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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP Faculdade de Psicologia A Dois, A Três, A Quatro... Encontro e Individuação na Sociedade Pós-Moderna Gustavo Monteiro Pessoa de Andrade SÃO PAULO - 2008

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP Faculdade de Psicologia

A Dois, A Três, A Quatro... Encontro e Individuação

na Sociedade Pós-Moderna

Gustavo Monteiro Pessoa de Andrade

SÃO PAULO - 2008

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Gustavo Monteiro Pessoa de Andrade

A Dois, A Três, A Quatro... Encontro e Individuação na Sociedade Pós-Moderna

Trabalho de Conclusão de Curso individual como exigência parcial para Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Orientadora: Prof. Dra. Flávia Arantes Hime.

São Paulo Faculdade de Psicologia da PUC/SP

2008

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A repetição desta dedicatória não se dá por falta de criatividade, mas porque o sentido destas palavras jamais foi alterado.

À minha família, composta muito mais de amigos, minha mãe e a Jô, sem os quais eu sequer teria forças para conhecer a psicologia. É difícil contemplar a um jovem todo o seu potencial, mas foi isso que minha mãe sempre conseguiu realizar. A gratidão é eterna e o amor é incondicional.

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Aos meus amigos e minha família que me acompanharam desde o primeiro

momento e apoiaram, de uma forma ou de outra, meu amor pela psicologia.

Ao Rafael Brandão, que não apenas me deu subsídio concreto e fundante

para esta pesquisa, mas também todo tipo de apoio imaterial.

Ao Carlos Fabrício Freitas, cuja ajuda objetiva também me desvendou

inúmeros universos da poesia e do significado além do que um simples psicólogo

poderia imaginar.

À minha orientadora Flávia Hime, cujos afeto, compreensão e disposição

sempre me incentivaram a fazer mais e melhor e nunca desviar de uma

metodologia que inclui sentimento e intuição.

À minha supervisora do universo onírico Vera Sá, sem a qual as pontes

construídas na extroversão deste trabalho não teriam acontecido, já que derivam

da introversão poética que tanto vimos em nossos encontros.

À minha supervisora Eloísa Penna, que me apresentou a diversidade e

possibilidade de ser junguiano com todo o rigor, mas com todo o amor.

Aos meus orientadores indiretos Durval Luiz de Faria, Noely Montes

Moraes e Marina Pereira Gomes, porque sem eles nem tantas referências nem

tanto conhecimento poderiam ter sido debatidos.

Esta pesquisa se dedica ao coletivo, mas sem nunca esquecer dos

elementos individuais que a compõem. As meninas: Thalise, Thaís, Marcela,

Andréia, Juliana, Adriana, Liliana, Maria Isabel, Luiza, Talita, Thaís, Patrícia, Patrícia,

Carolina, Rene, Lígia, Cris, Marina, Kelma e todas as outras que, vez ou outra, me

forneceram insights tão fundamentais. Os meninos: Fabiano, Leandro, Roberto,

Thiago, André, Marco, Rafael, Davi, Tiago, Henry, Diogo, Leandro e todos aqueles

que me sustentaram quando eu já não conseguia mais.

Muito obrigado.

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RReessuummoo

O objetivo desta pesquisa é compreender o símbolo do encontro na pós-

modernidade, na perspectiva da Psicologia Analítica. É no encontro com o outro que

nos percebemos e percebemos o mundo, e é o espaço no qual ocorre a síntese da

personalidade, também compreendida como processo de individuação. Escolheu-se a

pós-modernidade como fenômeno que limita o espaço/tempo do encontro a ser

estudado. O paradigma junguiano afirma ser necessário utilizar o parâmetro da

finalidade e, se possível, da sincronicidade, na análise de um fenômeno. Assim, pode-

se considerar que a Psicologia Analítica possui elementos em sua abordagem capazes

de auxiliar na reflexão sobre o encontro pós-moderno, ultrapassando as discussões já

realizadas sob o modelo da causalidade. Para isto, foi realizado um levantamento

bibliográfico em Psicologia Analítica sobre o tema do encontro e sua relação com

individuação, e também uma análise da produção feita pela Sociologia sobre a pós-

modernidade, à luz da teoria da Psicologia Analítica. Escolheram-se crônicas atuais que

versassem sobre o relacionamento contemporâneo como objeto de análise,

considerando que estes materiais expressam conteúdos da consciência coletiva sobre

relacionamentos e apontassem possibilidades e caminhos a partir destes. A análise das

crônicas foi feita de maneira compreensiva, embasada por pressupostos da Psicologia

Analítica, na qual buscou-se articular os conceitos desta teoria, da Sociologia e da

História dos relacionamentos a fim de se chegar a um entendimento comum sobre a

expressão, as possibilidades, as condições e os limites do relacionamento na pós-

modernidade. Neste sentido, concluiu-se que a relação pós-moderna precisa ser

sustentada pela comunidade e vivida em sua temporalidade integral, enfrentando-se o

desafio da escolha e suas conseqüências, da massificação do indivíduo e a perda de si

no coletivo; em contrapartida, verificou-se também a possibilidade criativa de

transformação e individuação a partir do relacionar-se no contexto pós-moderno, em

que vínculos sólidos podem fortalecer o indivíduo e a comunidade como fenômenos

próprios ainda que se sustentem dialeticamente na contemporaneidade.

Palavras-chave: encontro, pós-modernidade, individuação, relacionamento

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SSuummáárr iioo

II nn tt rroo dd uuçç ããoo .............................................................................................................................................................................................. 77

AA ss BBaass ee ss HH ii ss ttóórr ii cc aass ee PPss ii cc oo llóógg ii cc aass ddoo RR ee ll aacc iioonn aammee nn ttoo ............................ 1133

EEnncc oonnttrroo ee II nndd iivv iidduuaaçç ããoo .................................................................................................................................... 2211

AA PPóóss --MMoo ddeerrnn iiddaaddee ,, EEuu ee ooss OO uu tt rroo ss ................................................................................................ 2299

MM éé ttoo ddoo ...................................................................................................................................................................................................... 3388

AA nnáá ll ii ssee ........................................................................................................................................................................................................ 4433

CC oo nn cc lluu ss ããoo ............................................................................................................................................................................................ 6611

CC oo nn ss iiddee rraaçç õõ ee ss FF iinnaaii ss ...................................................................................................................................................... 6655

AA ppêênnddii cc ee :: CC rrôô nn iicc aass CC oommppll ee ttaass .................................................................................................................. 6677

RR ee ffeerrêênncc ii aass BB ii bb ll ii ooggrrááff ii cc aass .................................................................................................................................. 7744

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IInnttrroodduuççããoo

Se eu tivesse de indicar qual denominador

comum psicológico caracteriza a sociedade atual no

mundo inteiro, não teria dúvida. Alguns povos são

dominadores, outros submissos; alguns são tímidos,

outros agressivos. Há os desorganizados e os

extremamente metódicos. Alguns são laicos e outros

fundamentalistas. Também existem os povos voltados

para a modernidade e outros que são tradicionalistas. No

entanto, todos os povos do mundo estão, hoje,

desorientados.

- Domenico De Masi

Ser significa, em certa medida, movimentar-se. O movimento pode encontrar

obstáculos, e no momento de parada diante de uma adversidade jaz a oportunidade

para a reflexão. O sociólogo Domenico De Masi, em um artigo-crônica publicado na

revista Época em 3 de Setembro de 2007, apontou que existe um ponto comum que

cruza a consciência coletiva deste planeta: a desorientação. Quando falamos em

povos, falamos em ser, e ser humano. Mais especificamente, falar em povos significa

falar em uma coletividade de seres dotados de uma consciência, um agrupamento de

indivíduos que fatalmente se relacionam e se entrelaçam para constituir o significado

da palavra povo. É no momento em que a desorientação e as relações humanas se

encontram que esta pesquisa se inicia.

O presente estudo teve sua origem em inquietações deste pesquisador com as

implicações do encontro com o outro e com aspectos da Psicologia Analítica.

Fortuitamente, este tema encontra relevância no trabalho de Jung (2007, p. 100)

quando ele mesmo afirma que a individuação, ou síntese da personalidade, não ocorre

sem os relacionamentos com e no mundo. Este trabalho, portanto, auxilia na reflexão

de que a Psicologia Analítica não compreende o desenvolvimento pessoal como algo

exclusivamente interno e fora da História, mas que ocorre no mundo exterior e vivido,

nas relações e no momento social e cultural no qual um indivíduo está inserido. Para

fundamentar este argumento, é necessário que se estude o fenômeno escolhido

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dentro destes limites. Por isto, delimita-se aqui a relação eu-outro na sociedade pós-

moderna na qual vivemos, termo utilizado por inúmeros sociólogos contemporâneos

que buscam compreender o momento atual da História humana. Sobre este momento,

Penna (2006) esclarece que:

A literatura contemporânea tenta distinguir “pós-modernidade”, “pós-modernismo” e

“pós-moderno”. Pós-modernismo refere-se a movimentos ou escolas de artes e,

freqüentemente, o termo está associado a estilo artístico ou de vida. A pós-

modernidade é considerada, em geral, como o tempo atual, no sentido de época,

quase sinônimo de atualidade, sendo que alguns autores usam pós-modernidade e

pós-moderno de modo intercambiável. (p. 15).

Os relacionamentos são peça fundamental tanto na Sociologia quanto na

Psicologia e na Antropologia. Na perspectiva social, o relacionamento é compreendido

como um fenômeno propício para se observar os movimentos e transformações

daquilo que é coletivo – Bauman (2004), Maffesoli (2006) e Giddens (1993) dedicam

livros inteiros ao assunto. Na Psicologia Analítica, o encontro com o outro tem sido

tratado fundamentalmente a partir do microcosmo analista-analisando. Neste recorte,

Jacoby (1992), Schwartz-Salant (2000) e Groesbeck (1983) exploraram o tema a fim de

compreender o significado e as peculiaridades dos relacionamentos que ocorrem

dentro do setting analítico, sob o nome de transferência. Jung (2007), entretanto, é

claro: “a transferência é um fenômeno natural em si, que de modo algum se reproduz

unicamente no consultório médico.” (p. 85).

Maffesoli (2006) resume a reemergência do encontro no mundo pós-moderno:

“é preciso retomar o mecanismo de participação mágica: com os outros (tribalismo),

com o mundo (magia) e com a natureza (ecologia).” (p. 16). Em sua pequena

introdução, o autor afirma que estes temas tornaram-se fundamentais na

contemporaneidade, o que nos obriga a refletir sobre a relação eu-outro na pós-

modernidade. Considerando que o encontro também é indispensável para o

movimento de integração da personalidade, segundo Jung (2007, p. 100), tanto mais

importante se torna desvendar o “mecanismo de participação mágica” deste tema na

visão da Psicologia Analítica.

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O objetivo desta pesquisa, portanto, é compreender o símbolo do encontro na

pós-modernidade, na perspectiva da Psicologia Analítica.

Para isto, foi realizada uma revisão de literatura em Sociologia para que se

pudesse compreender mais amplamente o conceito de pós-modernidade. Do mesmo

modo, um levantamento bibliográfico dentro da Psicologia Analítica também foi

realizado, procurando desvelar o sentido do encontro para Jung e os pós-junguianos, e

buscando aproximações com a idéia de sociedade pós-moderna. A possibilidade de

articulação entre a Psicologia Analítica e a pós-modernidade trabalhada pela Sociologia

é estudada por Penna (2006), Hauke (2000) e Progoff (1985). Penna (2006) procura

mostrar que o pensamento junguiano é coerente com os pressupostos da pós-

modernidade:

Jung, afinado com o espírito pós-moderno, reafirma o paradoxo e a contradição do ser

humano, assim como a infinita complexidade, diversidade e incerteza que permeiam o

conhecimento do inconsciente; mas sua psicologia está mais alinhada com uma visão

integrativa e construtiva baseada na noção de uma totalidade implícita e na busca de

compreensão do sentido e do significado para a existência individual e coletiva do que

com o desconstrutivismo niilista em que prevalecem o vazio e a ausência de sentido.

