuando-se a cometê-los hoje,

com acréscimo de potência e requinte; quando o pensamento fi-

losófico, em lugar de dirigir, é um cancro que corrói e a ciência,

o mais alto produto da inteligência, prepara a destruição da hu-

manidade, perguntamo-nos, então, se não será merecido e fatal o

destino que cada um terá de cumprir? Há quem creia que basta

negar uma coisa para que ela deixe de existir, que seja suficiente

ignorar as leis da vida para que elas deixem de funcionar!

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44 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

Já falamos de uma grande alma, Teilhard de Chardin, que

trabalhou no sentido construtivo, oposto a Sartre, para trazer um

ideal à Terra, e não para destruir os vestígios de outros; para nos

fazer avançar, e não para nos fazer retroceder evolutivamente.

Como cientista, ele procurou nos trazer Cristo pelas vias positi-

vas da observação e da lógica. Mesmo assim, foi condenado pe-

la sua Igreja ao silêncio e a morrer tristemente no exílio. Eis o

tratamento que em nosso mundo obtêm os construtores. No en-

tanto eles são indispensáveis à vida, para compensar o trabalho

dos destruidores, que tendem a deixá-la abandonada no vazio.

Junto aos cemitérios cheios de túmulos, é necessária uma contí-

nua produção de recém-nascidos. Somente vive-se enquanto se

caminha. Livremo-nos de parar ou retroceder. A Igreja se alia

com os distribuidores do Prêmio Nobel e realiza o mesmo mo-

vimento, seguindo o mesmo caminho, que vai no sentido oposto

e conduz ao mesmo resultado. Tudo caminha na direção negati-

va, tanto no caso de Sartre como no de Teilhard de Chardin,

uma vez que, por um lado, estimula-se o mal e, por outro, obsta-

culiza-se o bem. O ponto de chegada é o mesmo. Impulsiona-se

o avanço dos destruidores e paralisa-se a obra dos construtores.

Colabora-se em plena concórdia. A conclusão não pode ser ou-

tra senão aquela que explicamos. Quando se trata de uma vin-

gança histórica, portanto de um destino merecido, este se torna

fatal. Quando se optou pela corrida em descida e já não é possí-

vel deter-se, então, para que a Lei se cumpra, ficamos cegos, não

sendo mais capazes de ver o perigo nem a própria salvação. E

talvez o drama do atual momento histórico consista justamente

nesta cegueira, necessária para que se faça justiça.

Sim! Neguemos os valores superiores! Emborquemos as

partes. Ao invés de colocar o estômago a serviço do cérebro,

coloquemos o cérebro a serviço do estômago. Abandonemos o

leme da vida, deixando-a ir à deriva, sem diretivas, em vez de

guiá-la com sabedoria, mantendo-a ao longo do caminho da

evolução, que conduz à salvação. Onde pode ir bater um auto-

móvel numa corrida, quando o motorista está enlouquecido?

Esqueçamo-nos da fundamental função biológica de orientação

que os ideais cumprem para nos levar em direção ao melhor.

Assim seremos presos no vórtice medonho dos retrocessos in-

volutivos, que se fecham em espirais cada vez mais estreitas,

até chegar ao fim, com a destruição da raça humana, caso esta

se demonstre inepta para a vida. A vida já destruiu outros tipos

biológicos que se colocaram nessas condições e, portanto, está

pronta a fazê-lo também com o homem. Sabemos que este é o

seu sistema. Tornemo-nos loucos então. Mas a vida não brinca!

Há dois milênios que o cristianismo luta para civilizar o

homem, realizando um trabalho paralelo ao das religiões irmãs

nos outros continentes. Agora desencadeia-se de novo a besta,

que já não possui somente dentes caninos e garras, flechas e es-

padas, mas também bombas atômicas! Premiai os destruidores!

Que o mundo os proclame e os siga! Sufocai os construtores,

fazendo-os morrer sepultados no silêncio! Ciência, filosofia e

religião, todos parecem ignorar as leis que regem estes erros.

Admita-se ou ignore-se Deus, estas leis funcionam, sendo feitas

de forças invencíveis, cuja atuação se dá segundo princípios

que nenhuma negação pode anular. Constituindo alimento vital,

estas forças exaltam a quem trabalha segundo a sua ordem, mas

se negam e esmagam a quem tenta rebelar-se, indo contra a sua

corrente. Negai, negai! Mas negareis antes de tudo a vós pró-

prios. Destruí e sereis destruídos. O que lançais para fora de vós

cairá sobre vós. Este é o produto que advirá de vossa atual se-

meadura e que pesa sobre o mundo. Daquilo que foi feito nin-

guém pode escapar às consequências, pois elas são merecidas.

De nada serve negar. Os erros se pagam da mesma forma. Age-

se, no entanto, como se as opiniões humanas tivessem o poder

de alterar a estrutura da existência e as leis que dirigem o seu

funcionamento. Sim, proclamemo-nos livres! Experimentemos

violar as leis da vida e logo veremos o que sucede. A nossa ce-

gueira pode nos fazer crer que sabemos vencer. Mas, quando,

pela nossa astúcia, imaginarmos ter enganado a Deus, então tu-

do cairá em cima de nós. Destruamos os alicerces da casa da

vida, suprimindo os superiores valores do espírito, e encontra-

remos o nosso fim. Tanta fome de liberdade, mas é somente

fome de animalidade, impulso em direção negativa, para retro-

ceder e ficar embaixo, eximindo-se da fatigante disciplina da

evolução. Retroceder significa voltar aos níveis evolutivos mais

baixos, onde a vida é mais dura, significa involuir até ao estado

feroz da besta. Quem sabe se não é este o futuro para o qual a

humanidade está se preparando?

O momento é tremendo. Os velhos valores esgotam a sua

tarefa e só funcionam com esforço. Não se vê surgirem novos.

Que diretivas daremos ao caminho da vida? Como já vimos,

abusou-se tanto dos velhos ideais, que hoje, na sua forma atu-

al, eles já não servem, embora contenham pontos a serem re-

novados. Mas, para renová-los, é necessário substituí-los por

melhores, e não por piores. Para retroceder, basta não se mo-

ver. Se não avançarmos em direção aos valores superiores,

continuando o caminho neste sentido, retrocederemos até ao

nível animal. Em certo momento, oferecem-nos um existencia-

lismo ateu e pessimista como sistema filosófico levado a con-

clusões éticas, com pretensões de moralista! Deseja-se encher

o vazio com o vazio. Oferece-se como diretiva uma ausência

de diretivas, ou pior ainda, uma diretiva em descida, que acele-

ra a destruição. Esta é a vitalidade do câncer. Até mesmo este é

movido por um impulso de multiplicação vital, mas no sentido

da autoanulação. Temos, portanto, uma filosofia emborcada,

dirigida no sentido de destruir a vida, porque nega o espírito,

que é vida, e de nos fazer retroceder para mais longe de sua

meta, Deus, ponto para o qual caminha a evolução. Num mo-

mento crítico, é necessário um impulso para diante, no entanto

é dado um impulso para trás, com a oferta de um banquete de

pseudovalores e de negatividade destruidora!

Em Sartre, não encontramos uma revalorização de valores,

mas uma sua desvalorização. A destruição, quando se torna ne-

cessária, somente é admissível como condição e primeiro mo-

mento de uma paralela construção. Aqui falta o segundo termo,

que justifica o primeiro. Isto é nihilismo, desagregação do exis-

tir, triunfo do não-ser. É necessário, pelo contrário, saber recons-

truir e ter a força de subir, se não quisermos deter a nossa evolu-

ção, na qual está a salvação. É certo que estamos carregados

com todos os erros do passado, mas vivemos para não os come-

ter mais. Podemos estar cheios de imperfeições, mas vivemos

para nos aperfeiçoarmos. O mundo está repleto de falsos cultos e

de ideais prostituídos ao interesse, mas vivemos para nos purifi-

car e nos aproximarmos sempre mais de Deus. Sobretudo no

momento atual, temos necessidade de uma filosofia sã, vivifica-

dora, saneadora, cheia de valores vitais. Contudo nos é ofereci-

da, ao invés disso, uma filosofia cheia de ansiedade e de deses-

pero, que não resolve problema algum. A negação mata, não sa-

neia. Uma filosofia feita de pessimismo não pode cumprir fun-

ções vitais e curativas. A angústia só abate. Nada se pode cons-

truir sobre um estado de espírito apreensivo. Poderíamos ver

neste fato a verdadeira face do mundo, que nos aparece assim

com uma expressão de angústia. Mas esta é a tristeza de quem

perdeu o caminho da evolução e, com isso, a esperança da sal-

vação, encontrando-se perdido e sozinho no deserto. Correspon-

deria à tarefa do pensador, que representa a intelectualidade di-

rigente, o dever de orientar o caminhante desviado. Mas, ao con-

trário, ele faz sua esta angústia, deixando-se arrastar por ela e

apresentando-a como sistema filosófico. Mas quem assume a

função diretiva de médico, tem o dever de curar, tratar e dar sa-

úde ao doente. Se, pelo contrário, adoece junto com este, então

usa o mesmo leito, preparando-se ele também para morrer. Um

médico assim, mais doente do que o próprio doente, não serve

para este, eliminando assim qualquer possibilidade de salvação.

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 45

Assim caminha o mundo de hoje, indiferente ao seu eterno

destino, sem entender o profundo significado da existência e a

sua suprema finalidade. É absurdo dizer: “(...) à existência fe-

bril é impossível que se chame destino (...)”, quando isso signi-

fica, para quem queira, a ascensão ao céu, a conquista de uma

existência superior. Quem segue a filosofia da anulação é natu-

ral que se encontre isolado, aniquilado, perdido no vazio, opri-

mido pela angústia, na qual a vida chora o seu fracasso. A ne-

gação entristece porque a vida é feita para afirmar. Este é o so-

frimento dos que, repelindo a supervida do espírito, condenam-

se à morte. Esta é a sorte das almas vazias, dissecadas, conge-

ladas, amantes da negação.

A vida que se faz poderosa no espírito nada teme, pois, na

morte, está cheia de alegria da ressurreição e, na dor, está rica

de esperança, não conhecendo a angústia do vazio, porque é

ativa em cada instante, no trabalho da própria superação e na

conquista por meio da evolução. Tal vida, iluminada pelo co-

nhecimento e potencializada por recursos interiores, é dinâmica

e criadora em cada momento, tornando-se jubilosa por suas rea-

lizações, que a levam cada dia mais alto.

Em Sartre, negando-se Deus, em meio à dor fica só a angús-

tia. É o pranto da alma arrancada da primeira fonte de sua vida,

sem meta e sem esperança de salvação. Em Teilhard de Char-

din, junto a Deus, em meio à dor permanece a consciência de

uma supervida, ressurgindo-se do sofrimento na alegria. É o re-

gozijo da alma que se une cada vez mais à sua fonte de vida.

Quando a selva arde, é natural que o pássaro, por ter com a sua

evolução desenvolvido suas asas, possa voar para longe, sal-

vando-se, no entanto ninguém pode evitar que o verme morra

queimado, porque este, sendo mais atrasado, ainda não chegou

a construir tais meios. As leis da vida continuam funcionando

mesmo para quem as ignora ou as nega.

Fixemos claramente a nossa posição perante Sartre e o exis-

tencialismo. Não estamos do lado negativo dos destruidores dos

valores espirituais, mas do lado positivo e afirmativo dos cons-

trutores. A nossa filosofia, por ser feita de esperança e de cora-

gem, está no polo oposto à filosofia de Sartre, que é feita de pes-

simismo e de desespero. Para nós, o ideal não é ilusão e traição,

mas representa um valor biológico positivo, como antecipação da

evolução. Para nós, a afirmação da existência de Deus não é o

produto de uma fé, mas sim uma certeza, derivada da constatação

da presença de uma suprema inteligência anteposta ao funciona-

mento orgânico do universo. Dizemos, com Sartre, que o homem

é um desgraçado, mas acrescentamos que ele pode e deve superar

a sua desgraça. Constatamos as dores do mundo, mas nem por is-

to nos deixamos vencer, abandonando-nos na inércia, pois com-

preendemos a função criadora da dor e, pelo contrário, impomo-

nos o esforço de superá-la, realização que depende de nós e é

possível, porque assim querem as leis da vida, estando escrito

que isto se deverá cumprir no futuro, por evolução. Trata-se de

conceitos que, em outros lugares, amplamente ilustramos e de-

monstramos. A nossa atitude é ativa, de quem caminha em dire-

ção à vida, e não passiva, de quem se deixa ir para a morte.

São simples os raciocínios do existencialismo na sua liqui-

dação sumária de Deus. Os ateus dizem: “Deus criou as criatu-

ras para fazê-las sofrer; como o mal em Deus é um absurdo,

Deus não existe”. Este discurso significa: “O que verdadeira-

mente importa sou eu. Eu sou o centro, e tudo deve existir em

função de mim. Tudo quando está contra mim deve ser elimi-

nado. Deus me faz sofrer, havendo-me dado essa triste vida.

Então, eu O rejeito. Portanto Ele não existe”. Quem raciocina

assim não compreende que Deus não faz as criaturas sofrerem,

mas são elas que sofrem como consequência dos seus próprios

erros, para aprenderem a não errar mais. O indivíduo que pensa

desse modo demonstra, com isso, encontrar-se ainda evoluti-

vamente atrasado, na direção do AS. Isto é provado pela sua

psicologia de rebelde, que o induz a lançar a culpa sobre Deus,

contra quem ele se revolta, em vez de lançá-la sobre si próprio.

Esta é de fato a mentalidade do biótipo do AS, que, na dor, pro-

cura a fuga, negando, e não a salvação, afirmando.

Segundo a tese existencialista, o universo seria um absur-

do, nada teria sentido e a liberdade humana, surgida por acaso,

num mundo incoerente, seria inútil para qualquer finalidade de

bem. Pessimismo cheio de horror e náusea, em completa opo-

sição à concepção cristã. Seguindo esta, colocamo-nos em uma

posição completamente oposta àquela, procurando cheios de

esperança os valores positivos e construtivos, com uma forma

mental do tipo S. Se estamos embaixo, na desordem e na dor, é

porque somos ainda atrasados. Mas o caminho da evolução es-

tá aberto diante de nós, para que o percorramos e, assim, pos-

samos nos redimir, emergindo sobre o estado atual. O homem

tem nas mãos os meios para se avizinhar sempre mais da feli-

cidade, e isto é possível, basta que ele saiba merecê-la, mo-

vendo-se com inteligência e consciência, segundo a lei de

Deus, no seio da qual ele vive. A vida, compreendida e vivida

a sério, é uma imensa obra de construção.

Mas o existencialismo se explica. Sartre, por si só, não po-

deria fazer nada. Em seu sistema tomou corpo e encontrou a

sua expressão uma corrente já formada no subconsciente cole-

tivo, dada por um estado de ânimo de desespero, devido às duas

guerras ferozes e inúteis, destruidoras de toda fé e ideal. Por is-

so o destrucionismo existencialista, havendo encontrado o ter-

reno adequado, teve seguidores e sucesso. Quem está cansado e

doente de desilusões, prefere abandonar-se no caminho fácil da

descida, ao invés de se esforçar pelo caminho árduo da subida.

As massas comodistas procuram fugir ao trabalho sério e cons-

trutivo, que exige pensamento, esforço e sentido de responsabi-

lidade. Estimulam-nas, pelo contrário, o atalho, a evasão e a

inércia do pessimismo. Mas, assim, não se resolvem os proble-

mas, pagando-se então as consequências.

Tudo isto é prova de debilidade e decadência. Não se res-

pondeu com a sã reação de um organismo forte, que tem vonta-

de de superar os obstáculos, para sobreviver ao ataque do mal,

mas sim com a reação oblíqua e patológica de um organismo

doente, impotente para vencer a doença. Isto se torna mais gra-

ve ainda por estar afetado o cérebro da humanidade, represen-

tado pela elite intelectual da civilização europeia. Trata-se de

uma psicose que corrompe o centro diretivo, justamente o ór-

gão que deveria assumir a tarefa de orientação espiritual do

mundo. Se o cérebro está doente, que sucederá com todo o resto

do corpo? Se a mente, que deveria estar à frente do caminho da

evolução, executando o trabalho de antecipar e avançar, está

corroída e se desfazendo, fazendo o dirigente do veículo perder-

se e sair da estrada, então o desastre é inevitável. Devemos aqui

explicar como tudo isto pode acontecer.

É o pensamento que se encontra nas raízes da vida. O

desmoronamento espiritual precede o desmoronamento mate-

rial e lhe anuncia o começo. O triunfo de Sartre, junto com

outros detalhes, pode ser um sintoma premonitório de que es-

tá amadurecendo o fenômeno da liquidação da civilização eu-

ropeia. Não vemos os filósofos e pensadores no terreno da

ação e da realização. No entanto são eles os primeiros moto-

res das revoluções e revoltas das épocas seguintes. Karl Marx

antecipou os levantamentos políticos do Século XX nas salas

de leitura do British Museum. As inflamadas polêmicas de

Sören Krierkegaard assentaram as bases sobre as quais Sartre

construiu o existencialismo.

Assim, por obra de um só pensador, a semente é lançada. Se

ela encontra o terreno adequado, então se desenvolve rapida-

mente, afirmando-se segundo a sua natureza. Assim sucedeu

com o comunismo e com o existencialismo. Formam-se corren-

tes de pensamento coletivas e vão-se amadurecendo os fenô-

menos sociais nos quais aquelas tomam corpo, até alcançarem a

sua realização como fato histórico.

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46 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

Num ritmo de sucessão de fases, os fenômenos seguem a

trajetória do seu desenvolvimento e, uma vez iniciada esta, são

levados pela sua lei a percorrê-la até ao fim. É difícil detê-los,

porque, até atingirem seu esgotamento, as forças que os puse-

ram em movimento continuam atuando, e só um equivalente

impulso em sentido contrário pode neutralizá-las. Assim, desde

o começo, o observador atento pode ver qual será o futuro de-

senvolvimento do fenômeno, porque, uma vez lançado, ele se

mantém inexoravelmente fechado dentro das normas da lei re-

guladora do seu transformismo. Sabe-se, então, a direção e as

soluções finais às quais, fatalmente, conduzirá a história. Esta

avança por fases sucessivas, sendo que cada uma, pelo fato de

estar implícita na fase precedente, encontra-se ligada à outra

numa sequência inevitável. Quando a história se canaliza por

um determinado tipo de fenômeno, deve seguir os períodos do

seu desenvolvimento, conectados logicamente e condicionados

uns aos outros, como os anéis de uma mesma cadeia. Vários

elementos, cada um tendo e cumprindo a sua própria função,

escalonam-se sucessivamente no tempo: o pensador, o revolu-

cionário, o guerreiro, o líder, o estadista, o político e as massas

que os seguem. Cada um, a seu tempo, é atraído, envolvido e

colocado em movimento, sendo todos postos a trabalhar, ven-

cedores e vencidos; hoje lançados para posições superiores,

quando a sua colaboração é útil e se adaptam ao seu mandato,

cumprindo a sua função histórica; amanhã, porém, abandona-

dos e liquidados, quando já não servem mais. Cada um crê ser

uma força autônoma, trabalhando para si mesmo, mas não é se-

não um instrumento, um momento de um processo histórico,

um elemento que vale só em função do trabalho a cumprir, em

relação ao qual o indivíduo ocupa a posição que o valoriza. Re-

gidas pelo princípio das unidades coletivas, vemos as unidades

menores se unirem organicamente para formar uma unidade

maior. Assim, no desenvolvimento destes fenômenos, obser-

vamos os movimentos dos elementos menores coordenarem-se

instintivamente para determinar os movimentos maiores. Se-

mente e terreno, impulsos e ambiente, chefes iniciadores e mas-

sas, espírito revolucionário e resistências, ações e reações, im-

pulso inovador e consentimento dos seguidores, todos acabam

por colaborar num único concerto, que a história desenvolve

logicamente, arrastando todos no seu progresso.

É com esta consideração que devemos enfrentar o fenômeno

do existencialismo. Sua importância não está no fato de ser uma

teoria, que, como fato individual, não conduz a nenhuma con-

sequência, mas sim no consenso geral a seu respeito, na sua

aceitação como um fenômeno coletivo, o que lhe confere vo-

lume, extensão e significado. Então a teoria filosófica se enxer-

ta na vida e torna-se realidade histórica, porque, transformando-

se em forma mental coletiva, entra no terreno das realizações.

Quando a filosofia que, por ter alcançado tão vastas ressonân-

cias, passa a imperar é uma filosofia corroída, então ela se torna

um perigo social através do grupo que, tomando-a como ban-

deira e fazendo-se expoente dela, vem a incorporá-la e expres-

sá-la. O fato de ter a doença um caráter social faz pensar num

estado de decadência da sociedade. Uma doença que fica limi-

tada a um só indivíduo ou a poucos não tem importância, mas

torna-se grave quando assume proporções epidêmicas.

Matar o ideal é perigoso, pois ele cumpre uma função bio-

lógica necessária, de orientação da vida, projetando-a em dire-

ção ao futuro. Se envenenarmos a vida no seu nível mais alto,

o espiritual, acabaremos por envenená-la totalmente, portanto

também no plano material. A medicina psicossomática reco-

nhece que a origem de algumas doenças orgânicas deve ser

procurada no terreno psíquico. Em tal caso, as etapas sucessi-

vas da ação da psique sobre o corpo são: distúrbio psicológico,

anomalia funcional, alteração celular e lesão anatômica. Existe

assim uma psicogênese das doenças físicas. Perante a higiene

psíquica, a humanidade encontra-se na fase pré-infecciosa, in-

defesa contra os ataques e os venenos psíquicos do ambiente.

Se a vida se corrói no seu polo espírito, acabará por se corroer

também no seu polo matéria. Se destruímos a saúde do órgão

de orientação diretiva, destruiremos forçosamente a do orga-

nismo físico, que depende dele.

O espírito se encontra mais avançado no caminho da evolu-

ção. Está à frente do comboio, sendo o iniciador da marcha. O

resto o segue. Se suprimimos o ideal, obstruímos a via de nosso

desenvolvimento e recaímos na baixeza animalesca de nosso

passado biológico. Desta forma, acabamos por matar a nós

mesmos, porque atraiçoamos a evolução, o fim maior da vida,

que, emborcada, é morte. Então a existência perde todo o senti-

do e valor, ficando reduzida a um charco inútil, sem meta e sem

futuro, quando, na verdade, constitui um precioso meio que

possuímos para alcançar os mais altos destinos.

Parar no meio da universal marcha evolutiva significa ficar

atrasado e ser superado. Se nos retiramos do nível biológico

mais avançado, o espiritual, o centro da vida retrocede, para se

reconstituir num plano inferior, mais involuído, ao nível animal.

Tendo-lhe sido fechado o caminho da evolução, a vida se retrai,

contraindo-se em inferiores dimensões biológicas. Então a civi-

lização se desmorona na barbárie, a ordem no caos, o bem estar

na miséria e no sofrimento. O castigo mais grave com que a lei

da própria vida golpeia a recusa à ascensão é a contração das

dimensões biológicas, é a redução do espaço e da expansão vi-

tal, é a mutilação e o sufocamento da existência. O maior perigo

que ameaça a humanidade, nesta excepcional hora histórica, em

que ela se encontra numa curva do seu caminho evolutivo, é um

retrocesso involutivo. Agora que os tempos estão maduros para

se avançar, ao contrário retrocede-se. A filosofia da negação le-

va à involução. O destrucionismo tende ao retrocesso.

Nós estamos do lado da vida e da sua evolução. Sustenta-

mos os seus direitos e o dever de fazê-los valer. Ao lado do

cristianismo, sustentamos os mais altos valores da civilização,

os do espírito. Deixamos às clínicas psiquiátricas as filosofias

suicidas, doentes, cheias de negação e desespero. Na luta, de-

vemos arder de fé. A dor deve nos reforçar e ser vencida pelas

potências do espírito. Queremos uma virilidade que, superando

aquela primitiva e agressiva de nosso mundo, possa vencer em

planos mais elevados. A nossa obra é uma reação a essa des-

truição espiritual, que, neste período de decadência do mundo,

tende a se fazer universal, abrangendo pintura, escultura, músi-

ca, literatura, moral e filosofia. O valor está em resistir a essa

destruição, lançando-se a construir, a fim de se preparar para

preencher o vazio que será deixado. Por isso não oferecemos

uma filosofia de palavras, sutil, de requintado bizantinismo, vã

e decadente, como a que está hoje em moda. Oferecemos uma

espiritualidade forte, positiva e criadora, de superação evolutiva

e de construção biológica, uma espiritualidade que não se apoia

apenas sobre bases fideísticas religiosas convencionais, mas

sobre bases controláveis, científicas e racionais.

Parece, no entanto, que a humanidade está mais apta a res-

ponder aos apelos do mal do que aos do bem, preferindo aderir a

quem lhe convida a seguir o cômodo, mas perigoso, caminho da

descida, do que a quem lhe propõe o fadigoso, mas saudável, es-

forço da subida. Este é o drama humano que o triunfo do exis-

tencialismo nos revela, no qual os construtores permanecem in-

compreendidos e isolados, enquanto os destruidores, que impul-

sionam para o pior, são compreendidos e seguidos. Isto significa

que a tendência da humanidade, ao invés de seguir na direção do

S, é gravitar para o AS, num retrocesso a estados mais involuí-

dos, a níveis de vida inferiores, cheios de trevas e de dores.

Esta desordem central que está no espírito, de consequência

em consequência, pode se concretizar nos fatos e nos levar a

uma guerra atômica. A opinião pública se preocupa com o atu-

al aumento vertiginoso da população, problema do qual já tra-

tamos. Como um pressentimento, pode surgir a dúvida de que

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 47

este aumento seja um sinal de uma providência que a sabedoria

da vida toma para assegurar a sua sobrevivência, como um sin-

toma revelador da aproximação de uma paralela e correlativa

destruição demográfica. Explicar-se-ia então este aumento, de-

terminado pela necessidade de nos encontrarmos prontos para

enfrentar o novo assalto à vida, compensando as grandes perdas

de uma guerra atômica, para vencê-lo. Na sua imensa experiên-

cia, a vida sabe muitas coisas, como prova o fato de que soube

chegar até aqui, superando muitos outros cataclismos. Nos seus

equilíbrios, a vida, através do aumento da população, resolveria

o problema da sua defesa e, com a destruição, corrigiria o ex-

cesso da superpopulação. Isto não surpreende a quem conhece

os métodos da natureza. Por outro lado, eles são impostos tam-

bém porque é necessário respeitar a liberdade humana, para

que, errando, o homem seja obrigado a se corrigir. Se ele está

louco, que pode fazer a vida a não ser correr atrás dele para re-

mediar as suas loucuras? Se lhe tivesse sido possível, o homem

já teria destruído o planeta há muito tempo.

Só assim tudo se salva. Da liberdade de chegar a uma su-

perprodução demográfica decorre a necessidade de equilibrá-la

com uma compensadora superdestruição demográfica, objeti-

vando a sobrevivência da raça humana e a necessidade de fazer

esta nova grande experiência, a fim de acabar definitivamente

com as guerras, fazendo o homem pagar seu erro com a própria

dor, para que ele aprenda a não repeti-lo. Se, para ensiná-lo,

não há outro argumento a não ser a sua dor, vale a pena, pelas

vantagens que daí derivam, deixá-lo enfrentar semelhante expe-

riência, mesmo que ele tenha de pagar bem caro.

Assim como para a medicina psicossomática – conforme

dissemos acima – também é lei, por princípio de solidária cor-

respondência entre os fenômenos, que à desordem espiritual

deva fatalmente seguir a desordem material. Se hoje constata-

mos a presença da primeira, devemos logicamente esperar o

surgimento da segunda. Esta destruição, no plano físico, seria,

na lógica sucessiva dos momentos do fenômeno, o ponto final

do seu desenvolvimento, implícito na sua fase inicial de prepa-

ração, dada pela atual desorientação espiritual, da qual o exis-

tencialismo faz parte e é uma expressão.

VII. OS IDEAIS E A REALIDADE DA VIDA

I – A Técnica das revoluções no processo evolutivo.

Quando os ideais descem à Terra, eles são transplantados

para um plano biológico mais baixo. Observemos então as re-

ações que eles têm de suportar, as transformações e adapta-

ções a que devem ser submetidos, para poder sobreviver no

nível evolutivo inferior do mundo, e o uso que faz deles a vida

em tais condições, a fim de poder utilizá-los para os seus fins.

Certamente é inevitável que o ideal, pelo fato de representar

um modelo de vida mais avançado, deva suportar um retro-

cesso, a fim de poder subsistir naquele nível inferior no qual

desce, condição necessária para que ele possa avançar. Se é

verdade que o impulso do progresso em direção ao alto procu-

ra impor a ascensão, isto não significa que a realidade bioló-

gica (a vida como ela é de fato na Terra) esteja pronta para se

transformar. Tal realidade tem as suas leis férreas, verdadeiras

neste plano, onde dirigem a vida, não estando de modo algum

dispostas a se deixar destronar.

Por um lado, o ideal impõe justiça, honestidade, sincerida-

de, altruísmo, bondade etc. Por outro lado, a vida se baseia so-

bre um princípio bem diverso, baseado na luta pelo triunfo do

mais forte, onde vale aquele que vence por qualquer meio,

mesmo contradizendo totalmente o ideal e ainda que seja injus-

to, desonesto, falso, egoísta, malvado etc. Se esta é a lei do

animal humano, que predomina na Terra, então a descida do

ideal, quando é vista de baixo, pode parecer um assalto à inte-

gridade da vida, pelo menos do modo como ela é entendida e

quer se realizar neste plano biológico. Como se conduz ela, en-

tão, em sua própria defesa, para permanecer no seu nível? A

princípio resiste, reage à mudança e rebela-se, mas depois aca-

ba por se adaptar, para finalmente transformar-se, assimilando

o novo. Termina então a função do ideal naquele determinado

nível evolutivo, de modo que outro ideal mais avançado pode

descer, para retomar, com o mesmo método, o mesmo trabalho,

mas em um nível um pouco mais alto.

Enfrentam-se assim, em nosso mundo, o ideal e a realidade

biológico, numa posição de luta, cada um para dirigir a vida à

sua maneira e impor-se como regra absoluta. Cada um dos dois

possui a sua moral, que ele coloca como lei de vida e sobre a

qual o seu próprio plano baseia a sua existência. Não é fácil,

portanto, sair disto. A moral do ideal está na superação da rea-

lidade biológica do tipo de vida vigente do animal humano, im-

pondo com este fim o esforço para realizar a ascensão evoluti-

va, renegando o mundo. A moral do plano terrestre é, pelo con-

trário, a sobrevivência a qualquer custo, lutando somente por is-

to e evitando desperdiçar energias na busca de aventuras evolu-

cionistas e duvidosas superações, preferindo ficar no nível atual

e conservar as velhas posições, confirmando e assegurando uma

vida melhor aqui mesmo, no mundo.

Estes princípios opostos não aparecem na Terra somente

como teorias abstratas, mas também concretizados na pessoa de

dois tipos biológicos opostos: o evoluído, que representa e vive

o ideal, e o involuído, que representa e vive a realidade biológi-

ca do ambiente terreno. O primeiro é uma antecipação do futu-

ro. O segundo é um resíduo do passado, e eles se chocam no

presente, que é um período de transição do segundo para o pri-

meiro. O evoluído, porque é mais avançado, cumpre, no equilí-

brio biológico, a função de guia e de exemplo, constituindo o

impulso dinamizador, para estimular a subir. O involuído, por

ser atrasado, representa a resistência, o obstáculo ao progresso,

a revolta, o impulso oposto, ou seja, a negação.

A luta se dá entre dois biótipos, que personificam os dois

princípios opostos. Na Terra, que não é o seu ambiente, o evo-

luído se encontra deslocado, mas cumpre ali a sua grande fun-

ção evolutiva. O involuído encontra-se à vontade na Terra, no

seu ambiente, adequado a ele, por este motivo sente-se incomo-

dado pelo ideal, cuja intenção é deslocar as bases da sua vida, e

então se defende deste, armando-se bem para resistir. Por ser

maioria no momento atual, ele tem a razão na Terra. Mas a hu-

manidade já entrou numa fase de transição evolutiva, de modo

que, através de uma gradual adaptação ao novo, a sua resistên-

cia começa a ceder, iniciando-se assim a assimilação e a trans-

formação. Só depois de compreendermos isto, podemos enten-

der o porquê da contradição entre bem e mal, entre verdade e

mentira, de que está impregnada a vida do homem atual. Nele

coexistem luz e trevas, pois a tentativa da primeira realização

do ideal surge num mundo saturado de animalidade, que é te-

nazmente radicada no passado, revoltada e resistente.

É assim que o ideal, quando chega à Terra, para se realizar,

encontra-se, apesar de descer do Alto, subordinado às leis do

mundo, estando ligado aos acontecimentos do desenvolvimento

histórico e ficando submetido à incerteza da tentativa, que impe-

ra nas coisas humanas. Porém, não obstante esta condição, ele

cumpre a sua função, fixando no fundo do fenômeno o superior

impulso do ideal, com a sua potente e decisiva vontade de reali-

zar-se. Assistimos então a um choque entre elementos opostos:

de um lado o humano e, de outro, o divino, sendo que o segundo

poderá ser atrasado pelo primeiro, ficando momentaneamente

paralisado, mas nunca poderá ser detido. A força do ideal é inte-

rior, provindo de dentro, porque vem de Deus. A luta é realizada

por esta força interior, cuja vontade é alcançar o seu floresci-

mento exterior, que é a sua manifestação na forma. O fato, po-

rém, de serem estas resistências do mais baixo toleradas pelo Al-

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48 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

to não significa que o ideal seja o mais débil e que ele, no fim,

não seja vitorioso sobre tudo mais. Se estas resistências subsis-

tem, é porque fazem parte da estrutura do processo evolutivo,

que tem a sua razão para ser desta forma, e não de outra.

A descida do ideal é uma dádiva do Alto, constituindo uma

irradiação provinda de Deus, que se faz assim imanente mesmo

nos mais baixos planos involutivos, a fim de salvar o ser, atrain-

do-o para si, impulsionando-o a evoluir em direção ao alto. Mas

este impulso, por si só, não basta, se ele não for secundado pela

boa vontade e esforço do ser, cuja liberdade é respeitada, de

modo que ele pode aderir ou não, ficando livre para tomar a de-

cisão de evoluir. O esforço para subir deve ser da criatura, por-

que, conforme determina a justiça, somente pode ser ganho o

que tiver sido merecido. As dificuldades para vencer são neces-

sárias não só para que o esforço se realize e, com isso, obtenha-

se o mérito, mas também para que a experiência vivida ensine e,

por meio dela, o indivíduo aprenda e construa para si novas qua-

lidades, consistindo nisto o processo de sua evolução. Os obstá-

culos superados representam a resistência na qual se enrijece o

lutador, o valor do soldado no campo de batalha, a prova da ca-

pacidade adquirida, o seu diploma de honra, que o qualifica para

ser admitido num plano evolutivo mais alto.

Não há, então, razão para se desencorajar, se por um mo-

mento o mundo vence o ideal. Este, no final, sabe igualmente

triunfar, mesmo que, no seu percurso terreno, ele seja mancha-

do, maltratado, mutilado, emborcado. É lógico que não possa ser

diferente este seu caminho terreno, cujo trajeto vai desde a sua

aparição até à sua afirmação. Para poder transformar os demô-

nios em anjos, os anjos devem misturar-se com eles, sem contu-

do deixarem de ser anjos. Para iluminar melhor a Terra, a estrela

tem de descer até ao lodo, mas nem por isso deve deixar de ser

estrela, tratando pelo contrário de iluminá-lo, para lhe vencer a

opacidade, até que o lodo se transforme em estrela. As condena-

ções, as perseguições, as quedas ao longo do caminho são partes

necessárias do processo da descida dos ideais e da sua afirma-

ção. Quando se observa bem, descobre-se que estes impulsos

negativos terminam por se emborcar, funcionando positivamen-

te, a favor, e não contra o processo. Vê-se então que estas difi-

culdades têm uma potência criadora, porque excitam uma reação

a favor do perseguido, que adquire assim auréola de martírio,

excitando automaticamente a admiração do mundo. Tanto é as-

sim que, para os grupos humanos de qualquer tipo, o mártir, ao

sacrificar-se pela ideia sobre a qual eles baseiam sua existência,

torna-se mercadoria muito procurada, porque eles sabem muito

bem a potência psicológica de proselitismo que tal exemplo traz

em favor do grupo e, portanto, do seu poder. A derrota de um

momento, no qual o involuído é o vencedor, torna-se, por meio

deste, a semente do futuro desenvolvimento do ideal, constituin-

do-se num instrumento de vitória. Tendo-se tornado mais astuto,

o homem moderno, enquanto vai em busca de perseguidos pelo

ideal de seu próprio grupo, para venerá-los a favor deste e desa-

creditar os grupo inimigos, acusando-os de perseguição, ao

mesmo tempo evita praticar perseguições abertas, porque com-

preendeu a potência que isto produz em favor dos perseguidos e

dos respectivos grupos. Concluindo, deve-se à sabedoria com

que está arquitetado este fenômeno o fato de a própria derrota do

evoluído e a vitória do involuído levarem ao triunfo do ideal.

◘ ◘ ◘

Tratemos de desenvolver estes conceitos, observando alguns

casos onde resulta mais evidente a contradição entre os dois

opostos: o ideal e a realidade biológica. Mesmo estando escon-

dida debaixo do ideal, esta contradição constitui uma realidade e

acaba por se manifestar. Frequentemente, o ideal é usado sobre-

tudo para mascarar esta outra verdade, bem diversa. Assim se

explica como o fato de se seguir o mesmo princípio e programa,

que deveria levar à união entre os seguidores, leva na prática à

rivalidade e à divisão, fazendo eles se destruírem mutuamente,

em vez de se unirem, de modo que a fraternização se transforma

em sectarismo e antagonismo religioso. Aqui vemos dois impul-

sos opostos em luta: o do evoluído, querendo levar à unificação

na ordem (Sistema), e o do involuído, tendendo ao separatismo,

que culmina no caos (Anti-Sistema). Conforme dissemos, o ide-

al é neste caso utilizado como uma coberta de aparência formo-

sa, para camuflar a realidade dos interesses que ali se escondem

por baixo. Trata-se de um fenômeno que se encontra em todos e

nos mais diversos campos, mesmo naqueles de natureza oposta,

seja ele religioso, político ou social. Isto porque, em todos os ca-

sos, a substância do fenômeno é a mesma, sendo dada não pelo

ideal professado, que é utilizado para escondê-la, mas sim pelo

grupo humano que o representa, em função de seus interesses e

da luta que ele tem de conduzir para a sua sobrevivência. Na

realidade, a vida está feita de tal maneira, que o mais urgente pa-

ra se salvar em primeiro lugar são os interesses, e não o ideal. O

que assegura a continuação necessária da vida não é a moral da

superação, mas sim a moral da sobrevivência.

É assim que, hoje, assistimos este mesmo fenômeno em

dois campos muito diferentes. Por um lado, verificamos, entre

os seguidores do mesmo Cristo, uma divisão em religiões dife-

rentes e rivais, sendo que o fato das religiões adorarem o mes-

mo Deus não as une, mas sim as divide. Por outro lado, vemos

os comunistas de todo o mundo, seguidores do mesmo Marx e

Lenine, lutarem entre si em nome do mesmo ideal, como a Rús-

sia e a China. A realidade é que, debaixo da bandeira dos mes-

mos princípios, formaram-se grupos com diferentes interesses,

e são estes que prevalecem. Assim, o ideal se adapta e se trans-

forma a serviço de fins mais próximos e concretos, que, não

tendo nada em comum com ele, terminam por substituí-lo.

Debaixo da revolta religiosa de Lutero havia, em relação ao

império da Roma latina, um desejo de emancipação, originado

de um contraste de raças percebido pelas massas, sem o que a

emancipação não teria acontecido. Esta é a substância, mesmo

que se queira justificá-la com o escândalo da venda das indul-

gências por parte de Roma, da qual o próprio Lutero não tinha

o direito de se queixar, pois também ele, de sua parte, cuidava

igualmente dos seus interesses. E por séculos, sob o mesmo

Cristo, as duas partes continuaram se acusando de erro. Na

verdade, a revolta na Alemanha foi devida à intolerância para

com um domínio estrangeiro, ainda que este tenha sido somen-

te no terreno espiritual, revolta prontamente compartilhada

também por sua própria inimiga, a Inglaterra, ambas unidas

contra o inimigo latino comum. Isto porque, para Roma, a

ideia da universalidade espiritual do cristianismo, na prática,

havia-se transformado no interesse do poderio mundial do pa-

pado, coisa essa que, mesmo nada tendo a ver com Cristo, es-

tava substituindo-se a Ele na realidade.

A mesma coisa, por razões similares, está sucedendo hoje

na política, porque o atual tipo biológico, ainda situado naquele

mesmo nível evolutivo, não pode deixar de se conduzir da

mesma forma em todos os campos. Teoricamente, a ideologia

comunista é a mesma na Rússia ou na China, mas é percebida

de formas opostas, porque debaixo dela se agitam interesses

opostos. Em razão disso, a ideia, que deveria unificar, acaba di-

vidindo, porque, na realidade, o que funciona não é a ideia, mas

sim o interesse que se esconde debaixo dela. Assim, onde o in-

teresse do grupo comunista coincidir com o do grupo capitalis-

ta, haverá entre os dois grupos, apesar de serem inimigos, um

acordo, mesmo que isto gere inimizade com os velhos compa-

nheiros de ideal. Eis um exemplo em que vemos a realidade bi-

ológica se substituir ao ideal. Amanhã, isto poderá mudar. Mas

hoje, em 1964, é o que de fato está sucedendo.

Neste caso, o que triunfa é a realidade biológica, e não o

ideal. E a realidade biológica é que todas as revoluções, inde-

pendentemente da ideia professada, têm o seu ciclo pré-

estabelecido. Depois de um primeiro período de desencadeamen-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 49

to, elas se estancam, esgotando-se na fase de aburguesamento

que logo sobrevém, na qual os revolucionários querem descan-

sar e gozar o fruto de seus trabalhos e conquistas, assim como

aconteceu no fim com os seguidores de Napoleão. Esta segunda

fase é, por lei da natureza, a continuação da primeira. Observa-

remos melhor, mais adiante, os períodos deste desenvolvimen-

to. O nosso intento agora é notar que, hoje, a revolução russa

aspira o bem-estar do nível norte-americano, porque, para o

homem, a finalidade de todo o seu esforço é o bem-estar mate-

rial, e não a realização do ideal. É inútil criar ideologias que fa-

çam imposições à vida, quando esta, com suas leis invioláveis,

quer seguir outro caminho. Então, perante a vida, que é mais

forte, é a ideologia que cede e se adapta, transformando-se. É

assim que, agora, quando aparece a ameaça de uma guerra atô-

mica de destruição mundial, fala-se da conquista pacífica do

poder mundial pelos comunistas, através da via eleitoral parla-

mentar burguesa, mais cômoda, em vez de se fazer propaganda

da revolução violenta. Nada mais restou da ideologia, senão

aquilo que a natureza quer para todos. Ficou a vontade de des-

canso e bem-estar, coisas que todo homem ou grupo aspira de-

pois de um trabalho pesado. Existe não só o medo da bomba

atômica e da consequente destruição, mas também o espírito de

conservação e o desejo de paz, que segue naturalmente à tem-

pestade da explosão revolucionária. Então a ideologia adorme-

ce, e a vida continua a caminhar pelas suas vias.

Uma vez que a sua posição e realidade são diversas, a China

se afasta da revolução mãe. Então a mesma ideologia é utilizada

em função de outros interesses. A revolução soviética já é velha

de 50 anos, enquanto a chinesa é uma filha sua de 35 anos so-

mente. A China se encontra na fase inicial da revolução, dada

pela revolta faminta contra a opressão da velha ordem, e não na

fase do ajuste e consolidação de posições no bem-estar, na qual

se encontra a Rússia. É assim que às alianças de base ideológi-

cas vão-se substituindo outras, com base no interesse, unindo os

países pobres contra os países ricos. Por baixo dos princípios

faz-se um acordo entre o comunismo soviético e o capitalismo

norte-americano, para formar uma aliança dita dos “ventres

cheios” contra a dos famintos. Eis a realidade. Quanto à ideolo-

gia, criada por um pensador em outros tempos e condições de

vida, trata-se de coisa demasiado teórica e longínqua para poder

continuar a se impor como foi concebida. Então nasce a discór-

dia, e quem cede não é a realidade prática, da qual depende a vi-

da, mas sim a teoria. E esta, quando não cede, então se desgarra.

Os ideais da China são concretos, utilitários, nacionalistas.

Na meta das revoluções, hoje, está a conquista do bem-estar

econômico de tipo norte-americano, e a medida do seu sucesso

é proporcional ao grau alcançado por elas na realização deste

objetivo , sendo que os meios – iguais para todos – são o traba-

lho, a organização, a produção e a industrialização. O importan-

te é alcançar esta meta. O fato de ser esta alcançada pela via do

comunismo ou do capitalismo pode tornar-se um fato secundá-

rio, reduzindo-se a somente uma questão de método. Eis então

que a ideologia se reduz a uma equivalência de diferentes mei-

os perante o mesmo fim, justamente aquele desejado pela vida.

Assim os princípios teóricos passam para um segundo plano.

Além do bem-estar econômico, com a elevação do seu nível de

vida, a China quer para ela o que lhe serve em primeiro lugar,

mesmo isto não servindo à Rússia de nenhuma forma, ou seja,

ela quer tomar posse de alguns territórios da Sibéria, hoje nas

mãos dos russos, e ter a bomba atômica, para poder impor-se

com a força e a guerra mundial, porque é interesse seu que os

Estados Unidos e a Rússia se destruam mutuamente, a fim de

que somente ela sobreviva, senhora do mundo. Onde foi termi-

nar a ideologia comunista? Este é o velho imperialismo de to-

dos os tempos, fruto do atávico espírito de conquista de todos

os povos. É assim que o ideal vai terminar onde os teóricos

de origem nunca haviam pensado, alcançando, em vez da união,

a separação; em vez da amizade entre inimigos, a inimizade en-

tre companheiros; em vez da vitória do ideal, a sua destruição,

pela coligação do mundo todo contra a nação que, representan-

do tal princípio, busca a guerra para impô-lo.

Esquecidas da ideologia, as leis da vida continuam funcio-

nando por sua conta, sendo acatadas de igual maneira por to-

dos. A China não se dá conta que, levantando-se como uma

ameaça mundial de guerra atômica, alternativa que as suas duas

potências inimigas não querem, ela constitui a força decisiva

para criar e manter a amizade entre a Rússia e os Estados Uni-

dos contra ela, que é hoje o inimigo comum de ambas. As ami-

zades mais fortes não são tanto as determinadas pelo amor, mas

sim aquelas devidas à necessidade de se defender de um inimi-

go comum. A este mesmo fato, num campo mais diverso, deve-

se também o atual Concílio Ecumênico, buscando a fraternida-

de entre católicos e protestantes, com uma atitude nova, surgida

agora, entre velhos inimigos religiosos (como inimigos também

são a Rússia e a China, com interesses opostos sob o mesmo

ideal), que agora, quando os interesses coincidem, unem-se,

porque sobrevêm a necessidade de se defenderem de um inimi-

go comum: o comunismo. E tal como, no caso da China, a ini-

mizade comum dos Estados Unidos e da Rússia contra ela tem

a força para aliar capitalismo e comunismo, também é uma

inimizade comum, neste caso contra o comunismo, que tem a

força e o mérito de fazer conciliar duas religiões até ontem ini-

migas implacáveis. Não podemos fazer outra coisa senão admi-

rar a leviandade do homem e a sabedoria das leis da vida.

O princípio fundamental é sempre o mesmo: a unificação de

elementos individuais, para a formação e a expansão imperialis-

ta de um grupo. Isto é verdade para a Rússia, a China e os Esta-

dos Unidos, assim como para as religiões cristãs divididas. Ou-

tro princípio, também verdadeiro para todos, é o fato de que a

aliança entre inimigos se produz em seguida, para sua própria

defesa, tão logo apareça um inimigo comum. O que prevalece

sobre todas as ideologias é esta realidade da vida, que se encon-

tra escondida, trabalhando atrás delas. Esta realidade, na medi-

da do possível, adapta as teorias a si mesma, transformando-as

e invertendo-as, sendo que, se não puder fazer isso, então ela as

repudia, livrando-se delas. Esta é a história da descida dos ide-

ais à Terra. A vida quer, antes de tudo, a sua própria continua-

ção e, portanto, somente aceita os ideais quando estes lhe ser-

vem para os seus fins, utilizando-os onde e enquanto eles sejam

utilizáveis para ela, de modo que, quando não lhe servem mais,

ela os lança fora como um estorvo inútil. Aceita-os, enquanto

isto lhe convém para evoluir, que é a sua grande e principal fi-

nalidade, porém, tão logo esta evolução se torne demasiado ar-

riscada para a sua existência, a vida está sempre pronta para re-

cuar até às suas posições mais atrasadas, que são mais seguras.

◘ ◘ ◘

Dissemos anteriormente que as revoluções têm um ciclo pré-

estabelecido. Como elas fazem parte do fenômeno da descida

dos ideais à Terra, o qual estamos agora estudando aqui, pode

ser interessante observar a técnica de desenvolvimento deste ci-

clo. Poderemos assim compreender a estrutura, o significado e

a função biológica das revoluções. Elas representam uma tenta-

tiva da vida para realizar um salto adiante no caminho da evo-

lução, com o fim de superar a velha ordem e estabelecer uma

nova. A realidade biológica contra a qual o ideal se choca é a

velha ordem, que resiste para sobreviver.

Uma revolução, para poder vencer, deve apoiar-se sobre um

fundo biologicamente vantajoso, que a justifique e a sustente;

deve ser um meio de superação e de conquista de novos valores;

deve possuir, por trás de um manto teórico de ideologia, algo de

substancialmente vital, de solidamente positivo para a existên-

cia; deve, enfim, realizar-se em função da evolução, lei funda-

mental da vida. De outra maneira não se trata de uma revolução,

mas somente de um “complot” com finalidade partidária, que

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50 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

não interessa à evolução. Assim, o tipo de ideal ostentado com

palavras tem importância relativa. A vida tem uma inteligência,

sabedoria e vontade próprias, interessando-se e, somente por is-

so, permitindo apenas o triunfo daquilo que lhe serve para os

seus fins. Esta é a razão pela qual a mecânica das revoluções é

mais ou menos a mesma para cada um dos seus tipos, sejam elas

políticas, sociais, econômicas, religiosas etc. A lei que lhes regu-

la o desenvolvimento parece seguir um mesmo modelo.

Antes de se manifestarem, as revoluções são preparadas

num período de incubação subterrânea, sendo maturadas no

subconsciente coletivo. O primeiro movimento é teórico e abs-

trato, nascendo no cérebro de um pensador isolado. Se a sua

ideia corresponde aos desejos e serve para as necessidades da

maioria, ela terá seguidores e será traduzida em fatos, adquirin-

do valor prático. A este primeiro período de preparação sucede

a fase de explosão, na qual a nova ideia se afirma, realizando-se

concretamente. Isto acontece em dois momentos sucessivos.

Primeiro ocorre a destruição da velha ordem e do respectivo

poder, para depois haver a implantação e primeira estabilização

da nova ordem. Neste segundo momento, a ideia é arrancada do

pensador que a fez descer à Terra, passando para as mãos dos

homens de ação, que se apoderam dela, para transformá-la em

realidade. São necessários instrumentos diferentes, para serem

utilizados cada um segundo as suas capacidades, pois quem

sabe pensar não pode estar especializado na ação, e quem sabe

atuar não o pode estar no pensamento. Então o desenvolvimen-

to da revolução conduz a uma etapa decisiva, que é a fase de

expansão, pela qual a ideia de origem se irradia, sendo lançada

para longe e difundindo-se pelo mundo. Assim sucedeu com o

cristianismo (levado pelos apóstolos até Roma), com a Revo-

lução Francesa (difundida nas guerras napoleônicas) e com a

Revolução Comunista (expandida pela conquista dos estados

satélites e da China). Depois disto, chega-se à fase de acomo-

dação, na qual se consolidam as posições conquistadas, legali-

zando-as com uma estrutura jurídica própria, no seio de uma

nova ordem. Esta é a idade madura, fase na qual ocorre tam-

bém a filiação, quando nascem as novas propagações, que nem

sempre são fiéis à ideia-mãe, mas que, mesmo deslocadas em

posição, derivam dela, afastando-se assim em forma de cismas,

a exemplo do protestantismo e do comunismo chinês. Trata-se

de um período ainda vital, de expansão, mas sobretudo de

aburguesamento e de engorda, tendendo ao descanso. Depois

disto chega-se à fase final, de cristalização ou mumificação, na

qual o impulso original da ideia se esgotou e tudo se imobiliza,

petrificando-se nas formas. Então o ideal, que pediu à matéria

a vestimenta indispensável para poder tomar corpo no mundo,

acaba por ser envolvido pelas superestruturas materiais. Com a

substituição da substância pela forma, o ideal é então vencido

pela matéria e, tendo esgotado a sua tarefa, extingue-se na Ter-

ra. Com isto se encerra aquele ciclo, sendo que, para continuar

progredindo mais ainda, é necessário começar outro, com uma

nova revolução, seja ela política, para construir uma nova or-

dem social-econômica, ou religiosa, para alcançar uma doutri-

na mais avançada, com bases mais profundas. É assim que o

novo abre caminho e vai para frente, realizando-se a evolução.

Esta é a forma pela qual, através de sucessivos impulsos, os

ideais se afirmam na Terra, vencendo a velha ordem, que, en-

trincheirada nas posições já conquistadas, resiste em nome de

Deus, dos princípios, da justiça, da honestidade e das leis, fei-

tas, antes de tudo, para ela mesma.

Todos estes acontecimentos, do princípio ao fim, represen-

tam um esforço realizado pelo ser para ascender, justamente o

sentido no qual a vida quer evoluir. Esta, então, vendo-se se-

cundada na ascensão do seu impulso fundamental, não pode

deixar de encorajar semelhante esforço, premiando-o. Esta é a

razão pela qual, nas revoluções, pode-se verificar no final um

aburguesamento e uma cristalização, ainda que isto pareça uma

traição e um desvio. O desenvolvimento do fenômeno segue a

sua própria lógica, que é a lógica da vida. Trata-se de uma ló-

gica utilitária, mas não no sentido do justo aproveitamento, e

sim da obtenção do máximo resultado com um mínimo dis-

pêndio de energias, que evita assim inúmeros desperdícios. A

vida impõe esforços, mas sempre em vista de uma melhoria, o

que é lógico e justo, pois ela, por meio da evolução, quer as-

cender do Anti-Sistema ao Sistema, e isto significa salvar o ser

do mal, da dor e da morte, eliminando toda a negatividade que

afoga a vida, tanto mais quanto mais ela for involuída. É ins-

tintivo, efetivamente, que os deserdados mais atrasados não ar-

risquem suas vidas numa revolução, correndo o risco dos peri-

gos inerentes, apenas para nada, mas somente realizem um tal

esforço para alcançar condições de vida melhores. De resto, é

por isto que a vida faz as revoluções, pois sua finalidade é evo-

luir, o que significa melhorar, subindo em direção a um nível

biológico mais elevado. As próprias religiões não tiveram ou-

tro método para induzir os fiéis a praticar o sacrifício das vir-

tudes, senão a promessa de uma recompensa paradisíaca no

além, com um substancial melhoramento de vida. É biologi-

camente absurdo realizar um esforço para nada, fazendo a re-

volução pela revolução ou a renúncia pela renúncia. Um risco

e um esforço não podem ser aceitos senão como um meio para

alcançar uma vantagem que compense ambos. A este esforço

do ser para melhorar corresponde, como é justo, uma ascensão.

Mas isto implica em um prêmio merecido, conferido pela Lei

ao ser, quando este o ganhou com o seu esforço. Os movimen-

tos da vida se realizam acompanhados pela balança da justiça.

Eis a razão do aburguesamento. Ele representa um melhora-

mento, constituindo a compensação imediata com a qual a vida

atraiu e induziu o ser ao esforço, recompensando quem se es-

forçou para ascender. Com isto, ela alcançou o seu fim, que é a

substituição da velha ordem por uma mais avançada. Isto nos

explica também como é lógico que, tendo assim subido um de-

grau, a vida tenda de momento ao repouso, necessário para

preparar um novo impulso para frente. A cristalização final re-

presenta o término desse processo evolutivo, após o qual se

iniciará um outro. Na economia da vida, esta fase representa o

plano realizado e o fruto produzido, concluindo a execução de

um passo a frente. O processo despertará novamente, quando

tiver amadurecido para realizar o passo seguinte.

Assim se desenvolve a técnica do fenômeno da descida dos

ideais na Terra por meio das revoluções. Descida do alto signi-

fica descida de planos de evolução mais elevados, o que é um

conceito positivo. Trata-se da descida de algo que está em posi-

ção evolutivamente mais avançada até aos planos mais atrasa-

dos, para dinamizá-los e elevá-los em direção ao alto. E é o es-

pírito que, encontrando-se mais alto, desce para elevar a maté-

ria. É como uma descida do divino no mundo, trazendo o Sis-

tema para próximo do Anti-Sistema, para que este seja alvo.

Trata-se de um processo de redenção. Desta forma, quem se

encontra mais embaixo sobe pela vertente da montanha da as-

cese, guiado e ajudado pela mão que Deus lhe estende do alto.

Tudo isto nos explica porque, na primeira fase da descida

do ideal – a fase explosiva – a ideia motriz que ele representa

nos chega com toda a sua potência. Uma vez que o dinamismo

do espírito está todo concentrado nela, o fenômeno, neste seu

primeiro período, apresenta-se-nos em forma de expansão ex-

plosiva. Nesta fase, a sua função é a difusão. Mas eis que esta

tende a esgotar o impulso de origem e, com isto, a deter-se, o

que se verifica depois de terem sido realizadas as devidas des-

locações biológicas, porque a vida as recebeu e as fixou em si,

para conservá-las como suas novas qualidades assimiladas.

Chegando a este ponto, o lançamento da ideia alcançou a sua

finalidade e, neste momento, não existe razão para que se exija

outros esforços no sentido de realizar outros avanços à frente.

Então o processo genético se acalma. O ser executou o seu de-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 51

vido passo e, agora, pode parar, a fim de repousar e, assim,

acumular as forças necessárias para realizar um novo salto

evolutivo, consolidando-se ao mesmo tempo nas posições con-

quistadas. Este é o modo como a natureza trabalha, previdente

e econômica. Para não romper o equilíbrio do processo evolu-

tivo e possibilitar sua realização de acordo com os meios dis-

poníveis, a vida procede prudentemente, por graus sucessivos,

de modo que, antes de ascender a um nível superior, ela quer

confirmar as conquistas no inferior. Não se pode edificar um

plano sobre outro, se, primeiramente, não nos asseguramos que

o precedente foi solidamente alicerçado, para poder continuar

com segurança a construção por cima dele. Assim, há na histó-

ria períodos de repouso, nos quais a vida suspende momenta-

neamente o seu esforço evolutivo, parecendo adormecer. Mas

o que ela amadurece interiormente nestes períodos é percebido

apenas depois, quando irrompe uma nova explosão, com a des-

cida na Terra de um mais alto ideal.

Podemos, assim, traçar a linha que a evolução percorre na

sua ascensão. O dinamismo do ideal levanta uma grande onda,

que conduz o homem a um nível biológico superior àquele no

qual teve início o movimento. Alcançando o ápice da subida,

decorrente do poder explosivo do ideal, a trajetória volta a

descer, mas apenas até um certo ponto, o qual está sempre em

um nível mais alto do que o precedente ponto de partida. Des-

se modo, depois das revoluções, que representam uma reação

evolutiva em subida por parte da Lei, verifica-se do lado

oposto uma contrarreação involutiva por parte do ser, em des-

cida, na qual ele tende a regressar ao nível precedente, sem

contudo alcançá-lo – condição esta pela qual se realiza o pro-

gresso – detendo-se um pouco mais acima, num ponto que,

em relação àquele no qual se iniciou o movimento precedente,

é mais avançado, a partir do qual será iniciado depois o novo

impulso para frente. A descida do ideal produziu pela explo-

são um abalo que rompeu os equilíbrios nos quais repousava a

vida, deslocando-a e impedindo, assim, que ela reencontrasse

os equilíbrios das posições anteriores.

Assim, por exemplo, Napoleão, filho da Revolução France-

sa, resolveu regressar ao modelo monárquico, julgando possí-

vel fundar com a sua família uma nova dinastia e reproduzir a

estrutura social que a revolução havia destruído. Mas já não se

podia retroceder até esse nível. A Revolução Francesa tinha

terminado com o sistema monárquico de origem feudal, que

era uma forma mental já superada. A esse plano de organiza-

ção social, portanto, já não era mais possível descer. Então,

como tinha de ser, o projeto de Napoleão ruiu, e esse sistema

foi sendo abandonado pouco a pouco em todo o mundo. É as-

sim que, nestes períodos de descida, tende-se a regressar ao

passado (tentativas de reconstrução monárquica na França,

com Luís XVIII, depois da queda de Napoleão, procurando re-

petir os erros, os abusos e as culpas da classe que a revolução

condenou e eliminou). Mas trata-se de tentativa inútil, porque,

depois do abalo recebido, o velho sistema já não tem mais con-

sistência e, se for reconstruído, desmoronará prontamente. Ao

ponto de partida da revolução precedente não se pode voltar.

Este é o seu fruto. E quando tiver lugar uma nova revolução, o

seu ponto de partida estará mais alto, de modo que, no ápice da

nova onda, é possível chegar mais alto ainda.

É assim que a revolução comunista na Rússia, onde ela é

mais antiga do que na China, tende a se aproximar do capita-

lismo do tipo europeu e norte-americano, que se tornou mode-

lo mundial de bem-estar. Com isso, ela voltou a descer, mas

não até ao nível do capitalismo czarista. Da mesma forma, a

revolução espiritual do cristianismo, já assentada jurídica e

economicamente numa casta com poder político, amalgamada

com o mundo, seu inimigo, do qual adquiriu as qualidades,

voltou a descer em direção ao nível do paganismo, mas sem

alcançá-lo e apenas temporariamente, porque, devido à força do

do impulso em direção ao alto, sofreu uma deslocação das suas

posições anteriores. Assim, foi abolida a escravidão, tendo si-

do introduzido na vida social um sentido de justiça mais pro-

fundo. Em 2000 anos, o paganismo de Roma foi levado muito

mais à frente, tanto que até lá já não é mais possível retroceder.

E se tiver de surgir uma nova revolução religiosa, como é pro-

vável que aconteça por meio da ciência, ela não poderá mais

partir do nível do paganismo, mas sim de um nível muito mais

adiantado, dado pelo cristianismo atual, e isto significa poder

alcançar, no final da nova trajetória, um cume de onda evoluti-

va muito mais elevado do que o já alcançado agora pelo cristi-

anismo, que partiu de bases muito mais atrasadas.

A revolução russa e a chinesa não estão de acordo, porque

se encontram em diferentes fases de desenvolvimento. A pri-

meira é mais velha do que a segunda, além disso, como já refe-

rido anteriormente, a chinesa encontra-se ainda em fase explo-

siva, enquanto a russa está em fase de estabilização. Esta já

conquistou os seus estados satélites e realizou a sua expansão

imperialista, que é a tendência de todas as revoluções, como

parte normal do seu processo de desenvolvimento. A Rússia

chegou até Berlim, assim como Napoleão invadiu a Europa. A

China quer chegar até Calcutá, à África e à Austrália. A revolu-

ção chinesa é uma filiação cismática da russa. Trata-se de dois

processos sucessivos, que recordam a desintegração atômica

em cadeia. A revolução russa, em sua fase explosiva, ateou fo-

go à chinesa, que se tornou depois centro de uma nova explosão

e expansão, ateando fogo a outros países. Tratando-se de dois

centros de expansão, é natural que se choquem mutuamente. O

resultado do impulso da mesma ideologia foi que a Rússia fez

uma revolução para si mesma, para a sua expansão no mundo,

da qual a revolução chinesa é agora um efeito, enquanto a Chi-

na, uma vez tendo captado o impulso recebido, tornou-o seu de

fato, como causa independente, e agora ela também faz a sua re-

volução para si mesma, para a sua expansão no mundo. O fogo

se comunica, mas cada um o consome para si, ardendo à sua

maneira. Poderá suceder em outras nações o mesmo processo

ocorrido com a China, se esta quiser e conseguir comunicar-lhes

o seu impulso revolucionário. A passagem de uma ideia de um

país para outro, de acordo com as diversas condições de fato que

ela encontra, acaba tomando a forma de cisma. Os filhos são

uma consequência, mas nunca uma exata continuação da vida

dos pais. A ideia se transmite, mas depois cada um a adapta ao

seu ambiente e posição histórica. Assim, se o comunismo se ex-

pandisse, teríamos dele tantos tipos diferentes, quantos seriam

os povos que o adotassem. Não é instintivo que os filhos se se-

pararem dos pais para seguir uma vida própria independente?

Uma vez lançado um impulso, este continua autônomo. As-

sim o ideal, comunicando-se de um país a outro, ecoa na Terra,

emigrando e se expandindo. As ideias da Revolução Francesa

transplantaram-se para a democracia norte-americana, assim

como a ideia de Cristo arraigou-se em Roma. A semente é le-

vada longe, em busca do terreno mais adequado para dar fruto.

Essa semente foi depois levada para mais longe, além de Ro-

ma, gerando nos países anglo-saxões o protestantismo, no qual

outra raça utilizou para as suas necessidades, em forma dife-

rente, a mesma ideia de origem. Assim, o processo da descida

dos ideais se realiza não só na profundidade das almas, trans-

formando-as evolutivamente, mas também em superfície, in-

vadindo espacialmente o mundo. O processo se cumpre em pe-

ríodos de esforço alternados com outros de descanso, para con-

tinuar depois, mais adiante, com outro esforço e, assim, chegar

mais acima, para descansar e logo depois recomeçar de novo.

Tudo isto é parecido com a construção de um arranha-céus,

onde um plano é construído acima de outro, servindo a cons-

trução precedente de base para a seguinte, e assim subindo

sempre mais alto. Virá o dia no qual o comunismo, assim co-

mo o cristianismo na sua forma atual, serão ideias velhas e su-

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52 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

peradas, como seria hoje um movimento do tipo da Revolução

Francesa, feito para destruir o sistema social do feudalismo.

Para continuar evoluindo, o mundo necessita de outras revolu-

ções, que partam de um ponto mais avançado, para chegar a

um mais adiantado. Assim ele poderá alcançar formas religio-

sas e econômico-sociais mais evoluídas.

Os encarregados de executar o trabalho de personificar e di-

vulgar na Terra o ideal são os tipos biologicamente mais avan-

çados. Eles são incumbidos do lançamento de novos impulsos e,

por isso, são chamados em missão, como dinamizadores da vida.

Eles representam o princípio que, constituindo o fulgor de pen-

samento que se descarrega na Terra, desce dos planos superiores

do espírito ao nosso mundo. Aqui, na matéria, ele encontra a

mulher fértil, que, na atmosfera de destruição, espera o homem

fecundador aproximar-se dela, para refazer tudo desde o princí-

pio, aceitando e absorvendo dele o poder que lhe dá forma con-

creta na vida. No processo da descida dos ideais, os dois ele-

mentos se unem e ficam juntos para colaborar na gênese do no-

vo. À ideia corresponde o dever de arrastar as massas, mesmo

que isto signifique submergir-se no lodo. Às massas corresponde

o dever de aceitar e absorver. Enquanto a ideia apresenta e lança

o pioneiro da evolução, as massas fornecem, com o rebanho de

seguidores, a matéria a ser plasmada. Forma-se assim um pro-

cesso de colaboração. Mesmo lutando um contra o outro, os dois

termos, justamente porque lutam, abraçam-se. Se eles são inimi-

gos, então entram em choque, mas isto os leva a se conhecerem

melhor. Com efeito, ao homem do ideal o mundo oferece o mar-

tírio, porém, logo depois de ter feito dele uma vítima, termina

por glorificá-lo e venerá-lo. Assim se explica a contradição hu-

mana em que a perseguição é o precedente natural e habitual da

aceitação e exaltação. Mas isto não é contradição. Trata-se ape-

nas do choque entre dois termos opostos, que constituem os dois

momentos diversos e necessários do mesmo fenômeno. Este, as-

sim, desenvolve-se num encadeamento de causas e efeitos, ao

final do qual, do incandescente impulso de origem não restam

senão as consequências fixadas na forma da vida. Mas isto é

precisamente o que a vida quer, porque então a finalidade da

descida do ideal – realizar a evolução – foi alcançada. Num

mundo em que a existência consiste num contínuo vir-a-ser e

qualquer posição definitivamente estática é impossível, nenhum

ser pode permanecer fixo em condições de imobilidade. A des-

cida dos ideais, realizada em ondas sucessivas, marca o ritmo do

universal processo evolutivo, animando-o e sustentando-o, para

que ele eleve e arraste tudo até Deus.

