A Dialética das Relações Raciais Ianni

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    A Dialtica das Relaes Raciais

    Octavio Ianni

    A questo racial parece um desafio do presente, mas tem sido permanente.Modifica-se ao acaso das situaes, das formas de sociabilidade e dos jogos das

    foras sociais, mas reitera-se continuamente, modificada mas persistente. Esse oenigma com o qual se defrontam uns e outros, intolerantes e tolerantes,discriminados e preconceituosos, segregados e arrogantes, subordinados edominantes, em todo o mundo. Mais do que tudo isso, a questo racial revela, deforma particularmente evidente, nuanada e estridente, como funciona a fbrica desociedade, compreendendo identidade e alteridade, diversidade e desigualdade,cooperao e hierarquizao, dominao e alienao.

    Vista assim, em perspectiva ampla, a histria do mundo moderno tambma histria da questo racial, um dos dilemas de modernidade. Ao lado de outrosdilemas, tambm fundamentais, como as guerras religiosas, as desigualdadesmasculino-feminino, o contraponto natureza e sociedade e as contradies declasses sociais, a questo racial revela-se um desafio permanente, tanto para

    indivduos e coletividades como para cientistas sociais, filsofos e artistas. Uns eoutros com freqncia so desafiados a viver situaes e/ou interpret-las, semalcanar a explicao, nem resolver a situao. So muitas, recorrentes e diferentes,as tenses e contradies polarizadas em termos de preconceitos, xenofobias,etnicismos, segregacionismos ou racismos; multiplicadas ou reiteradas no curso dosanos, dcadas e sculos, nos diferentes pases, continentes, ilhas e arquiplagos.

    sse o dilema envolvido na polmica entre Bartolomeu de Las Casas eJuan Gins de Sepveda, na poca da conquista do Novo Mundo, repetindo-se edesenvolvendo-se nas vivncias e ideologias, teorias e utopias de muitos, no cursodos tempos modernos. Essa uma histria na que entram Herbert Spencer, Condede Gobineau e Georges Lapouge, tanto quanto o evolucionismo e o darwinismosocial, o nazismo e o americanismo1.

    Em certa medida, o debate relativo ao choque de civilizaes implica emxenofobia, etnicismo e racismo. Ao hierarquizar as civilizaes, hierarquizandotambm povos, naes, nacionalidades e etnias, evidente que se promove aclassificao, entre positiva, negativa, neutra ou indefinida, de uns e outros. QuandoSamuel P. Huntington classifica as civilizaes contemporneas em: Chinesa,Japonesa, Hindu, Islmica, Ocidental e Latino-americana, est, simultaneamente,estabelecendo alguma relao entre etnia, ou raa, e cultura, ou civilizao; umarelao cientificamente insustentvel, desde Franz Boas, mesmo quandodissimulada. Essa , obviamente, uma implicao da sua teoria, ao priorizar aCivilizao Ocidental, por sua escala de modernizao, tecnificao,produtividade, prosperidade, lucratividade. Alis, esse contrabando etnicista,xenfobo ou racista est presente em diferentes pensadores empenhados em

    1 Michel Banton, A Idia de Raa, trad. de Antnio Marques Bessa, Livraria Martins Fontes, So Paulo, 1979;Richard Hofstadter, Social Darwinism in American Thought, Beacon Press, Boston, 1967; E. Franklin Frazier,Race and Culture Contacts in the Modern World, Alfred A. Knopf, New York, 1957; Eric R. Wolf, Europe andthe People Without History, University of California Press, Berkeley, 1982; K.M. Panikkar, A DominaoOcidental na sia, trad. de Nemsio Salles, 3 edio, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977; J. A. Hobson,Imperialism, Ann Arbor, Toronto, 1965; Eric Williams, Capitalismo e Escravido, trad. de Carlos Nayfeld,Companhia Editora Americana, Rio de Janeiro, 1975; David Brion Davis, O Problema da Escravido na CulturaOcidental, trad. de Wanda Caldeira Brant.