(p. 22).

Desta forma, a perspectiva da Psicologia Analítica sobre a pós-modernidade

também pode contribuir para que se encontrem significados e sentidos para os

fenômenos que supostamente parecem vazios em si, devido a uma característica do

próprio pensamento pós-moderno, o desconstrutivismo niilista, da qual Jung não

partilha.

O tema do encontro na sociedade pós-moderna é, ele mesmo, vitima das

incertezas que permeiam este momento histórico. Por causa disto, uma revisão de

literatura em Psicologia Analítica tornou-se necessária para desvelar os sentidos do

relacionamento eu-outro nesta abordagem psicológica. A partir fundamentalmente de

Jung (2007), entre outros, pôde-se delinear a importância do encontro para a psique

humana compreendida pela Psicologia Analítica.

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Bauman (2004) transmite a angústia atual sobre os relacionamentos da

seguinte maneira:

Por todos os motivos, a visão do relacionamento como uma transação comercial não é

a cura para a insônia. (...) A solidão produz insegurança – mas o relacionamento não

parece fazer outra coisa. Numa relação, você pode sentir-se tão inseguro quanto sem

ela, ou até pior. Só mudam os nomes que você dá à ansiedade. (p. 30)

A visão pós-moderna compreende o relacionamento como um acordo de

interesses momentâneos, que produz insegurança quando a intenção era diminuí-la.

Existe, portanto, uma incoerência fundamental na busca por relacionamentos na

contemporaneidade, e a Sociologia nos oferece uma explicação a partir da análise de

parâmetros sociais como o capitalismo, a globalização e os movimentos de tribalismo

contemporâneos, e sua influência sobre o encontro.

O paradigma junguiano, contudo, nos diz que a compreensão do fenômeno não

ocorre somente a partir de um modelo causalista-explicativo, mas afirma ser

necessário também utilizar o parâmetro da finalidade e, se possível, da sincronicidade,

o que se coloca muito mais no espectro da pós-modernidade em detrimento da

modernidade clássica (Penna, 2003, p. 213). Assim, pode-se considerar que a

Psicologia Analítica possui elementos em sua abordagem capazes de auxiliar na

reflexão sobre o encontro pós-moderno em relação à explicação dada pela Sociologia,

e que a interação entre estas duas áreas do conhecimento se torna possível tanto

pelos trabalhos já realizados na direção desta aproximação, bem como a afinação do

próprio Jung com as características do pensamento pós-moderno. É possível, deste

modo, construir um sentido para o relacionamento eu-outro na contemporaneidade

dentro da Psicologia Analítica de forma a expandir a compreensão deste fenômeno,

utilizando como sustentáculo o material já produzido pelos sociólogos e psicólogos da

atualidade dedicados à compreensão deste fenômeno.

Escolheu-se analisar, nesta pesquisa, crônicas de autores contemporâneos à luz

dos conceitos psicológicos e da leitura psicológica dos autores da Sociologia já citados.

O pressuposto aqui é de que a crônica revela aspectos presentes na consciência

coletiva atual, permitindo a expansão do conhecimento a respeito do símbolo

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escolhido, fundamentado a partir de definições de Moisés (1995, p. 104) e Queiroz

(1867, p. 3).

Este trabalho se organiza ao redor de seus objetivos e método. Por isto, houve

a consecução de um capítulo introdutório que destacasse o objetivo e a relevância da

pesquisa. Em seguida, vê-se os capítulos, Bases Históricas e Psicológicas do

Relacionamento, Encontro e Individuação e Pós-Modernidade, nos quais aprofundou-

se os conceitos teóricos apropriados que versassem sobre a importância do encontro e

sua relação com a individuação segundo a Psicologia Analítica, um panorama histórico

e psicológico dos relacionamentos e seu impacto no indivíduo e na comunidade, e os

estudos sociológicos atuais a respeito do relacionamento e sociedade,

respectivamente. O capítulo seguinte, Método, se dedica a oferecer os critérios para

se ter escolhido a crônica como material de análise e os critérios de seleção e análise

do material. Finalmente, encontramos os capítulos Análise, Conclusão e Considerações

Finais, nos quais se empreende um processo de análise das crônicas selecionadas. Em

seguida, pode-se encontrar um anexo com o texto integral de cada uma das crônicas.

É oportuno, também, resgatar Jung (2007) para fazer uma adequada ressalva

sobre este estudo. Publicado em 1928, “O Problema Psíquico do Homem Moderno” é

uma conferência compilada junto a outros materiais, presente no livro Civilização em

Transição. Nela, o autor traz uma preocupação acerca da reflexão sobre o que é

contemporâneo:

O problema psíquico do homem moderno é uma dessas questões indefinidas,

exatamente por sua modernidade. Moderno é o homem que surgiu há pouco, e um

problema moderno é uma questão que surgiu, mas cuja resposta ainda está no futuro.

Por isso, o problema psíquico do homem moderno é, na melhor das hipóteses, uma

interrogação que talvez se apresentasse de modo bem diferente, se tivéssemos ligeira

idéia da resposta que o futuro trará. Além disso, trata-se de algo tão geral – para não

dizer tão vago – que supera em muito a força de compreensão de um único pensador,

de maneira que temos todas as razões do mundo para abordar este problema com

toda modéstia e o maior cuidado. Na minha opinião, é absolutamente necessário

reconhecer expressamente esta limitação, pois nada induz tanto a encher a boca com

palavras altissonantes, mas por isso mesmo vazias, do que a abordagem de um

problema deste tipo. (p. 74).

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Transformando a preocupação do homem moderno naquela do homem pós-

moderno, e tendo levado esta limitação em consideração, esta pesquisa prossegue

conforme o anunciado, esperando limitar-se à análise do que é pós-moderno apenas

nos relacionamentos, em um material de pesquisa específico, e em uma abordagem

psicológica determinada. Sem escapar ao rigor e lógica necessários à realização de

uma pesquisa acadêmica contemporânea, limitamo-nos à nossa própria vivência de

espaço, tempo e cultura.

Finalmente, é necessário destacar que a partir deste ponto, esta pesquisa evita

utilizar a letra maiúscula para notar qualquer coisa que não se refira a nomes próprios

de seres humanos. Baseado em Hauke (2000, p. 14), pressupõe-se que a letra

maiúscula pode ser facilmente confundida ou tomada como analogia à Verdade ou à

Realidade, o que não faria sentido uma vez posta a ressalva anterior. Portanto,

admitimos que o que existe, nas realidades, são as verdades.

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AAss BBaasseess HHiissttóórriiccaass ee PPss iiccoollóóggiiccaass ddoo

RReellaacc iioonnaammeennttoo

Não falo para nações, mas só para indivíduos,

para poucas pessoas conscientes de que nossas

realidades culturais não caem do céu, mas que, em

última análise, são produzidas por nós, pessoas

individuais. Se as grandes coisas estão mal, isto se deve

exclusivamente ao de os indivíduos estarem mal, de eu

estar mal.

- Carl Gustav Jung

A Psicologia Analítica utiliza a mitologia como recurso para investigar a psique.

Os mitos, a História das religiões e os contos de fada revelam aspectos psíquicos tanto

contextuais às épocas em que foram ouvidos e registrados, como características

universais do ser humano. Von Franz (2005) argumenta, por exemplo, que o conto de

fada é “um sistema relativamente fechado, composto por significado psicológico

essencial” (p. 10).

Desta forma, uma revisão histórica pertinente a um estudo como este não se

contenta em apenas narrar os fatos apurados ao longo da história do homem. As

características psicológicas inerentes àquele dado estágio da linha do tempo chamam

a atenção deste autor e de outros autores consultados para a realização deste

capítulo, e não são excluídas deste trabalho, bem como o que se considera humano e

universal, ou seja, arquetípico. Não é objeto desta pesquisa, contudo, uma extensa

revisão cronológica e objetiva sobre os relacionamentos, já realizada pelos autores

utilizados neste capítulo.

Tenta-se, entretanto, manter a coesão dos eventos de modo a estruturar um

pensamento que possa ilustrar a estruturação dos modos de relacionar-se, iniciando

esta jornada no período da história conhecido como paleolítico. O objetivo final desta

proposição é conseguirmos enxergar de forma tanto histórica como psicológica qual

foi o caminho percorrido pelo homem até o modelo de relacionamento atual. Para

isto, foram consultados autores da Psicologia Analítica, como Byington (1987),

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Whitmont (1991), Hauke (2000) e Fernandes (2001), bem como pesquisadores

contemporâneos da história dos relacionamentos, como Lins (2007).

O Passado da Deusa

O período paleolítico se estende de três mil até dez mil anos antes de cristo.

Segundo Lins (2007), este período foi marcado pelo culto à deusa, no qual uma

entidade feminina divina era adorada em diversas partes do mundo. Mais do que uma

mulher, Lins afirma que “o universo era uma mãe generosa” e “assim como toda vida

nasce dela, retorna a ela, na morte, para renascer” (p. 25). Num trecho como este, a

autora nos mostra historicamente como o conceito de mulher não equivale ao do

princípio feminino, e ainda nos introduz à idéia de tempo contínuo. Esta idéia de

continuidade é citada por Whitmont (1991) como característica da consciência mágica

da organização matriarcal (p. 60), pensamento dominante na idade da pedra,

composta pelos períodos paleolítico e neolítico. A continuidade é um atributo

fundamentalmente feminino, diz Whitmont no mesmo trecho. Ambos os autores

apontam para um feminino pacífico, indesejoso de conquistar e se opor. Quer dizer, o

princípio feminino estabelece-se pela placidez e a eternidade do ser. Lins (2007) relata

que “a ausência de imagens de dominação e guerra reflete uma ordem social em que

homens e mulheres trabalhavam juntos, em parceria igualitária, em prol do bem-

comum” (p. 26) na dominância matriarcal. Fernandes (2001) afirma que o “equilíbrio

de poderes específicos a cada sexo perdurou por todo o período paleolítico” (p. 26)

mas também que “homens e mulheres desenvolveram diferentes aptidões

relacionadas às atividades que realizavam, o que de forma alguma definia um como

superior ao outro” (p. 25).

Os relacionamentos nesta dinâmica prescindiam de uma noção de valor, na

mesma medida em que também não se discriminava o eu do outro claramente. A

separação definitiva entre sujeito e objeto é algo típico do dinamismo patriarcal, como

explica Byington (1987, p. 62), quando afirma que a discriminação é um atributo desta

dinâmica. A indiscriminação significa que a necessidade, o desejo e a vontade do eu e

do outro são as mesmas, já que eles mesmos são um só. Se existe eu e o outro, eles

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são vividos continuamente de forma binária, alternando-se. Segundo Whitmont

(1991), este tipo de organização psíquica ainda existe hoje de forma inconsciente (p.

64). Esta forma de relacionamento se transformou na medida em que a organização

matriarcal do ocidente também entrou num processo de transição para a sociedade

patriarcal.