II – O Evangelho e o mundo

Continuemos observando a luta entre os dois termos opos-

tos: o ideal e a realidade da vida, cada um deles representado

pelo seu correspondente biótipo – evoluído ou involuído – e a

sua respectiva moral. Tem-se, por um lado, a superação, apon-

tando para planos superiores de evolução, e, por outro, a sobre-

vivência na Terra, consolidando e radicando a posição no mun-

do. Trata-se de duas concepções opostas. Ou se vive em função

da Terra, aderindo-se ao mundo e à vida presente, ou se vive

em função do Céu, visando-se a vida futura, situada num mais

alto nível biológico. Neste último caso, tendo em vista realiza-

ções mais longínquas, descuida-se daquelas imediatas, tal como

faria o homem previdente, que trabalha e leva uma vida modes-

ta no presente, para poder um dia gozar de um futuro folgado.

A existência presente, então, não é um fim em si mesma, mas

serve somente como preparação para uma vida melhor. Esta foi

a concepção das religiões cristãs da Idade Média, ideia surgida

sobretudo devido às duras condições de vida da época, pelas

quais se acabava induzido a buscar uma fuga da selva feroz

e inabitável que se tornara o mundo, procurando uma evasão

e compensação para, pelo menos, sobreviver em algum lugar.

Semelhantes conceitos, porém, somente se tornaram racional-

mente aceitáveis com as teorias da evolução e da reencarnação.

As coisas do mundo não são más em si mesmas, porém, quando

se faz um mau uso delas, ficam envenenadas por esta distorção,

de maneira que a vida as repele. Neste sentido, Cristo se faz

inimigo do mundo. Se, hoje, o instituto da propriedade – um fa-

to justo e natural, conhecido e admitido até mesmo pelos ani-

mais – está sendo combatido, é porque se cometeu tanto abuso,

que a concessão da posse pode constituir um mal.

Na Terra, podemos constatar a presença de duas morais

opostas. Pode-se sacrificar a sobrevivência pela superação, re-

nunciando a vida presente, para ganhar a vida futura, ou pode-se

sacrificar a superação pela sobrevivência, renunciando a vida fu-

tura, para gozar a vida presente. As duas vantagens juntas não se

pode obter. É sobre estes conceitos que se baseia a moral das re-

ligiões, sobretudo o cristianismo. No entanto elas, falando so-

mente de céu e paraíso, não dão uma explicação lógica e ponde-

rada, deixando no estado nebuloso de fé um problema de impor-

tância vital, que, visto segundo a teoria da evolução, torna-se

claro. Todo indivíduo, segundo o ponto de referência em direção

ao qual a sua natureza o leva, escolhe um ou outro caminho. O

imaturo é atraído pelo mundo, onde encontra o que ele gosta e o

que lhe serve para realizar-se. Quem está maduro para dar o sal-

to à frente, em direção a um superior nível evolutivo, não é atra-

ído pelo mundo, onde não encontra o que gosta nem pode se rea-

lizar, e por isso lhe vira as costas, buscando outro lugar, onde

possa melhor se realizar, segundo a sua natureza.

O contraste das posições faz que, onde um afirme, o outro

negue; onde haja vantagens para um, haja perda para o outro.

Cada juízo e apreciação depende da posição assumida, de modo

que, passando de uma para outra, inverte-se a tábua dos valores.

É lógico que seja assim, porque a nossa dimensão, na qual vi-

vemos, é o relativo. As mesmas coisas podem ser vistas em

função do Céu ou da Terra, o que leva a conclusões opostas.

Que sucede então, quando os ideais descem a Terra, onde

eles são naturalmente vistos e entendidos em função dela, que é

o ponto de referência humana? Que faz o involuído com estes

conceitos, destinados antes para os maduros, que querem se

afastar da Terra? A vida do imaturo será uma negação contínua

das coisas do espírito, enquanto que a dos maduros será uma ne-

gação contínua das coisas do mundo. É assim que, de fato, sen-

do o tipo involuído a maioria no mundo, não encontramos o ide-

al, mas sim uma tentativa de inversão dele. Mais do que servir

para elevação e santificação em direção ao alto, ele é utilizado

para abaixamento e corrupção em direção à animalidade. Obser-

vemos este fenômeno, a fim de nos darmos conta da contradição

que, por detrás das teorias e das palavras, vemos existir nos fatos

e da qual não saberíamos de outro modo encontrar a razão. Este

é o ambiente no qual o evoluído deve estar imerso, para santifi-

car-se, um mundo carregado de animalidade, que trata de masca-

rar e sufocar tudo o que é espírito, para se livrar deste. Devido a

esta diferente moral do mundo e suas respectivas finalidades, é

natural que se tome aqui em consideração o ideal sobretudo para

torcê-lo e adaptá-lo. No mundo, ele é um estranho e um intruso,

que pretende impor a sua lei em casa alheia. Ele representará o

futuro, mas hoje, na Terra e no atual grau de evolução, represen-

ta uma deslocação anacrônica, algo fora de lugar, em contraste

com a realidade da vida. Que pretendem fazer os anjos no reino

da animalidade? E que diriam eles, se representantes deste nível

inferior se colocassem no Céu, penetrando um mais avançado

plano evolutivo, para impor ali as suas próprias leis atrasadas?

Tomemos o caso do Evangelho. Observemos como ele pode

aparecer, quando é visto com os olhos do normal tipo animal-

humano, bem afirmado no seu nível biológico, com a sua cor-

respondente forma mental, que o leva a julgar tudo em função

da Terra, seu ponto de referência. Para este biótipo, fechado

dentro desta realidade, o Evangelho parece um absurdo, contra

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 53

o qual é a própria vida que, impondo a revolta do ser através

dos instintos, acaba rebelando-se. Eis que este absurdo é prega-

do e proposto ao ser como exemplo de coisa superior, imposto

a ele para seu bem, no entanto a realidade da vida lhe diz algo

bem diferente, mostrando que tudo isto significa sacrifício, re-

núncia, sufocação e dor. A compensação que justifica tanta

perda é longínqua e nebulosa, estando situada no além e consti-

tuindo somente um objeto de fé, não controlável. Será então

verdade? A vida nos ensina que é melhor não confiar.

No entanto é certo que também a Terra tem a sua lógica, a

sua moral e as suas leis, sendo que estas costumam aplicar du-

ras sanções a quem as viola. Se no Céu há um castigo para

quem faz o mal, na Terra há o castigo para quem, com o fim de

fazer o bem, deixa-se esmagar. Aqui, o que importa não é a jus-

tiça, o bem ou o mal, mas sim a força e a astúcia para vencer.

No mundo comanda a lei da luta pela vida, e quem não lhe

obedece é severamente castigado. Cristo foi morto porque vio-

lou as leis da Terra, tendo feito isso na casa delas, no lugar que

elas dominam, aonde Ele desceu, vindo do seu plano, situado

bem longe nos céus. Ele desafiou o mundo. Mas este O fez pa-

gar caro a sua revolta, respondendo-lhe com a traição, para de-

monstrar com isto que é o mais forte na própria casa e que, co-

mo tal, tem direito à obediência. Se as leis do Céu castigam o

violador com o inferno, as leis da Terra o fazem com a morte.

E, se Cristo quis viver, teve de fazê-lo fora da Terra, indo em-

bora e ressurgindo noutro tipo de vida, situada nos céus, en-

quanto aqui embaixo venceram e ficaram vivos os seus inimi-

gos. As leis do inferno, assim como as da Terra, não ultrapas-

sam os seus limites, mas, dentro deles, são donas absolutas. As

compensações extraterrenas não interessam ao mundo. Para ele,

a vida terrestre representa a vida toda e, portanto, estas vitórias

sobre-humanas são uma fuga da vida. Para os terrestres, as con-

tas são pagas em seguida, na própria Terra, não lhes importan-

do o Céu e as suas superiores compensações futuras.

Trata-se de duas leis e morais opostas, que se negam reci-

procamente, e cada uma, na própria casa, castiga quem segue a

lei e a moral da outra parte. Aquilo que para uma constitui culpa

e, portanto, é castigado, para a outra significa virtude e, portan-

to, é premiado. O prêmio no Céu é pago, portanto, com o castigo

na Terra, mas o castigo no inferno também é compensado com

um precedente gozo na Terra. Explica-se, assim, como tantos,

para não trocar o certo pelo incerto, preferem buscar, antes de

tudo, as satisfações terrenas mais imediatas e tangíveis, dado

que não se pode usufruir simultaneamente daquelas superiores.

Mas nem por este motivo o engenho humano parou. Então,

na tentativa de usufruir ambas, surgiu a escola das adaptações,

especializada na função de conciliar os dois opostos, para extra-

ir vantagem dos dois lados, diluindo em porções suportáveis

somente uma determinada percentagem do Evangelho, de modo

a poder ir para o Céu sem grande incômodo. A louvável tenta-

tiva não deu como resultado senão um produto híbrido, que não

é nem Céu nem Terra, mas sim um céu que, tornando-se menti-

ra, corrompeu-se na Terra e uma Terra que, em vez de ser sane-

ada pelo Céu, procura corrompê-lo. Dado isto, pode-se verificar

o fato de que, por seguir a Cristo e o Evangelho, quem gosta de

fazer as coisas com seriedade encontra-se condenado não só pe-

lo mundo, seu natural inimigo, mas também pelos acomodados

bem-pensantes, que se aninham em bandos dentro das religiões.

Pode suceder então que o verdadeiro cristão se encontre isolado

contra a corrente, sendo repelido pelo mundo e, em razão de

sua não ortodoxia, olhado com suspeita pelas religiões, adapta-

das à forma mental terrena da maioria. Não foi justamente esta

a razão pela qual Cristo foi crucificado por uma religião que, no

final das contas, representava somente interesses terrenos? Ele

era inimigo do mundo, e não da religião. Se esta o condenou,

foi porque ela acabou representando o mundo, inimigo de Cris-

to. Assim se explica como pode acontecer a contradição de que

um santo seja condenado em nome de Deus, precisamente por

aqueles que se declaram Seus ministros. Se Cristo tivesse sido

somente um teórico idealista, o Sinédrio não teria se incomoda-

do tanto por Ele. Mas a reação foi grande, porque a pregação de

Cristo tocava interesses vitais de sobrevivência, ameaçando os

alicerces materiais do clero de então.

Isto permanece verdadeiro para todos, tanto grandes como

pequenos, pois a lei do fenômeno é a mesma e se repete em

cada caso. A descida dos ideais não pode ter lugar senão atra-

vés do sacrifício de quem procura realizá-lo, porque tudo na

Terra se coliga contra este tipo de ser, constituindo um martí-

rio infligido a ele, até mesmo em nome de Deus (Sinédrio) e

da justiça (Pilatos), pelo tipo involuído dominante, que, pro-

fessando-se defensor do ideal, utiliza-o de forma invertida,

mostrando-nos assim o uso que se pode fazer dele na Terra. O

mundo se rebela contra os ideais, que o incomodam. Ele quer

de fato a religião que, através de um trabalho milenário, esteja

ajustada às suas comodidades, feita de práticas exteriores, as

quais, uma vez satisfeitas, não impeçam a realização dos negó-

cios e interesses de cada um. No entanto ele não se dá conta

que, assim, demonstra não entender de substância, mas apenas

de forma, não sabendo o que é de fato religião.

Pode suceder deste modo um fato estranho. Quando se trata

de problemas religiosos, a reação e a condenação contra qualquer

erro é tanto mais provável e decidida quanto mais os interesses

humanos são atacados pelas teorias. De um modo geral, todo

grupo humano é, inicialmente, induzido a conceber a ideia em

função da sua utilização terrena. De outro modo, para que ser-

viria ela na Terra? Não se saberia o que fazer com ela. Então

aquele que vê a ideia em si mesma, pela sua realização, e não em

função da sua utilização terrena, é repelido, porque vai contra a

corrente, sendo condenado como inimigo do ideal, quando, na

verdade, é o seu melhor amigo. O erro nasce do fato de que o

cristianismo parece representar Cristo, quando, de fato, não é se-

não uma adaptação que o mundo fez para si mesmo de Cristo,

seu inimigo. Então é amigo da religião quem está do lado do

mundo, e não quem está do lado de Cristo, não podendo ser se-

não assim na Terra. Por lei biológica de conservação, o que mais

interessa para qualquer grupo humano não é tanto o conhecimen-

to ou a verdade, mas sim a defesa da própria posição terrena. Os

altos princípios são defendidos somente quando levam à posição

do “eu comando” e, portanto, “tu obedeces”. Isto é o que mais

importa. O ideal, mais do que um fim, é um meio. Não se discute

sobre a própria autoridade e a obediência alheia. Assim, se o in-

divíduo obedece, então ele é bom, de boa moral, louvável e pre-

miado. Mas, se o indivíduo se coloca na posição de “eu coman-

do”, então certamente será desencadeada imediatamente a bata-

lha entre rivais no poder, mesmo que ele tenha agido assim para

não ceder às acomodações e salvar a integridade da ideia.

Quando o homem atribuiu a Deus as palavras: “Eu sou o Se-

nhor teu Deus, e não terás outro Deus senão a mim”, expressou

um pensamento próprio, antropomórfico, imaginando para si

mesmo um Deus feito à sua imagem e semelhança. A base de

cada posição consiste em eliminar os rivais, assegurando-a. Esta

é a lei do grupo e o direito do seu chefe. É ortodoxo quem,

mesmo não crendo, é praticante e trabalha a favor do grupo, ain-

da que a ideia não lhe interesse. Mas pode parecer herege quem

se apaixona pela ideia e pesquisa a verdade, visando o progresso

espiritual; quem sente a febre das conquistas superiores, sobre-

tudo se, por amor à verdade e honestidade, mostra as lacunas,

para eliminar defeitos. Quem não apoia e não se coloca do lado

do próprio grupo, é julgado inimigo da verdade, que é somente

aquela do grupo, sobre a qual se baseiam seus interesses. Este

conceito, na Terra, é a base dos juízos, seja da razão ou do erro,

da aprovação ou da condenação. A ideia da verdade e da justiça,

na Terra, está ligada ao poder soberano que as outorga. Assim, é

verdadeiro e justo o que a ele lhe agrada no seu interesse. Portan-

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54 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

to, tornando-se agradável e submentendo-se a ele em obediên-

cia, obtém-se tudo dele. Se esta é a forma mental humana que se

construiu ao longo da história, como impedir que esta represen-

tação antropomórfica sobreviva nas religiões? É assim que espe-

ramos obter algo de Deus não por um princípio de justiça e de

merecimento, como quer a Lei, mas sim exigindo-o de Deus

como um caprichoso favor, tentando tornar nosso interesse van-

tajoso para Ele, subornando-O com sacrifícios e ofertas.

Há uma grande diferença entre aqueles que criticam a reli-

gião com espírito agressivo, para destruir, e os que, desejando o

melhoramento e o progresso de tudo, expõem a posição atrasa-

da mantida por ela. No entanto ambos os casos são confundidos

e frequentemente recebem o mesmo tratamento. É o caso de

Savonarola, cuja reabilitação inclusive se comenta hoje. Na

Terra, quem não apoia, deixando de participar, é julgado inimi-

go. Vê-se assim um ataque onde ele não existe. Mas o espírito

de luta com o qual se rege a sobrevivência do grupo armado em

defesa própria é tal, que se é levado a reagir contra qualquer

dissidência, mesmo quando ela está a favor dos princípios sobre

os quais se baseia o grupo. Não há nada que irrite tanto os aco-

modados como denunciar as razões das suas acomodações. O

interesse maior de quem utiliza o ideal para finalidades terrenas

é precisamente esconder este fato, para se fazer visto como se-

guidor de fins espirituais. Como se pode harmonizar quem quer

fazer as coisas seriamente com quem se limita somente às apa-

rências? Na verdade, o primeiro tipo aparece ao segundo como

um grande perturbador, que urge eliminar. Ele incomoda mais

do que os ateus materialistas, que são mais fáceis de combater,

porque se colocam na posição de inimigos, enquanto aquele fa-

la em defesa dos mesmos princípios, convidando a observá-los.

É assim que o melhor amigo do ideal é tratado como seu inimi-

go. Não foi este o caso de Cristo? Cuidado, portanto, ao se la-

mentar da falta de religiosidade das religiões. Quem é verdadei-

ramente religioso acaba sendo condenado por irreligiosidade.

Mas, por outro lado, que fazer, se a forma mental humana não

sabe conceber as coisas senão em função da sua utilização ter-

rena, mesmo quando se referem a Deus? Na prática, o que mais

agrada ao grupo, pois serve para sua defesa, é o espírito sectá-

rio, origem da intransigência contra os outros grupos. O resul-

tado é que, assim, não pode permanecer dentro desta psicologia

quem é obrigado, para permanecer religioso, a isolar-se, elimi-

nando as formas exteriores exigidas para encerrar o indivíduo

num grupo ou em outro. Tal indivíduo, acaba assim por ficar

somente com Deus, seguindo uma religião não de palavras mas

de fatos, não de forma mas de substância. Trata-se, porém, de

casos excepcionais, que não interessam às massas, pois estas

não sabem funcionar senão como rebanho, formado de indiví-

duos aos quais não podem ser concedidas semelhantes liberda-

des, porque eles carecem de consciência, autocrítica, sentido de

responsabilidade e conhecimento, qualidades do evoluído.

No entanto é a este tipo excepcional, expulso das filas, que

é confiada a função evolutiva de realizar os ideais, fazendo-os

descer à Terra. Por isto Cristo se encarnou, para impulsionar

em frente a humanidade e possibilitar que se começasse a apli-

car no mundo a lei de um nível biológico superior. Ele foi um

pioneiro da evolução, assumindo a posição de vanguarda, como

antecipação de nosso futuro, porque evoluir é uma tremenda

necessidade da vida. E todos os seguidores de Cristo são seus

colaboradores neste imenso trabalho. Esta é a função biológica

do ideal e o significado da sua descida na Terra.

Ora, o que faz o indivíduo, em particular, decidir-se por um

ou outro destes dois caminhos, isto é, escolher o caminho do

ideal, por ele sacrificando a vida no mundo, ou o caminho do

mundo, desfrutando do ideal para sua própria vida? Esta deci-

são é oferecida a todos, mas as respostas são diferentes. Há

quem se sacrifique para seguir o ideal, e há quem o prostitua,

fazendo comércio com ele. O indivíduo pode escolher entre

a verdadeira e a falsa religião, entre aquela substancial, que é

cansativa, mas feita para ascender, ou aquela formal, que é

cômoda, mas feita para perder tempo. A decisão é determinada

pela natureza do indivíduo, segundo a qual ele se sente instin-

tivamente atraído por um lado ou pelo outro, ficando mais à

vontade num ambiente do que em outro. O involuído vai para

um lado, onde o mundo todo está pronto para recebê-lo. O

evoluído vai para o outro, onde Cristo espera estes solitários

incompreendidos. Os dois tipos se separam. Um caminho vai

em direção a Terra, o outro vai em direção ao Céu. O primeiro

parece dirigir-se para o Céu, mas o que importa não é a apa-

rência, e sim a substância. Há indivíduos que se encontram

perfeitamente à vontade onde outros se sentem sufocar. Quem

gosta de usar a sua inteligência para obter vantagens terrenas e

imediatas, mesmo que para isso prostitua o ideal, termina por

obtê-las e, com isto, é compensado pelo seu trabalho e valor.

Mas existe também quem, não podendo e não sabendo fazer

tão mau uso da sua inteligência, sente-se inclinado a utilizá-la

para fins mais elevados, elegendo o ideal e com ele alcançando

também uma compensação, mas não na Terra, porque, não

sendo esta a sua casa, não é possível ele ser pago aqui por se-

melhante trabalho e valor. Tais evoluídos, porém, são poucos,

e as religiões, que são feitas para as massas, devem se confor-

mar em levar um pouco mais adiante a animalidade humana.

Trata-se de um trabalho elementar e pesado, este de disciplinar

e educar o animal, para transformá-lo em homem. O evoluído,

então, não pode deixar de avançar sozinho. Mesmo mostrando-

se obedientíssimo, permanece independente em substância,

como é o espírito. Mesmo que a sua religião, para ser mais

próxima de Deus, possa parecer ao mundo irreligiosa e heréti-

ca, ele permanece fiel ao ideal. Em qualquer sociedade, quem

se encontra fora dela, porque está acima ou abaixo da média

normal, que estabelece a lei, é sempre segregado e condenado,

seja porque ele está demasiado adiantado (o super-homem), se-

ja porque está demasiado atrasado (o delinquente).

◘ ◘ ◘

Voltemos ao caso do Evangelho. Que acontece quando ele,

que representa a lei de um plano evoluído superior, encontra-se

com o mundo, vindo a conviver e, com isto, a chocar-se com lei

de um plano inferior? Que reações são desencadeadas? Trata-se

de um choque entre elementos e impulsos diferentes, que origi-

nam determinadas reações, estabelecidas por leis que regulam o

fenômeno, tal como nas combinações químicas. Ninguém nega a

beleza do ideal. Mas que sucede quando queremos aplicá-lo no

ambiente terrestre? O ideal exige honestidade, bondade, altruís-

mo, desinteresse e justiça, o que significa sacrifício do indivíduo

em benefício dos outros. A lei da Terra fala bem claramente que

somente quem é mais forte e sabe vencer com qualquer meio

tem o direito de viver. Ao débil resta apenas ser escravizado,

explorado, devorado e, por fim, eliminado. Ora, não importa por

quais princípios superiores ele o faça, mas o Evangelho, na Ter-

ra, quer colocar o indivíduo nesta posição débil, porque o de-

sarma e lhe impõe a não resistência, para que, mesmo sendo um

forte, ele não se defenda quando o assaltem e seja assim devora-

do e eliminado. Resumindo em poucas palavras, na linguagem

do mundo, à força de virtuosas renúncias para si e generosas

concessões ao egoísmo dos outros, o Evangelho desejaria trans-

formar o indivíduo neste tipo que, ao ser golpeado, é paciente,

sendo este justamente o exemplar mais procurado na Terra, o

cordeiro de cujas carnes se aproveitam os lobos, para banquetea-

rem-se e engordarem. O Evangelho diz: “Vai à floresta cheia de

feras, mas sem armas, para abraçá-las e amá-las”. Porém, em

vez do seu amor, as feras querem a carne dele, para devorá-la, e

se apressarão em destruí-lo. Como respondeu então o mundo ao

convite evangélico? Conhecendo bem o seu ambiente e não per-

dendo a cabeça, a sua resposta foi usar o Evangelho como bela

teoria, para pregá-lo aos outros, sobretudo porque isto podia ser

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 55

utilizado para transformar os lobos em cordeiros, permitindo

banquetear-se com suas carnes e engordar melhor.

Se queremos compreender o que acontece na Terra, devemos

nos referir às leis biológicas que imperaram até aqui, e não às

estruturas metafísicas sobrepostas a elas e situadas fora dessa re-

alidade. Esta nos ensina que a vida, no ambiente terrestre, não se

baseia na bondade e na justiça, mas sim sobre a força e o enga-

no. Qualquer vantagem que se queira obter é extraída com estes

meios, pois, de outra forma, ninguém a concede. É sobre estas

bases que de fato se apoiam as relações com o próximo: “devora

a teu próximo, se não queres que o teu próximo te devore”. En-

tão cada um poderia replicar: “Se eu escuto o Evangelho e o si-

go de verdade, quem defenderá depois a minha vida? Ele me

oferece como compensação o paraíso, mas me deixa morrer na

Terra. Isto resultará na ascensão a um plano de vida superior,

mas eu devo primeiro viver a minha vida no nível evolutivo atu-

al”. Com efeito, a religião pede sacrifícios com vista a benefí-

cios longínquos, mas o que nos oferece ela como proteção na lu-

ta pela vida, que é mais urgente? Poderá nos santificar depois da

morte, se isto serve aos seus fins e se houver quem esteja inte-

ressado nesta santificação. Mas tudo isto de nenhum modo nos

ajuda na vida, não sendo possível, depois de morto, acrescentar

ou tirar nada ao que de fato se é perante Deus.

O Evangelho diz: “não sejas egoísta, pensa nos outros antes

que em ti mesmo”. Mas pode-se responder: “os outros pensam

em si mesmo, e não em mim”. Então tudo se resolve numa es-

poliação. O dano é imediato e tangível, sendo que a recompen-

sa é longínqua e misteriosa. Como, portanto, dadas as leis da

vida que vimos anteriormente, não deve o indivíduo se rebelar

com isto, que pode parecer um atentado à sua vida? Como pode

o seu instinto utilitário, anteposto pela natureza para sua con-

servação, aceitar uma mudança tão incerta e arriscada? Primei-

ro viver, e só depois evoluir. Não se deixar ser morto, para evo-

luir. A vida, em função dos seus fins, é prudente e econômica,

não admitindo, portanto, tais desperdícios de seus valores. O

instinto de conservação nos foi dado por Deus para continuar-

mos vivendo. Será que nós, para conquistar os ideais, devere-

mos violá-lo, com o belo resultado de nos deixar matar pelos

piores, que se tornam assim vencedores, estimulados com isto

ao mal por nós mesmos? Pode Deus nos pedir que busquemos

voluntariamente semelhante suicídio? É verdade que não nos

matamos, mas não será isto, além de um convite para nos ma-

tarmos, procurando a morte ao nos colocarmos em condições

de sermos liquidados, também uma instigação para os demais

cometerem homicídio? O Evangelho pode significar para nós

não apenas culpa de suicídio, mas também culpa de incitar ho-

micídio por parte dos outros, tudo isto para chegar à liquidação

dos bons e a uma seleção dos maus. Se os lobos devoram o

cordeiro, a culpa é também deste, que se oferece como vítima

para eles. Na Terra, a luta é lei e a defesa é um dever, tanto que

a vida castiga com a morte quem não o cumpre.

O impulso da evolução, atraindo para Deus, poderá prevale-

cer em indivíduos excepcionais, que, por haverem atravessado

todas as experiências humanas, alcançaram o limite onde explo-

de a hora da superação. Mas, para as massas, ainda submersas

na animalidade, pedir semelhante sacrifício representa somente

destruição de vida, porque o involuído, além da sua vida terres-

tre, não sabe ainda conceber outra vida superior. Sucede então

que, na luta entre Evangelho e mundo, o primeiro, por ser apli-

cado aos imaturos, não pode se manifestar senão como força ne-

gativa, servindo para destruição da vida animal inferior, mas

sem poder substituí-la pela superior vida do homem e do super-

homem, porque, para o primitivo, a primeira representa a vida

toda, e nada lhe fica, se a tiramos. Assim, na Terra, realiza-se do

Evangelho a parte que é negação da vida no nível animal do

homem atual, enquanto não se realiza a parte que é afirmação de

vida num plano evolutivo mais alto. A vida não pode aceitar na

Terra um Evangelho que se apresenta numa forma antivital em

relação ao ambiente, como perda, e não como benefício, como

negação, e não como afirmação. É certo que, se o ponto de refe-

rência não for mais a Terra, mas sim o Céu, então a negação se

torna afirmação e a afirmação, negação. Também o involuído

possui a sua afirmação, mas ele está a favor do mundo, contra a

evolução, e, além de ser, também quer permanecer atrasado no

seu nível, sem arriscar-se em aventuras evolutivas para as quais

o indivíduo ainda não está maduro. Ele não pode sair repentina-

mente do baixo nível da sua animalidade, que constitui a sua na-

tureza e a sua sabedoria, sendo toda a equipagem de que dispõe

para poder continuar vivendo. Não se pode transportar as feras

para fora da floresta, onde vivem como tais, conforme sua apti-

dão e como exige a sua vida, pois transportá-las para um ambi-

ente civilizado significa matá-las.

De tudo isto se poderia concluir que a proposta feita pelo

Evangelho ao mundo não é aplicável senão coletivamente. En-

quanto isto não ocorrer, ao pioneiro isolado não lhe restará se-

não o martírio, a hostilidade do ambiente e a fuga através da

morte. O seu sacrifício o eleva, mas o mata na Terra. A econo-

mia da vida terrestre se baseia em outros princípios. O Evange-

lho, em forma estável, somente é realizável no mundo em um

regime de reciprocidade, onde cada um recebe, por lhe ser in-

dispensável para sobreviver, uma compensação pelo que faz

com o seu sacrifício para o bem dos outros, e vice-versa. Mas,

onde esta reciprocidade não existe, o Evangelho significa sacri-

fício somente por parte de quem o aplica e aproveitamento, às

custas deste, por parte de quem recebe e não corresponde.

O resultado é que o Evangelho, isoladamente vivido na Terra,

leva à sufocação do indivíduo. Isto poderá constituir um supremo

holocausto, uma sublime conquista evolutiva. Poderá interessar

ao indivíduo maduro, que está pronto para superar o atual nível

biológico, a fim de se evadir dele e alcançar outro mais avança-

do. Mas estas coisas estão fora da realidade da vida, tal como ela

é para a maioria no ambiente terreno, e nem sequer são examina-

das. Tais problemas, tratados aqui por nós, a maioria resolve fa-

cilmente na prática, ignorando-os e nem sequer pensando neles.

A vida não pode prosperar alimentando-se somente do sacrifício

e da abnegação do individuo a favor dos outros. O que representa

vida para os outros, que disso se aproveitam, significa morte para

quem, buscando a utilidade destes, sacrifica a sua própria. Onde

há um que manda deve haver quem obedeça; onde há um que

goza deve existir quem pague essa satisfação. O direito de um se

baseia sobre o dever do outro. A generosidade e o altruísmo, co-

mo no caso do amor materno, têm finalidades definidas na vida –

que as calcula muito bem – e não podem ser generalizadas.

Quem, evangelicamente, carrega-se de deveres oferece aos ou-

tros a oportunidade de se investirem de direitos. Quanto mais vir-

tuoso e bem educado é o indivíduo, mais espaço oferece aos vi-

ciosos e mal educados. Enquanto um se retrai, o outro avança. O

altruísmo de um serve para que possa afirmar-se melhor, para seu

dano, o egoísmo dos outros, para vantagem destes.

O Evangelho somente poderá tornar-se uma norma de vida

na Terra, deixando de ser apenas um método de fuga para os

evoluídos maduros emigrarem para mundos mais avançados,

quando comando e obediência, direitos e deveres, desfruto e es-

forço, virtude e educação, forem de todos, e não apenas de pou-

cos, porque, enquanto não forem de todos, estes poucos paga-

rão por todos. Enquanto não se tornar norma social de massa,

fazendo progredir assim toda a coletividade até um nível bioló-

gico mais elevado, o Evangelho não poderá servir senão para

ajudar os evoluídos a fugir do mundo, deixando aqui os piores.

Continuemos observando esta realidade da vida, que os fa-

tos colocam debaixo dos nossos olhos. O evoluído vive em

função de um futuro longínquo, voltando as costas ao mundo

e seguindo o ideal. Mas isto não significa que, para ele, a lei

da Terra não continue a funcionar. Ela não se detém e continua

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56 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

a circundá-lo, assaltando-o a cada instante. Com o seu ataque,

a luta não dá trégua. A presa é o homem do ideal, que, aman-

do o seu próximo, dando e perdoando, responde ao egoísmo

com o altruísmo, à voracidade alheia com a renúncia, à agres-

são com a não resistência. Ele é a vítima feita sob medida,

que, oferecendo-se, excita o apetite dos devoradores, prontos

a aceitar o convite para tão apetitoso banquete, do qual podem

gozar impunemente. Poderá haver algo melhor? Eis como,

verdadeiramente, o grande ideal é satisfeito.

Podemos nos perguntar, então, para que serve esta atitude de

deixar-se devorar gratuitamente? Que melhores qualidades isto

estimula e desenvolve? O bem caberá totalmente para o evoluído,

que trata de ser eliminado do inferno terrestre. Mas, para quem

permanece aí, que resultados lhe produz submeter-se a todo este

mal? Para que serve tornar-se evangelicamente em cordeiro, pro-

curando ser uma boa comida para os lobos? A função do Evange-

lho, neste caso, seria fazer uma criação de cordeiros, para alimen-

tar os lobos, estimulando-lhes a voracidade, sendo que para estes,

de acordo com a sua forma mental, seria justo devorar tais presas,

porque tratar-se-ia de seres débeis e ingênuos. A lei da Terra é

assim e exige que este tipo seja eliminado. Não se é forte na

guerra para distinguir se alguém é bom por bondade ou por debi-

lidade. Para o forte, tal exemplar é simplesmente um débil, que,

como tal, é mais útil e fácil esmagar. Existe também o fato de

que, em geral, o bom é assim porque não tem força para ser mau.

Quem a possui, na Terra, não renuncia a ela, usando-a na luta pa-

ra o ataque e a defesa em seu próprio benefício. Se o indivíduo

não a usa, isto significa que ele não a possui e que, portanto, não

tem valor, razão pela qual é legítimo se fazer dele o que bem se

quiser, pois isto pode ser feito impunemente. A impunidade, ma-

nifestada na ausência de uma sanção punitiva, confere qualquer

direito na Terra. Eis então que, quando um indivíduo se deixa de-

sarmar pelos seus princípios ideais, ele fica sem defesa, estando

exposto a todo tipo de assalto, que não se deterão, enquanto não

acabarem com ele. Segundo a lei biológica do plano evolutivo

animal-humano, não há qualquer razão pela qual não se deva

aproveitar da bondade do homem evangélico, inclusive para lhe

tirar a vida. Eis para que serve o Evangelho na Terra!

Que moral extraem os involuídos vencedores de semelhante

experiência evangélica? O resultado os confirma no mal, porque

são encorajados pelo feliz êxito da sua empresa. Assim, os bons

se tornam melhores e os maus piores, acentuando-se a separação

entre eles. Enquanto sobe ao céu mais um santo, a Terra se en-

che cada vez mais de demônios. Culpa do Evangelho? Mas co-

mo impedir o homem, que é livre, de fazer o bem ou o mal, con-

forme a sua vontade? É assim que os melhores se vão, enquanto

os piores são lançados de volta para o seu inferno terrestre.

A lição que nascerá desta experiência evangélica será dife-

rente para cada um. Para o bom, restará o terror de uma vida re-

duzida a calvário, da qual é felicidade libertar-se. Para o malva-

do, que se aproveitou dele, o resultado será seu aperfeiçoamento

na arte de explorar o próximo, porquanto a experiência vivida

lhe confirmou a utilidade desta sabedoria, dada pelo prêmio con-

ferido a ele pela vida, com as vantagens que esta lhe permitiu

conquistar através de semelhante método. Com isso, o mal é

confirmado e estimulado pelo êxito, enquanto deveria ter sido

eliminado em seguida, por meio de uma dor imediata, infligida

ao agressor, e não à vítima. É assim que temos uma moral em-

borcada, pela qual é premiado quem pratica o mal e castigado

quem faz o bem. Deste modo, as leis da vida, tal como se apre-

sentam no plano humano, tendem, com semelhante experiência,

a ensinar o bom a não repetir mais tal aventura, incentivando-o

pelo contrário a fortificar-se na luta. Por outro lado, as mesmas

leis, premiando os prepotentes com o êxito, estimulam-nos cada

vez mais na caçada aos bons evangélicos (que as religiões for-

mam), para explorá-los e eliminá-los. Quanto mais cordeiros en-

contra, tanto mais o lobo engorda. É incrível não existir mais do

que o medo da prisão para deter o ladrão. É surpreendente quão

pouca consciência se tem dos direitos e deveres inerentes à pro-

priedade. Mas que fazer, quando ela mesma pode representar a

legalização de uma posição alcançável por qualquer meio? E é

precisamente este meio qualquer que se procura, para depois,

formalmente, legitimar para si o produto.

Pode acontecer também que o homem honesto levante a

voz, para fazer o Evangelho ser aplicado não só por ele, mas

também pelos outros, ao menos em relação ao que eles pregam

e professam. Surge então a turba dos bem pensantes acomoda-

dos, santos por fora, mas astutos por dentro. Eles constituem os

grandes defensores dos ideais, porém apenas para que os outros

o pratiquem, estando sempre prontos a se erguerem e condena-

rem, tão logo se mencione fazer as coisas a sério. Mas trata-se

de um outro tipo de evangélico, que sabe viver bem na Terra,

porque, sob o Evangelho, esconde habilmente as armas para a

luta, como é necessário no mundo, aparentando ser suave e

humilde de coração. Desta forma é possível ser evangélico sem

alterar a substância da vida, feita de posições armadas e defen-

didas. O Evangelho pode, então, permanecer comodamente na

Terra, mas sendo, desse modo, utilizado em posição invertida.

Assim, sem ser negado, ele se enxerta no mundo, misturando-se

com a lei da luta desse plano, mas cumprindo a função de não

deixá-la transparecer, de modo a tornar mais fácil dirigi-la à

custa dos ingênuos, que são, desta maneira, melhor enganados.

Tampouco se pode dizer que os astutos, por causa da forma

mental própria do plano biológico humano, não usem com plena

sinceridade este jogo em beneficio próprio. Assim está moldada

a sua consciência e assim ela lhes indica que ajam, sendo esta

orientação confirmada e experimentalmente comprovada pelos

bons resultados que resultam de tal método. Por outro lado, a lei

da luta pela vida significa regime de guerra, e na guerra tudo é

lícito. Tal é a moral do animal-humano, assim como o ato de

agarrar para comer faz parte da moral da fera, que não pode ser

considerada malvada por isto. Por que, nos planos evolutivos

mais baixos, a vida não deveria usar a mentira, quando ela é útil

para a finalidade maior, que é a sobrevivência? Tudo isto se tor-

na imoral somente num nível biológico mais avançado, sendo

percebido no plano humano apenas pelos poucos que estão

emergindo dele. Quem, embora tenha aprendido a demonstrá-la

com palavras, não está maduro ainda para tal sensibilidade mo-

ral, considera, por íntima convicção, tais conceitos uma perigosa

utopia, um ideal de quem vive fora da realidade.

Eis para que pode servir o Evangelho na Terra e como ele

pode ser utilizado, mesmo o sendo fraternalmente, com as ar-

mas escondidas, para levar adiante a própria luta, já que esta é a

maior ocupação para sobreviver, à qual é necessário dedicar-se.

O jogo do engano, pelo fato de ter-se demonstrado útil à vida

no longuíssimo passado, fixou-se como instinto no subconsci-

ente e, agora, já funciona como automatismo, apresentando-se

assim como premissa axiomática da ação. Antes de extirpar tão

inveterado costume, serão necessários milênios de experiências

em sentido contrário, para chegar à construção de instintos

opostos, de tipo evangélico, em substituição aos antigos, de tipo

animal. Mas não se pode impedir que o indivíduo do atual nível

evolutivo, justamente por ser involuído, não esteja convencido

de que o Evangelho se encontra otimamente utilizado deste

modo, porquanto a experiência lhe ensinou e continua ensinan-

do que esse método produz indiscutíveis vantagens. Neste nível

evolutivo, a vida, em vez de castigar o astuto, que engana, pelo

contrário o recompensa, porque ele, com a sua astúcia, deu pro-

va de saber lutar, enquanto ela castiga o ingênuo, por ele ter-se

deixado enganar pelo astuto, para que ele também, por sua vez,

torne-se astuto e não se deixe mais enganar. Esta é a honesta

moral biológica do atual nível de evolução humano.

É assim que, na Terra, o Evangelho permanece pregado, en-

sinado e repetido, mas sem entrar na realidade da vida. Quando

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 57

não é emborcado, ele fica de fora, sendo utilizado para outros

fins, e não para aquele que foi feito. O Evangelho é entendido

como poesia, como um ornamento da vida, uma evasão da sua

dura realidade, uma realização do ideal que, em forma de sonho

e piedoso desejo, é feita com pouco esforço, uma satisfação do

sentimento, uma doce miragem de paz e bondade na qual se

tem trégua na guerra, uma terna carícia para relaxar e repousar

da luta, uma esperança de ajuda gratuita que nos cai do alto, um

traço de céu que, apesar de ser julgado ilusão, é belo contem-

plar. A vida gosta de construir estas superestruturas, estes seus

embelezamentos, como as asas de variadas cores das borboletas

e o canto dos pássaros, que, no entanto, encontram a morte tão

logo cometam erros na luta de cada instante para sobreviver.

Assim, enquanto o poeta canta e morre de fome, o usurário en-

gorda. Quem, em vez de pensar no lucro, pensa no ideal acaba

por ser liquidado. Sonhar na Terra pode custar caro. Assim fun-

ciona a vida, e para isto está feito o cérebro humano. É isto que

o seu ambiente exige e estas são as aptidões que o homem teve

de conquistar no seu passado. Se ele chegou até hoje, é porque

aprendeu tudo isto que o ideal combate. E se continua sobrevi-

vendo, é porque, para sua conservação, não está disposto a es-

quecer o que aprendeu. É a própria vida que, na sua sabedoria,

procura não deixá-lo esquecer. Na prática, todo o espaço vital à

disposição do ser está ocupado por esta realidade, restando para

o ideal somente suas sobras, abandonadas pela vida. É certo

que as coisas são bem diferentes, quando, pelo contrário, olha-

se para o céu. Mais adiante, iremos observá-las deste oposto

ponto de vista. Aqui quisemos, sobretudo, expor a forma de

conceber própria do involuído. Observando a sua conduta, te-

mos motivos para crer que ele, sendo feito antes de tudo para

viver na Terra e segundo as leis desta, pense deste modo, quan-

do se encontra perante o ideal que desce do céu até aqui.

A vida, portanto, está construída de tal maneira, que a vi-

vemos em função ou do presente ou do futuro, ou da Terra ou

do Céu, como involuído ou como evoluído. Ao se ganhar de um

lado, não se pode evitar perder do outro. Quem se interessa

principalmente pelas coisas do mundo trabalha sobretudo para

se instalar bem na Terra, porém se desinteressa da outra vida e,

no momento da morte, encontra-se no vazio. Quem, pelo con-

trário, interessa-se primeiramente pela vida espiritual, trabalha

para superar-se, a fim de alcançar uma posição melhor em um

nível mais evoluído, e, apesar de se encontrar mal na vida, pois

pesa sobre ele o trabalho duplo de luta e evoluir, acha-se bem

no momento da morte, quando se trata de entrar em um novo

mundo, para o qual ele se preparou. O triunfo do involuído está

na vida. O triunfo do evoluído está na morte. São duas semea-

duras e duas colheitas diferentes. Tudo está balanceado. Cada

um opera como crê e como melhor sabe fazer, segundo o que

ele é. Tudo já está estabelecido nas leis da vida. Ao homem res-

ta a liberdade de se mover de uma atitude à outra.

Isto não é válido só para o problema ético ou religioso, mas

também para todo problema biológico universal. É dentro dessa

perspectiva, e não como base de alguma determinada religião,

que sentimos e enquadramos o Evangelho, porque só nesta

forma ele vale para todos e pode, de um modo positivo, ser to-

mado em consideração, como lei biológica realizável pelo ho-

mem através da evolução, quando ele souber alcançar um plano

de vida mais evoluído. Pode-se assim concluir que o Evangelho

realiza na Terra uma função biológica positiva, representando

uma lei, porque ele existe para criar um tipo de vida superior,

adequado ao biótipo mais evoluído do futuro, não importando

sua religião ou raça, mesmo que seja ateu ou materialista. Por-

tanto o Evangelho significa um avanço, constituindo atualmen-

te um programa que, em forma de ideal, ainda não se realizou

na Terra, mas que, por lei de evolução, deverá fatalmente se

concretizar amanhã, pois ele é uma necessidade da vida, e não

apenas o produto de uma religião qualquer.

VIII. DESENVOLVIMENTO DO CRISTIANISMO

Por que um indivíduo – ao apontar as faltas e defeitos do

mundo, para propor melhorias, sendo movido pelas mais since-

ras e honestas intenções, com a finalidade de levar luz e pro-

gresso, sem qualquer espírito de polêmica – é julgado em se-

guida como um inimigo com intenções agressivas, sofrendo to-

da sorte de pressão para se calar? Por que o ato de fazer obser-

vações com uma finalidade de bem, para compreender e escla-

recer, é entendido, na prática, como uma crítica agressiva e uma

ofensa? Quem cai em semelhante mal-entendido deve ser, en-

tão, um ingênuo que, deixando-se iludir pelos sinais exteriores,

não vê a verdade oculta atrás destas aparências.

A realidade é outra coisa. A forma mental humana – o ins-

trumento que fornece a verdadeira unidade de medida do juízo

– formou-se através da luta pela sobrevivência, pela qual se é

levado a ver tudo em função dela. Eis que, na verdade, os ide-

ais, se quiserem existir na Terra, devem estar sujeitos a esta lei

de luta, incorporando-se nas formas que os representam, para

permanecerem protegidos dentro de castelos armados. Nesta

condição, qualquer apreciação feita por estranhos é julgada co-

mo uma ação de guerra, de ataque e defesa, sendo considerada

suspeita, como uma intromissão indevida na casa alheia, que o

dono deve defender acima de tudo. Esta é a realidade, e é por

isto que a exposição de uma ideia, na busca pela verdade, tende

a se transformar em polêmica, pois o instinto humano leva a in-

terpretar tudo em sentido agressivo. A paixão é vencer para

submeter e dominar, e não subir espiritualmente.

Se o interesse fundamental estivesse no aperfeiçoamento, de

modo que a vida fosse vivida em função de um ideal superior a

alcançar, então uma crítica razoável, com um fim benéfico, de-

veria ser não apenas agradecida, mas também considerada uma

amigável oferta, da qual se poderia aproveitar para ascender.

Mas o ideal interessa a bem poucos e o aperfeiçoamento, menos

ainda. Deste modo, a crítica é entendida não apenas como um

estorvo inoportuno – do qual, pelo fato de pretender um esforço

que não se quer enfrentar, todos se afastam – mas também, e

pior ainda, como um ataque de um rival que julga somente para

mostrar deficiências e se aproveitar para destruir.

Prevalece então, não a procura do verdadeiro – que, por

tender a se inverter em ataques demolidores, é sufocada – mas

sim o princípio de autoridade, porque a preocupação principal

na Terra é manter a disciplina e a obediência dos súditos, e não

conhecer e subir. O instinto fundamental do homem não é a

conquista da verdade, mas sim a revolta. Também nas religi-

ões, cada lei somente se torna válida pela força, mesmo sendo

isto obtido através da opressão psicológica para submeter, ar-

mada de sanções e castigos adequados para infligir dano, ainda

que espiritual, aos transgressores. É assim que o instinto de de-

fesa do grupo leva à inibição da discussão esclarecedora do

pensamento, congelando-o em afirmações dogmáticas, pois o

mais urgente para sobreviver é estabelecer as posições de co-

mando e de obediência, constituindo uma ordem que impõe

barreiras e luta contra todas as outras. Este é o motivo funda-

mental da vida, o qual todos entendem e ao qual tudo, portanto

também o espiritual, é levado e reduzido.

Assim se explica como, ao legítimo desejo de evoluir e fazer

evoluir, responde-se, num ato de defesa, com um levantamento

de barreiras. Em cada aproximação humana, a primeira ideia que

surge, por instintivo produto do subconsciente – filho do passa-

do feroz que o construiu – é a de alguém que se aproxima de nós

não para nos ajudar, mas sim para nos agredir, e que, portanto,

deve ser inevitavelmente tratado como um inimigo.

O mal entendido decorre do diverso grau evolutivo dos se-

res, o que implica em formas mentais diferentes, funcionando

cada uma em relação a pontos de referência opostos, em função

da Terra ou do Céu, ou seja, em função da atual fase animal de

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58 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

evolução ou da mais avançada fase futura, hoje antecipada teo-

ricamente pelo ideal. É natural que cada um não possa ver se-

não com seus próprios olhos, percebendo, portanto, somente o

que estes possam ver. Foi assim que a casta político-religiosa,

então dominante, julgou a Cristo, porque ela só foi capaz de ver

Nele um perigo para os seus próprios interesses terrenos, que

lhe pareciam ameaçados por um reformador da lei. Elas não

compreenderam nada da verdadeira função Dele, que era dar

um grande impulso ao progresso da humanidade. O mesmo fe-

nômeno de incompreensão se repetiu em casos menores, com

todos aqueles que seguiram Cristo ao longo do mesmo cami-

nho. Esta é a razão pela qual, com uma forma mental emborca-

da, entende-se tudo ao contrário, de modo que o impulso para

melhorar é tomado como um ato de agressão, produzindo assim

uma reação de defesa, em vez de gratidão. O mal-entendido é

natural, porque na Terra há de fato outro significado para a pre-

sença dos ideais, que existem aqui na forma de castelo armado,

dentro do qual se aninham interesses, sendo sustentados apenas

enquanto servem para defender tais interesses. É assim que sur-

gem nas religiões o fanatismo, o sectarismo e o proselitismo,

prevalecendo o espírito gregário sobre o espírito da verdade.

Prefere-se então o cúmplice amigo, em vez do idealista, que,

sendo amigo apenas do ideal, pode ainda se tornar inimigo,

porque está situado nos antípodas dos interesses terrenos.

No entanto o grupo religioso pode se opor a tais intromis-

sões por parte do idealista, com um justíssimo argumento: “Nós

estamos em nossa casa, que foi por nós construída em terreno

de nossa propriedade. Por isto temos o direito de mandar aqui e

de impor a nosso modo a nossa verdade, expulsando os estra-

nhos que pretendem, a seu modo, impor a sua”. Argumento jus-

to mas terreno. E uma potência espiritual que recorre a ele,

apoiando-se na Terra em vez do Céu, pelo menos nesse mo-

mento, não é espiritual, porque abdica da sua verdadeira posi-

ção superterrena, reduzindo-se a um grupo humano que, como

todos os outros, defende com argumentos humanos os seus in-

teresses. Então, se ela não pertence a Deus, mas sim ao mundo,

que fique no mundo, deixando de se misturar e de utilizar, para

os fins deste o ideal, o espírito e o divino. Não se pode ao

mesmo tempo servir a dois senhores. Não é possível seguir dois

objetivos opostos, o espiritual e o temporal, sob perigo de aca-

bar utilizando o primeiro a serviço do segundo. Portanto a reli-

gião é uma organização humana, que usa os métodos humanos

e que, como tal, deve ser considerada.

Os dois pontos de vista são demasiado diversos para pode-

rem coexistir sem que um dos dois deva ser afastado. Para o in-

voluído, o centro da vida está na Terra e no presente, consti-

tuindo-se de interesses materiais. Ele considera a vida mais

ampla na eternidade, depois da morte, apenas um prolongamen-

to nebuloso, no qual pensará apenas em último lugar, depois de

haver-se esgotado a atual, aquela que vale para ele. Para o evo-

luído, o centro da vida está além da Terra e do presente. Ele

considera que sua vida atual vale somente em função de uma

outra – maior, situada na eternidade – não sendo um fim em si

mesma, mas apenas um meio para preparar e alcançar a realiza-

ção de finalidades mais longínquas. Assim, perante diferentes

amplitudes de horizonte, o problema da vida é conduzido de

modos diversos. Enquanto o homem prático se realiza imedia-

tamente na Terra, o idealista se realiza a longo prazo, depois da

morte, mas seguindo um plano muito mais vasto. Os seus inte-

resses estão fora do mundo. As duas formas mentais são, reci-

procamente, uma o emborcamento e a negação da outra, estan-

do por isto empenhadas em se condenarem uma a outra.

É assim que na Terra fica-se grato não ao amigo da verda-

de, mas ao amigo do grupo. Para o evoluído poder ser aceito

pelo involuído, é necessário ele se abaixar ao nível deste, que

lhe paga este abaixamento, garantindo-lhe o bem-estar. Se o

idealista não se deixa domesticar pelo grupo, é expulso deste.

Dessa forma, é aceito quem coopera no interesse material do

grupo e é importuno quem deseja levá-lo ao plano espiritual.

Ao invés de quem pensa e discute, para compreender e avan-

çar, deseja-se quem crê e obedece, para servir e não incomo-

dar. Isto, moralmente, prejudica o grupo, mas não o indivíduo,

cuja vida espiritual ninguém pode limitar, dado que não se ne-

cessita do próximo para falar com Deus.

O cristianismo foi implantado por Cristo em posição de an-

tagonismo contra o mundo e, se teve de adaptar-se a este am-

biente, não foi culpa sua, pois esta era uma condição necessá-

ria para ele poder sobreviver. Mas o fato é que tal sobrevivên-

cia teve de ser paga com a corrupção do ideal que a religião

afirmava representar, razão pela qual este, em grande parte,

tornou-se mundano, contentando-se assim em se realizar na

Terra apenas no espaço concedido a ele pelo mundo, senhor na

própria casa. Sem dúvida, a evolução se fará de maneira tal

que, no fim, Cristo vencerá. Mas, na fase atual, após dois mil

anos, verificamos que, ao invés do ideal ter vencido o mundo,

foi o mundo que venceu o ideal. É verdade que a vida deste

germe está cheia de imensas possibilidades futuras, mas, no

momento, ela é só vida latente, à espera de se desenvolver. Ho-

je, nos fatos, o cristianismo está mais do lado do mundo do que

ao lado de Cristo, enquanto o verdadeiro cristianismo se en-

contra ainda no estado de boa-nova. Todavia é lógico e justo

que a mente humana não possa expandir-se em direção a mais

vastos horizontes, como o ideal cristão preconiza, se ela ainda

não está madura para isso. E é lógico também que, nos primi-

tivos, tal ideia deva ser primeiramente usada como instrumento

de defesa da vida, em função dos interesses terrenos. Tudo isto

está proporcionado às finalidades que a vida quer alcançar,

conforme o nível atingido, e responde às leis da evolução.

Numa fase inferior, é natural que o inimigo a vencer, contra

quem se desabafa o instinto de luta, seja o próprio semelhante,

porque a mente não é capaz de entender nada além disso. Mas

é natural também que, com o desenvolvimento da inteligência,

prefira-se enfrentar inimigos mais importantes, lutando para

superar a animalidade contida em cada um, conquistar o igno-

to, revelar o mistério e fazer que o amor não seja somente para

a mulher, com a finalidade de gerar, mas sim para o superser

que, através do ideal, encarna um tipo superior de vida. A fun-

ção das religiões é exatamente cultivar, armazenar e oferecer

tais modelos, para que eles possam ser imitados.

◘ ◘ ◘

É certo que existe contradição entre o programa evangélico,

como ele foi traçado por Cristo, e a sua realização prática na

vida dos seus seguidores, sejam eles pastores ou rebanho. O

mundo, com os seus cidadãos, não se deixou de nenhum modo

vencer por Cristo e continuou com os seus métodos. Mas isto se

explica. Quando um ideal desce à Terra, o contraste entre ele e

o mundo é inevitável. Isto salta à vista imediatamente. No en-

tanto a contradição é sanável, resolvendo-se com o conceito de

evolução. A solução está em entender o Evangelho em sentido

dinâmico-evolucionista, e não estático-definitivo, observando-o

como um processo em formação, que se projeta e se cumpre no

futuro, e não como uma posição fixada no presente. Mas se isto

explica e justifica o estado atual, nem por isso o altera, perma-

necendo o fato de ser uma contradição. A solução está na trans-

formação de tudo por evolução, algo que, só podendo acontecer

com o tempo, encontra-se hoje em posição de espera perante o

futuro. Permanece, no entanto, a contradição, a qual é bom ob-

servarmos, para compreendê-la, pois dessa forma, mesmo que

isto revele sua negatividade, é possível prever os seus futuros

desenvolvimentos. Observemo-la então.

O Evangelho fala clara e repetidamente a respeito da posse

de bens, de um modo que não deixa dúvidas. “Se quiseres ser

perfeito, vai, vende o que tens e dê tudo aos pobres (...)”; “Em

verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no reino dos

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 59

céus. Sim, repito-vos: é mais fácil um camelo passar pelo bu-

raco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”;

“Não acumuleis tesouros na Terra (...)”; “Ninguém pode servir

a dois senhores: ou amará um e odiará o outro, ou se afeiçoará

a este e desprezará àquele. Não podereis servir a Deus e a

Mamom”; “Quem dentre vós não renuncia a tudo o que possui

não pode ser meu discípulo”.

Os banqueiros mais bem informados calculam valer entre

dez a quinze bilhões de dólares as riquezas do Vaticano, que

possui grandes investimentos em bancos, seguros, produtos

químicos, aço, construções, imóveis etc. Os dividendos servem

para manter de pé toda a organização, inclusive as obras de be-

neficência. Sobre estas entradas, o Vaticano, pelo menos até

hoje, no início de 1965, na Itália, não paga impostos. Que se di-

zer então dos séculos passados, quando a Igreja, com o poder

temporal, tinha-se submergido no mundo até ao pescoço, exi-

gindo impostos, armando exércitos e ligando-se à política? A

contradição justifica-se, mas é evidente.

O que a justifica são as inderrogáveis exigências do ambien-

te social do “mundo”, onde não sabemos nos imaginar fazendo

parte de alguma organização que não possua meios. Eles são

indispensáveis à Igreja, para ela cumprir a sua função. Mas, en-

tão, o erro de previsão é de Cristo, pois, para poder funcionar

na Terra, o cristianismo devia renunciar a ser perfeito, indo

contra o conselho de Cristo. Os primeiros a estar em falta são

os próprios pastores. E, se semelhante exemplo vem deles, que

deverão fazer então os seus discípulos? Mas será culpa da Igre-

ja o fato de estar ela obrigada a isto, para poder cumprir o seu

mandato? E, se a culpa não é da Igreja, como não lançá-la sobre

Cristo? Se um representante do Vaticano perguntasse a Cristo:

“Que devo fazer para obter a vida eterna?”, certamente Cristo

não poderia responder outra coisa senão: “Se quiseres ser per-

feito, vai, vende o que tens (...)”. E a Igreja deveria objetar: “Se

queres que eu cumpra a tua ordem de representar-Te na Terra,

devo possuir os meios do mundo”. Mas a ordem é clara: “Tu és

Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (...); “Apas-

centa as minhas ovelhas”. Não havia, portanto, outra escolha:

para poder obedecer de um lado, era necessário desobedecer do

outro; para poder cumprir o mandato, era imprescindível renun-

ciar a ser perfeito. Não havia outra alternativa, senão adaptar-se

à Terra e pactuar com o mundo inimigo. Assim, não seguindo o

conselho de Cristo, a Igreja apossou-se de bens, ainda que isto

necessariamente a tornasse um instrumento imperfeito. Tendo

de viver em casa alheia, o ideal devia aceitar as leis do mundo.

A este preço, o cristianismo conseguiu sobreviver por dois mil

anos, habitando a casa do inimigo.

O problema está em saber se isto, que é uma necessidade

imposta pela realidade da vida, representa uma traição de prin-

cípios, uma prostituição do ideal. É lícito arrogar-se a posição

de representantes de Cristo, sem, no entanto, seguir os seus di-

tames? E, se tais ditames presumem a presença de heróis e

mártires, que não existem na prática, quem sobraria então para

constituir a Igreja no cumprimento do seu trabalho? Se a apli-

cação integral do Evangelho no mundo conduz à morte, de que

serviria na Terra uma Igreja de santos transferida para o Céu?

Ela deve ser constituída de homens que saibam viver no mun-

do, e não de santos devotados à morte. É assim que a Igreja,

estando sujeita às leis do mundo, do qual fatalmente ela faz

parte, teve de se tornar uma organização terrena, sendo cons-

truída com o material humano corrente, pois não havia outra

maneira para representar a Cristo. Tal fato, porém, ainda que

seja inevitável, rebaixa imediatamente o nível desta organiza-

ção até ao plano terreno, colocando-a lado a lado com todas as

demais, para ser tratada como tal. Temos então uma Igreja que,

mesmo sendo isso para santificá-lo, tornou-se mundo, asseme-

lhando-se assim àquilo que deveria ser o seu maior inimigo.

Desse modo, ela se tornou administração de bens, burocracia,

negócio, política etc., descendo ao nível comum da luta pela

vida. Mas podem os homens mudar seu modo de ser e assumir

a forma mental evangélica, tão afastada do seu mundo, só pelo

fato de fazerem parte da organização eclesiástica? O resultado

desta simbiose entre Cristo e mundo é que de cristão não resta

ao cristianismo atual senão pregação, retórica e hipocrisia. Im-

põe-se, pelo contrário, e prevalece o que na Terra é mais im-

portante, ou seja, a necessidade de administrar, algo indispen-

sável tão logo se forma uma comunidade.

Um pastor, vivendo com sua congregação perto de Roma,

escrevia para mim e, por ser honesto, expressava sinceramente

o seu pensamento, que se resumia em afirmar: “O Evangelho

mata, e que morte! Por isto existe a autoridade da Igreja, à qual

confiar-se”. Eis, portanto, a solução: põe-se Cristo de lado e

exercita-se o comando em seu nome. De resto, esta é a tendên-

cia normal dos administradores. Quem trabalha em nome de

outros acaba por se tornar o produto do seu trabalho. Isto signi-

fica que o cristianismo atual não se constitui somente dos ensi-

namentos de Cristo, mas é um seu produto, manipulado e

adaptado depois pelos homens, para seu próprio uso. Resultou

disso uma Igreja que, misturando humano e divino, tornou-se

um produto de aparência híbrida, querendo ser as duas coisas,

mas não sendo exclusivamente nem uma nem outra. É como

um jovem que, não sendo nem menino nem homem, está, po-

rém, destinado a ser homem.

Não se trata, portanto, de um produto híbrido, mas sim de

uma forma de transição. Temos, tal como a alma e o corpo, um

composto através do qual o humano imperfeito, para melhorar,

lança-se em direção ao divino, e o divino, para elevar o huma-

no, desce até ele. Isto não significa que Cristo tenha demons-

trado desconhecer a natureza do homem, ao ditar-lhe um pro-

grama irrealizável, exigindo algo que esta pobre criatura não

tem a capacidade de fazer. De fato, Cristo não lhe propôs o

impossível. Pelo contrário, foi precisamente por conhecê-lo

que Ele, através do Evangelho, estabeleceu para o homem uma

meta distante, em direção à qual este devia avançar, para al-

cançá-la no fim. O estado atual do cristianismo não é, portanto,

uma farsa perante Cristo, mas apenas a fase inicial de um pro-

cesso evolutivo do qual Ele, no Evangelho, expressou o ponto

de chegada, a posição final. Trata-se de um estado de imper-

feição transitória, que parece uma negação de Cristo, porque

ainda não O alcança na sua plenitude, mas isto sucede apenas

como uma primeira aproximação, constituindo uma imperfei-

ção que, no entanto, está em marcha para chegar à perfeição

evangélica e à plena afirmação de Cristo.

É natural que, no meio do caminho, o ideal deva adaptar-se

às condições do ambiente, assumindo posições humanas e até

mesmo, quando não encontra outro modo para sobreviver na

Terra, transformando-se em hipocrisia. Mas isto não é tão im-

portante, pois, mesmo tendo de lutar para nascer num ambiente

adverso, a semente está no terreno. Também o ideal possui for-

ça. Alguma coisa do seu poder acaba por penetrar na alma hu-

mana. Torcido, vilipendiado, transviado e explorado, o ideal,

apesar disso, existe na Terra e aí permanece, funcionando tam-

bém à sua maneira entre outras tantas forças da vida. Entretanto

espera e trabalha, serpenteia, penetra, enxerta-se e, depois de

longa insistência, fixa-se finalmente nos espíritos. Trabalho len-

to, mas que, no fim de cada milênio, consegue fazer o homem

avançar um passo em frente, mesmo se pequeno. Pode-se fazer

do ideal os mais diversos usos, mas quando se maneja uma coi-

sa, um pouco dela sempre fica impregnado nas mãos.

É certo que a função da evolução é melhorar, purificar e

aperfeiçoar tudo, não podendo o cristianismo constituir uma

exceção a esta regra. Ele se instalou num mundo onde tudo está

em evolução e, justamente por ser um ideal, corresponde-lhe a

função de realizá-lo. Se o Evangelho está no meio do mundo e

se adapta a ele, tendo chegado ao ponto de conviver com o ini-

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60 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

migo numa estranha simbiose, o que pode parecer degradação,

isto apenas acontece para transformar o mundo, até transformá-

lo naquilo que o Evangelho quer. No seio do mundo, ele repre-

senta a semente do futuro, que cada semente espera, porque lhe

pertence. A superação do passado é a tendência constante da

vida, que luta por isto a cada instante.

É assim que, ao longo do caminho da evolução, quanto mais

retrocedemos no tempo, tanto mais vemos o mundo ficar forte e

o cristianismo ter de se adaptar a ele. Devido ao princípio evolu-

cionista, é natural que, quanto mais se é atrasado, tanto mais a

matéria prevalece sobre o espírito. Com o fim do período das ca-

tacumbas, das perseguições e dos mártires, esgotando-se o pri-

meiro impulso dado por Cristo, o inimigo tomou a dianteira, e a

Igreja, com a conversão de Constantino, fixou-se materialmente

com os pés na Terra, tornando-se coisa do mundo. Terá sido isso

degradação do ideal? Não! Foi necessidade histórica. O poder

temporal foi o veículo material indispensável para que uma ins-

tituição, formada em grande parte de almas ainda toscas, pudes-

se sobreviver em tempos ferozes; foi o meio imprescindível para

que aquele primeiro núcleo de espiritualidade, perdido num

mundo selvagem, pudesse percorrer todo o bimilenário caminho

medieval e chegar até hoje, trazendo até nós o pensamento de

Cristo. Foi necessário possuir bens até ao ponto de tornar o su-

cessor de Cristo um dos reis da Terra, como senhor no mundo,

ao qual o temporal se integrou plenamente, colocando-se no

mesmo nível espiritual, pois era forçado, como todos, a mergu-

lhar na luta, usando os métodos mundanos, baseados na força,

na astúcia e na mentira política. Mas é também verdade que, em

tal mundo, uma sociedade de santos teria sido destruída. Naque-

las condições não havia outra escolha. Caso se quisesse sobrevi-

ver, para cumprir o mandato de Cristo, era indispensável aceitar

o ambiente e renunciar à aplicação integral do Evangelho.

◘ ◘ ◘

Mas eis que, no mesmo processo, ligado à limitação de ter o

ideal que se adaptar para descer, está implícita sua necessidade

de fazer tudo evoluir e elevar-se sempre mais. O espiritual não

pode viver separado do mundo, que representa o seu terreno de

operações, pois lhe oferece o material a ser elaborado. Assim o

cristianismo, mesmo contribuindo para isso, não pode progredir

senão em função da evolução geral da humanidade. Assistimos

então, em relação à Igreja, a um contínuo trabalho, que poderí-

amos chamar de polimento, pelo qual a posse de bens, adaptan-

do-se aos tempos, pode assumir formas cada vez menos materi-

ais. Nada mais antievangélico podia haver, como antigamente,

do que um governo de estado, com exércitos e poder político,

apoiado no espiritual. Depois, com a queda do temporal, o po-

der tornou-se somente econômico. Amanhã, numa sociedade

mais avançada, quando for reconhecida a função vital das reli-

giões, então o ato de sustentá-las, oferecendo os meios necessá-

rios para elas realizarem essa função, constituirá uma obrigação

do Estado, que provê à satisfação de todas as necessidades da

coletividade, incluindo as espirituais. Assim a Igreja poderá li-

bertar-se da posse material, pois lhe estarão assegurados, por

parte do mundo, os meios para viver, o que lhe permitirá deixar

de ser mundo. Mas se, numa futura sociedade orgânica, serão

providas todas as funções sociais, inclusive a religiosa, como se

pode hoje, quando isso não sucede, eliminar a necessidade de

possuir bens, se esta é uma condição indispensável para a reali-

zação daquela função? Trata-se de uma função que foi e é civi-

lizadora, sendo de grande importância para a evolução. A Igre-

ja, no passado, teve de afirmar, num mundo feroz de invasões

bárbaras, um princípio superior então desconhecido. Que por-

tentosa luta teve de sustentar o espírito, para se introduzir na

casa de tamanho inimigo, como era o mundo de então! A Igreja

não pode progredir senão em relação às condições de vida ofe-

recidas a ela pelo mundo, elevando-se na medida em que lhe

seja permitido, através destas condições, desprender-se da pos-

se de bens, sem com isso deixar de existir, como lhe é necessá-

rio para cumprir a sua obra de civilização.

Assim, o cristianismo também está sujeito ao processo evo-

lutivo, que arrasta em seu seio tudo o que existe. É a vida inteira

que progride no planeta, estando tudo envolvido nesse processo.

Nenhuma instituição, mesmo que se proclame sobrenatural, po-

de existir e funcionar fora das leis da vida. Então não é culpa da

Igreja, se o atual baixo nível de evolução – que também é o seu,

pois este é o nível da humanidade da qual ela faz parte – não a

deixa ser cem por cento evangélica. Mas cada século altera um

pouco esta percentagem da relação entre as duas partes, aumen-

tando a parte Evangelho e diminuindo a parte mundo. Assim se

explica e justifica o estado presente, porquanto, se ele não cor-

responde a um cumprimento do Evangelho, tal condição é ape-

nas um não cumprimento em evolução, o que significa estar em

via de correção, para se cumprir progressivamente, cada vez

mais, constituindo uma negação que cada vez mais vai-se inver-

tendo em direção à afirmação. Graficamente, isto poderia ser

expresso com o deslocamento em subida, segundo uma linha

oblíqua, movendo-se em relação a dois eixos ortogonais: um ho-

rizontal, que expressa o desenvolvimento da linha do tempo, e

outro vertical, que, partindo do ponto zero, a matéria, expressa o

grau de espiritualização alcançado.