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    explicar o mundo em termos de modernizao, racionalizao, tecnificao eoutros emblemas ideolgicos do ocidentalismo2.

    evidente que Huntington esquece a presena e a atuao domercantilismo, colonialismo, imperialismo ou capitalismo, simultaneamenteocidentalismo, na constituio do seu mapa do mundo; uma recomposio daordem mundial, de conformidade com o geopoltica norte-americana, arrogando-se

    como herdeira do ocidentalismo como guardio do capitalismo; ou vice-e-versa.Toma cada civilizao como se fossem essncias, qualificveis ou inqualificveis,com referncia ao padro de civilizao capitalista desenvolvida na EuropaOcidental e nos Estados Unidos da Amrica do Norte. Est empenhado em delineara geopoltica de alcance mundial que est sendo exercida pelas elites governantes eas classes dominantes norte-americanas desde o fim da Segunda Guerra Mundial(1939-45), entrando pelo sculo 21. Essa a ideologia que informa tambm opensamento e a prtica de Henry Kissinger, Zbigniew Brzezinski, Condoleezza Ricee outros.

    assim que o mundo ingressa no sculo 21, debatendo-se com aquesto racial, tanto quanto com a intolerncia religiosa, a contradio natureza esociedade, as hierarquias masculino-feminino, as tenses e lutas de classes. So

    dilemas que se desenvolvem com a modernidade, demonstrando que odesencantamento do mundo, enquanto metfora do esclarecimento e daemancipao, continua a ser desafiado por preconceitos e supersties,intolerncias e racismos, irracionalismos e idiossincrasias, interesses e ideologias3.

    Mais uma vez, no inicio do sculo 21, muitos se do conta de que estnovamente em curso um vasto processo de racializao do mundo. O que ocorreuem outras pocas, a comear pelo ciclo das grandes navegaes, descobrimentos,conquistas e colonizaes, torna a ocorrer no incio do sculo 21, quando indivduose coletividades, povos e naes, compreendendo nacionalidades, so levadas a dar-se conta de que se definem, tambm ou mesmo principalmente, pela etnia, ametamorfose de etnia em raa, a transfigurao da marca ou trao fenotpico emestigma. Sim, no sculo 21 continuam a desenvolver-se operaes de limpezatnica, praticadas em diferentes pases e colnias, compreendendo inclusive pasesdo primeiro mundo; uma prtica oficializada pelo nazismo nos anos da SegundaGuerra Mundial (1939-45), atingindo judeus, ciganos, comunistas e outros; em nomeda civilizao ocidental, colonizando, combatendo ou mutilando outrascivilizaes, outros povos ou etnias. A guerra de conquista travada pelas elitesgovernantes e classes dominantes norte-americanas, em 2002 no Afeganisto, e em2003 no Iraque, pode perfeitamente ser parte da longa guerra de conquistastravadas em vrias partes do mundo, desde os incios dos tempos modernos, comoexigncias da misso civilizatria do Ocidente, como fardo do homem branco,

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    Samuel P. Huntington, O Choque de Civilizaes e a Recomposio da Ordem Mundial, trad. de M. H. C.Crtes, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 1997; Bernard Lewis, O Que Deu Errado no Oriente Mdio?, ZaharEditor, Rio de Janeiro, 2002; Soren Kvalkof e Peter Aaby (editores), Is God an American?, International WorkGroup for Indigenous Affairs, Copenhagen, 1981.

    3 Daniel Patrick Moynihan, Pandemonium: Ethnicity in International Politics, Oxford University Press, Oxford,1994; Thomas Sowell, Race, Politique et conomie (Une Approche Internationale), trad. de Raoul Audouin,Presses Universitaires de France, Paris, 1986; Rita Jalali e Seymour Martin Lipset, Racial and Ethnic Conflicts:A Global Perspective, Policial Science Quarterly, vol. 107, n 4, 1992-93, pp. 585-606; John McGarry eBrendan OLeary (Organizadores), The Politics of Ethnic Conflict Regulation, Routledge, London, 1993; RonaldSegal, The Race War, A Banton Book, New York, 1967.