O período neolítico avança até o ano 3000 a.C., quando se acredita iniciar a

idade de bronze e a chamada antiguidade. Neste período, ocorreu o início da transição

do modelo matriarcal, indicado pela soberania da deusa, para o modelo patriarcal e a

ascensão do masculino. As organizações sociais são regidas pelas atividades da

agricultura e do pastoreio. Lins (2007) discorre sobre o período anterior ao modelo

patriarcal:

A estrutura social pré-patriarcal era igualitária. Apesar da linhagem ter sido traçada por

parte da mãe e as mulheres representarem papéis predominantes na religião e em

todos os aspectos da vida, não há sinais de que a posição do homem fosse de

subordinação. (p. 26).

O início da transição para o modelo patriarcal ocorre quando a procriação pode

ser observada de perto, e percebe-se que existe a participação do homem na

reprodução da espécie, segundo Fernandes (2001, p. 26). Lins (2007) explica que o

impacto inicial desta percepção não fez com que automaticamente a mulher se

subordinasse ao homem, tampouco a deusa teria dado lugar ao deus. O consorte da

deusa torna-se seu amante, e posteriormente seu cônjuge (p. 29). Whitmont (1991)

completa que a imagem do parceiro masculino é ocasionalmente transformada em um

duplo, como o pai e o filho no mito de Édipo, ou amante, parceiro, filho, pai e vítima de

sacrifício (p. 60). Gradualmente, diz Lins (2007), o deus acumula mais e mais poder em

detrimento da deusa, e forma-se a noção de superioridade dos sexos (p. 29).

A Ascensão do Pai

Fernandes (2001) afirma que já existe uma separação hierarquizada na idade

de bronze, a partir de 3000 a. C., o que é típico do dinamismo patriarcal (p. 28). A

autora relata o surgimento do fenômeno da polarização, que está

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(...) claramente presente neste momento histórico não apenas na suposta

superioridade do homem em relação à mulher, mas também na valorização do

pretensamente ativo e depreciação do pretensamente passivo, na preferência do

externo em detrimento do interno etc., ou seja, na separação assimétrica das

polaridades. Trata-se da valorização do dinamismo patriarcal e da repressão do

dinamismo matriarcal e de funções que o expressam, tais como a subjetividade, a

intuição, o sentimento. (p. 28).

O relacionamento no dinamismo patriarcal na idade de bronze, portanto,

incorpora a noção valorativa de que existem dois elementos relacionados entre si, os

pólos, e que existe uma superioridade de um em relação ao outro. O par eu-tu sempre

assimetricamente caracterizado é a expressão do relacionamento patriarcal. Byington

(1987) ainda afirma que

o maior afastamento da polaridade consciente-inconsciente que permitirá à

consciência a abstração necessária para a elaboração patriarcal dos símbolos se dá

através do arquétipo do pai, que delimita a discriminação, privilegiando

sistematicamente um dos dois pólos das polaridades. Em algumas polaridades Eu-

Outro, o Eu é assimetricamente favorecido, como nos casos em que ele está dedicado

ao cumprimento de tarefas. Por isso, tantos pais, dirigentes ou inovadores se julgam

no direito de desconsiderar a pessoa dos seus filhos, seus subordinados ou seus

opositores. (p. 62).

As sociedades patriarcais que se estabelecem a partir da idade de bronze

iniciam a exclusão do feminino no papel da criação. Uma vez polarizada, a dinâmica

masculino-feminino hierarquiza os dois elementos, tornando o primeiro superior. O

homem está identificado com o princípio masculino, e é aquele que detém o poder. É

seu sêmen o responsável pela fecundação, e a mulher torna-se apenas um receptáculo

que guarda a criança até o momento de seu nascimento. O papel masculino

preponderante na criação é ilustrado por Lins (2007), quando a autora explica que

“para a civilização judaico-cristã, Adão é criado por um Deus masculino. Javé tira uma

de suas costelas, enquanto Adão dorme profundamente, e fecha cuidadosamente o

lugar com carne. Eva, então, é moldada a partir dessa costela” (p. 36). Lins (2007, p.

36) prossegue explicando que o mito transforma a mulher em duas vezes submissa: ela

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foi criada pelo deus masculino a partir do masculino criado à imagem e semelhança

daquele deus. A primeira mulher é, nesta sociedade patriarcal, devedora de sua vida

ao seu pai divino e ao seu marido mortal.

Deve-se notar que a polarização masculino-feminino e a questão hierarquizante

do dinamismo patriarcal suplantam as questões do homem e da mulher, já que o

gênero não equivale ao princípio do qual se está falando. Deste modo, a divisão do

símbolo em polaridades opostas e complementares estende-se além do

relacionamento amoroso heterossexual e pode ser aplicada tanto a relacionamentos

homossexuais como relacionamentos de outra natureza. Podem-se constituir, por

exemplo, polaridades professor-aprendiz, proprietário-propriedade, mãe-filha, entre

outras dinâmicas polarizantes possíveis em um relacionamento.

Os períodos históricos que sucedem à antiguidade consolidam a sociedade

patriarcal e suas características acima citadas. O percurso do dinamismo patriarcal na

consciência e suas relações com o relacionamento é extenso e não é objeto de estudo

desta pesquisa, mas pode ser encontrado nas obras já citadas neste capítulo. É

interessante, contudo, apontar a ruptura que levou a humanidade até o momento

atual, intitulado livremente de “pós-modernidade”.

O Esgotamento Moderno

Hauke (2000) discorre com objetividade sobre o período em que o dinamismo

patriarcal começou a apontar seu próprio esgotamento. O autor explica que, no

desenvolvimento da ciência, a dicotomia cartesiana foi utilizada para que métodos e

teorias pudessem ser estabelecidos. Neste paradigma, fez-se uma clara diferenciação

entre sujeito e objeto, na qual a observação do cientista, como sujeito do

experimento, não interferia no resultado da pesquisa (p. 241). A conseqüência deste

pensamento é admitir que o contato entre observador e observado não estabelece

uma relação na qual ambos possam ser alterados.

Segundo o mesmo autor (2000, p. 242), o pico deste pensamento nitidamente

patriarcal, por seu alto grau de diferenciação e objetividade, aconteceu no século XIX.

Neste momento histórico, a visão de mundo ocidental alinhou-se completamente com

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as idéias da física moderna: vivia-se num mundo mecânico, no qual as ciências eram

aplicadas diretamente à matéria. O futuro derivava exclusivamente do presente, num

modo de pensar mecanicista e causal.

Hauke (2000, p. 242 e p. 243) prossegue afirmando que a ciência materialista

encontrou dois desafios fundamentais ao seu modo de pensar. Primeiramente, o

ocidente foi inundado por correntes filosóficas críticas em relação à realidade

encontrada naquele período, o que se constata pela emergência de autores

renomados como Marx e Engels e Nietzsche. De um outro lado, o avanço da física no

estudo de áreas como o eletromagnetismo e o universo quântico obrigou os

pensadores e cientistas a reverem seus conceitos mecanicistas. A energia, o

eletromagnetismo e a física quântica não eram representados pelo materialismo, mas

por construtos teóricos “constelados pela mente humana, o observador, em busca de

significado e coerência” (p. 242).

A mentalidade dominante nesta época, é claro, também aplicava-se aos

relacionamentos. Um exemplo característico dos relacionamentos desta fase na qual o

imperativo da racionalidade e do mecanicismo operaram são os casamentos

arranjados, para que se pudesse suprir necessidades sociais, políticas e religiosas. A

nova ascensão do que é afeto, amor e intuição nos relacionamentos já é um traço da

pós-modernidade, na qual o relacionamento pode integrar a si outras funções e

qualidades humanas, deixando de simplesmente se subjugar aos interesses

racionalmente estabelecidos da modernidade.

A revolução para o pensamento que vivemos hoje, nesta transição pós-

moderna, origina-se na disseminação destas rupturas de paradigma em toda sociedade

ocidental. O que fora organizado através do dinamismo patriarcal, isto é, fazendo uso

de categorizações objetivas, discriminações precisas, hierarquizações e

estabelecimento do pensamento lógico e racional, começou a se mostrar insuficiente

frente às demandas filosóficas e científicas do homem, que começaram a surgir a

partir do final do século XIX e o início do século XX. O interesse contínuo e crescente na

psicologia, que se constitui como uma ciência com o propósito razoavelmente claro de

se estudar o observador a partir desta época, é um exemplo deste esgotamento.

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Transições

O modelo patriarcal de relacionamento, tingido pelas polaridades e pela

hierarquização, subsiste até a modernidade. Byington (1987), em seu livro O

Desenvolvimento da Personalidade, elabora sua teoria de ciclos arquetípicos

estruturando o desenvolvimento humano através dos arquétipos da grande mãe,

análogo ao dinamismo matriarcal, e do pai, análogo ao dinamismo patriarcal. Em

seguida, o autor descreve os dinamismos de alteridade e totalidade. Whitmont (1991)

afirma ser possível pensar o desenvolvimento do indivíduo análogo ao

desenvolvimento da humanidade (p. 57). Pode-se supor, portanto, que a consciência

coletiva também experimenta os ciclos propostos por Byington. Fernandes (2001)

conclui em sua pesquisa que o momento atual é uma transição do dinamismo

patriarcal em direção ao ciclo da alteridade (p. 83).

Os sociólogos estudam a atualidade sob o título de “pós-modernidade”.

Bauman (2004), Giddens (1993), Maffesoli (2001), Gergen (1992) e Hauke (2000), entre

outros, relatam características da pós-modernidade em suas obras. Trataremos dos

aspectos dos relacionamentos vividos nesta contemporaneidade, bem como as

dificuldades apontadas por diversos autores na transição do modelo patriarcal para o

modelo da alteridade. O que se apresenta para estes autores é um período no qual o

relacionamento ascende em importância se comparado ao desenvolvimento individual

solitário. Neste contexto, o processo de individuação torna-se essencialmente

extrovertido, isto é, com o outro, o que intensifica a necessidade de compreendermos

o que ocorre nos relacionamentos pós-modernos que se conecta tão intimamente com

o nosso desenvolvimento e com o contato com o outro. Gergen (1992) afirma que “o

eu é substituído pela realidade relacional: a transformação do eu e o tu em nós” (p.

202). Para Gergen (1992), o eu pós-moderno é desafiado a viver em um mundo no

qual a autonomia é posta em xeque, e o eu só existe em um processo social que

eclipsa a vivência pessoal (p. 203).

Na mesma medida em que Gergen (1992) olha criticamente as premissas pós-

modernas que dissolvem um eu patriarcal bem definido e hierarquicamente em seu

devido lugar, Maffesoli (2001) aponta que existe um sopro de vida em tal atitude; é, na

verdade, uma resposta inconsciente a um período anterior no qual valores diferentes

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imperavam, em que se privilegiava aspectos que agora são questionados. O autor

discute o termo “ajuda mútua”, pelo qual se compreende que o indivíduo e o coletivo

ajudam-se mutuamente a fim de um desenvolvimento comum, a promoção da vida (p.

60). Maffesoli nos diz que:

“a ajuda mútua, tal como aqui a entendemos, se inscreve em uma perspectiva

orgânica em que todos os elementos, por sua sinergia, fortificam o conjunto da vida.

Desse modo, a ajuda mútua seria a resposta animal, “não consciente”, do querer viver

social.” (p. 60)

Vê-se, portanto, que os estudos acerca da pós-modernidade são por vezes

contraditórios, por vezes complementares, em suas proposições. A própria linguagem

e posicionamento dos autores que buscam estudar este período da história nos fala

sobre características essenciais da pós-modernidade. Esta contemporaneidade

ocidental, que busca a transição para o modelo de alteridade, é fundamental para

compreendermos a implicação do relacionamento na individuação em nossos tempos.