Se a Igreja, no passado, começou a reinar na Terra, naquele

plano de evolução, isto não foi para se realizar como potência

material, mas sim porque este era um meio indispensável para

poder sobreviver e funcionar, até onde fosse possível, como po-

tência espiritual. Se isto, hoje, justifica o passado involuído, por

outro lado exige que ele seja superado, para ela retomar, o mais

rapidamente possível, o caminho em direção ao alto, à sua ver-

dadeira meta, que é espiritual. Em qualquer fase do desenvol-

vimento, a tendência constante deve ser aproximar-se do Evan-

gelho, lutando para superar todos os obstáculos que separam a

Igreja da sua realização. O verdadeiro objetivo é superar o

mundo, e não instalar-se na Terra, e muito menos reinar nela.

As adaptações, através das quais o ideal desce ao nível humano,

podem ser um mal necessário, mas ele deve ser transitório, sen-

do aceitável somente em vista de sua eliminação. É apenas nes-

te sentido que elas são toleráveis. De outra maneira, constituem

uma permanente corrupção e negação do ideal, condição que o

leva ao fim. Se desaparecer esta esperança de salvação futura,

dada por um endireitamento de posições em sentido evangélico,

o cristianismo não terá mais razão de existir, de modo que as

leis da vida acabarão por eliminá-lo, como fazem com todas as

coisas que não cumprem a função para a qual existem. Assim

terá lugar a sua substituição por outras formas religiosas, cons-

tituídas por outros homens e instituições. Estes farão, então, o

que o cristianismo dos primeiros dois milênios ainda não fez.

Cristo faz parte das leis da vida, e nada pode detê-las. Desse

modo, quando procuram paralisá-las, os homens são afastados,

e Cristo continua avançando sem eles.

É verdade que a Igreja, tornando-se Estado para poder so-

breviver no mundo, devia governar. Porém, apesar de santidade

e perfeição levarem certamente para o Céu, não se governa, na

Terra, com essas qualidades. Também é verdade que muitas

coisas, admitidas por várias razões como lícitas no feroz mundo

medieval, já não são mais necessárias hoje, pois a humanidade

passou a formas de vida mais justas e evoluídas. Quem governa

pode, em certos momentos, ser forçado a colocar-se em propor-

ção ao grau de evolução dos governados, mas deve estar sem-

pre à frente, um passo mais avançado que os outros.

Este caso do cristianismo faz parte do fenômeno da trans-

formação matéria-espírito, que representa um deslocamento bi-

ológico profundo e que, por isso, não pode verificar-se num dia.

Sendo, como tantos outros, um processo de crescimento da vi-

da, ele somente pode realizar-se lentamente, por graus sucessi-

vos, da mesma maneira que se realiza a evolução em todos os

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 61

seus níveis. Estas transformações são o resultado de maturações

e equilíbrios, de impulsos proporcionados às reservas de ener-

gia, às possibilidades de esforço e ao fim a alcançar. Transfor-

mar-se de repente, com impulsos de improviso, pode pôr em

perigo a sobrevivência, fato de enorme importância. Não po-

demos nos escandalizar com o estado atual, quando sabemos

que ele, apesar de involuído, encontra-se apenas no início e que

está inserido dentro de um irrefreável transformismo, pelo qual

é levado em direção ao alto. Sabemos que tais posições, mais

avançadas ou mais atrasadas, não são senão momentos de um

processo evolutivo, destinado a levar tudo à perfeição.

Para se compreender o cristianismo, é necessário se referir a

ele como um fenômeno progressivo, concebendo-o como uma

gradual realização do programa de Cristo. O tão condenado

princípio evolucionista é justamente o conceito que pode justi-

ficar a Igreja, lançando-a da sua velha posição estática no di-

namismo da vida e, assim, fazendo dela um fenômeno em evo-

lução. A perspectiva então muda completamente, abrindo-se em

direção a mais vastos horizontes. O dogmatismo conservador se

transforma numa marcha em ascensão. Tudo se vivifica, porque

está animado da potência do espírito, que toma posse do fenô-

meno, para levá-lo cada vez mais adiante.

Observemos a grandiosidade deste fenômeno sobre o fundo

do transformismo universal físico-dinâmico-psíquico, que ana-

lisamos exaustivamente em A Grande Síntese. A descida dos

ideais e a evolução das religiões não são senão um momento

desse fenômeno. Então a vida assume um significado profundo,

porque se revela como uma progressiva espiritualização no seio

do evolucionismo universal. As religiões, por sua vez, assumem

uma verdadeira função biológica, porquanto elas representam o

ideal que, descendo à Terra, vem de mais avançados planos de

existência, para levar o homem até eles. É assim que, mesmo

perante a ciência materialista, as religiões adquirem um signifi-

cado biológico positivo, na medida em que elas, promovendo a

espiritualização, cumprem uma função evolucionista funda-

mental. A grande marcha da vida é nesta direção. Trata-se de

uma espiritualização no sentido lato, que abraça, investe e ar-

rasta todas as formas de existência, desde o seu nível mais bai-

xo, a matéria, ao evolutivamente mais alto, o espírito.

Como diria Teilhard de Chardin, a bioesfera formou-se so-

bre a geoesfera planetária, para realizar a função de transformar

a geoesfera em noosfera. A cada dia, um incontável número de

plantas transforma em material orgânico a matéria prima inor-

gânica, assimilando-a em seu organismo; bilhões de animais

comem e assimilam este material, transformando-o em carne e,

assim, levando-o a um nível mais alto; bilhões de seres huma-

nos, sem poderem deter-se, devem ingerir, para viver, monta-

nhas de toneladas deste material que plantas e animais lhes for-

necem, transformando-o em substância ainda mais evoluída, na

forma de nervos e cérebro, que são produtores de dinamismo

volitivo e mental. Gradualmente, a quantidade diminui em fa-

vor da qualidade, na qual ela se transforma, destilando e con-

centrando os valores espalhados na massa. Para que serve esta

contínua ingestão de matéria de grau menos evoluído, colocada

assim em circulação, senão para cumprir funções cada vez mais

elevadas em organismos mais evoluídos? Começando pelas

plantas assimiladoras do terreno e, depois, elevando-se até ao

homem, vemos que, do seu estado inorgânico, a matéria passa

por uma elaboração contínua, na qual seus átomos componentes

chegam ao estado orgânico da vida e atingem o nível nervoso e

cerebral, no qual devem saber funcionar como elementos do

instrumento usado pelo pensamento, dispondo-se a colaborar de

mil maneiras e devendo aprender muitas coisas. Assistimos as-

sim a uma espécie de curso de educação da matéria.

Neste processo, o ser mais evoluído aproveita o trabalho fei-

to pelos menos evoluídos, e a vida, à semelhança de uma pirâ-

mide, eleva-se em direção a planos mais altos, apoiando-se nos

mais baixos. Por sua vez, o material de tipo inferior, que serve e

ajuda com o seu trabalho mais rudimentar à execução de outro

mais avançado, também é levado a avançar, ao tomar parte de

organismos e ficar, portanto, adstrito a trabalhos mais comple-

xos. Quem domina e dirige todo este processo é o elemento que

está evolutivamente mais elevado, isto é, o espírito. Na escala

evolutiva existe uma hierarquia de valores, pela qual quem é

mais avançado utiliza como instrumento quem é mais atrasado,

mas ao mesmo tempo o educa, levando-o a viver coordenado

com outros elementos no seio de unidades mais complexas e,

assim, a funcionar em formas sempre mais evoluídas. Maravi-

lhosa e complexa organização da vida, pela qual quem é mais

avançado se volta em direção aos que lhe são inferiores, para

admiti-los no seu próprio trabalho, mas ao mesmo tempo, com

isto, envolve-os e arrasta-os consigo na sua própria evolução.

Com este método, a vida caminha em direção à sua espiritu-

alização, da qual hoje já se percebem os primeiros sintomas,

expressos pelo processo de cerebralização ao qual está subme-

tida a humanidade, fenômeno hoje mais evidente, dado que ela

o está vivendo mais intensamente na atual curva do seu trans-

formismo evolutivo. Esta rápida passagem do antigo tipo de vi-

da no plano físico a um tipo nervoso e cerebral, característica

de nosso tempo, não é senão um sintoma que precede um imen-

so desenvolvimento futuro. Esta deverá ser a direção a ser to-

mada agora pela evolução da vida, que atingiu no planeta o seu

superior grau de humanidade.

Deste imenso movimento fazem parte as religiões. Enquanto

a matéria sobe até se tornar instrumento da psique, os ideais

descem, para ajudar a realização deste transformismo espiritua-

lizante. Eles cumprem uma função biológica, razão pela qual as

religiões, uma vez que fazem parte do perene processo evoluti-

vo, não podem morrer. Mas, justamente por isso, elas devem se

renovar, como o faz a vida a cada momento, da qual elas fazem

parte. Renovar-se significa melhorar. Por isso, em comparação

com o que nos espera no futuro, não nos deve surpreender o atu-

al estado involuído. Hoje, exatamente pelo fato de ser frequen-

temente uma farsa, o ideal está destinado a se converter em ver-

dade. As reações da lei de Deus se ocupam em corrigir todos os

nossos defeitos. Assim realiza-se a evolução, sendo fatal que tal

melhoramento – hoje eliminado da realidade da vida, por ser

considerado utopia – transforme-se amanhã nesta realidade. Isto

custará esforço e muitas dores, mas é este trabalho criador que

dá significado e valor à vida. Apesar de tudo, Cristo brilha como

um farol no futuro. O Evangelho é um fenômeno em evolução,

constituindo-se num caminho para alcançar aquele centro de luz.

Se, com isto, tudo se explica e justifica e se tudo, por evo-

lução, deverá passar da imperfeição à perfeição, seria possível

concluir-se, então, que não haverá outra coisa a fazer, senão

esperar a evolução se cumprir? Dada a condição da maioria

dominante, adormecida perante o ideal, que poderão fazer

aqueles poucos mais avançados, para os quais chegou a hora

da realização, se eles, em vez de permanecer com a massa das

pessoas que – religiosas ou não – formam o mundo, querem

estar do lado de Cristo? Como tais indivíduos poderão encon-

trar-se à vontade no rebanho, compartilhando com a respecti-

va psicologia e métodos? Como é possível aceitar esta condi-

ção, para adaptar-se ao mundo?

O Evangelho está feito para nos santificarmos individual-

mente e para transformar as massas, fazendo delas uma soma

de indivíduos assim santificados. Mas termina emborcado,

quando dele se faz um meio para governar. Também os segui-

dores de Cristo queriam torná-lo um chefe de governo, mas Ele

recusou todo o poder terreno. Trata-se de duas psicologias e fi-

nalidades diversas: uma dirigida à Terra e outra, ao Céu. O se-

guidor de Cristo é um tipo de indivíduo diferente do seguidor

do mundo. Entre os dois há um abismo, porque cada um vê e

entende o outro em posição emborcada. Eles falam línguas dis-

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62 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

tintas e atuam com mentes diferentes. Há um muro entre os

dois, dado pela distância que separa um plano evolutivo do ou-

tro. O grau social ou a posição hierárquica no grupo a que se

pertence não têm importância. O que vale de fato é o tipo de

homem, e não a sua veste. Quem inverte o mundo, para viver

com Cristo, não pode estar de acordo com quem inverte Cristo,

para viver no mundo. As metas são opostas.

A tendência da vida é que os semelhantes se atraiam e os

não semelhantes, quando não tenham de se compensar por

complementaridade, repilam-se. Nos dois casos, devido ao dife-

rente nível evolutivo, a forma de entender as coisas é demasia-

do diferente. Para quem está espiritualmente mais avançado, a

vida na Terra não representa a satisfação dos seus próprios de-

sejos, mas sim exílio, sacrifício e missão. Ele pode sentir tam-

bém amor pelos irmãos atrasados, mas não pode compartilhar

os respectivos instintos, psicologia e conduta. As formas co-

muns de religião estão feitas para a maioria, e não para a exce-

ção. Então, escondendo-se das filas e permanecendo fora das

massas de cristãos que pertencem ao mundo da exterioridade

formal, o indivíduo verdadeiramente espiritual afasta-se silen-

ciosamente, para retrair-se numa religião de substância, ao lado

de Cristo. Quem O compreendeu e O vive não pode se adaptar

a retroceder a um nível evolutivo inferior, como exige a maio-

ria, que gostaria de rebaixar todas as coisas ao seu plano.

Tudo isto o leva a isolar-se do mundo, o que constitui van-

tagem. Contudo ele não se isola de Cristo, pelo contrário avizi-

nha-se ainda mais Dele. Através de uma íntima atitude de espí-

rito, estabelece-se entre sua alma e Deus um colóquio no qual

nenhuma autoridade espiritual terrena pode intervir. Quem quer

tornar-se santo, faz-se tal por sua conta, perante Deus, e não pe-

rante o mundo, do qual não tem nenhuma necessidade. Os jul-

gamentos deste não lhe interessam, mas apenas os de Deus. Os

homens podem utilizar a santidade dos outros como estandarte

que dá brilho ao próprio grupo, mas só Deus pode julgá-la. É

inútil, para salvar-se, cobrir-se com o manto dos santos. O ideal

vivido por eles se mantém distante da prédica e da ostentação

que dele faz o mundo para as suas finalidades, pois, enquanto

aqueles atuam a sério, este apenas desejaria fazer crer. Mas há

momentos na história em que não têm mais valor as sagacida-

des e poderes humanos. Então quem não se manteve seriamente

em contato com Deus, está perdido. Enganando a Cristo, ao re-

duzir a aplicação de Seu programa somente a palavras, a huma-

nidade se redime pelo avesso, uma vez que, procurando eximir-

se com as suas adaptações terrenas, termina por construir a sua

própria cruz. Hoje essa cruz já está pronta, e o Evangelho, que

não foi aplicado por convicção e por amor, deverá ser aplicado

à força. E é sobre essa cruz que a humanidade deverá ser pre-

gada, porque a evolução em direção ao espírito deve cumprir-

se, não sendo possível fugir-se à lei de Deus.

IX. CRISTIANISMO E COMUNISMO

Em nossos escritos, encontramos e usamos um ponto fixo de

referência, em função do qual nos é possível formular juízos.

Este ponto de referência, situado fora e além do transformismo

universal – exatamente no polo oposto – envolve tudo em seu

movimento. Dessa sua posição, este ponto imóvel e absoluto di-

rige tudo o que é móvel e relativo. Trata-se do pensamento de

Deus. Este pensamento não se encontra abstrato nos céus, mas

está escrito e é legível em Sua lei, que é a sua expressão e cons-

titui a norma anteposta como guia do funcionamento orgânico

do universo. Nos seus vários capítulos e planos de atuação, esta

lei não é toda compreensível para o homem, sendo conhecida

somente numa parte mínima. As descobertas da ciência não são

senão progressivas revelações deste pensamento: a Lei, que fun-

ciona nos fenômenos, independentemente do conhecimento que

o homem tenha ou não dela. À medida que progride, ele vai do-

minando uma amplitude cada vez maior dela, o que, também pa-

ra os ateus, significa acercar-se de Deus. É em função deste pen-

samento orientador da existência que, nos limites do conheci-

mento humano, nós fazemos perguntas e podemos dar respostas.

Permanecendo agora num terreno humano, no qual encon-

tramos as consequências e aplicações dos princípios gerais da

referida lei, perguntamo-nos: Qual é a posição atual da huma-

nidade em relação às suas metas futuras? O que a história pre-

tende realizar hoje? Colocando-nos perante a presente realida-

de histórica, podemos formular uma questão mais exata. Se é

Deus que, com a Sua lei, dirige a história, qual é então o signi-

ficado do comunismo materialista ateu e para onde se dirige

sua atual difusão? Trata-se de fenômenos situados em polos

opostos, ambos positivamente existentes. Mas como explicar a

contradição entre eles? Se Deus é o verdadeiro senhor e se o

Seu pensamento ou Lei constitui a norma que deve ser aplica-

da, então por que ocorrem nos fatos esta oposição de contrá-

rios e esta resistência à sua atuação? Se, por um lado, temos o

polo positivo, onde tudo é sempre construtivo, que trabalho

útil corresponde cumprir a este oposto impulso negativo, de

destruição? Não se tratará então de uma fase destrutiva neces-

sária, cumprida em função de uma oposta realização construti-

va? Ora, é o negativo que trabalha em favor do positivo; é o

mal que é colocado a serviço do bem. Mais particularmente,

talvez isto tudo responda à necessidade de se varrer as constru-

ções humanas feitas através do tempo sobre a ideia de Cristo –

tão desvirtuada ao longo do caminho – para regressar a ela e

realizá-la como Cristo a queria, desde o princípio.

Nas revoluções, a fase destrutiva é necessária para nos li-

bertarmos do que é velho, pois este ocupa o terreno sobre o

qual se pode reconstruir mais em direção ao alto, sendo ela o

natural precedente de uma sucessiva fase construtiva, para al-

cançar posições evolutivamente mais avançadas. Isto é o que

normalmente vemos suceder nas revoluções, usadas pela vida

como método normal de renovação. Então o comunismo pode-

ria ter uma função histórica construtiva, inclusive no sentido

cristão lato. Mas lato, neste caso, não significa que a sua fun-

ção seja constituir nos planos de Deus um instrumento para a

vitória do atual grupo social que se qualifica hoje como repre-

sentante de Cristo. Trata-se, isto sim, do triunfo da ideia de

Cristo, a qual pode se desvincular dos seus atuais representan-

tes, quando estes não lhe sirvam mais, porquanto, nos planos

de Deus, o que importa é o avanço daquela ideia, e não os inte-

resses e a sobrevivência destes. Quando eles não cumprem

mais a função que lhes justifica a existência perante a vida, sua

liquidação pode ser automática, pois torna-se indispensável pa-

ra o progresso, sendo fenômeno biológico normal ao se verifi-

carem tais condições. Podem formar-se então outros grupos,

compostos de homens novos, sendo possível utilizar-se a

mesma organização atual, mas com homens renovados no seu

espírito, selecionados na luta, purificados pela dor e, por isto,

levados a representar Cristo não só na forma, mas também na

substância. Trata-se de uma posição totalmente diferente, por-

quanto a atividade e o centro dos interesses deve passar do ex-

terior ao interior, da aparência à substância, da exterior reali-

dade do mundo à interior realidade do espírito.

Qual poderia ser então, mais exatamente, de um ponto de

vista cristão, a função do comunismo? Se o Evangelho, que

sustém a justiça social, não foi aplicado até hoje senão em mí-

nima parcela, por razões de imaturidade da raça humana, tanto

de governantes como de governados, e se Cristo não pode ter

sofrido para ensinar em vão, então a vida, que o homem não

pode deter, é levada a confiar a outro, fora do atual cristianis-

mo, a tarefa de realizar, com outros meios e de outra forma, es-

se programa, lançado há dois mil anos e ainda não realizado pe-

los cristãos. Então Deus permite que os demônios se desenca-

deiem, reativando as forças negativas e utilizando-as para reali-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 63

zar o que as positivas ainda não fizeram. A princípio, o desen-

volvimento histórico não estava ainda maduro para esta refor-

ma, e Deus permitiu que o cristianismo dormisse no cômodo

leito das adaptações humanas. Mas, agora, chegou-se a uma

curva do caminho da evolução em que é necessário despertar,

mover-se e caminhar. A função histórica do comunismo pode

ser precisamente despertar os adormecidos, para tirá-los do lei-

to das suas comodidades, tarefa que deve ser realizada à força,

porque o mundo se organizou na defesa das suas velhas posi-

ções de comodismo e resiste, não se dispondo a renunciar a

elas. Eis então que, para abrir caminho, é necessária a força,

coisa que o cristianismo não pode usar e que agora lhe vem em

sua ajuda numa hora decisiva, quando, depois de dois mil anos,

o sistema apenas da bondade deu prova de não ser suficiente

para transformar o mundo em sentido evangélico. A força é de

fato, nas transformações sociais, a primeira fase: revolucionária

e destruidora. É desta forma que nascem as revoluções, para

depois se desenvolverem, seguindo fatalmente a sua lei. Os vio-

lentos da primeira hora são depois liquidados, quando a sua

função de varrer o que é velho está cumprida. Quem com ferro

mata, com ferro será morto. Robespierre foi guilhotinado, e a

sua morte marcou o fim do terror. Ficam e são depois chama-

dos a atuar os mais calmos, para realizar o trabalho de instala-

ção nas novas posições e de assimilação das novas ideias, para

se reconstruir num plano mais alto, numa nova ordem.

Eis de que maneira, historicamente e em sentido lato, o

comunismo poderia ser útil ao cristianismo, cumprindo a fun-

ção de purificá-lo, condição indispensável para que este possa

continuar a cumprir a sua função, pela qual a sua existência é

justificada. A tarefa do comunismo seria, portanto, salvar o

cristianismo da sua liquidação. Lição realizada à força, dada a

tenacidade de resistência da parte do que é velho. Ajuda de

Deus, mas não para favorecer os homens a manterem, basea-

das no cristianismo, suas posições terrenas, mas sim em favor

do ideal cristão, para que ele seja vivido e realizado, porque à

vida interessa a evolução, a conquista das finalidades da histó-

ria e a atuação dos princípios superiores, e não a prosperidade

de um determinado grupo humano. A vida tende a acabar com

tudo que é improdutivo e que, por isso, não contribui para a

realização dos seus fins.

É necessário compreender o que está sucedendo hoje. Pode

ser um mal-entendido identificar o ministro de Deus com o ide-

al cristão, uma vez que, nos fatos, pode-se tratar de duas coisas

diferentes, isto é, pode suceder que, em vez de se viver em fun-

ção do ideal, utilize-se o ideal em função da própria vida, su-

bordinando-o a esta. Trata-se de uma inversão de valores pela

qual as posições se emborcam, de modo que a espiritualidade,

ao invés de vencer o mundo, é por ele vencida. Pode ser que

hoje a história queira endireitar estas posições e repor cada coi-

sa em seu lugar, fazendo que o ideal não mais esteja a serviço

do homem, mas sim que o homem esteja a serviço do ideal. Em

resumo, a ideia de Cristo finalmente se move para de fato ven-

cer o mundo, ainda que este se tenha acostumado a vencê-la e

esteja decidido a continuar por este caminho.

Esta imensa onda de ateísmo que invade o mundo e que é

composta também de cristãos, não será uma doença do cristia-

nismo, tornando necessária uma salutar operação cirúrgica para

curá-la? Que os homens do cristianismo possam, como homens,

ir à falência é aceitável, mas não se pode admitir que isto suceda

com Cristo. É lógico que, para eles, quando se separam da pri-

meira fonte de vida espiritual e ficam sozinhos no mundo inimi-

go, não haja mais remédio. Eles poderão se perder, mas nem por

isso poderão paralisar a obra de Cristo, que está acima de todos

os interesses humanos e elege os seus instrumentos onde quer.

Se hoje o mundo, com o ateísmo, afasta-se de Cristo, isto

pode representar um protesto não contra Ele, mas contra quem

O representa. É notório que a difusão da blasfêmia é maior nos

países onde mais dominou a Santa Inquisição, a qual foi exerci-

da em defesa da religião. Frequentemente, os ateus surgem não

porque queiram pôr-se contra Deus, mas porque, desiludidos,

colocam-se contra os seus representantes. Estes são a coisa

concreta que se vê neste mundo. E, quando ela não corresponde

às afirmações, então se foge para outras lides. Há quem, para

libertar-se da contradição, nega tudo, e há quem, convertendo-

se, para entrar em outros grupos semelhantes, vá buscar Deus

em outra parte, ou então vá buscá-Lo por si mesmo, sem esses

intermediários, que, quando passam a pertencer ao mundo, não

representam senão a si mesmos. Então o ateísmo os repudia, e

os que não querem aniquilar-se dessa forma seguem sós, com

Deus. A luta é entre os homens, e não contra Deus, porque nin-

guém pode ter interesse em lutar contra quem está fora do

mundo, tão longínquo, invisível e inalcançável. A revolta pode

nascer só de uma rivalidade entre semelhantes, por um prejuízo

recebido, o que é absurdo em relação com Deus.

Para convencer, é necessário estar convencido, assim como,

para estabelecer a fé, é necessário primeiro tê-la dentro de si,

crendo a sério, com fatos, e não só com palavras. A pregação

que não corresponde à realidade da vida não persuade, tornan-

do-se hábito escutá-la apenas como uma bela apresentação. O

ideal, reduzido a exercício de retórica, não arrasta, porque falsi-

fica o que devia ser paixão avassaladora, afirmação sentida e

testemunho sincero de realização vivida. Quem escuta percebe

este atentado à sua boa fé, mas, porque lhe convém, acostuma-

se ao cômodo jogo das adaptações. Então a religião se reduz a

uma farsa coletiva convencional, na qual todos estão tacitamen-

te de acordo. O rebanho é constituído de homens do mundo,

que conhecem as astúcias da vida, sabendo perceber e gostando

de descobrir o que se esconde atrás das aparências. Estando

cheio de enganos, o mundo está acostumado a desconfiar e se

apercebe prontamente, quando se usa o ideal à procura do ingê-

nuo para crer nele. A demasiada insistência na fé cega do crente

pode dar lugar a suspeitas, porque se presta otimamente para

prender os simples de boa fé. Por fim, chega-se a um consenso

geral, porque é cômodo para todos não se aprofundar em dema-

sia no porquê das coisas, permanecendo na superfície.

Sucede, no entanto, que, quando tudo isto se torna hábito,

constituindo um sistema de aceitação comum, fixado em uma

forma mental, então a religião se corrompe e decai. Que resul-

tados espirituais se poderão obter então? Se a semente que se

lança na alma dos fiéis é desta qualidade, qual a planta que po-

derá nascer dela? É certo que os ingênuos são muito procura-

dos em nosso mundo, mas também é verdade que a sua espé-

cie, sob os duros golpes da luta pela vida, tende a desaparecer.

Como pode um edifício, baseado sobre o ideal e sobre a fé nele

depositada em relação à sua fiel e sincera atuação, deixar de

desmoronar, quando as posições são assim emborcadas, fazen-

do a fé assumir um outro significado e a incredulidade se tor-

nar quase um ato de sinceridade?

O mundo está mudando e exige clareza. A melhor renova-

ção que o cristianismo pode fazer não é modificar suas formas

de rito, de tolerância ou de expansão de domínio, mas sim acre-

ditar verdadeiramente nos seus ideais, oferecendo ao seu reba-

nho uma demonstração racional, para que seja possível crer ne-

les por haver compreendido, e não por ter acreditado com fé

cega, de olhos fechados. Isto significa fazer os outros sentirem

que existe quem crê a sério, a ponto de viver a sua fé e de, pelo

fato de crer, dar prova disso com o exemplo.

Antigamente, a astúcia aconselhada por Maquiavel passava

por sabedoria. Ele dizia que era necessário mostrar as virtudes,

mas tendo o cuidado de não possuí-las e praticá-las de verdade,

para não se deixar enganar pelos princípios idealistas, os quais

devem ser pregados aos outros, para que eles os pratiquem e,

assim, seja mais fácil dominá-los. Hoje, no entanto, dá cada vez

menos resultado fingir para que os outros creiam. Pensar que

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64 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

eles se deixem enganar assim facilmente não é astúcia, mas sim

ingenuidade. O número destes diminui a cada dia. Aquela era

uma fase mais primitiva, e desde então o mundo caminhou.

Torna-se cada vez mais assinalada a tendência de colocar de la-

do o hipócrita que engana, como elemento antissocial. O méto-

do de Maquiavel pressupõe o ingênuo que crê, enquanto hoje é

comum deparar-se com a reação do enganado. Eliminando o

ingênuo, aquele método falha, e é o que está sucedendo hoje,

como benéfico resultado do seu longo uso. Assim foi eliminado

qualquer tipo de fé, e as massas foram educadas em sentido

oposto, sendo obrigadas a desenvolver a desconfiança e, com

isto, o sentido crítico e o controle, tornando mais apurada sua

inteligência. Estes são os salutares efeitos da prática generali-

zada e constante, em todos os setores humanos, desse método

da pesca do ingênuo, segundo Maquiavel. Por obra de uma for-

ça negativa, surgiu, em sentido criador, uma automática seleção

natural, pela qual sobreviveram apenas os mais astutos, os me-

nos dispostos a crer e a cair como presa dos enganos dos outros.

Eis mais um caso no qual o mal é utilizado para os fins do bem,

de modo que, com a evolução, o negativo tende a se inverter no

positivo, não apenas autodestruindo-se, mas também funcio-

nando como elemento de construção.

Hoje procura-se a substância. Os homens não se contentam

mais com vagas promessas de incontroláveis e longínquas ale-

grias, situadas no além e obtidas como compensação das dores

atuais, que, em vista de tal consolação, devem ser suportadas

pacientemente, enquanto outros, mais afortunados, gozam a vi-

da no bem-estar. Por ser positivo, o homem moderno exige rea-

lizações imediatas e concretas, de modo que, em se tratando de

promessas, ele quer ver claro sobre sua futura viabilidade. Ao

pobre, hoje, já não lhe basta o submisso dever de depender da

generosa e caprichosa concessão de benesses por parte de quem

possui. A humilde súplica em busca de compaixão transfor-

mou-se, atualmente, no direito à vida, o qual não pode depender

da vontade de poderosos que aceitem reconhecê-lo, concedendo

favores, mas deve ser regulamentado como todos os direitos,

sobre princípios de justiça. Então não mais se admite apenas a

beneficência de quem dá porque decidiu fazer uma concessão –

insuficiente compensação para as diferenças de posição – mas

exige-se, entre os elementos do organismo social, um cálculo

positivo de direitos e deveres, que se realize imediatamente na

Terra, sem problemáticos adiamentos para outras vidas, organi-

zando-se o trabalho e as previdências sociais em favor de cada

um dos componentes da coletividade.

Se, tanto do lado do comunismo como do capitalismo, é

possível hoje realizar este processo, isto se deve ao fato de

que as mais baixas classes sociais alcançaram uma certa cons-

ciência coletiva, condição necessária para saberem organizar-

se nas atuais formas, inconcebíveis na Idade Média, e pode-

rem atingir assim o exercício dos próprios direitos. Esta é a

forma pela qual a humanidade desperta, organiza-se e coleti-

viza-se em mais equilibradas formas de justiça social. Logi-

camente, se o mundo fosse mais evoluído, não teria sido ne-

cessário o assalto revolucionário comunista, para que ele de-

cidisse iniciar esta nova ordem de ideias.

O que representa, portanto, na evolução da vida, o fenôme-

no comunismo? O que ele significa no pensamento de Deus,

do qual nenhum fenômeno pode escapar e que, estando presen-

te também neste caso e momento, estabelece a direção da his-

tória? Em que posição se encontra este acontecimento perante

o caso de Cristo, muito mais vasto e importante? Estará ele

talvez incluído neste caso maior, constituindo uma fase transi-

tória do seu desenvolvimento? Por caminhos tão diferentes,

com métodos e movimento opostos, que parecem querer anu-

lar-se reciprocamente, não quererão eles levar a humanidade

ao mesmo ponto? Tratar-se-á de uma luta entre dois inimigos

inconciliáveis, para destruírem-se, ou, pelo contrário, de uma

inconsciente colaboração para realizar a mesma construção? O

comunismo ateu, nos grandes desígnios de Deus, que ele igno-

ra, não estaria, sem sabê-lo, trabalhando a serviço Dele, para

realizá-los, varrendo com tudo aquilo que, em nome de Cristo,

foi feito para os interesses humanos? Em última análise, qual é

a verdadeira função do comunismo?

Não se pode contestar a sua expansão, sendo necessário

explicá-la. Sem interesses partidários e preferências pré-

concebidas, queremos compreender o que está sucedendo em

profundidade e qual a razão para isto. Admita-se ou negue-se

a existência de Deus, resta o fato de que a vida, e com ela a

história, encontra-se dirigida por uma inteligência. Vemos que

há uma lei que, para todos, crentes ou ateus, reage contra o er-

ro e o corrige, obrigando-nos com a dor a reconstruir a ordem

violada. Quem conhece as leis da vida sabe que um afasta-

mento do reto caminho da evolução é submetido a um proces-

so de retificação. Em termos religiosos, diz-se: “é a mão de

Deus, que faz justiça”. Em termos racionais, diz-se: “trata-se

de um movimento de forças imponderáveis, incumbido de res-

tabelecer os equilíbrios alterados”.

Ora, possuindo a mesma natureza negativa de tais impul-

sos reativos, entram em ação neste caso, espontaneamente, as

forças do mal (Anti-Sistema), que são particularmente ade-

quadas a uma ação agressiva e destrutiva. No plano físico, isto

se repete no caso de um organismo corroído, contra o qual a

vida lança a doença, para, das duas uma, provar a sua resis-

tência, obrigando-o assim a lutar e, com isso, a desenvolver as

suas qualidades sãs e vitais, ou então liquidá-lo, se, por estar

demasiado corroído, não é capaz de fazê-lo. Vemos, portanto,

que tais medidas corretivas fazem parte das leis da vida. Con-

siderar que os ateus estejam isentos delas seria como pensar

que eles pudessem, por ser incrédulos em matéria de doenças,

ficar imunes aos ataques patogênicos contra seu organismo. O

ateísmo não outorga imunidade contra as consequências do er-

ro, nem subtrai ninguém às leis da vida. Uma vez cometido o

erro, não é possível deter os seus efeitos.

As doenças, assim como as revoluções, são tempestades de

purificação, constituindo meios de reação contra a deterioração,

que corrompe e destrói. No fundo, trata-se de cataclismos vi-

tais, com o objetivo de saneamento. A atual crise do mundo é

de sinal positivo, pois, em meio à destruição de que é feita, con-

tém também grandes impulsos construtivos. Trata-se de uma

crise de morte no que diz respeito ao passado, mas é crise de

nascimento em relação ao futuro. Isto é provado pelo fato de

que a temperatura psíquica da humanidade está subindo rapi-

damente. O comunismo é uma das forças que está funcionando

dentro do desenvolvimento deste fenômeno, mas é necessário

ver em que posição e com que finalidade a cumprir. Pelo fato

de estar incluído num processo de evolução, hoje particular-

mente intenso, ele não se torna, só por isso, uma força de tipo

positivo, benéfica, de acordo com o Sistema. O comunismo

continua sendo uma força negativa, maligna, de tipo Anti-

Sistema. A mente universal, que dirige o percurso da história,

utiliza aquela força com uma finalidade de bem, empregando-a

para a destruição, mas com um objetivo construtivo. Tal impul-

so negativo então, guiado para concluir a sua ação na obtenção

de resultados positivos, constitui em última análise um mal ne-

cessário, cuja finalidade é benéfica.

Talvez a função histórica do comunismo também seja pro-

vocar uma reação purificadora do cristianismo, obrigando-o a

seguir a ideia de Cristo, para vivê-la na forma em que, pelas

razões anteriormente explicadas, não pôde fazer até hoje. As-

sim, o cristianismo poderá tornar-se cristão. Este seria o ver-

dadeiro triunfo de Cristo, resultado imenso, o qual vale as do-

res que custará para ser alcançado; este seria o verdadeiro im-

pulso para frente no caminho da evolução, com uma redução

de poder terreno e uma correspondente conquista de valores

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 65

espirituais; este seria o verdadeiro progresso em direção a

formas de vida mais elevadas, para civilizar o mundo e trans-

formá-lo em sentido cristão, regressando ao centro do cami-

nho da evolução, sobre o qual a vida nos quer reconduzir,

quando nos perdemos pelas vias do mundo.

O comunismo representa um impulso em direção a este en-

direitamento. Por haver resistência à transformação, é necessá-

rio que este impulso seja enérgico, dotado de meios persuasi-

vos, e o comunismo os conhece bem. A luta é grande, porque o

cristianismo resiste, procurando conservar a velha ordem, cujas

vantagens goza e sobre as quais baseia as suas posições. No en-

tanto ambos estão fechados dentro do mesmo processo históri-

co, para realizar a mesma obra de construção. O cristianismo

possui a ideia, e o comunismo tem a força para forçar a sua rea-

lização. A ideia, por si só, permanece uma abstração fora da re-

alidade. A força, sem a ideia para lhe dirigir a ação, pode ser

levada a realizar as piores coisas. A vida produz os opostos e

depois os aproxima em posição de complementaridade, para fa-

zê-los colaborar, lutando como rivais para alcançar o mesmo

fim – colaboração entre opostos complementares – como acon-

tece na luta do casal macho-fêmea, destinado à procriação. Por

lei de evolução, é lógico e justificável que, no passado, numa

primeira fase do seu desenvolvimento, o cristianismo, para

chegar até hoje, tenha sido obrigado a aceitar os métodos da

época, adaptando-se ao estado involuído da humanidade de en-

tão. Mas, pela mesma lei de evolução, é lógico e necessário que

hoje, em uma mais avançada fase de seu desenvolvimento e do

mundo, o cristianismo desperte e passe de verdade à realização

do seu programa, aproveitando a oportunidade e os incitamen-

tos que Deus lhe oferece nessa nova maturidade histórica. Num

universo em que tudo está conjugado e atua em colaboração, o

negativo e o positivo, mal e bem, se bem que em posições reci-

procamente contrárias, trabalham de acordo, inseridos no mes-

mo processo bipolar a favor da evolução. Com o tempo, as re-

voluções acabam por devorar os seus filhos e, com isso, o mal

acaba por eliminar-se a si mesmo. No entanto o bem – que o

mal, com o seu esforço emborcado, conseguiu estimular, purifi-

cando-o e renovando-o – permanece, enquanto, para as novas

gerações, fica o avanço evolutivo conquistado.

Não é algo novo para a vida este método de utilizar tudo

num sentido criador, inclusive os elementos destrutivos. Assim

o comunismo, visto em sentido lato, pode ser entendido como

uma reação corretiva por parte da lei de Deus, representando

uma tempestade de dor cuja função é despertar o espírito, meta

da evolução. Foi dito que: “o comunismo testemunha os deve-

res que o cristianismo não cumpriu”. Mas por que testemunha?

Será que é para cumpri-los, ou é somente para ressaltar que eles

não foram cumpridos e, assim, sentir-se autorizado a agredir e

liquidar quem deveria tê-los cumprido? De que púlpito parte a

pregação? Como pode fazê-la um comunismo que, nos fatos,

pratica métodos que estão nos antípodas do Evangelho? Como

pode quem tem defeitos condenar os defeitos dos outros? O fa-

to é que os homens são todos da mesma raça e fazem em toda a

parte as mesmas coisas. São os fatos e o modo de atuar que, por

detrás das palavras e das ideologias, revelam qual é a realidade.

Mas, se à teoria não corresponde à prática, pois o Evangelho

comunista mata em nome do ideal, enquanto o evangelho de

Cristo induz a deixar-se matar pelo ideal, tudo isto significa

que, de fato, os dois Evangelhos estão nos antípodas, sendo um

o contrário do outro. Vê-se, por isso, quanta confiança pode

merecer um Evangelho comunista camuflado de Evangelho

cristão. É inútil mudar os termos. Os dois terrenos são comple-

tamente diversos: um é material, o outro é espiritual; um é polí-

tico, o outro é religioso. Que significa esta atitude de se apro-

priar do Evangelho, para usá-lo ao contrário, buscando destruir

Cristo e levar à supressão do setor espiritual da vida? Então a

função do comunismo não é cumprir o Evangelho que o cristia-

nismo não realizou, mas sim castigar o cristianismo por ele não

o ter realizado, obrigando-o a isso através de métodos bastante

persuasivos. Se é indiscutível que, na Terra, devido à natureza

do homem, nada se obtém com os métodos evangélicos – ade-

quados somente para seres mais evoluídos – isto, no entanto,

permite ao comunismo insurgir-se no campo das atuações ter-

renas, que nada tem a ver com espiritualidade.

O fenômeno se explica. O Evangelho está marcado ao longo

da linha da evolução como realização futura, razão pela qual,

hoje, apresenta-se no alto, por sobre a vida vigente, como um

ideal que, antecipando o amanhã, está à espera para tomar cor-

po na Terra. O comunismo surge, pois, dois mil anos depois de

Cristo, em tempos mais maduros, que tornam possível tentar-se

uma distribuição mais equitativa de bens, não só como caso iso-

lado, por iniciativa individual e fins espirituais, mas em escala

social, assumindo uma organização coletiva e tendo reais fina-

lidades terrenas. Eis porque o comunismo se encontra realizan-

do alguns pontos do Evangelho. Mas, mesmo nestes, há uma

grande diferença: o comunismo não se limita a aconselhá-los,

mas os realiza; não os propõe ao indivíduo para a sua perfeição,

mas os impõe às massas; não se ocupa de longínquas metas es-

pirituais, mas busca realizações humanas imediatas. Disto deri-

va a diferença de método. Quem segue a técnica evangélica da

bondade trabalha só no terreno do ideal, mas quem deve agir na

Terra tem de seguir os métodos do mundo, bem diversos daque-

les de Cristo, feitos para as realizações espirituais, porquanto

aqui estamos no plano material. Os métodos evangélicos pre-

sumem um grau de evolução e civilização ainda não alcançado.

É assim que, numa humanidade ainda imatura, a força e a vio-

lência, que estão nos antípodas do ideal, podem formar parte

indispensável da técnica da sua descida na Terra. Esta descida

implica ingentes deslocamentos de ideias, interesses e posições,

mas o estabelecimento de uma nova ordem no lugar da velha,

que não se deixa demolir, somente pode ser obtido à força. Um

pioneiro isolado pode vencer com o martírio; as massas, não.

As funções históricas do cristianismo e do comunismo, mesmo

que ao longo do caminho possam encontrar algum ponto de

contato, são diferentes. O primeiro estabelece as metas longín-

quas, ainda situadas no nível super-humano do ideal, enquanto

o segundo está no meio do mundo, para causar um estremeci-

mento que leve à realização concreta daquela meta. É evidente

que, devido à estrutura de nosso mundo, não há outro caminho,

ainda que isto pareça uma contradição, para passar da teoria do

cristianismo pregado à prática do cristianismo vivido. E isto

nos prova o passado. Trata-se de uma tentativa inicial, de grau

ainda involuído, como demonstram os métodos usados, inevitá-

veis quando se quer realizar algo no atual nível evolutivo da

humanidade, como movimento de massa. Descer à atuação prá-

tica significa ter que mergulhar em nosso mundo tal como ele é,

para realizar um trabalho que somente quem tem a força bruta

do primitivo pode ter a capacidade de cumprir. Depois desta

nova irrupção de impulsos evolutivos, o novo cristianismo, pu-

rificado pela tempestade, poderá retomar, sobre a estrada aplai-

nada pelo cilindro compressor de revoluções e guerras, o seu

caminho triunfal em direção a Cristo.

Este é o fenômeno nas suas grandes linhas. Mas que sucede-

rá, se olharmos mais em detalhe, mais de perto? Vivemos num

momento histórico decisivo, de deslocações de equilíbrios e po-

sições, de mudanças profundas, que levam a humanidade a gra-

vitar em direção a outras metas e realizações, em função de ou-

tros pontos de referência. Uma necessidade de sinceridade e

clareza impulsiona a uma revisão dos valores tradicionais, para

eliminar os fictícios e ficar com os reais. O cristianismo está

colocado numa bifurcação: ou se faz cristão a sério, ou será li-

quidado, pois, não cumprindo mais a sua função, não terá mais

razão de existir. Então o desenvolvimento do programa evangé-

lico poderá continuar, mas confiado a outros homens, a outros

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66 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

instrumentos que serão chamados por Deus, adequados à reali-

zação daquele ideal, que fatalmente se cumprirá. A atuação dos

planos de Deus não pode ser limitada aos interesses de uma

classe dominante. O Evangelho, além de fenômeno religioso, é

também fenômeno social e biológico, de importância funda-

mental no desenvolvimento da evolução da vida no plano hu-

mano da coordenação coletiva, para passar à fase orgânica.

Neste desenvolvimento, está envolvida a existência de todos os

homens, tanto dos cristãos como dos ateus. A descida dos ide-

ais, embora se realize através das religiões, faz parte integrante

do fenômeno da evolução, que antecipa e obriga a avançar, in-

teressando, portanto, também à ciência positiva dos ateus.

Eis então que o comunismo pode ter a função de despertar

o cristianismo, obrigando-o a cumprir a sua função e, assim,

contribuindo para que ele não seja liquidado pela vida. O co-

munismo pode ser entendido como um bisturi em mãos de um

hábil cirurgião. O bisturi corta as carnes, mas o cirurgião sabe

o que faz, operando para curar, e não para matar. A vida está

do lado do doente, para curá-lo, por isso o opera, pois quer

que viva e que evolua ainda. Curar-se, para o cristianismo,

significa reencontrar os seus valores mais vitais, que são os

espirituais. Se ele voltar a encontrar Cristo, salvar-se-á, de ou-

tro modo ficará só e, sem Cristo, acabará por se perder. O que

morre não é Cristo, mas sim a organização humana, pois a lei

de Deus não lhe permitirá continuar vivendo, visto que ela já

não representa a Sua ideia e que esta foi a condição pela qual

Cristo permitiu a sua sobrevivência.

Não é com finalidade destrutiva que estamos fazendo estas

afirmações, mas ao contrário. A lógica colocação deste fenô-

meno, tornando-o compreensível, permite-nos conhecer qual

deve ser a técnica defensiva da parte do cristianismo contra o

assalto comunista. Que deste lado se ataque e que do outro se

resista em posição de defesa é fato evidente. Mas como con-

duzir a defesa? Foram usadas as armas espirituais, com exco-

munhões e coisas similares. Mas estas sanções se realizam

apenas no além, que está, portanto, fora do terreno positivo, o

único levado em conta pela parte oposta. Trata-se de pressão

psicológica, válida somente enquanto existe um estado de fé e

a correlativa sugestionabilidade, coisas que, com o materia-

lismo desagregante, vão desaparecendo. Procurou-se então

pactuar, buscando o colóquio, para amansar o inimigo. Ten-

tou-se assemelhar-se a ele pelo caminho das concessões, para

chegar a uma convivência pacífica. O comunismo sempre se

aproveitou disso para avançar.

Existe uma tática segura, porém mais difícil de realizar, con-

sistindo em eliminar os próprios pontos fracos, que, atuando

como portas abertas, permitem ao inimigo entrar. Que poderia o

comunismo contra a pessoa de Cristo? Nada haveria para repro-

var-lhe nem tirar-lhe. Se o cristianismo se tornasse como Cristo,

que poderia o comunismo objetar-lhe? Este só pode atacar onde

o cristianismo não é como Cristo. Se o cristianismo permaneces-

se por sobre o mundo, fora do campo político e econômico, as-

sumindo sua função espiritual, que lhe pertence de direito e

constitui um terreno inexistente para o comunismo ateu, as ra-

zões para o ataque deixariam de existir. Mas o problema é que,

para a maioria dos homens, o terreno espiritual é uma zona ine-

xistente, da qual se foge, para não renunciar à vida na sua forma

material, que é a única forma na qual ele a consegue conceber.

Mas já vimos como o cristianismo se adaptou ao mundo, assu-

mindo-lhe o respectivo modo de viver e, portanto, chocando-se

com o comunismo no terreno onde este quer imperar. No entan-

to, para um organismo de natureza espiritual, como é o cristia-

nismo, não há outro meio de defesa senão permanecer coerente

aos princípios básicos da instituição, que representam uma força

proveniente de um plano desconhecido pelo comunismo, o espi-

ritual, constituindo, para quem sabe usá-la, uma força tão válida

e concreta como as de origem material. A reação defensiva não

deve mais consistir em colocar-se no nível do atacante, rebai-

xando-se a lutar com ele no seu terreno, onde a vitória é do po-

der econômico, da astúcia das alianças com os poderosos e da

curta sapiência do mundo, justamente o campo no qual o opo-

nente é forte, mas deve, isto sim, consistir em elevar-se sobre

ele, para atuar num plano aonde o mundo não chega, utilizando

forças que ele não conhece e que não lhe obedecem.

Mas quem é imparcial deve saber ver também o que sucede

na parte oposta. Será o evangelho comunista o verdadeiro

Evangelho, ou trata-se de comunismo disfarçado de cordeiro,

de Satanás mascarado de Cristo? Não convence aquela prega-

ção de uma justiça evangélica realizada por meios ferozes, que,

tentando parecer justiça, constitui de fato astúcia para, assim

camuflado, penetrar melhor em casa alheia, aproveitando a cre-

dulidade dos ingênuos. Porém, uma vez tendo entrado, a reali-

dade é bem diversa. O comportamento no desenrolar dos fatos

revela o verdadeiro conteúdo da ideologia. É assim que a práti-

ca não corresponde à teoria em nenhuma das duas partes. Na

realidade, cristianismo e comunismo são apenas dois grupos de

homens e interesses, que, à sombra dos ideais, fazem no mesmo

nível a mesma guerra pela própria sobrevivência. Não temos,

portanto, como deveria ser, o choque entre dois planos biológi-

cos, um superior e um inferior, entre o ideal e o mundo, entre

espírito e matéria, mas entre dois grupos substancialmente da

mesma natureza, que atuam com os mesmos métodos humanos,

situados no mesmo nível. Uma vez que a luta é travada entre

semelhantes e no mesmo terreno, ação e reação são do mesmo

tipo. Podemos, assim, explicar a razão pela qual o assalto do

comunismo toma também esta forma de engano.

Como tínhamos explicado anteriormente, este ataque é de-

vido à reação da Lei, que dirige, segundo a inteligência do uni-

verso, o funcionamento orgânico todo. A reação é contra uma

violação da ordem, e o seu objetivo é restabelecer o equilíbrio

violado. Podemos nos permitir aqui formular estas apreciações,

uma vez que as deduzimos como consequência de soluções ge-

rais já alcançadas por nós em outro lugar, as quais lhes consti-

tuem a base, autorizando-nos assim a concluir. Ora, a razão está

no fato de que a reação da Lei é levada a assumir a mesma for-

ma e a seguir o mesmo tipo do erro que a gerou, pois a reação

nada mais é senão o mesmo impulso violador, retrocedendo

contra quem o lançou. O primeiro e o segundo movimento são

simplesmente as duas fases, ida e volta, do percurso realizado

pelo mesmo impulso. Causa e efeito não podem deixar de ser

da mesma natureza. Quem engana lança sobre si mesmo o en-

gano. A falsa santidade acaba por fazer aparecer o diabo vesti-

do de santo. Assim o comunismo é levado a usar a técnica do

engano, sendo atraído a isto porque o erro através do qual o

cristianismo provocou a reação da Lei – cujo instrumento de

efetivação foi o comunismo – é do mesmo tipo. Foi o cristia-

nismo que, deste lado, lhe abriu as portas, oferecendo-lhe, com

este tipo de ponto fraco e consequente vulnerabilidade, o “lugar

de menor resistência”, onde é mais fácil romper as barreiras e

penetrar nas defesas do inimigo.

Assim como a força do assalto microbiano está na vulnerabi-

lidade orgânica do indivíduo, a força do comunismo também é

dada pelos pontos fracos do cristianismo. Qualquer atacante es-

tuda as brechas que o inimigo oferece para ser atacado. O co-

munismo descobre e utiliza estes pontos. Nas nações, eles são os

governos fracos e corrompidos, a desorganização, a miséria. No

caso do cristianismo, um deles é a tradicional simbiose cristia-

nismo-capitalismo, que sai do terreno espiritual, ao qual o co-

munismo não tem acesso, para entrar no terreno específico des-

te, que é o terreno econômico. A referida aliança forma o grande

grupo das classes dominantes, das pessoas de bem que estão do

lado da ordem e das virtudes e devem, portanto, demonstrar que

respeitam aquela e possuem estas, sob pena de serem acusadas

de falsas. Então aqueles que mostram tão excelsas qualidades

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 67

caem nos laços por eles mesmos lançados. O seu inimigo exige

que eles mantenham a sua palavra e pratiquem nos fatos as vir-

tudes que professam, cobrando que sejam bons, honestos e jus-

tos de verdade, porque tudo isto os desarma, debilitando-os na

luta, o que agrada à parte oposta, porque facilita a sua vitória

contra eles. Fazer a guerra contra um santo que se deixa martiri-

zar, perdoando, é mais fácil que fazê-la contra uma fera ou um

inimigo bem armado. Se Cristo, em vez das Suas legiões de an-

jos, tivesse empregado legiões de soldados aguerridos, os roma-

nos e os judeus O teriam tratado diversamente.

Através desta sua simbiose com o capitalismo, o cristianismo

desceu do seu superior plano espiritual para submergir-se naque-

le terreno, onde está situado o comunismo. É neste nível huma-

no, bem diverso do divino, que tem lugar o choque. Lutar contra

Deus, em si mesmo, não interessa ao ateu, porque é absurdo lu-

tar contra algo que não se acredita existir. A luta surge quando

aparecem na Terra, em forma tangível, homens que, como re-

presentante de Deus, atuam no plano humano. Então a luta do

comunismo contra o cristianismo não é entre o homem e Deus,

mas é luta entre homens. Não se trata de uma luta de princípios,

mas sim de interesses, que são a razão pela qual os homens pro-

cedem assim na Terra, seja em nome da ideologia defendida pe-

los comunistas, seja em nome dos ideais pregados pelos que se

fazem representantes de Deus. Ao comunismo não interessa a

negação teórica de Deus, mas sim a negação prática das organi-

zações humanas que, em Seu nome, possuem poderes econômi-

cos e políticos. O que é puramente espiritual, sendo de domínio

íntimo, escapa por sua própria natureza a qualquer intervenção

do exterior. É difícil, portanto, controlá-lo coativamente. O cho-

que depende, assim, desta descida do cristianismo do plano espi-

ritual para o temporal, que o coloca no mesmo nível do segundo.

Se o cristianismo tivesse ficado no seu plano, se não tivesse bai-

xado até se tornar coisa do mundo, como é o comunismo, teriam

faltado os pontos de contato e de rivalidade, que são o motivo de

luta. Entre dois grupos humanos que usem bandeiras diversas a

luta é inevitável. Porém Deus está acima de todos, dirigindo tu-

do para os seus fins, diferentes dos humanos.

Nos planos de Deus, para que serve então e onde quer che-

gar esta luta? O seu resultado benéfico poderá ser que o cristia-

nismo seja obrigado pelo comunismo a retirar-se ainda mais do

campo material, para expandir-se no seu terreno, que é espiritu-

al, deslocando os seus interesses do primeiro para o segundo.

Isto é o que Deus quer, porque isto é espiritualização, signifi-

cando o regresso ao plano fundamental da evolução, razão da

existência. Em outros termos, no desenvolvimento da história,

seguindo os planos de Deus, o grupo humano representante do

comunismo assalta o grupo humano representante do cristia-

nismo para forçá-lo a espiritualizar-se, obrigando-o a subir e

aproximar-se de Deus. Isto significa um regresso a Cristo. Este

é o significado do ataque comunista.

A fraude por parte do cristianismo neste caso é substancial,

pois se desenvolve num fator concreto: o terreno econômico.

Ele pregou aos pobres a não resistência e a aceitação do sacrifí-

cio, exaltando-os em teoria, compensando-os com consolações

de além-túmulo, mas deixando-os na Terra entregues à sua mi-

séria. Para salvar seus interesses, aliou-se com os ricos e pode-

rosos da Terra, deixando aos deserdados as consolações do Céu

e a honra de saber sofrer. Se o cristianismo hoje vai ao encontro

das classes mais pobres, é porque elas se organizaram e, assim,

tornaram-se poderosas. No passado havia somente a esmola e a

beneficência, e não o direito ao trabalho e à vida. O cristianis-

mo, se no passado tirou vantagem desta aliança, hoje não pode

deixar de estar envolvido nas consequências que dela decorrem.

Da formação do binômio cristianismo-capitalismo inevitavel-

mente deriva que ambos tenham a mesma sorte. Desde que o

primeiro deitou raízes na Terra como capitalismo, é natural que

o comunismo queira eliminá-los ao mesmo tempo, como ex-

pressão do mesmo sistema. Hoje, como já explicamos, o pobre

não se contenta mais com simples concessões, com as quais é

colocado à disposição do arbítrio alheio, mas assenta os seus di-

reitos e os faz valer, exigindo que os outros cumpram com os

seus deveres a seu respeito. O cristianismo havia criado a ove-

lha paciente e submissa, que espera e agradece, mas o comu-

nismo está criando o indivíduo organizado, que discute sobre

justiça social e exige a sua aplicação.

Tampouco, porém, pode a ação comunista, por este lado, ser

justificada, porque à fraude do cristianismo corresponde a frau-

de do comunismo, que faz alarde da justiça social, para melhor

penetrar e dominar. Em teoria, ele se proclama defensor dos de-

serdados, sublevando-se contra as injustiças do mundo. Mas, na

prática, que benefício deste nivelamento gozam as massas? Este

novo método de vida social melhora as suas condições de exis-

tência em confronto com a dos países capitalistas? O comunis-

mo desejaria ser uma tempestade de saneamento contra as mui-

tas injustiças, mentiras e corrupção. Estas, de fato, existem, e a

revolta contra tudo isto é uma esperança de libertação, que im-

pulsiona as massas em direção ao comunismo. Trata-se de um

impulso negativo, determinado não por uma atração em direção

a uma ajuda, mas sim por uma repulsão que induz a fugir de um

inimigo perigoso. Mas pode a passagem de um partido político

a outro transformar o homem e torná-lo melhor? Por acaso não

continua ele sendo o que é, para fazer as mesmas coisas em

qualquer partido em que se encontre? Existe no homem um de-

sejo de justiça, mas que tende primeiramente a realizar-se em

favor do seu próprio egoísmo, começando pelos direitos pró-

prios e pelos deveres dos demais. Dentro desta obscura revolta,

contra tantos males sociais, em busca de honestidade e justiça,

frequentemente se agitam os impulsos mais baixos e desorde-

nados. Tudo isto é náusea da corrupção alheia, mas é também

desejo de fazer o mesmo e inveja por não poder gozar as mes-

mas vantagens. Não se quer a mentira dos outros porque nos

traz dano, mas se aceita alegremente a própria, que nos traz

vantagem. Prefere-se inclusive arriscar uma destruição geral, na

esperança de que, na confusão, haja individualmente alguma

coisa a ganhar. Então, com a palavra justiça, tenta-se de fato

mascarar a tentativa de aproveitar-se e o desejo de vingança.

O resultado de tudo que observamos, então, é a luta de clas-

ses, com o ódio entre elas impulsionando à guerra. Por este ca-

minho, os dois grupos que proclamam o Evangelho chegaram ao

seu polo oposto, obtendo ameaças de guerra, ao invés de paz;

agressividade, ao invés de colaboração; ódio, ao invés de amor.

Assim o Evangelho foi atraiçoado por ambas as partes, único

objetivo no qual os dois inimigos concordam e colaboram. De

quem é a culpa? Se o remédio é pior do que a doença e o médico

está mais doente do que o doente, não será ela de ambos? Assim

o mundo tomou um caminho de egoísmos e antagonismos, de

destruição e de dor. O mundo está carregado de ódio e arde com

o desejo de descarregá-lo sobre alguém. O comunismo o reco-

lhe, o organiza e o canaliza, para utilizá-lo nas suas finalidades

de domínio, através do ódio de classes sociais, dirigindo-o de

baixo para cima, generosamente intercambiado de cima para

baixo. Mais eis que a tão invocada igualdade, se ainda não foi

alcançada no terreno econômico, já o foi no terreno do egoísmo.

A esta cisão entre classes sociais inimigas chama-se de amor

evangélico. De ambas as partes, tudo é negativo e involuído. Se-

rá que isto é produto do Evangelho de Cristo? Ou tudo que se

faz no mundo não passa de um emborcamento do Evangelho? A

realidade escondida por baixo das palavras e dos ideais é bem

diversa e não pode deixar de produzir os seus efeitos. Como re-

sultado de tanto progresso científico, o mundo hoje vive sob o

terror de uma guerra atômica, e parece que a dor é a única pala-

vra capaz de se fazer compreender em todas as línguas. Então,

depois de imensas tempestades destrutivas, os sobreviventes tra-

tarão, fraternalmente, de se colocarem realmente de acordo, sem

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68 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

mais enganarem-se com as palavras. Então poderá aparecer o

amor, o Evangelho verdadeiro, vivido a sério.

A estrada é longa, e nos encontramos apenas no começo da

grande curva. Não estamos formulando teorias. Estamos con-

tando uma história, em grande parte ainda futura. Se Cristo

prometeu o triunfo da Sua verdade, esta deverá acabar por

afirmar-se, mesmo que sejam necessárias semelhantes tempes-

tades de dor, para vencer a tentativa do homem de deter a evo-

lução e retroceder ao Anti-Sistema. Sabemos, porém, que o de-

sencadeamento das forças negativas não pode levar senão à vi-

tória das forças positivas. O resultado de um ataque não é a sua

afirmação, mas sim a afirmação da reação que ele provoca. Do

ataque comunista, das revoluções e das guerras poderá surgir

um cristianismo purificado. Então Cristo poderá ressurgir no

coração dos homens e o Seu amor poderá realmente afirmar-se

no mundo. Se a culpa do cristianismo foi de fazer-se materialis-

ta com o mundo, o saneamento que o comunismo e as conse-

quências dele provocarão consistirá em obrigar o cristianismo a

espiritualizar-se e apoiar-se exclusivamente em forças deste ti-

po, inacessíveis para os involuídos, que não podem usá-las,

porque não as conhecem e, nas suas mãos, elas não funcionam.

Se, dada a imaturidade evolutiva do homem, o cristianismo

não pôde até agora alcançar uma aproximação maior da espiritu-

alidade, hoje, que a humanidade está evoluindo rapidamente, um

batismo de dor com o ataque do comunismo pode ser providen-

cial para dar ao cristianismo um impulso para o alto e repor o

mundo no caminho da sua progressiva espiritualização. Não se

pode culpar o cristianismo de não haver avançado mais do que a

humanidade no passado. Mas culpado ele seria hoje, se não res-

pondesse de uma forma positiva, neste momento historicamente

mais adequado para um salto em frente, aos incitamentos que

lhe são oferecidos para ele se decidir a ascender. Se a continua-

ção dos velhos sistemas foi justificável no passado, já não o se-

ria agora, que a humanidade está saindo do estado de involução

ao qual eles estavam condicionados. Se o grande abalo chegou

hoje, é porque é hora de despertar. A vida sabe o que ela quer e,

para alcançar isso, proporciona os devidos impulsos às condi-

ções do momento e à capacidade de responder, colocando-os em

movimento, quando há uma possibilidade de êxito. Porque as

guerras se tornam cada vez mais ruinosas para os vencedores do

que para os vencidos; porque as revoluções se transformam,

chegando até onde os seus promotores não pensavam; porque a

vida tende a evoluir, espiritualizando-se, é provável que o resul-

tado mais útil de tão grandes choques não seja a vitória de um

grupo humano, religião ou partido, de um país contra outro, mas

sim do Cristo purificador de todos, para o bem de uma humani-

dade que O compreendeu e que, finalmente, encaminhada pelos

acontecimentos que a fizeram amadurecer, decidiu civilizar-se a

sério, vivendo realmente a lei de Cristo.

X. A CRISE DO CATOLICISMO

Neste volume, assim como nos precedentes, continuamos vi-

ajando pelas estradas do pensamento, para analisar não só como

é feito e qual a aspiração deste estranho animal, chamado ho-

mem, que, no entanto, aspira tornar-se superior, mas também pa-

ra compreender o porquê da sua conduta tão ilógica e contrapro-

ducente. Quem escreve aqui teve de fazer um trabalho de pes-

quisa para sua própria orientação, pela necessidade de viver in-

teligentemente, com consciência e conhecimento, compreen-

dendo aquilo que se faz e por quê, para dar à vida um conteúdo

sério, que não deixe ela se transformar numa perda de tempo à

caça de ilusões. Tudo isto ele fez em primeiro lugar para si, a

fim de conquistar a sua verdade, apenas oferecendo-a aos outros

num segundo momento, na eventualidade de que também possa

servir a eles. Uma vez atingido um determinado grau de evolu-

ção biológica, dado pelo desenvolvimento mental e correlativa

capacidade de compreender, não se pode mais viver como au-

tômatos inconscientes, manobrados só pelos instintos, pois sen-

te-se a necessidade de saber orientar a própria conduta em fun-

ção de uma finalidade superior a alcançar, vivendo inteligente-

mente coordenado no funcionamento do todo, para realizar um

plano que explique, justifique e valorize a vida. Deste desejo

nasceram estes livros, o atual e os precedentes, escritos também

na esperança de poderem eles satisfazer um igual desejo que

possa ter nascido em indivíduos situados numa posição biológi-

ca semelhante. Pode suceder que outros, para encontrarem satis-

fação, necessitem de outras verdades. Tudo depende do grau e

tipo de anseio que cada um sente, segundo o seu próprio tempe-

ramento, especialização de atividade e nível de evolução. Mas o

que vale para todos não é tanto, como se costuma fazer, tomar

uma verdade emprestada de outros, fornecida já pronta com as

instruções para o seu uso, mas sim a verdade que se descobriu

por si mesmo, com as suas próprias forças, uma verdade que não

é repetição nem aceitação do pensamento já confeccionado por

outros e que foi laboriosamente conquistada, experimentando na

própria vida e pensando com a própria cabeça, olhando com os

seus próprios olhos dentro das coisas e do seu funcionamento,

para ler o pensamento que está escrito nelas.

Nestes últimos livros conclusivos da Obra, podemos descer

cada vez mais aos pormenores, focalizando a observação sobre

os fenômenos em detalhe, porque já foi traçado e demonstrado

o sistema científico-filosófico-teológico básico6, necessário pa-

ra a orientação. A este sistema nos podemos referir agora, a ca-

da momento, para explicar, segundo a lógica do todo, o caso

particular, mostrando o porquê da sua estrutura e de seu funcio-

namento, dado que é difícil entender um fenômeno separado do

todo, não orientado e enquadrado no plano geral, do qual ele

faz parte. No fundo, estamos aqui fazendo simplesmente apli-

cações da teoria universal estabelecida nos volumes preceden-

tes, que, além de explicar casos e fatos, também ampliam o

controle da verdade daquela teoria. Ao ser continuamente apli-

cada e mantida em contato com a realidade, a teoria encontra

fatos que, ao invés de se chocarem com ela, contradizendo-a,

vêm pelo contrário confirmá-la, comprovando-a. Portanto tudo

isto demonstra que aquela teoria é verdadeira.

Pelo fato de podermos apoiar-nos sobre tão vastas premis-

sas, foi possível concebermos o Evangelho não só como ele-

mento de uma particular religião, mas também como um produ-

to universal da vida, que por meio de Cristo foi lançado à Terra,

como antecipação da futura evolução humana. Assim, o Evan-

gelho já não se nos apresenta apenas como problema religioso,

mas sim como fenômeno biológico-ético-social, presente em

qualquer lugar em que se encontre o homem ou qualquer ser

que tenha alcançado o mesmo grau e tipo de evolução. Foi-nos

possível observar o funcionamento do fenômeno da descida dos

ideais à Terra – tão pouco controlável em forma positiva – tra-

tando dele de uma forma não vaga e misteriosa, como fazem as

religiões e o espiritualismo, mas sim racional e convincente, de

acordo com a lógica e a ciência, como fenômeno enquadrado

em leis conhecidas, a exemplo da evolução, e orientado no fun-

cionamento do todo. Pudemos assim realizar, com a forma

mental positiva do mundo, o exame do fenômeno da descida

das coisas do Céu, tão difícil de se captar.

Observemos, no entanto, que, até aqui, permanecemos no

terreno do conhecimento puro. Devemos então completá-lo,

dando-nos conta também de um outro fato. Existe um outro

problema, que se refere à realização prática dos ideais descidos

do Céu, quando se trata de se materializarem no ambiente ter-

restre. Transportar estas teorias à realidade da vida humana po-

derá parecer fácil a um teórico. Nos fatos, porém, o problema

6 V. os livros: A Grande Síntese, Deus e Universo, O Sistema e

Queda e Salvação.

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 69

não é tanto possuir o conhecimento ideal de um sistema novo e

perfeito, mas sim dispor de material humano adequado, capaz

de realizá-lo e, depois, fazê-lo funcionar. É inútil dispor de pla-

nos teoricamente perfeitos, quando o material que se deve utili-

zar cai aos pedaços, de tão corroído. O Céu deve contar com as

condições que oferece a vida terrestre. Então o problema básico

não é o ideal, mas o saneamento de tal material humano, a

construção do homem. Assim como, para construir o organismo

humano, antes de coordenar nele infinitas células, foi necessá-

rio construir cada uma delas como indivíduo-celular, também é

necessário, para construir o organismo coletivo humanidade,

construir cada um dos indivíduos, seus elementos componentes.

Todavia, na descida dos ideais, admira-se a sua beleza, mas

pensa-se pouco em como o homem será capaz de usá-los,

quando se apropriar deles no seu mundo. Age-se então como se

a perfeição do sistema pudesse ser suficiente para suprir a im-

perfeição do instrumento utilizado para sua realização.