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    como tcnicas de expanso do capitalismo, visto como modo de produo eprocesso civilizatrio.

    Cabe refletir, portanto, sobre o enigma ou os enigmas escondidos naquesto racial, enquanto sucesso ou multiplicao de xenofobias, etnicismos,intolerncias, preconceitos, segregaes, racismos e ideologias raciais, desde osincios dos tempos modernos, em todo o mundo.

    A - A raa, a racializao e o racismo produzem-se na dinmica dasrelaes sociais, compreendendo as suas implicaes polticas, econmicas,culturais. a dialtica das relaes sociais que promovem a metamorfose da etniaem raa. A raa no uma condio biolgica como a etnia, mas uma condiosocial, psico-social e cultural, criada, reiterada e desenvolvida na trama das relaessociais, envolvendo jogos de foras sociais e processos de dominao eapropriao. Racializar uns e outros pela classificao e hierarquizao revela-seinclusive uma tcnica poltica, garantindo a articulao sistmica em que se fundamas estruturas de poder. Racializar ou estigmatizar o outro e os outros tambmpolitizar as relaes cotidianas, recorrentes, em locais de trabalho, estudo eentretenimento; bloqueando relaes, possibilidades de participao, inibindo

    aspiraes, mutilando a praxis humana, acentuando a alienao de uns e outros,indivduos e coletividades. Sob todos os aspectos a raa sempre racializao,trama de relaes no contraponto e nas tenses identidade, alteridade,diversidade, desigualdade, compreendendo integrao e fragmentao,hierarquizao e alienao.

    B - Um segredo da constituio da raa, enquanto categoria social, estna acentuao de algum signo, trao, caracterstica ou marca fenotpica por parte deuns e outros, na trama das relaes sociais. Simultaneamente, na medida em que oindviduo em causa, podendo ser negro, ndio, rabe, judeu, chins, japons, hind,angolano, paraguaio ou porto-riquenho, est em relao com outros, aos poucos identificado, classificado, hierarquizado, priorizado ou subalternizado. Mesmo porqueuns e outros, indivduos, grupos, famlias e coletividades esto inseridos emprocessos de cooperao, diviso do trabalho social, hierarquizao, dominao ealienao, a transformao da marca em estigma, o que se manifesta na xenofobia,etnicismo, preconceito, segregao, racismo. Aos poucos, o trao, a caractersticaou a marca fenotpica transfigura-se em estigma. Estigma esse que se insere eincrusta nos comportamentos e subjetividades, formas de sociabilidade e jogos deforas sociais, como se fosse natural, dado, inquestionvel, reiterando-serecorrentemente em diferentes nveis das relaes sociais, desde a vizinhana aoslocais de trabalho, da escola igreja, do entretenimento ao esporte, das atividadesldicas s estruturas de poder4.

    Note-se que o estigma no atinge apenas aqueles que pertencem aoutras etnias, j que atinge tambm a mulher, o operrio, o campons, os adeptosde outras religies, o comunista. Trata-se de elaborao psico-social e cultural coma qual a marca transfigura-se em estigma, expresso em algum signo, emblema,esteretipo, com o qual se assinala, demarca, descreve, qualifica, desqualifica,delimita ou subordina o outro e a outra, indivduo ou coletividade. Este umaspecto fundamental da ideologia racial: o estigmatizado, aberta ou veladamente,

    4 Oracy Nogueira, Tanto Preto Quanto Branco: Estudos de Relaes Raciais, T. A. Queiroz Editor, So Paulo,1985, cap. Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de Origem, pp. 67-93; Erving Goffman, Estigma,trad. de Mrcia Bandeira de Mello Leite Nunes, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1975.