Hauke (2000, p. 14) se refere à pós-modernidade como o mundo eletrônico e

globalizado no qual vivemos atualmente. Para ele, o termo modernidade pode ser

aplicado como referência do período que nasce no Iluminismo histórico e segue até as

bases modernas da Psicanálise de Freud. Por ser um trabalho essencialmente

psicológico e semelhante ao de Hauke, esta pesquisa lidará com a mesma definição de

modernidade e pós-modernidade que o autor usa, em consonância com Penna (2006,

p. 15), anteriormente citada, que descreve a pós-modernidade como a época em que

vivemos hoje.

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EEnnccoonnttrroo ee IInnddiivv iidduuaaççããoo

A realização consciente da unificação interior é

inseparável da relação humana, que é uma condição

indispensável, pois sem o vínculo com o próximo,

reconhecido e aceito conscientemente, a síntese da

personalidade simplesmente não se faz.

- Carl Gustav Jung

O ser humano não é inteiro. Como no mito de Platão, muitas vezes sentimo-nos

como se tivéssemos sido separados, rasgados de nossa totalidade e arremessados no

mundo incompletos. De fato, não é apenas um sentimento. É averiguável que não

possuímos todas as qualidades humanas que existem, tampouco viemos carregados de

todos os defeitos. Existem aquelas características que não nos pertencem, mas que

existem e podemos encontrá-las em alguém. Da mesma forma, podemos observar no

outro alguns traços ausentes de nossa personalidade.

A noção de que não somos tudo e tampouco somos algo bem definido em um

dado momento mistura-se aos dinamismos matriarcal, patriarcal e de alteridade.

Como visto nos capítulos anteriores, a história recente da humanidade sedimentou o

modo de funcionamento patriarcal no qual um não é outro; existe discriminação.

Ainda possuímos vivências de cunho matriarcal, assim como parece que caminhamos

na direção da alteridade. Isto significa novas maneiras de lidar com o outro, e

portanto, novas maneiras de lidar com a individuação, como mostraremos neste

capítulo.

A psique não se contenta com um ser humano consciente das mesmas coisas

em todas as épocas da vida. Observamos, sentimos e pensamos, descobrimos novas

coisas e novas coisas se agregam a nós ao longo de nossa vida, tanto quanto somos

obrigados a nos despedirmos de outras coisas neste processo. Uma das maiores

transformações em relação a esta expansão da consciência, isto é, desta integração de

novos conteúdos, ocorre no encontro com o outro. É no outro e com o outro que nos

percebemos e percebemos o mundo, e iniciamos este processo de integração.

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O Curador Ferido

Neste sentido, surge a imagem do curador ferido. Talvez seja um dos

relacionamentos mais significativos para a psicoterapia, porque o curador ferido é uma

imagem que evoca a figura do analista e do analisando, desempenhando papéis

complementares como curador e ferido, respectivamente. Trata-se de uma imagem

arquetípica freqüente nas mitologias, na qual um personagem é ferido por algum meio

e adquire a capacidade de curar; alternativamente, alguns mitos demonstram o

surgimento concomitante de uma ferida incurável ao lado de uma impressionante

perícia em medicina. Remeto o leitor ao artigo de Groesbeck (1983), que faz um

apanhado da simbologia do curador ferido e dos mitos gregos de Quíron e Esculápio, e

situa este arquétipo dentro da relação analista-analisando, ou médico-paciente.

Segundo Groesbeck (1983) explica ao longo deste artigo, na relação transferencial que

ocorre no setting analítico, conjugam-se três fatores: o analista, o analisando e a

imagem arquetípica do curador ferido que, uma vez invocada, leva tanto médico como

paciente às profundezas do inconsciente e requer dos dois que entrem em contato

com o seu oposto para que a cura se realize. O autor afirma que “mesmo o médico

externo sendo muito competente, as feridas e doenças não poderão ser curadas se

não houver a ação do médico interior [do paciente].” (p. 77).

O processo de cura ocorre, portanto, dentro do relacionamento entre

terapeuta e paciente, e somente quando existe transferência e se conjuga o terceiro

fator facilitador do relacionamento. O “médico interior” é a imagem arquetípica que

aparece para o paciente, na mesma medida em que o médico/terapeuta é obrigado a

contatar suas próprias feridas. A necessidade do próprio terapeuta possibilitar o

surgimento de seus ferimentos é explicado da seguinte maneira:

Só quando o médico tiver sido tocado profundamente pela doença, infectado por ela,

mobilizado, amedrontado, comovido; só quando ela tiver transferido para ele,

continuado nele e obtido um referencial em sua própria consciência – só então e só

nessa medida poderá lidar com ela eficazmente. (Jaspers apud Groesbeck, p. 83).

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Ou seja, a compreensão do médico/terapeuta sobre a ferida do outro depende

da sua capacidade em permitir que a doença o toque. Vê-se a necessidade de uma

outra pessoa que configure um relacionamento para que a transformação em alguém

seja efetiva, e ambas as pessoas envolvidas neste relacionamento necessitam estar

mobilizadas neste processo.

O que torna a especificidade deste exemplo de relacionamento tão relevante é

o fato dela demonstrar que o desenvolvimento das partes envolvidas depende da

interação entre elas; ou seja, o relacionamento em si é significativo, e é mais do que a

soma entre suas partes. A entrada de um terceiro fator na dinâmica relacional nos

indica na direção da alteridade, tirando-nos da confortável situação patriarcal de

polaridade eu-outro, analista-analisando e inserindo um terceiro fator que não exclui

os demais e tampouco traz hierarquizações para este relacionamento. Portanto, o

curador ferido torna-se uma imagem que possibilita observarmos o surgimento do

dinamismo da alteridade.

Relacionamento e Transferência

Anteriormente a Groesbeck, Jung (2007) discorreu sobre os relacionamentos

quando problematizou sobre a transferência. A transferência na psicoterapia

junguiana tem a função, segundo Jung, de aproximar os opostos para que haja uma

integração de conteúdos e posterior reequilíbrio de um conflito (p. 51). É a

aproximação do inconsciente em relação à consciência. Utilizando como exemplo a

imagem do curador ferido, podemos pensar que na psicoterapia existe o resgate da

figura inconsciente do curador que habita o mundo interno do paciente. O contato

com o curador interno é o verdadeiro possibilitador da cura, isto é, da transformação

psíquica. Para esta necessária aproximação de opostos Jung dá o nome de coniunctio,

já que faz uso de exemplos da alquimia medieval que utiliza o latim em suas imagens

em sua obra sobre a transferência. Jung (2007) esclarece, retomando a relevância dos

relacionamentos para o indivíduo, que:

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A realização consciente da unificação interior é inseparável da relação humana, que é

uma condição indispensável, pois sem o vínculo com o próximo, reconhecido e aceito

conscientemente, a síntese da personalidade simplesmente não se faz. (p. 100).

A partir deste referencial de transferência, compreende-se que existe um jogo

de relacionamento tanto interno como externo. O relacionamento externo, concreto,

possibilita que se entre em contato consigo mesmo. Da mesma forma, o

aprofundamento deste contato requer que encaremos as diferenças entre um e outro,

e a manutenção do relacionamento requererá mais do indivíduo do que simplesmente

projetar no outro conteúdos que pertencem a si. A realidade do outro é única e não

nos pertence, mas na mesma medida com o outro podemos aprender sobre nós

mesmos. O paradoxo aparente constituído por esta dupla possibilidade é reiterado por

Jung (2007):

Assim, pois, quem não quiser ser ludibriado por suas próprias ilusões, fará uma

cuidadosa análise de cada fascínio [pelo outro] e dela extrairá a quintessência, ou seja,

um fragmento da própria personalidade; e, paulatinamente, vai descobrindo que, nos

caminhos da vida, nos encontramos incessantemente conosco mesmos, sob mil

disfarces diferentes. Isto é uma verdade que só é proveitosa na medida em que

estivermos animados pela convicção da realidade individual e irredutível do outro.

(p. 180).

O relacionamento com o outro torna-se, deste modo, indispensável para o

conhecimento sobre si mesmo. Mais do que isso, o encontro ganha a capacidade de

promover a individuação, processo descrito por Jung como meta da Psicologia

Analítica. Sobre este tema, Jung (2007) afirma que “o processo de individuação tem

dois aspectos fundamentais: por um lado, é um processo interior e subjetivo de

integração, por outro, é um processo objetivo de relacionamento com o outro, tão

indispensável quanto o primeiro.” (p. 101).

O processo interior e subjetivo de integração não é necessariamente feito ao

lado do outro, mas também parece conter em si traços do que foi anteriormente

descrito como coniunctio. Miceli (2006) relata que mesmo na solidão o indivíduo

procura uma espécie de “união mística” que é fundamental para que o estar sozinho

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possa ter um aspecto positivo. Segundo a autora, o distanciamento dos monges e

outros praticantes de muitas religiões é na verdade uma busca do encontro com o

divino; é a reparação de uma suposta separação anterior entre a alma humana e o

espírito sagrado (p. 34).

Este tipo de relacionamento com algo que está além do outro concreto e busca

uma espécie de estado de fusão nos remete novamente ao matriarcado e o

patriarcado e os conflitos surgidos na interação destes dois modos de funcionamento.

Vê-se, portanto, que o dinamismo matriarcal não foi simplesmente abandonado, mas

subsiste perifericamente ao dinamismo patriarcal dominante. Contudo, a pesquisa de

Miceli (2006) nos traz um aspecto relevante sobre o papel da dinâmica matriarcal para

algumas pessoas situadas no patriarcado: ele restabelece uma forma de

relacionamento que parece necessário a algumas pessoas, e por isso traz consigo

possibilidades para a individuação.

Encontro, Comunidade e Individuação

Hillman (1995) avança sobre o tema criticando o papel destinado aos nossos

relacionamentos na contemporaneidade. A crítica recai sobre uma espécie de

internalização das emoções e das experiências, objetivada pela psicoterapia atual, que

tem como efeito colateral a cisão entre a experiência vivida e sua posterior

elaboração. Não se criam laços comunitários e os relacionamentos íntimos são

forçosamente intensificados para que a comunidade se torne desnecessária. O autor

fala da importância em haver mais num relacionamento do que simplesmente as

projeções de um sobre o outro, e que um relacionamento constituído apenas destes

conteúdos não parece, de fato, um relacionamento amoroso. Hillman afirma que:

O amor é isto – estético e sensual. E quando estes aspectos não entram em ação, a

outra pessoa vira um pouco um camelo que carrega todo o peso pelo deserto desse

relacionamento – além da própria bagagem, também a do outro. Não admira que os

camelos salivem tanto. (p. 49).

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Defende-se aí, portanto, que o relacionamento deve conter mais do que

simplesmente a projeção. É característico do amor a superação do carregar o peso do

outro, para a constituição de uma relação diferenciada, nas quais Hillman afirma haver

a noção estética e a sensualidade. Com efeito, se retornarmos à imagem do curador

ferido, vemos que a projeção precisa ser desfeita a fim de que os conteúdos

inconscientes do sujeito possam se aproximar dele mesmo, e seja possível alcançar o

outro em sua individualidade ao invés de nele enxergarmos apenas as nossas questões

(Penna, 2005, p. 167). Isto significa, em última análise, que o dinamismo de alteridade

para o qual parecemos nos encaminhar necessita superar as projeções polarizadas tão

características do funcionamento patriarcal.