É assim que, nas revoluções, nas mudanças de regime, de

partidos ou de religião, altera-se a forma, mas permanece a

substância, de modo que homem permanece o mesmo e faz as

mesmas coisas, mudando apenas o estilo, a forma, a bandeira e

o princípio teórico em nome do qual as coisas são feitas. Dessa

forma, os melhores programas e os mais altos ideais, no fim,

não servem para nada, dado o uso que deles se faz. É inútil fa-

zer uma máquina perfeita e depois entregá-la nas mãos de um

macaco, se não se pensar primeiro em transformar o macaco,

para que ele não destrua a máquina por ignorância. É assim que

os melhores sistemas chegam ao mesmo fim. Eles são aceitos

verbalmente e divulgados, tornando-se a crença de um movi-

mento, mas com a secreta intenção de explorá-lo para obter

proveito. Então acontece o inevitável. O involuído, não com-

preendendo nada das leis da vida, ao se encontrar manejando

forças que não conhece, consegue somente produzir o seu pre-

juízo. Assim ele fica com o edifício demolido em cima de si

mesmo, submetido à necessidade de recomeçar desde o princi-

pio, tantas vezes quanto for preciso, até aprender a lição, para

saber fazer o justo uso dos ideais que descem a Terra. A peni-

tência é dele. Mas como poderia ele evoluir de outro modo?

Não será esta, na realidade, a história da descida dos ideais?

Ora, a nossa tarefa não pode ser impor outra conduta para

transformar o mundo, mas somente explicar o que nele sucede.

Devemos nos contentar em compreender o porquê e as conse-

quências daquilo que o homem faz, e não forçá-lo a proceder

de uma maneira em vez de outra. Nós podemos mostrar como

funcionam as forças da vida, mas nenhum poder temos sobre

os seus movimentos. A reação punitiva que retifica os erros es-

tá escrita na Lei e funciona automaticamente, sendo que ne-

nhum ser pode modificá-la. A uma criança que pratica movi-

mentos arriscados pode-se dizer: “toma cuidado, pois podes

cair e magoar-te”, mas não se pode evitar que para ela funcio-

ne a lei da gravidade. Por isso procuramos explicar àqueles

que possam compreender como funciona o fenômeno, dando

um significado exato às palavras.

O céu de onde os ideais descem não é aquele Alto do qual

se fala com significado vago, sem se saber onde, como e em

que sentido está situado, pois a este conceito foi anteposta uma

teoria geral do conhecimento, em cujo seio é possível orientar-

se. Para nós, o céu de onde os ideais descem é constituído por

planos biológicos ou níveis de evolução mais avançados, que

são neste sentido superiores (o Alto) e que, através do processo

evolutivo, serão logicamente alcançados no futuro. É natural,

por isso, que o ideal hoje represente utopia, pois ele é uma an-

tecipação que desce ao nível terrestre inferior, para dar início ao

trabalho de realização daquele ideal. As religiões são então um

dos meios que a vida utiliza para a descida dos ideais à Terra,

no seu processo de antecipação do futuro, para ele poder assim

atuar na realidade dos fatos. Compreende-se, deste modo, a fun-

ção educadora e civilizadora das religiões, explicando-se a con-

tradição entre o que elas recomendam fazer e o que é feito na

realidade. Uma religião estende-se de um ao outro destes seus

dois extremos. De um lado, a pregação daquilo que deve ser

feito, mas que, constituindo um programa na expectativa de

realização futura, ainda não se faz. De outro lado, aquilo que se

faz na realidade da vida e que cabe ao ideal das religiões trans-

formar lentamente. Elas estão entre estes dois polos: o polo An-

ti-Sistema do involuído e o polo Sistema do evoluído. Entre es-

tes dois extremos, uma religião abarca, na sua amplitude, todos

os graus de desenvolvimento compreendidos entre eles, abran-

gendo uma escala que vai do pecador ao santo, ao longo da qual

os indivíduos estão situados e procuram subir.

Assim desaparece a contradição e fica a função evolutiva

das religiões. Estas então, apesar de serem apresentadas como

verdades absolutas e imutáveis, não devem ser entendidas deste

modo, mas sim como verdades relativas, que evoluem em pro-

porção à maturação alcançada pelos seus componentes e que,

portanto, progridem incessantemente, mudando sempre em re-

lação ao ponto fixo final da evolução, situado no absoluto, sen-

do este o ponto de referência em função do qual as religiões –

umas mais e outras menos próximas dele – realizam a sua pro-

gressiva deslocação evolutiva. Ora, este fenômeno permanece

incompreensível, se olhado com a forma mental das teologias

vigentes, feitas de abstrações situadas fora da realidade da vida,

com verdades imobilizadas, apegadas ao absoluto, em cujo no-

me desejam eternizar a sobrevivência do próprio grupo. Porém,

apresentado assim, como o fazemos aqui, todo o processo fica

logicamente explicado. As sucessivas reencarnações permitem

a assimilação de novas experiências e, com isto, a aquisição de

novas qualidades, através da sua fixação no subconsciente, em

forma de automatismos. Trata-se de um progressivo enriqueci-

mento, melhoramento e potencialização da personalidade. Eis

em que consiste a ascensão do Anti-Sistema ao Sistema, da ma-

téria ao espírito; eis o que significa elevação em direção a

Deus. Não se trata de um dogma desta ou daquela religião. Tu-

do isto é simplesmente biologia, cuja técnica evolutiva pode ser

racional e experimentalmente controlada. Assim, quando fala-

mos de céu, de espírito e do Alto, podemos explicar seu signifi-

cado mais profundo. Então estas palavras não mais expressam

apenas uma vaga aspiração da alma, mas assumem um sentido

positivo, com um valor real e controlável. Desse modo, o

Evangelho não fica fechado numa religião, mas assume um

significado biológico universal, como lei da vida humana do fu-

turo, porque é precisamente com a finalidade de nos preparar

para este novo tipo de vida que ele existe na Terra. Eis que a

sua presença no mundo, mesmo quando é por este emborcado e

atraiçoado, justifica-se, pois, não obstante tudo, o Evangelho

cumpre a sua função logicamente, segundo as leis da vida deste

plano evolutivo. Assim torna-se tudo claro e compreensível, es-

clarece-se o labirinto das contradições, faz-se luz sobre tais

problemas espinhosos e pode-se avançar, vendo a estrada sobre

a qual se caminha. Será possível então vivermos as religiões

não mais como crentes cegos, mas sim como seres esclarecidos,

de olhos abertos, que acreditam porque podem ver.

◘ ◘ ◘

Jamais impulsionados pelo desejo de agredir para destruir –

posição negativa da qual nos afastamos – mas sim pelo ideal de

preparar, com uma atitude positiva e construtiva, uma religião

mais evoluída e inteligente, como será a de amanhã, entremos

agora em maiores detalhes, observando as posições do atual

momento nos vários campos, para compreender quais os peri-

gos que nos ameaçam e em direção a que novas formas de vida

e modos de concebê-la nos conduz a evolução.

Observemos a atual crise do catolicismo. A crítica que fi-

zemos e ainda fazemos não é das religiões, mas da conduta

do atual biótipo humano, quando ele, na posição de involuído,

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70 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

encontra-se envolvido no problema religioso. Foram as poucas

observações feitas neste sentido, referentes à Igreja, há mais de

trinta anos, em A Grande Síntese, que provocaram, entre outras

razões, a condenação daquele livro ao “Index”. A honesta ten-

tativa de harmonizar ciência e fé, para atualizar um cristianis-

mo em crise, porque ainda medieval, pareceu heresia e foi con-

siderada um perigo para as almas piedosas. Assim, com o “In-

dex”, o perigo foi afastado.

No entanto o problema continuou. Como se tratava somen-

te da voz de um pobre homem isolado ou de poucos pioneiros,

era fácil fazê-los calar. Hoje, porém, aquele problema se tor-

nou universal, pesando como uma ameaça, de modo que os di-

rigentes, não podendo mais sepultá-lo no silêncio, são obriga-

dos a enfrentá-lo e resolvê-lo. Hoje são as massas que querem

saber a verdade. Tornam-se cada vez mais numerosos aqueles

que pensam e, portanto, querem resposta para suas dúvidas,

exigindo a solução dos problemas, que se tornaram candentes.

Enquanto o mundo avança vertiginosamente, os dirigentes,

por se terem feito representantes do eterno, pensando haver

com isso encontrado o segredo para conservar eternamente as

suas posições, dormem entre as almofadas das velhas teologi-

as, nas quais ninguém mais acredita.

Hoje, em 1964, nas revistas italianas autorizadas, segundo

declarações do próprio clero, encontramos catalogadas as se-

guintes constatações:

1) Os indiferentes já constituem pelo menos dois terços da

população. Esta constatação, feita por uma revista italiana, refe-

re-se à Itália, país que é o centro do catolicismo. Em 1950, veri-

ficava-se em Roma que só 25% da população era praticante. E

o fato de ser praticante não significa necessariamente ser crente.

2) As vocações ao sacerdócio vão rareando cada vez mais.

3) A difusão da psicanálise vai substituindo a função do

confessor, havendo afirmação do culto da psicologia, que ex-

plora os segredos do inconsciente e pode curar os seus males,

conceitos desconhecidos do confessor.

4) O desejo de espiritualidade se desloca, procurando fora

das religiões a satisfação que não encontra nelas, dirigindo-se

para outras formas, não religiosas e não ortodoxas.

Tudo isto é uma simples constatação de fatos, fornecidos

por fonte católica. Procuremos compreender ponto por ponto o

que eles significam.

1) O grande inimigo do doente não é o micróbio que o ataca,

mas sim a sua fraqueza orgânica, que permite o êxito de tal as-

salto. Assim o grande inimigo do cristianismo não são o mate-

rialismo e o comunismo, cujos assaltos vêm de fora, mas sim a

cristalização, o cansaço senil, a inércia espiritual e a indiferença

geral, que constituem o mal situado dentro do organismo da re-

ligião. Pode-se até mesmo dizer que as primeiras causas da do-

ença, aquilo que atrai o assalto microbiano e a sua ação destruti-

va, é o próprio estado deteriorado do organismo. Em resumo, a

patogênese depende, antes de tudo, da insuficiência ou vulnera-

bilidade orgânica, e não do assalto microbiano, que é uma con-

sequência delas. Ao chegar e encontrar o organismo saudável e

armado para resistir, o próprio ataque o fortifica, despertando a

reação do instinto vital de defesa e impulsionando-o à vitória. O

outro caso é mal de velhice do organismo, que se deixa morrer

tranquilamente, em silêncio. Então materialismo e comunismo

teriam nascido como um efeito de tal debilidade orgânica, cha-

mados pela vida e utilizados como instrumentos de liquidação

daquilo que esgotou a sua função biológica.

É importante, para a própria sobrevivência, compreender a

estrutura de tal fenômeno. Para que o doente possa se salvar, é

necessário um diagnóstico exato, porque só deste modo se sabe

dirigir a ação defensiva adequada contra o verdadeiro inimigo,

que neste caso não é tanto o assalto proveniente do exterior,

mas sim a debilidade do organismo contra o qual aquele assalto

é dirigido. Isto significa que o tratamento para a salvação con-

siste não só em se armar para combater contra o inimigo – pro-

vidência inútil, quando não se possuem as forças espirituais pa-

ra conduzir à vitória semelhante batalha – mas também em sa-

nar as próprias debilidades, fortificando-se no terreno reservado

à própria competência, onde se é mais potente e onde os demais

não podem entrar: o espiritual. Uma semelhante transformação

seria um remédio seguro. Mas ele representa sacrifício, consti-

tuindo medicamento amargo, que se procura evitar, buscando

outros caminhos. Para quem representa o Evangelho, não existe

outra salvação a não ser segui-lo, pois, para quem caminha pe-

las estradas do espírito, o poder e a defesa não podem estar se-

não no plano espiritual. Ligar-se às forças do mundo significa

atraiçoar e, portanto, perder esse poder e aquela defesa. E este

erro pode ser fatal! É claro que, em se tratando de uma opera-

ção cirúrgica, é melhor fazê-la por iniciativa própria do que ser

submetido a ela por imposição dos outros. Hoje, tudo parece

calmo na Igreja, como se ela estivesse no auge do poder. Não

há cismas nem reações agressivas. Na Itália, todos, ou quase

todos, declaram-se católicos, respeitosamente, por tradição.

Mas o problema religioso não interessa mais. Será esse desinte-

resse o cansaço senil que precede a paz do cemitério? Não se

perde mais tempo em discutir e muito menos em agredir. As

novas gerações se perguntam qual o significado desse mundo

que ficou fora da realidade. Com delicada deferência, como se

deve fazer com as coisas beneméritas e preciosas, a vida aban-

dona a religião à margem da estrada, como algo velho e inútil,

incapaz de caminhar, e continua avançando por sua conta.

2) Quando as células novas não substituem mais às velhas,

cessa a renovação do organismo, cuja vida assim acaba. Então,

porque o velho organismo já não lhe serve, a vida passa para ou-

tro, novo. Hoje, está desaparecendo a razão para que essa reno-

vação se realize no seio da Igreja. Se o indivíduo é espiritualista,

ele se vê obrigado a entrar num organismo principalmente polí-

tico e econômico, no qual a espiritualidade se situa num segundo

plano. Se o indivíduo atua por cálculo, não há razão para que ele

deva eleger uma carreira de muitas renúncias e escassa remune-

ração. No passado, a vantagem econômica e uma boa posição

podiam, mesmo que inconscientemente, dar origem a muitas vo-

cações. Hoje, porém, o poder terreno passou para outras mãos, e

a vida oferece outras vias, mais proveitosas. É natural que, na

Terra, o cálculo da utilidade material esteja na base da vida. Por

outro lado, quem deseja saber não estuda teologia, mas se satis-

faz com o conhecimento científico, mais positivo, e quem quer

ganhar obtém deste conhecimento resultados mais concretos e

vantajosos. Para a Igreja se apoiar, restariam as massas supersti-

ciosas e ignorantes, que, antigamente, podiam servir de base,

mas que, hoje, vão desaparecendo nos países civilizados.

3) Hoje, perante os novos conhecimentos psicanalíticos ad-

quiridos, a técnica psicológica e terapêutica de remissão do pe-

cado com a penitência não governa mais. A cura do erro men-

tal não se faz mais com base em abstrações filosóficas e teoló-

gicas, situadas fora da realidade biológica e aplicadas com re-

gras mecânicas, mas sim empregando uma forma mais inteli-

gente e positiva, pela indagação no subconsciente, na estrutura

da psique, para demolir aquelas construções mentais erradas e

esclarecer aqueles enredos psicológicos chamados complexos

etc. A pesquisa psicológica descobriu novas profundidades na

alma, e o confessor, não possuindo nenhuma competência na

matéria, não pode assumir a direção da vida espiritual alheia,

tarefa complexa e de gravíssima responsabilidade. Por isso

muitos se dirigem ao psicanalista. Isto não representa uma so-

lução melhor, mas demonstra que a necessidade de uma orien-

tação espiritual subsiste e se dirige para outro lugar, porque es-

ta função já não é mais satisfeita pelo confessor. Este, com a

sua posição de tribunal armado de penas infernais, adapta-se

cada vez menos à mente moderna, porque, frequentemente, tra-

ta-se do caso de um enfermo que invoca compreensão e ajuda,

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 71

buscando um médico, e não um juiz que só sabe fazer-se intér-

prete e instrumento da vingança de Deus.

4) Confortando-se com a ideia de uma sobrevivência do de-

sejo de espiritualidade, as referidas revistas admitem que tudo

pode ser remediado, utilizando-se uma linguagem nova, com a

chamada “atualização”, como se, para poder resolver um caso

tão grave, pudesse bastar uma substituição de palavras e posi-

ções, assim como se faz com a moda. Claro que se trata de uma

crise. Então, vendo em perigo a própria sobrevivência, o clero

se apressa a fazer reparações e, para remediar, adapta-se, aten-

dendo às exigências dos novos tempos. Mas poderão bastar as

hábeis medidas preventivas? Não se tratará agora de uma crise

mais profunda, que, em consequência de um método de contor-

ção do ideal, não cristão e já milenário, vem-se acumulando por

séculos, mas que não pode, por lei da vida, deixar de explodir,

destruindo as velhas instituições corrompidas por este seu ínti-

mo negativismo? Se a espiritualidade não se perde, apenas se

desloca, buscando outros organismos, e se a organização ecle-

siástica, na forma que utiliza para representá-la, já não cumpre

mais a sua função, tornando-se um produto repelido, então co-

mo poderá a vida manter de pé tal organização, que, deixando

de realizar um trabalho útil, não tem mais razão de existir? Em

vez do problema da espiritualidade, não teria sido a própria so-

brevivência o que mais interessou e ainda interessa àquela or-

ganização? As massas observam, tornam-se inteligentes e que-

rem ver, não estando mais dispostas a aceitar só por principio

de autoridade e de fé. A sociedade moderna está se transfor-

mando num organismo onde cada indivíduo deve dar à coleti-

vidade uma contribuição útil, enquanto, paralelamente a este

seu dever, tem o direito de exigir, em contrapartida, que todos

os outros ajam da mesma forma. Os parasitismos não são mais

admitidos. Todos devem produzir alguma coisa, cumprindo

uma função, inclusive no campo espiritual. Assim, observando,

controlando e fazendo as contas, abandona-se as teorias e pro-

curam-se as coisas concretas, eliminando-se o que não serve.

Esta mudança de métodos, tal como acontece no terreno da

moda, torna-se pouco convincente, principalmente se tratando

de quem baseia a sua posição sobre princípios absolutos e eter-

nos. Então é o mundo que estabelece e impõe esta moda, en-

quanto o absoluto se adapta a ela, aceitando as suas diretrizes.

Existe também o tradicional método de aliar-se sempre com o

mais forte, aplicado não só no passado, ligando-se aos ricos e

poderosos, mas também hoje, procurando ir ao encontro das

massas pobres, que, organizando-se e fazendo-se valer pela for-

ça do número, estão-se tornando o mais forte. Mas será que, pa-

ra o objetivo da sobrevivência, este tipo de jogo dará indefini-

damente resultado? Isto parece um jogo duplo, no qual se busca

uma aliança com Deus por um lado e com o mundo – o inimigo

– por outro, resultando numa posição que, por ser contraditória,

é insegura. O homem já não é a criança de ontem, então ele vê,

observa e, pelo fato de ter sido instruído a respeitar, cala e afas-

ta-se respeitosamente. Numa época em que se faz um novo

exame de todos os valores humanos, para selecionar os melho-

res e descartar os inúteis, os erros passados, antigamente supor-

táveis, vêm à superfície e já não são tolerados. Historicamente,

a religião, que deveria ter denunciado os abusos dos ricos, indo

ao encontro dos necessitados, acabou por se aliar com aqueles e

transformar-se num tranquilizante destes – ópio dos povos – pa-

ra manter quietos os pobres, exortando-os à virtude da paciên-

cia e prometendo o paraíso a quem sofre, enquanto os outros

gozavam imediatamente o paraíso nas suas costas.

Para que servem então estes remédios improvisados? Não

será uma grande ilusão acreditar que, para salvar o cristianismo,

baste aplicar tais paliativos, feitos apenas de retoques na forma,

em vez de se realizar uma mudança radical de método, fazendo-

se cristão a sério e tomando uma posição nítida e sincera do la-

do do espírito, sem assumir, para salvar a sua própria posição,

compromissos com o mundo ao aceitar as suas modas e colo-

car-se à sua disposição? Agora, o jogo destas adaptações, com

a finalidade de conciliar à força dois termos opostos, já é per-

cebido. Um poder que dura há dois mil anos não poderia ter

feito outra coisa senão adaptar-se às mais contraditórias posi-

ções históricas, mesmo àquelas que constituíam o mais estri-

dente contraste com os princípios por ele professados. A histó-

ria fica escrita, e não se pode apagá-la. Aparentemente, no

meio de tantas mudanças, o único ponto que permaneceu sem-

pre imutável, como referência absoluta, foi o método da pró-

pria conveniência, um argumento que o mundo conhece e

compreende muito bem. Percebe-se assim o poder que o mun-

do tem para se impor às religiões. Vê-se que, na Terra, ele é o

dono e, portanto, manda, sendo que a ele até o absoluto obede-

ce, adaptando-se às suas vontades e desejos.

O comunismo não poderia ter avançado, se os pontos débeis

da parte oposta não constituíssem tantas portas abertas para

deixá-lo entrar. Um organismo forte não adoece. Uma doença é

sempre a consequência de um defeito ou culpa. Mas então aca-

ba-se convivendo com o médico no hospital. Que esforço, que

trabalho e que despesa, para recuperar a saúde! Então surge a

pergunta: se estão se iludindo aqueles que creem ser possível

salvar-se com tais recursos, não representará então o avanço do

comunismo antes uma nêmese histórica, uma fatalidade inevi-

tável, porquanto tudo isto não é senão o pagamento das dívidas

contraídas perante as inexoráveis leis da vida, que exigem justi-

ça? Não seria então mais salutar, inclusive do ponto de vista da

própria sobrevivência, pôr-se sinceramente a trabalhar exclusi-

vamente para as coisas do espírito? Mas pode surgir uma dúvi-

da. Compreenderão as massas tudo isto, ou será já demasiado

tarde para que elas possam se interessar por um trabalho de pro-

funda renovação espiritual, ao qual se tornaram completamente

insensíveis, depois que aprenderam a mentira institucionaliza-

da? O exemplo do jogo das acomodações veio de cima e foi

aprendido pelos fiéis, que, por considerá-lo cômodo, já não re-

nunciarão a ele. Claro que, no passado, ele deu vantagens ime-

diatas, devendo-se a ele em grande parte a sobrevivência mile-

nária. Mas é inevitável que se deva depois chegar até às últimas

consequências de cada ato. A salvação a longo prazo está na

atitude única, retilínea e sincera. Qualquer desvio desta linha

poderá seduzir no momento, pelas vantagens imediatas que ofe-

rece, mas representa um princípio negativo de envenenamento e

corrupção, o qual tende a destruir o organismo que o aceita.

Não possuirá a Igreja uma força espiritual toda sua? Por que

então ela renuncia a esta imensa força, para servir-se de outra,

caindo vítima da ilusória força do mundo? Cada nação ou povo

tem algo para dizer nesta nossa hora histórica, e a Igreja, se

quisesse, teria coisas tremendas para dizer. A tempestade é for-

te. As velhas tapeçarias que tudo cobriam e escondiam, voam

com o vento. Procura-se repará-las, sem se ver que o desmoro-

namento é da própria casa e que é necessário fazer uma outra,

desde a base. O cataclismo chega e o terremoto está em ação,

no entanto não se pensa senão nos retoques. Antes da revolu-

ção, a aristocracia francesa, tal como aconteceu com a russa, es-

tava inerte. Isto talvez porque, quando a hora chega e o tempo

está maduro, é inútil pôr-se a reparar a velha casa, que não ser-

ve mais. Então a vida não perde mais tempo com isso e põe-se,

pelo contrário, a construir tudo desde o princípio. O problema

atual não é saber adaptar-se ao novo colorido do ambiente hu-

mano, para sobreviver, aceitando numa posição subordinada,

apenas com o fim de salvar a própria posição, as transforma-

ções que ele impõe. Trata-se de gritar bem alto a palavra do es-

pírito e fazer ver com o exemplo que ela é verdadeira, colocan-

do-se, em nome dela e por seu intermédio, acima do mundo,

consciente do grande valor que se possui e que se tem o dever

de afirmar para a salvação da humanidade. É necessário con-

quistar o sentido da sua própria missão no mundo e, vivendo-o

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72 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

primeiramente em si mesmo, colocar em evidência os valores

do espírito, para que se possa tocar com as mãos a plena reali-

dade de seu peso e valor. É necessário descobrir e compreender

que o espírito representa uma força tremenda, maior do que a

própria bomba atômica, à qual ele pode contrapor-se, vitorioso.

Mas, para chegar a isto, é necessário sentir, encarar e viver o

espírito, afirmando-se numa luta superior, de tipo evangélico,

conduzida com os fatos, e não somente com as palavras. É ne-

cessário compreender que as medidas tomadas com o objetivo

de salvar os próprios interesses, nada salvam, nem sequer estes.

Semelhante método é negativo, expressando um desvalor e uma

incompreensão da situação, que confirmam a inaptidão de sal-

var-se. Para isto, é necessário ser positivo no sentido construti-

vo que a vida exige, colocando-se assim em colaboração com

ela. Se assim não for feito, pensando apenas em si próprio, en-

tão se ficará abandonado por ela. Muito cuidado ao se aventurar

contra a vontade da vida, que quer progredir. Ela está sempre

pronta a ajudar a subir quem possua um valor, fazendo vencer

quem se oferece como instrumento para secundar e realizar

seus fins. As religiões possuem este valor e têm o seu monopó-

lio, mas, em vez de utilizá-lo, deixam-no adormecido e bem

guardado em cofres de ouro, para dar-se conta, um dia, que eles

estão vazios, pois o espírito, porquanto ninguém pode encerrá-

lo, fugiu para ir reviver noutro lugar.

Claro que o desejo de espiritualidade permanece. Não se po-

de destruir esta, que é uma necessidade humana, devida a um

anseio natural de evolução, que faz parte das leis da vida. Mas é

precisamente nisso que reside o perigo, e não a salvação, para a

religião. Uma vez que o impulso em direção à espiritualidade

não desaparece, ele é então obrigado a dirigir-se para outra par-

te. Este fato ocorre justamente porque a religião não sabe mais

satisfazer este desejo de espiritualidade, o que significa não

cumprir mais a função que lhe dá o direito à vida. Isto representa

a falência da religião, que não corresponde mais aos imperativos

impostos pela vida, cujas forças intervêm, para liquidá-la na sua

atual forma. É assim que a espiritualidade permanece, mas

abandona uma religião que não a satisfaz mais. Pode acontecer

que a mudança de casa traga pouco beneficio, ou que um outro

lugar seja até mesmo pior. Mas a verdade é que se abandona

uma casa inóspita, para se continuar andando à procura de outra,

que satisfaça o desejo de espiritualidade. É provável que se en-

contrem sempre as mesmas coisas, porque o homem é o mesmo

em toda a parte. Então a quem clama por espiritualidade não res-

ta senão ficar sozinho com Deus, dado que, para ele, as casas do

mundo são quase todas mais ou menos inabitáveis. Não podendo

ele sozinho fazer algo para a salvação dos outros, não lhe resta

nada mais senão ficar observando como se arranjarão os habi-

tantes dessas casas, que ameaçam ruir sobre eles. Afasta-se en-

tão em silêncio, respeitosamente, como fez Teilhard de Chardin,

permanecendo fiel a Deus como ele O sente, e ao seu ideal, ao

qual não pode renunciar, sem atraiçoar-se a si mesmo. Tudo

acaba vindo à tona, e todos deverão resolver os seus problemas.

Já tinha falado claramente há trinta anos. Hoje se pode ver

quão fundado era o meu temor de uma crise de religião e quão

grave e iminente era o perigo previsto. Um indivíduo isolado

pode tratar somente de não errar para si, ficando responsável

apenas por suas ações. Ele não pode impedir que o homem seja

o que é e assim permaneça de fato. Os representantes do clero

não podem ser constituídos por super-homens, nem podem ser

transformados nisso através de uma consagração ou enquadra-

mento disciplinar, sendo impossível fazer que eles, intimamen-

te, não continuem sendo o que são, deixando de funcionar com

a forma mental do homem do nível evolutivo atual.

É verdade que, hoje, a Igreja trata de se renovar. Mas sobre

ela pesa o seu passado, durante o qual muitas vezes ela se co-

locou nos antípodas do Evangelho, em contradição com Cristo,

aceitando o poder temporal, fazendo guerras, aliando-se com

os ricos poderosos e metendo-se em política. Como reabsorver

tudo isto? Como fazer esquecer este passado? Ele é pesado, e

as instituições milenárias não podem evitar ter de arrastá-lo.

Uma casa na qual se habita há dois mil anos torna-se tremen-

damente velha, não sendo mais adequada para que se possa vi-

ver dentro dela. Então, ou ela é deixada respeitosamente em

pé, como um documento histórico, indo-se habitar outro lugar,

ou ela é destruída, para utilizar a área edificável na construção

de um novo edifício. Isto é necessário também para resolver o

problema da defesa, que, em nosso mundo feito de luta, é sem-

pre fundamental. Como o resolve a Igreja?

Uma vez que o Evangelho a despojou das armas materiais,

com as quais se conduz a luta na Terra, onde, no entanto, tem de

se viver, e uma vez que, num mundo de luta, uma arma é indis-

pensável, à Igreja não restaram senão as armas espirituais, cuja

natureza é psicológica. Mas, com o passar dos tempos, estas se

tornaram antiquadas. Elas governaram perante a forma mental

ignorante, supersticiosa e sugestionável do passado, mas hoje,

perante a moderna mente crítica e racional, não governam mais.

Acontece então que hoje, na era da bomba atômica, não tem

mais valor tratar de defender o velho castelo com grossas mura-

lhas, fossas e arcabuzes. Não persuade mais e, portanto, é de

efeito psicológico negativo a teoria de um inferno, pela qual um

anti-Deus vence definitivamente a Deus, fixando-lhe a falência

por toda a eternidade. Não aterroriza mais uma ferocidade cruel,

da qual, devido à atual civilização, falta a experiência quotidia-

na, que, antigamente, mantinha viva tal psicologia, cujo signifi-

cado como instrumento de defesa vai perdendo cada vez mais

valor no mundo moderno. Portanto, mesmo se quisermos ficar

somente no terreno da luta pela própria sobrevivência, as armas

que a Igreja possui não lhe servem mais para este objetivo.

Ela teria meios maravilhosos para resolver o problema, por-

que Cristo não a deixou sem armas, antes deu-lhe outras, de na-

tureza diversa. O difícil é compreendê-las e querer usá-las. A

Igreja poderia ter superado este problema da necessidade de uma

defesa com armas terrenas, emergindo por sobre o plano huma-

no, em vez de ficar ali submersa, e colocando-se exclusivamente

no plano espiritual. Existiria um argumento poderoso, dado pela

afirmação da presença de uma lei Divina, racionalmente com-

preensível e cientificamente demonstrável, à qual ninguém pode

fugir e segundo a qual, independente de qualquer esforço reali-

zado, a vitória final não é da prepotência do homem, mas sim da

justiça de Deus, que comanda sobre todos e tudo. Mas, para

muitos, a aceitação de tal princípio encontra dificuldade, porque

não admite escapatórias, não permite fáceis acomodações, não

suporta aquela elasticidade pela qual, sofisticando e interpretan-

do, as teorias podem ser levadas a qualquer conclusão que se

queira. Usando este outro sistema, de total sinceridade, sem arti-

fícios, aqueles que, acima de todos os outros, deveriam não só

pregar mas também viver os princípios, seriam os dirigentes.

Logicamente, a defesa seria então automática, mas constituiria

defesa também da instituição, e não somente dos integrantes que

a representam, porque a estes importa, em primeiro lugar, sua

própria defesa, sendo que a defesa da instituição somente existe

em função da defesa de seus componentes.

Como se vê, seria necessária uma outra forma mental, a

qual não se pode pretender do homem no seu atual nível de

evolução, que é obrigado, portanto, a funcionar com a forma

mental construída pelo seu passado, proporcionada a um ambi-

ente de luta e suas respectivas exigências, onde, devido ao seu

estado involuído, ainda não reina a justiça do evoluído, sendo

necessário uma arma para viver. Explicar semelhantes concei-

tos significa muitas vezes pretender que se compreenda aquilo

que, num dado nível biológico, representa ainda uma coisa in-

concebível. Trata-se de duas formas mentais e posições total-

mente diferentes. O involuído, para sobreviver, problema fun-

damental para todos, procura tanto a arma material quanto a

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 73

psicológica, porque ele está submerso em um nível evolutivo

onde a lei da luta impera e a vida é concedida somente a quem

sabe guerrear e vencer. E o evoluído, também para sobreviver,

adota a lei do “ama ao teu próximo”, porque ele pertence a um

outro plano de evolução, onde, sendo o estado orgânico que

prevalece sobre o caótico, o método da opressão é um absurdo

contraproducente, valendo a justiça, que é o método do Evan-

gelho e do verdadeiro cristão.

Assim, dado que este método, por imaturidade biológica, é

inaplicável, eis que, para resolver o problema, vai-se em busca

de outros expedientes. Então reveste-se Deus não mais de poder

punitivo (antigamente eram os raios de Júpiter), mas de miseri-

córdia e de bondade. Como o sistema de atemorização não tem

mais aplicação, escolhe-se a arma do convite atrativo, esque-

cendo-se porém de que estamos na Terra, onde continua a vigo-

rar a lei do mais forte e onde cada dependente sabe que, quando

o patrão se faz bom, é porque se tornou fraco e que esse é o

momento para cair-lhe em cima. Se do plano do espírito se des-

ce ao do mundo, então é necessário aceitar os tristes métodos

deste. Quando se recebe astúcia, responde-se com a desconfi-

ança, porque a uma ação nossa de um determinado tipo não po-

demos pretender que corresponda uma reação de tipo diferente.

Usa-se em defesa própria o princípio de autoridade, cuja ba-

se, da qual ela deriva, é a força, ordenada e apresentada depois

numa forma de legalização, que se chama justiça. Assim o

princípio de autoridade leva consigo uma triste tradição, pois,

mais do que para educar e ajudar a evoluir, como deveria ser a

função das classes dirigentes, muitas vezes serviu para desfrutar

e oprimir, deseducando e fazendo involuir. Em semelhante re-

gime, como é interpretada uma ação de bondade? Procura-se

utilizá-la com desconfiança, interpretando-a como uma debili-

dade, da qual se tentará rapidamente, sem comprometer-se, tirar

proveitos. Abandonados assim os processos de atemorização

com castigos no além-túmulo, uma vez que, agora, eles perde-

ram o seu poder psicológico, poderão as armas do amor, usadas

somente com a finalidade de sobreviver na Terra, e não para re-

alizar conquistas espirituais, servir para este outro uso, que é

salvar as próprias posições terrenas? O exemplo de Cristo nos

mostra que o amor, na Terra, quando não é em função do sexo,

para levar à procriação, torna-se sacrifício que conduz à morte.

A autoridade se desarma e cede. Então o momento é bom para

afirmar, contra a autoridade, a liberdade, ideal que naturalmente

os subordinados interpretam em vantagem própria. Eles sabem

que a autoridade não cede por amor, mas porque não tem outro

modo para salvar a sua sobrevivência. Se tivesse sido por amor,

poderia ter-se manifestado muito antes, e não somente agora,

obrigado pela ameaça de um perigo. Terão estas tardias conver-

sões ao amor evangélico o poder de persuadir as massas, quan-

do elas, à sua própria custa, aprenderam que as melhorias são

obtidas conquistando-as com as próprias forças, e não as espe-

rando da generosidade dos demais? Quando os ricos eram po-

derosos, a Igreja, apesar do Evangelho condená-los, apoiava-se

neles. Mas hoje, que sobre eles paira o perigo do comunismo,

eis a Igreja indo ao encontro das massas pobres, agora tornadas

poderosas, adaptando-se a elas e apoiando a justiça social com

atitudes evangélicas. Quando Luís XVI, herdeiro de uma mo-

narquia que havia atraiçoado a sua função, confiou, pela sua

bondade, no povo e, para evitar derramamento de sangue, afas-

tou de Versalhes os destacamentos de defesa, esse mesmo povo

se aproveitou para fazer o rei prisioneiro e não se deteve até

havê-lo matado. Mas talvez fosse inútil resistir, porque era ne-

cessário pagar os abusos daquela monarquia no passado, e to-

dos eles foram pagos. Ninguém pode impedir que às causas,

mesmo longínquas, sigam os respectivos efeitos.

Para que serve, então, apresentar hoje um Deus vestido de

bondade e misericórdia, senão para oferecer uma escapatória

muito rebuscada à absoluta justiça da Lei? A vida é utilitária e,

para subsistir, trata de desfrutar de tudo. Quando encontra quem

cede por bondade, serve-se dele para tirar vantagem, e não para

recompensá-lo com um sacrifício antivital de igual quantia de

bondade, em proveito de outro, em vez de si próprio. Então a

bondade serve para o abuso, porque alimenta a esperança de

que a justiça não se cumpra. Meras tentativas de evasão e de

aproveitamento, que, apesar de absurdas e ilusórias, são fre-

quentes, porque fazem parte do utilitarismo em que se apoia a

economia da vida, o qual leva a procurar o atalho para chegar

ao maior resultado com o mínimo esforço.

Hoje, as belas construções religiosas em que tranquilamen-

te dormiam os povos nos séculos passados, já não governam.

Tem-se necessidade de honestidade, pois, sem ela, a confiança

acaba e os clientes vão-se embora. Estamos em época de revi-

são de todos os valores, e as superestruturas inúteis estão sen-

do varridas. Vai-se para o terreno firme. Descobrem-se as leis

que regulam a vida, a qual é assim enfrentada na sua substân-

cia, em contato com a realidade biológica. Procura-se endirei-

tar e, quando não se consegue, procura-se eliminar tudo o que,

mesmo sendo ótimo em si mesmo, tornou-se venenoso pelo

mau uso que se faz dele. O que sucedeu com as monarquias

procura-se fazer agora com o instituto da propriedade e tam-

bém pode suceder com o cristianismo, através do próprio co-

munismo, ou com qualquer instituição que queira colocar-se

em tais condições antivitais. A vida tende a destruir tudo o

que, por mau uso, tenha-se corrompido. Também no campo fi-

siológico, um organismo viciado tende à morte.

Por isto é perigosíssimo em religião o jogo duplo, onde se

fica, por um lado, com Cristo e, por outro, com o mundo, pois

nesta condição somam-se os perigos, e não as vantagens. Por

isto, se a atitude evangélica da Igreja fosse só oportunismo para

sobreviver, o remédio seria pior que o mal, ou talvez até uma

tentativa de suicídio. De resto, a perda de um Deus como o que

foi apresentado até hoje, dedicado a comandar e exigir sacrifí-

cios, pode despertar poucas lamentações em muitos. Para a vi-

da, livrar-se de quem se dedica mais a fazer temer e servir do

que a ajudar, é mais vantagem do que dano. Então, para tirar

proveito deste conhecimento de uma outra face de Deus, é ne-

cessário que esta transformação do império em amor, da autori-

dade em compreensão, seja real, tendo lugar nas almas, e que

esta nova face de Deus se faça ver através daqueles a quem cor-

responde expressá-lo com evidência. Tudo isto significa sim-

plesmente regressar ao verdadeiro espírito cristão do Evangelho

e, como dizemos sempre, tomá-lo a sério. Trata-se de uma re-

forma de substância, e não de forma. Não se trata de uma ativi-

dade exterior à procura de meios e de prosélitos, de número e

de poder, mas sim de um novo modo de conceber a vida, atra-

vés de um Evangelho ainda não visto, que passou em silêncio

até agora. Trata-se de fazer ver pelos fatos aquilo que o espírito

vale e pode perante e sobre o mundo. Se o bem-estar econômi-

co constitui hoje o supremo ideal, é necessário fazer ver que ele

sozinho não basta, pois contém uma imensa lacuna, cujo preen-

chimento se faz necessário. Trata-se de um vazio que representa

a falta de outra riqueza, a qual é preciso oferecer e da qual o

mundo tem fome. Mas, para oferecê-la, é necessário possuí-la.

Quando a religião realizar uma função útil à vida, que seja

também dos valores do espírito, em vez de representar somente,

para o próprio interesse, a sobreposição de uma casta sobre ou-

tras, utilizadas apenas como pedestal, então, e somente assim, a

religião voltará a ser um valor biológico e, como tal, terá direito

à vida. Hoje, o homem é prático e concreto. As incontroláveis

autorizações divinas não convencem mais. Não basta se fazer

representante de Deus, para justificar o próprio poder. É neces-

sário demonstrar a sua utilidade social. Na sociedade moderna,

é exigido de todos um trabalho, uma produção, uma função útil

à coletividade, uma contribuição para ela, para se ter em troca o

direito de viver nela. O resto é parasitismo, que já não se tolera

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74 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

mais. E o trabalho espiritual é um dos mais preciosos, porque

representa uma função necessária à vida, para fazê-la avançar

ao longo da estrada da evolução. O bem-estar material repre-

senta a satisfação das necessidades animais do involuído, que

são viver e multiplicar-se, e ninguém nega a importância disto.

Porém o maior valor da vida é o que, ao longo da evolução, está

em cima, e não embaixo; é o espírito, que avança em direção ao

Alto. Hoje se emborcam as posições, colocando-se o bem-estar

material como um fim, e não como um meio para alcançar uma

finalidade mais elevada, que é ascender para formas de existên-

cia superiores, e não gozar animalescamente na Terra. A vida

somente pela vida é um círculo vicioso, constituindo um traba-

lho que se anula, consumindo a si mesmo. Numa biologia com-

pleta, há lugar – e que lugar! – também para as religiões, por-

que elas, com a técnica da descida dos ideais, cumprem uma

função fundamental, que é ser instrumento de realização da

maior finalidade da vida: a evolução.

XI. PSICANÁLISE DAS RELIGIÕES E

ASPECTOS DO CRISTIANISMO

Ofereça um cavalo a quem disser a verdade, pois ele neces-

sitará para fugir e pôr-se a salvo.

Provérbio Oriental

O cristianismo não nos interessa como organização terre-

na, atividade política, fenômeno de grupo ou proselitismo pa-

ra reforçá-lo, nem como egoístico cálculo de salvação depois

da morte. Este é o seu lado “mundo”, desgraçadamente neces-

sário para que qualquer coisa possa existir na Terra. O que

nos interessa no cristianismo é apenas a verdadeira ideia de

Cristo, e não as suas adaptações à involuída natureza humana;

interessa-nos aquilo que não é mundo, mas sim contra o mun-

do; interessa-nos nele o ideal de superação humana, o princí-

pio de evolução, o meio de ascese espiritual, tal como deveria

ser e como Cristo queria que fosse.

Recordemos que o fenômeno religioso não é apenas uma

questão de fé para os crentes, mas tem importância biológica

universal, porque ele faz parte do fenômeno da descida dos ide-

ais a Terra, constituindo um impulso para evoluir, objetivo para

o qual vive a humanidade. É neste sentido que colocamos aqui

o fenômeno religioso. Se fizermos observações, será antes por

amor ao ideal, e não por espírito de crítica demolidora, como se

pensa todas as vezes em que se discute um problema, já que o

instinto do homem é a luta. Nada, pois, de polêmica agressiva,

mas somente um sincero desejo de ver claro, primeiro porque

temos necessidade de compreender o que está sucedendo e on-

de tudo vai terminar, depois porque o momento histórico gra-

víssimo impõe que todos compreendam e cada um assuma as

suas responsabilidades. Estamos convencidos que erigir-se co-

mo juízes para condenar seria orgulho inútil, que nada resolve.

O que importa é explicar e compreender, porque não é julgando

e condenando que se descobrem e eliminam os erros, finalidade

de quem procura o bem. Não nos interessa a luta, pois ela não

significa coisa alguma. Não temos posições para defender, por-

que não temos o desejo e muito menos o poder de destruir nada.

O médico não se põe a lutar contra o doente, pelo contrário

alia-se com ele, para eliminar o mal, indicando-lhe qual é este

mal, não sendo isto um motivo para que o doente se ofenda.

Pode suceder que estas observações agradem a alguns, por-

que permitem notar defeitos alheios no campo religioso, po-

dendo assim, como meios de desacreditar e demolir, ser utiliza-

das para fins agressivos, o que está absolutamente fora de nos-

sas intenções. Quem, no entanto, quiser compreender e utilizar

estes conceitos em tal sentido, seguindo deste modo as vias do

mal, expõe-se ao perigo de sofrer a reação da Lei, que faz recair

em cima dele o mesmo mal lançado por ele contra o próximo.

Vivemos numa hora apocalíptica, de desmoronamento dos

valores espirituais, e é dolorido vermos a que desastrosas con-

sequências pode levar a traição do ideal. Os tempos estão ma-

duros para chegarmos a uma prestação de contas. Os velhos

andaimes ameaçam ruir, e de nada serve escorá-los. Não é

mais hora de retoques, porque o edifício está caindo, sendo ne-

cessário refazê-lo desde o princípio, tomando Cristo a sério,

como ninguém o fez até agora: nem o rico, com o seu egoísmo

e hipocrisia religiosa, nem o pobre, com a sua avidez e fre-

quente espírito de violência. Temos, assim, dois tipos de

Evangelho: o capitalista e o comunista, cada um adaptado aos

seus próprios interesses. Há leis que regulam o funcionamento

de tudo o que existe. Quem as conhece vê que, agora, elas es-

tão prontas para reagir contra erros e abusos milenários, os

quais tendem a torcer e desviar do seu caminho de regresso pa-

ra Deus a evolução, suprema razão da existência.

O maior perigo atual não é o ateísmo positivo e retilíneo da

ciência, que, com as suas novas construções, força o cristianis-

mo a defender-se e atualizar-se, fortificando-o e rejuvenescen-

do-o indiretamente, mas sim os falsos crentes, que constituem

uma doença interna, um estado de decadência orgânica, de cor-

rupção e de desfazimento da religião, tendendo à morte. O pe-

rigo não é tanto o ataque comunista que vem de fora, quanto a

mentira que vem de dentro. Quando tudo isto contagia a massa,

a doença se expande por todo o organismo e o mata. Fazer calar

o médico porque o seu diagnóstico perturba, não salva da doen-

ça. Entendê-la exclusivamente como o ataque de um micróbio

inimigo e crer que baste mobilizar-se para destruí-lo, não resol-

ve o caso, porque permanece a vulnerabilidade orgânica, debi-

lidade da qual qualquer outro micróbio inimigo estará pronto a

aproveitar-se. Ao médico honesto não lhe resta senão cumprir

com o seu dever de expor o diagnóstico e depois se calar. Ele

não pode colocar-se contra o doente, tanto mais que, neste caso,

ele não tem os meios, pois trata-se de grandes desvios, sobre os

quais somente as leis da vida possuem a inteligência e o poder

necessários para agir. Essas leis costumam eliminar tudo que

não cumpre a sua função vital. Assim, quando uma religião não

cumpre o dever que lhe corresponde naquele plano da evolu-

ção, ela é eliminada. E o seu dever é fazer descer o ideal à Ter-

ra, função fundamental para os supremos fins da existência.

Será que o cristianismo cumpriu e cumpre tais funções, ou

os valores espirituais que ele possui ficaram sepultados e sufo-

cados debaixo das superestruturas com as quais o mundo o co-

briu? Na inevitável simbiose entre Cristo e o mundo, não terá

vencido o mundo, prevalecendo este sobre Cristo? O cristia-

nismo é ainda cristão, ou com o tempo se transformou em outra

coisa? De que serve reunir-se em concílios, se esta é realidade

dominante? As maiorias podem exprimir as correntes dominan-

tes no mundo, e o fato de aderir a elas, para estabelecer verda-

des baseadas no consentimento comum, pode constituir um

apoio e constituir um ato de prudência nas decisões, evitando

riscos de erros perante o mundo, mas isto significa deixar-se

guiar pelo pensamento deste, ao invés de se colocar acima dele

e ser guiado somente pelo espírito, que não segue as vias buro-

cráticas humanas. Não se trata aqui de concordar, mas sim de

renovar-se. Um preponderante consenso dos homens pode esta-

belecer as verdades relativas do mundo, mas não as de Deus.

As renovações são saltos para frente, que somente indivíduos

isolados, excepcionalmente dotados, sabem elaborar, tendo a

coragem e a força de lançá-las. Com efeito, estas reuniões são

prudentes, hesitantes e ligadas ao passado, enquanto, nas gran-

des curvas históricas, o mundo explode, podendo ser necessá-

rio, em vez de um retoque preguiçoso, uma renovação profun-

da. No mundo atual, pensa-se, procura-se e exige-se mais do

que o velho estilo religioso pode oferecer. Hoje pretende-se sa-

ber a sério e, por isso, duvida-se e controla-se, exige-se a lin-

guagem positiva da ciência e deixa-se de lado o que não é raci-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 75

onalmente convincente. Não se fica mais persuadido por tradi-

ções, sugestões, imitações ou por princípio de autoridade. Dese-

ja-se compreender com a própria mente, e não com a dos diri-

gentes, a quem no passado se delegava a função de pensar, para

que fornecessem as verdades já confeccionadas, prontas para

uso. Hoje, os olhos do mundo não se dirigem mais às velhas

formas fideísticas – que parecem ter esgotado a sua função cri-

adora – mas sim à ciência, que conquista, produz e vive não pa-

ra conservar o passado, mas sim para construir o futuro, indo na

direção da vida, que quer avançar, e não dormir.

O impulso evolutivo faz pressão e prepara-se para deitar

abaixo as resistências. Dado o seu nível biológico, o homem é

frequentemente movido não pelo desejo de procurar a verdade,

mas sim pelo instinto de defender seu próprio grupo, sobre o

qual se baseiam os seus interesses. Então quem sustenta o ideal

para este fim entra em choque com quem sustenta o ideal pelo

ideal, e não pelos interesses que este possa encobrir. Ambos

falam a mesma linguagem, usam as mesmas palavras e susten-

tam as mesmas verdades, mas para fins opostos. Quem usa o

ideal para outras finalidades sente-se perturbado e, por isso,

condena, para eliminá-lo, aquele que busca proceder seriamen-

te. O melhor amigo da religião, aquele que mais a toma a sério

para salvá-la, incomoda com o seu zelo fora de hora – num

mundo que tem outras coisas para fazer – acabando por ser

considerado um inimigo e, portanto, combatido como tal. Pode

suceder também que os verdadeiros inimigos da religião caiam

no mesmo erro, mas em sentido oposto, porque as aparências

os induzem a crer que encontraram em quem foi condenado

pela religião – precisamente por isso – um inimigo dela e, por-

tanto, amigo deles, quando na verdade acontece exatamente o

contrário, ou seja, trata-se na verdade de um amigo da religião

e inimigo deles. Estes, então, julgam que tal indivíduo queira

confraternizar-se com o grupo, para ir contra aquela religião,

quando, pelo contrário, ele quer salvá-la.

De tudo isso, devido às formas mentais opostas entre mundo

e ideal, nasce um mal-entendido e uma inversão de juízos. Des-

pertam então os inimigos da religião, que tentam aliciar, con-

vertendo para seu próprio grupo o maior amigo daquela, que foi

tomada como inimigo. Tudo, no entanto, continua a se desen-

volver em favor do bem, porque, para o triunfo da religião –

contra a própria vontade dos seus representantes, que o conde-

nam – continua mesmo assim a contribuir a ação do seu maior

amigo, repelido por ela. Isto acontece porque, por incompreen-

são, ele foi considerado um inimigo, do qual parecia ser neces-

sário defender-se, por estar sustentado pelos inimigos da reli-

gião. Isto é consequência do sistema de luta vigente, próprio do

plano biológico humano. Neste plano, uma condição evoluti-

vamente melhor é comumente alcançada mais por purificação

forçada – causada pelo assalto de inimigos, que, mostrando os

defeitos, obriga a eliminá-los – do que por uma piedosa ajuda

de amigos, aconselhando tal trabalho. Esta obra de purificação,

apesar de necessária, vem a ser confiada não ao amigo, mas sim

ao inimigo, que é despertado para confraternizar com quem, pa-

ra melhorar a religião, fazia notar os seus pontos débeis. Assim,

para os fins da evolução, também é indiretamente utilizado pela

vida o verdadeiro amigo das religiões, que, por levar a sério o

ideal, é repelido por elas como inimigo. Isto não tem nada a ver

com as conversões oficiais. Quem é intimamente irreligioso

permanece sempre assim, seja qual for a fé que professe exteri-

ormente. Quem, no entanto, é verdadeiramente religioso possui

a substância de todas as religiões e permanece o mesmo em

qualquer delas, não necessitando, portanto, mudar de forma,

que é fato exterior, e muito menos fazer disso objeto de rumor

público. Os íntimos fatos espirituais são tratados apenas com

Deus, e não mostrados ao mundo, para fins propagandísticos.

Tal funcionamento emborcado explica-se como lógica con-

sequência de um regime baseado na luta e na mentira, ao invés

de na cooperação e na sinceridade, qualidades de planos de vida

mais avançados. Mas se a luta é a lei do nível biológico humano,

não resta ao ideal que desce ali senão adaptar-se a esta lei, trans-

formando-se num meio de luta, sob a forma de fingimento, para

se disfarçar melhor e alcançar deste modo o que na Terra é a fi-

nalidade suprema: vencer. A isto se reduz frequentemente o uso

das religiões, prestando-se não para a realização terrena do ideal,

mas sim para a exploração deste em defesa de interesses huma-

nos. Pode acontecer que, por estes motivos, a difusão da prega-

ção e a expansão propagandística de uma religião signifique, na

realidade, uma campanha em favor dos interesses do grupo. Isto

pode parecer fingimento, mas, num regime de luta, é natural que

justamente o que mais se faz seja aquilo que menos se quer di-

vulgar. Quanto mais um grupo religioso se torna grande e, com

isto, mais poderoso na Terra, tanto mais aumenta nele o número

dos elementos falsos e aproveitadores que se aproximam, por-

que, quanto mais aumenta a potência material, tanto mais há pa-

ra aproveitar. Isto pode levar à infiltração de elementos negati-

vos, à corrupção e ao enfraquecimento do grupo, resultando na

sua liquidação. Cuidem-se as religiões, portanto, de sua grande-

za terrena. Esta corrói a verdadeira força, que não pode ser se-

não espiritual, e prenuncia um fim próximo. Isto corresponde à

justiça das leis da vida, segundo as quais quem não cumpre mais

a sua função não tem mais razão de existir.

Nada disso poderia ser diferente no nível biológico humano,

onde tudo é utilizado na luta pela sobrevivência. Vemos isto no

caso de Teilhard de Chardin. Enquanto ele morria só e incom-

preendido, ninguém se interessou por ele nem se importou com

as suas teorias ou com as suas desgraças. O interesse apareceu

quando, para os inimigos da Igreja, surgiu a possibilidade de

utilizar Chardin em um ataque contra ela, a fim de mostrar os

erros dela e acusá-la. Ele somente se tornou importante quando

pôde ser utilizado para estes outros fins. Surgiu então um gran-

de número de defensores seus, para reivindicar em nome da jus-

tiça da vítima inocente, do mártir do ideal, chorando sobre o ca-

so digno de piedade, porque isto servia para poder, com plena

autorização dos princípios superiores, agredir santa e impune-

mente a Igreja inimiga, considerada culpada e, portanto, passí-

vel de condenação. Assim, camuflados de justiceiros, honrando

a moral, fica-se do lado da razão e pode-se utilizar uma santa

glorificação, para melhor assaltar e destruir o inimigo. Na luta,

agredir e liquidar em nome do bem oferece a grande vantagem

de poder fazê-lo com a aparência de máxima integridade, o que

permite extrair vantagem do apoio que dá a aprovação geral.

Porém a luta desperta reações no lado oposto e, assim, ve-

mos o campo eclesiástico se ocupar novamente de Teilhard,

que antes passara desapercebido, mas que agora se tornava im-

portante, pois comprometia a própria defesa do grupo. Por esta

razão, calando sobre o que, neste caso, pode ter sido o seu erro

– justamente aquele mais colocado em evidência pela parte

oposta – a Igreja trata de domesticar e adotar as teorias de Tei-

lhard, primeiramente suspeitas de heresia, procurando enqua-

drá-las no terreno ortodoxo e, assim, satisfazer a necessidade

urgente de não ficar para trás, atualizando-se perante a ciência.

A intenção, assim, seria converter suas ideias numa contribui-

ção à teologia, o que até ontem foi totalmente condenado, so-

bretudo a teoria da evolução. Então o próprio inimigo que agri-

de a Igreja é quem a obriga a realizar um passo em frente, para

admitir, já que não é possível negar, princípios novos, os quais,

de tão evidentemente demonstrados pela ciência, não é mais lí-

cito condenar. Quando aquilo que foi julgado erro não pode

mais deixar de ser considerado verdadeiro, porque se tornou

evidente, então procura-se adotá-lo como tal, para fazer desapa-

recer o próprio erro. Mas sem esse assalto, o progresso não se

teria realizado. É a própria agressão do inimigo, então, que nos

obriga a evoluir, melhorando-nos. Método bem humano e que

nada tem de divino. Se o inimigo é débil, procura-se fazê-lo ca-

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76 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

lar, mas se, por consentimento universal, ele é forte, conclui-se

que é melhor tornar-se amigo dele. Abre-se então um canal de

compreensão para a nova verdade e trata-se de aceitá-la, adap-

tando-a para uso próprio e colocando-a a serviço do próprio

poder. A direção, portanto, é realizada pelo pensamento huma-

no, que está em constante evolução, tendo as religiões de se

adaptarem a ele, para segui-lo e avançar com ele, se não quise-

rem ser deixadas para trás pelo progresso da vida.

Quando, sob as aparências, esta é a realidade dominante,

como impedir então, perante tal forma mental, que o ideal não

seja usado na Terra como um meio de luta, em função dos in-

teresses materiais? O indivíduo é levado a conceber tudo, tan-

to a Terra como o Céu, em função de si mesmo. Se um selva-

gem encontrasse na floresta um aparelho de rádio ou de tele-

visão, iria utilizá-lo do único modo que ele pode compreen-

der, fazendo dele uma caixa de transporte, um recipiente para

frutas, uma armadilha para caçar animais, ou então servindo-

se dos fios elétricos para fazer amarras e dos componentes

brilhantes para adornar-se. É assim que age também o homem

imaturo em relação aos ideais.

Para a maioria involuída, a moral consiste em obter o máxi-

mo resultado útil com o mínimo esforço e desvantagem. E a

medida da utilidade é dada pelo bem-estar do corpo, uma vez

que o indivíduo vive ainda no nível animal e os valores espiritu-

ais são escassamente compreendidos. Esta é a moral do seu pla-

no, e este é o nível em que é obrigada a descer a moral do ideal e

do evoluído. Mais do que isto o primitivo não pode compreen-

der. Assim ele não toma conhecimento de problemas mais vas-

tos, nem sequer os coloca. Estes, portanto, não existem para ele

e, desta forma, estão todos implicitamente resolvidos. Nas zonas

superiores, inexistentes para ele, tal indivíduo é amoral e irres-

ponsável. No seu ponto de vista, é inconcebível que a moral

evangélica seja feita para ser vivida. Na sua opinião, é bom tudo

o que serve para viver, inclusive a prepotência e a mentira, e é

mau tudo o que limita a sua vida, mesmo a virtude, os deveres

de honestidade, a sinceridade, a bondade, o altruísmo. A contra-

dição entre palavras e fatos ofende o evoluído, mas não ofende o

primitivo, que não a percebe. Por que prejudicar o próximo deve

ser um mal, quando isto traz bem a quem o faz? Esse mal alheio

não é percebido, enquanto o próprio bem é sentido perfeitamen-

te. Não há razão pela qual não se deva explorar o ideal e a reli-

gião, quando isto traz uma vantagem tão positiva. De fato, não

há nenhuma dúvida sobre o assunto. “Se eu estivesse enganado,

isto deveria trazer-me um mal, mas se, pelo contrário, resulta-

me num bem, constitui prova evidente de que não me equivo-

quei, porque é com este bem que sou premiado. Quando, pelo

contrário, para seguir o ideal, imponho-me sacrifícios, o sofri-

mento trazido por eles me prova que agi errado”. Diante de se-

melhante forma mental, não há por que não se reduzir a religião

a uma forma de hipocrisia, quando isto traz benefício.

Este tipo de moral nos explica por que, tão logo tenha des-

cido à Terra, o ideal, ao invés de encontrar uma aceitação es-

pontânea, choca-se com a resistência do involuído – que não

quer sacrifícios – e, para realizar-se, deve então assumir a for-

ma coativa. Verifica-se assim uma espécie de aprisionamento,

em que se dá um encerramento progressivo da animalidade e

da sua moral involuída, para limitá-la até eliminá-la, substi-

tuindo-a pela espiritualidade e pela respectiva moral evoluída.

Lamentavelmente, para educar o involuído, não há meios me-

lhores do que os do seu plano, adequados à sua imaturidade.

Tais recursos, porém, nada tem a haver com o ideal, cujos mé-

todos de vida são diversos. A moral superior do ideal, feita de

renúncia à animalidade e de esforço de superação – constituin-

do uma moral negativa no plano terreno de vida – pode ser vi-

vida por quem, estando maduro para alcançar níveis biológicos

superiores, dirige-se para outro tipo de vida, situada além da

atual. Mas quem ainda não está maduro para realizar um tal

salto em frente, não tem outra escolha senão realizar-se na Ter-

ra, tal como ele é em seu atual nível evolutivo, e este é o caso

da maioria. Para tal tipo, é positivo para a vida e contém a ver-

dade o mundo, que é o terreno das suas realizações, e é negati-

vo o ideal, que pretende deslocar o centro da sua existência

mais para o alto, onde ele ainda não sabe viver. Por isto ele se

rebela contra o ideal. E é por isso também que este, para reali-

zar-se na Terra, deve assumir a forma coativa, baseando-se so-

bre a psicologia utilitária do prêmio ou da pena, da vantagem

ou do dano, das honras ou da prisão, do paraíso ou do inferno,

porque este é o único raciocínio que o primitivo compreende.

No plano do ideal, a psicologia determinante não é esta, mas

sim a da lógica, da justiça e da convicção.

Constatamos assim uma luta entre dois tipos de existência,

correspondentes a dois planos biológicos. Enquanto o ideal lu-

ta para dominar e transformar a seu modo a animalidade, esta

luta para aprisionar o ideal no plano físico, tratando de cristali-

zá-lo nas formas e, assim, paralisar e deter a sua ação. Enquan-

to o S luta para levar tudo do AS para o S, o AS luta para levar

tudo do S ao AS. Cada um deles quer destruir o outro, para

substituí-lo. Ao assalto do espírito contra a matéria, para fazê-

la subir, responde o assalto da matéria contra o espírito, para

fazê-lo descer. Enquanto o ideal realiza a sua obra de penetra-

ção no mundo, para salvá-lo, este, com as suas adaptações,

executa o trabalho de corromper o ideal, para rebaixá-lo. Por

isso as religiões envelhecem e, de tempos em tempos, surge

um novo profeta, para reanimá-las e purificá-las com novas in-

jeções de ideal, que deve descer à Terra, o reino da matéria. É

verdade que uma forma é necessária para dar às ideias um cor-

po, um recipiente para contê-las e conservá-las. Mas o homem,

em vez de se ligar ao conteúdo, acaba aderindo ao invólucro;

em vez de se ater à substância, detém-se na forma, terminando

por adorar a imagem em vez da ideia. Sucede que, assim,

quanto mais aumentam as construções no plano físico, tanto

mais se enfraquece a espiritualidade que as anima e as justifi-

ca. Então o ideal, perdido nos seus revestimentos, torna-se

templo, riqueza de meios, organização hierárquica, administra-

ção burocrática, autoridade e poder terreno, enquanto desapa-

recem sufocadas as construções interiores, aquelas que fazem

o homem novo e possibilitam a realização do ideal.

Quando se chega a este ponto, tudo se emborca. O que era

finalidade e realização do ideal transforma-se num meio para al-

cançar as realizações terrenas, as quais se tornaram a finalidade.

O centro operante se desloca da religião para o mundo, que ven-

ceu, transformando-a em mundo. Assim o ideal, em vez de

cumprir a sua função, que é fazer o homem evoluir para fins su-

per-humanos, acaba transformado em objeto de exploração, para

fins humanos. Então a religião torna-se carreira, parasitismo,

sectarismo, organização de interesses. Nesta fase, entre os dois

inimigos, cada um dos quais quereria tudo para si, é o mundo

que vence. Por isso o período da maior pureza de uma religião é

o inicial, depois do qual a mistura com o mundo começa a cor-

rompê-la, de modo que as superestruturas humanas acabam por

sufocá-la. Então ela desmorona, e, como há pouco dizíamos, tu-

do se recomeça desde o princípio, com um novo profeta. Tudo é

transformismo e evolução na vida. Assim, conforme a fase em

que se observa uma religião no ciclo do seu desenvolvimento,

podemos encontrá-la em estado de maior ou menor pureza, por-

que, na mistura, encontram-se diversamente dosados o ideal e o

mundo. A princípio, vence o primeiro, depois o segundo. Mas,

quando este último toma a dianteira, o impulso evolutivo, com-

primido pela resistência do AS, explode. Então a forma se des-

pedaça e a tempestade varre os resíduos, sendo lançado no terre-

no purificado o impulso de um novo ideal, pertencente a planos

biológicos mais avançados. Trata-se de um plano que, sendo

mais evoluído do que o precedente e, portanto, capaz de levar o

homem mais para frente, pode assim continuar a sua construção

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 77

num nível mais alto, utilizando também o trabalho de assimila-

ção cumprido pela obra da religião precedente.

Esta é a história das religiões e a técnica da sua evolução,

que leva o homem cada vez mais em direção à sua meta espiri-

tual: Deus. Certamente, tal maturação de conceitos e formas

mentais não pode ser cumprida por uma religião, mas somente

pela evolução, que arrasta tudo, inclusive as religiões. A reali-

dade biológica representa, no fundo, as mais velhas e tenazes

estratificações da vida, agarradas à matéria e resistentes a todo

transformismo. São necessários os terremotos espirituais, atra-

vés de golpes tremendos por parte do ideal, como foi a descida

de Cristo à Terra, para deslocar um pouco para diante a grande

massa humana inerte, submersa no plano animal. É certo que a

pressão do alto para penetrar as camadas biológicas inferiores é

grande, mas também é certo que estas resistem desesperada-

mente ao impulso evolutivo, opondo o seu impulso involutivo,

que, ao invés de subir para o S, pretende descer para o AS. O

mais avançado volta-se em direção ao que está mais atrasado,

para arrastá-lo em direção ao alto, e quer por isso manifestar-se

embaixo, mas não pode fazê-lo senão na medida estabelecida

pelo grau de maturação e consequente receptividade do inferior.

Deus não pode revelar-se na Terra senão nos limites do conce-

bível humano, ou seja, senão de acordo com a capacidade do

recipiente que O recebe. É o campo de visão dominado pelo

nosso cérebro, dado pela amplitude de nossa mente – capacida-

de de compreensão – que estabelece a medida da manifestação

de Deus na Terra. As coisas espirituais mais maravilhosas, tais

como aquelas alcançadas com as maiores descobertas científi-

cas, não existem para o ser, enquanto ele não construir para si

mesmo olhos que lhe permitam vê-las. É assim que, no meio

das luzes enceguecedoras de Deus, ele pode estar cambaleando

na escuridão. Nas religiões, as mentes estreitas não veem estes

conceitos mais vastos, este Deus muito maior, e ficam aferradas

a Terra, negando-se ao progresso.

Separadas das leis que regem a vida, não se pode compre-

ender as religiões. É verdade que o ideal está por cima da reali-

dade biológica, mas também é verdade que, para realizar-se na

Terra, ele deve submergir e fundir-se nesta. Se ele permanece

puro na sua altura, permanece fora de nossa vida também. En-

tão é o próprio exercício da sua função civilizadora que lhe im-

põe uma dose de degradação e corrupção.

As religiões são um serviço para as massas e devem, por-

tanto, adaptar-se às suas exigências, mesmo que ela esteja bem

longe de ser evoluída. Em todos os governos, as massas im-

põem limites ao poder dos chefes. Estes têm a força da autori-

dade; aquelas, a força do número. Cada um dos dois termos

comanda somente até onde o outro lhe permite. Assim os dois

poderes, mesmo nos estados totalitários, limitam-se recipro-

camente, porque as massas incorporam as leis da vida, às quais

todos estão submetidos, inclusive os tiranos. Nenhum dos dois

termos tem um poder absoluto. As massas têm o poder lento e

maciço da matéria; os chefes têm o poder ágil e requintado da

mente. Cada um deles desejaria sujeitar o outro a si. Há sem-

pre lutas entre povos e governos. O acordo é dado pela pre-

ponderância de um sobre o outro, e isto é estabelecido por

aquele que, sendo biologicamente mais dotado e mais forte,

consegue se impor. Assim as nações evoluem em direção a um

estado aristocrático que se corrompe em seguida. Então a mas-

sa toma a dianteira, revoltando-se, para seguir a mesma corrida

ascensional e, com o aburguesamento das revoluções, acabar

tal como as precedentes aristocracias.

Assim, nas religiões, as massas comandam a sua parte, en-

quanto o ideal deve adaptar-se para satisfazê-las. Encontram

campo então as representações do rito, as imagens, as conces-

sões à superstição, o fanatismo e o materialismo religioso do

primitivo. As religiões devem descer ao nível mental do povo

ignorante. Os chefes devem cobrir-se de mantos e decorações,

representar a comédia dos cetros, tronos, mitras, coroas e sím-

bolos semelhantes, para, revestidos assim, fazer o duro jogo da

vida. O mundo quer que o divirtam e, por isso, impõe estas re-

presentações, fazendo-se servir sem piedade. As massas dão o

seu beneplácito e permitem que os poderosos mandem, se eles

lhes satisfazem os seus gostos. O poder se baseia também sobre

um estado psicológico, que estabelece um consentimento tácito.