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    levado a ver-se e movimentar-se como estigmatizado, estranho, extico, estrangeiro,alheio ao ns, ameaa; a despeito de saber que se trata de mentira. Precisaelaborar e desenvolver a sua autoconscincia crtica, tomando em conta o estigma eo estigmatizador, o intolerante e a condio de subalternidade em que est jogado.

    C - evidente que a personalidade, sensibilidade e subjetividade do racista

    desempenha um papel importante ou mesmo decisivo na trama das relaes eformas de sociabilidade. Na fbrica da sociedade burguesa, envolvendo aindividuao e o individualismo, a competio e o xito pessoal, o status scio-econmico e a classificao social, formam-se personalidades democrticas eautoritrias, tanto quanto esticas e apticas, egostas e altrustas, neurticas epsicticas. Sendo que esses traos, ou estruturas de personalidade, s vezesexercem um papel decisivo no modo pelo qual o indivduo em causa se relacionacom o outro ou os outros, tomados como estranhos, exticos, diferentes,irreconhecveis, ameaas. Conforme sugerem Adorno, Sartre e outros, o intolerante,preconceituoso ou racista, inventa o objeto de sua intolerncia, dio, agresso,podendo ser negro, rabe, judeu; por diferente, surpreendente. Sem esquecer queaquele que marginalizado ou estigmatizado desenvolve uma conscincia social

    singularmente sensvel, fina, arguta, incmoda; traduzindo-se geralmente em maislucidez, maior discernimento, o que tambm diferente e surpreendente 5.

    D - A ideologia racial dos que discriminam, dos que mandam, os quaispodem ser brancos ou outros, sintetiza e dinamiza a intolerncia, xenofobia,etnicismo, preconceito ou racismo. a ideologia racial que articula e desenvolve agama de manifestaes, signos, smbolos ou emblemas com os quais indivduos ecoletividades explicam, justificam, racionalizam, naturalizam ou ideologizamdesigualdades, tenses e conflitos raciais. O racista fundamenta em argumentos queparecem consistentes e convincentes a sua taxionomia e hierarquizao,distinguindo, delimitando, segregando ou estranhando o outro: negro, rabe, judeu,ndio, oriental e assim por diante. So esteretipos, signos e smbolos mobilizadosao acaso das situaes elaboradas no curso de anos, dcadas e sculos, com osquais o branco, dolicocfalo, europeu, ariano, norte-americano, ocidentalexplica, legitima, racionaliza ou naturaliza a sua posio e perspectiva privilegiadas,de controle de instrumentos de poder. Nesse sentido que essa ideologia umatcnica de estigmatizao recorrente, reiterada em diferentes frmulas everbalizaes, desenvolvendo a metamorfose da marca em estigma. Sob vriosaspectos, essa ideologia racial transmitida por geraes e geraes, atravs dosmeios de comunicao, da indstria cultural, envolvendo tambm sistemas deensino, instituies religiosas e partidos polticos; e tem sido, continuando a ser; umcomponente nuclear da cultura da modernidade burguesa. Esse o contexto em quese formula, cria ou engendra o mito da democracia racial, significando que asociedade brasileira seria uma democracia racial, sem ser uma democracia polticae, muito menos, uma democracia social. claro que essa expresso dissimula umasofisticada forma de racismo patriarcal, patrimonial, elaborada desde o alpendre da

    5 T. W. Adorno e outros, The Authoritarian Personality, Harper & Broters, New York, 1950; J. P. Sartre,Reflexes Sobre o Racismo, trad. de J. Guinsburg, Difuso Europia do Livro, So Paulo, 1960; Frantz Fanon,Peau Noire Masques Blancs , ditions du Seuil, Paris, 1952, Albert Memmi, Portrait du Colonis, Jean-JacquesPauvert diteur, Utrecht, 1966; Karl Marx, A Questo Judaica, trad. de Wladimir Gomide, Editora Laemmert,Rio de Janeiro, 1969.