Jung (2007) ilustra, em sua obra Psicologia da Transferência, como a união dos

opostos é o cerne da transferência, e portanto dos relacionamentos, porque, segundo

Jung, “a transferência é um fenômeno natural em si, que de modo algum se reproduz

unicamente no consultório médico.” (p. 85). A aproximação dos diferentes e a

integração de novos elementos à consciência é, como já dito, uma parte da

individuação e também parte dos relacionamentos com o outro, com o “tu”. Neste

sentido, o conceito de individuação também se aproxima do conceito de relacionar-se,

de encontrar-se com o outro. A coniunctio oppositorum ocorre não apenas no

ambiente interno do indivíduo, mas também no mundo lá fora, representado

concretamente pela aproximação que se tem com o “tu”. Quando “eu” e “tu” se

aproximam, ocorre o contato com a diferença e o despertar de novas possibilidades de

ser e viver. Resgatando a noção junguiana de inconsciente como tudo o que é

desconhecido, aproximar-nos de um outro desconhecido é aproximar-nos do

inconsciente. E permitir que ele nos toque, tal como o médico deve permitir que a

doença do paciente o toque, também é uma possível integração de conteúdos

inconscientes.

Schwartz-Salant (2000, p. 24) ressalta que a coniunctio é um fenômeno raro,

porém possível e real. Nele estão presentes tanto a sexualidade quanto a

espiritualidade, atribuídos respectivamente ao princípio feminino e masculino por Jung

(2007) de forma extensa em sua obra, fazendo com que a própria coniunctio que

ocorre entre duas pessoas se trate simbolicamente de uma união entre alma e

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espírito, Mãe Terra e Pai Divino. Schwartz-Salant retoma Jung (2007) em discorrer

sobre a libido de parentesco, um instinto constitutivo do homem que pode ser

satisfeito através da coniunctio, fazendo com que o outro adquira traços de parente,

pessoa próxima e íntima, vinculada ao eu como que por laço de sangue. Schwartz-

Salant (2000) afirma que:

A libido de parentesco que Jung considera um instinto vai além da psique individual.

Ela requer mais que o relacionamento entre indivíduos: ela requer comunidade. É

provável que as energias da communitas só possam ser abordadas com segurança e

sanidade quando houver senso de comunidade. Talvez nossos encontros imaginais na

terapia liberem a communitas que engendrará a comunidade que precisamos, a qual

talvez possa por si só nivelar-nos como irmãos e deter a feia onda de busca narcísica

por poder. (p. 33).

O ensaio de Schwartz-Salant pode ser visto como uma resposta à Hillman

(1995). Nesta obra, vê-se uma possibilidade do encontro como algo proveitoso e

incentivador da comunidade, ao invés de alienar o sentido do grupo e do pertencer a

algo maior do que o eu. Contudo, tanto Hillman (1995) como Schwartz-Salant (1984)

ressaltam a importância da formação da comunidade para o indivíduo; é a satisfação

da libido de parentesco. Schwartz-Salant extrapola o sentido de relacionamento como

encontro amoroso e delimitado por duas pessoas, tornando o relacionamento a

capacidade de conexão do eu com um ou com muitos, com o grupo.

A capacidade de relacionar-se, de vincular-se e de experienciar a coniunctio

adquire importância ímpar: ela responde por promover a individuação, e participa do

processo de socialização e criar vínculos autênticos com os outros. O encontro com

o(s) outro(s) se transforma no propulsor para a descoberta de si e do outro, e pela

capacidade em reconhecer diferenças e construir caminhos para a convivência e a

satisfação de um instinto primeiro que deseja esta convivência, a libido de parentesco.

O relacionamento visto desta perspectiva ganha novas dimensões: quando pensamos

em uma dinâmica patriarcal, é natural que a produção acadêmica a respeito das

formas e funções do relacionar-se estejam continuamente preocupadas no

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estabelecimento de polaridades e metas. O pensamento discriminador torna

necessário que possamos ver as polaridades e nos situemos em relação ao que somos

e onde queremos chegar. Contudo, na medida em que os autores conseguem tratar da

questão da polaridade visando à inclusão de mais um sem número de dimensões (ou

pessoas, ou outros, tomando como a base a noção de que a comunidade contém

muito mais do que apenas dois elementos) e a valorização da construção de vínculos

autênticos de comunidade, pode-se aventar a idéia de que tratamos de condições de

um relacionamento pós-moderno, que inclui não somente características do

dinamismo patriarcal e matriarcal, mas também busca a integração do dinamismo da

alteridade na consideração pelos outros e na necessidade de interação e

desenvolvimento conjunto. O eu torna-se nós sem que todos os eus que compomos se

esfacelem, e neste sentido temos um propósito além da discussão polar entre o bem e

o mal, o certo e o errado. Este propósito é a individuação, que sempre ocorre entre

mim e mim mesmo e entre mim e os outros, concomitantemente.

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AA PPóóss--MMooddeerrnniiddaaddee,, EEuu ee ooss OOuuttrrooss

L’autre me fait exister à tel point que c’est faux

de dire: je pense. On deirait dire: on me pense.

- Arthur Rimbaud

O outro me faz existir a tal ponto que é falso

dizer: eu penso. Nós deveríamos dizer: nós me pensamos.

- Arthur Rimbaud

A Pós-Modernidade foi anteriormente definida em uma perspectiva histórica

na Introdução deste trabalho. O momento atual, contudo, nos impele em direção ao

aprofundamento da leitura psicológica deste fenômeno, não importa o quão difícil isto

se torne – o que também já foi notado. A tarefa foi assumida por diversos sociólogos:

Zygmunt Bauman (2004), Michel Maffesoli (2006), Kenneth Gergen (1992), entre

outros. O interesse desta pesquisa centra-se nas possibilidades de leitura psicológica

da contribuição científica destes autores, a fim de principalmente esclarecer-nos do

que se trata o fenômeno pós-moderno e, mais importante, como ele se revela nos

relacionamentos humanos e portanto tange à individuação.

O poeta Rimbaud parecia ter em mente a complexidade pós-moderna em seus

versos. Em uma rápida lista de diferenciações entre aquilo que é moderno e pós-

moderno, Hauke (2000, p. 30) enumera polaridades: Um-vários, Global-local, Homem-

humanidade, Verdade-perspectivas, Universal-individual, entre outros. Nesta lista, a

primeira palavra sempre corresponde à característica moderna, e a segunda equivale à

característica pós-moderna. O que há em comum nas polaridades de Hauke é o

deslocamento do grande para a miniatura, e a ruptura do absoluto em direção à

valorização daquilo que é relativo. Também é notória a utilização de letras minúsculas

na designação daquilo que é pós-moderno: o pós-moderno nega absolutismos e

autoridades arbitrárias, preferindo o caminho do sentido construído coletivamente.

No estudo daquilo que é pós-moderno, Hauke (2000, p. 113) aponta que

justamente a psicologia é um fenômeno típico da pós-modernidade, como uma forma

de reflexão sobre o si mesmo. Ele afirma que

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(...) dado o nível de incertezas ao redor das formas dominantes de racionalidade que

tem sido científicas, instrumentalizadas e extrovertidas, parece inevitável que a

psicologia tenha surgido como uma nova perspectiva. Uma vez estabelecida na cultura,

a psicologia retroagiu na consciência suas próprias dúvidas sobre esta mesma

racionalidade – portanto transformando a idéia de ‘conhecer’ e levando a cultura

humana a um novo plano de experimentação. (p. 117).

Neste trecho, portanto, Hauke nos aponta para uma relação entre a pós-

modernidade e o surgimento da psicologia, revelando outras duas características

típicas daquilo que é pós-moderno. Primeiramente, ele esclarece que nestes tempos

existe um nível de incerteza nos arredores do eu que não foi experimentado antes em

nenhuma outra época da humanidade. Bauman (2004, p. 30) reforça esta hipótese

como característica não apenas da pós-modernidade, mas dos relacionamentos pós-

modernos:

Você busca o relacionamento na expectativa de mitigar a insegurança que infestou sua

solidão: mas o tratamento só fez expandir os sintomas, e agora você talvez se sinta

mais inseguro do que antes, ainda que essa nova e agravada insegurança provenha de

outras paragens. (p. 30).

Segundo Bauman (2004, p. 29), a perspectiva pós-moderna que concede a

liberdade do ser em um certo nível é a mesma que gera esta insegurança. Para o autor,

a insegurança do relacionamento pós-moderno está intrinsecamente ligada à

característica, deste mesmo período, que nos diz que promessas, compromissos e

contratos não têm mais validade em longo prazo. Existe aqui um novo deslocamento

do Futuro-presente, o que despe o indivíduo de seguranças em relação ao amanhã.

Esta polaridade também pode ser encontrada na lista de Hauke (2000, p. 30).

O segundo elemento da pós-modernidade apontado por Hauke no começo

desta página refere-se à retroação. Em outras palavras, Hauke explica que a cultura

possibilitou o surgimento da psicologia, e uma vez estabelecida esta ciência agiu sobre

a cultura transformando-a, embora seja fundamentalmente o trabalho de indivíduos

sobre uma ciência que estuda o indivíduo, todos estes relacionando-se entre si. A

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complexidade do relacionamento pós-moderno, portanto, nos traz uma dinâmica de

ação e retroação e profundas cadeias de entrelaçamento ao ponto em que não se sabe

mais como se atingiu um determinado resultado. Sabe-se que o que foi obtido resultou

da interação entre indivíduos, tribos, comunidades, equipes, ou qualquer outro tipo de

agrupamento coletivo. Esta interação é notadamente criativa, uma vez que nela se

produz algo novo que possibilita a transformação, por vezes, da própria cultura, como

afirmou Hauke. Isto nos remete, novamente (aproveitando-nos devidamente da

retroação), ao conceito explanado por Groesbeck (1975, p. 77) e Schwartz-Salant

(2000, p. 33) no qual um terceiro fator se conjuga nas relações além do eu-outro, que

possibilita uma transformação criativa. Neste sentido, é justamente nas confusas teias

de relacionamento pós-moderno que repousa o potencial para o desenvolvimento

criativo de novas possibilidades para o humano.

Bauman (2004) aponta a dificuldade desta crescente consciência em relação ao

mundo e os relacionamentos, o que possibilita o aumento da complexidade destes. O

autor nos diz que

o fosso crescente entre aquilo de que (indiretamente) nos tornamos conscientes e

aquilo que podemos (diretamente) influenciar eleva a incerteza que acompanha todas

as escolhas morais a alturas sem procedentes, nas quais nossos dotes éticos não estão

acostumados e talvez nunca sejam capazes de operar. A partir desta dolorosa

percepção de impotência, talvez insuportável, ficamos tentados a correr em busca de

abrigo. A tentação de converter em “inatingível” o que é “difícil de administrar” é

constante, e crescente... (p. 119).

O que Bauman nos afirma sobre a dificuldade da pós-modernidade se trata,

portanto, de um desafio ético e moral ao humano. O relacionamento pós-moderno,

que atinge novos e mais difíceis níveis de complexidade, e portanto novos e mais

difíceis níveis de administração, também demanda do ser humano uma correção e

reflexão imensas. Neste contexto, o autor nos diz que é fácil sentir a tentação de

voltarmos a um modo de funcionamento “em busca do abrigo”, ou seja, o dinamismo

matriarcal anteriormente explicado. Para funcionar em um relacionamento pós-

moderno, a demanda por consciência e responsabilidade é tamanha que o nosso

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esgotamento nos arremessa de volta ao “colo da mamãe”, no qual buscamos uma

segurança de ser e sentir que dificilmente experimentamos na pós-modernidade sem

que o ser tenha capacidade de sentir, pensar, intuir, perceber e refletir a respeito de si

mesmo. Em outras palavras, para evitar a busca defensiva pelo abrigo materno, resta-

nos apenas que sejamos capazes de nos tornarmos nosso próprio pai e nossa própria

mãe, e consigamos nos sustentar em nossa solidão.

Uma possibilidade de atuação não-criativa na pós-modernidade que ilustra o

retorno a um dinamismo não mais predominante é explicitada por Gergen (1992, p.