De outra maneira, ele é tirania. Os chefes necessitam gozar de

uma certa confiança e simpatia. Não basta cumprir com o seu

próprio dever perante Deus, é necessário também fazer aquilo

que as massas julgam, com a sua mente, ser o dever dele. Quem

manda e quem obedece então? E qual é o nível mental das mas-

sas, do qual depende o seu juízo?

Não há posição social que nos coloque fora da lei da luta

pela vida. Ninguém pode sair do domínio das leis biológicas do

planeta, nem sequer as religiões reveladas, quando nos seus re-

presentantes tomam forma humana. Aquelas leis continuam

funcionando mesmo para quem se converte em ministro de

Deus, ainda que ele as ignore ou as negue. Pode livrar-se delas

somente quem tenha evoluído o suficiente para superar o plano

biológico do homem atual, estando assim maduro para ingres-

sar em um nível superior. Mas, para fazê-lo, nem mesmo os

mais altos cargos do mundo bastam. Estes são forma, e não

substância; aparência, e não valor intrínseco. O homem perma-

nece o mesmo biótipo, pertencendo ao nível evolutivo que lhe

corresponde, seja qual for a posição social ocupada por ele.

Hoje, devido a uma nova maturidade e penetração psicoló-

gica, é cada vez mais difícil camuflar-se estas realidades, que

terminam sendo mais visíveis. Antigamente se podia facilmente

fazer passar por verdade coisas hoje inaceitáveis sob o controle

da razão. A tendência atual é renovar as dimensões de tudo,

analisando as causas biológicas e psicológicas que produziram

um consentimento a respeito de determinadas ideias. Hoje faz-

se a psicanálise das concepções sobre as quais se baseiam tan-

tos castelos religiosos, teológicos, políticos e sociais, para veri-

ficar o que fica delas, de sólido e verdadeiro, depois de tal

exame. Que pretende realizar a vida através destas suas formas?

É verdade que ela as aproveita para alcançar os seus fins e, nes-

te sentido, leva o homem a agir através de impulsos, por meio

dos quais ela o faz acreditar que ele obedece à sua própria von-

tade. Se o homem tivesse sido abandonado a si próprio, com

plenos poderes, ter-se-ia destruído há muito tempo. Para dirigir,

é necessário não só conhecimento mas também boa vontade, e a

vida quer continuar, por isso ela se impõe com a sua sabedoria.

A mente humana cria as lendas e os mitos que servem à

vida. O estabelecimento de uma verdade baseia-se sobre um

consentimento humano, e a formação de um consentimento

tem bases utilitárias, dando-se em função do fim supremo, que

é a sobrevivência. Esta é a realidade fundamental, mesmo que

ela esteja escondida debaixo das mais variadas superestrutu-

ras. A massa humana, formada tanto por quem comanda como

por quem obedece, com indivíduos e povos de diversas posi-

ções, encontra-se toda encerrada dentro destas leis e ambiente

biológico, mais ou menos no mesmo nível evolutivo, estando

dominada pelas mesmas necessidades vitais, segundo as quais

são elaborados os conceitos e as atividades necessárias para

sobreviver e evoluir. O pensamento de Deus, que rege a vida,

encontra-se na profundidade do fenômeno, movendo tudo e

todos, sem que estes saibam. Assim funciona e avança a gran-

de máquina. Dentro dela existe a necessidade de resolver to-

dos os problemas: ganhar o pão de cada dia, dar continuidade

à vida nos filhos, administrar os estados e as religiões, vencer

as guerras, adquirir conhecimento e, por fim, evoluir em dire-

ção a Deus. A vida deve resolver todos estes problemas em

função deste último, o maior.

Vivemos numa época em que a velha espiritualidade morreu

e a nova, apoiada sobre bases científicas positivas, ainda não

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78 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

surgiu. Cada século desenvolve um pensamento próprio, para

realizar uma criação diferente. Este pensamento hoje é científi-

co, dirigido para realizações na matéria, e é este o tipo de im-

pulso que hoje move a humanidade. As religiões, encerradas

nos seus velhos castelos, permaneceram neles, atrasando-se,

enquanto o mundo caminhou sem elas, que agora se esforçam

para alcançá-lo por meio de uma operação chamada “atualiza-

ção”. Porém estão imobilizadas pela sua própria inércia, en-

quanto o mundo se esvaziou de espiritualidade e o ideal se eva-

porou nos céus. Na arte e na literatura, isto é evidente. Das reli-

giões ficou a estrutura exterior, mas a casa está vazia, mesmo

estando bem conservada por fora. A espiritualidade tornou-se

uma das tantas mentiras convencionais, com as quais muitos

concordam. Continua-se, assim, exaltando Cristo com palavras

idealistas, mas, para o uso que se costuma fazer Dele, o argu-

mento se tornou suspeito. A fé fica apenas para os ingênuos,

pois é mais fácil enganá-los. Domina a moral do interesse pró-

prio. O ideal, nos fatos, é repelido também por quem o professa

na palavra, e a estrada principal é a da mentira. Esta é a base

das conversações hoje em moda, que por isto não se resolvem

com a compensação e a colaboração. À força de falsificar o

sentido das palavras, chegamos à confusão de idiomas da torre

de Babel. Então a comunicação se rompe, porque de nada serve

a palavra dita para esconder, e não para expressar.

Por que motivo as religiões tendem a se transformar em hi-

pocrisia? Analisemos o fenômeno. Elas representam o ideal na

Terra, realizando a descida dele de planos evolutivos mais

avançados, como uma antecipação de estados que o homem vi-

verá no futuro, para os quais ele ainda não está maduro hoje. As

religiões pregam a bondade, a não resistência, a renúncia e o al-

truísmo, enquanto a vida real se baseia no interesse, na luta, na

rivalidade e no egoísmo. Para a vida, no seu atual nível evoluti-

vo, aquele ideal representa um ato louco de autodestruição, ra-

zão pela qual ela é naturalmente levada a repeli-lo. Veremos

agora que isto é válido em relação apenas à sua atual posição,

mas que já não é verdade em outra posição evolutiva. Uma vez

que a descida do ideal é necessária para o progresso da evolu-

ção, não se pode eliminar a sua presença na Terra. O resultado

de tal necessidade é que, em vez de uma aceitação pacífica,

ocorre um choque entre o ideal e a realidade da vida, originan-

do uma luta na qual ele é torcido para se adaptar a ela e, com

isso, reduzido a uma forma de mentira. Se a religião impõe ao

homem abandonar a arma da força, que lhe é necessária para se

defender, ele usa então, com sucedâneo para esta, o fingimento.

A vida pretende sobreviver com o mínimo esforço e, por isso,

resiste ao impulso evolutivo, que lhe impõe esforços e perigos,

dos quais ela procura se esquivar, retorcendo-se em sentido

descendente. É por isto que a descida dos ideais na Terra pode

servir para desenvolver a técnica da dissimulação.

Agora nos perguntamos: se o fenômeno está fatalmente co-

locado desta maneira, na forma de um entrosamento forçoso

entre opostos, será que a manifestação das religiões na Terra

não pode tomar outra forma senão a de engano? Isto pode fa-

zer-nos pensar que, em semelhante ambiente, esta tenha de ser

a sua natural interpretação. E estamos de fato no nível do invo-

luído, que não sabe fazer outro uso do ideal, a não ser empregá-

lo na luta pela sobrevivência, pois o ideal se apresenta com leis

e modos de viver próprios dos planos mais evoluídos, incom-

preensíveis para o imaturo. Este abaixamento de nível é cha-

mado então de hipocrisia, mas isso é uma natural adaptação às

nossas próprias dimensões conceptuais, que são diferentes da-

quelas exigidas de nós pelo ideal.

Existe, no entanto, outro fato. Que se deva fazer semelhante

uso do ideal pode ser verdade em forma relativa, para quem

pensa com a psicologia do involuído e age com relação aos seus

respectivos pontos de referência. Porém, tão logo se saia de se-

melhante ambiente, inerente a este plano evolutivo, tudo muda e

o ideal serve para os seus verdadeiros fins, que são alcançados

com outros métodos. Então ele se revela como afirmação criado-

ra, enquanto a vida resolve diversamente o problema da sobre-

vivência. Mas, para compreender que o ideal pode ser utilizado

nesta outra forma, muito mais proveitosa, é necessário haver su-

perado o plano animal-humano, para alcançar um superior, regi-

do por outros princípios. Então a suposição de que o ideal possa

servir somente como engano não tem mais valor, pois fica limi-

tada ao ambiente terrestre e aos involuídos que nele permane-

cem. Deste modo, para além desse ambiente e para aqueles que,

mesmo vivendo nele, não são involuídos, o ideal realiza a sua

maravilhosa função de ser instrumento de evolução.

Dizer que a religião pode ser utilizada como uma forma de

hipocrisia não é uma acusação, mas apenas a constatação de um

natural fato biológico, que, como tal, explica-se e justifica-se.

Tais posições oblíquas são explicadas e justificadas pelo fato de

serem transitórias e inevitáveis na luta de penetração que o ide-

al deve cumprir, para poder enxertar-se no mundo, seu inimigo.

O ideal não pode vencer a não ser gradualmente, e a hipocrisia,

como arma de luta, representa um requinte perante a violência.

Com a astúcia entra em função o cérebro em vez dos músculos,

dando início ao desenvolvimento da inteligência, que um dia

chegará a superar também este seu atual método de luta. Hoje,

educação, religião e moral consistem em grande parte na arte de

dissimular. Amanhã, pelo contrário, elas consistirão na arte de

nos compreendermos e de nos ajudarmos, com uma conduta

evoluída, como nos é indicado pelo Evangelho. Ao longo da

natural linha de evolução dos meios de defesa da vida, primeiro

está a violência por meio da força, depois o engano por meio da

astúcia e, finalmente, a colaboração como resultado de uma

consciência coletiva na vida organizada. Como se vê, a evolu-

ção conduz naturalmente ao Evangelho. As religiões, seja no

polo ideal ou seja no polo mundo, formam parte do fenômeno

biológico e são reguladas pelas leis do seu desenvolvimento.

Apesar de sua realização na Terra ser ainda um sonho longín-

quo, observa-se que o Evangelho, embora apenas em forma de

palavra não vivida, de aparência exterior, de máscara para co-

brir a feroz realidade da vida, já está penetrando no mundo. Es-

ta semente, mesmo que o mundo procure dominá-la, já existe

nele e, com seu impulso de crescimento tenaz, esforçando-se

para vencer, está destinada à vitória por lei da vida, porque re-

presenta o futuro da evolução.

Assim como hoje, na sociedade civil, já não se tolera a vio-

lência, porque se formou um poder central capaz de impedi-la,

impondo a sua ordem, também brevemente não será mais tole-

rado o engano, porque a inteligência terá se desenvolvido para

eliminar essa intenção nos outros e em si mesmos, compreen-

dendo o quanto é contraproducente usá-lo. A humanidade pro-

curará libertar-se de tal obstáculo aos seus movimentos, fruto

da sua ignorância. O fato de, cada vez mais, as ciências psico-

lógicas estarem penetrando no reino do pensamento vai nos

conduzindo forçosamente em direção a um regime de sinceri-

dade. Com o tempo, os castelos da hipocrisia, até mesmo a reli-

giosa, serão desmantelados e, assim, a humanidade poderá li-

bertar-se do inútil esforço de ter de viver de fingimento, cami-

nhando sobre as areias movediças do engano. Este jogo será

desnudado pelo desenvolvimento da inteligência e, com isso,

irá tornar-se impraticável. Não dando mais proveito, ele será

abandonado. Entretanto a multidão dos ingênuos, que se dei-

xam enganar, diminui cada vez mais, pois ou eles despertam ou

são eliminados. O engano pode dar fruto, enquanto existe quem

caia nele, e a falsa verdade pode ter êxito, enquanto exista a fé

de quem creia. Mas o jogo desaba, quando, diante de uma ver-

dade afirmada, estamos interessados principalmente em desco-

brir a mentira que ela esconde. Por isso, em matéria de religião,

insiste-se tanto sobre a fé, condenando-se como perigoso quem

busque sobretudo pensar e compreender.

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 79

O mundo atual procura, em todos os campos, um honesto e

sincero esclarecimento de posições, para que nelas permaneça e

brilhe ainda mais o que há de verdade e seja eliminado o que é

falso. Da verdade nada se tem a temer. Isto pode parecer tem-

pestade de destruição, mas é trabalho de saneamento. Erros e de-

feitos se curam à luz do sol, e não os ocultando. É preferível ver

a realidade do que escondê-la, compreender o erro e evitá-lo do

que persistir nele, melhorar do que condenar. O princípio de au-

toridade já não basta, é necessário convencer. E, para convencer,

é preciso estar convencido, o que significa discorrer não só com

proposições lógicas mas também com fatos. Isto é o que a vida

hoje exige para a salvação dos seus mais preciosos valores.

◘ ◘ ◘

Continuemos a observar o fenômeno religioso, mas sob ou-

tros aspectos, a fim de compreendê-lo cada vez melhor na sua

substância biológica, observando-o em relação às leis da vida,

dado que elas representam o ponto de referência mais sólido e

positivo para nos apoiarmos. Estas leis não são uma artificial

construção da mente humana. Elas existem de fato e as vemos

funcionar em todos os fenômenos, inclusive no religioso. Como

este também faz parte da vida, não pode ficar situado fora das

suas leis. Penetrando-o psicanaliticamente, poderemos compre-

ender o que está por detrás da cena, escondido na profundidade

de tantas manifestações humanas nesse setor, e descobrir a razão

da forma que assumem. Este é o trabalho que estamos fazendo

agora, deslocando gradualmente o nosso olhar, a fim de poder

observar o fenômeno no maior número possível de posições.

O que a vida pretende realizar através das formas assumidas

pelas religiões? Que sabe a sua inteligência extrair desta mistu-

ra entre ideal e mundo, entre o divino e o humano? Cremos que

as religiões não podem ser compreendidas, se não forem anali-

sadas segundo a sua função biológica. Encontramo-nos perante

dois fatos positivos: 1) O cristianismo existe; 2) Tudo que não

realiza uma função vital para os fins da vida é eliminado por

ela. Portanto, se o cristianismo existe – e tempo não faltou para

que ele, se fosse inútil, tivesse sido eliminado – isso significa

que está cumprindo uma função. O problema então é só desco-

brir qual é ela. Pelo fato de também sabermos que a principal

finalidade da vida é a evolução, somos levados a pensar que,

mesmo referindo-nos apenas ao aspecto biológico, a função do

cristianismo é de caráter evolutivo.

Recordemos ainda que esta dissertação não é realizada com

fins polêmicos, para defender uma verdade já confeccionada, na

qual se baseiam certas posições e interesses, nem com objetivo

agressivo, para destruir outras verdades, nas quais se baseiam

posições e interesses alheios. A nossa finalidade é somente de

pura investigação. Queremos somente compreender dos fatos

que nos cercam o porquê da sua existência e da forma determi-

nada de seu funcionamento. Não temos uma tese preconcebida

para demonstrar, não estamos ligados a conclusões preestabele-

cidas para defender nossas posições. Só desejamos conhecer e,

assim, resolver os problemas. Portanto nada temos da habitual

posição dos contendores em luta, tão comum em tais casos.

Não procuramos ter razão sobre um adversário, vencendo-o

com argumentações. O nosso inimigo é o desconhecido, e so-

mente podemos vencê-lo com a luz do conhecimento.

Como sempre, seguimos o nosso método, que, se é analíti-

co, é assim apenas num segundo tempo, na fase de controle.

Iniciamos em forma sintética, com a visão dos princípios dire-

tores, que para outros é a conclusão. O caminho que seguimos

não se eleva do particular, tomado como ponto de partida, ao

geral, o ponto de chegada, mas sim desce do geral, nosso ponto

de partida, ao particular, onde procuramos a prova para conclu-

ir. Enquanto a forma mental normal primeiramente observa, por

visão sensória, a realidade exterior e sobe depois aos princípios,

que são olhados quase com desconfiança, como uma duvidosa

generalização, na qual falta positividade, nós primeiramente ve-

mos, por visões interiores, os princípios, para descer depois à

realidade que deles deriva e por eles está regida.

Deus existe no absoluto, e o homem, como há pouco refe-

rimos, forma Dele a ideia que pode ser contida dentro das di-

mensões da sua capacidade de compreensão. Portanto trata-se

de uma ideia relativa e em evolução. Isto significa que o seu

ponto de partida, do qual evoluirá depois, é dado pela natureza

do ser humano, composta por dois termos opostos e comple-

mentares, que estão divididos para se reunirem: macho e fêmea.

Trata-se apenas de dois polos da mesma unidade, fenômeno

que, correspondendo ao dualismo universal, onde a unidade do

todo se parte interiormente, não é senão um momento deste.

Sobre Deus, a ideia que existe na Terra depende mais dos

limites da forma mental do homem que a concebe do que da-

quilo que Deus é no absoluto, para nós inconcebível. Por este

motivo, encontramos dois tipos de divindade ou dois aspectos

da ideia de Deus: o aspecto masculino, ligado a Moisés, e o as-

pecto feminino, ligado a Cristo. De fato, o de Moisés era o

Deus senhor, egocêntrico, zeloso do seu poder, o Deus dos

exércitos, dominador e chefe do seu povo eleito, contra os ou-

tros povos. O de Cristo é o Deus justo e bom, que redime com o

seu sacrifício as culpas dos outros, o Deus amoroso, generoso e

universal, conceito este mais vasto, que aperfeiçoa e completa a

crua e limitada justiça do homem.

Deus, em si mesmo, é tudo e pode, portanto, ter muitos ou-

tros aspectos. Mas o homem, não podendo sair do concebível

do seu mundo biológico, do qual é filho, viu apenas os aspec-

tos mais próximos de si. Na sua evolução, ele vai compreen-

dendo Deus por graus sucessivos, acrescentando às suas con-

cepções precedentes outras cada vez mais avançadas, constru-

indo assim o seu edifício de conhecimento, fundindo-as nele,

para chegar à compreensão de um Deus cada vez mais rico de

aspectos, vasto e completo.

É assim que este dualismo positivo-negativo do conceito

homem-mulher, encontra-se também nas religiões. O primeiro a

aparecer foi o Deus homem, que se baseia na força, o elemento

mais necessário para a afirmação da vida nos níveis mais bai-

xos da evolução. Sobre esse conceito base, proporcionado às

exigências biológicas impostas pelas condições de desenvolvi-

mento, elevou-se depois, como um seu refinamento, o conceito

do Deus amor, assim como sobre as vitórias contra outros po-

vos, por meio da força, elevam-se as aristocracias construtoras

de formas de vida mais requintadas e períodos de paz que per-

mitem o florescimento das artes e da cultura, levando a civili-

zações cada vez mais avançadas.

Encontramo-nos, portanto, perante um fenômeno evoluti-

vo, fato este que nos oferece sólidas bases de apoio, por duas

razões: 1) A evolução é um fenômeno já positivamente pro-

vado; 2) Para o homem, como já demonstramos suficiente-

mente, a evolução já não se realiza no plano orgânico e fisio-

lógico, mas sim no mental e espiritual, consistindo sobretudo

no desenvolvimento nervoso, cerebral e intelectual. Já vimos

que o avanço nessa direção se realiza com a técnica da desci-

da dos ideais, cuja tendência é estabelecer novas formas de

existência, alcançadas através do ingresso em planos biológi-

cos mais evoluídos. Ora, a função das religiões é concretizar o

fenômeno dessa descida. Elas representam, portanto, um canal

através do qual se realiza a evolução. Eis que, assim, podemos

compreender a posição e a função das religiões perante as leis

da vida. Então, se hoje a realização da evolução significa espi-

ritualização, as religiões adquirem um significado positivo de

imenso alcance, pois constituem um instrumento cuja função

assume uma posição central no seio do maior fenômeno da

vida: a evolução, no transformismo da qual são enquadradas

em função de um supremo fim a alcançar.

Uma vez que a religião tem a tarefa de fazer o homem evo-

luir, podemos então compreender por que, antigamente, ela

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80 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

devia cumprir esta função no nível animal, assim como agora o

cumpre no nível humano e, amanhã, o fará no nível super-

humano. É assim que a forma das religiões muda com a sua

evolução, porque o nível biológico de onde desce o ideal é di-

ferente, segundo o grau de desenvolvimento alcançado. Assim

esse ideal provém de um plano cada vez mais alto, porque de-

ve acompanhar o movimento da vida, cujo deslocamento se re-

aliza em sentido ascensional.

Eis que as religiões tendem a se espiritualizar, porque estão

estreitamente conexas com o fenômeno evolutivo. Na sua pri-

meira aparição, elas são vizinhas da animalidade, tanto mais

quanto mais involuído é o homem. Com a evolução, porém,

elas, assim como toda a vida, elevam-se, espiritualizando-se,

porquanto, como agora dizíamos, o fenômeno evolutivo, quanto

mais sobe, tanto mais se torna fenômeno de espiritualização. O

ponto de partida está embaixo. A base é dada pelos instintos do

primitivo. Se as religiões são uma descida do Alto em direção

ao baixo, isto acontece porque o Alto quer ser também um pro-

cesso de elevação do baixo em direção ao Alto, para realizar a

sublimação dos instintos elementares do animal.

Segue daí que o cristianismo é uma forma mais evoluída,

mais espiritualizada e, poder-se-ia mesmo dizer, mais civili-

zada de hebraísmo, correspondendo, segundo os precedentes

conceitos, mais à concepção feminina da divindade do que à

masculina. Estas afirmações fazem surgir na mente problemas

mais vastos. No desenvolvimento deste fenômeno, vemos que

estes conceitos se conectam, colocando-se em paralelo, o que

nos faz pensar na existência de uma relação entre evoluir, no

sentido de uma espiritualização, e civilizar-se, no sentido de

uma aristocratização de caráter antimasculino, tendente à fe-

minização. O que significam estas concomitâncias, que apro-

ximam tais posições como numa parentela? Isto interessa às

religiões, porque o ciclo do seu nascimento, desenvolvimento

e decadência é um ciclo biológico que faz parte do nascimen-

to, desenvolvimento e decadência das civilizações, fenômeno

este por sua vez compreendido dentro de outro mais vasto,

constituído pelos altos e baixos da onda progressiva da evolu-

ção, na qual os altos são cada vez mais altos e os baixos cada

vez menos baixos (“Trajetória típica dos motos fenomênicos”,

Cap. XXVI de A Grande Síntese).

No ciclo das civilizações, vemos inicialmente a explosão de

um povo jovem, guerreiro e conquistador, que, constituído ple-

namente de qualidades masculinas, expande-se espacial e eco-

nomicamente, tomando posse, dominando e enriquecendo, até

atingir um ponto máximo, no qual o fenômeno se cansa, tornan-

do-se mais lento, até se afogar no ócio e no bem-estar. Então as

qualidades se invertem. A primeira fase, esfaimada e rude, é de

esforço, a segunda, saciada e requintada, é de repouso; a primei-

ra é guerreira, destruidora, forte, masculina; a segunda é pacífi-

ca, fecunda, feminina. É assim que todas as revoluções acabam

por aburguesar-se, sentando-se sobre as conquistas realizadas.

Que significa isto? Será então que o processo civilizatório

consiste em feminizar o macho? Ou será que, num mais alto

sentido, o processo evolutivo é realizado por dois elementos

opostos em dois tempos e posições, de modo que o homem,

quando termina a sua parte, deve ceder o passo à mulher, para

ser substituído por ela e colocado em posição secundária, suce-

dendo o contrário, quando a mulher termina a sua tarefa? Mas,

se o processo de civilização consiste em feminizar o macho, en-

tão semelhante feminização deve ter um conteúdo em sentido

evolutivo que a justifique. Isto significa que ela deve cumprir a

função não somente de debilitar o macho no seu nível involuído

de força, mas também de substituir este enfraquecimento, com-

pensando-o com a conquista de algum outro valor, para preen-

cher o vazio e, assim, não deixar a vida ficar em perda, pois isto

não seria tolerado por ela, que quer sempre avançar. Esta femi-

nização faz parte, portanto, do processo evolutivo, no qual ve-

mos trabalhar também o elemento feminino, que, se é negativo,

é assim somente em relação ao elemento masculino, porquanto,

em si mesmo, é igualmente construtivo, porém com qualidades

diferentes daquelas do homem. Assim esta feminização não é

apenas um efeminar-se no sentido de corromper-se nas quali-

dades inferiores da mulher, mas também um sublimar-se nas

suas qualidades superiores.

Deste modo, os dois seres opostos trabalham alternadamen-

te, cada um repousando e deixando-se arrastar, quando o outro

dirige e constrói, e, por sua vez, dirigindo e construindo, quan-

do o outro descansa e se deixa arrastar. Eis que se trata apenas

de uma divisão de trabalho entre dois seres inversos e comple-

mentares, que são duas formas do mesmo ser, uma no seu as-

pecto masculino e outra no seu aspecto feminino. Então o perí-

odo de decadência das civilizações pelo processo de feminiza-

ção não é senão uma parada no exercício das qualidades mascu-

linas, momento do qual a mulher se aproveita para ensiná-lo a

tornar-se algo que ela já é, mas que ele ainda não sabe ser. E

não é fácil saber com a paciência vencer a violência, com o

amor suavizar as arestas do egoísmo, com a bondade travar os

excessos da força, disciplinando e plasmando assim a matéria

prima, dada pelo macho forte e feroz, para chegar a domesticá-

lo, transformando-o num ser civilizado.

Assim o elemento mulher se aproveita do cansaço do ho-

mem para inculcar nele as qualidades que lhe faltam, enrique-

cendo-o e completando-o. Trata-se de duas posições diferentes

da ação construtora realizada pela vida, que é sempre constru-

tiva, mesmo quando utiliza valores diversos, cada um a seu

turno, todos úteis para a existência. Com efeito, se a constru-

ção de impérios com o esforço bélico representa uma conquis-

ta da vida, não se pode negar que também é uma conquista,

ainda que seja de outros valores, a formação das aristocracias,

feitas de elementos selecionados como requinte e sensibiliza-

ção, mais aperfeiçoados na ciência e nas relações sociais, cons-

tituindo uma elite biológica produtora dos valores mais precio-

sos, como a cultura, a arte e o pensamento em alto nível. Isto o

macho guerreiro, por si só, não saberia fazê-lo sem a ajuda de

um mestre, que, por ser débil, tem necessidade, para poder

educá-lo, de ser defendido pelo aluno, mestre em outra maté-

ria. Este, porém, usa frequentemente a força para destruir, e

não para proteger estas construções superiores, desarmadas pa-

ra a guerra. Assim Cristo, portador dos mais altos valores mo-

rais, foi morto por primitivos ferozes; assim a civilização de

Roma foi dominada pela invasão dos bárbaros; assim a Revo-

lução Francesa, com a carnificina do terror, varreu com os re-

quintes da aristocracia e acabou com aquele período feminino

da história, para lhe substituir um masculino, abandonando-se

ao impulso oposto, de expansão guerreira. Neste momento, é o

homem que toma a dianteira e se faz valer como ele é, ou seja,

como quem somente sabe criar numa atmosfera de destruição,

esperando que a mulher venha depois e, com infinita paciên-

cia, recolha os restos quebrados, reordene-os, reúna-os e faça

deles, com as suas qualidades coesivas e conservadoras, uma

casa, uma igreja, uma família, uma sociedade. O homem tam-

bém sabe fazer tudo isto, mas somente impondo com a força

por fora, enquanto a mulher o faz trabalhando por dentro, com

amor. Quando o homem, por ser criança, doente ou velho, é

débil, ele depende e a mulher domina. Mas, quando o homem é

jovem e forte, então quem domina é ele, enquanto a mulher

depende. Assim, quando dizíamos que o ciclo de uma civiliza-

ção é descendente na sua segunda fase, na qual ela se corrom-

pe e se extingue, levando à desagregação da grandeza por ela

alcançada, pensamos com o nosso ponto de referência tomado

em função do homem, dando mais atenção à visível construção

masculina do que à oculta e silenciosa construção de tipo fe-

minino, a qual nos aparece, assim, como se fosse uma deca-

dência. Mas isto se dá somente em relação ao homem. A vida é

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 81

sempre construtiva, mesmo quando parece destrutiva, porque,

nesta fase, ela realiza construções em sentido oposto àquele

que, com mente masculina, chamamos construtivo.

O resultado de todo este trabalho é uma substituição dos va-

lores mais baixos do primitivo pelos mais requintados valores

do civilizado, processo pelo qual se realiza o processo evoluti-

vo, que consiste numa renovação, realizada através de uma des-

truição embaixo, compensada por uma reconstrução mais no al-

to. Em substância, trata-se de uma função criadora, operada

através do transformismo, cujo verdadeiro significado podemos

agora compreender. As fases de decadência, que corrompem,

servem para eliminar aquilo que é inferior e, assim, libertar-nos

dele e substituí-lo pelo que é superior. A civilização destrói o

homem como animal para que ele se reconstrua no nível moral,

dado pela inteligência e a organicidade social, fazendo desapa-

recer nele a besta. É com esta substituição que a vida se salva

da decadência, porque ela, lançando fora os valores mais invo-

luídos e conquistando outros mais evoluídos, renova-se, ao in-

vés de mutilar-se; enriquece, ao invés de empobrecer. Os dois

movimentos, destruição e reconstrução, morte e renascimento,

existem para conduzir a uma renovação. Encontramos os dois

compensados também no plano físico, onde o homem mata

com as guerras e a mulher, amando o homem, cria novos seres,

ambos colaborando assim para essa renovação, com uma divi-

são de trabalho, um para destruir e outro para reconstruir.

Chegando a este ponto, é necessário compreender um fato

fundamental. Tudo isto acontece em função da evolução e faz

parte da sua técnica construtiva. Para este objetivo existe o me-

tabolismo da vida, feito de morte e renascimento. No plano fí-

sico, se os nascimentos não compensassem as perdas da morte,

tudo acabaria num cemitério. No plano espiritual, se as recons-

truções em alto nível evolutivo não compensassem as destrui-

ções embaixo nível – ou seja, se apenas se matasse o involuído,

sem fazer renascer no seu lugar o evoluído – então negaríamos

a evolução e iríamos contra a vida. Se não se faz da morte um

meio de renovação e superação, ela se torna o fim de tudo. A

salvação está apenas na evolução, ou seja, na capacidade de nos

reconstruirmos mais no alto.

A salvação é o problema fundamental, e agora vemos co-

mo ela representa o termo conclusivo de uma concatenação de

elementos. A salvação para a humanidade consiste em civili-

zar-se. Mas as civilizações, chegando ao seu apogeu, corrom-

pem-se, feminizando-se, e, assim, decaem. Isto tem aconteci-

do porque esta feminização, ao invés de constituir um acrés-

cimo de novas qualidades às da masculinidade, constituem

uma substituição delas, tornando-se assim uma parada no ca-

minho da evolução, e não uma conquista para avançar. Em

outros termos, para ser vital, a civilização deve ser alcançada

por um acréscimo, e não por uma substituição, ou seja, ela

deve ser constituída de uma feminilidade que, ao invés de

substituir – como sucede no declínio das civilizações – some-

se à masculinidade. Já fizemos notar este perigo também no

momento histórico atual, no qual o tecnicismo nos prepara o

luxo de muito tempo livre, que pode se transformar no ócio.

As civilizações decaem porque representam uma feminiza-

ção que, ao invés de se acrescentar à masculinidade, substituiu-

se a ela, corrompendo-a. Ora, a civilização deve representar

uma evolução, um requinte e um aperfeiçoamento, constituindo

uma continuação no sentido ascensional da masculinidade, e

não uma degeneração na inércia e na debilidade. Engordar com

o sacrifício dos próprios ossos, em detrimento da sólida estrutu-

ra orgânica de base – mesmo que isto signifique enriquecer em

reservas alimentícias – não é saúde, mas sim doença, e pode

conduzir à morte. A civilização deve ser constituída pelo aper-

feiçoamento das qualidades fundamentais da força, sobre as

quais se baseia a vida, e não por uma supressão delas a favor

das qualidades opostas. A civilização deve ser um enriqueci-

mento da vida, e não uma mutilação. A salvação está na evolu-

ção, que é uma mudança para avançar, não para retroceder.

O fenômeno se constitui dos seguintes momentos: 1) Evolu-

ção, e não enfraquecimento, das próprias qualidades, tanto da

parte do homem quanto da mulher, sem que nenhum dos dois

perca nada, desenvolvendo essas qualidades até um mais alto

nível biológico; 2) Enriquecimento de cada um dos dois ele-

mentos pela absorção das qualidades da outra metade, comple-

mentares às suas próprias, de modo a se tornar um ser cada vez

menos “metade” e cada vez mais completo; 3) Fusão de todas

as qualidades num único biótipo, que, possuindo-as integral-

mente, atinge assim, com a superação do atual estado de cisão,

a unificação das duas metades.

Estes três momentos – 1) Evolução, 2) Absorção, 3) Unifi-

cação – estão conectados, pois a aquisição das qualidades da

metade complementar e o processo de unificação entre as duas

partes são mais facilmente realizadas num nível evolutivo supe-

rior. Isto significa que, quanto mais o macho se torna homem e

a fêmea se torna mulher e quanto mais, em um nível mais alto,

o homem se torna super-homem e a mulher se torna supermu-

lher, tanto mais fácil é para cada um dos dois entender e assimi-

lar as qualidades do outro, coisa impossível de levar a cabo no

plano animal humano, de natureza somente sexual, sem cair em

desvios e inversões com relação às funções exclusiva e previa-

mente aí colocadas para fins de procriação. Aqui não se trata de

mudar de sexo, mas sim de ampliar a própria personalidade. As

qualidades fundamentais do elemento positivo e ativo, o ho-

mem, são força e agressividade; as do elemento negativo e pas-

sivo, a mulher, são debilidade e amor. No nível animal humano,

estas qualidades tomam, no homem, a forma de egoísmo e pre-

potência, enquanto, na mulher, assumem o aspecto de escravi-

dão e sexo. Num plano mais alto, estas qualidades tornam-se,

do lado do homem, inteligência e ação, enquanto, do lado da

mulher, transformam-se em intuição e bondade. É somente nes-

te nível que pode ter lugar a absorção das qualidades opostas,

através da qual o homem pode sensibilizar-se e adquirir da mu-

lher as qualidades do coração, e a mulher pode fortificar-se e

adquirir do homem as qualidades racionais da mente, bem co-

mo a sua energia e potência realizadora.

O fato de tal processo de unificação se realizar mais facil-

mente num nível evolutivo superior também faz parte do plano

geral da evolução. Sabemos, com efeito, que o separatismo é

tanto maior quanto mais baixo evolutivamente se encontra o

ser, ou seja, mais próximo do ponto máximo de revolta e cisão,

que é o Anti-Sistema, e é tanto menor quanto mais alto evoluti-

vamente o ser estiver, ou seja, mais próximo ao ponto máximo

de obediência e unificação, que é o Sistema. Portanto, quanto

mais se é evoluído, tanto mais fácil é unificar-se, uma vez que o

caminho da evolução vai do Anti-Sistema ao Sistema, levando

do estado de separação ao estado de unidade.

Este fenômeno se verifica também no plano das civiliza-

ções. No desenvolvimento do seu ciclo, parte em ascese e parte

em descida, vemos que, num primeiro tempo, o elemento mas-

culino começa e lança o movimento. Depois que este chegou ao

seu ápice, a ação do elemento positivo cessa e a dianteira é to-

mada pelo elemento negativo, no qual tudo termina por afogar-

se. Isto acontece porque cada elemento é apenas “metade”, mas

não aconteceria se cada um contivesse também as qualidades

do termo oposto. É assim que as civilizações vão-se tornando

cada vez mais estáveis, pois o elemento negativo vai continua-

mente se enriquecendo com as qualidades positivas necessárias

para substituir, no período de cansaço e decadência do outro

termo, aprendendo a reger-se por si só com funções positivas.

Eis que, no futuro, a unificação entre as duas metades torna-

rá as civilizações cada vez mais resistentes à decadência. Para-

lelamente, poderão surgir outras mais avançadas ainda, porque

o princípio masculino pode iniciar cada novo ciclo de civiliza-

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82 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

ção de um ponto de partida situado num nível mais alto do que

aquele em que foi iniciada a civilização anterior. Este nível é

dado pelo caminho ascensional percorrido por ela e representa

o fruto do seu trabalho, fruto que a nova civilização pode co-

lher, porque o encontra pronto como resultado do ciclo percor-

rido pela antiga. Partindo deste ponto mais avançado, o princí-

pio masculino pode ascender mais do que da vez anterior e pro-

porcionalmente, na fase de descida da civilização, decair me-

nos. Isto significa cada vez mais aproximar-se do Sistema e

afastar-se do Anti-Sistema. Como já dissemos anteriormente, a

onda da civilização se desenvolve por progressivas oscilações,

deslocando o seu vértice cada vez mais em direção ao alto.

Assim as civilizações tornam-se cada vez menos unilate-

rais. Quanto mais alto está o seu nível evolutivo, tanto mais

fácil é a complementação recíproca entre os dois termos, mas-

culino e feminino, significando isto que o positivo se suaviza

cada vez mais com as qualidades do negativo, e o negativo se

reforça cada vez mais com as qualidades do positivo. Este

processo sucede em um nível evolutivo cada mais alto, em

forma de enriquecimento recíproco, ao invés de corrupção e

decadência nas qualidades de baixo nível do termo oposto.

Foi neste alto nível que o Cristo-amor completou o Moisés-

força. Assim o Novo Testamento não destruiu, mas sim de-

senvolveu o Velho. Cristo pôde construir mais no alto, por-

que, devido ao esforço realizado pelo hebraísmo, o ponto de

partida do cristianismo era mais avançado.

Assim nasceu a Igreja. O seu sinal é a cruz; a sua força é o

martírio. Ela foi de fato fundada por Cristo, primeiro mártir, e

pelos mártires dos primeiros séculos. O sinal masculino é a es-

pada. Na passagem de um termo ao outro, constatamos um em-

borcamento de valores. Poderia chamar-se também de sadismo

e masoquismo. O valor da mulher está em saber sofrer; o do

homem, em saber fazer sofrer. A primeira está feita para supor-

tar a dor; o segundo, para infligi-la. A estratégia da mulher é a

fuga; a do homem, perseguir e matar. Cristo não é guerreiro,

pelo contrário, escolhe a posição de vítima. É o cordeiro ino-

cente que se sacrifica. O homem, pelo contrário, é lobo à procu-

ra de cordeiros, para devorar como vítimas.

Mas nem por isto faltam ao princípio feminino meios de

defesa que lhe garantam a sobrevivência. No plano animal,

tem o poder da fascinação do sexo, com o qual subjuga o ho-

mem. No plano espiritual, tem o poder do ideal desarmado,

que aparece também na Terra, proveniente do mistério do

além, aonde também terá de chegar por fim o homem. Este,

então, não sabe se a espada ainda lhe servirá ou se, pelo con-

trário, a vida, que é a sua maior preocupação, irá defender-se

com a retidão e a inocência desarmada, em vez de fazê-lo por

meio de armas. Surge assim a dúvida de saber se a outra vida é

ou não regida por outros princípios, pelos quais a vítima ino-

cente, num regime de justiça onde se tem de prestar contas, se-

ja, pelo contrário, o mais forte. Vacila então a fé do homem na

força, que torna tudo lícito na Terra. O cristianismo é debilida-

de, renúncia e pranto frente à força e vitalidade eufórica do

mundo. Mas eis que Cristo, a vítima vilipendiada na Terra,

ressurge fulgurante de poder para julgar. Invertem-se assim os

papéis. O mais desprezado dos vencidos torna-se o senhor su-

premo. Então o triunfo da espada é efêmero. E, depois, que su-

cede na eternidade? Também na Terra, nas curvas da história,

está escondido o imponderável, pronto a castigar inclusive os

mais fortes, em nome de um princípio que não é a força.

Muitos são os recursos do princípio feminino, que transfor-

mam em poder a sua debilidade. Será o martírio, mesmo na

Terra, verdadeiramente uma derrota? O sangue dos mártires fe-

cunda a terra onde cai, e a ideia pela qual eles morreram germi-

na gigantescamente. O martírio cria seguidores, porque é prova

da verdade daquilo pelo que se dá a vida. Então o ideal se torna

epidêmico. Levado ao plano da dor e do sangue, ele é compre-

ensível a todos e, com o exemplo, sugestiona e arrasta. A ver-

dade disto é comprovada pelo fato de que um partido, quando

quer fazer-se forte, atraindo seguidores, apressa-se em fabricar

os seus próprios mártires. Usa-se semelhante indústria também

em política. Eis que a inocência da vítima pode conquistar mais

do que a espada do guerreiro. As perseguições difundem e fa-

zem triunfar a ideia dos perseguidos. A força moral vence mais

do que a material. O princípio feminino do sacrifício supera em

potência o princípio masculino do domínio.

Aquele princípio feminino pode ter assim uma importantís-

sima função, que é educar o homem. A tarefa do cristianismo é

inculcar-lhe as qualidades superiores do princípio oposto. Eis a

obra civilizadora do cristianismo, dirigida a domesticar no mun-

do o desencadeamento da prepotência do homem, ensinando-lhe

a virtude de saber trabalhar em colaboração, num regime de paz,

onde tem valor o desinteresse, a retidão, o espírito fraterno, a

não-resistência. A tendência da religião é domesticar o homem

forte, enquadrando-o numa disciplina, e defender a mulher débil.

Os três votos franciscanos: pobreza, castidade e obediência, ar-

rancam a prepotência pela raiz. Os primeiros a aceitar Cristo fo-

ram os humildes, pertencentes às classes mais pobres, porque

Nele encontravam defesa contra os prepotentes. Perante o co-

mando, a mulher obedece e o homem se rebela. Perante Deus, a

mulher reza e o homem blasfema. A mulher adere naturalmente

à religião, porque esta, representando o princípio que pretende

domesticar o homem, oferece-lhe defesa. Vemos isto no institu-

to do matrimônio. A mulher não tem necessidade de ser forçada

a esses três votos, porque frequentemente já se encontra na de-

pendência econômica do homem, estando obrigada ao dever de

castidade fora do matrimônio (adultério condenado somente pa-

ra a mulher) e ligada ao marido em posição de obediência.

O cristianismo se enxerta plenamente no processo evoluti-

vo, na medida em que ele trabalha pela superação da lei bio-

lógica da luta pela seleção a favor do mais forte, imperante

nos planos mais baixos, para levar à pratica, pelo contrário, do

tipo de vida social orgânico, próprio do homem civilizado, no

qual ao estado de luta do separatismo individualista se substi-

tui um estado de paz na ordem coletiva. Para alcançar esta

unificação, é necessário colocar em evidência as virtudes fe-

mininas de compreensão e coesão, as mais adequadas para

aproximar e coordenar em cooperação os ferozes egocentris-

mos masculinos, que tratam de se destruir reciprocamente. A

função da mulher é tratar de apaziguar os homens, para que

eles, em vez de se matarem, trabalhem para produzir, a fim de

que alimentem a vida, ao invés de destruí-la.

Podemos compreender agora o significado do cristianismo

perante as formas de atividade dos dois termos biológicos fun-

damentais, em relação ao desenvolvimento do ciclo de uma ci-

vilização e ao processo evolutivo. Explica-se assim também o

tipo de paixão escolhida por Cristo e a forma pacífica de holo-

causto escolhida pelos seus seguidores nos primeiros séculos de

fundação do cristianismo. Perante as leis da vida, como se justi-

fica este fato? Teria Cristo, então, estabelecido que sua ação se-

ria de tipo feminino? Na realidade, a sua bondade tinha se re-

solvido num convite ao uso da maldade por parte dos outros.

As culpas de Judas, de Pilatos, do Sinédrio e dos hebreus foram

provocadas pela atitude de vítima, desejada por Cristo. Poder-

se-ia dizer que Ele quis assim. A não-resistência atrai o agres-

sor. A ingenuidade atrai o engano, porque a impunidade é o

grande sonho de quem faz o mal. Na Terra, é necessário impor-

se o bem com a disciplina e protegê-lo pela força. Em seme-

lhante ambiente, a bondade torna-se culpa, porque, deixando o

mal impune, termina-se por encorajá-lo. Cristo, primeiramente,

declarou guerra ao mundo, desafiando seus inimigos, para de-

pois se oferecer a eles, desarmado. Que tática é esta? É evidente

que não lhe restava senão o martírio. Segundo as leis do mun-

do, isto é perfeitamente lógico. Mas será possível que Cristo

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 83

não as conhecesse? Segundo a lógica terrena da força, Ele era

uma vítima, um vencido, um falido. O mais forte tinha o direito

de eliminá-lo, ato com o qual a luta se encerrava.

Uma vez que Cristo conhecia tudo muito bem, não teria si-

do a sua intenção, ao contrário, vencer, manifestando-se como

princípio feminino de civilização, para dar ao mundo um im-

pulso neste sentido, como depois de fato sucedeu? Não se pode

dizer que Cristo fosse um vencido, pois Ele soube vencer, em-

bora numa forma muito estranha para o mundo, fora do seu ter-

reno e manifestada depois da morte, intento mais difícil de se

alcançar do que durante a vida. Ele venceu, então, mas não fi-

cando no âmbito das leis da Terra, e sim as superando; não uti-

lizando-se do princípio masculino, mas sim vencendo-o por ou-

tras vias. Venceu em altíssimo nível, no plano do ideal. Mas de

tudo isto o elemento humano viu e compreendeu muito pouco,

interessando-se, no seu baixo nível, somente em vencer aquilo

que aos seus olhos apareceu apenas como uma expressão do

princípio feminino e que, como tal, existia para ser naturalmen-

te dominado pelo masculino. Representantes disto não faltam

na vida, aparecendo imediatamente para se aproveitar de quem

se apresenta desarmado. Do ideal de Cristo eles viram sobretu-

do o que lhes poderia servir na Terra. Transformando-o, assim,

em interesse humano, puseram-no a serviço do mundo, fazendo

do poder espiritual um poder temporal. Agora nos pergunta-

mos: isto foi traição ou complementação?

Tratemos de compreender a lógica pela qual se desenvolveu

o fenômeno. Já nos fizemos esta pergunta em outro lugar, mas a

consideramos sob outros pontos de vista. O emborcamento teve

lugar com a doação de Constantino. Naquele momento, ao

princípio feminino, que ensina o Evangelho, substituiu-se o

princípio masculino de domínio, realizado por uma casta ecle-

siástica, com base na própria autoridade. A religião então, pas-

sada para as mãos de homens que atuavam com psicologia

masculina, assumiu outro tipo de trabalho. Mudou de sinal, de

modo que, em vez de cruz, tornou-se espada; em vez do amor,

praticou a luta pelo poder temporal; em vez do céu, apontou na

direção e tornou-se instrumento de domínio do terreno.

Não discutimos aqui se isto foi mal, culpa ou necessidade.

O nosso objetivo é compreender, e não criticar. Se a vida per-

mitiu isto, ela deve ter tido as suas razões para fazê-lo. O fato

do emborcamento permanece. Se ele se verificou e ainda conti-

nua assim, isto significa que tinha uma função a cumprir. O que

significa tudo isto então? Salta-nos primeiramente à vista que

nos encontramos perante um cristianismo cuja posição foi in-

vertida em relação ao seu fundador, mediante uma religião que

se tornou mundo e, com isto, passou para o lado do inimigo,

mudando de sinal e assumindo o princípio masculino. Esta é a

vitória não de Cristo, mas sim do mundo sobre Cristo. Disto re-

sultou uma religião que, em vez de assumir a tarefa de superar

o separatismo egocêntrico – pelo qual se é levado à luta – e le-

var a um estado orgânico de ordem coletiva, deu continuidade a

esse separatismo e estado de luta, limitando-se, em substância,

somente a disfarçá-lo sob a aparência de amor cristão, trans-

formando-se assim numa forma de hipocrisia.

Teria sido assim por necessidade? Se é verdade que isto, pe-

la imaturidade dos tempos, é tudo o que se podia exigir num

primeiro momento, podendo-se assim justificar o que sucedeu,

não se altera contudo o fato positivo da existência de tal embor-

camento. Pode ser que esta hipocrisia constitua somente um

primeiro passo no esforço de domesticar o homem, ação que se

realiza do exterior em direção ao interior e que se conforma ao

princípio apenas exteriormente, mas que permanece mentira pe-

rante os impulsos íntimos, os quais ficam intactos, sem serem

atingidos pela religião. Todavia permanece o fato da contradi-

ção e do contraste entre as palavras e os fatos, entre o que se

professa e o que se faz. Mesmo que se trate apenas de uma fase

necessária de transição, justificável porque no futuro deverá ser

remediada, este é o atual estado do cristianismo. Assim ele,

ainda que seja vitorioso como organização terrena, está em po-

sição inferior como função espiritual. A febre de ascese em di-

reção ao alto, chamada religião, não só se apaga no conservado-

rismo, agarrada à evolução para detê-la, mas também se torna

paixão masculina, atraída pelo domínio econômico ou político,

ainda que formalmente velada de amor cristão. Assim a religião

se transforma num aproveitamento utilitário em favor de ele-

mentos socialmente improdutivos, uma escola de preguiçosos e

comodistas, ou então, caso prevaleça pelo contrário a atitude

masculina de luta, tudo se falsifica e não pode dar por fruto se-

não a mentira. Agora que compreendemos qual deveria ser a

verdadeira função civilizadora do cristianismo, perguntamo-nos

se ele até hoje a cumpriu? Se ele ainda não a cumpre, as conse-

quências podem ser graves, porque sabemos que tudo aquilo

que não realiza a função a si confiada é liquidado pela vida,

pois não serve aos seus fins.

Quem acaba atraiçoado neste caso é a vida, sendo impos-

sível que ela não reaja. É seu objetivo fundamental que está

comprometido neste caso, ou seja, a evolução, porque, em

vez de à besta substituir-se o anjo, é a baixa animalidade hu-

mana que, envernizando-se, pretende parecer anjo. Então tu-

do se reduz a uma mudança de estilo no antigo método de lu-

ta, pelo qual a arma da astúcia substitui a da força. É verdade

que, na economia da vida, até isto serve, porque em vez dos

músculos tende a desenvolver a mente, que já é coisa mais

evoluída. Mas é desenvolvimento na forma oblíqua de enga-

no, e a isto fica reduzida a ação evolutiva da religião. Então

esta ação não consiste em eliminar a luta entre egoísmos, mas

em continuá-la sob outra forma, enganando-se reciprocamen-

te, em vez de se matarem. Com semelhante mudança não se

moraliza a vida, mas sim se desmoraliza.

O conteúdo da religião não é então a luta pela superação

evolutiva, mas um enquadramento terreno para radicar-se no

mundo, como um organismo burocrático composto de cargos,

posições sociais e carreiras sobre bases econômicas. O meio

acaba se tornando o fim. Então, ainda que seja talvez mais por

inconsciência, e nesse caso sinceramente, as vocações surgem

em função dessas vantagens positivas. Para uma mente positi-

va, que não sabe entender para além do ofício, isto pode ser to-

talmente moral. Na sua simplicidade, um involuído, mesmo que

seja ministro de Deus, pode crer em plena consciência ser cris-

tão, apenas porque cumpre os atos de uma disciplina exterior,

inerente ao seu ministério, recebendo honestamente, como

compensação deste seu trabalho, os meios para viver. Para

quem não vê mais além do justo intercâmbio, isto também cor-

responde à retidão. Mas o cristianismo é outra coisa, estando si-

tuado em outro nível de evolução. Ele não é somente um servi-

ço, como pode parecer às pequenas almas. Ele é uma paixão de

espírito com funções criadoras, para transportar a vida a planos

mais altos, revelados pelo ideal, mesmo sendo entendido de ou-

tro modo por quem, ainda não estando biologicamente maduro,

procure baixá-lo ao seu nível como um ofício, crendo em boa fé

ser um cristão chamado por Deus.

A lógica humana se explica em função do nível evolutivo,

do qual é produto. Deixemos, porém, de raciocinar com os ho-

mens, para raciocinarmos com Cristo e com a lógica da vida.

Então nos perguntamos: terá Cristo feito um trabalho inútil?

Por que razão Ele sofreu a sua paixão, se estes são os resulta-

dos? Pode-se admitir que o homem se engane, mas não Cristo!

Será que Ele desconhecia o biótipo ao qual se dirigia? Não sa-

bia Ele que na Terra a vida obedece a outras leis e que, portan-

to, da sua doutrina se faria um uso emborcado? Então também a

vida errou, porque deixou a evolução ser detida, permitindo a

falência do ideal e, assim, desperdiçando os seus melhores va-

lores, bem como os esforços que custa produzi-los. Mas se tal

hipótese não é admissível, então qual o significado disso tudo,

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84 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

que parece um erro? E, se de fato o é, como é possível salvar e

utilizar isto para o bem, que é o maior fim da vida?

Como sempre, quando nos parece que ela se engana, isto

acontece somente em razão da nossa perspectiva distorcida do

problema. Observando bem, veremos que cada coisa está no

seu justo lugar e cumpre logicamente a sua função. Não será

talvez a finalidade das religiões espiritualizar sobretudo o indi-

víduo que, por ser imaturo, é mais necessitado? E de fato, nas

religiões, está envolvido principalmente o ser imaturo, que, por

isso, acredita ser mais proveitoso o método de utilizar o ideal

para desfrutá-lo com fins terrenos. Este é precisamente o tipo

que mais necessita ser submetido a um estreito contato com as

zonas do ideal, a fim de assimilá-lo. Justamente por este motivo

ele é submetido à dura disciplina religiosa e, com isso, recebe a

lição mais enérgica, aquela que mais dói a tal tipo e que, por-

tanto, será mais bem sentida. De fato, ela lhe é imposta na for-

ma mais adequada, seja por coação, de modo tanto mais força-

do quanto mais imaturo for indivíduo, seja por aceitação, de

modo tanto mais fácil e espontânea quanto mais maduro for o

indivíduo. Já explicamos que o meio mais adequado para do-

mar o involuído é a coação. Assim, proporcionando os meios à

realidade e ao objetivo, o bem é alcançado na forma devida.

Se alguém não é educador, mas quer fazer-se como tal ape-

nas para usufruir as vantagens do mestre, é um bem para ele,

pois lhe permite progredir, que fique preso, como numa armadi-

lha, na disciplina de educar. Eis então que a religião se torna

uma prisão na qual, automaticamente, são confinados aqueles

que mais têm necessidade de injeções de ideal para amadurecer

num tipo de vida superior. Cumpre-se assim a função civiliza-

dora da religião, começando por obrigar os aspirantes a educa-

dores a se educarem a si mesmos.

É inegável que, na organização religiosa, as posições materi-

ais se baseiam sobre princípios espirituais. Come-se e vive-se

em função destes valores, o que torna obrigatório defendê-los,

porque são um meio para sobreviver. Estes são, portanto, trans-

portados ao terreno real da luta pela vida, pois fica-se obrigado a

tê-los em conta, para salvar as posições materiais, que se basei-

am sobre eles, mesmo quando tais valores, em si mesmos como

amor ao ideal, não interessem. É assim que os princípios espiri-

tuais se tornam sagrados, preciosos, intangíveis. É assim que se

forma a mistura entre mundo e ideal. É assim que surge a neces-

sidade de conhecer a espiritualidade e de tê-la presente, de sentir

o seu peso e de fazê-lo ser sentido. De outra maneira, a espiri-

tualidade passaria despercebida. Este é o processo pelo qual,

misturando-se com a Terra, o ideal consegue valorizar-se na

Terra. Então a vida não errou, pois encontrou a forma que, em

nosso mundo, torna possível Cristo ser tomado em consideração.

E Cristo também não errou, porque a religião cumpre a sua

função civilizadora, ainda que em posição emborcada de hipo-

crisia. Assim os mais astutos, que fazem a melhor carreira e

mais sobem nos cargos, são aqueles que se encontram mais li-

gados à figura de Cristo, mais colocados em evidência, mais

obrigados ao exemplo, mais coagidos a imitar o Mestre, o que

significa, no fim, alcançar um bem. Efetivamente, quanto mais

o indivíduo trata de enganar, vestindo-se de hipocrisia, tanto

mais, em tais posições, é constrangido pelo ideal, recebendo de-

le as saudáveis lições. A massa popular, mais simples e irres-

ponsável, está menos comprometida com o ideal e pode permi-

tir-se mais evasões. Os mais aperfeiçoados na arte sutil de en-

ganar o ideal, são aqueles que mais ficam atados a ele por toda

a vida. Esta, assim, não se engana quando faz ministros de

Deus aqueles que mais necessitam Dele.

Deste modo se realiza o jogo da vida, que sabe aquilo que

faz. Apesar de tudo, o cristianismo cumpre a sua função civili-

zadora. De fato, quando ele é usado como hipocrisia, serve pa-

ra transformar, como já indicamos, a brutalidade animal e a

força física em trabalho e qualidades mentais, passando a exi-

gir na luta uma atividade cerebral, como é o uso da astúcia.

Mas sucede que, ao mesmo tempo, isto obriga o indivíduo a

viver em contato com os superiores princípios do ideal, que o

fazem transformar a astúcia em retidão, levando as qualidades

mentais ao nível daquelas morais e espirituais. Eis que o traba-

lho se realiza plenamente em sentido evolutivo, de modo que,

assim, a vida não se engana de maneira alguma, porque alcan-

ça o seu fim, que é evoluir.

O jogo da vida se desenvolve logicamente, seguindo suas

leis e objetivos. Homem e mulher funcionam como os dois po-

los do mesmo circuito. O positivo é feito para se enxertar no

negativo, e o negativo, para se ligar ao positivo. Então que ou-

tra alternativa restaria ao princípio feminino, a não ser cair em

poder do princípio masculino? É natural, portanto, que o ele-

mento masculino, tão logo encontre o elemento feminino, tome

posse dele e utilize suas qualidades de bondade e sacrifício em

proveito do próprio egoísmo. Este princípio funcionou também

para o cristianismo, que foi heroísmo e martírio até à doação de

Constantino. O princípio feminino triunfava, enquanto o mas-

culino estava à espera. E foi para o terreno deste que aquela do-

ação levou o fenômeno. Nesse momento, o princípio masculino

despertou e iniciou, dentro do cristianismo, o seu oposto tipo de

atividade, tomando posse do feminino, que ele amou a seu mo-

do, adorou e levou consigo, para torná-lo grande no seu mundo.

Fez-lhe uma casa, milhões de casas, belíssimas catedrais. Ves-

tiu-o de imagens, de arte e de rito. Cobriu-o de riquezas e o dei-

ficou, mas, pelo fato de ser homem egoísta e senhor, fez tudo

isso naturalmente a seu serviço, tomando posse dele, tal como

faz o homem com a esposa. Mas será que o atraiçoou com isto?

Sente-se a esposa atraiçoada, se o homem a domina para subor-

diná-la a si? Não, porque isto corresponde à sua natureza e fun-

ção, que é estar nesta posição – junto ao homem dominador, a

única possível para ela – e assim induzi-lo a evoluir.

Foi o que sucedeu com a Igreja. Assim, com este matrimô-

nio, o princípio masculino do mundo tomou posse do princípio

feminino de Cristo, a fim de utilizá-lo para si, e o princípio de

Cristo ligou-se ao do mundo, para fazê-lo evoluir. Entendido as-

sim, o que pode parecer um composto híbrido e uma contradi-

ção, é pelo contrário uma colaboração de opostos. No final, o

homem dominador fica dominado pelo seu termo complementar

e, assim, desenvolve-se no terreno oposto, adquirindo as quali-

dades que mais lhe faltam para ser completo. Por outro lado, o

elemento feminino recebe em compensação a vantagem de po-

der penetrar no mundo, tendo assim a sua função educadora va-

lorizada, e o espírito pode enxertar-se na realidade de nossa vi-

da, trabalhando para civilizar o homem. Sem esta servidão ao

homem – que, mesmo utilizando-a para si, dá a ela eficiência – a

mulher ficaria estéril, sua presença seria inútil e sua existência

estaria falida. Todos vivemos em função de uma obra a realizar,

de um fim a atingir. Se abdicamos disto, a vida é inútil.

A Igreja, ao se tornar poder terreno como organização hu-

mana, transformou o ideal de Cristo em mundo e, biologicamen-

te, não traiu sua função, mas sim a cumpriu. Dado o grau de

evolução humana, era um mal inevitável, no entanto justificado

como fase transitória do seu ciclo evolutivo. Tudo está feito para

ascender. No final do ciclo, a missão dos dois esposos terminou.

A mulher, carregada de anos e joias, está velha. O homem tor-

nou-se um repetidor cansado de antigas fórmulas e não sabe vi-

ver senão de recordações. A vida os superou. O espírito deve re-

nascer mais evoluído, enriquecido com as experiências anterio-

res, a fim de iniciar um novo trecho do caminho, partindo de um

ponto mais avançado, feito mais de espírito e menos de mundo,

para tornar-se ainda mais espírito e menos mundo. Um pouco

mais adiante, o mesmo jogo continua. O que fica é a evolução,

caminhando cada vez mais para o alto, em direção a Deus.

Tudo se explica e se encontra no seu devido lugar. Sem

aquilo que parece traição ao ideal, este ficaria incorrompido nos

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 85

céus e o mundo permaneceria estacionário no seu estado invo-

luído na Terra. Se, para o progresso, é necessário tal descida,

esta só pode realizar-se sob a forma de conspurcação do ideal e

traição por parte do mundo. A mentira é devido à necessidade

de se emborcar o ideal, a fim de introduzi-lo no mundo, seu

oposto, que não pode mudar de um momento para o outro. E é

precisamente para mudá-lo que o ideal deve descer a Terra.

Este é o caminho pelo qual se chega à construção do ho-

mem espiritual, que aprendeu a não abusar mais da sua força,

usando-a em forma de bondade para benefício do próximo – li-

ção aprendida com o princípio feminino – ao invés de usá-la

sob a forma de egoísmo para prejuízo alheio, de acordo com o

princípio masculino. Paralelamente, a potência do princípio

masculino conduz à construção da mulher forte no plano da in-

teligência e do trabalho, não mais escrava, e sim aliada do ho-

mem, para colaborar com ele na obra da construção da civiliza-

ção. Este ponto final é dado pela conjunção do que há de me-

lhor nos dois opostos, resultando no super-homem enriquecido

pelas qualidades da supermulher e ao contrário. Assim a evolu-

ção cura a cisão, levando cada vez mais o ser em direção ao

máximo termo unitário e centro da unificação: Deus.

◘ ◘ ◘

Neste e nos precedentes capítulos sobre o cristianismo, dis-

semos que ele, além de representar a realização da ideia de Cris-

to na Terra, é também uma adaptação que o mundo, inimigo De-

le, fez para si de Cristo. Para compreender bem, observamos o

caso sob vários aspectos, mudando os pontos de vista e de refe-

rência. Como sucede nas administrações deste mundo, os minis-

tros tomam posse da propriedade alheia e, como se ela lhes per-

tencesse, utilizam-na para os seus próprios fins. Não seria possí-

vel que o homem neste caso, como ministro de Deus, mudasse

inopinadamente de natureza e atuasse de forma diferente. Con-

cluímos, por fim, que nem por isto o cristianismo faliu, pois,

apesar de tudo, ele cumpre a sua função. As conclusões são, por-

tanto, otimistas e justificadas pelas seguintes razões:

1) O cristianismo é um fenômeno em evolução, portanto o

concebemos como um ideal de realização progressiva. Isto

significa que ele poderá fazer amanhã o que não fez até hoje,

superando o atual estado de hipocrisia e tornando-se verdadei-

ramente cristão. Não se trata, portanto, de falência, como pode

fazer pensar o passado, mas sim de uma futura realização da

ideia de Cristo.

2) A função do comunismo é levar o cristianismo de volta à

sua verdadeira posição, estabelecida por Cristo, fazendo-o reto-

mar o signo da cruz, que foi no passado substituído pela espada

e é hoje substituído pela luta política e pelo poder econômico.

Com isso, poderá surgir uma diferente organização eclesiástica

para o lugar da atual, ou então ocorrer uma substituição na atual,

trazendo homens diferentes, que viverão o cristianismo como

Cristo o concebeu, e não como uma adaptação distorcida.

3) Conforme sustentamos nas páginas precedentes, o cris-

tianismo – enfocado por nós no catolicismo – cumpriu e cum-

pre, apesar de tudo, a sua função civilizadora, pelo fato de

acabar obrigando os mais astutos, que gostariam de se apro-

veitar da ideia de Cristo, a ficarem ligados a ela, condição esta

que não pode deixar de educá-los à força, prendendo-os numa

férrea disciplina moral.

Assim se cumprem as leis da vida, que querem a evolução.

Portanto a paixão de Cristo não foi inútil, e o fenômeno da des-

cida dos ideais não deixa de se realizar. A falsificação alcança

somente quem a pratica, e não quem obedece a vontade de

Deus, que impulsiona o progresso. Os erros humanos podem re-

tardar o caminho de quem os comete, mas não podem deter a

marcha da evolução. Assim nem Cristo nem a vida se engana-

ram. No fundo, a corrupção do ideal é um mal inevitável, uma

vez que a sua descida ao nível humano é necessária, para tornar

possível o progresso dos menos evoluídos, sendo precisamente

no fato de permitir este progresso que reside a utilidade deste

mal. É assim que tudo está no lugar que lhe corresponde e se

move em direção à sua finalidade. A descida dos ideais, apesar

de tudo, funciona para a salvação do mundo.

Procuremos agora enfocar o problema do cristianismo, ob-

servando-o particularmente sob vários de seus aspectos, tanto

positivos como negativos, numa espécie de psicanálise. Isto

nos permitirá compreender como surgiram e funcionam suas

várias formas, bem como em relação a que finalidades biológi-

cas elas existem, sejam como produto consciente ou subcons-

ciente da necessidade de alcançar o objetivo mais urgente, que

é a conservação do grupo. Veremos que, se elas, perante a ló-

gica do ideal pregado oficialmente, são contradição absurda,

não o são, contudo, perante a lógica das leis da vida, que im-

põem a luta pela sobrevivência a qualquer custo. Veremos as-

sim, melhor ainda, como a sua simbiose com o mundo macu-

lou o ideal, submetendo-o às suas exigências materiais. Vere-

mos como funcionam as leis da vida e da descida dos ideais no

caso do cristianismo. Nosso procedimento permanece sempre

orientado por um sistema científico-filosófico completo, que

nos dá a razão de tantos fenômenos biológicos e psicológicos

inerentes ao funcionamento da vida.

Dissemos que a função das religiões é fazer descer os ideais

à Terra, introduzindo e antecipando assim, num plano evolutivo

inferior, as leis de um nível superior, para fazer a humanidade

ascender até ele. Daí deriva a importância biológica das religi-

ões, dada por esta sua fundamental função evolutiva. Então o

trabalho que as espera não é somente elevar a animalidade hu-

mana ao nível do ideal, mas também adaptar o ideal à animali-

dade humana. Estas adaptações são o preço a ser pago pelo Sis-

tema ao Anti-Sistema, para que este lhe permita entrar e perma-

necer no seu terreno: o mundo. Isto pode representar, em relação

ao plano superior, um processo de degradação por retrocesso in-

volutivo, mas, em relação ao plano inferior, significa um avan-

ço. Assim a superação da animalidade não se pode obter senão

por meio deste contato entre os dois termos. Mas eles são anta-

gônicos e, portanto, lutam entre si, cada um procurando destruir

e eliminar o outro. É assim que o primeiro ato do Anti-Sistema,

quando entra em contato com o Sistema, é tratar de emborcá-lo,

para submetê-lo aos seus fins terrenos. O ideal desce do Siste-

ma, para levantar em direção a ele o Anti-Sistema, e este res-

ponde, tratando de rebaixar o Sistema ao seu nível.

Assim nós explicamos o comportamento das religiões. Cris-

to não aceitou adaptações, recusando-se a pactuar com o mun-

do. Então este matou e expulsou Cristo, que foi viver em outro

lugar. Mas os seus ministros e seguidores, uma vez que deviam

continuar a viver na Terra, desceram para pactuar com o Anti-

Sistema. Desde que o inimigo deixasse, de alguma forma, o

ideal sobreviver no mundo, eles se adaptariam a conviver com

ele, pagando, com estas adaptações, o direito de habitar em casa

alheia. Assim o ideal, tratando de santificar o mundo, e o mun-

do, tratando de corromper o ideal, coabitam. A posição das re-

ligiões perante as leis da vida terrena é, portanto, clara. Explica-

se assim o fenômeno do não cumprimento dos princípios de

Cristo por parte dos seus representantes e seguidores.

Nem mesmo o cristianismo podia colocar-se fora das leis

biológicas vigentes. Se os anjos querem viver no inferno, de-

vem adaptar-se ao tipo de vida dos demônios. De outra manei-

ra, eles têm de ir embora. Eis o Evangelho reduzido a doses

homeopáticas. O que, na vida, encontramos do princípio do

desinteresse, da não resistência, do ama a teu próximo, etc.?

Eis um Evangelho diluído nos opostos métodos do mundo. Sob

aparências contrárias, domina o instinto gregário, o espírito de

grupo, a organização de interesses de casta. Esta é a realidade

subentendida que se presume e com a qual tacitamente se con-

corda. Se surge quem quer atuar a sério, então tem lugar o

choque, porque se expõe o mal-entendido, dado que os fatos

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86 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

não correspondem às teorias pregadas. Na realidade, o ideal de

Cristo está longínquo e a classe social que o representa consti-

tui, pelo contrário, um exército cuja luta se faz em primeiro lu-

gar pela própria sobrevivência. Estamos na Terra e, aqui, este é

o problema fundamental.