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    casa-grande. Mais do que isso, pode ser uma cruel mistificao da desigualdade,intolerncia, preconceito, etnicismo ou racismo, enquanto argamassas da ordemsocial vigente, da lei e da ordem. Cruel porque implica em neutralizar eventuaisreaes ou protestos, reivindicaes ou lutas dos estigmatizados, definidos deantemo como participantes tolerados da comunidade nacional6.

    E - bvio que o discriminado, segregado, estigmatizado, definido comoestranho, desconhecido, no confivel elabora a sua contra-ideologia, ideologiade protesto, indignao, reivindicao, emancipao. Simultaneamente estigmatizao elabora criticamente a prpria situao e a do outro, geralmentemas no sempre branco, administrador, capataz, conquistador, colonizador,membro de setores sociais dominantes, os quais se imaginam superiores,civilizadores. assim que o estigmatizado elabora e reelabora a sua identidade: nocontraponto com a alteridade, na dinmica das relaes, processos e estruturashierarquizadas, desiguais, com as quais os que mandam ou desmandamempenham-se em preservar a lei e a ordem. Nesse percurso atravessado porvivncias, o estigmatizado desenvolve a sua percepo, sensibilidade,compreenso; construindo e reconstruindo a sua conscincia no contraponto do eu

    e outro, ns e eles, subalternos e dominantes. Assim aos poucos, ou derepente, realiza um entendimento mais amplo e vivo de qual a sua real situao,quais so os nexos do tecido social no qual est emaranhado, de como essa sua asituao implica decisivamente a ideologia e a prtica dos que discriminam. Esse opercurso em que se desenvolve a conscincia crtica, a autoconscincia ou aconscincia para-si, reconhecendo que desde essa autoconscincia crtica quenasce a transformao, a ruptura ou a transfigurao.

    Charqueada Grande

    Oliveira Silveira

    Um talho fundo na carne do mapa:Amricas e frica margeiam.Um navio negreiro como faca:mar de sal, sangue e lgrimas no meio.

    Um sol bem tropical ardendo forte,ventos aliseos no varal dos juncose sal e sol e vento sul no cortede uma ferida que no seca nunca7.

    6 Roger Bastide e Florestan Fernandes, Brancos e Negros em So Paulo, 2 edio, revista e ampliada,Companhia Editora Nacional, So Paulo, 1959; Unesco-Anhembi, Relaes Raciais entre Negros e Brancos emSo Paulo, Editora Anhembi, So Paulo, 1955; Florestan Fernandes, O Negro no Mundo dos Brancos , DifusoEuropia do Livro, So Paulo, 1972.

    7 Oliveira Silveira, Charqueada Grande, publicado por Oswaldo de Camargo (Seleo e Organizao), ARazo da Chama, Edies GRD, So Paulo, 1986, p.65.

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    Presentinho

    Paulo Colina

    Maio,treze,mil oitocentos e oitenta e oito,me soam como um sussurro csmico.

    A noite sobressaltadapor sirenes me sacode.

    Reviro os bolsos procura do passeque me permite, So Paulo, cruzar ruasem latente paz.

    A Princesa esqueceu-se de assinarnossas carteiras de trabalho.

    Desconfio, sim, que Palmares vivo necessrio8.