202). O autor relata o surgimento do “eu relacional” e da “personalidade pastiche”,

fenômenos nos quais a existência submete-se à relação com o outro. Para Gergen (p.

195), o perigo da personalidade pastiche reside na perda da noção individual do ser, e

portanto no comprometimento do si-mesmo. Como vimos no capítulo anterior, o

estado de fusão e indiscriminação da consciência é característica notória do

dinamismo matriarcal, que aqui é usado defensivamente para esquivar-se da

necessidade de construção de sólidas propostas de ética e moral necessárias para

suportar as incertezas e possibilidades do relacionamento pós-moderno.

Maffesoli (2006), entretanto, aponta as dimensões criativas possíveis nas

especificidades do relacionamento pós-moderno. O sociólogo relata que existe

alguma coisa que, a partir de um enraizamento específico, integra uma relação

cósmica. De encontro ao universalismo abstrato típico das filosofias modernas, o

tribalismo utiliza um processo complexo feito de participações mágicas, de interações

múltiplas, de harmonia com as pessoas e as coisas. É isto que torna a época tão

atraente! (p. 19).

Em sua caracterização do relacionamento pós-moderno (“tribalismo”), o autor

confirma a hipótese de que, em se relacionando, o engendramento de inúmeros

fatores, eus e outros, ocorre o desvelamento de um potencial que tange à

espiritualidade. Em outras palavras, o relacionamento revela possibilidades da

individuação se puder ocorrer de forma criativa, mostrando àqueles que nele se

envolvem um sem número de novas perspectivas de ser.

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Os obstáculos encontrados pelo desenvolvimento das relações pós-modernas,

contudo, também ocorrem no terreno do dinamismo patriarcal. Neste tipo de

interação defensiva, Bauman (2004, p. 119) exemplifica: “os lares de muitas áreas

urbanas do mundo agora existem para proteger seus habitantes, não para integrar as

pessoas a suas comunidades.” O tipo de função de isolamento através da clara

discriminação do território nos fala de uma dimensão tipicamente patriarcal da

consciência, na qual a defesa atua na discriminação com a finalidade da separação e

proibição, em contrapartida à possibilidade de se erigirem padrões de moral e ética

suficientes para a integração dos indivíduos e comunidades.

O estabelecimento de fronteiras claras da comunidade, argumenta Bauman

(2003, p. 20 e 21), é o solo fértil aonde a identidade moderna nasce. A discriminação

atua de forma criativa quando propulsiona o surgimento da individualidade, o que

pode ocorrer a partir das definições sobre aonde começa o eu e aonde começa o

outro. O processo de identidade, contudo, reage defensivamente para fomentar a

exclusão: comunidades se agrupam por identidade com o objetivo de afirmar quem

não faz parte. É a tentativa da comunidade moderna de reter a segurança perdida na

pós-modernidade, como apontado por Hauke (2000, p. 117) e Bauman (2004, p. 30).

O processo de individuação, contudo, não ocorre de forma linear, no qual o

indivíduo é apenas agraciado com formas melhores e mais adequadas de ver e viver o

mundo. Kast (2007) é categórica quando diz que “é um mito acreditar que a

individuação diz respeito apenas a ganhar; no processo de individuação, você ganha e

você perde.” Sobre este aspecto, Bauman relata que

como os outros pontos de partida sobre o processo civilizador, no que diz respeito aos

valores humanos, a individualização foi uma troca. Os bens trocados no curso da

individualização eram a segurança e a liberdade: a liberdade era oferecida em troca da

segurança. (p. 26).

Bauman (2003) prossegue e explica o mecanismo da insegurança como

substituto do modelo de vigiar panóptico proposto por Foucault. A pós-modernidade

se instaura com o fim do compromisso soberano, deixando claro que “o fim dos

arranjos correntes (...) paira perpetuamente sobre as cabeças daqueles que os

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realizam” (p. 42). O autor explana o impacto desta mudança de mentalidade de forma

definitiva:

Foi-se a maioria dos pontos firmes e solidamente marcados que sugeriam uma

situação social que era mais duradoura, mais segura e mais confiável do que o tempo

de uma vida individual. Foi-se a certeza de que “nos veremos outra vez,” de que nos

encontraremos repetidamente e por um longo porvir – e com ela a de que podemos

supor que a sociedade tem uma longa memória e de que o que fazemos aos outros

hoje virá a nos confortar ou perturbar no futuro; de que o que fazemos aos outros tem

significado mais do que episódico, dado que as conseqüências de nossos atos

permanecerão conosco por muito tempo depois do fim aparente do ato –

sobrevivendo nas mentes e feitos de testemunhas que não desaparecerão. (p. 47).

Todos os “foi-se” de Bauman nos levam na direção do desengajamento. O

pressuposto do encontro, o compromisso de dois seres serem tocados um pelo outro,

encontra uma nova premissa de temporalidade para a qual a consciência não parece

preparada. A troca da segurança pela liberdade descortina novas terras e novos mapas

para serem explorados pelo humano, mas a reação primeira a estas possibilidades é

defensiva, seja de modo patriarcal ou matriarcal. A consciência que deseja entrar no

dinamismo da alteridade, portanto, encontra mais desafios do que poderia ter suposto

no início de sua jornada.

Tanto Bauman (2003), como Maffesoli (2001), contudo, apontam na

comunidade fatores decisivos para a superação da polaridade segurança-liberdade. A

comunidade moderna foi vista como asfixiante para o indivíduo, no sentido em que a

fronteira marcava uma identidade. O processo identificatório puro, por definição,

impede a individualidade. Se o indivíduo sabe quem é apenas através da identificação

com o outro, ele não é capaz de reconhecer sua própria condição independente de ser.

A comunidade pós-moderna, entretanto, tem condições de se estabelecer a

partir de outras premissas além da identificação. Maffesoli (2001, p. 56) relata que as

relações sociais modernas podem despontar como possibilidades de solidariedade e

ajuda mútua. Segundo o autor, o desenvolvimento de relações sociais significativas nos

leva a um conjunto significativo de pessoas que fomentam umas às outras, fazendo o

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querer viver social se colocar em favor da vida, ou em outras palavras, a favor da

individuação. Na mesma medida em que existe uma necessidade ética de maior

proporção para o estabelecimento de relacionamentos de significados em uma época

de incertezas, como disse Bauman, é na própria relação que a ética pode surgir e se

atualizar. Sobre isso, Maffesoli (2001) aponta que:

É bom lembrar que o divino é oriundo das realidades quotidianas, que ele se elabora,

pouco a pouco, na partilha dos gestos simples e rotineiros. É nesse sentido que o

habitus, ou o costume, servem para atualizar a dimensão ética de toda a socialidade.

(p. 61).

A afirmação de Maffesoli torna-se relevante à medida que desmistifica o terror

a respeito das demandas profundas feitas pela pós-modernidade ao indivíduo. De fato,

torna-se notório pela própria definição da individuação e o pensamento dos autores

que é necessário o aumento da consciência do eu para que se consiga manter e viver

um dinamismo de alteridade. As exigências da alteridade, em troca da liberdade e

maleabilidade intrínsecas a este funcionamento, referem-se a um rigor ético, valor e

correção enormes, que suportem o fato de que a própria sociedade não agirá mais de

forma paternalista, fixando os valores morais para as relações entre os indivíduos. O

apoio moral parece, agora, necessitar formar-se a partir do próprio eu. Isto requer

mais consciência e atenção aos seus arredores na medida em que a relação eu-mundo

se sofistica, e a responsabilidade do eu aumenta.

Entretanto, como disse Maffesoli, é na atenção aos processos rotineiros e

cotidianos que pode-se perceber a atualização da ética nos e dos próprios

relacionamentos, confiando-se na interação que ocorre no encontro como potente

conjugador do terceiro fator criativo que anuncia novas possibilidades, conforme já

citado anteriormente. A fluência deste terceiro fator culmina no surgimento de

questões, conflitos e possibilidades de solução, o que não poderia definir melhor

aspectos da individuação relacionados ao encontro. A comunidade pós-moderna,

portanto, surge como um novo fator que ao mesmo tempo desafia e dá condição aos

indivíduos de pertencerem a este novo tempo e formas de relacionar-se. Finalmente,

Maffesoli (2001) afirma:

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com segurança e obstinação, de maneira talvez um tanto animal – quer dizer,

exprimindo mais um instinto vital do que uma faculdade crítica –, os grupos, as

pequenas comunidades, as redes de afinidade e de vizinhança se preocupam com as

relações sociais próximas, assim como, também, com o meio-ambiente natural. Dessa

maneira, mesmo que pareçamos alienados pela distante ordem econômica-política,

asseguramos a nossa soberania sobre sua existência imediata. (p. 88).

Assim, formula-se uma possibilidade de existência da individualidade que não é

em momento algum asfixiada pela comunidade, ao contrário: a existência da

comunidade pós-moderna, ainda que com seus vínculos duradouros abalados,

possibilita ao indivíduo alguma segurança e algum nível de liberdade no qual ele possa

sentir-se sendo, para que consiga superar a esmagadora consciência de um mundo

globalizado, e possa retomar o suficiente de si para que cumpra seu papel de ator no

mundo. Como foi hipotetizado por Jung (2007) e retomado por Schwartz-Salant (2000,

p. 33), vê-se a ação do que se assemelha à assim chamada libido de parentesco,

nomeada por Maffesoli como um “instinto vital” que arranja a comunidade de forma a

permitir a individuação e o desenvolvimento no dinamismo de alteridade. Bauman

(2003), em seu posfácio, assegura que “somos todos interdependentes nesse mundo

globalizado, e devido a esta interdependência nenhum de nós pode ser senhor do seu

destino por si mesmo” (p. 133). O autor encerra:

Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e precisará

sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do compartilhamento e do cuidado

mútuo; uma comunidade de interesse e responsabilidade em relação aos direitos

iguais de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos. (p.

134)

O relacionamento pós-moderno parece precisar da inscrição local, ou da

comunidade. As teias de relacionamento se sustentam na ajuda mútua,

interdependendo uns dos outros sem que o vínculo imutável a dois (que já não existe

mais) torne uma relação específica insuportável. Nas possibilidades múltiplas,

múltiplas relações com a diversidade de indivíduos que compõe a comunidade revela

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alguma segurança. Dessa forma, decreta-se o fim da filosofia da metade da laranja,

preferindo-se de outro modo alinhar-se ao apoio de diversos indivíduos-irmãos em

momentos de necessidade e angústia. Para isso, é claro, é necessário que formemos

indivíduos inteiros e que indivíduos inteiros se formem, aqueles que não necessitarão

buscar a sua outra suposta metade.

A comunidade dos indivíduos, ou pós-moderna, portanto, precisa se formar a

altura dos desafios para a consciência coletiva que visa à alteridade. E na relação de

alteridade supõe-se a comunidade que fornece cuidado e responsabilidade, ao mesmo

tempo em que age através dos seus indivíduos e, portanto, espera deles a força para

formar, transformar e sustentar os mesmos cuidado e responsabilidade que ela se

esforça em garantir. Das formas mais diretas e indiretas, a polaridade segurança-

liberdade se transforma em uma relação de significado entre os termos, nos quais

apenas a presença de uma pode garantir a existência da outra. Cabe ao indivíduo

trazer a segurança que tanto busca, uma vez que possa assumir plenamente a

liberdade que possibilitará esta busca. E cabe a comunidade, da mesma forma, fazer o

mesmo. O paradoxo aparente entre as relações indivíduo-comunidade e liberdade-

segurança não se esgota; ele é apenas um sinal de que vivemos em tempos pós-

modernos.