Se não quisermos nos perder no irreal, a posição na Terra

não pode ser colocada diversamente. Somos constrangidos a

isto pelas próprias leis da vida, que eliminam quem não as

obedece. Disto nasce uma série de consequências. Em primeiro

lugar vem a necessidade de possuir, ainda que o Evangelho

proponha o contrário. Esta contradição poderia autorizar al-

guém a criticar as religiões pelas ditas adaptações, utilizadas

por elas para não cumprirem o que pregam. Aqui fazemos tão-

só e imparcialmente uma observação. Esta acusação valeria se

fosse feita por amor à virtude por parte de quem a apresenta.

Mas que valor pode ter ela, quando é feita por quem a prega e

dela se serve somente para apanhar em falta os outros, ainda

que seja com razão, voltando contra estes a pregação por eles

mesmos realizada? Serão estas acusações feitas com uma fina-

lidade positiva, ou têm como objetivo apenas demolir um ri-

val? Eis que se recai no terreno da luta, e ninguém está isento.

Então o Evangelho é transformado por ambas as partes numa

arma de destruição, a ser empregada no duelo, exigindo do ou-

tro, em nome de princípios, aquilo que mais importa para am-

bos, ou seja, uma renúncia que, empobrecendo o seu antago-

nista, elimine-o da vida. Então, se a acusação de mentira se ba-

seia na mentira, que valor tem esta acusação? Isto pode nos

mostrar para que serve o ideal na Terra.

Não nos iludamos. Mesmo para o triunfo de uma ideia na

Terra, é necessário vencer no plano humano, porque, em nos-

so mundo, só o vencedor tem o direito de estabelecer a verda-

de. O vencido é considerado culpável. Então o ideal deve

submeter-se às leis da Terra. Depois da necessidade de possu-

ir, indispensável meio de domínio, há a necessidade de con-

servar esta posse. A eternidade dos princípios tende a se con-

cretizar numa eternidade de meios materiais, necessários para

sustentá-los na Terra. Disto nasceu em várias religiões o insti-

tuto da castidade do clero. Tendo em vista tais fins positivos,

fez-se dele uma virtude. No entanto sua verdadeira função é

eliminar as consequências econômicas da procriação. Evita-

se, assim, a perda da posse para o grupo familiar em detrimen-

to do grupo eclesiástico, eliminando a obrigação de se deixar

herança para os familiares, herdeiros legais, mantendo o pa-

trimônio na coletividade religiosa. Sem filhos, tudo fica den-

tro da organização eclesiástica. Assim fecham-se as portas de

saída, enquanto ficam abertas as da entrada.

Na Terra, os grupos de qualquer gênero são rivais e estão

em posições de guerra. Daí a necessidade de viverem coesos

como soldados, sem ter entre os pés o travão de pesos mortos

para arrastar, como são mulheres e filhos. Então o sexo torna-se

pecado, porque tem como resultado a procriação de rivais pre-

tendentes à posse. E isto principalmente no passado, quando,

sendo desconhecidos os métodos de controle da natalidade, não

havia outro meio senão a castidade para evitar a procriação.

Formou-se assim uma moral em função das leis da Terra,

onde a posse representa a base da vida. No passado, a conquis-

ta dos bens, mais do que com o trabalho, era feita com a vio-

lência, cuja utilização era proibida aos eclesiásticos. Portanto,

para lutar, não restava outro meio senão estas medidas. Por is-

so, devido a razões econômicas na luta para a conservação do

grupo, nasceu a exaltação da castidade. Esta é a razão pela

qual ela se tornou uma virtude, mesmo que biologicamente não

o seja. Poderia sê-lo, se tal renúncia fosse útil à vida, na medi-

da em que se realizasse em função de uma correspondente

conquista espiritual. Na realidade, porém, não é comum acon-

tecer que esta negação num nível baixo seja compensada por

uma afirmação em um nível mais alto. Sucede então que para a

maioria, composta de imaturos, tudo se reduz a uma limitação,

e não a uma criação e expansão. Assim, imposta à força por

outras razões, a castidade, em vez de levar à sublimação, leva

pelo contrário à hipocrisia ou, o que é pior ainda, às substitui-

ções e desvios patológicos. Tal virtude se baseia em necessi-

dades práticas, e a ideia da catarse evolutiva, como fato excep-

cional, não basta para justificá-la.

De tudo isto nasceu o espírito de sexofobia dominante do

catolicismo. Daí, compreende-se como, de um Evangelho nada

sexófobo, insistiu-se tanto na castidade, enquanto passa-se indi-

ferente por cima do assunto riqueza, para o qual o Evangelho

reserva as mais acerbas condenações. A razão disto reside no

fato de que o verdadeiro objetivo, ocultado no fundo, é a con-

servação do grupo, porquanto, para esta finalidade, a renúncia

ao sexo representa uma ajuda, enquanto a renúncia à posse é

um obstáculo. É por isto que tanto se insistiu em fazer da casti-

dade uma virtude, apresentando-a como uma sublimação.

Os dois impulsos, fome e sexo, são tão fundamentais, que

deles derivaram dois biótipos, cada um especializado em uma

destas duas funções. O primeiro dos dois é produtor de bens e,

na luta pela sobrevivência, está encarregado de defender a vi-

da. Por isso é egoísta, apegado à posse, interessado, calcula-

dor, mas é também trabalhador e criador, se bem que sobretu-

do para si, com egoísmo e avareza. Adora o deus dinheiro,

mas, em compensação, é casto, porque é frio. Em se tratando

de sexo, é virtuoso e puro.

O segundo tipo é consumidor de bens e, na luta pela sobre-

vivência, está encarregado de continuar a vida. Por isso é altru-

ísta, desprendido da posse, desinteressado, generoso, mas tam-

bém anda em busca do apoio material que o sustente, para que

ele possa cumprir o seu diferente trabalho. De fato, não sabe

produzir, mas sabe amar e proteger. No sexo, ele é um pecador,

mas, em relação à riqueza, é desapegado e virtuoso.

Temos assim uma divisão de trabalho, de aspectos e de juí-

zos. No fundo, o primeiro é do tipo masculino, dominador, en-

quanto o segundo é do tipo feminino, obediente. Ambos empe-

nhados, em duas formas diferentes, no mesmo trabalho da luta

pela sobrevivência. Vemos prevalecer o primeiro nos países

frios, onde essa luta é mais dura. Assim, ao Norte da Europa, o

cristianismo se tornou rígido protestantismo, que ao Evangelho

preferiu a Bíblia, código de um povo guerreiro. O segundo tipo

prevalece nos países cálidos, onde aquela luta é menos dura.

Assim, nas zonas meridionais, o cristianismo transformou-se no

catolicismo, que, de caráter mais complacente, à Bíblia preferiu

o Evangelho, baseado no amor.

Tudo isto constitui uma psicanálise das religiões, mostran-

do-nos uma realidade diversa, escondida sob as aparências.

Quem olha em profundidade não se deixa enganar pela vesti-

menta exterior. O que conta perante a vida é a realidade interi-

or, aquilo que realmente se sente e se faz, aquilo em que de fato

se crê, e não aquilo em que se diz crer. O mundo gosta de se

cobrir de ficções, no entanto elas nada mudam nem salvam.

Somente se soubermos ver aquilo que se oculta por trás destas

aparências, a verdadeira vida, poderemos compreender o que

está sucedendo no mundo.

◘ ◘ ◘

Um outro importante aspecto do cristianismo é representado

pelo fenômeno do materialismo religioso. Isto se deve ao fato

de que o homem, quanto mais primitivo é, tanto mais concebe

as coisas de modo materialista, em função do ambiente terres-

tre, segundo o qual construiu a sua forma mental. Este modo

tão comum de entender as coisas do espírito é devido ao grau

de involução em que se encontra a humanidade, situada mais do

lado do AS do que do lado do S, condição na qual o primeiro

ainda prevalece sobre o segundo. Então o ideal, para poder

existir no mundo, é abaixado ao nível deste, sendo submetido a

um retrocesso involutivo. Então a forma vence a substância, que

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 87

fica sufocada dentro dela. O homem, por comodidade, adapta

tudo a si próprio, trazendo tudo ao seu nível. Por isso, na Terra,

encontramos os atributos do S torcidos na forma de AS, de mo-

do que, nas religiões, ao invés da espiritualização da matéria,

vemos um processo de materialização do espírito, ao invés de

uma elevação do homem ao nível do ideal, vemos um rebaixa-

mento do ideal ao nível do homem.

O cristianismo, também ele, seguiu em alguns casos esta

tendência bem humana, pela qual as coisas do espírito são con-

cebidas em forma materialista. Foi assim que a vitória de Cristo

sobre a morte, com continuação da sua vida, foi entendida prin-

cipalmente no plano físico, como ressurreição do corpo. Mas

Cristo não era o corpo, e sim o espírito, que não estava morto e

que, tendo permanecido vivo, não tinha necessidade de ressus-

citar para continuar a viver. Como se vê, o problema da ressur-

reição de Cristo foi apresentado em forma totalmente materia-

lista, identificando Cristo com o seu corpo, como se fosse ne-

cessária a sobrevivência deste para que ele pudesse ficar vivo,

quando na verdade a vida do espírito, na qual consiste verdadei-

ramente o ser, é independente da morte do corpo. Assim foi en-

tendido o fenômeno da sobrevivência de Cristo, esquecendo-se

que o seu verdadeiro ser é espiritual, e não físico.

O que desejamos ressaltar aqui não é a negação da ressur-

reição de Cristo, mas sim a afirmação de que não havia nenhu-

ma necessidade da sua ressurreição corpórea para que Ele pu-

desse permanecer vivo, como era necessário para ser vitorioso.

Mas esta sobrevivência material era uma necessidade psicoló-

gica na mente dos seus seguidores, para que eles pudessem ter a

certeza, indispensável para eles, de que Cristo não estava mor-

to, mas ainda permanecia vivo; de que Ele não tinha desapare-

cido, mas estava presente para sustentá-los. Para quem vive no

espírito, esta ressurreição física passa para um segundo plano,

porque se refere a um acessório transitório da verdadeira perso-

nalidade, que é eterna. Mas a lógica de uma mente materialista

é diferente. O homem quer primeiramente satisfazer as suas ne-

cessidades psicológicas. Nós mesmos não choramos um defun-

to como morto? Assim, para os discípulos, Cristo era, antes de

tudo, o homem que tinham visto morrer. Para que continuasse

vivo, era necessário, portanto, fazê-Lo ressuscitar como corpo.

Os próprios hebreus, matando o Seu corpo, haviam desejado e

acreditado poder assim matar Cristo, mas não fizeram outra

coisa senão libertá-Lo de uma pesadíssima vestidura. Porém,

destruída Sua veste, a qual se acreditava ser o próprio Cristo,

era necessário Ele ressuscitar vestido com ela, para que essa

gente pudesse acreditar que Ele estava vivo ainda e voltava para

o Céu com o seu próprio corpo.

Com a mesma forma mental materialista foi concebida tam-

bém a Eucaristia, interpretando-se em sentido concreto as pala-

vras de Cristo e, com isto, querendo dar-lhe um corpo, como se

Ele, sem esta forma material, não pudesse existir entre nós. Eis

a matéria trazida de novo a primeiro plano. É evidente que

Cristo não necessita dela para estar presente entre nós. Quem

tem necessidade dela é o homem, que não sabe conceber a exis-

tência sem uma forma material. Claro que toda forma mental

quer estar atendida nas suas exigências, no entanto correspon-

deria bem mais à verdade libertar-se desta ideia materialista de

que, para Cristo poder estar presente, seja indispensável uma

forma material; de que Ele possa estar presente somente na hós-

tia, sendo-lhe proibido estar fora dela. Com isto, não queremos

dizer que Ele não esteja na hóstia, porquanto isto é necessário

para satisfazer a necessidade da mente humana de localizar o

espírito, reduzindo-o na dimensão espaço. Dizemos, isto sim,

que o espírito está livre destas materializações e que Cristo está

também presente em qualquer lugar onde haja uma alma capaz

de compreendê-Lo e amá-Lo.

Cristo, tendo entendido tal necessidade psicológica do

homem, ofereceu pão e vinho como formas materiais necessá-

rias à concentração do pensamento, para facilitar assim a sin-

tonização espiritual.

Interpretar este fato como uma transformação do pão e do

vinho em carne e sangue, pode gerar mal-entendidos. Dizemos

isto devido à forma mental materialista, que chegou a procurar

em laboratório a prova desta transformação. Tratando-se de fe-

nômeno espiritual, tal intento foi um verdadeiro absurdo, en-

contrando, portanto, um resultado negativo.

É necessário, no entanto, reconhecer que a ideia tem de

servir à maioria, da qual não se pode exigir além de um certo

limite. A espiritualização é progressiva, tal como a evolução,

da qual ela faz parte. Se a religião quer cumprir a sua missão,

deve adaptar-se às necessidades da maioria. Ora, não se pode

negar que, para os milênios passados, algum progresso foi rea-

lizado. As relações entre homem e Deus eram antigamente

concebidas apenas antropomorficamente, refletindo a relação

entre servo e amo, com o primeiro procurando conquistar favo-

res do segundo através de ofertas e sacrifícios. No princípio,

estas ofertas eram vítimas humanas, escolhidas provavelmente

com a intenção de saciar a fome de um deus antropófago. De-

pois sacrificaram-se animais, que eram consumidos pelos mi-

nistros de Deus. Com o cristianismo, o sacrifício tornou-se

simbólico, sem derramamento de sangue, mas ainda ligado à

matéria. Com a evolução, este processo de purificação conti-

nuará, espiritualizando-se ainda mais.

Mas eis que, por isso, o valor da eucaristia não cessa. Basta

mantê-la no seu terreno, que é espiritual, e não pretender fixá-la

em formas materiais. Então a existência de uma vestimenta ex-

terior na dimensão espaço, perceptível aos sentidos como ins-

trumentos do espírito, continua sendo uma coisa necessária,

mas somente como meio para cumprir uma função espiritual.

Não estamos dizendo heresias. Nesta nossa época de atuali-

zação, já há teólogos admitindo que, quando se fala da misteri-

osa mudança do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo

durante a missa (“Mysterium Fidei”), a transformação essenci-

al, mais do que na substância dos elementos, reside no signifi-

cado. Então a função da hóstia não é tornar-se carne, mas sim

constituir um ponto de convergência psicológica, no qual o

crente focaliza e concentra sua fé. E é imenso o poder criador

da fé. A forma mental humana, instintivamente materialista,

tem necessidade destes apoios no sensível e concreto, e é isto

que lhe é concedido dessa maneira. Mas é necessário dar a eles

o seu verdadeiro valor, que é ser um meio para fins espirituais,

e não transformá-los naquilo que não são nem podem ser. Es-

tamos no terreno somente espiritual, que é de substância men-

tal. Neste plano existem as coisas em que cremos. É uma exis-

tência feita de pensamento, que acaba depois por tornar-se ma-

terial, porque a semente da realidade exterior está no interior.

Nada disto exige qualquer deslocamento na forma exterior.

Ela pode ficar tal como é, com o valor de forma, sem assumir

exclusivamente o de substância. A função criadora do ato mate-

rial da comunhão se baseia então, mais do que na transubstan-

ciação, na formação interior da imagem de Cristo, que pode as-

sim, localizando-se na hóstia, tomar forma mental e chegar a

existir no plano do espírito. Apoiando-se neste centro de focali-

zação psicológica, canaliza-se e, com a repetição, estabiliza-se

uma corrente de pensamento orientada em direção a Cristo, cu-

ja figura, assim, é construída como uma realidade interior da

alma do fiel. Tudo isto faz parte da técnica construtiva da per-

sonalidade por meio da aquisição de novas qualidades, confor-

me o método dos automatismos. Assim o fenômeno é visível

em toda a sua estrutura e funcionamento, sendo possível desse

modo, de uma forma racional e aceitável para todos, observar-

se como ele alcança os seus fins.

Deste modo, então, o fenômeno espiritual da união com

Cristo pode assumir o significado positivo da identificação com

um modelo de vida superior, fato que não tem mais o aspecto,

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88 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

como pode ter para alguns, de fantasia e de místico, mas que

representa o fenômeno biológico da maturação evolutiva, de ca-

ráter positivo, inegável pela ciência. Pode-se chegar assim, com

esta técnica psicológica, a assumir formas de vida mais eleva-

das, fazendo delas um meio para realizar a evolução, anteci-

pando-a com a descida dos ideais. Trata-se então não só de uma

prática religiosa, mas também de um trabalho ascensional, que

se cumpre apoiando-se numa posição biológica mais avançada,

representada pelo modelo ideal. Trata-se de um problema que

não somente diz respeito às religiões, mas também é fundamen-

tal para o progresso da vida. Na sua vastidão, esta questão

exorbita os limites de uma regulamentação humana em função

dos fins de uma determinada religião ou de uma certa casta

eclesiástica. Para as almas prontas, a imensidão de Cristo não

resiste mais dentro do cerco das formas, então explode e as

transborda, rompendo os diques postos para as massas pela me-

cânica das religiões. Assim, por cima de todos os poderes hu-

manos e das limitações estabelecidas pelos seus representantes,

é o puro poder do espírito que triunfa com Cristo.

Pode parecer que estas observações se propõem a destruir

os velhos castelos da fé, no entanto elas tem uma finalidade

construtiva, tendendo a substituí-los por algo sólido, baseado na

realidade biológica, num momento no qual esses castelos estão

caindo por si só. A época da fé cega e da religião por sugestão

terminou. Hoje, o que não é claro e comprovado é deixado de

parte. Estes escritos, além disso, não estão dirigidos às classes

sociais que só pensam por sugestão. Eles não são perigosos,

porque se dirigem, pelo contrário, às camadas sociais superio-

res, que pensa, avalia e tem o dever de compreender, para as-

sumir as próprias responsabilidades.

Do seu lado, a classe sacerdotal, apesar de tudo, soube

cumprir a sua função, que era fazer descer e fixar na Terra o

ideal de Cristo, embora apenas na proporção em que a vida po-

dia absorvê-lo nessa sua fase de evolução. Portanto o objetivo

que, durante aquele período de tempo, devia-se alcançar, foi

atingido. Não há, pois, razão para se escandalizar, porque o re-

sultado, devendo manter-se proporcional ao próprio grau de

evolução, não podia ser diferente. Uma vez que a consciência

estava em formação, não importava que o indivíduo fosse usa-

do como instrumento através do inconsciente, pois, indepen-

dente da forma como se tivesse de resolver o problema, o obje-

tivo era resolvê-lo. Assim se deixou funcionar o espírito de

grupo, quando isto servia para mantê-lo de pé, atendendo assim

a necessidade de garantir a presença do ideal na Terra. Deste

modo, a vida permitiu que o grupo ficasse envolvido em su-

perstição, fanatismo, dogmatismo e sectarismo, pois, de qual-

quer modo, ele se libertaria no futuro destas escórias. Apesar de

tudo, foi sendo realizado um trabalho de evolução, ainda que

num baixo nível biológico. Um ideal cristão íntegro, aplicado

de repente, haveria queimado tudo e, sendo desproporcional à

receptividade humana de então, teria sido destrutivo ao invés de

construtivo. Ele devia colocar-se a serviço do homem, a fim de

que o homem se pusesse a seu serviço. Para que este possa su-

bir, o ideal deve descer, porque, embaixo, o mundo também

tem as suas leis e exigências, assim como existem no alto.

Assim o homem faz na Terra construções a serviço do ideal,

mas as utiliza também a seu serviço, habitando dentro delas e

fazendo ali o que quer. Tais posições se fixam e se codificam

em leis, instituições e hierarquia, com prerrogativas por toda a

vida, inseparáveis de lugares e pessoas. A vida tolera tudo isto,

enquanto lhe sobra uma margem útil para os seus fins evoluti-

vos. Mas, quando a matéria substitui o espírito e o mundo che-

ga inclusive a sufocar o ideal, porque o hedonismo do grupo

prevalece sobre o cumprimento da sua função, então a vida, na

sua marcha progressiva, destrói aqueles que de instrumentos se

tornaram obstáculos, irrompendo e arrastando-os. Se as posi-

ções, para perdurarem, foram indissoluvelmente ligadas às pes-

soas e não há outro modo de se libertar delas, então, junto com

elas, liquidam-se também essas pessoas. O que garante a conti-

nuação de uma posição é o cumprimento de uma função pela

qual ela existe, e não a sua inamobilidade. A vida sabe varrer

bem tudo o que vai contra os seus fins. Isto sucedeu com a mo-

narquia e a aristocracia, por meio da Revolução Francesa e de-

pois com a Russa, podendo suceder também com qualquer ins-

tituição que resista à vida, cuja inabalável vontade é avançar.

Dada a técnica da evolução, o grupo eclesiástico não pode

deixar de se encontrar suspenso entre o divino e o humano, es-

tando inserido dentro do dualismo ideal-mundo e envolvido na

luta entre estes dois termos opostos, na qual deve empenhar-se

para vencer e progredir. Para sobreviver na Terra, o grupo tem,

no entanto, de defender a sua autoridade e posições terrenas,

mesmo que, assim, contradiga e se oponha ao ideal. A luta do

anjo é para transformar a besta em anjo. A luta da besta é para

transformar o anjo em besta. A lei do amor deve conseguir im-

plantar-se no seio da lei do egoísmo, para ser praticada por

quem pertence a esta segunda lei. Em semelhante ambiente –

uma vez que os ministros de Deus são frutos desse ambiente –

não se podia construir uma religião diferente. Era necessário uti-

lizar o material humano existente, pois não se podia importá-lo

do Céu. De resto, com uma super-raça, o ideal já estaria realiza-

do. Então ele não teria mais uma função civilizadora a cumprir,

ao contrário do que sucede quando desce a um nível inferior. Tal

é a engrenagem das leis biológicas e da sua técnica funcional.

Uma vez que se queria a permanência da ideia de Cristo na Ter-

ra, tinha-se de degradá-la, para adaptá-la a tal ambiente, porque,

sem um retrocesso involutivo, o ideal não é aplicável em nosso

mundo. Eis o que significa tomar corpo na forma concreta de

uma religião. Degradação do ideal, mas sublimação da animali-

dade humana, para se encontrarem no meio do caminho, que é

de ideal degradado e de animalidade sublimada, uma posição

híbrida, que parece contradição e mentira, mas que também é

aproximação de extremos opostos e trabalho de transformação

do mais baixo, a fim de que ele alcance um nível mais alto.

Assim, em vez da elevação do humano até ao divino, fre-

quentemente chegou-se só ao abaixamento do divino até ao

humano. Na Terra, o ideal não podia tornar-se senão um ins-

trumento de luta. Aqui, isto é quase uma necessidade. Deus es-

tá no alto, longínquo e invisível. O mundo está próximo e tan-

gível, com as suas exigências terrenas materiais. A lei da vida

é utilizar tudo para a própria conservação. Para ela, no nível

humano, é lógico que o ideal deva ser usado primeiramente

como artifício para viver na Terra, e não como esforço para

subir aos céus. No plano animal-humano, o ideal – sendo uma

exigência para se viver segundo as leis de outros mundos, de-

masiado diferentes do nosso – torna-se um absurdo e uma lou-

cura. Aqui, a existência é luta para viver e a sublimação é uto-

pia perigosa. É mais fácil defender-se do que subir. Não há

margem para superações evolutivas.

Se quisermos fazer uma ideia da estrutura do biótipo situado

no polo oposto, o do espírito, observemos a figura de Cristo.

Nela, encontramos qualidades de doçura feminina, mas não ao

nível sexual, e sim no da bondade e do amor espiritual. Encon-

tramos também qualidades de energia masculina, mas não ao

nível de força, para submeter egoisticamente, e sim no da po-

tência de espírito, para ajudar, qualidades que estão no plano do

super-homem, e não do homem. As reações de Cristo foram de

fato coerentes com essa Sua natureza. Daí o mal-entendido com

seus contemporâneos. Judas atraiçoou Cristo porque estava

provavelmente revoltado, pelo fato de ver que o seu chefe, ao

invés de rico e poderoso, como ele exigia que fosse, era somen-

te bom, o que, para ele, significava ser inepto. Também os cru-

cificadores de Cristo lhe diziam: “Se é verdade que és podero-

so, salva-te. Se és o filho de Deus, desce da cruz!”. O mal-

entendido é o mesmo. Para todos eles, o valor e o poder que

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 89

Cristo se atribuía devia consistir numa prova de força no nível

humano terreno. Para eles, a potência espiritual não tinha senti-

do, porque não servia para nada; era loucura de sonhadores.

Eles pensavam: de que te serve seres Deus, se agora te deixas

matar? Eles não podiam compreender esse outro tipo de poder

super-humano, que do vencido de uma hora e de um pequeno

grupo de homens fez o vencedor nos milênios e o chefe espiri-

tual da parte mais civilizada da humanidade.

Somente o que serve para viver vale no mundo, o qual, por

isso, transforma tudo, para sujeitar tudo às suas necessidades.

Também por isso Cristo foi entendido sob duas formas diversas

pelas duas raças que o aceitaram. Temos com efeito o tipo de

cristianismo latino, dado pelo catolicismo, e o tipo de cristia-

nismo anglo-saxônico, dado pelo protestantismo. Assim Cristo

foi entendido em forma diferente pelos dois grupos, segundo a

natureza de cada um. O mesmo sucedeu com o comunismo, que

se dividiu em dois, o russo e o chinês, cada um dos dois povos

entendendo-o e usando-o a seu modo, para os seus próprios fins.

A contradição entre ideal e realidade desaparece quando se

entende o ideal como uma meta ainda a alcançar, e não como

um estado já realizado, que deveria existir. Então a religião já

não é contradição, mas sim um processo evolutivo em ação,

aproximando-se continuamente de Cristo. A quem está mais

avançado parece não cristão quem se encontra mais atrasado, ou

seja, mais longe de Cristo. Mas pode também crer-se bom cris-

tão quem segue apenas algumas práticas exteriores, sem suspei-

tar o que significa ser cristão. Cada um entende Cristo segundo a

própria natureza e amplitude de visão, aproximando-se da reli-

gião conforme as suas capacidades e utilizando-a a seu modo,

alguns para santificar-se, outros para mentir e desfrutá-la, uns

para salvar-se e outros para perder-se. Cristo pode ser usado

também em sentido contrário, para descer, ao invés de para su-

bir. Há fervorosos praticantes e crentes ortodoxos que, substan-

cialmente, são piores que muitos ateus honestos e sinceros.

Para compreender o cristianismo, é necessário entendê-lo

como um edifício não já feito, mas sim em via de construção,

como uma perfeição a alcançar, um ideal em marcha, um plano

de trabalho ainda a cumprir, cuja realização está situada no fu-

turo. Esse ideal enxerta-se gradualmente na vida. Se, atualmen-

te, ainda triunfa a imperfeição humana, caminha-se no entanto

para a perfeição evangélica. Se ainda predomina o animal hu-

mano, o anjo o espera no futuro. O valor do cristianismo é dado

pelo grau de concretização do ideal alcançado na Terra. Ele de-

ve ser julgado em função do trabalho evolutivo que ele já cum-

priu e do trabalho evolutivo que ele se demonstre capaz de

cumprir no futuro. Assim, contradições, adaptações e enganos

se explicam e se justificam perante as leis da vida.

Pode-se então dizer que o cristianismo, mais do que uma re-

alidade, é uma esperança. No estado atual, as massas aceitam o

ideal, porque o colocam a serviço das suas necessidades. De

Cristo a vida tomou o quanto lhe servia para satisfazer a sua

necessidade de evoluir, que constitui precisamente a sua função

fundamental. Deste modo, o mundo adaptou Cristo a si como

melhor lhe convinha. Mas, com isso, Cristo, por sua vez, entrou

e instalou-se no mundo, para adaptá-lo a si e transformá-lo a

seu modo. Sucedeu então que o mundo, enquanto tratou de

adaptar Cristo para seu próprio uso, teve, no entanto, de trans-

formar-se um pouco, para avizinhar-se Dele, figura junto à qual

achou que tinha de viver. Esta coabitação na Terra obrigou a se

avizinharem os dois termos, permitindo deste modo que se

cumprisse a função do ideal, que é realizar a evolução.

Não há dúvida que a vida alcança este objetivo. A semente

se adapta ao terreno, mas o utiliza também para se desenvolver.

Entre ideal e mundo há luta, um para vencer o outro, mas há

também colaboração com uma finalidade comum, que é evolu-

ir. Para que possam exigir do homem o esforço de ascender pa-

ra formas superiores de vida, os ideais devem satisfazê-lo em

suas exigências atuais; e para que possam induzi-lo ao esforço

de criar um futuro maior, devem ajudá-lo a viver no seu presen-

te. Em resumo, Cristo devia adaptar-se e oferecer também uma

utilidade imediata, que satisfizesse um pouco ao mundo. Para

que seja possível a redenção, o evoluído deve descer ao nível

do involuído. Assim Cristo desceu verdadeiramente, avizinhan-

do-se do homem e permitindo que este o utilizasse para si a seu

modo. Isto é intoxicação do ideal, mas é também uma forma de

casamento com ele. Então tudo que é evoluído e, por isso, posi-

tivo, poderoso e fecundo vai para diante e arrasta consigo tudo

que é involuído e, portanto, negativo, débil e infértil, para fe-

cundá-lo e levá-lo mais para frente. Temos assim o iniciador e

os seus seguidores, menos evoluídos.

Neste jogo de adaptações pode-se ver como o homem se sa-

tisfez, tratando de utilizar a Cristo:

1) A primeira satisfação que o homem procurou em relação

a Cristo foi matá-Lo, mas não sem antes torturá-Lo. Para elimi-

nar um inimigo, basta matá-lo. Mas aqui há um desabafo de sa-

dismo, próprio da natureza humana. Isto, até tempos mais re-

centes, foi feito em nome da justiça. A sociedade tem direito à

legítima defesa e, por isso, à eliminação ou isolamento dos cri-

minosos, mas não tem o direito de se tornar cruel, o que é ape-

nas prova de ferocidade. No passado se fazia das execuções um

espetáculo público, com o pretexto de que, assim, adquiririam

uma função educativa exemplar.

2) Cumprido o primeiro disparate, a humanidade, durante

mil anos, gozou com a sádica recordação. Que pode haver de

espiritual e de elevação para a alma na reconstrução mental de

tal tortura física? Não se pode compreender! Não obstante, a li-

teratura religiosa aperfeiçoou em todos os detalhes tais descri-

ções. Isto mostra em que forma negativa o homem vê o triunfo

do espírito, apresentando-o mais como perseguição ao corpo do

que como elevação da alma. Estamos nos planos inferiores da

evolução, nos quais o subconsciente se manifesta, afirmando

que “a tua morte é a minha vida” e, com isso, demonstrando

que o triunfo vital está precisamente na morte alheia.

3) A paixão de Cristo foi utilizada para alcançar outra fina-

lidade por parte dos cristãos, que, proclamando-se inocentes,

desabafaram então seu instinto de agressividade, lançando so-

bre os outros a culpa do delito de terem crucificado Cristo –

sejam eles romanos pagãos ou hebreus deicidas – pois tratava-

se de inimigos do próprio grupo, uma vez que seguiam outra

religião. Mas não pertencem acaso todos à mesma humanida-

de? Culpar os outros não tira a própria responsabilidade, tanto

mais que, na Idade Média, todos, mais ou menos, fizeram ain-

da pior. É sempre o mesmo homem que, com os mesmos ins-

tintos, faz as mesmas coisas.

4) A paixão de Cristo foi utilizada ainda de outra maneira,

servindo para explorar o esforço alheio, a fim de gozar de vanta-

gens não merecidas, porque não ganhas com o próprio esforço. É

certo que, biologicamente, isto pode ser justo, mas somente no

nível do involuído, como meio para obter, em benefício próprio,

a maior utilidade com o mínimo esforço. Mas dado que Cristo, a

parte ofendida, cala-se, não existindo da Sua parte reação para

temer, não há qualquer razão para deixar de se aproveitar. Assim

formou-se e permanece o mito da redenção obtida gratuitamente,

segundo o qual Cristo, com a sua paixão, pagou nossos pecados,

de modo que o homem, salvando-se sem esforço, ficou comoda-

mente redimido pelas dores dos outros, em vez de o ser pelas su-

as próprias. Além de conveniente, é prova de habilidade saber

utilizar, com esta finalidade também, a infinita bondade de Deus,

que se prestou amavelmente ao jogo, enviando o Seu único filho,

para colocá-Lo a serviço do homem, que certamente merecia is-

to, por representar o mais alto produto e objetivo da criação. Que

importa se, pelo contrário, a justiça exige que os erros de cada

um sejam pagos com as dores de cada um, e não com as dos ou-

tros, quando este segundo sistema é muito mais cômodo?

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90 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

Eis que o homem colocou Deus a seu serviço, encarregan-

do-O do trabalho de pagar seus próprios débitos, para polir a

sua a alma. Daí se depreende o tamanho do egoísmo, do orgu-

lho e do espírito de domínio que está aninhado dentro do sub-

consciente humano. Lamentavelmente, para o homem, as coi-

sas não são como ele acredita que elas sejam. Deus deixa tudo

andar. Mas isto não evita que, na realidade, quem erra pague,

porque isto é necessário para aprender, não havendo escapató-

rias. Cristo não sofreu para pagar em nosso lugar, mas sim pa-

ra nos mostrar, com o seu exemplo, como cada um de nós –

cada um com a parte que lhe diz respeito – deve pagar com a

sua própria paixão. Cristo nos fez ver qual o caminho que de-

vemos percorrer para nos redimirmos. Por isso devemos imitá-

lo, fazendo nós aquilo que ele fez, e não só contando Sua vida

ou tratando de explorá-Lo.

◘ ◘ ◘

A ideia de Cristo é uma semente viva, enxertada no sangue

da humanidade, querendo crescer e, dentro desta, tornar-se

grande, para ser assimilada. Tratemos agora de ver o lado posi-

tivo do problema, observando quais são os elementos construti-

vos a favor da realização do ideal cristão na Terra. O homem,

encontrando-se embaixo, oferece as resistências; o ideal, estan-

do no alto, oferece os impulsos para o progresso. Enquanto o

homem se preocupa em explorar o ideal, este, pelo contrário,

tende a se apossar do mundo, para civilizá-lo.

A casta sacerdotal está situada entre as duas tendências,

numa posição intermediária entre o ideal e o mundo. Nos perí-

odos ascensionais, com predominância do espírito, esta casta

cumpre a sua função no sentido da ascensão; nos de retrocesso

involutivo, com predominância da matéria, ela decai e se cor-

rompe. Quando a percentagem de conspurcação do ideal supe-

ra os limites que se podem suportar, aquele organismo se des-

faz e acaba. Então, como já mencionamos, a liquidação é au-

tomática. Quando uma instituição não serve mais aos fins da

vida, é por esta abandonada, como estando à margem da lei,

para que morra. Quando, no grupo religioso, o ideal fica só

como um pretexto para finalidades terrenas, desaparecendo as-

sim a sua função evolutiva, então esse grupo, biologicamente,

já não tem mais razão de existir, devendo, portanto, ser liqui-

dado. Tem direito de viver só quem satisfaz as exigências da

vida, entre as quais a fundamental é evoluir.

Ora, o cristianismo quis fixar-se em verdades absolutas,

procurando assim apoiar-se em soluções alcançadas de um mo-

do definitivo, a respeito das quais as possíveis objeções já ti-

nham sido todas previstas. Depois, para evitar surpresas, a reve-

lação foi definitivamente encerrada, de modo que, como resul-

tado, já não se podiam destruir as posições terrenas. No entanto

o tempo continuou caminhando e o pensamento avançou, de

maneira que a imobilidade do cristianismo serviu somente para

torná-lo superado. O castelo fechado, que devia ser uma defesa,

tornou-se assim uma prisão. Deste modo, a Igreja ficou prati-

camente paralisada dentro daquelas suas soluções, que, apesar

de serem aceitáveis em sua época, por estarem proporcionadas

aos tempos, já não o são mais hoje, devido ao desenvolvimento

mental moderno, perante o qual, tratando-se de verdades eter-

nas, elas deviam permanecer verdadeiras. Assim, a Igreja ficou

petrificada, sem elasticidade para avançar, pois não podia torcer

a realidade dos fenômenos, para fazê-la coincidir com o modelo

fixado, nem transformar o modelo, para fazê-lo coincidir com

essa realidade. A verdade é progressiva, move-se e caminha. O

dogma é sólido e garante as posições de longa duração, sonho

dos acomodados, mas é estático e não caminha, o que, num

universo em marcha, significa ficar abandonado para trás.

Mas quem conhece as leis da vida sabe que o ideal não pode

morrer, pois ele realiza uma função evolutiva. Se o instrumento

humano ao qual estava confiado esse dever se torna inadequado,

então acaba sendo liquidado e substituído. Assim, mesmo sendo

executada por outro, aquela função permanece, porque ninguém

pode deter a evolução. A salvação da ideia de Cristo está, pois,

garantida. As próprias leis da vida o exigem. É necessário ape-

nas ver a qual grupo ela será confiada. Aos conservadores de

posições isto poderá parecer um cataclismo destrutivo, mas sig-

nifica, pelo contrário, a salvação espiritual. É neste sentido que

as forças do inferno não podem prevalecer. Não importa o que o

homem venha a fazer, a vitória é de Cristo. A maior arma da

Igreja para a sua própria defesa é realizar a sua função espiritual,

conforme o comando de Cristo e as leis da vida.

Se a Igreja se decidiu hoje a formar uma frente única reli-

giosa, reaproximando-se dos seus velhos inimigos, chamando-

os agora de irmãos separados, isto se deve ao fato de que, pe-

rante um inimigo comum, que é hoje o comunismo, as inimi-

zades particulares desaparecem. Isto não significa que a luta

se transforme em amor, mas sim que ela se transfere na dire-

ção de outro objetivo, sendo lançada contra um inimigo co-

mum maior, em vez de contra os rivais. É por isso que, hoje,

procura-se a unificação. Mas trata-se apenas de uma estratégia

de guerra. Os inimigos aceitam-se como amigos somente para

fazer força contra outro inimigo maior. Isto são apenas pre-

cauções humanas para defender as próprias posições. Porém o

programa da vida é a evolução, que, na fase atual, significa

espiritualização, fenômeno realizado pela descida dos ideais,

sendo dever das religiões executá-lo.

É muito provável que o catolicismo deva dar um grande

passo em frente, na direção de sua espiritualização, porque so-

mente nisto pode consistir a sua salvação. Trata-se de um pro-

cesso contínuo e gradual de desarticulação das superestruturas,

para reencontrar viva, no fundo das formas, a substância. Tal-

vez um esclarecimento de posições possa levar a uma distinção,

mais além das aparências, entre os seguidores de Cristo e os

administradores da sua propriedade terrena; entre quem é ver-

dadeiramente crente, mesmo não sendo ortodoxo ou praticante,

e quem, por ser exteriormente devoto, amigo do clero e do par-

tido eclesiástico, passa por religioso. Ser cristão é outra coisa,

que não depende necessariamente do indivíduo ser católico no

sentido ortodoxo. Uma coisa é pregar, outra é praticar; uma

coisa é ser, outra é aparentar. Perante Deus, fazer os outros cre-

rem que sejamos santos não serve para nada. O valor não está

no reconhecimento exterior, mas sim nas qualidades individuais

interiores. As glorificações oficiais servem perante o mundo,

mas bem pouco perante Deus. Pode-se formalmente ser ótimo

católico ou crente de qualquer religião, mas substancialmente,

péssimo cristão. O grupo necessita de seguidores para se fazer

forte, mas isto é coisa do mundo. Pode estar mais perto de Deus

um condenado do que a autoridade pela qual, em nome de

Deus, ele é condenado. A consciência é tremendamente respon-

sável, mas é livre, estando acima de qualquer coação humana.

O mais importante numa religião não é o poder econômico,

político e social do grupo, mas sim e sobretudo as experiências

que se tem de Deus. Se aparece um santo, ele é acolhido com

desconfiança, em razão da chamada prudência. Ao não se com-

prometer com juízos, a autoridade pensa, antes de tudo, em sal-

var-se a si própria. Às vezes condena, depois parece que apro-

va, mas não se decide a reconhecer o santo, senão quando che-

ga o consentimento unânime, que a liberta de qualquer risco de

errar. Uma vez tendo-se posto assim em segurança, santifica-o,

para a glória do próprio grupo, mas apenas quando o santo está

bem morto e não podem mais surgir surpresas, com fatos no-

vos. Tudo está inteligentemente regulado.

Mas isto não impede que, particularmente, o indivíduo pos-

sa ter experiência de Deus e tornar-se santo por sua conta, se

ele desejar. É um problema de foro íntimo. No entanto é lógico

que ele não pode pretender da autoridade um reconhecimento

oficial, que a implica em responsabilidade. Então é natural, por

parte da autoridade, uma legítima defesa contra quem desejaria

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 91

que ela se comprometesse para vantagem dele, deixando à auto-

ridade o risco do erro. Ora, apenas o fato de basear a própria

santidade sobre reconhecimentos humanos significa que não se

é santo nem se tem verdadeiras experiências de Deus. Muito

pelo contrário, significa que se procura a glória do mundo, pe-

dindo a proclamação da Igreja, porque só ela dispõe dos meios

materiais para referendá-la. Portanto, se queremos verdadeira-

mente nos fazer santos, devemos fazê-lo em silêncio e a sós,

perante Deus, sem dar conhecimento disto a ninguém e sem ex-

citar o vespeiro dos juízos humanos.

A salvação da Igreja está na sua purificação. E este é um

processo progressivo, exigido pelas próprias leis da vida. Na

Idade Média, a Igreja estava no nível terreno do império. De-

pois foi libertada do poder temporal. E a evolução irá libertá-

la do poder econômico e político. Assim, ela se avizinhará

continuamente da sua forma mais pura, que está no poder ex-

clusivamente espiritual. A imprensa anuncia uma diminuição

do número das vocações religiosas, de 152.000 sacerdotes, em

1871, para 50.000 em 1965, enquanto, no mesmo período de

tempo, a população duplicou. Este fato coincide com a perda

do poder temporal, que, antigamente, representava uma atra-

ção para o sacerdócio, o qual, reduzindo-se a uma carreira as-

sociada à correlativa posição econômica, era frequentemente a

base do surgimento de muitas vocações.

Para o espírito, porém, este fato é um progresso. A perda em

quantidade, como número, pode estar a favor da qualidade, sig-

nificando menos elementos, porém mais selecionados. O resul-

tado pode ser uma religião mais perfeita. As dificuldades afas-

tam os exploradores do ideal, e o espírito não poderá senão ex-

trair benefício disso. Talvez uma perseguição comunista execu-

te essa operação, para purificar e salvar a Igreja espiritual. O

cristão será cristão de verdade, e muitos, que hoje se classifi-

cam de católicos, irão afastar-se. Não servirá mais então o jogo

da hipocrisia, nem se tratará mais de recorrer a ele. A religião

será um fato íntimo, mas sentido de fato, não sendo classificá-

vel através do que se possa ver pelo culto externo, nem realizá-

vel com exibicionismos. Quando enganar não trouxer mais van-

tagens, ninguém mais será levado a fazê-lo. Então a alma, colo-

cada perante a dor, saberá sacudir o fácil ceticismo moderno e,

na profundidade, deverá reencontrar Deus.

Para compreender de fato o presente estado, é necessário

dar-se conta de qual é a forma mental do homem atual. E a re-

ligião é obrigada a respeitá-la. O motivo, tanto na virtude co-

mo no arrependimento, é o egoísmo. A moral se baseia na san-

ção final do paraíso ou do inferno, resumindo-se no cálculo da

utilidade ou dano, em termos de alegria ou de dor. O cálculo é

fácil. O pecado é agradável, porque satisfaz a própria natureza

inferior, razão pela qual é praticado. A renúncia para subir é

penosa, razão pela qual se foge dela. Então não se aceita prati-

cá-la senão em vista de uma satisfação que compense o sofri-

mento enfrentado e a satisfação perdida para seguir a virtude.

É preciso que a alegria a ser conquistada seja maior do que

aquela que se perde. Dizia São Francisco: “Tanto é o bem que

espero, que cada pena me deleita”. Não se renuncia ao menos,

a não ser para conquistar o mais. Fugir da dor, buscar o prazer,

ganhar cada vez mais, esta é a psicologia humana e também a

lógica da vida. Nas religiões, o jogo é mais vasto, chegando

mais longe, transportando-se a prazeres espirituais superiores

na outra vida. No entanto o cálculo é o mesmo, baseando-se

sempre na presunção de um lucro.

Isto implica uma consequência. Este motivo totalmente hu-

mano, tão profundamente egoísta, leva, perante o ideal, a uma

moral imoral, segundo a qual o indivíduo se preocupa em res-

peitar as normas impostas, mas somente em função do seu dano

ou vantagem. O fundo desta sua moral é que, com semelhante

código na mão, ele se preocupa apenas em salvar a si próprio.

Isto significa que, uma vez realizada a sua obrigação, estrita-

mente no seu interesse, ele sente que já cumpriu o seu dever. Se

cai o mundo, isto não lhe diz respeito, porque ele já assegurou a

própria salvação. Se as consequências da sua ação, executadas

segundo as regras, são desastrosas para os outros, isto o deixa

indiferente. A sua moral se limita ao fato individual do sacrifí-

cio realizado por ele e da recompensa a receber, enquanto, por

outro lado, quem sente a moral do ideal ocupa-se de fazer o

bem ao próximo para proveito deste, e não só em função da

própria salvação. Uma vez calculado e, assim, cumprido o de-

ver imposto, assegurando com isto o futuro, o indivíduo fica li-

vre, libertando-se de outras ataduras, para fazer aquilo que quer.

Temos assim a moral do fariseu, exatíssima nas formas, mas

egoísta e calculista. Pode-se dessa maneira, pensando só para

si, seguir a mais irreligiosa das morais, permanecendo perfei-

tamente ortodoxo e praticante, como perfeito cristão.

Qual é a atual psicologia do crente? Com que ânimo se põe

ele perante Deus? Quais são, atrás das aparências, as verdadei-

ras convicções que estão no fundo da alma humana? Os indi-

víduos condenados pela moral oficial, que não toca quem for

bastante astuto para não se deixar apanhar em falta, são de fato

malvados ou fazem a guerra normal, necessária na luta pela

vida, imposta pelo ambiente terrestre? O crente sabe muito

bem, por experiência atávica, nele radicada em forma de ins-

tinto, que a necessidade mais urgente não é ser bom, mas sim

ser hábil no próprio interesse; sabe que a justiça, a providência

de Deus e a honestidade do próximo são coisas com as quais

não é bom contar demasiadamente, porque a realidade é dife-

rente. E os ministros de Deus também sabem disso. Não é cul-

pa de ninguém, se esta é a realidade da vida. É assim que as

pessoas de bem, mesmo as mais crentes, pensam antes de tudo

em fazer os seus negócios terrenos, deixando para o espírito

apenas o que sobra de espaço vital. Isto não significa que a

ajuda de Deus desagrade, pelo contrário até sonha-se com isso,

invocando-se por ela. Mas sabe-se que é mais positivo defen-

der-se por si próprio, com os métodos terrenos, mais positivos.

Trata-se de jogos incertos de esperança, propondo vencer na

loteria, adequados aos débeis, que não têm nem força nem in-

teligência para saber atuar por si mesmo. Quem possui estes

meios usa-os para si e, se não os usa, é porque não os possui.

Então a religião serve, sobretudo, para recolher, à guisa de

hospital espiritual, os ineptos para a vida. Os tipos biologica-

mente fortes não gostam de se recolher nos recintos da virtude

e vivem ao ar livre, segundo as leis da Terra, como as feras da

selva. Eles aceitam a luta para vencê-la, sem religião entre os

pés. É assim que, sob aparências enganadoras, a realidade da

vida social é feita de um desencadeamento de egoísmos.

À religião resta então a função lenitiva, constituindo um re-

fúgio para velhos, um hospital para doentes e feridos, uma con-

solação para aflitos, como uma enfermaria da vida. Estas são as

retaguardas, protegidas, enquanto os mais fortes se arriscam na

linha de frente, no meio da luta. Enquanto tudo vai bem, vive-

se lutando descarada e abertamente. Quando as coisas vão mal

e chega a dor, então nos retraímos da luta, feridos, e vamos à

igreja, para orar. Quando se perde na luta, procura-se sobrevi-

ver, criando outra força com a esperança. Então crê-se em

Deus, invocando-O para que nos salve. Esta é uma outra forma

em que a religião é utilizada, servindo como proteção e salva-

ção para os vencidos. Assim eles podem não só curar as feridas

e recuperar as forças, para retomar a luta, mas também encon-

trar um tipo de trabalho útil, que não seja fazer a guerra. A reli-

gião pode ter também uma função no plano animal humano. O

homem, conforme as suas qualidades e condições, sempre a uti-

liza de algum modo. Se ele é forte, liberta-se dela, para lutar

sem obstáculos; se é astuto, explora-a com o engano; se é débil

ou vencido, refugia-se nela, em busca de proteção. Deixa-se a

religião pregar à vontade, mas, uma vez que ela nos quereria

sinceros e desarmados, não se lhe dá ouvidos, pois cada um,

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92 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

conhecendo o mundo no qual vive, sabe muito bem que há nele

outras coisas para fazer. E, se existe alguém ainda com tão boa

fé, que queira viver aqueles ditames, a dura realidade rapida-

mente o dissuade, porque ele, na verdade, irá encontrar-se em

dissonância com aquilo que os pregadores de virtude exigem

dele, mas não praticam, num contínuo mal-entendido, ficando

fora da bitola dos trilhos sobre os quais caminha a sociedade

humana e terminando esmagado pelos mais fortes e astutos.

Vejamos agora como o biótipo humano, cuja natureza é fei-

ta para viver em semelhante ambiente, acerca-se de Deus na

oração e de que modo estabelece as suas relações com Ele. É

claro que o homem não pode fazê-lo senão com a sua forma

mental. Então ele fará primeiro os seus negócios no mundo e,

depois, se as coisas andarem mal, entrará na igreja à procura de

conforto, encontrando ali quem deveria ser o médico da alma,

mas que, vivendo deste trabalho, deve lutar para manter o do-

mínio espiritual, do qual depende a sua vida. O médico, então,

procede à lavagem da alma do doente, fazendo-se juiz dele,

transformando-o em pecador arrependido e receitando-lhe o

remédio que deveria curá-lo, na forma de penitência, com a

qual ele, sob ameaça de penas na outra vida, paga o débito con-

traído com Deus. Assim o pobre coitado, fugindo de uma dor

presente, vê surgir perante ele a ameaça de uma outra dor futu-

ra, de modo que, saindo da luta para defender a sua vida neste

mundo, tem de entrar em luta para defender a sua vida no outro

mundo. Uma vez que, em ambos os casos, permanece a mesma

forma mental, então a luta continua com os mesmos métodos,

sendo conduzida até perante Deus. De resto, o homem não pode

possuir senão a sua mentalidade, sendo natural que a utilize pa-

ra todos os usos da sua vida, tanto materiais como espirituais.

A religião satisfaz o desejo do indivíduo de continuar viven-

do depois da morte, no entanto também lhe deixa na outra vida o

risco de cair na dor. O motivo é o mesmo: não há vida sem pos-

sibilidade de dor. O subconsciente, por dura experiência, sabe

bem disso e não esquece. Eis então que o crente, na oração,

aproxima-se de Deus, para salvar a sua vida no além, assim co-

mo luta no mundo, para salvá-la no presente. Então como ele

concebe Deus? A ideia de pecado e inferno é certamente útil pa-

ra a sobrevivência da casta sacerdotal, mas faz de Deus um se-

nhor armado de sanções penais, que pode aplicá-las porque é o

mais forte. Tal ideia é fácil de conceber, pois reproduz a figura

do soberano terreno. Perante ele somos súditos, dependentes do

seu beneplácito, que é mistério indecifrável, e, ao invés de direi-

tos, temos apenas o dever da obediência. Ele outorga dons e gra-

ças a seu bel-prazer, segundo critérios ignorados. Aos vassalos

não resta nada, senão inclinar-se e aceitar, ficando na obscurida-

de. Fala-se de justiça, mas ela, nos fatos, é pouco vista ou apli-

cada na Terra, razão pela qual se torna difícil imaginar que ela

possa suceder em outro lugar. Talvez venha a ocorrer no Céu,

mas trata-se de coisa bem longínqua, e ninguém sabe onde e

quando, não sendo, portanto, controlável nem persuasiva.

Observemos a realidade. Se roubo e faço isso de maneira

que não me descubram, sem tropeçar com a justiça, então me

torno rico, e o resultado é que vivo bem e sou respeitado. Se

Deus está presente e este é o resultado que obtenho, isto signi-

fica que eu, pelo fato de saber fazer isso, sou recompensado por

Deus deste modo. Este prêmio me prova, com os fatos, que agi

segundo a Sua Vontade. Depois de me ter premiado deste mo-

do, que me pede Deus ainda? Que eu me arrependa e o venere.

Isto também é fácil, bastando algumas confissões e práticas re-

ligiosas, depois do que fico em paz. Por que não resolver assim

o problema, se os resultados são tão bons? Não representa isto

o melhor rendimento, e não é instintivo no subconsciente pro-

curar o caminho mais fácil para proteger a vida? Se Deus, nos

fatos, deixa que o mal vença na Terra e se Ele é o dono, não ca-

be ao servo indicar e exigir retidão, pois seria um ato de orgu-

lho, que, portanto, mereceria castigo. É melhor então, com todo

o respeito, seguir a corrente, pois afinal a virtude está na obedi-

ência. Aceitamos a lei da Terra, porque esta é a lei que manda

aqui, e não a do céu. Inclinemo-nos e desfrutemos da situação.

Este é o natural raciocínio humano.

É inevitável que a posição, sendo estabelecida na forma de

relação entre patrão e dependente, traga consigo os defeitos a

ela inerentes. De tal premissa não pode derivar outro tipo de

consequências. O servo é o débil, a quem corresponde obede-

cer. Ao patrão, que é o mais forte, todos os direitos; ao outro,

apenas os deveres. Uma vez que as relações entre homem e

Deus têm como base a luta entre egocentrismos opostos – con-

cepção devida certamente à involução humana, mas nem por

isto menos real – não resta ao súdito senão aplicar a Deus os

métodos que ele usa na Terra para com os seus semelhantes.

Afinal, é isto que o instinto lhe ensina. Então, tratando-se de

um patrão mais forte, não resta senão inclinar-se para cativá-lo

e obter favores. É necessário dizer-lhe que somos bons como

ele quer, mas tendo o cuidado de não o ser a sério, pois sabe-

mos bem que, neste caso, seremos devorados. De resto, o

exemplo dos pregadores nos ensina que estas coisas são para

serem ditas, e não para serem feitas.

Aqui tratamos de explicar como as religiões tendem a se

transformar em hipocrisia. Essa é a consequência deste modo

de conceber as relações com Deus segundo a forma mental

humana, que também é frequentemente a do clero. Daí buscar-

se colaborar com Deus não de forma clara, mas sim com a face

encoberta e procurando escapatórias; daí tentar-se adulá-Lo,

para obter graças devidas não ao mérito próprio, que num re-

gime de justiça é direito, mas sim ao capricho de um patrão,

porque este é o mais forte e, por isso, oferece o que bem en-

tende e a quem Ele quiser. O servo aspira tornar-se um favori-

to, fazendo-se de bom, para se tornar agradável e, assim, obter

vantagens. Nasce daí um obséquio que tende a se transformar

em tentativa de corrupção do poder. Quando o ideal desce à

Terra, esta forma mental o envolve e trata de corrompê-lo, para

adaptá-lo a si própria. É natural que, automaticamente, o ho-

mem se coloque na posição de servo, porque é nesta forma de

relações que ele se habituou a viver na Terra. E o que pode no

plano humano fazer um servo, se a arte de enganar o patrão é o

que sua posição lhe ensinou, sendo esta a arma com a qual ele

pode e sabe melhor defender-se?

Exigir um comportamento diferente seria pretender que o

homem não fosse o resultado da longa história vivida por ele, a

qual ficou estampada no seu subconsciente. É verdade que, com

tal psicologia, conexa com o espírito de domínio, a classe sa-

cerdotal salvou a sua sobrevivência, mas teve de pagar por isso

com as consequências espirituais. Daí provém uma oração com

a qual se trata de cativar a simpatia do Senhor, subindo pela es-

cala hierárquica dos santos, interpostos para uma intervenção

amistosa, pela qual se pode ser perdoado não só por um mal

que se continua a fazer, pois se está convencido de que ele é in-

dispensável para a própria sobrevivência, mas também por um

bem que não se realiza, porque não se é ingênuo para arruinar-

se, praticando-o num semelhante mundo. Não se raciocina com

os poderosos, que, por serem fortes, têm o direito de estabelecer

a verdade e de impô-la aos outros.

Tudo isto é certo no ambiente e nível humano. O que

existe por cima dele ou nas profundidades já foi por nós ex-

plicado nos volumes O Sistema e Queda e Salvação. O fato é

que existe uma lei estabelecida por Deus, escrita nos fenô-

menos, funcionando sempre e em toda a parte, lei que é pri-

meiramente respeitada por Ele, que assim obedece apenas a

si mesmo. Esta lei, justa e incorruptível, é o pensamento de

Deus, fixado de modo impessoal, sem egocentrismos. Trata-

se de uma lei de harmonia, cuja presença se pode sentir,

quando nos deslocamos evolutivamente em direção ao alto,

superando a atual forma mental humana.

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 93

Numa humanidade mais evoluída, as relações entre o ho-

mem e Deus serão concebidas em forma totalmente diversa. O

erro atual está em crer que não se raciocina com Deus. O de-

feito está em não sentir o Seu pensamento, que se expressa, no

entanto, em todo lugar e momento. Não se trata de egocentris-

mos rivais, mas sim de colaboração no interesse do próprio

operário; não se trata de luta, mas sim de unificação, que é útil

à vida; não se trata de comando e obediência, mas sim de ami-

zade inteligente. Nos planos mais altos da vida, a psicologia

animal-humana da luta torna-se um absurdo contraproducente.

Então a relação entre os dois termos, homem e Deus, muda

completamente de natureza. Nasce daí outro tipo de religião e

outro estilo de oração. Mas, para chegar a isto, o homem deve

superar a animalidade na qual ainda está submerso. Os que po-

dem compreender tudo isto são raras exceções. Assim o ideal

continuará sendo reduzido às dimensões que se adaptam à

maioria, segundo a sua forma mental.

Trata-se de alcançar um modo mais evoluído de conceber a

vida, no qual o instinto de luta e o espírito de domínio serão su-

perados; a ideia de egoísmo e arbítrio de um patrão não terá

mais sentido; a imposição forçada não será mais praticada. En-

tão a vida será dirigida por uma justiça super-humana, estabele-

cida por uma lei e funcionando conforme os equilíbrios de uma

ordem soberana, na qual tudo se coordenará e colaborará cons-

cientemente. No passado, a ordem não podia existir a não ser

imposta por coação, porque o mundo era caos e os homens, re-

beldes. Então Deus não podia ser concebido como centro de

uma ordem, mas somente como patrão absoluto no caos. Este é

o ponto de partida da evolução do conceito de Deus e aquele é

o ponto de chegada. Moisés o concebeu naquela fase inicial.

Pôde-se assim, com meios coativos, começar a construir uma

ordem, a qual, porém, não foi compreendida nem convenceu.

No entanto ela cumpriu a sua função e ainda serve, porque,

evoluindo de semelhante estado inicial, permite alcançar uma

ordem cada vez menos coativa, sempre mais compreendida e

convincente, até atingir a fase orgânica da vida, formada pela

cooperação inteligente e espontânea. Mas, para chegar a isto, o

homem tem de superar a sua atual forma mental.

Então a velha psicologia religiosa, com a qual ainda hoje a

alma se coloca perante Deus, cairá. O crente compreenderá que

não se encontra perante um Deus a quem se possa enganar an-

tropomorficamente e já não pensará em enganá-Lo. Tal modo

de pensar será substituído pela adesão espontânea a uma lei jus-

ta, que é útil respeitar. A mentira e a desordem não terão mais

razão de ser, porque se compreenderá que tais métodos fazem

mal a si próprio e não convém. A vantagem residirá em estar

unidos, e o dano estará na luta entre rivais. Entender-se-á, en-

tão, que o amor ao próximo como a si mesmo é o negócio que

dá mais lucro. O egoísmo será deixado aos involuídos, incapa-

zes de compreender mais. Deus não será entendido como uma

ameaça a ser temida ou um patrão a ser enganado, mas sim co-

mo a primeira fonte de todo o nosso bem. A deslocação de po-

sições é fundamental. Não se gravitará mais, como hoje, em di-

reção ao AS, mas sim em direção ao S. Deus não será um pa-

trão que se sobrepõe para dominar, mas representará o mesmo

que o cérebro e o coração em nosso corpo, dos quais depende a

nossa vida. Então desaparecerá a ideia de domínio e de sujei-

ção, consequência de interesses opostos, ficando a da coopera-

ção em função de um único e mesmo interesse para todos. A

posição do crente perante Deus se tornará então uma espontâ-

nea obediência, por livre e convicta adesão, numa atitude de in-

teligente compreensão, confiança e unificação.

Antes de encerrar este tema, observemos outros aspectos da

técnica usada pelas religiões para realizar a descida dos ideais.

Sabemos que se trata de uma importante função biológica a tare-

fa que elas executam em sentido evolutivo. É dever da classe sa-

cerdotal proporcionar os meios para que este fenômeno possa re-

alizar-se. O ideal é uma realidade futura, ainda a ser realizada.

Trata-se de antecipar a existência de mais evoluídas formas de

vida, que ainda não estão em ação na realidade. Elas, então, são

criadas em primeiro lugar no pensamento, com um ato que se

chama “fé”. No processo criador, o primeiro momento se verifica

na mente, de onde desce depois, até tomar forma concreta na rea-

lidade exterior. Para este objetivo deifica-se um modelo humano,

que, assim sublimado, é colocado no mais elevado dos altares,

expressando com isto que ele deve estar acima dos nossos pen-

samentos, porque está à frente de nossa vida, como uma meta a

alcançar no caminho da evolução. À força de superações, deve-

mos nos tornar iguais a esse modelo. Por isso ele é revestido de

símbolos esplendorosos e colocado num campo de luz e beleza,

sendo apresentado com o ornamento de todas as virtudes, para

que atraia pela sua perfeição. Através desta representação forma-

se na mente uma imagem do modelo, na qual ele se concretiza.

Efetua-se assim o primeiro passo da realização do ideal, porque

ele, desse modo, já começou a existir como realidade mental.

Uma vez fixada a meta, já não resta outra coisa senão pro-

curar alcançá-la. O caminho está traçado, e basta segui-lo. Po-

de-se então pôr em ação a afinidade emotiva, que favorece a

atuação de novos estados de ânimo. Coração, sentimento e pai-

xão podem dar um salto à frente. O que ainda não existe na rea-

lidade material pode ser assim encontrado como realidade espi-

ritual, da qual derivará depois a material. Vemos manifestar-se

aí o poder criador da fé. Agarrando-se ao ideal colocado no alto

e tratando de elevar-se até ele, pensando-o e perseguindo-o, a

realidade da vida se transforma, evolui e se eleva. Uma vez cri-

ada a nova realidade psicológica, esta modelará também a rea-

lidade material exterior, construindo-a segundo o tipo que se

pensou e se quis. Desta forma, o ideal submete a vida a um con-

tínuo processo de sublimação, lançando-a cada vez mais para o

alto, em direção ao S. É assim que surgiu e se vai fixando a

ideia de Deus, de bem, de bondade e de justiça, num mundo

animal, feito de força bruta, mal, ferocidade e injustiça.

Com esta técnica começa-se a acender o desejo de um mun-

do melhor, impulso que é de grande valor, porque desejar signi-

fica tender à realização, mesmo que represente uma realidade

ainda não existente de fato. Eis como a utopia de hoje está des-

tinada a se tornar a realidade de amanhã. Trata-se de uma técni-

ca evolutiva, na qual são chamadas a funcionar as forças espiri-

tuais, para chegar ao resultado positivo de criar o homem novo.

Tudo isto está implícito nas leis da vida, que quer ascender. É

sua insuprimível necessidade evoluir para um futuro mais alto.

Por isso a fé é também uma necessidade e fator biológico, por-

que, com os seus poderes criadores, é elemento determinante do

fenômeno da evolução. E de fato mudam as religiões, mas a re-

ligiosidade permanece; mudam as crenças, mas fica a fé; mu-

dam os grupos sacerdotais, mas fica o sacerdócio. Com o tem-

po, os meios de expressão, sobrepondo-se à ideia, acabam por

substituí-la, sufocando assim o primeiro impulso da vida, que,

por sua vez, também destrói esses meios, porquanto, vazios da

ideia (seu princípio vital), já se tornaram inúteis. Novos instru-

mentos são então chamados a cumprir a função de fazer descer

o ideal à Terra, porque os velhos não são mais um veículo, e

sim um obstáculo. Não obstante a função permanece, mas sen-

do confiada sucessivamente a órgãos que devem ser cada vez

mais evoluídos, para poder cumprir um trabalho também cada

vez mais evoluído. Assim avança a grande marcha da evolução,

com a descida dos ideais através do canal das religiões. A téc-

nica é de tipo espiritual, interessando, portanto, à psicologia.

Dela constituem parte importante as imagens, o simbolismo, a

sugestão, a projeção do pensamento e toda a encenação do rito.

Esta tarefa exterior serve para realizar outra, interior, que é

formar a imagem mental na qual a ideia é personificada e leva-

da do plano espiritual, onde para o imaturo ela é irreal, ao plano

sensório, onde para este ela se torna real.

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94 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

A ideia em si é abstrata e foge à compreensão das massas.

Torna-se necessário levá-la com representações concretas ao ní-

vel mental delas. É preciso construir, então, formas materiais

capazes de servir como instrumento de expressão da ideia, de

modo que ela possa ser percebida pelos sentidos. Com seme-

lhantes meios vai-se construindo o edifício mental estabelecido

pelo ideal, que neles constitui o seu ponto de partida. A repre-

sentação exterior outorga a imagem que concretiza a ideia, sen-

do esta fixada pelas práticas exteriores, através da repetição, en-

quanto a fé abre as portas da alma, permitindo que a ideia entre

e ali fique. Por isso existe o rito, insistindo que se pratique e se

creia. Estes são os momentos de uma sábia técnica psicológica,

que os representantes terrenos do ideal usam para se afirmarem

no mundo, com o objetivo de criar novas formas de vida.

Aqueles que raciocinam, analisam e compreendem são pou-

cos. Trata-se, portanto, de educar as massas. Elas recebem pas-

sivamente no subconsciente, aceitando por sugestão, sem com-

preender, tal como sucede na domesticação de animais. Apren-

dem por repetição, sem pensar, tratando de se esforçar o menos

possível. Sua tendência é continuar a se mover por inércia, me-

canicamente, ao longo do caminho dos velhos instintos, traçado

pelo passado. O fenômeno é psíquico, mas nem por isso é cons-

ciente, o que não impede que ele funcione e alcance a sua meta.

Por isso notamos anteriormente que a religião insiste nessa po-

sição mental chamada fé, dando grande importância à questão

da prática, que serve para fixar o novo através de uma repetição

forçosa. Estes são dois momentos da técnica psicológica dedi-

cada a realizar, por assimilação automática, a descida dos ide-

ais. Se, na fé, elimina-se o controle racional, isto não significa

que ela seja destituída de uma função construtiva. Além disso,

se o consciente, sem aquele controle, é usado, pelo contrário,

em uma atitude passiva, isto se faz precisamente para facilitar a

receptividade do espírito, permitindo assim a admissão de no-

vas ideias. Para este objetivo, a discussão com análise crítica

pode ser contraproducente. A finalidade é cumprir uma função

educadora, e não desenvolver a mente para conquistar conhe-

cimento. Para quem não sabe pensar, colocar-se no terreno das

análises só pode gerar confusão e cisões. Por isso o catolicismo

afirma uma verdade revelada, sobre a qual não admite discus-

são, preferindo a inércia mental do fiel que crê e não pensa, ce-

go mas obediente, do que o desejo de conhecer a verdade por

parte da mente aberta, mas independente. A massa é feita de

primitivos, que não sabem conduzir-se, sendo este tipo corrente

conveniente para o catolicismo, cujas formas pedagógicas são

adequadas a tal tipo, servindo para levá-lo mais adiante. No en-

tanto é natural que, para quem, por maturação própria, encon-

tra-se mais adiantado, semelhantes métodos tragam atraso, em

vez de avanço. É assim que os mais evoluídos não podem mar-

char nas filas sem ficar espiritualmente sufocados. Por isso eles

permanecem religiosos, mas sem intermediários, que – mesmo

sendo preciosos e indispensáveis para educar os menos evoluí-

dos – abaixam tudo ao seu nível, quando não são evoluídos.

É assim que, através da sugestão obtida com a pregação, re-

alizada através da longa repetição de pensamentos e de atos co-

nexos a determinados estados de ânimo – técnica que vai do ex-

terior ao interior – algo se imprime e se fixa no inconsciente.