    F - No limite, a questo racial, em todas as suas implicaes sociais,polticas, econmicas, culturais e ideolgicas, pode ser vista como uma expresso edesenvolvimento fundamentais do que tem sido a dialtica escravo e senhor nocurso da histria do mundo moderno. Constitui um ngulo particularmente crucial efecundo do que tm sido os diferentes desenvolvimentos da sociedade moderna,burguesa, capitalista; visto o capitalismo como um modo de produo e processocivilizatrio, mas histrico e, portanto, transitrio. O que j se esboava no sculo16, com a polmica entre Bartolomeu de Las Casas e Juan Gins de Seplveda, apropsito dos povos e civilizaes do Novo Mundo, desenvolve-se, aprofunda-se egeneraliza-se no curso dos sculos seguintes, medida que se formam etransformam as castas e classes sociais. Da a excepcional clareza, argcia econtundncia da famosa frase, com a qual Caliban anuncia a sua revolta contraPrspero: foi bom que voc me ensinou a sua lngua, agora j sei como amaldio-lo. Assim nasce a rebeldia do colonizado contra o colonizador, do subalterno contrao conquistador; um primeiro momento da conscincia crtica, da autoconscinciapara-si; dialtica essa que ressoa e desenvolve-se em escritos de Rousseau, Hegel,Marx, Engels, Gramsci, Fanon e muitos outros, em todos os continentes, ilhas earquiplagos.

    8 Oswaldo de Camargo (Organizao), O Negro Escrito (Apontamentos sobre a Presena do Negro na LiteraturaBrasileira), Imprensa Oficial do Estado, So Paulo, 1987, p. 180. Consultar tambm: Jos Luis Gonzlez eMnica Mansur (Organizao), Poesa Negra de Amrica, Ediciones Era, Mxico, 1976; Roger Bastide, AsAmricas Negras, trad. de Eduardo de Oliveira e Oliveira, Difel, So Paulo, 1974; John Henrik Clarke e AmyJacques Garvey (Organizao), Marcus Garvey and the Vision of Africa, Vintage Books, New York, 1974; PagetHenry, Calibans Reason (Introducing Afro-Caribbean Philosophy), Routledge, New York, 2000.

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    O problema do sculo 20, disse o famoso lder negro americano William E.Bughart Du Bois, em 1900, o problema da barreira de cor, a relao das raasmais escuras com as mais claras, dos homens na sia e frica, na Amrica e nasilhas do mar. Foi uma notvel profecia. A histria do sculo atual foi marcada,simultaneamente, pelo impacto do Ocidente na sia e na frica e pela revolta dasia e da frica contra o Ocidente... A longo prazo... dois fatores foram

    fundamentais... O primeiro fato foi a assimilao por asiticos e africanos das idias,tcnicas e instituies ocidentais, que podiam ser aproveitadas contra as potnciasocupantes, um processo em que eles demonstraram ser mais aptos que a maioriados europeus tinha previsto. O segundo foi a vitalidade e capacidade de auto-renovao de sociedades que os europeus tinham, com excessiva facilidade,considerado estagnadas, decrpitas ou moribundas9.

    A dialtica escravo e senhor pode ser tomada como uma das maisimportantes alegorias do mundo moderno, fundamental na filosofia, cincias sociaise artes. Est presente em distintos crculos sociais, envolvendo tanto etnias e raas,como a mulher e o homem, o jovem e o adulto, o operrio e o burgus, o rabe e o judeu, o ocidental e o oriental, o norte-americano e o latino-americano, o sul-africanos e os boersou afrikaners; diferentes coletividades, grupos sociais, classes

    sociais e nacionalidades; todos relacionando-se, integrando-se e tensionando-se,nos jogos das foras sociais.

    Esta a dialtica das relaes sociais, nas quais se inserem as relaesraciais: o indivduo, tomado no singular ou coletivamente, forma-se, conforma-se etransforma-se na trama das relaes sociais, formas de sociabilidade, jogos deforas sociais. So vrias, mutveis e contraditrias as determinaes queconstituem o indivduo, no singular e coletivamente, o que pode transform-lo etransform-los; da constituindo-se o negro, branco, rabe, judeu, hindu,mexicano, paraguaio, senegals, angolano; tanto quanto operrio,campons, latifundirio, burgus; tanto quanto mulher, homem; todos e cadaum vistos como criados e recriados, modificados e transfigurados na trama dasrelaes sociais, das formas de sociabilidade e dos jogos das foras sociais;envolvendo sempre processos scio -culturais e poltico-econmicos, desdobrando-se em teorias, doutrinas e ideologias. Assim se d a metamorfose do indivduo emgeral, indeterminado, em indivduo em particular, determinado, concretizado porvrias, distintas e contraditrias determinaes. Esse o clima em que germina o eue o outro, o ns e o eles, compreendendo identidade e alteridade, diversidade edesigualdade, cooperao e hierarquizao, diviso do trabalho social e alienao,lutas sociais e emancipao.