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MMééttooddoo

A prodigiosa complexidade, sutileza e

polivalência da realidade transcende de longe a

apreensão de qualquer interpretação intelectual;

somente uma abertura empenhada na interação das

muitas perspectivas pode resolver as extraordinárias

questões da Era Pós-moderna.

- Richard Tarnas

A partir deste ponto, esta pesquisa volta-se para sua complicação inicial. Como

revelado por Jung (2000, p. 74) em suas reflexões acerca do homem moderno, o

homem pós-moderno é tanto obrigado a tentar compreender o espírito de sua época

como atazanado por uma miríade de dificuldades oriundas desta mesma característica;

sou limitado, tanto quanto chamado, pela época em que vivo. Tarnas (2001, p. 432)

inspira que olhemos para mais de uma perspectiva para compreender a pós-

modernidade, e esta foi a primeira tentativa empreendida na consecução deste

trabalho.

O primeiro passo na decisão de estudar os relacionamentos foi dado na direção

de compreender a relevância e o papel da relação na vida humana. Neste sentido, uma

revisão de literatura na psicologia analítica foi realizada, culminando no capítulo

Encontro e Individuação. Executando mesmo levantamento bibliográfico pôde-se

chegar a finalização dos capítulos sobre as bases históricas e psicológicas dos

relacionamentos e a pós-modernidade. Nestes, especialmente, buscou-se uma

pluralidade de visões que pudessem agregar conhecimento ao tema escolhido.

Os autores foram escolhidos por dialogar diretamente com a obra de Jung

(Fernandes, 2001, Maffesoli, 2006, Whitmont, 1991) ou tratar em sua obra da relação

entre pós-modernidade e relacionamento de forma central e terem amplo

reconhecimento coletivo (Bauman, 2003 e 2004, Lins, 2007, Maffesoli, 2006, Gergen,

1992). Dado o escopo deste trabalho, escolheu-se privilegiar a perspectiva sociológica

destes autores em detrimento da produção filosófica existente. Esta decisão se

fundamenta no objetivo desta pesquisa, compreender o símbolo do relacionamento

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na sociedade pós-moderna, o que coloca a leitura psicológica das relações em

justaposição às considerações sociológicas já realizadas sobre nossa época.

É importante ressaltar que, para além das relações de causalidade, o método

desta pesquisa é nitidamente junguiano, e portanto também se baseia nos princípios

da finalidade e da sincronicidade para definir todos os critérios relevantes à execução

deste trabalho (Penna, 2003, p. 213).

O estudo dos aspectos coletivos concernentes ao relacionamento também

ganha fundamento teórico na psicologia analítica, na qual o método de pesquisa é

“essencialmente hermenêutico ao visar, em primeiro plano, a compreensão do sentido

da vida humana tanto no âmbito individual quanto no coletivo” (Penna, 2003, p. 183).

A autora prossegue ao afirmar:

A investigação psicológica na psicologia analítica considera os fenômenos em

seu âmbito individual (sonhos, fantasias, experiências pessoais) e coletivo (mitos,

contos de fadas, acontecimentos sociais e políticos) desde que configurados por seu

valor simbólico, seja para o indivíduo ou a coletividade que os produz e os vivencia

psicologicamente. (p. 213).

Desta maneira, elegeu-se um símbolo revelador de uma dinâmica tanto

individual quanto coletiva – o próprio relacionamento – mas escolheu-se a perspectiva

coletiva de análise tanto pela validação dentro do espectro teórico utilizado nesta

pesquisa, a psicologia analítica, quanto pela existência de tal perspectiva na

pluralidade das visões utilizadas para construir o conhecimento a respeito deste

símbolo, embasadas na sociologia.

Para fornecer subsídios pertinentes a esta forma de pesquisa, escolheu-se

como material de análise o modelo literário da crônica. O lingüista Massaud Moisés

(1995) define a crônica como:

Ambígua, duma ambigüidade irredutível, de onde extrai seus defeitos e qualidades, a

crônica move-se entre ser no e para o jornal, uma vez que se destina, inicial e

precipuamente, a ser lida na folha diária ou na revista. Difere, porém, da matéria

substancialmente jornalística naquilo em que, apesar de fazer do cotidiano seu húmus

permanente, não visa à mera informação: o seu objetivo, confesso ou não, reside em

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transcender o dia-a-dia pela universalização de suas virtualidades latentes, objetivo

esse via de regra minimizado pelo jornalista de ofício. O cronista pretende-se não o

repórter, mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano, desentranhar do acontecimento

sua porção imanente de fantasia. (p. 104).

É nesta definição que se encontra amparo para afirmar que a crônica, portanto,

versa sobre conteúdos da consciência e do inconsciente – coletivos. Como “poeta do

cotidiano”, o cronista fala sobre o que é visível e o que é invisível, falando em linhas

lógicas e irracionais na mesma medida. O conteúdo transcende o dia-a-dia objetivo,

tornando-se universalizado, isto é, arquetípico.

O escritor português Eça de Queiroz (1867) completa e expande esta definição,

afirmando, de forma poética, que:

A crônica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com

os que lêem: conta mil coisas, sem sistema, sem nexo; espalha-se livremente pela

natureza, pela vida, pela literatura, pela cidade; fala das festas, dos bailes, dos teatros,

das modas, dos enfeites, fala de tudo, baixinho, como se faz ao serão, ao braseiro, ou

ainda de verão, no campo, quando o ar está triste. Ela sabe anedotas, segredos,

histórias de amores, crimes terríveis; espreita porque não lhe fica mal espreitar. Olha

para tudo, umas vezes maliciosamente, como faz a lua, outras alegre e robustamente,

como faz o sol; a crônica tem uma doidice jovial, tem um estouvamento delicioso:

confunde tudo, tristezas e facécias, enterros e actores ambulantes, um poema

moderno e o pé da imperatriz da China; ela conta tudo o que pode interessar pelo

espírito, pela beleza, pela mocidade; ela não tem opiniões, não sabe o resto do jornal;

está aqui, nas suas colunas, cantando, rindo, palrando; não tem a voz grossa da

política, nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico; tem uma

pequena voz serena, leve e clara, com que conta aos seus amigos tudo o que andou

ouvindo, perguntando, esmiuçando. (p. 3).

Estas conceituações trazem clareza à respeito da natureza da crônica: ao

mesmo tempo em que ela produz um impacto coletivo, sendo necessariamente

publicada em jornais, livros e revistas de grande circulação, ela se dedica tanto a

relatar os fatos e acontecimentos do cotidiano como “desentranhar a fantasia” que

neles reside. Desta forma, é imanente da crônica o conteúdo inconsciente excluído de

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uma descrição meramente informativa dos fatos. Cabe a crônica, por seu papel misto

entre poesia e realidade, tratar do corriqueiro dia-a-dia de forma a desvelar aquilo que

poderia ficar esquecido. Em outras palavras, portanto, a crônica é material literário no

qual pode-se dialogar simbolicamente, já que encerra em si própria conteúdo coletivo

consciente e inconsciente, o que lhe faz material válido e adequado para os fins desta

pesquisa.

As crônicas foram selecionadas por um critério temporal, para que cumprissem

sua função de análise consciente e inconsciente da pós-modernidade. Optou-se pelos

relatos mais recentes possíveis. Afunilou-se também a busca à medida em que se

fizeram necessários selecionar tanto veículos de imprensa de grande circulação quanto

crônicas que relatassem especificamente do tema relacionamento. O último critério

utilizado para que pudessem ser definidas as crônicas a serem analisadas foram as

formas de relacionamento. Optou-se pela variedade na forma, escolhendo-se portanto

crônicas que versassem sobre a dinâmica pai-filho, homem-mulher, amiga-amiga,

grupos/comunidade e relacionamentos que falassem tanto do dinamismo da

alteridade como dos dinamismos patriarcal e matriarcal. Para definir o número de

crônicas analisadas, utilizou-se o critério da saturação, considerando um número ideal

aquele que trouxesse dados suficientes para que o conteúdo destes se repetisse

muitas vezes, provando que não seria possível extrair novo conhecimento deste tipo

de material. Desta forma, empreendeu-se a análise de cinco crônicas.

A análise das crônicas foi realizada à luz da psicologia analítica bem como dos

autores anteriormente citados e lidos a partir desta mesma teoria, buscando uma

multitude de visões que pudesse convergir em uma melhor compreensão do tema,

para a consecução do objetivo desta pesquisa. Buscou-se estabelecer pontos comuns

entre as crônicas e uma análise sistêmica, que pudesse ao mesmo tempo contemplar o

conceito de “conteúdo arquetípico”, ou seja, universal e pertinente ao ser humano, e

também captar traços da modernidade e da pós-modernidade que pudessem dialogar

com as perspectivas sociológicas e psicológicas utilizadas anteriormente neste trabalho

para fundamentar a concepção de história, modernidade, pós-modernidade e suas

relações com a vida e o comportamento humano. Nota-se, neste ponto, que a análise

do discurso das crônicas foi compreendida como dados da consciência coletiva e do

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inconsciente, e os conceitos de modernidade e pós-modernidade foram extraídos dos

autores previamente citados, ressaltando-se Hauke (2000) e Penna (2003).

Finalmente, faz-se necessário relembrar a afinação deste estudo com o método

de pesquisa em psicologia analítica, segundo o qual

a observação não se restringe à percepção objetiva e concreta da realidade externa,

estendendo-se às percepções do mundo interno subjetivo. A validade dos dados

observados é fornecida pela totalidade de funções da consciência incluindo

sentimento e intuição. (Penna, 2003, p. 208).

Não se pretende usar tal parâmetro para escapar do rigor necessário a

qualquer construção válida de conhecimento. Entretanto, é objetivo deste autor a

tentativa de realizar uma pesquisa calçada na pós-modernidade, o que seria

obviamente impedido se tentássemos utilizar os limites modernos de observação

objetiva da realidade. Neste sentido, invoca-se a definição acima para que se possa

desvelar conteúdos essencialmente pós-modernos na análise a seguir.

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AAnnááll iissee

O que é a experiência da visão? É o ato de ver,

advento simultâneo do vidente e do visível como

reversíveis e entrecruzados, graças ao invisível que

misteriosamente os sustenta.

- Marilena Chauí

Entrelaçar o visível e o invisível, como vimos, é parte da grandiosa tarefa de se

escrever uma crônica. O cronista é corajoso ao mesclar nele mesmo o individual e o

coletivo, o particular e o universal, o visível e o invisível. Apesar da ruptura do

absolutismo proposto pela pós-modernidade, ainda assim se fez necessário um

trabalho de diferenciação; porque talvez não consigamos funcionar no dinamismo da

alteridade como gostaríamos, ou simplesmente porque dar um passo a frente não

invalida todos aqueles passos que nos fizeram chegar até este lugar.

Por isto, optou-se nesta análise em proceder a investigação das crônicas desde

o coletivo até o mais individual. É claro que, em um tom eminentemente pós-

moderno, o individual e o coletivo se encontram em boa parte de todas as crônicas,

contudo tenta-se empreender uma análise que facilite a compreensão fluida daqueles

que, como este pesquisador, funcionam ainda fundamentalmente no dinamismo

patriarcal.

Em um nível coletivo, Kepp (2008)1, em crônica publicada na Folha de S. Paulo

no último 1º de Maio, sentencia: “brasileiros comemoram para criar um sentimento de

comunidade.” Ao trazer a tona o tema da comunidade, o cronista continua seu texto e

demonstra, numa compreensão psicológica, os traços de pós-modernidade que se

apresentam, relativos às comemorações brasileiras. O autor discorre:

No Brasil, a inclusiva passagem de ano reúne ricos e pobres nas praias para ver os

fogos. Depois do show do ano passado, eu e minha mulher fomos atraídos a um dos

quiosques, onde casais dançavam ao som das marchinhas de uma banda. No quiosque,

onde pedi uma cerveja, o barman recusou meus reais e disse que era uma festa

1 Os trechos de crônicas citados neste capítulo não possuem página de referência, uma vez que todas as crônicas possuem apenas uma

página. Sua referência completa pode ser encontrada no capítulo Referências Bibliográficas apontado no sumário desta pesquisa.