Em virtude de uma tendência à repetição rítmica, até mesmo a

nível celular, estabelecem-se mecanicamente automatismos

que, depois, tornam-se hábitos e, por fim, instintos. Isto signifi-

ca a criação de novas qualidades na personalidade, que deste

modo, enriquecendo-se, evolui. Esta é a técnica com a qual a

vida conserva e armazena as suas experiências, técnica ainda

hoje utilizada, estando proporcionada ao biótipo dominante,

que funciona em estado de inércia mental, por sugestão e imita-

ção. Trata-se de uma técnica sábia, porque ela se adequa ao ter-

reno no qual trabalha, sabendo utilizar os seus escassos recur-

sos – tarefa nada fácil – para satisfazer a necessidade funda-

mental, que é fazer evoluir. O movimento está canalizado se-

gundo a Lei e aponta em direção à grande meta: Deus. Tudo se

encontra no seu devido lugar, estando adequado às condições

do ambiente, à natureza humana, ao seu grau de desenvolvi-

mento e à finalidade a alcançar. Eis que, dada a involução hu-

mana, o catolicismo usa a técnica mais adequada para realizar a

descida dos ideais à Terra. Estamos ainda nos primeiros graus

da espiritualidade, nos passos iniciais de um caminho imenso.

Mais não se pode pedir ao homem atual. As realizações espiri-

tuais, para serem de fato possuídas conscientemente, ainda têm

de ser alcançadas, entretanto a fé as antecipa em forma de espe-

rança e de sonho. A atuação do ideal está ainda longínqua. Cris-

to observa do alto, esperando, e o homem caminha na Terra,

para chegar a realizar o reino de Deus.

Concluamos este escrito. Percorremos um longo caminho,

observando o trabalho que executam as religiões, sobretudo o

cristianismo, para realizar o fenômeno da descida dos ideais à

Terra. Olhamos imparcialmente, para compreender sobretudo o

significado do que vemos suceder no mundo, e não para julgar

com base em teses preconcebidas ou interesses de grupo. Se, de

qualquer maneira, devia ser feito um diagnóstico, não se podia

deixar de ver também o mal. Mas, onde o encontramos, também

vimos o bem, para nos agarrarmos a ele e salvar o que se podia

salvar. Apesar de tudo, nossa visão é otimista, pois temos fé na

vida e na sua sabedoria, porquanto esta é a sabedoria de Deus,

que a dirige. Por dentro desta nova perspectiva, trabalhamos em

sentido positivo, construtivo, e não em sentido negativo, destru-

tivo. Falamos claro porque o mundo tem necessidade de clareza,

além disso não se pode resolver os problemas escondendo-os ou

esquivando-se deles, mas somente enfrentando-os.

É necessário salvar a substância das religiões, porque os

seus edifícios terrenos ameaçam cair. É necessário compreender

que elas não podem ser liquidadas, como hoje se desejaria,

pois, realizando a descida dos ideais, as religiões cumprem uma

função biológica fundamental para a evolução. A ciência, o ma-

terialismo e o comunismo assaltam as velhas construções da fé,

que se desfazem na mente das massas, enquanto o mundo não

tem ainda nada capaz de substituí-las no campo espiritual. O

conservadorismo prudente, que procura proteção dentro da ca-

sa, pode, quando esta cai em cima de todos, significar a morte.

Não é honesto alimentar a hipocrisia da moda, colocando-se na

sua corrente, porque vivemos numa hora decisiva e a via dos

enganos pode ser catastrófica. Os velhos métodos para manter

de pé as religiões e o seu poder não servem mais. A vida deixa

sobreviver somente aquilo que lhe é útil para evoluir, sendo bi-

ologicamente importantíssimo para isso o campo espiritual. Ho-

je, as aparências já não bastam e as astúcias não persuadem.

Desejam-se verdades positivas, sólidas e convincentes, para be-

nefício das massas, e não só de uma classe dominante.

O catolicismo procura atualizar-se. Mas não bastam os reto-

ques. É necessário renovar a forma mental, para reencontrar a

substância sepultada sob as formas e recomeçar desde o princí-

pio. É preciso regressar às fontes, ao Evangelho esquecido, to-

mando Cristo a sério e retirando tudo aquilo que, em tantos sé-

culos, foi sobreposto à Sua ideia pelo homem, interpondo-se

entre Ele e nós. É necessário exumá-Lo do túmulo que Lhe foi

erigido pela mecânica da burocracia eclesiástica. A tarefa de

salvar a ideia de Cristo corresponde ao cristianismo.

Hoje, saltam aos olhos as contradições que antigamente

passavam inobservadas, tais como pregar o amor evangélico e

abençoar as armas, exaltar a pobreza e possuir riquezas, difun-

dir o ideal com os métodos da luta política. Vê-se também a ci-

ência, por um lado, defendendo a vida com a medicina e, por

outro, construindo bombas atômicas para destruí-la, sem que as

religiões tenham nenhum poder para impedir isto. Vivemos

numa época de desagregação moral. Mas será que o mundo está

imoral porque se corrompeu, ou porque hoje se deseja ver tudo

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 95

claramente, por uma sã necessidade de sinceridade, como rea-

ção à hipocrisia do passado, que deixava tudo bem encoberto?

Não será mais honesto falar abertamente, para que, sem fugas e

ficções, tudo seja conhecido e enfrentado, podendo ser mais

bem resolvido? Não será isto uma necessidade de destruir,

mesmo à custa do bom, o que está velho, desde que se limpe a

sujeira, onde estava tudo misturado?

Nota-se de fato, em cada campo, uma tendência à supera-

ção, que é revolta destrucionista contra o passado e, ao mesmo

tempo, ânsia de encontrar qualquer coisa de novo e melhor.

Mas, se não se conseguir criar algo melhor para substituir o que

se destrói, esta ânsia de renovação nos deixará cair no vazio.

Compreende-se e justifica-se esta revolta. Mas ela constitui

só o lado negativo do fenômeno, que, dada a ação lógica da vi-

da, deve ter também o seu lado positivo. Não nos podemos de-

ter, portanto, no seu aspecto destrutivo. Se não quisermos ser

unilaterais, temos de ver também o seu aspecto complementar,

construtivo. Portanto nada de pessimismos ou de filosofia de de-

sespero, hoje em moda. Tudo isto é para os espíritos decadentes.

Nós cremos na vida, no ideal, no futuro. Precisamente porque

nos encontramos no meio da negatividade destrucionista, deve-

mos ser positivos e construtivos. Neste escrito, a nossa crítica

tem valor somente como meio de renovação e melhoramento.

Exatamente porque o mundo está em descida, é necessário exe-

cutar o esforço da reascensão. Pode-se sentir o atual desespero

destrutivo e até tomar parte nele, mas só como uma fase que tem

de ser atravessada, para se sair dela melhor, curando-se, e não

para morrer. Estamos de acordo que os velhos ideais, esplêndi-

dos e altissonantes, foram reduzidos a hipocrisia, com o mau

cheiro da mentira, mas precisamente por isso devemos purificá-

los e criar outros novos, com os quais se possa avançar.

Se o mundo está corrompido, é preciso reagir, para salvá-

lo. Se a reação é em descida, em vez de o ser em subida, então

é o fim. É necessário empreender o esforço da reascensão. Os

débeis acabam no ateísmo, na inércia, nas drogas, no vício, no

desespero, no suicídio. A esta tendência opomos a esperança,

a fé criadora, a superação no espírito, a potência do ideal. O

caminho da evolução está traçado em subida, não em descida.

É necessário emergir em direção à vida, que está cada vez

mais no alto, e não se deixar tragar pelo pântano, o que signi-

fica morte. Nestes escritos, traçamos no alto um ideal e a ele

nos agarramos, para ascender, porque queremos a vida, sem-

pre mais vida. Rebelamo-nos ao retrocesso involutivo, a gran-

de ameaça atual em direção à qual tantos se lançam inconsci-

entes. Aos ataques do Anti-Sistema respondemos com um gri-

to de guerra em nome do Sistema.

Se os velhos ideais foram reduzidos a instrumentos de poder

do subconsciente instintivo, sendo rebaixados por este ao nível

animal, temos de retomá-los e revivê-los, sustentando-os pelo

controle do pensamento, para levantá-los até ao plano racional

e científico. É preciso compreender que, se os ideais decaíram,

não é porque eram falsos, mas sim pelo abuso que se fez deles.

Corrigido o abuso, eles valem e servem à vida. Ficar no nível

de uma ciência materialista, espiritualmente agnóstica, significa

que não se compreendeu a vida, querendo paralisar a evolução.

O futuro pertence a quem luta para avançar.

Para piorar as coisas, num mundo que se afunda, a reação

de muitos consiste em se deixar afundar cada vez mais, tor-

nando-se piores e acelerando a descida para a perdição, ao in-

vés de subir para a salvação. Mas o tipo de reação é justamente

o fator que revela o valor biológico do indivíduo, estabelecen-

do o seu nível evolutivo e o seu futuro destino. Sabemos que a

vida não deixa subir os que não merecem. Hoje é a hora em

que se fazem as contas. Há um obstáculo a superar. Ele está in-

terposto entre dois planos de evolução. Quem não for capaz de

superá-lo não passará ao nível superior, tendo de permanecer

embaixo, no seu nível biológico inferior.

Este é o fenômeno ao qual estamos assistindo hoje. É a hora

do exame e do juízo. A vida está efetuando uma seleção para

eliminar os indivíduos ainda imaturos nervosa, mental e espiri-

tualmente, incapazes de saber viver num plano evolutivo mais

avançado. Hoje é a hora do salto. Quem preparou para si pró-

prio as pernas dá um salto à frente; quem não as preparou fica

para trás. Tem lugar então a separação. À frente vão os evoluí-

dos, para formar uma humanidade nova, verdadeiramente civi-

lizada; atrás, porque não souberam superar o obstáculo, ficam

os involuídos, qual lastro e camada baixa da humanidade, à

procura de outros níveis inferiores. Conhecemos os métodos da

vida, que sabe colocar cada coisa em seu lugar, com o seu ver-

dadeiro valor. No passado, tal seleção se realizou no plano da

matéria e da força bruta. O biótipo que a vida queria construir

então era o homem fisicamente forte, o guerreiro feroz e vence-

dor, o domador de um mundo inimigo. Hoje, a seleção se reali-

za no plano nervoso e cerebral, da inteligência e do espírito. O

homem está adquirindo novas qualidades, mais requintadas,

com as quais potencializa-se e sensibiliza-se, aprendendo a tra-

balhar em novos campos, com novos meios, dominando novas

forças. Isto exige outra consciência e novo conhecimento, com

poderes superiores de controle para dirigir as novas capacida-

des. Não mais cavaleiros da espada, mas sim da mente, do pen-

samento e da alta tensão psíquica, como é a vida moderna.

O homem novo não pode mais se aninhar nas posições ofe-

recidas pelos valores tradicionais, baseadas no consentimento

convencional que se construiu em torno delas, necessário anti-

gamente para dar uma certa estabilidade à sociedade humana

em períodos de longa incubação. A tempestade atual destrói os

ângulos mortos nos quais podiam entrincheirar-se os comodis-

tas de antes. Os ideais do passado representam um produto can-

sado, já demasiadamente explorado. O homem novo se encon-

tra perante problemas imensos e deve resolvê-los. Terminou o

período da inércia espiritual conservadora, no qual a animalida-

de, satisfeita pela vida vegetativa, não se propunha problemas.

Hoje, o comunismo assoma para acabar com todas as religiões.

Antigamente, a propriedade era garantida e ficava numa família

por séculos; hoje nos perguntamos quanto ela durará. Antes, só

alguns iam à guerra, enquanto os políticos que a declaravam fi-

cavam em casa; agora, a bomba atômica destrói tudo, estando

suspensa sobre as cabeças de todos. No passado, poucas ideias

bastavam para viver e se transmitiam de pais para filhos; atu-

almente, a ciência, com as descobertas e a técnica, desloca cada

dia mais os limites do conhecimento e as condições de vida.

Antigamente dormia-se sobre o leito da tradição; hoje se estre-

mece no caminho das revoluções.

Ai de quem se lança por atalhos para fugir ao esforço da as-

censão no momento decisivo da curva, quando a evolução se

dirige para uma solução. O período atual não é de espera e re-

pouso. Quem não enfrenta o caminho que sobe pela encosta ín-

greme do monte, fica atrás, superado. Somente a quem for em

frente pertencerá um melhor futuro. Esta nova forma de seleção

biológica não é senão o último momento de uma maturação mi-

lenária. Nesta transformação evolutiva aflora e irrompe aquela

longa preparação, exigindo a sua conclusão.

Está escrito nas leis da vida que ela caminhe neste sentido.

Semelhante escolha de caminho põe em jogo o problema da sal-

vação. Deve-se avançar porque a vida não é um fim em si mes-

ma, mas está feita, isto sim, para evoluir, subindo cada vez mais

em direção a Deus, a meta suprema na qual se conclui a grande

marcha ascensional. Conquista-se a salvação grau por grau, ele-

vando-se a um nível biológico cada vez mais alto. A humanidade

está saindo da menoridade e se prepara para tomar as diretivas da

evolução no seu planeta. A vida é vida somente enquanto é uma

superação contínua. Vai-se do AS ao S. Na curva atual tem lugar

a passagem da esfera de atração do AS para a de atração do S, le-

vando do estado de caos ao de ordem orgânica. A humanidade se

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96 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

encaminha para a harmonização, a colaboração e a unificação,

condições em que será superado e deixado para trás o tradicional

estado de luta, com todos os erros e dores a eles conexos. Trata-

se de um tipo de vida mais alto e feliz, mas ele não pode ser al-

cançado sem um equivalente esforço, que traz consigo, no entan-

to, a sua justa recompensa. Ela consiste em poder sair das cama-

das baixas da animalidade, para nos transformarmos em verda-

deiros homens e, amanhã, em super-homens.

XII. CIÊNCIA E RELIGIÃO

A humanidade necessita não somente chegar a uma religião

científica, mas também construir uma ciência que entenda, ex-

plique e sustente o conteúdo das religiões, para poder assim, uti-

lizando todos os valores biológicos, orientar-se melhor, utilizan-

do todo o conhecimento, energias e ideias que possam ser úteis à

vida. Hoje, pelo contrário, encontramo-nos ainda numa fase de

inimizade entre ciência e fé. No entanto elas são apenas duas di-

ferentes maneiras de ver e apresentar a verdade, que é uma só.

Cada uma, partindo exclusivamente do seu ponto de vista, julga

possuí-la toda e, assim, contrapõe a própria visão de um aspecto

da verdade às outras visões e aspectos, condenando-os como er-

ro. Daqui derivam atritos, exclusivismos e sectarismos, nos

quais se expressa, também neste campo, a lei da luta pela vida.

É necessário unificar o pensamento humano com uma sínte-

se que possa fundir as especializações analíticas da ciência com

as verdades intuitivas universais das religiões, que, apesar de

não serem demonstradas, são complementares das científicas,

racionalmente comprovadas. Hoje, o conhecimento está dividi-

do, sendo unilateral e incompleto. Torna-se necessário uni-lo,

fundindo-o numa verdade única que abarque o todo, tanto o

particular como o universal. O atual espírito de análise deve ser

integrado com um paralelo espírito de síntese, se não quisermos

que a ciência se perca em detalhes práticos e utilitários, deixan-

do de alcançar o essencial e o universal. Hoje, a ciência tende a

um tecnicismo dirigido a fins concretos. Escapam-lhe assim,

cada vez mais, os valores morais e espirituais, que, no entanto,

são indispensáveis para orientação e direção da vida. Se não se

obtiver uma visão de conjunto, que, além da técnica do funcio-

namento dos fenômenos, também nos diga o porquê e a finali-

dade de tal funcionamento, ficaremos sem um princípio para

nos guiar em nossa conduta, inclusive com relação a uma sábia

utilização dos produtos da ciência. O cientista desdenha ser fi-

lósofo, e o filósofo não é cientista. Uns e outros prescindem das

religiões. Tanto progresso intelectual, sem uma tal orientação,

acabará numa torre de Babel, onde será impossível se compre-

ender uns aos outros para se coordenar os próprios esforços,

impedindo a fusão do conhecimento numa única sabedoria. Não

basta ver os fatos isolados, é necessário compreender também

as suas relações e o significado do seu conjunto.

Que faremos de tantos especialistas isolados, que tendem

cada vez mais a se separar e a quase se eliminar como rivais,

dedicando-se a cavar no terreno da investigação um buraco es-

treito e profundo, sem saber fazer surgir uma visão geral de to-

do o terreno sobre o qual trabalham? É necessário possuir tam-

bém este conhecimento maior, para se saber qual a conexão da-

quele ponto que se está aprofundando com o que há em sua vol-

ta. Isto é necessário num universo orgânico, onde tudo, através

de proximidade, causalidade e afinidade, está ligado num con-

junto, repercutindo tanto mais em todo o resto, quanto mais lhe

está próximo no espaço e no tempo. No entanto faz-se ao con-

trário, isolando-se o fenômeno particular do todo universal. A

ciência clássica distingue e enquadra, mas assim, em vez de

unir, separa os elementos do todo. Para ela, o resto é metafísica.

Assim, separando as coisas nos seus elementos constitutivos e

os fenômenos nos momentos do seu desenvolvimento, ela não

obtém o conhecimento, mas apenas uma sua parte ou aspecto.

Para o cientista, o filósofo não é positivo. A filosofia não

merece atenção, porque se ocupa de coisas afastadas da realida-

de. Para o filósofo, o cientista é um ignorante dos problemas

universais. Se o filósofo se torna cientista, é julgado um incom-

petente. Se o cientista se torna filósofo, não é reconhecido, por-

que não usa a linguagem e a técnica conceptual da investigação

filosófica. Não obstante, sem a cooperação de todos os investi-

gadores e sem a confluência de todos os rios da sabedoria, não

se conseguirá ver qual é o lugar que corresponde ao homem no

universo da matéria, da vida e do espírito, tornando-se impossí-

vel captar a completa dimensão biológica do homem. Uma vi-

são limitada ao particular é uma visão incompleta.

Deste modo, a ciência deixa de lado fenômenos de imenso

valor humano, como as indemonstráveis intuições das religi-

ões, que, no entanto, levaram a consequências históricas, soci-

ais e políticas de suma importância perante o fenômeno evolu-

tivo da humanidade. Entre tais afirmações, sobretudo a judai-

co-cristã soube inserir o conceito de Deus na vida do homem,

como princípio unitário, síntese máxima e ideal orientador da

vida, numa visão de conjunto que permite uma compreensão

mais ampla e profunda da história e do fenômeno social, na

medida em que este não é senão um momento do fenômeno

vida e a história não é senão um momento do fenômeno evolu-

ção. Só assim o homem pode estabelecer a sua posição no

tempo em relação a momentos muito longínquos, o que dá à

sua existência um significado muito mais amplo e completo.

Para o homem, será um progresso imenso ampliar as dimen-

sões de tempo e espaço em função das quais ele vive. Tal con-

quista lhe possibilitará existir em função de um universo mais

vasto e mais conhecido do que aquele em relação ao qual ele

viveu até agora, permitindo-o orientar-se cada vez melhor e

obter, assim, maior segurança e potência.

Uma visão de conjunto, oferecendo uma síntese universal,

pode dar-nos a concepção unitária do todo, na qual é inevitável

o desaparecimento da atual cisão do pensamento entre o aspec-

to materialista e o espiritualista da mesma verdade, superando

assim aquela fase mais primitiva do conhecimento, dada pela

concepção separatista. Hoje, como dizíamos, o cientista filóso-

fo é condenado tanto pelos cientistas, que o consideram defici-

ente no aspecto técnico e positivo, como pelos filósofos, que o

julgam inábil para usar a linguagem e os conceitos filosóficos.

No entanto a função dele não é ficar encerrado em nenhum dos

dois campos, mas sim estender-se em ambos, dando às especu-

lações da filosofia as bases positivas da ciência e elevando as

constatações positivas da ciência até às abstratas generalizações

da filosofia. Trata-se de alcançar uma fusão na qual cada uma

das duas partes dê a sua contribuição completa, e não de fazer

uma união à força, na qual, em vez de cooperarem, cada uma

procure prevalecer sobre a outra, adaptando-a aos seus próprios

objetivos. Não se trata de um aproveitamento ou deformação da

ciência, com a finalidade de fazê-la concordar com a filosofia e

a religião, torcendo o materialismo para adaptá-lo ao espiritua-

lismo, nem de uma contorção ou mutilação da filosofia e da re-

ligião, com a finalidade de fazê-las concordar com a ciência,

deformando o espiritualismo para fazê-lo aderir ao materialis-

mo. O objetivo não está em contorcionismos ou acomodações

oportunistas, mas sim na convergência, através da qual as duas

visões, ao invés de opostas, tornam-se complementares, acer-

cando-se uma da outra para se compreenderem e colaborarem, e

não para lutarem e se eliminarem. Trata-se de somar e fundir

ambas as afirmações, superando as negações mútuas. A ciência

pode oferecer a parte experimentalmente provada e positiva-

mente segura. As religiões podem oferecer a outra parte do co-

nhecimento, que a ciência não pode dar, porquanto esta não

possui os meios utilizados por aquelas para alcançá-lo. Quem

decidiu que a intuição, a inspiração e a revelação não podem

representar um meio de investigação para oferecer uma contri-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 97

buição ao conhecimento? Este isolamento numa dada visão da

verdade, de modo exclusivista e separatista, fechando os olhos

para não ver o que possa existir mais além, corresponde às qua-

lidades do primitivo egocêntrico e involuído, significando mio-

pia, psicologia limitada, estreiteza de horizontes conceituais,

aprisionamento mental apriorístico. A evolução do pensamento

deverá abandonar esta sua fase atrasada e chegar assim a perce-

ber a realidade numa dimensão mais completa. A priori, nada

nos autoriza afirmar que o método de investigação usado pela

ciência deva ser o único e definitivo, não podendo ser, por evo-

lução do instrumento psíquico humano, superado no futuro.

◘ ◘ ◘

A nova realidade que a ciência deverá positivamente alcan-

çar amanhã não poderá limitar-se à dimensão matéria. O pro-

blema do espírito existe e não pode ser resolvido negando-se a

sua existência, como até agora fez a ciência materialista. É justo

que se deva ser positivo, para evitar assim perder-se em lucu-

brações filosóficas fora da realidade. Mas, só porque alguns as-

pectos da vida não podem ser alcançados pelos caminhos da ci-

ência nem explicados em forma positiva pela metafísica, não se

tem por isso o direito de suprimi-los, desdenhando considerá-

los, desinteressando-se e não tomando conhecimento deles. Por

que ao cientista – quando este já recolheu e tem diante de si

uma série de fatos garantidos como verdadeiros, pois experi-

mental e racionalmente controlados, inclusive nas suas conse-

quências – deve ser proibido meditar sobre eles, negando-se-lhe

a possibilidade de transformar-se em filósofo pensador, que de-

seja conhecer não só aquela realidade mas também o seu íntimo

significado? Por que lhe deve ser proibido penetrá-la também

neste seu nível mais profundo? Por que deve ser anticientífico

interessar-se também por estas outras possíveis faces da verda-

de? Com que direito pode-se negar a priori uma possibilidade

de ampliação do conhecimento positivo inclusive neste sentido?

Assim, corre-se o risco de ficar isolado na visão de apenas al-

guns aspectos limitados dos fenômenos, permanecendo na ig-

norância a respeito dos outros.

Não podemos dizer que realmente compreendemos o homem

todo, quando nos limitamos a observar apenas a sua estrutura or-

gânica, que expressa a sua personalidade no nível físico, químico

e biológico, através de um mecanismo nervoso cerebral. Não o

teremos assim mutilado, fazendo dele uma imagem incompleta,

que por isso não corresponde à realidade? Por que não querer ver

todo o fenômeno, inclusive nos seus níveis mais altos?

Temos motivos para crer numa dúplice estrutura do univer-

so, dada por um aspecto bifrontal já intuído pelos pensadores,

da qual a ciência suspeita. Esta dualidade nos indica que, além

da realidade fenomênica exterior, deve existir uma outra, inte-

rior, a qual constitui a verdadeira substância do universo e dele

pode nos revelar o verdadeiro significado. Nós já defendemos

isto, afirmando o dualismo S e AS. Então um panpsiquismo,

que anima todas as coisas, iluminando-as por dentro, dá um

profundo significado à sua existência, conceito ainda não al-

cançado pela ciência. Também a própria matéria se anima. Por

que tal concepção deveria estar fora da realidade? Isto não está

em oposição à ciência positiva, mas é um seu complemento, re-

presentando um edifício mais alto que se pode construir sobre

as suas bases sólidas. Nestes níveis mais altos, a matéria conti-

nua existindo com as suas leis e propriedades, no entanto,

mesmo continuando a segui-las, é utilizada para outros objeti-

vos, de tipo mais evoluído e complexo. Então o simples fenô-

meno físico-químico se aproxima e é levado a concordar com

outros fenômenos afins mais adiantados. Ele aparece então

existindo numa nova dimensão, sendo coordenado em função

de uma finalidade superior, para a qual é dirigido e em função

da qual o fenômeno passa a existir com outro valor e significa-

do, visto que já não está isolado e fechado em si mesmo, mas

sim aberto, movimentando-se em direção àquela finalidade.

Esta nova perspectiva amplia e aumenta de tal forma a vi-

são, que tudo se transforma. Já não se trata de um simples fato

exterior, porque agora ele contém um psiquismo interior, que

veio animá-lo. Psiquismo que, antes desse fato, não existia e do

qual agora se tornou expressão. Então ele se nos revela sob uma

luz diferente, porque já não o vemos esgotar-se em si mesmo,

completo apenas nessa sua forma, mas sim existir em função de

outros valores interiores, até então desconhecidos de nós. So-

mente olhando mais acima vemos crescer algo mais nos fenô-

menos, percebendo um enriquecimento de qualidade e signifi-

cado, como se eles, vistos em função da evolução e movendo-

se nesta nova dimensão, aumentassem e se tornassem gigantes.

Como se explica que, na semente, o mais se desenvolve do

menos? Tal crescimento parece um aumento apenas para quem

vê somente a forma física, que é o instrumento material da exis-

tência. A ciência positiva se limitou a observar o ser apenas sob

este aspecto, que, apesar de não constituir toda a realidade, é

uma parte importante dela. Para compreendê-la toda, no entanto,

é necessário ver também a outra parte, interna e oculta, que foge

à investigação sensória, mas é a verdadeira causa daquele

“mais”, representado pelas formas nas quais o vemos aparecer

depois, no exterior, em nosso plano sensório. Compreende-se

então que este florescimento exterior, mesmo constituindo pro-

gresso através da evolução, não é uma criação, mas sim uma res-

tituição, constituindo uma reconstrução daquilo que pertenceu

ao S e que agora, por involução, encontra-se decaído no AS. A

ciência atual vê somente o lado exterior do fenômeno do ser,

atendo-se apenas a uma parte dele. Isto não está errado, mas tra-

ta-se de uma visão incompleta, porque ignora o lado oposto e

complementar, que é o princípio interior animador das coisas.

A progressiva complexidade das formas que expressam o

psiquismo não é a causa do seu progressivo aperfeiçoamento,

mas sim efeito deste. O sistema nervoso e cerebral, mais com-

plexo no homem do que nos animais – os quais, sendo hoje infe-

riores a ele, precederam-no evolutivamente – não é a causa da

sua maior inteligência, mas sim consequência da necessidade

que esta tem de um mais complexo instrumento para poder ex-

pressar-se e interagir no plano sensório. Mais exatamente, as du-

as partes se integram num dualismo de duas complementarida-

des opostas, que constituem a mesma unidade. O homem poderá

construir cérebros eletrônicos, mas com isto somente reproduzi-

rá o instrumento exterior do pensamento, a mecânica de que este

se serve para a sua manifestação. Estes dispositivos serão sem-

pre máquinas inanimadas, geradas por uma ação exterior, e não

por uma autoconstrução interior. Falta-lhes a parte interior do

fenômeno, aquela que encontramos na vida. Estas máquinas po-

derão ser mais um instrumento para ser acrescentado e utilizado

junto com aqueles que o pensamento já construiu para si mesmo

no plano orgânico, mas, como instrumento, continuam sendo

subordinadas e, portanto, permanecem sempre a serviço deste

pensamento, que só o homem possui. A ciência materialista, pa-

ra permanecer positiva, desinteressou-se, como se ele não exis-

tisse, deste outro lado do fenômeno, que lhe escapava. Mas a

existência também desta contrapartida imaterial na vida é pro-

vada pelo fato de seu instrumento de manifestação ser uma es-

trutura que se apoia num processo de renovação contínua. Trata-

se de uma arquitetura dinâmica, e não estática, funcionando or-

ganicamente, através de uma constante destruição e reconstru-

ção, como sucederia num edifício cujos elementos componentes

fossem continuamente substituídos por outros, colocando-se os

novos exatamente no lugar dos velhos, de maneira que, apesar

de mudar a matéria-prima, o edifício permanece o mesmo. As-

sim, apesar de estar em permanente transformação, o indivíduo

continua, no entanto, a ser o mesmo indivíduo. Isto permite que

o ser, apesar de continuar sendo o mesmo, transforme-se por

meio de imperceptíveis e sucessivos deslocamentos, processo

através do qual se realiza a evolução. Obtém-se assim um ins-

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98 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

trumento maleável, adaptado às exigências do psiquismo, que

dele se serve segundo as suas necessidades, proporcionalmente

ao seu diverso grau de evolução. Este transformismo é um fato

positivo inegável. Aquilo que permanece estável no meio desta

corrente de matéria flutuante é o tipo de organização que guia e

disciplina os seus movimentos, sendo este o princípio diretivo

constante que dirige todo o fenômeno. Eis a sua outra parte, que

é interior e o completa. Sem esta faltaria nele o elemento cons-

tante, que permanece onde tudo muda, unindo os momentos su-

cessivos do transformismo, impedindo que ele se disperse, cana-

lizando-o ao longo de um caminho marcado e fazendo-o con-

vergir em direção a um objetivo pré-estabelecido.

A unidade individual de cada ser, que o distingue de todos os

outros, é este eu interior, estando nele a alma do fenômeno vida.

Deste fenômeno a ciência deverá chegar a ver, além do aspecto

físico exterior, também o espiritual, e isto inclusive nos graus

mais involuídos da existência, como na matéria. Ela é conside-

rada inanimada, mas já se descobriu que está saturada de um

complexo pensamento, pelo qual o seu funcionamento é dirigi-

do. Psiquismo então de diversos graus, mas sempre onipresente,

em forma de pensamento, de princípio, de lei diretiva. Em qual-

quer nível, o sistema é o mesmo. Seja inferior ou superior, mais

ou menos desenvolvido, o psiquismo está sempre em evolução,

estando o germe daquele mais avançado, que aparecerá depois,

contido dentro do menos avançado. É uma espiritualidade uni-

versalmente imanente nas formas, que lhe fornecem consistência

física e constituem o seu instrumento de expressão. É assim que

não se pode separar um do outro, o aspecto material e o aspecto

espiritual do fenômeno, seu lado transcendente e seu lado ima-

nente. A matéria, por si só, não é completa nem autossuficiente,

sendo insuficiente, sem o suporte de um psiquismo animador e

regulador, para explicar e governar a vida.

A contraposição entre matéria e espírito deriva, como um

momento seu, do principio universal do dualismo, que abarca

tudo e tudo envolve, em razão do qual devia surgir uma cisão

também entre estas duas posições da existência. E isto corres-

ponde à realidade. Mas o erro consiste em querer entender tudo

isto como um antagonismo de opostos, quando se trata apenas

de unilateralidade de termos complementares, formando os dois

polos de uma mesma unidade, os quais, em vez de parti-la em

dois, fazem dela um elemento compacto, que se mantém sem-

pre como tal, não obstante ser constituído por dois momentos.

Apesar de ter duplo aspecto, a realidade é uma só. A divisão se

deve ao fato de ser possível observá-la sob dois pontos de vista

diferentes. O Céu e a Terra, o alto e o baixo, espírito e matéria,

estão incluídos no mesmo universo. A realidade material e a

espiritual são posições diferentes da mesma realidade, que pode

ser vista tanto no seu aspecto científico como no metafísico. A

unidade que de fato existe é um composto, formado pela fusão

de dois momentos: o princípio espiritual, que anima a forma

material, e a forma material, que veste e expressa o princípio

espiritual. Na realidade, não existe de um lado o espírito e, de

outro, a matéria, mas sim um espírito encarnado e uma matéria

inteligentemente organizada. A organização se torna sempre

mais complexa, quanto mais alto e espiritual é o grau de cons-

ciência que encontra naquela forma o instrumento da sua mani-

festação. A interpenetração entre os dois termos é profunda,

não sendo possível, na posição em que eles se apresentam na

Terra, durante a vida, separá-los, porque formam uma só reali-

dade, mesmo sendo lógico que, depois da morte da parte física,

o indivíduo se retraia no outro polo do ser, pois o dualismo,

constituindo a unidade, significa oscilação de um extremo dela

ao outro. Desta unidade, que é o homem vivo na realidade, a ci-

ência olha o lado material, e a metafísica vê o lado espiritual.

Medicina e biologia se dedicam ao corpo, e as religiões, à alma.

Mas, em vez de colaborarem, somando os seus esforços, estes

dois ramos do saber se eliminam. Quanto mais a ciência progre-

dir, tanto mais deverá aprofundar a sua investigação, penetran-

do no terreno da metafísica. Esta, por sua vez, quanto mais qui-

ser ser completa, tanto menos poderá prescindir de conhecer o

instrumento da manifestação do espírito.

◘ ◘ ◘

Este dualismo, dado pela união de dois opostos no seio da

mesma unidade, é encontrado em medida muito maior no fe-

nômeno máximo de toda a criação, porque não se pode separar

Deus e universo, o transcendente e o imanente, o espírito ani-

mador e todas as formas nas quais ele se manifesta. O princípio

que rege o fenômeno é sempre o mesmo. Conforme o exame

que fizemos, nos volumes A Grande Síntese, Deus e Universo,

O Sistema e Queda e Salvação, sobre todo o ciclo involução-

evolução, o qual sai do Sistema e regressa para ele, sabemos

que esta conjunção de opostos não é eterna, porque o dualismo

no qual se cindiu a unidade, devido à revolta e queda, é fenô-

meno transitório, sanável com o retorno do termo emborcado, o

AS, à sua origem, no seio do outro termo, o S, ou seja, Deus.

Eis que a forma – o instrumento constituído pela matéria para

expressão do espírito – é só um meio destinado a desaparecer

no fim, reabsorvido no psiquismo animador. Assim a matéria

voltará ao seu estado de origem: o espírito; o AS regressará ao

S; o Deus imanente, projetado na forma do universo físico –

seu corpo e instrumento de expressão na fase evolutiva atual –

retornará ao seu aspecto de Deus transcendente. Saneada, atra-

vés da evolução, a queda por involução na matéria, tudo volta

ao estado original de pensamento. Esta atual necessidade pela

qual o espírito, conforme acabamos de ver, não pode manifes-

tar-se senão utilizando como instrumento a matéria, sendo obri-

gado a descer e fundir-se nela, para encontrar ali a sua expres-

são, é como uma corrupção por involução, necessidade da qual,

no entanto, o próprio espírito, por evolução, vai-se libertando

progressivamente, constituindo formas cada vez menos materi-

ais e sempre mais refinadas e sutis, aptas a expressá-lo à medi-

da que, evoluindo, ele se aperfeiçoa. Assim, ao longo do cami-

nho da evolução, a estrutura do instrumento se transforma, mo-

dificando suas características, de modo a ficar proporcionada ao

grau de evolução da sua respectiva unidade espiritual, que deve

servir-se dela para a sua manifestação. É assim que, através da

evolução, o meio de expressão e instrumento de trabalho do es-

pírito, para acompanhar em posição paralela o desenvolvimento

psíquico, vai-se completando, complicando, sutilizando e, po-

de-se mesmo dizer, desmaterializando, de modo a se tornar um

órgão sempre mais inteligente e mais afim do pensamento, que

deve funcionar através de tal meio.

Esta é a história da evolução. Ela vai desde o polo matéria

até ao polo espírito. Hoje, no atual nível, encontramos estas du-

as posições do ser coexistindo fundidas, porque a matéria ainda

não foi superada para se chegar plenamente ao espírito. Mas, no

fim, o dualismo deverá cessar, porque o aspecto matéria da

substância será reabsorvido no seu aspecto espírito. Se o ins-

trumento no qual hoje vemos submergido este último é um pro-

duto da involução, é lógico que, por evolução, ele deva perder

cada vez mais as qualidades da matéria, até desaparecer como

tal, e adquirir sempre mais as qualidades do espírito, até que,

reconstruindo-se nesse estado em toda a sua potência e pureza,

não tenha mais necessidade de se enxertar em tais densos mei-

os, para funcionar e encontrar a sua expressão. Neste processo,

vemos a matéria sofrer uma profunda transformação, que a ela-

bora e a organiza, dispondo os seus elementos constitutivos em

formas sempre mais complexas. Notamos isto através da dife-

rença existente entre as células do sistema ósseo-muscular e as

células do sistema nervoso-cerebral. Na construção dos orga-

nismos, a tendência da evolução é superar e fazer desaparecer

as qualidades físicas, para dar lugar às psíquicas. Esta é a razão

pela qual, sobre a matéria, termina por prevalecer cada vez mais

o que é pensamento e espírito; sobre a quantidade, a qualidade;

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 99

sobre a massa dos elementos, a complexidade da sua organiza-

ção. Este contínua fusão entre espírito e matéria num único

composto transforma em profundidade a estrutura desta, levan-

do-a deste seu estado físico a um estado mais evoluído, no qual

ela perde as suas qualidades de matéria e, por uma espécie de

redenção por evolução, adquire as do termo situado no polo

oposto, o espírito, para o qual tudo tende.

Vivemos num mundo de verdades relativas, que podem pa-

recer contraditórias, mas são complementares. Assim espírito e

matéria são aspectos diferentes do mesmo princípio, olhado de

pontos de vista distintos. Trata-se de visões parciais, em que a

contradição desaparece, tão logo elas sejam reunidas numa vi-

são global mais vasta. Não se resolve o problema do espírito

negando a sua existência, mas somente enfrentando a dificulda-

de de compreender o fenômeno. Eliminar “a priori” os aspectos

da realidade que nos incomodam, porque não sabemos como

explicá-los e não temos um lugar para colocá-los em nosso sis-

tema, significa simplesmente renunciar ao conhecimento.

A vida é, portanto, um processo de espiritualização. A evo-

lução assume assim um sentido totalmente diferente da concep-

ção materialista darwiniana, tornando-se um movimento ascen-

sional, no qual se realiza a obra de construção dos valores espi-

rituais. Então aquele princípio evolucionista, que, na sua pri-

meira aparição, afigurava-se contrário às religiões, por ser ateu

e negador do espírito, tendo sido combatido por elas, pode hoje

ser entendido como uma confirmação cientifica das ideias reli-

giosas, porque sustenta a ascensão espiritual dirigida para Deus,

ponto conclusivo que explica e justifica o desenvolvimento de

todo o processo evolutivo.

Assim matéria e espírito, de dois opostos inconciliáveis, fi-

cam reduzidos a duas posições da existência. A tarefa da evolu-

ção é mudar o valor dos dois termos, transformando o primeiro

no segundo, de modo que, no fim, o dualismo seja sanado, fa-

zendo cessar a oscilação da existência entre os dois polos. No

final, depois de ter sido percorrido todo o ciclo involutivo-

evolutivo – quando então toda a matéria terá sido reabsorvida

no estado de espírito, a forma mutável ter-se-á transformado na

eterna substância e o universo físico (AS) terá sido substituído

pelo universo da consciência (S) – deve chegar o momento em

que também o Deus imanente se retrairá deste seu aspecto de

manifestação exterior e voltará ao seu aspecto verdadeiro, eter-

no e imutável, de Deus transcendente, como centro de sua ver-

dadeira criação, que é o universo espiritual.

Observemos vários fatos e significado deles. Temos esta

estrutura substancialmente unitária, cindida somente transitori-

amente num dualismo que, por sua natureza, está destinado a

ser sanado. Vemos que a cisão nos dois polos é só um inciden-

te dentro do princípio de unidade, que permanece intacto e so-

berano. No processo completo de involução-evolução, tanto o

ponto de partida como o ponto de chegada é o espírito, que só

transitoriamente desmoronou na matéria, para se reconstruir

mais tarde, no seu estado de origem. O eterno centro de tudo é

Deus transcendente no espírito, situado acima do seu aspecto

secundário e transitório como Deus imanente, submergido no

ciclo involutivo-evolutivo, onde a transcendência não se anula,

pois, apesar de interior, é sempre presente e ativa. Tudo isto

nos mostra que a base da existência é o espírito e que, na sua

atual posição dentro do ciclo involutivo-evolutivo, o instru-

mento do qual ele se serve, para satisfazer a sua necessidade de

se manifestar em nosso baixo plano de existência, é somente

um acessório temporário. Se o ser hoje encontra-se em fase de

oscilação entre o polo espírito e o polo matéria e se, no estado

de vida física, não podemos ver o espírito existir, a não ser

amalgamado na forma, sem a qual ele não encontra expressão

no plano físico, isto não significa que, em outras fases e posi-

ções da existência (ainda que estas não possam ser tomadas

hoje em consideração pela ciência, porque estão situadas fora

do terreno positivo da realidade sensória), o espírito não possa

existir isoladamente, por si mesmo, livre da necessidade de,

para se manifestar, utilizar tal instrumento, sem o qual hoje, na

Terra, não se perceberia a sua presença.

Estas considerações nos obrigam a admitir a sobrevivência

do indivíduo no estado de espírito. Isto significa aceitar que seja

possível o homem viver também sem corpo, de modo indepen-

dente deste seu meio de expressão no plano físico, meio do qual

ele se separa com a morte, deixando-o como matéria insensível

em decomposição, porque dele fugiu a vida, que está no espírito.

Portanto, mesmo durante sua existência no plano físico, é possí-

vel ao espírito funcionar de modo independente e acima das

possibilidades materiais de tal instrumento, transcendendo os

limites deste. Esta possibilidade, por parte do espírito, de superar

o seu meio físico de expressão corresponde à sua progressiva

potencialização por evolução, ideia perfeitamente admissível pa-

ra quem compreendeu que a função desta é libertar o espírito,

com o objetivo de, no fim, devolvê-lo ao seu estado de origem.

Eis como surge a possibilidade de se pensar não só cerebralmen-

te, por lógica e raciocínio, mas também espiritualmente, por in-

tuição. Compreende-se então como isto possa suceder nos indi-

víduos mais evoluídos, que se acostumaram na vida a praticar

especialmente esta segunda forma de pensamento. Isto fornece-

ria uma prova de que é possível estabelecer uma separação entre

o funcionamento no plano do espírito e o funcionamento no pla-

no cerebral, ou seja, entre a verdadeira mente e a mente do seu

instrumento, de maneira que ela possa manifestar-se de forma

autônoma, condição tanto mais estabelecida, quanto mais esse

espírito, por evolução, potencializou-se e tornou-se independen-

te. De fato, a evolução é um processo para libertar o espírito da

necessidade que ele tem, para poder alcançar a sua manifesta-

ção, de possuir um instrumento físico.

◘ ◘ ◘

A evolução é um regresso a Deus. Dizemos “regresso” por-

que é absurdo ir em direção a Deus, movendo-se de um primeiro

ponto de partida que não seja Deus. E Deus não é pessoa na

acepção humana, no sentido de pensamento que, para se mani-

festar, necessita de um instrumento físico. Se quiséssemos ver

Deus nesta posição do ser, nós o encontraríamos assim, no Seu

aspecto imanente, em nosso universo, que seria então o instru-

mento da Sua manifestação, como um Seu corpo, através do

qual se estabelece a forma que permite a Sua expressão no plano

físico. Mas Deus, em sua verdadeira essência, é transcendente,

sendo constituído de puro pensamento, assim como o homem é,

antes de tudo, espírito, sendo a sua verdadeira essência dada pe-

lo seu ser espiritual, que, no entanto, une-se ao corpo como a um

seu instrumento. Esta identificação a encontramos também entre

Deus e a Sua manifestação, que é o nosso universo. Isto signifi-

ca que, dentro deste, tal como o espírito no homem, encontra-

mos Deus, seu princípio animador, sem o qual o universo seria

coisa morta, sem alma, um cadáver, como é o nosso corpo,

quando o espírito o abandona. Assim a presença do espírito em

nosso organismo físico não seria senão um caso menor daquele

máximo, que é a imanência de Deus em nosso universo.

Ora, regresso a Deus por evolução significa regresso do ser

ao estado transcendente (S), de puro pensamento, porque Deus

em Si mesmo, acima desta sua transitória projeção em nosso

universo (AS), é puro pensamento, existindo sem necessidade

da forma, que agora o expressa nas dimensões inferiores do

plano da matéria.

Isto, que parece separação entre transcendente e imanente,

não é cisão. Pelo contrário, é uma ponte que mantém ligados e

comunicantes os dois polos ou aspectos do ser, unificando-os,

ao invés de dividi-los. É assim que encontramos o pensamento

de Deus transcendente animando as formas de existência, co-

mo seu princípio vital, sempre criador, superando a morte com

a regeneração contínua. Trata-se do princípio diretivo do fun-

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100 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

cionamento orgânico do universo, fruto da inteligência que

concebe a Lei e da vontade que a realiza. É deste modo que o

Céu tem o seu eco na Terra, onde podemos voltar a encontrar

os seus traços e a sua expressão. É este fato que mantém com-

pactos Céu e Terra, espírito e matéria, substância e forma,

transcendência e imanência, Deus e universo. Desta maneira,

Ele está presente como numa Sua manifestação, que O expres-

sa e O revela. Nas entranhas da matéria, a afinidade e atração

entre átomos e moléculas, por mais distantes que tais manifes-

tações estejam do amor, oferecem-nos dele um apelo e uma

semelhança. Assim o que acontece na coordenação das partes e

dos movimentos no seio de um organismo, repete-se nas leis

que regulam os contatos e combinações mútuas entre os ele-

mentos componentes, indicando-nos a presença de uma mesma

inteligência diretriz. É questão apenas do grau de manifestação

de um mesmo princípio fundamental, que, como um motivo

base, aparece pouco a pouco e vai-se desenvolvendo sempre

mais, até encontrar a sua plenitude no S. Vemos existir, já nas

formas mais elementares, como se estivesse encerrado numa

semente, a essência daquilo que, depois, chegará a ser amor-

sexo no nível vida, para tornar-se a seguir consciência nos pla-

nos superiores desta, até alcançar o amor e a onisciência de

Deus. Esta é a continuidade universal, pela qual não existe

qualquer momento que se possa isolar do todo ou que com ele

não tenha relações e nele não se repercuta. O todo-Deus é um

conjunto orgânico absolutamente incindível. Compreende-se,

desse modo, como o instrumento esteja ligado ao espírito, que

dispõe dele como de uma máquina, da qual ele, movendo-a e

controlando-a, serve-se para poder viver no plano físico. Dada

esta interpenetração e colaboração, é natural que o instrumento

tenha de acompanhar, com o seu aperfeiçoamento, a evolução

do espírito, tornando-se assim cada vez mais complexo organi-

camente, de modo a poder responder às crescentes exigências

da personalidade que se serve dele. E quando dizemos que este

instrumento é matéria, devemos recordar que matéria significa

uma organização de cargas dinâmicas, cujos impulsos, combi-

nações e movimentos obedecem a uma lei reguladora, pela

qual todo o conjunto fica fundido no mesmo funcionamento,

resultando tudo isto em algo muito mais conceptual e dinâmico

do que material. Então, para além de tantas distinções, não en-

contramos no fundo senão uma única realidade, dada por uma

mesma substância, à qual todas as coisas são redutíveis.

Somos nós que a dividimos, isolamos e contrapomos nos

seus diversos aspectos, porque estamos imersos no relativo.

Mas, no fundo, ciência e misticismo, racionalidade positiva e in-

tuição, são somente diferentes modos de ver a mesma, única e

universal realidade, que é Deus. Dele, suprema verdade, o pen-

samento humano se acerca gradualmente. No nível mais concre-

to e positivo, dado pela matéria, temos a análise científica com

os meios sensórios e experimentais. Temos depois as concep-

ções refletidas da filosofia, que se elevam mais acima do concre-

to, penetrando no universal e atuando por abstrações. Finalmen-

te, temos a teologia, que se projeta no cimo das causas primei-

ras. Cada uma explora a sua zona e, por espírito de domínio, de-

sejaria dar-lhe valor universal, eliminando as outras, que lhe são,

não obstante, complementares. Desta maneira, portanto, o aspec-

to espiritual das coisas também é inseparável do seu aspecto ma-

terial. Quem se detém em apenas um deles, negando o outro, dá

prova com isto de falta de conhecimento. Quando não se sabe

solucionar um problema, elimina-se a existência dos fatos, ne-

gando-os, em vez de se admitir a própria ignorância. Para nos li-

bertarmos do peso do desconhecido, suprimimos o que escapa à

nossa compreensão. A ciência não chegou ainda a comprovar

positivamente a existência de Deus, mas, à medida que progride

em profundidade, ela não poderá deixar de ver este princípio

universal, inteligente e regulador de todos os fenômenos. Num

primeiro momento, ele deverá ser admitido pelo menos como

hipótese, indispensável para poder explicar os inúmeros fatos

que vemos harmonicamente coordenados, num funcionamento

orgânico, ligados por uma rede comum, segundo um plano de

trabalho subordinado a um determinado fim, fatos que não po-

dem ser explicados a não ser em função de uma íntima sabedoria

orientadora. Com o progresso da ciência, não se poderá deixar

de descobrir que Deus é o ponto final da evolução, em função do

qual ela existe, sendo esta a explicação e, portanto, a justificava

para o imenso trabalho de se ter de percorrer um tão longo ca-

minho. Será inevitável descobrir que, naquele supremo ponto de

convergência, o incessante transformismo fenomênico deverá

encontrar a sua solução, porque ele terá esgotado a sua tarefa,

que é reconduzir a substância desde a sua fase de matéria (AS)

até à sua fase de espírito (S).

Será um conceito novo para a ciência atual – afirmado e de-

monstrado por nós – este de uma evolução que é espiritualiza-

ção, o qual atribui a esta um sentido e um valor superior, já intu-

ído e pregado pelas religiões. Este é o nosso físio-dínamo-

psiquismo, que é dado, como diria Teilhard de Chardin, pelo flo-

rescer de uma biosfera a partir da geosfera e de uma noosfera a

partir da biosfera. Então ciência e religião se darão conta que

contrapuseram, como inimigos, aqueles que não eram senão dois

aspectos da mesma verdade. Uma vez entendido isso, não mais

se condenará como panteísta quem, não podendo conceber Deus

só no seu aspecto transcendente, isolado do universo, sente-O

também no seu aspecto imanente, presente no universo, como

pensamento diretivo e vontade animadora do transformismo fe-

nomênico, identificado com as leis da existência, que são ex-

pressão do Seu pensamento, constituindo um Deus independente

e, ao mesmo tempo, intimamente ligado a todas as formas do

ser, que são simplesmente as formas do Seu ser. Assim o natural

e o sobrenatural não são duas posições contrapostas, mas apenas

dois graus do mesmo processo de evolução, ou seja, de reapro-

ximação a Deus. Eles não se excluem nem se contrapõem, mas

se completam, porque o grau superior é a continuação do inferi-

or, no qual está contido como germe e do qual se desenvolve.

Um conceito completo de Deus não pode ser dado senão pe-

la fusão dos seus dois aspectos: o central, ponto de convergên-

cia do todo, Deus pessoal e transcendente; e o periférico, diver-

gente na multiplicidade das formas de sua manifestação, Deus

impessoal e imanente. Trata-se de uma natureza que é não ape-

nas sustentada pela presença de Deus, mas também ajudada por

esta a se elevar até junto Dele, através do sobrenatural. É certo

que a matéria encontra-se nos antípodas do espírito, represen-

tando a posição mais afastada de Deus. Mas isso não significa

que ela se encontre fora do alcance Dele, que, por meio de Sua

presença, mantém viva nela sua complexa organização. Não é

panteísmo dizer que a unidade permaneceu íntegra acima do

dualismo e que o amor de Deus reúne e mantém tudo unido. A

ideia de Cristo nada perde em valor, se a concebermos como

incorporação do princípio evolutivo, cuja finalidade é levar o

homem até Deus, e atribuirmos assim à redenção um significa-

do aceitável para a ciência, como salvação por evolução, reali-

zada pela ascensão da matéria até ao espírito. Até mesmo à

ideia de Satanás no cristianismo pode-se, desse modo, dar um

significado aceitável, porquanto, em contraste com o princípio

de evolução e salvação (S), representado por Cristo, podemos

concebê-lo no extremo contrário, como personificação do prin-

cípio de involução e perdição (AS), situado no polo oposto do

dualismo, contido na mesma unidade do todo-Deus.

◘ ◘ ◘

Muitos conceitos do cristianismo não são mais aceitáveis

hoje, pelo fato de serem não só expressos em forma anticientí-

fica, antiquada e dependente de sistemas filosóficos supera-

dos, mas também apresentados em forma fideística irracional,

agora já demasiadamente afastada da psicologia moderna po-

sitiva, de modo que não se enquadram num sistema científico-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 101

filosófico que os explique e justifique, pois trata-se de concei-

tos nascidos por inspiração ou intuição, sem um controle obje-

tivo. Isto não significa que os conceitos estejam errados, mas

sim que, colocados desse modo, ficam suspensos no ar, à

mercê do mistério, abandonados ao subconsciente, o que, na

prática, permite adaptações e evasões, provocando às vezes

choques com a realidade biológica ou, até mesmo, resolven-

do-se num absurdo. As religiões futuras, se quiserem sobrevi-

ver, deverão voltar a tomar, desde o início, este imenso mate-

rial acumulado nos séculos, para elaborá-lo, sistematizá-lo,

completá-lo e atualizá-lo, não como se ensaia agora, com re-

toques de superfície, mas sim com uma revisão e reorganiza-

ção profunda, que incorpore e assimile o pensamento laico ci-

entífico, outro material imenso e ainda mais gigantesco.

Portanto, como acabamos de dizer, o conceito do sobrenatu-

ral pode subsistir, se for entendido como nível evolutivo mais

avançado, e não como uma supernatureza, que se contrapõe à

própria natureza, como se pudessem existir duas naturezas dife-

rentes, dirigidas por duas leis diferentes, o que é absurdo. Na

verdade, não temos senão diferentes graus de evolução da

mesma natureza, dentro da única lei de Deus. A evolução é o

único conceito que pode dar sentido a esta concepção. A natu-

reza é o nosso nível biológico, com as suas respectivas formas

de vida, no lado AS. A supernatureza pode significar níveis

biológicos mais avançados na direção do S, que são, hoje, ante-

cipados pelos ideais e serão, amanhã, alcançáveis por evolução.

Assim a contradição entre dois opostos, dentro da mesma obra

realizada por Deus, desaparece, porque se torna um encadea-

mento lógico de momentos consecutivos, ambos necessários

dentro do mesmo processo evolutivo.

Da mesma forma, poderia ser dado ao conceito de “graça”

um significado positivo, racionalmente aceitável. Poderia cha-

mar-se “graça” à resposta de elementos mais avançados, per-

tencentes aos graus superiores de evolução, em relação à tenta-

tiva do ser para alcançá-los; à extensão do S em direção ao AS,

para fazê-lo subir até ele; à manifestação, no mundo, da presen-

ça do Deus imanente, que dirige e ajuda a evolução. Então, às

várias intuições das religiões, apresentadas como verdades, po-

deria ser dado um significado que as tornasse aceitáveis, evi-

tando que elas sejam lançadas ao esquecimento. Assim, a “gra-

ça” poderia expressar o fenômeno da inspiração, conectado

com a realização da descida dos ideais.

É certo que, se estes conceitos permaneceram de pé até ho-

je, então deve haver algo de verdadeiro neles. Mas é necessário

encontrar este conteúdo e mostrá-lo, se quisermos que a mente

moderna os tome em consideração. Eles são o produto de ou-

tros processos mentais, já superados hoje, tendo sido conduzi-

dos em função de outros pontos de referência, de modo que,

apresentados desta mesma forma, a qual era a mais adaptada e

mais conveniente no passado, resultam hoje inaceitáveis para

mente moderna, que não encontra sentido neles. É necessário

levar em conta que, hoje, a maneira de conceber as coisas é di-

ferente. Portanto é difícil fazer concordar uma religião filha do

passado com o pensamento científico moderno. O grande dra-

ma espiritual do mundo atual consiste no fato de ter sido o de-

senvolvimento do pensamento diretivo transferido da religião,

cuja estagnação a deixou para trás, para a ciência, que, pelo

contrário, progredindo, já tomou agora a iniciativa, avançando

por sua conta, independente da fé, para a qual restou um papel

secundário no pensamento. Hoje, quem deve se atualizar é a re-

ligião, que se transformou em serva da ciência, atrás de quem

ela tem de correr, para não ficar atrasada. Inverteram-se os pa-

péis, e a sabedoria de Deus, havendo passado para a retaguarda,

tem de ser arrastada pela sabedoria do homem. A religião trata

de se salvar, adaptando-se, mas a revolução do pensamento é

demasiado grande para se poder remediar com as habituais

acomodações. Remendar a casa não resolve. Ela foi construída

para inertes, em tempos demasiado diversos para que se possa

hoje habitar ali. Se não se pretende que a casa fique deserta, é

necessário refazê-la sobre os mesmos fundamentos de Cristo,

mas refazê-la desde os alicerces. Hoje, as afirmações metafísi-

cas gratuitas e não provadas, baseadas sobre a tradição e o prin-

cípio de autoridade, tomando como apoio pontos de referência

arbitrários, não resistem ao contato com a realidade positiva

dos fatos e não são mais levadas em consideração. Isto não sig-

nifica que as afirmações das religiões não sejam verdadeiras,

mas sim que demasiadas incrustações e superestruturas medie-

vais as cobriram e as sufocaram. É necessário regressar à fonte

original, eliminando o supérfluo e dando-lhes a sua verdadeira

dimensão, para completá-las e desenvolvê-las à luz do progres-

so mental moderno. Seria necessário ter a força de realizar este

passo à frente e, assim, alcançar a ciência. Mas o risco de sair

das velhas estradas assusta. Falta a fé e a coragem para se aven-

turar no novo; falta a visão clara de uma verdade mais evoluída

e mais completa, pelo menos de uma sua apresentação em tal

forma; faltam os homens com sabedoria para produzi-la, os no-

vos gênios da verdade, capazes de tomar o lugar dos sonolentos

repetidores das velhas fórmulas, dos burocratas da fé, que, por

encontrarem nas coisas velhas a base das suas posições terre-

nas, são arraigados defensores delas.

A ciência se move diretamente na direção de conhecer o

funcionamento dos fenômenos e o porquê das coisas, sem se

deixar obstar pela preocupação de fazer concordar os fatos com

as lendas bíblicas e a tradição, para lhes salvar o valor. Isso in-

teressa somente àqueles que, sobre tais bases, apoiam a existên-

cia do próprio grupo, pois elas os protegem, mas não interessa

aos investigadores da verdade, aqueles que querem saber como

de fato tudo se desenvolveu no passado. Perante o pensamento

moderno, muito mais maduro, que valor positivo podem ter

afirmações provavelmente simbólicas, apresentadas de uma

forma antropomórfica, única linguagem possível de ser com-

preendida pelos homens naquele tempo? Como tomar ao pé da

letra uma narração que devia esconder conceitos mais comple-

xos, impossíveis de se expor a quem não os podia entender?

Como pode uma era de pensamento mais evoluído aceitar o

pensamento mais primitivos das épocas anteriores? O investi-

gador não pode trabalhar amarrado a tudo isso, paralisado pelo

fardo de tantas soluções pré-estabelecidas, que desejariam fixar

o seu pensamento, detendo-o num grau de evolução mental já

superado. As teorias do passado podem interessar à história da

filosofia, ao professor que as estuda, mas estorvam o caminho

para quem quer, pelo contrário, construir e progredir.

É claro que as religiões continuarão tratando de conservar o

seu patrimônio tal qual ele é. Com isso, a função assumida por

elas volta-se no sentido de conservar valores, e não certamente

no de fazer progredir o pensamento. Este, no entanto, continua

avançando por sua conta, sem as religiões, que não têm o poder

de detê-lo. A evolução é uma lei divina e fundamental da vida,

não sendo permitido a ninguém paralisá-la. Mas eis que, assim,

nasce a luta entre o velho, que não quer morrer, e o novo, que

deve desenvolver-se. O primeiro resiste, mas, por lei da vida,

acaba sendo vencido pelo segundo. A renovação se realiza atra-

vés desta luta, na qual triunfa o mais forte, que é o novo. É a

própria lei de Deus que quer assim. Vive-se para avançar. Hoje,

as religiões representam o velho, ao passo que a ciência repre-

senta o novo. A função desta não é destruir as verdades daque-

las, mas sim esclarecê-las, demonstrá-las, atualizá-las e desen-

volvê-las, eliminando o que já não é mais aceitável. Na verda-

de, com esta luta, o novo se coloca a serviço do velho, ajudan-

do-o a sobreviver naquilo que este tem de bom, porquanto, sem

esta renovação, apenas lhe restaria morrer definitivamente. Se

soubermos pôr cada coisa no seu devido lugar, veremos que tu-

do cumpre a sua função e, por isso, é útil à vida, tendo, portan-

to, a sua razão de existir, que lhe justifica a presença.

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102 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

Não se pode suprimir a religião. Mas podemos imaginar

quão mais inteligente e convincente deverá ser a religião do fu-

turo, que, em vez de cego produto do subconsciente instintivo,

será o resultado de uma compreensão mais racional das leis da

vida, constituindo uma religião mais forte e mais pura, mais

clara e mais honesta, porque caminhará em paralelo com a ci-

ência, sua aliada. Assim, iluminada não só pelo relâmpago da

intuição reveladora, mas também pela trabalhosa construção

mental, fruto do esforço humano, teremos então uma religião

com uma norma de conduta moral demonstrada, mais sólida,

mais sincera e mais justa em relação à atual, que é resultado da

luta pela vida, e não de uma compreensão dos problemas. Não

se pode parar a criatividade religiosa somente porque já se fez

muito neste terreno no passado. O caminho dos profetas, dos

grandes inovadores, dos gênios, dos santos e dos pensadores

não pode ser detido. Onde tudo evolui sem pausa, nem mesmo

as religiões podem parar. O trabalho do passado deve continuar

em outras mãos e em outras formas, prosseguindo com a vida,

que avança. Renovar não é destruir, é prosseguir. Como acon-

teceu no caso de Cristo, um novo testamento está sempre em

ação, para desenvolver o antigo. É o pensamento de Deus que

avança na Terra, revelando-se sempre mais. E esta revelação

não pode parar, de modo que ela tomará outras formas, seja de

descobrimento científico, de síntese filosófica, de revolução so-

cial ou de nova ordem política. A evolução deve levar a uma

purificação das religiões, porque conduz a um esclarecimento

de posições, a uma superação da luta entre antagonismos, a

uma racionalização das relações entre os homens e Deus. Para o

homem civilizado, este método será mais produtivo, inclusive

espiritualmente, porque se apoiará sempre menos sobre a coa-

ção psicológica do terror, instrumento do qual se abusou dema-

siadamente até agora, e cada vez mais sobre a livre persuasão,

advinda da convicção espontânea.

Antigamente o céu era aquele espaço desconhecido que es-

tava por sobre os cimos dos montes e dos pináculos das torres

das igrejas, constituindo a morada de Deus. Hoje, este mesmo

céu está sendo explorado pelos astronautas, que não encontra-

ram nele anjos ou santos. Hoje, as religiões necessitam do cien-

tista cujo conhecimento possa dizer-lhes algo além do que elas

já sabem. É necessário definir com critérios mais positivos os

conceitos nebulosos que são hoje objetos de fé, esclarecendo o

que se entende por espiritualidade, explicando o que se busca

fazer com ela e demonstrando para que ela serve, para provar a

sua utilidade e justificar a sua aceitação. Tudo isto é necessário,

caso se queira que as pessoas se interessem por tais coisas, por-

que a tendência atual é, com todo o respeito, simplesmente

abandoná-las em um canto, como inúteis, e assim, sem sequer

dar-se ao trabalho de destruí-las, deixá-las morrerem por si só.

A crise mais profunda dos tempos modernos é o antagonis-

mo entre ciência e fé. A primeira já avança agora por si própria,

não se interessando mais pela segunda, da qual, dado que não

serve, prescinde. Certas ideias, que foram fundamentais antiga-

mente, parecem não dizer mais nada à mente moderna. As reli-

giões dormem, e a vida caminha. Elas pretenderiam deter a vida,

e a vida as deixa para trás. A ciência produziu coisas extraordi-

nárias, entusiasmando, porque avança. As religiões permanecem

ruminando as suas verdades eternas e já não interessam, porque

não produzem nada. Deter-se num mundo em marcha é morrer.

Justamente por quererem conservar-se, as religiões correm risco

de acabarem. Se algo é intentado para avançar, a reação é a con-

denação. Ai de quem incomoda os que dormem! Quem o faz é

um herético. Então, por que perder tempo numa luta inútil, para

fazê-las caminhar à força, quando isto é tão reprovável? Não é

melhor avançar sem elas, deixando-as dormir? É precisamente o

que o mundo está fazendo hoje, porque a ciência construiu as

suas próprias pernas e já sabe andar sozinha. Mas por que esta-

mos obrigados a chegar a tais conclusões?

XIII. TRABALHO E PROPRIEDADE

I – As três fases da evolução do trabalho e da propriedade.

O homem se encontra vivendo num mundo onde cada ser

tem de abastecer-se a si mesmo. Desse modo, quem busca ob-

ter o que lhe é necessário para a sua vida deve ganhá-lo lutan-

do contra todos. Nada lhe cai gratuitamente do céu, devendo

tudo ser o resultado de um esforço seu. Esta é a origem daquilo

que se chama trabalho. Também as feras na selva estão sujeitas

ao trabalho, porque devem prover a sua comida, agredindo e

matando os outros animais. Eis que a lei do trabalho é uma lei

biológica fundamental.

O princípio de propriedade corresponde a outra lei biológica

fundamental. Cada ser, inclusive o animal, considera como sua

propriedade tudo que ele – trabalhando e vencendo todos os

obstáculos, impostos pela natureza ou pelos seus rivais – con-

quistou com o próprio esforço, na luta pela vida. Assim as abe-

lhas sabem que a colmeia repleta de mel é produto do seu es-

forço e lhes pertence, razão pela qual elas, por direito de pro-

priedade e de legítima defesa do fruto do seu trabalho, não dei-

xam que lhe roubem o mel. Da mesma forma, o cão, dando em

troca do pão que recebe do seu dono a defesa da casa onde este

habita, sabe que deve compensar com o seu trabalho de defesa

o soldo recebido em forma de alimento, o qual depois, com

pleno direito, ele defende como sua legítima propriedade. E o

cão também compreende quais são os limites da sua proprieda-

de, uma vez que não morde quem passa pela estrada, mas so-

mente quem entra no terreno ou na casa do seu dono.

Nosso objetivo, com estes exemplos, é demonstrar que,

desde as suas primeiras origens e raízes biológicas, os princí-

pios do trabalho e da propriedade são conexos, legitimados pe-

las próprias leis da vida e nela profundamente radicados. Eles

são princípios centrais, pois fazem parte da lei fundamental de

luta pela vida, para a seleção do mais forte e mais capaz, e da

lei de equilíbrio e justiça, pela qual tudo, para chegar depois a

ser nosso, deve ser ganho com o nosso esforço, somente per-

manecendo como nossa propriedade, para nossa vantagem, en-

quanto e na medida em que soubermos defendê-lo. Trabalho e

propriedade são também princípios conexos, porque, desde as

suas formas de origem, é por meio do primeiro que se chega ao

segundo. Ora, tudo nos diz que trabalho e propriedade não são

princípios teóricos e artificiais, como uma superestrutura fora

da realidade da vida, mas sim fenômenos biológicos, sobre os

quais se baseiam as correspondentes instituições jurídicas e so-

ciais. Estas têm, portanto, pleno direito de existir, uma vez que

derivam não de abstrações, mas sim das próprias leis da vida,

que se encontram acima de toda vontade humana e não podem

ser por ela construídas nem de destruídas. O melhor método pa-

ra encontrar um apoio seguro para as próprias afirmações é ba-

seá-las sobre as indestrutíveis leis da vida. Se, apesar disto, ve-

mos depois aparecerem ataques contra o instituto da proprieda-

de, constataremos que isto é devido ao mau uso que se faz dela,

pois sua justa obtenção não garante sua manutenção.