    Esta , em sntese, uma idia, hiptese ou interpretao, com a qual todosse defrontam cotidianamente, ou de quando-em-quando: a sociedade moderna,burguesa, capitalista, fabrica contnua e reiteradamente a questo racial, assimcomo as desigualdades feminino-masculino, o contraponto sociedade-natureza e ascontradies de classes, alm de outros problemas com implicaes prticas etericas. So enigmas que nascem e desenvolvem-se com a modernidade, pordentro e por fora do desencantamento do mundo. A despeito de inegveisconquistas sociais realizadas no curso dos tempos modernos, esses e outros

    9 Geofrey Barraclough, Introduo Histria Contempornea, 4 edio, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1976,pags. 146 e 152-3; citao do cap. VI: A Revolta Contra o Ocidente, pp. 146-188. Consultar tambm: WilliamShakespeare, A Tempestade, trad. de Barbara Heliodora, Lacerda Ed., Rio de Janeiro, 1999; G. W. F. Hegel,Fenomenologia do Esprito, trad. de Paulo Meneses, Editora Vozes, Petrpolis, 2002, esp. cap. IV: A Verdadeda Certeza de Si Mesmo, pp. 135-171.

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    enigmas se criam e recriam, desenvolvem e transfiguram, em diferentes crculos derelaes sociais, no s em sociedades nacionais como tambm na sociedademundial. De par-em-par com a globalizao da questo social, desenvolve-se eintensifica-se mais um ciclo de racializao do mundo, assim como detransnacionalizao de movimentos sociais de todos os tipos, envolvendofeministas, reivindicaes tnicas, tenses e lutas religiosas implicadas na

    geopoltica do terrorismo e crescente conscincia de que o prprio planeta Terraest ameaado. Esses so problemas e enigmas da modernidade-nao, ouprimeira modernidade, e da modernidade-mundo, ou segunda modernidade, ambasconjugando-se e tensionando-se no curso dos tempos e nos espaos do mapa domundo; revelando que a modernidade seria ininteligvel sem esses dilemas, os quaisdesafiam a prtica e a teoria, a ideologia e a utopia.

    Seria fcil reconhecer que esses enigmas esto na natureza das coisas,da vida, ou da sociedade burguesa, moderna, como enigmas insolveis, ainda quemanejveis. E esse o pensamento de muitos, em diferentes partes do mundo.Grande parte das prticas e dos discursos sobre a lei e a ordem, a nova ordemeconmico-social mundial, o mundo sem fronteiras, o fim da histria ou a teoria,a prtica do neoliberalismo implica em naturalizar ou ideologizar o status quo:

    modificar alguma coisa para que nada se transforme.Mas possvel imaginar que esses problemas ou enigmas podem ser

    fermentos de outras formas de sociabilidade, outros jogos de foras sociais, outrotipo de sociedade, outro modo de produo e processo civilizatrio; com os quais sepe em causa a ordem social burguesa prevalecente, revelando-se a suaincapacidade e impossibilidade de resolv-los, reduzi-los ou elimin-los. Sim, essesproblemas ou enigmas podem ser tomados como contradies sociais abertas,encobertas ou latentes, permeando amplamente o tecido das sociedades nacionaise da sociedade mundial, com os quais se fermenta a sociedade do futuro.