Para entender o fenômeno trabalho e propriedade, é necessá-

rio observá-lo na sua evolução. Estabelecido o conceito funda-

mental da sua base biológica, veremos que, evoluindo com a ci-

vilização, tal fenômeno se transforma no núcleo da moderna or-

ganização social. Observamos primeiramente a evolução do tra-

balho. Aquilo que era, na sua primitiva forma individual, a luta

de um ser isolado contra todos, transforma-se e, porque isto é

vantajoso, passa a se realizar, pelo contrário, através de um sis-

tema de colaboração. Alcança-se assim uma posição mais con-

veniente, porque, em vez de ser obrigado a suportar um duro re-

gime de luta contínua contra todos, cada um oferece aos outros

aquilo que ele produz com o seu trabalho, recebendo deles em

troca aquilo que, por sua vez, eles produzem também com o seu

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 103

esforço. Por evolução, a vida chega até esta forma, na qual se

obtém uma posição de menor atrito e de um correspondente me-

nor gasto de força, atingindo assim a vantagem de uma maior

produção, o que significa maior bem-estar para todos. Assim, o

pesado sistema do egoísmo separatista e agressivo transforma-se

neste outro, de maior rendimento, dado pela convivência pacífi-

ca e cooperação. É assim que se passa do mundo desorganizado

da luta feroz dos animais ao tipo de vida coletivamente organi-

zada da sociedade humana civilizada. Tudo isto concorda ple-

namente com o princípio geral que tínhamos demonstrado ante-

riormente, segundo o qual está implícito nas leis da existência

que esta seja tanto mais dura e difícil, quanto mais baixo se en-

contra o ser na escala evolutiva, e vice-versa.

O mesmo fenômeno se verifica no caso da evolução da pro-

priedade. Acontece então que, nos planos biológicos mais bai-

xos, ela se sustém somente enquanto o indivíduo tem a força

necessária para defendê-la com os seus braços e armas. Já nos

níveis mais elevados, dentro de um organismo social, ela se en-

contra garantida e defendida pelas leis e pelo respeito que cada

indivíduo tem pela propriedade dos outros. Assim, cada um de-

ve submeter-se a esta disciplina, mas ao mesmo tempo recebe,

por reciprocidade, como compensação pelo seu dever de respei-

tar a propriedade dos outros, a vantagem de também ter a sua

propriedade respeitada. Só assim o indivíduo poderá possuir em

paz o fruto protegido do seu trabalho, sem ter de lutar com as

armas, a cada momento, para defendê-lo. Eis que, como dizía-

mos, a evolução conduz a um melhoramento nas condições de

vida. A forma de propriedade encontrada nos países primitivos,

regidos por uma economia de furto, é tremendamente fatigante

e incerta, porque, sendo totalmente instável, somente pode ser

sustentada a custo de uma guerra contínua, que absorve todas as

energias e não pode produzir senão miséria para todos. Aconte-

ce, então, que em nenhum país é tão usado o regime de propri-

edade em comum como naqueles regidos por uma economia de

furto, onde, na competição entre ladrões, ninguém mais sabe

nem sequer o que possui, podendo amanhã possuir tudo ou ficar

sem nada, pois não há nenhuma estabilidade que garanta qual-

quer posição econômica. Assim a liberdade do primitivo, goza-

da em maior medida em relação ao homem civilizado, resolve-

se em última análise a uma escravidão às consequências do seu

método, que são a guerra e a contínua falta de segurança. Então

o que parece ser um sistema de vida mais fácil e vantajoso,

acaba sendo o sistema mais difícil e prejudicial. Tais são e as-

sim funcionam as leis de vida, e ninguém pode impedir o seu

funcionamento nem fugir-lhe às consequências.

Nos países civilizados do mundo moderno, encontramos tra-

balho e propriedade em fase mais avançada, mais evoluída, dis-

tante de sua origem, que tivemos de levar em conta para provar

a existência das sólidas bases biológicas destas duas instituições.

Veremos que, quanto mais civilizada é uma sociedade humana,

tanto mais o conceito de propriedade se transforma em sentido

antisseparatista, assumindo uma função de utilidade coletiva. E

veremos também que, com a evolução, o conceito de trabalho se

transforma em sentido antiegoísta, assumindo uma função orgâ-

nica, realizada em forma colaboracionista. Não se trata de uma

destruição dos referidos princípios biológicos fundamentais, mas

sim de uma sua transformação e aperfeiçoamento. Nisto consiste

a sua necessária evolução. Quando tivermos compreendido que

se tratam de fenômenos biológicos, os quais não podem ser eli-

minados, mas apenas transformados por evolução, compreende-

remos também que o princípio de propriedade pode ser somente

aperfeiçoado, e não suprimido. É por isso que não há comunis-

mo capaz de mudar as leis da vida. Nenhum programa ideológi-

co, seja ele qual for, jamais poderá chegar à destruição da pro-

priedade, mas apenas a uma sua diferente distribuição. Ela se

tornará mais justa e mais equilibrada, mas isto é problema de

aperfeiçoamento evolutivo, e não de destruição.

Eis as transformações evolutivas a que está submetido o fe-

nômeno do trabalho e da propriedade. O resultado é que o pri-

meiro ganha como poder produtivo e, assim, leva a um maior

bem-estar, progredindo em sentido positivo, enquanto, ao

mesmo tempo, a propriedade se liberta do peso da luta entre ri-

validades, superando as negatividades dos níveis biológicos

mais baixos, submetidos às incertezas de uma contínua instabi-

lidade. Tudo isto representa uma vantagem que a vida, pelo fato

de ser utilitária, está sempre pronta a aceitar. Além do mais, a

finalidade maior da evolução, que representa a lei fundamental

da vida, é precisamente alcançar uma contínua melhoria das

condições da existência. Há na vida uma irresistível vontade de

progresso, que, em termos mais vastos, pode-se chamar de ten-

dência a avizinhar-se cada vez mais do ponto final do caminho

da existência, o qual é Deus. O fenômeno da evolução do traba-

lho e da propriedade faz parte deste programa, que é de ascen-

são, de aperfeiçoamento, de conquista do bem e de libertação

do mal. Assim, se nada pode ser destruído, tudo pode, no entan-

to, ser transformado por evolução. Isto quer dizer que, perante

as leis da vida, a verdadeira função do princípio coletivista é ser

um processo não de destruição da propriedade, mas sim apenas

de valorização dela como função coletiva, que, no novo estado

orgânico da sociedade, torna-se cada vez mais importante, com

vantagem para todos, às custas da paralela desvalorização das

funções de vantagem individual e de interesse particular, hoje

preponderantes. A atual tendência da evolução é transformar

uma propriedade que no passado era só em favor do seu dono,

numa propriedade concebida preponderantemente como função

social de utilidade coletiva. Esta é – independente do comunis-

mo, que não é senão um aspecto e consequência do fenômeno –

a tendência atual do movimento evolutivo, devida ao novo tipo

de vida organizada alcançada pela humanidade.

Focalizando melhor a nossa observação sobre o fenômeno

da propriedade, constatamos que existem três fases na sua

evolução:

1a) A fase da conquista, na qual a propriedade é mantida por

qualquer meio, sendo necessário a defesa armada contínua para

protegê-la.

2a) A fase da legitimação legislativa, na qual o grupo ven-

cedor, que já conquistou a propriedade, torna estável a sua po-

sição de dono e, defendendo-a com um sistema de leis, organi-

za-se como classe dirigente, no seio de uma ordem feita para

ele, a seu favor. Assim nasceu o direito romano, que, definindo

com normas e, deste modo, regulando a conduta, tornou-se es-

tável, sendo seguido depois pelo regime feudal medieval, do

qual derivou o capitalismo burguês.

3a) A fase da socialização, na qual a posse dos bens está re-

servada a favor não somente de uma classe dominante, mas

sim de toda a coletividade, que é admitida nesta posição sem

exclusão de nenhuma parte. Prevalece, assim, uma outra forma

de propriedade, acessível a todos que trabalham, e não mais re-

servada apenas a um grupo limitado e privilegiado. Se bem

que semelhante transformação possa parecer um sacrifício para

quem possui, ela representa para este uma grande vantagem.

Somente nesta forma de livre socialização, através de uma

mais equilibrada distribuição capitalista – condição pela qual é

eliminada a classe inimiga e perigosa dos esfaimados, sempre

prontos a assaltar o paraíso dos ricos – será possível, eliminan-

do as suas causas, libertar-se das revoluções, que são sempre

movidas pelos que não possuem contra os que possuem, estan-

do estes hoje submetidos a uma contínua ameaça, com a qual

se torna incerta a sua propriedade. É verdade que seria vanta-

joso eliminar este defeito das posições atuais, mas isto não é

possível, a não ser suprimindo a causa dos impulsos agressivos

contra elas. O fato de que o instinto de todos é melhorar, leva

pouco a pouco a esta outra forma de propriedade, mais garan-

tida e estável em favor de quem possui.

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104 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

Agora que examinamos o fenômeno do trabalho e da propri-

edade no seu aspecto dinâmico, e não na sua posição estática,

observando seu transformismo através dos diferentes níveis de

evolução, vejamos como, segundo o seu diverso grau de desen-

volvimento, os povos concebem e enfrentam semelhantes pro-

blemas nas três formas já descritas. Existem povos ainda primi-

tivos, subdesenvolvidos, que concebem trabalho e propriedade

na primeira daquelas três formas. E há povos mais civilizados,

que concebem tudo isto na segunda forma, mais avançada.

1o) Segundo o primeiro tipo de mentalidade, constitui legí-

tima propriedade tudo aquilo que o indivíduo consegue agarrar

com suas próprias mãos, objetos dos quais ele se considera do-

no, julgando justo possuí-los, enquanto tiver força para defen-

dê-los do assalto dos outros. Neste nível, a propriedade é so-

mente posse, uma conquista livre, sem qualquer outra lei ou li-

mite, a não ser a própria força para consegui-la e defendê-la.

Tudo é livre então, mas é também inseguro e instável ao máxi-

mo, pelo fato de estar continuamente assediado pela equivalen-

te liberdade alheia, de igualmente empossar-se de tudo. Neste

nível, a propriedade é um estado de luta contínua, na qual o

maior trabalho não é produzir, mas sim roubar, processo que

nada produz, a não ser guerra e miséria para todos. Temos as-

sim uma sociedade feita de ladrões, roubando-se continuamente

uns aos outros, mas todos pobres, porque o furto não produz, se

bem que reclame grande dispêndio de energia. Se tal energia

fosse, pelo contrário, toda utilizada para produzir, eles poderi-

am ser ricos. No entanto são condenados por sua própria igno-

rância a fazer um duríssimo e infernal trabalho, para, no fim,

não produzir nada e acabar na miséria. Ainda há países que vi-

vem desta economia de furto, e este é o resultado. De que me

serve a permissão para roubar o próximo, quando ele pode fazer

o mesmo comigo e, por lei de reciprocidade, qualquer um pode

roubar, se todos acabamos sendo roubados? Assim, pela dema-

siada liberdade e pela voracidade de possuir tudo cada um para

si, chega-se à posição oposta, dada por um coletivismo em que

não existe mais propriedade particular garantida e tudo é de to-

dos, porque, a todo o momento, cada um pode ganhar tudo,

roubando, e perder tudo, sendo roubado.

2o) No segundo caso, a propriedade é garantida, porque o

furto não é admitido. Não se alcançou ainda um regime de jus-

tiça para todos, mas já existe uma disciplina e uma ordem. Es-

ta, no entanto, tem o defeito de não ser completa, por estar li-

mitada a um grupo ou classe social dominante, de modo que

existe sempre o perigo da revolução, resultante da rebelião por

parte dos deserdados, excluídos do banquete servido aos que

possuem. Ora, semelhante perigo poderá ser eliminado em fa-

vor da segurança da propriedade somente quando a posição

privilegiada dos componentes dessa classe não seja mais ex-

clusiva para eles, mas sim estendida a todos. Contudo, mesmo

não tendo chegado a esse ponto, ao menos um primeiro núcleo

de ordem, dado por um modelo do novo tipo de vida coletiva,

já se formou no meio do caos da liberdade absoluta do caso

precedente e, dentro do terreno fechado daquele recinto, a luta

se deteve, eliminando a incerteza, porque já existem leis que

disciplinam a aquisição da propriedade e lhe garantem a posse.

Neste sistema, a propriedade é alcançada não por meio do fur-

to, como no caso anterior, mas sim pelo trabalho; não por meio

da força, mas sim pelo direito, através do qual o indivíduo, por

um princípio de justiça, e não por arbitrariedade, passa a rece-

bê-la da coletividade, em troca e em proporção ao que ele lhe

dá como produto do seu trabalho.

Sucede assim, e nisto consiste a evolução, que, no sistema

de aquisição, cada vez mais desaparece a força e aparece a jus-

tiça. Esta transformação de método é fundamental, segundo o

ponto de vista utilitário em favor do indivíduo e de todos, por-

que, quanto mais se evolui em direção à justiça, tanto mais tudo

tende a se ordenar num regime de equilíbrio, o que significa se-

gurança e estabilidade. Trata-se de uma lei universal que vemos

funcionar também no plano físico, segundo a qual uma constru-

ção, quanto mais equilibrada estiver, tanto mais estável será.

No plano social, a esta lei corresponde uma outra, pela qual

uma posição, quanto mais corresponde à justiça, tanto mais ga-

rantida está. É por isto que uma justa distribuição dos bens é

condição fundamental e premissa indispensável para obter a se-

gurança da posse. Isto não é programa político, mas sim lei bio-

lógica universal, à qual não se foge. Se queremos segurança e

estabilidade, não há outro caminho, senão basear-se sobre um

princípio de justiça. Quanto mais vastos forem os fundamentos

do instituto da propriedade, tanto mais ela será garantida, e vi-

ce-versa. Quanto mais vivermos num regime de ordem, tanto

mais a luta e a incerteza serão eliminadas, e ao contrário.

Vemos, portanto, que esta segunda fase intermediária, de

uma ordem que se limita a um grupo social, não é perfeita. No

entanto ela é necessária para passar da primeira fase, de luta e

caos, à terceira, de disciplina e ordem para todos, a qual repre-

senta a posição orgânica completa da humanidade civilizada

do futuro. Neste nível biológico mais avançado, as forças da

coletividade, em vez de se chocarem umas contra as outras, o

que torna mais difícil a vida, coordenam-se entre si, somando-

se em sentido positivo, o que facilita a vida. A esta condição a

humanidade não poderá deixar de chegar, impulsionada pelo

seu instinto de melhoramento, no qual se manifesta o impulso

ascensional da evolução. Não se chegou a tudo isto hoje por-

que ainda não são conhecidas as leis do fenômeno, de modo

que não se compreende quanto mais útil seja para todos o novo

método de vida. O que impede semelhante progresso é a resis-

tência exercida pelo indivíduo em relação ao sacrifício da pró-

pria liberdade, que, em tal regime, é forçada a permanecer den-

tro de normas disciplinares. O primitivo não compreende as

imensas vantagens pelas quais semelhante sacrifício é com-

pensado. Incapaz de ver além da sua utilidade imediata, não vê

o benefício de viver dentro de uma ordem que, se sufoca a sua

liberdade, garante a ele em compensação a defesa e a seguran-

ça das suas posições, o que não é possível no mundo livre do

primitivo. A sua liberdade lhe custa caro. O homem na floresta

não está sujeito a nenhuma obrigação social, porque ali não há

leis nem polícias, mas ele deve estar sempre armado para se

defender de tudo e de todos, o que não é necessário na cidade,

onde se encontra ligado a determinadas normas de vida. Isto

poderá parecer uma restrição, mas o primeiro vive em contínuo

perigo, enquanto o segundo vive muito mais seguro.

3o) O terceiro caso pertence ao futuro e será vivido pelas ge-

rações mais evoluídas.

Resumindo, temos três fases na evolução da propriedade:

Na primeira não há senão guerra e caos. A propriedade per-

tence a quem, por qualquer meio, consegue apossar-se dela e

mantê-la, enquanto esta não lhe seja tirada por outro. Assim, po-

dendo ser de qualquer um, é como se ela não fosse de ninguém.

Na segunda fase há disciplina e ordem. A propriedade se es-

tabiliza e é protegida, mas pertence apenas a um grupo limita-

do, que constitui o primeiro núcleo da organização social. No

entanto a amplitude deste grupo vai sempre aumentando, até

que, na fase sucessiva, abarcará a todos. Antigamente, tal gru-

po era apenas uma aristocracia feudal (propriedade adquirida

como conquista de guerra), ampliando-se depois, como bur-

guesia capitalista (propriedade adquirida com o trabalho pro-

dutivo). E acabará por se tornar uma sociedade capitalista (na

qual todos trabalham, produzem e possuem). Neste terceiro

regime, de capitalismo universal e de propriedade para todos

aqueles que trabalham e produzem, não existirá mais o perigo

das revoluções econômicas.

Na terceira fase, a propriedade não é mais exclusiva de uma

classe. Ela será mais bem distribuída, no sentido de que, com a

vida, todo indivíduo receberá o direito de possuir o mínimo in-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 105

dispensável para viver, junto com o correspondente dever do

trabalho. A evolução consiste em transformar o furto em traba-

lho, para torná-lo então em propriedade e bem-estar para todos.

A estas três fases de evolução da propriedade correspondem

três fases de evolução da forma de trabalho:

1a) Trabalho-guerra, no qual não há senão luta material

agressiva, para se apossar de tudo com a força, sem nenhuma

ordem ou limite.

2a) Trabalho-serviço obrigatório, que é regulado e protegido

para produzir, e não para se apossar de tudo. No entanto tal tra-

balho é imposto como obrigação, ficando a cargo somente de

uma parte da coletividade, a qual permanece submetida ao man-

do de uma classe dominante que, com as leis e a força, mantém

uma ordem, para dominar a classe dos seus dependentes.

3a) Trabalho-produção, livre e universal, que é igualmente

regulado e protegido para produzir, mas que, em vez de ficar a

cargo de somente alguns em favor de uma classe limitada, é, pe-

lo contrário, realizado por todos, a favor do organismo social in-

teiro, constituindo um trabalho livre, realizado organicamente,

para o bem-estar de todos, e não só de um grupo privilegiado.

II – Propriedade-abuso, economia de furto e cálculo das

consequências.

Observamos o trabalho e a propriedade no seu movimento

evolutivo e vimos que este consiste em substituir a liberdade de-

sordenada pela disciplina, o caos pela ordem, o estado de guerra

pelo estado de paz, o método do tudo lícito pelo método dos di-

reitos e deveres recíprocos. No primeiro caso, se tudo é permiti-

do para mim, também o é para os outros, enquanto, no outro ca-

so, o próprio fato de reconhecer os meus deveres a favor dos di-

reitos dos outros me dá o direito de exigir, a meu favor, os deve-

res dos outros. A evolução produz vantagens. Se não as produ-

zisse, a vida não aceitaria um esforço inútil e não evoluiria.

Um selvagem dizia: “porque devo fazer o trabalho de criar a

minha vaca, quando, roubando-a ao vizinho, posso encontrá-la

já pronta?”. Limitado ao interesse pessoal, por uma mente que

não sabe ver além dos limites do momento e da esfera individu-

al, este raciocínio pode parecer justo. Mas ele não pensa que,

depois, um outro vizinho, porque faz o mesmo raciocínio, vai

também roubar-lhe a vaca. Então a segurança de possuir a pró-

pria vaca deve ser paga com o dever de respeitar a vaca dos ou-

tros. Não há outro meio! Muitos gostariam de viver num mundo

onde fosse possível roubar o próximo, sem que eles próprios

pudessem, por sua vez, ser roubados, para que pudessem gozar

de uma propriedade garantida somente para si mesmos. Mas,

por reciprocidade, que é a lei vigorante em todas as coletivida-

des, isto não é possível. Aos desonestos agradaria viver num

mundo de honestos generosos e desinteressados, para tirar deles

melhor proveito. Mas não compreendem que, com semelhante

método, de ir à pesca dos bons, trabalham a favor da seleção

dos piores. Assim, acabam ficando num mundo onde há somen-

te parasitas, cujo destino é morrer, pois não é possível viver ex-

plorando uns aos outros, sem nada produzir. A vida está regida

por leis, e delas ninguém pode fugir. A imbecilidade do igno-

rante consiste em crer que, com a astúcia, ele possa atuar em

plena liberdade, sem se importar em nada com essas leis. Acon-

tece então que ele cai na sua própria armadilha, porque tem de

pagar depois as consequências.

Observemos agora como funciona este fenômeno, que fre-

quentemente indivíduos e povos estão vivendo, devido à sua

incapacidade de entender a estrutura de tais leis. Poderemos as-

sim compreender como e por que desmoronam as nações que se

baseiam numa economia de furto, em vez de numa economia de

trabalho. Observemos os princípios gerais dos quais também

este fato deriva. Não há dúvida que o universo – e dentro dele

o nosso mundo, em todos os seus aspectos – é um todo funcio-

nando. Funcionar implica uma ordem, através de uma lei que

dirige e regula esse funcionamento. Uma lei presume uma inte-

ligência que a formulou e uma vontade e poder que impõe a re-

alização desta lei nos fatos. É evidente que tudo isto não pode

estar sendo realizado pelo homem, que conhece muito pouco ou

quase nada dos fenômenos. Ele existe dentro destas leis e não

pode fazer outra coisa senão obedecê-las, enquanto trata, atra-

vés da ciência, de compreender o que está acontecendo.

Um dos aspectos destas leis é o econômico, aquele que es-

tamos observando agora. Então, também neste terreno, reafir-

ma-se o princípio geral: quem não obedece tais leis deve depois

pagar as consequências. Nos meus livros, calculei o valor des-

tas consequências em proporção ao erro cometido. Aqui, no en-

tanto, estudamos o caso particular do mundo econômico. Ora,

da maneira pela qual vemos enquadrado o problema, conclui-se

que a nossa posição não é do tipo moralista, cuja característica

é exigir ou pelo menos aconselhar uma determinada conduta.

Estas nossas palavras não são para ordenar, já que não temos

poder para isso, nem para aconselhar, pois nos falta autoridade,

nem para exigir, visto que respeitamos a liberdade de todos. As

nossas palavras são para demonstrar quais as consequências

que nascem, não por vontade nossa, pois elas são fatais, mas

pela automática reação por parte destas leis, conforme nós as

excitamos com a nossa conduta, cada um permanecendo livre

para fazer aquilo que quer. Podemos somente mostrar o que

inevitavelmente sucede depois, como resposta àquilo que qui-

semos fazer. Pertence à Lei, e não ao homem, corrigir quem er-

rou. Ela sabe, pode fazê-lo e o faz. Nada podemos acrescentar,

tirar ou modificar na sua justiça. Não tem sentido intrometer-se.

O que é necessário é entender como o fenômeno funciona au-

tomaticamente. Quando fazemos movimentos errados, contra a

Lei, não se pode fugir à sua reação. Esta se manifesta por meio

da dor, cuja função é avisar o indivíduo que ele errou, fazendo

assim desaparecer nele o desejo de continuar errando. Para que

acrescentar palavras com as quais estamos acostumados a não

prestar ouvidos, quando a dor é uma linguagem de tal forma

clara e convincente, que todos a compreendem? É por isso que

estamos aqui apenas explicando, porquanto todo o resto, de-

pois, acontece automaticamente. Expomos, portanto, só uma

constatação de fatos, apresentando uma fotografia objetiva do

automático funcionamento do fenômeno, para que, assim, quem

ainda não sabe mover-se dentro da Lei, em cujo seio todos vi-

vemos, conheça as dolorosas consequências que lhe sucederão

ao provocá-las, chocando-se contra ela. Quando um indivíduo

se põe contra as normas da lei da gravidade, violando-as, a pre-

valência é desta lei, e não do indivíduo, que acaba por cair e se

matar. Será possível que ele, com a sua força e astúcia, possa

paralisar esta lei, impedindo-a de funcionar?

Para o indivíduo, a presença da Lei significa seguir uma

disciplina dentro de uma ordem, que exige ser respeitada. Ora,

se a Lei tende a levar tudo para a posição de equilíbrio e justiça,

é evidente que os métodos humanos, buscando utilizar a força e

a astúcia para dobrar a Lei ou procurar fugir dela, não podem

alcançar mais do que um êxito de primeiro momento, fictício, o

qual, na realidade, constitui somente um débito para com a jus-

tiça, dívida cujo pagamento depois é inevitável. Assim, quem

quer vencer é vencido e quem quer enganar é enganado. Então

a própria Lei se encarrega de restabelecer o equilíbrio que o ser

rebelde desejaria violar. Daí verifica-se o princípio pelo qual

quem faz mau uso de alguma coisa, seja ela poder, riqueza ou

saúde, acaba por perdê-la. É pelo mau uso que tudo se gasta e

morre. Assim uma propriedade maculada por desonestidade,

furto ou exploração do próximo – constituindo uma riqueza

contra a justiça – é um fenômeno desequilibrado, que não pode

manter-se de pé e, portanto, cedo ou tarde acaba por se resolver,

desfazendo-se. As forças negativas pelas quais tal propriedade é

constituída a corroem por dentro e não se detêm, enquanto não

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106 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

a tiverem destruído. O abuso dá frutos imediatos, mas traiçoei-

ros. O único jogo seguro de longo prazo é a honestidade.

Essa é a razão pela qual a classe dirigente, quando – apesar

de possuir os meios e com isto o dever de dirigir o país – não

cumpre a sua função, acaba sendo eliminada pela vida. Assim

nasceram a Revolução Francesa e a Russa. O comunismo foi

primeiramente gerado pelos ricos, que fizeram mau uso da sua

riqueza, e o mesmo fenômeno está pronto para se repetir em to-

dos os países onde se verifique o mesmo fato, cuja ocorrência se

dá não por vontade deste ou daquele grupo político, mas sim por

uma lei universal, histórica e biológica. Ora, quem compreendeu

como funciona este fenômeno sabe qual é o sistema para evitar

tal desastre. Semelhante assalto à propriedade não pode verifi-

car-se, quando não é violada a lei de equilíbrio, que é lei de jus-

tiça. É necessário equilíbrio entre direitos e deveres, pois, quan-

do se estabelecem apenas os direitos, esquecendo-se os deveres,

a posição se torna desequilibrada e, por isto, perigosa. O equilí-

brio da justiça exige que o nosso direito possa nascer somente

quando tenhamos primeiro cumprido o nosso dever em favor do

direito dos outros, e que o direito dos outros possa nascer so-

mente quando eles tenham cumprido o seu dever a favor de nos-

so direito. Se a nossa propriedade e riqueza for um privilégio de

classe, defendida com a força, sendo este o princípio sobre o

qual se baseia a nossa posição, ninguém poderá impedir que

aqueles expulsos deste grupo, tão logo consigam assenhorear-se

daquela força, utilizem-na para sua vantagem, tal como a classe

dirigente, com o seu exemplo, ensinou-lhes que devia ser feito.

A força é uma coação para sustentar posições desequilibradas,

que só podem se manter de pé, enquanto aquela força as sustive-

rem, pois a Lei as submete a um contínuo estado de sítio, cir-

cundando-as constantemente e minando-as, para destruí-las. A

história nos ensina que o sistema da força não resolve, porque

leva a um regime de continuas reações revolucionárias. Se já

existisse justiça econômica e se o Evangelho fosse praticado, ao

invés de ser apenas pregado, as revoluções nada teriam para fa-

zer, não havendo causa para provocá-las. Quando não existe

abuso, não há lugar para a correção. Existe, portanto, um méto-

do para evitar as revoluções. O problema é que o homem não es-

tá ainda bastante evoluído para saber usá-lo.

É da Lei, então, que propriedade e riqueza só podem sub-

sistir de uma forma estável, quando quem as possui cumpre os

deveres relativos a elas. Estas são as únicas condições nas

quais a vida respeita o direito de quem as possui. Fora deste

equilíbrio, somente pode existir um contínuo estado de guerra,

gerada pela diferença do que se possui. Há povos que ainda

vivem nesta dura fase involuída de primitivos. A posição das

nações mais civilizadas tende a um equilíbrio cada vez maior

entre direitos e deveres, o único fato que pode garantir a segu-

rança do que se possui.

Um dos maiores abusos que se faz da propriedade e da ri-

queza é aproveitar-se delas como meio de luxo e ócio, em vez

de se cumprir o dever de utilizá-las como meio para realizar um

trabalho maior, direcionado à produção em proveito da socie-

dade. Eis então que luxo e ócio, ao contrário de trabalho e pro-

dução, representam uma posição invertida, contra a Lei, que re-

agirá, destruindo-a. A posição duradoura não é de exploração

dos outros para vantagem própria, mas sim aquela na qual

quem possui trabalha a favor da utilidade coletiva.

Não falamos aqui de destruir o instituto da propriedade. Ao

contrário, nós o defendemos, sendo esta a razão pela qual esta-

mos descrevendo os fatos que conduzem à sua destruição. Con-

forme o uso que se faz da propriedade e da riqueza, os países

do mundo podem dividir-se em duas categorias: de um lado, os

povos trabalhadores, que, num regime de livre iniciativa, usam

o capital como instrumento de produção, fazendo-o frutificar

com a sua atividade; de outro lado, os povos ociosos e escrava-

gistas, que usam o capital apenas como instrumento de ócio e

se fazem manter pelo trabalho dos outros, julgando-os como

servos. Trata-se de duas formas mentais opostas. Perante o pro-

blema fundamental, constituído pela produção dos bens, eis

que, no primeiro caso, o capital representa um valor ativo, posi-

tivo e útil, a favor da sociedade e do seu melhoramento. No se-

gundo caso, ele representa um valor passivo e negativo, defi-

nindo uma economia de exploração, prejudicial para a socieda-

de, que, assim, piora as suas condições e se dirige para sua au-

todestruição, porque tudo isto, em vez de produzir, esgota.

Num país, quando se estabelece uma economia baseada no

furto, em vez de no trabalho e na produção, e quando prevalece

uma estrutura social de exploração, onde o valor, ao invés de na

capacidade produtiva, está na organização parasitária, então,

neste país, o terreno está pronto para que as leis da vida lancem

fatalmente aquela reação que se chama revolução, cujo nome

hoje é comunismo. Isto é uma constatação de fatos, constituin-

do o diagnóstico do desenvolvimento normal da doença.

Procuremos agora, seguindo as leis da vida, estabelecer a

medida para calcular o peso deste perigo. Observemos assim,

neste caso, como essas leis funcionam nos planos físico, bioló-

gico e econômico.

No plano físico, vemos que uma torre, se estiver inclinada

para um lado, não cairá, enquanto o seu centro de gravidade,

dado pela perpendicular baixada do seu centro de circunferên-

cia superior, não tocar a região fora da circunferência de sua

base. Há equilíbrios estabelecidos, e tudo se desmorona, quan-

do os limites fixados por eles são transpostos.

No plano biológico, um organismo doente não morre, en-

quanto a sua resistência orgânica, estabelecida pelo poder das

suas células sãs, for maior que o ataque microbiano e o poder

tóxico das suas células doentes. Quando o primeiro é menor e o

segundo é maior, então o organismo morre. Também neste caso,

constatamos a presença de equilíbrios e limites, ultrapassados os

quais, o fenômeno fatalmente se resolve com a morte do doente.

No plano econômico vigora a mesma lei de equilíbrio. Um

organismo econômico pode suportar até 50% de furto, explora-

ção, corrupção, falsidade etc. Mas, quando este limite é ultra-

passado, a doença se torna mortal e aquele organismo se desa-

grega. Tudo o que existe é constituído por um edifício construí-

do com vários elementos, segundo um plano básico no qual tu-

do está estabelecido em função de determinadas proporções. O

edifício se mantém de pé porque são respeitadas determinadas

leis de equilíbrio entre forças positivas e negativas. Quando

prevalecem as primeiras, o organismo resiste. Mas, quando

prevalecem as segundas, então ele não pode deixar de desmo-

ronar. Neste último caso, ele está demasiadamente deteriorado

para que possa salvar-se, pois o limite estabelecido foi supera-

do. Uma vez alcançado aquele ponto, a torre cai automatica-

mente. Não se ganha nada em alimentar o doente com transfu-

sões de sangue sadio, porque este também acaba por se deterio-

rar, misturando-se com o sangue corrompido. Assim, num re-

gime econômico baseado sobre a corrupção e sobre o furto, de

nada servem as transfusões de ajuda econômica do exterior,

pois, misturando-se e fundindo-se, elas acabam sendo absorvi-

das neste tipo de economia cancerosa, tornando-se assim um

alimento para a doença, e não para o doente.

Eis o que nos dizem as leis da vida, que são as mesmas em

todos os níveis. Mas elas nos dizem também qual é o remédio.

Se há um limite estabelecido por elas, o remédio está em não

ultrapassá-lo, porque sabemos agora que, além deste limite, a

salvação não será mais possível, de modo que a lei resolverá o

caso, destruindo a construção mal feita, cuja estrutura não é su-

ficientemente forte para ter direito à vida. Destruir uma tal

construção pode significar, no plano econômico, desagregar os

elementos constituintes desta ordem social, para reuni-los no-

vamente em outra forma, segundo outros princípios, o que pode

levar à destruição do instituto da propriedade, porque dela foi

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 107

feito mau uso. Assim, observando o tipo de economia de uma

nação e o nível da referida percentagem, pode-se, com antece-

dência, fazer o diagnóstico do mal e prever o desenvolvimento

da doença. Assim como se pode calcular o momento em que a

torre cairá ou em que o doente morrerá, também se pode calcu-

lar o momento em que pode estalar num país a reação da Lei,

fazendo o edifício desmoronar, por falta de equilíbrio, para que

outra forma de vida tome o seu lugar. Tal como o micróbio que

mata o doente, esta reação da Lei é uma força encarregada pela

vida de cumprir a função, para ela importante, de liquidar os

ineptos e destruir tudo o que está corrompido. Aqui, assim co-

mo faz o médico, falamos isto não para matar o doente, mas

sim para salvá-lo. Porém não se pode com isso impedir que al-

guém, fazendo mau uso da saúde, assim como da propriedade

ou da riqueza, acabe por perdê-la, porque é lei da vida que seja

destruído tudo quanto, por mau uso, tenha sido arruinado.

Tudo isto pode acontecer em alguns países que se encon-

tram em tais condições. Mas o mundo, no seu conjunto, vai pe-

lo caminho oposto, no sentido do trabalho produtivo. O novo

impulso do mundo moderno é trabalhar. Nisto concordam capi-

talismo e comunismo, que não são senão dois métodos para fa-

zer a mesma coisa: trabalhar para produzir e, assim, elevar o

nível de vida. Se a forma é diversa, a substância é a mesma.

Neste ponto fundamental, Estados Unidos, Europa, Rússia,

China etc., encontram-se de acordo, porque estão realizando o

mesmo programa de trabalho. Nem poderia ser de outra manei-

ra, porque ninguém tem o poder de modificar as leis da vida. Se

queremos o bem-estar, meta universal do homem civilizado, é

necessário conquistá-lo. Não há ideologia ou programa político

que possa modificar este estado de fato. Nenhum homem pode

sair das leis que regulam a vida. Assim, hoje, o trabalho não é

mais, como na Idade Média, reservado somente aos dependen-

tes, considerados servos num mundo em que, para o senhor, o

fazer nada era considerado uma honra, e não uma vergonha.

Hoje, o trabalho é de todos, se bem que em forma diferente,

tanto de quem está no alto, para dirigir, como de quem está em-

baixo, para executar. Somente nesta forma de trabalho produti-

vo para todos, o organismo econômico poderá ficar de pé, resis-

tindo a qualquer agressão. Então ele será são e forte, não po-

dendo ser vencido por ninguém.

III – O valor do trabalho.

A nova palavra de ordem do mundo moderno é “trabalhar”.

Um dos principais fatores da atual transição evolutiva da hu-

manidade consiste nesta sua nova atividade que está sendo rea-

lizada, na qual assume-se um novo conceito do trabalho, bem

diferente daquele estabelecido na Idade Média. Tal superação

de forma mental implica imensas consequências no terreno da

produção, da riqueza e da elevação do nível de vida.

Na Idade Média, o valor consistia não em trabalhar e produ-

zir, mas sim em guerrear e dominar, para fazer do próximo um

servo, explorando o seu trabalho. A nobreza se baseava sobre

este princípio. Era respeitável quem, como cavaleiro valoroso,

sabia conquistar tudo com a espada, roubando e matando.

Quem trabalhava e produzia era apenas um servo, sujeito ao seu

senhor. O valor e a honra consistiam em submeter e mandar,

sem trabalhar. Ser ativo na produção, que constitui de fato a ba-

se da vida e do bem-estar, era considerado vergonha de servos.

O mundo vivia ainda numa fase caótica, na qual valia apenas

quem sabia vencer na luta. A pirâmide do regime feudal apoia-

va-se sobre a opressão do povo, a favor dos poucos que emer-

giam por façanhas guerreiras pessoais, num regime de ócio e

pirataria, para vantagem própria, e não da coletividade. O guer-

reiro não trabalha nem produz, vivendo somente de rapina.

Quando se tem um tal conceito de trabalho, não se valorizando

a primeira fonte de toda a criação, nada se pode recolher senão

miséria. A aristocracia era filha da espada, ou seja, da violência

e do abuso, sendo tudo depois legalizado e transformado em di-

reito hereditário, constituindo castas munidas com suas próprias

ordenações jurídicas defensivas.

É desta forma mental e tipo de economia que hoje, não im-

porta se em forma capitalista ou comunista, o mundo está-se li-

bertando. Tal transformação é hoje facilitada, devido ao maior

rendimento obtido do trabalho com a técnica científica. Os

grandes valores daquele tempo, como a coragem agressiva, o

instinto guerreiro, a honra de soldado, o amor à pátria etc., estão

ficando fora de moda, porque estas qualidades não servem mais

para a sobrevivência do grupo, que, portanto, não tem mais ra-

zão para exaltá-las. Com a nova técnica da guerra atômica, têm

mais valia o cientista e o organizador industrial que produzem

novos meios bélicos, do que o feroz líder de exércitos. Para a

vida, hoje, são mais úteis a inteligência e o trabalho do que o

primitivo instinto do guerreiro. Exalta-se assim, mais do que o

domador de homens, o dominador das forças da natureza.

Esta transformação de método de vida tem a sua profunda

razão biológica. No passado, a vida tinha necessidade de pro-

duzir um biótipo capaz de vencer para sobreviver num ambien-

te hostil. Hoje, pelo contrário, semelhante tipo de lutador é um

gerador de atritos, que se torna cada vez mais contraproducente

numa sociedade coletivamente organizada. Pelas novas condi-

ções de vida, que apresentam utilitarismos de outro tipo, tende-

se a relegar assim, ao terreno dos não civilizados ou delinquen-

tes, o tipo guerreiro, antigamente triunfador nos campos de ba-

talha. Na atual passagem de grau de evolução, a vida quer sele-

cionar um outro biótipo, mais adequado às suas novas condi-

ções. No seu desenvolvimento, a humanidade não pode deixar

de seguir a lei das unidades coletivas, segundo a qual a evolu-

ção dá origem a unificações cada vez mais vastas dos elemen-

tos componentes. Ora, em tal processo, os individualismos se-

paratistas, resultantes do excessivo egocentrismo, antigamente

precioso para a sobrevivência, tornam-se um perigo social, que

a coletividade procurará afastar do seu seio. Não há dúvida que

a vida da humanidade em nosso planeta está tomando agora es-

ta nova direção orgânica, da qual as formas socialistas, comu-

nistas, coletivistas etc., representam as primeiras tentativas de

realização. Chegar-se-á assim a eliminar completamente o dis-

pendioso atrito e a pesada manutenção do guerreiro, isolando-o

como um indivíduo à margem da lei, que não sabe enquadrar-se

nesta nova ordem, finalmente alcançada hoje, depois de um tra-

balho tão fatigante de milênios. Assim, à medida que se vai

formando uma maioria do novo tipo de homem, o antigo tipo,

no qual persistem os instintos atávicos do involuído, será cada

vez mais empurrado para a margem da sociedade, até ser expul-

so como elemento antissocial, enquanto, pelo contrário, será

afirmado o tipo evoluído, que soube adequar-se às novas condi-

ções de vida, tornando-se um indivíduo pacífico, inteligente e

ativo, apto a produzir com o seu trabalho o bem-estar no seio de

uma sociedade que, de um amontoado caótico, tornou-se por

evolução num organismo coletivo.

É assim que, hoje, nas novas condições de ambiente, com as

quais a sua forma mental se transforma e atinge um novo modo

de conceber a vida, o homem reage por sua vez sobre o ambien-

te, transformando-o mais rapidamente, entrando e, assim, fixan-

do-se, cada vez mais com maior estabilidade, numa nova fase de

evolução, formando um novo tipo biológico. A vida se encami-

nha deste modo para a superação das suas formas passadas, ba-

seadas na lei da luta pela seleção do mais forte, do individualista

egocêntrico antissocial, preparando-se para a construção de um

novo homem social, adequado para viver como um elemento

componente de uma coletividade orgânica, e não mais como um

guerreiro em meio ao caos. Passar do estado caótico ao estado

orgânico representa um imenso salto para frente, implicando

uma mudança radical de método de vida. De resto, é natural que,

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108 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

passando de um nível evolutivo a um superior, variem também

as leis às quais o ser está sujeito e que, neste caso, portanto, a lei

animal da luta pela seleção individualista do mais forte seja

abandonada, para favorecer, pelo contrário, a seleção do indiví-

duo mais adequado a viver unificado com os seus semelhantes

em forma orgânica, em vez de isolado no caos. A biologia não

deve ser concebida como fenômeno estático, mas sim dinâmico;

não deve ser entendida em função somente de um dado tipo de

lei, mas sim de uma série de tipos de leis, em contínua evolução,

constituindo outros tantos degraus do caminho ascensional do

ser. É natural então que agora, quando o homem está para sair

da sua fase animal, ele se afaste também da lei correspondente a

este nível, da luta pela seleção desse determinado tipo.

De cada fenômeno existem sempre as razões profundas, e,

procurando-as, pode-se chegar às primeiras origens dele. O mé-

todo preponderantemente animal com que a vida humana funci-

onou até agora é de tipo involuído, atrasado, mais próximo da

extremidade negativa da existência, que chamamos Anti-

Sistema, do que da extremidade positiva, que chamamos Siste-

ma. Segundo o nosso conceito de evolução biológica, a cada

plano de existência corresponde uma lei proporcionada a ele.

Ora, o método ainda vigente no atual nível animal-humano, fa-

zendo uso da força, da imposição e da coação, para a prevalên-

cia de um dominador que busca reduzir tudo em função do seu

próprio egocentrismo, é o método do ser anárquico e rebelde do

Anti-Sistema. Dentro deste, no entanto, permaneceu o Deus

imanente, funcionando contínua e interiormente contra essa ten-

dência de desordem, com uma ação corretiva no sentido oposto,

que tende a repor tudo na posição original de ordem, equilíbrio e

justiça do Sistema. O significado profundo do fenômeno da

transição evolutiva que a humanidade está cumprindo hoje, con-

siste justamente em deslocar-se um passo a mais no sentido de

afastar-se do Anti-Sistema e avizinhar-se do Sistema.

Vemos esta transformação atuar nos mais diversos campos,

que representam casos particulares dos referidos princípios ge-

rais. Um destes casos hoje em ação é o processo de emancipa-

ção da mulher. Referimo-nos a ele porque está conectado com o

fenômeno da propriedade e do direito do mais forte. Efetiva-

mente, a posição da mulher no passado estava por princípio de-

terminada como uma propriedade do homem, que sobre ela ti-

nha direito somente em virtude da sua força. Se ela encontrava

nele o dono que a possuía, encontrava também o proprietário

que a defendia como coisa sua. Este conceito de mulher-

propriedade prevaleceu durante milênios, porque convinha

também a ela, resolvendo-lhe o problema, para ela grave, da de-

fesa. Então ela devia, consequentemente, possuir uma persona-

lidade adequada a tais condições de vida, procurando primei-

ramente obedecer, servir e pensar com a cabeça do homem,

como um seu apêndice, tendo os mesmos gostos dele, porque

ele, pelo direito divino conquistado com a sua força, era o do-

no. Mas ser dono significava também saber fazer a guerra, de-

fendendo o grupo familiar dos inimigos, e levar como alimento

para casa a presa obtida na caçada, o que é equivalente, nos

tempos modernos, a ganhar o salário para viver.

Enquanto nos países mais atrasados a mulher continua na

posição de coisa possuída, condição que lhe permite viver no

ócio, o novo conceito do dinamismo dos tempos modernos cor-

responde à mulher trabalhadora e produtiva. Vemos também

aparecer neste campo a função e o valor do trabalho, que se in-

sere em nosso tema. Este fato dá à mulher a independência

econômica, o que implica importantes consequências para ela,

deslocando de fato a sua posição. Então quem leva os meios de

vida para casa não é mais somente o homem, fato que coloca a

mulher no mesmo nível dele, e não mais como sua serva. Para-

lelamente, o homem não tem mais uma simples dependente pa-

ra manter, cujo papel é funcionar como um espelho no qual ele

pode ver refletida a potência da sua força, mas tem junto a si

uma colaboradora e uma companheira de luta, que se coloca a

seu lado no mesmo trabalho produtivo, constituindo uma aliada

ativa, e não uma coisa inerte possuída.

A superação evolutiva reside então no fato de que a união

não se faz mais segundo o princípio da imposição forçada, con-

forme a lei biológica do animal, mas se realiza segundo o prin-

cípio orgânico-colaboracionista, que, por evolução, vai-se afir-

mando em um novo nível biológico, que a humanidade se prepa-

ra para conquistar. Neste plano de vida vigora de fato uma outra

lei, que estabelece a coordenação entre direitos e deveres, tra-

zendo a cooperação entre os elementos componentes, e não a lu-

ta. A união então se realiza entre dois seres que – cada um de

uma forma diferente mas de mesmo valor – compõem um par,

somando no casal as suas capacidades produtivas. Nesta sua ca-

pacidade residem o valor e a honra que defendem aquela união.

Assim avança o fenômeno evolutivo atualmente em ação, pelo

qual o biótipo humano passa do nível animal, dominado por

ventre, sexo, luta e trabalho físico, ao nível em que, pelo contrá-

rio, prevalecem as funções nervosas e cerebrais, com a mente e a

inteligência. O fenômeno evolutivo avança em todos os seus as-

pectos. Desta forma, também a procriação será realizada com

sentido de responsabilidade, porque ela implica o dever da edu-

cação, base para a civilização. Antigamente, o homem gerava de

modo semelhante ao animal. Uma vez nascido o filho, depois de

rápidos cuidados maternos, ele era abandonado a si mesmo. Ho-

je, fazer isto significa lançar na rua indivíduos que, amanhã, se-

rão um perigo social, jogando nas costas da coletividade o peso

morto de muitos seres inadaptados à vida civil, para serem man-

tidos com o trabalho dos outros. A natureza admite a abundante

e indiscriminada procriação nos primitivos, para depois selecio-

ná-los, matando uma boa parte deles. Nos países civilizados, pa-

ra manter o nível alcançado e não retroceder à barbárie medie-

val, é necessário, mais do que produzir a quantidade, selecionar

a qualidade; mais do que gerar uma prole abandonada, para ser

dizimada pela natureza, criar uma prole protegida, para sobrevi-

ver e, depois ser educada, ter condições de produzir, servindo de

ajuda ao progresso, e não de obstáculo. Como se pode ver em

relação ao passado, as leis do novo plano biológico são diferen-

tes. E, para evoluir, não se pode deixar de utilizá-las.

Eis que os mais diversos problemas da existência, nos tem-

pos modernos, são vistos e resolvidos de uma forma diferente do

passado. Aos nossos antepassados isto pareceria uma desapieda-

da exposição de verdades recônditas, que era conveniente não

deixar ver. Mas, hoje, querer banir estas verdades acomodadas

ao uso do mais forte vencedor é um ato de sinceridade, que con-

duz à clareza e, com isto, à mais exata compreensão e justa so-

lução dos problemas da vida. É mais honesto basear-se e procu-

rar diretivas sobre leis biológicas positivas, racionalmente con-

troladas, do que sobre proclamados direitos divinos ou artificiais

legalizações de interesses do grupo dominante. Começa-se a

pensar hoje, querendo-se ver o que há por trás do cenário das

aparências, feita de verdades gratuitamente afirmadas, e saber o

porquê do lícito e do ilícito. Às mentes simples dos nossos pais

bastavam as poucas regras da vida civil, ditadas pela religião e

pela lei, para que tudo se resolvesse, observando-as. Isto era su-

ficiente para fazer o bom cristão e cidadão, a pessoa de bem,

ainda que tais regras deixassem uma larga margem de escapató-

rias, permitindo uma elasticidade de atuação que o conhecimen-

to das leis biológicas e uma ética positiva, baseada sobre elas,

não permitem. Esta é uma moral mais profunda, que não somen-

te penetra na estrutura psicológica do indivíduo – fenômeno ig-

norado antigamente – analisando-o com a psicanálise, mas tam-

bém o compreende e o ajuda, reconhecendo-lhe os direitos e cla-

reando aquela névoa de mentiras que, por legítima defesa, ele

era constrangido a utilizar. Antigamente, cumpridas as regras

formais vigentes – sancionadas pelo consentimento em que a

maioria, na defesa dos seus interesses, achava conveniente con-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 109

cordar – era fácil fugir delas, continuando a satisfazer os pró-

prios desejos, desde que se soubesse camuflá-los debaixo das

belas aparências. Mas, quando a ética se baseia sobre as leis da

vida e penetra no subconsciente até à raiz dos nossos pensamen-

tos e atos, então a ficção e as velhas armadilhas não servem nem

funcionam mais. Ao invés de simular e procurar fazer os outros

acreditarem que se é crente, para poder assim fazer melhor os

próprios negócios, é mais honesto dizer que não se crê em mui-

tas coisas. O ateísmo é um erro, mas é melhor a sinceridade do

ateu do que a religião da hipocrisia. Como um grande vento, a

ciência, com a sua forma mental positiva, encarrega-se de des-

mantelar as superestruturas seculares, que são também compro-

misso e contorção de verdades, servindo para adaptações cômo-

das, quando não constituem diretamente artifícios para esconder

injustiças. O problema terreno está assim reduzido aos seus ele-

mentos essenciais, tornando-se claro que somente quem trabalha

e produz, dando à sociedade o equivalente daquilo que dela re-

cebe, tem direito de ser cidadão. Conceito simples, posição cla-

ra, balanço exato de direitos e deveres, sem possibilidade de pre-

textos que permitam o ócio. Sã e saudável lei de trabalho, psico-

logia retilínea, filosofia dura mas honesta, aderente à realidade

da vida. Valorização, com bom pagamento, do trabalho bem fei-

to, mas liquidação de quem não o faz ou faz mal.

Com esta nova forma mental, o indivíduo vale pelo que sa-

be fazer, pela sua capacidade produtiva, pela sua atividade de

trabalhador. A divisão mundial entre capitalismo e comunismo

torna-se problema secundário perante o problema fundamental

no plano econômico: a produção. Só depois, quando se produ-

ziu, pode surgir o problema de como distribuir. Mas, quando

não há senão miséria, mesmo que se queira distribuí-la, perma-

nece-se na miséria. Insiste-se na distribuição antes da produção

porque o homem atua ainda com a psicologia do primitivo,

aquela com a qual, como vimos anteriormente, ele resolvia tu-

do, roubando a vaca do vizinho, sem compreender que seme-

lhante sistema é o caminho aberto não para o bem-estar, mas

sim para as revoluções, levando à destruição e à pobreza, em

vez de à produção e à abundância. Outro fator determinante de

semelhante psicologia está no fato de que, frequentemente, so-

bre o conceito de propriedade-trabalho-produtivo prevalece o

de propriedade-ócio-exploração.

É verdade que o capitalismo se torna um mal, quando o ri-

co é apenas um parasita, economicamente negativo, que vive

sem trabalhar, à custa de quem trabalha, fazendo-se assim

manter pela sociedade. Quando o capital não serve para produ-

zir, mas sim para viver no ócio e gozar, quando a riqueza é ad-

quirida pelo furto e mantida com o trabalho dos outros, em vez

do próprio, é lógico então que, tendo-se ela tornado um mal, a

vida procure eliminá-la. Este é um princípio daquela ética bio-

lógica de que falávamos agora, da qual era possível fugir no

passado, porém não mais hoje. Em qualquer campo, seja polí-

tico, religioso, econômico ou social, quando há insurgência

contra uma instituição, não é esta em si que é combatida, mas

sobretudo o mau uso que dela se faz. Então, a fim de eliminar

o abuso, procura-se destruir a instituição, para substituí-la por

uma diferente, frequentemente sem compreender que, enquan-

to o homem continuar a ser o mesmo, ele será levado a reali-

zar, à custa da nova instituição, os mesmos abusos de antes,

com as mesmas consequências já observadas.

A história nos mostra quais são as causas destas reações que

a vida desencadeia precisamente para libertar-se de um mal e

reconquistar a saúde. Tal como na medicina se conhecem as

condições que preparam o terreno onde pode atacar uma doen-

ça, também sabemos as causas do ateísmo e, portanto, qual a

conduta que, sendo adotada por um país, abre as portas ao co-

munismo. Assim como há indivíduos predestinados pela sua es-

trutura orgânica a uma determinada doença, também há países

predestinados ao comunismo. A culpa é do doente que, com o

abuso, gastou o seu organismo, oferecendo com isso um convi-

te ao assalto do mal. Assim a natureza põe à prova o indivíduo,

que ou sabe se defender, vencendo e se curando, ou, pelo con-

trário, morre e é substituído. Tudo isto também forma parte da

moral biológica, que trabalha com fatos, e não com palavras.

Então os povos trabalhadores invadirão a terra daqueles que o

ócio tornou ineptos, porque hoje não é mais lícito manter im-

produtivo o capital de um país rico de recursos naturais, sem

explorá-los. Dado que tal inaptidão pesa sobre a economia

mundial, a sociedade humana, cedo ou tarde, por razões de uti-

lidade pública, acabará por realizar essa expropriação forçosa.

Mas como se explica esta tendência para a preguiça e o pa-

rasitismo, que vemos aparecer tão logo um indivíduo ou uma

classe social alcança o bem-estar? Trata-se de um repouso me-

recido pelo esforço da conquista, concedido pela vida aos que

acabaram de triunfar. O mal, porém, é que eles desejariam

acomodar-se definitivamente na bela posição de descanso. En-

tão a vida os expulsa. Eles tratam de estabilizar definitivamente

o nível alcançado, fixando-o e protegendo-o com leis e institui-

ções, em formas hereditárias, de modo a poder conservar tudo

para sempre. Mas é precisamente neste momento, quando cre-

em ter resolvido o problema da sua situação, que a vida começa

a trabalhar contra eles. A existência fácil os torna ineptos. A vi-

da deixa aqueles que perdem o exercício da luta se debilitarem,

para eliminá-los. Entretanto os derrotados, excluídos do ban-

quete, conservam-se despertos pela fome e, continuamente se

exercitando para o assalto, empurram de baixo para chegar à

superfície. Assim, enquanto os que gozam no bem-estar se de-

bilitam, eles se exercitam e se fortificam. Os dois fenômenos,

seguindo caminhos opostos, tendem para o mesmo ponto, aque-

le no qual, perante uma aristocracia debilitada, incapaz de se

defender, levanta-se o assalto dos rebeldes, que, tendo-se torna-

do fortes pela vida dura, estão dispostos a tudo, devido ao de-

sespero. Eles têm consigo as leis da vida, que quer o esforço e a

vitória e está pronta a premiá-la na medida do merecimento. Ao

mesmo tempo, a vida também quer utilizar estes rebeldes como

elementos de destruição desse não-valor biológico, representa-

do por aqueles ineptos, pois é da Lei que não tenha direito à vi-

da quem nada vale. Então, enquanto se encerra o ciclo dos anti-

gos triunfadores, agora já em descida e liquidação, inicia-se ou-

tro com os novos vitoriosos, que o percorrerão por completo,

terminando-o em descida, como fizeram aqueles que eles eli-

minaram. Estas são as ondas segundo as quais se efetua a evo-

lução humana no plano econômico, que é a sua parte mais ma-

terial. Este processo depende de uma lei geral que vemos reali-

zar-se tanto em pequena escala, para os indivíduos e famílias,

como em grande escala, para as nações e povos.

Seria possível evitar estes desmoronamentos, se os triunfa-

dores usassem sua posição privilegiada para o benefício da co-

letividade, e não somente de si mesmos; como função social, e

não como exploração egoísta individual; procurando cumprir,

no seio do organismo em que vivem, a parte que lhes corres-

ponde como dever, e não somente aquela que eles proclamam

como seu direito. Quando, por evolução, a sociedade humana

chegar ao estado orgânico, a classe dirigente, em cujas mãos se

encontram os meios de subsistência e as alavancas de comando,

não poderá mais ser constituída pela massa amorfa dos vence-

dores da vida, que, para se banquetearem, sentam-se sobre as

costas dos vencidos, mas deverá ser constituída por um grupo

de elementos seletos, escolhidos entre as células situadas mais

no alto, exatamente para, assim como faz o cérebro, cumprir as

funções diretivas do organismo social, e não as inferiores do es-

tômago, só para engordar. Numa sociedade que evoluiu até ao

estado orgânico, a atividade de cada elemento se coordena com

a de seus afins, em função da utilidade coletiva. Assim, assu-

mindo uma posição nova e cada vez mais unificada, vai sendo

reabsorvido gradualmente o desagregante e egocêntrico separa-

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110 A DESCIDA DOS IDEAIS Pietro Ubaldi

tismo individualista da precedente fase caótica. Então a posição

de dirigente não é mais conquista para benefício próprio, mas

sim função social com o objetivo de utilidade coletiva. Muda

completamente o modo de entender o significado da própria

posição privilegiada. Hoje, com frequência, especialmente nos

países mais atrasados, as células dos tecidos musculares se co-

locam no lugar das nervosas e cerebrais, com a finalidade não

de produzir energia volitiva e pensamento, mas sim de extrair

para si a produção alheia e as vantagens da coletividade. Esta é

política cancerosa que mata o país. Numa humanidade civiliza-

da, as células de tipo menos evoluído permanecerão no lugar

que lhes corresponde, para cumprir a função de que são capa-

zes, porque corresponde à sua natureza, permanecendo ali para

obedecer e executar. Por outro lado, as células nervosas e cere-

brais não abusarão da sua superioridade como dirigentes, mas

exercitarão o seu domínio para a vantagem de todos, inclusive

daqueles que estão em grau evolutivo subordinado, assumindo

a responsabilidade e os deveres inerentes à sua posição de co-

mando, que exercitarão somente em função da finalidade su-

prema de todos, que é o bem coletivo. Deste exemplo se vê

quão distante estamos ainda de uma sociedade civilizada, que

verdadeiramente mereça tal nome.

Pode-se assim, mesmo hoje, compreender a razão pela qual

quem se encontra no alto da escala social, mas entende esta sua

posição não como função coletiva, e sim apenas como utilidade

pessoal, deixando de cumprir todo o trabalho que lhe correspon-

de, atraiçoa a sociedade da qual faz parte, pois deste modo ele

abusa e, com o seu exemplo, semeia em todo o país o costume

do abuso, educando para o mal e, assim, não só formando, com

suas próprias mãos, uma raça de revoltados, prontos a saltar-lhe

em cima, mas também cercando-se de servos traidores, dos

quais não obterá senão mentira e engano. É inútil iludir-se, pen-

sando que basta cobrir tudo com belas aparências. Quem está

embaixo olha a substância, e esta, quando queima, fica gravada

no subconsciente, que um dia tomará a sua vingança. O exemplo

que desce do alto é uma tremenda autorização à imitação, sobre-

tudo quando convém, mesmo sabendo-se que é mau. Assim a

corrupção rapidamente se estende, invade e infesta tudo. Os as-

tutos, que creem saber enganar, acabam por receber de volta a

mesma mercadoria que eles põem em circulação. Numa socie-

dade, tudo funciona por reciprocidade, de modo que o mal não

pode deixar de regressar à sua fonte. Quando no tão declamado

sistema da liberdade há excesso, cai-se na desordem, sendo este

o estado que preludia as mais graves doenças sociais. Como po-

deria não se desagregar um organismo no qual as funções cere-

brais fossem executadas por células selecionadas de tecidos me-

nos evoluídos ou, pior ainda, por células de tecido canceroso?

A economia de furto é uma economia negativa, de destrui-

ção, e não positiva, de produção; é uma atividade parasitária,

em favor da doença, e não da saúde; é a economia do cancro,

que prospera matando. O câncer é um pseudo-organismo, com

base na anarquia, na desordem e no egocentrismo separatista, o

que significa um estado primitivo, uma posição involuída,

atrasada, situada mais perto do caos do Anti-Sistema do que da

ordem do Sistema. Esta posição involuída é resultado da igno-

rância, da qual deriva a incapacidade de compreender as van-

tagens de viver, pelo contrário, num estado orgânico, de disci-

plina e ordem. Pela lei das unidades coletivas, a evolução se

realiza por unificações sempre mais vastas. Assim, quanto

mais involuído é o indivíduo, tanto mais ele fica egoisticamen-

te isolado em guerra contra os seus próprios semelhantes (es-

tado caótico, no qual domina a lei da luta pela vida), ao passo

que, quanto mais evoluído ele for, tanto mais será induzido a

unificar-se com os seus próprios semelhantes (estado orgânico,

no qual domina a lei da colaboração).

As células do câncer são involuídas e, portanto, incapazes

de coordenar-se num organismo autônomo, com um governo

central próprio, não lhes sendo possível alcançar semelhante

grau de unificação. Devido a esta sua incapacidade, não sabem

viver senão parasitariamente, apoiando-se num outro organismo

e reproduzindo-se desordenadamente, num regime de caos, que

revela quão longe se encontram de um sistema com base na es-

pecialização, coordenação e colaboração de funções, cuja fina-

lidade é constituir um organismo coletivo. Isto mostra como

tais células estão atrasadas na sua capacidade de constituir uma

unidade, propriedade que revela o grau de evolução.

Trouxemos este exemplo das células do câncer para explicar

a forma e o porquê da conduta de cada elemento de uma socie-

dade humana primitiva. Eles não sabem funcionar todos em con-

junto, organicamente, mas somente como rivais entre si, anar-

quicamente. É a sua involução que os leva ao separatismo, pelo

qual, em vez de se coordenarem, rebelam-se a qualquer discipli-

na, pondo-se a lutar para dominar, refratários a qualquer função

unitária. Os indivíduos que aplicam a economia do furto, corres-

pondem, assim como as células do cancro no organismo doente,

aos elementos perniciosos de uma sociedade primitiva. Assim

como elas se enxertam na ordem do organismo que as hospeda,

não para cooperar com ele, mas sim para explorá-lo egoistica-

mente, tornando-se suas inimigas, aqueles indivíduos também se

inserem na coletividade, não para se unirem a ela e cooperar na

produção, mas sim para se oporem a ela, roubando-a e explo-

rando-a. A sua natureza de involuídos não lhes permite compre-

ender além disso e agir melhor. Como elementos inconscientes,

eles atacam e devoram o organismo em que vivem, acabando

assim por matá-lo e morrer dentro dele.

A grande revolução moderna é a revolução do trabalho. Ela

foi possível graças aos novos meios produtivos da técnica in-

dustrial. A humanidade se prepara para dirigir a sua atividade

de conquista cada vez menos para a guerra e cada vez mais para

o trabalho. Hoje o mundo se pôs a trabalhar, não importa se em

forma capitalista ou comunista. Se o comunismo tentou destruir

a propriedade, isto sucedeu porque ela se havia transformado

numa base de parasitismos e abusos antissociais. As revoluções

aparecem apenas quando se tem de pagar essas culpas e sanear

essas doenças. Nos Estados Unidos, onde o possuir serve para

trabalhar e produzir mais, não há nenhuma necessidade de des-

truir a propriedade, para se fazer a revolução do trabalho, por-

que ela já está feita. Esta é necessária onde os ricos não traba-

lham e extraem o seu bem-estar do trabalho dos outros. Mas,

onde o capitalismo é um meio para trabalhar e produzir, não há

nenhuma razão para que ela deva realizar-se.

Este perigo, por mais absurdo que pareça, pode subsistir

no seio do próprio comunismo, e veremos como. Ele não des-

truiu a propriedade, o que é impossível, mas apenas a distribu-

iu diversamente, fazendo-a subsistir em forma de capitalismo

de estado. É neste ponto, justamente, que subsiste o perigo an-

teriormente mostrado por nós, pois pode acontecer que os no-

vos triunfadores, para gozar o fruto dos seus esforços, assu-

mam os mesmos defeitos daqueles que eles substituíram, en-

caminhando-se assim para o mesmo fim. Uma revolução eco-

nômica e uma ideologia não têm o poder de transformar a na-

tureza humana. Existe então o perigo de que a classe política

dirigente, que tomou o lugar da antiga aristocracia, acabe por

imitar a atuação e repetir os seus erros, chegando às mesmas

consequências, o que é tanto mais fácil, quanto mais a revolu-

ção envelhece e, assim, afasta-se das condições que determi-

naram o impulso de origem.

O despertar da humanidade baseia-se na produção de meios

que lhe assegurem a sobrevivência. Isto é o que interessa à vida.

Este despertar da atividade trabalhadora e produtora, combinado

com o imenso rendimento que lhe pode dar a moderna organiza-

ção científica e a tendência a um coletivismo unitário, represen-

tam um novo modo de compreender a vida e, devido aos seus

efeitos, assinalam a passagem de uma época para outra. Algu-

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Pietro Ubaldi A DESCIDA DOS IDEAIS 111

mas nações já entraram nesta nova fase, libertando-se do passa-

do e renovando-se plenamente. Mas há povos que, preguiçosos e

pobres, permanecem ainda apegados a uma forma mental con-

traproducente, ligada a uma moral de honra e desonra, de patrão

e servo, que corrói toda a colaboração, produzindo só luta, ran-

cores, caos e, por fim, destruição para todos. Os mais progressis-

tas começam a compreender que é mais conveniente, pelo con-

trário, pôr-se a trabalhar e produzir com o trabalho organizado

do que pôr-se a roubar e explorar com a força ou a astúcia. A

própria psicologia de guerra, com a balança do terror, levantan-

do a perspectiva de acabarem todos destruídos num mundo em

alarme, está sujeita em parte a ser refreada. Eis que toda a psico-

logia medieval representa um modo de viver do qual o mundo

procura afastar-se, indo em direção a uma sua nova maturidade e

superação evolutiva. Começa-se a compreender que, em vez de

gastar as energias em atritos, é mais conveniente canalizá-las em

direção ao trabalho produtivo. Assim vão se desvalorizando os

velhos sistemas, e cada vez mais se aprecia este novo, que dá

mais rendimento. Chegar a compreender uma nova verdade é o

trabalho mais difícil, porém o mais importante biologicamente;

possuí-la é o resultado de fatigantes experiências, mas represen-

ta a capacidade de assumir novas direções na evolução da vida.

Adquirir uma nova verdade significa enriquecer o próprio pa-

trimônio com conhecimento e potência, ter ascendido evoluti-

vamente, com todas as consequências que tal fato implica; signi-

fica ter dado um novo passo em direção ao alto, entrando num

mais elevado nível de vida. Neste caso, a nova verdade consiste

em ter compreendido o valor do trabalho.

FIM

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O HOMEM

Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em 18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade

onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi-

ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo

grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais

e os prazeres deste mundo.

Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo

franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia

sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci-onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei-

ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As-

sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana.

Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen-

te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual.

A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien-tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos

praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no

interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas

lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade

se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-

ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-

ência a palavra “evolução”. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-

carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-

piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.

Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-

mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-

tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e

religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX. Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-

mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-

ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano

Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.

Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-

colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para

o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-

fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino.

Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos.

Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em

1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975).

Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con-ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma-

trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de

pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a

maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi

assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran-ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava

todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente.

Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália

– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi

transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou

durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto

humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani – Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha.

A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – “Gêne-

se da II Obra”): dos 5 aos 25 anos formação; 25 aos 45 anos maturação in-

terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos Obra Italiana (produção concep-

tual); dos 65 aos 85 anos Obra Brasileira (realização concreta da missão).

O MISSIONÁRIO

Na primeira semana de setembro de 1931, depois da grande decisão fran-ciscana, Cristo novamente lhe apareceu e, desta vez, acompanhado de São

Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-

tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.

Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua

missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a

mesma linguagem e conteúdo divino.

No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-

nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-

mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do

mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-

guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:

01) Grandes Mensagens

02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito

03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento

04) Ascese Mística

05) História de Um Homem

06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão

07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio

08) Problemas do Futuro

09) Ascensões Humanas

10) Deus e Universo

Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além

de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-

se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos

na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.

O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-

ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-

dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-

são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-

pletar sua tarefa missionária.

Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de

conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-

posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um

convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para

com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-

sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.

Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-

cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em São Vicente, no edifício “Iguaçu”, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.

Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício “Nova Era” (coin-

cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça 22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-

tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada

brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:

11) Profecias

12) Comentários

13) Problemas Atuais

14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo

15) A Grande Batalha

16) Evolução e Evangelho

17) A Lei de Deus

18) A Técnica Funcional da Lei de Deus

19) Queda e Salvação

20) Princípios de Uma Nova Ética

21) A Descida dos Ideais

22) Um Destino Seguindo Cristo

23) Pensamentos

24) Cristo

São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-

tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande

Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-

sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,

com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-

ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São

José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de

poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.

A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma

nova concepção de vida.

Vida e Obra de

Pietro Ubaldi

(Sinopse)