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particular. Mas, em vez de nos excluir, ele nos serviu saideiras sem fim, o que nos

manteve dançando até de madrugada.

Pode-se perceber ligações com o tom esperançoso de Maffesoli (2006, p. 60) e

o relato de uma experiência real deste autor, americano radicado no Brasil há 25 anos,

quando se fala em “em vez de nos excluir.” Se por uma festa privada compreendemos

nossa automática exclusão quando não fomos convidados, o modo de celebrar e

comemorar do brasileiro relatado acima joga luz sobre um novo modelo: uma forma

pela qual o grupo, fortificado por sua experiência coletiva e alegria compartilhada, se

torna poderoso o suficiente para subsidiar o bem-estar de novos indivíduos. Neste

sentido, bem como diz Maffesoli, a atitude inclusiva e a solidariedade “fortificam o

conjunto da vida.”

Nota-se, na mesma frase, contudo, que o cronista estava preparado para outra

alternativa. Quando se diz “em vez de,” pensa-se que o autor da frase estava

preparado para uma certa possibilidade que não ocorreu. A preparação para a

exclusão, no caso, somada à oferta dos reais para aquisição da cerveja, nos diz que o

protagonista da cena relatada estava pronto para seguir determinadas regras sociais

estabelecidas para conseguir aquilo que desejava. Em outras palavras, quer-se dizer

que o cronista estava plenamente preparado para vivenciar sua cotidianidade

patriarcal, ao passo que se defronta com uma situação melhor posta no dinamismo de

alteridade. Pode-se hipotetizar, portanto, que a organização patriarcal prévia daquela

situação, estruturada prontamente em uma relação capitalista comercial bem aceita e

acertada por ditames sociais (comprar a cerveja com os reais), foi a base sobre a qual

pôde-se erigir um novo modelo de funcionamento psíquico: a alteridade. O

funcionamento psíquico patriarcal antecede e é pré-requisito em relação à

possibilidade pós-moderna.

O tema da comemoração e da inclusão alude ao funcionamento de

comunidade já citado, esboçado por Bauman (2003, p. 134), segundo o qual apenas

uma comunidade de ajuda e cuidado mútuo, tecida em conjunto, poderá se sustentar

autenticamente e cumprir sua função na pós-modernidade. Embora aparecendo em

apenas uma cena, este tipo de entrelaçamento comunitário citado pelo cronista

transforma a citação de Bauman; não mais falamos em “se vier a existir” mas podemos

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afirmar sobre “quando existiu” e, portanto, na possibilidade de existir novamente. Isto

porque, no momento em que Kepp (2008) nos fala sobre uma festa que reúne ricos e

pobres em praias do país, nos colocamos diante de uma situação em que a realidade

patriarcal não é reprimida ou desconhecida: falamos em ricos e pobres. Contudo,

argumentamos ao mesmo tempo sobre uma reunião capaz de acolher diferentes

indivíduos numa experiência comum e fundamental da humanidade: a comemoração.

Mais ainda, o autor nos fala sobre uma situação específica em que “em vez de”

exclusão, o tecido da comunidade age com sua força no sentido da inclusão, o que dá

base àqueles envolvidos para, embora não fazerem parte de uma certa festa

particular, poderem ter aquilo que precisam para continuar sua própria comemoração.

Os motivos pessoais não são esquecidos ou negados, mas contemplados dentro de

uma dinâmica que torna o universo relacional fluido e capaz de dar sustentação a uma

grande quantidade de desejos, ao mesmo tempo em que uma raiz comum (a

comemoração) faz daquele grupo uma comunidade com propriedade. Neste sentido,

podemos ver atuante numa comunidade um impulso de parentesco rumo à

individuação, quando a trama relacional possibilita a vida para todos. Kepp (2008)

exemplifica: “os blocos de rua do carnaval são igualmente contagiosos, transformando

os paradões em foliões.” Está posto o sentido transformador do entrelaçamento da

comunidade em direção à individuação.

É claro que se torna necessário parar diante da palavra “contagioso” e refletir

sobre o quanto o impulso do grupo, a communitas de Schwartz-Salant (2000, p. 15),

não age de modo a transformar, como já discutido, o processo de individualidade em

um processo de identidade. Salienta-se não ter sido isto o ocorrido na situação do

cronista, uma vez que ele mesmo e sua esposa dançaram sua própria dança

amparados pela comunidade. Contudo, o risco do contágio apresenta-se nesta crônica

como um desafio encontrado na comemoração e na vivência do grupo, o que se

alicerça no funcionamento patriarcal e moderno através do qual ainda

experimentamos o mundo na maior parte do tempo. O vaivém do autor entre pós-

modernidade e modernidade, portanto, nos diz sobre como o dinamismo da alteridade

se coloca ainda frágil diante de uma consciência coletiva predominantemente

patriarcal. É, afinal, apenas sobre bases patriarcais que o modelo da alteridade foi

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observado neste texto. A perda do eu na identidade coletiva já fora anteriormente

apontada por Gergen (1992, p. 204) como o fenômeno da personalidade pastiche.

Em última instância, a crônica de Michael Kepp nos mostra como o movimento

do grupo é capaz de mobilizar psiquicamente os indivíduos que o compõe: “um gol de

um time já qualificado para as finais faz uma arquibancada inteira soltar fogos e

tremular bandeiras.” A energia está em movimento e voltada para a ação, tanto

quando mantém o casal “dançando até de madrugada.” O contato social e relacional,

portanto, traz movimento aos indivíduos que permanecem naquela comunidade, ao

mesmo tempo que expõe estas pessoas ao risco e desafio do contágio e massificação.

De qualquer maneira, a experiência levantada pelo autor demonstra uma convivência

possível de diferenças, a qual nos remete diretamente a uma possibilidade de vivência

democrática da individualidade, ainda que em um contexto restrito. A experiência

fundamental do humano relatada por Kepp (2008) se trata de nada menos do que o

encontro, arquetípico como é, todavia em um cenário público e coletivo, com pessoas

não mais íntimas do que aquelas as quais apenas damos um curto “bom dia” em

qualquer elevador de prédio que visitamos apenas uma vez. Como apontou Maffesoli

(2006, p. 60), é esta construção de comunidade que cria um conjunto sólido suficiente

para impulsionar a vida, em contraposição ao encontro a dois, exclusivo, romântico e

privado, típico da história dos relacionamentos modernos e patriarcais.

De Paula (2008) nos oferece alguns traços comuns a Kepp (2008) a respeito

desta movimentação. Discursando sobre as emoções suscitadas em uma simples

caminhada por uma feira livre, este cronista nos coloca que “já havia no ar uma certa

animação que só as feiras livres têm,” afirmando sobre como o espaço público

ocupado pelo relacionamento é provido de animação – anima – alma, do latim. O

autor prossegue:

Aos poucos me dei conta que estava diante de uma das práticas mais antigas que se

conhecem, a do comércio feito na rua, que ainda resiste nestes tempos de shopping

centers e hipermercados. Nada contra as comodidades dos centros de compras onde

se entra e sai de carros que lotam enormes estacionamentos.

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Deparamo-nos aqui com algo novo. O cronista nos fala de uma consciência

histórica, a qual emerge quando ele adentra um ambiente que não é mais

predominante em nossa vivência contemporânea. Poderia se pensar que a organização

de uma típica feira livre brasileira se assemelha com alguns parâmetros do dinamismo

matriarcal: uma multidão dispersa e confusa, gritos que se sobrepõem e nada mais se

ouve, a indiscriminação do todo pulsando certa animação identificada pelo cronista. O

centro de compras bem demarcado, com grandes estacionamentos sinalizados e

placas a todo lado nos dizendo aonde ir para encontrar o que queremos se apresenta

como uma alegoria do dinamismo patriarcal. Por isso, torna-se relevante que a

intuição do autor, seu “dar-se conta de”, tenha habilmente captado que ele vive em

um mundo patriarcalizado no qual existe espaço para um momento de matriarcado.

Em seguida, De Paula (2008) aponta: “mas parece haver algo errado em uma

sociedade em que as pessoas sequer pisam nas calçadas diante dos prédios em que

moram. E que se afastam cada vez mais do que acontece além das guaritas e duplas

grades de seus condomínios.” Neste momento, De Paula nos remete diretamente à

Bauman (2004, p. 119), quando este afirmou que os lares construídos para unir agora

nos servem para proteger. Esta dura crítica à contemporaneidade ecoa no cronista,

que contudo identifica algo fora do lugar. É talvez no olho deste furacão, quer dizer,

espremido entre o dinamismo patriarcal dominante e os poucos levantes do

dinamismo matriarcal apresentados, que possamos enfim apontar para o

funcionamento na alteridade. O encontro do matriarcado com o patriarcado em uma

simples feira livre desperta no indivíduo a consciência de que algo não é o que deveria

ser; ou, talvez, algo precise ser mudado porque simplesmente não funcione mais. Cabe

relembrar que esta foi a mesma intuição tida por Domenico De Masi em nossa

introdução.

O cronista continua, citando “a alegria ruidosa da feira,” e nos diz:

Mas há algo mais nesse ritual de vender e comprar verduras no meio da rua. Existe

nela a beleza que apenas parece simples, mas que na verdade é complexo. Há o

esforço anônimo de alguém que trabalhou a terra, que cuidou das plantas até que elas

se expressassem em forma de frutas suculentas, verduras tenras e ervas perfumadas.

Há o cuidado de quem transportou, comprou e vendeu num entreposto onde o

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feirante, bem de madrugada, foi buscar os ingredientes que agora estão dispostos na

forma de arte mais efêmera: a que se pode perceber num prato de comida de quem

foi à feira pela manhã, ou neste pastel quentinho e saboroso que provo agora (...) mas,

além da massa crocante, da mussarela e do tomate, sinto também um sabor de

gratidão pelo esforço anônimo de tantas pessoas que contribuíram para que eu

pudesse encontrar tudo isso numa simples caminhada matinal e enxergar um pouco

de lirismo e, vá lá, ingenuidade, no cotidiano de uma cidade que não seria a mesma

sem os seus pastéis e suas feiras.

É neste momento que o autor se distancia do dinamismo matriarcal, relatando

que estamos trabalhando ainda em um outro funcionamento além do patriarcado e do

matriarcado. De Paula (2008) é capaz de discriminar: cita as pessoas que compõem a

feira separadamente, os itens que dela fazem parte, os lugares conseqüentes nos quais

poderíamos ver o resultado de uma ida à feira. Exibe habilidades de uma consciência

obviamente patriarcal. Contudo, retoma a idéia lírica, a sensação de que ocorre um

ritual, o espaço público que abraça e abarca, o cuidado daqueles cujo trabalho

possibilitou o seu prazer naquele momento. Finalmente, ele nos fala de “alegria,”

“cuidado” e “gratidão.” Ressaltando a dinâmica da troca, na qual o feirante tem o

cuidado e o trabalho de erguer seu pequeno império de alimentos para serem

observados e comprados, o autor nos lança dentro do mundo das relações novamente,

estabelecendo um parâmetro eu-outro no qual ambos são necessários para dar

sentido àquela atividade.

Ao pisar no território dos sentimentos, o cronista nos lança além da experiência

histórica da feira. Mais ainda, ao transcender a relação de compra e venda do lugar,

escapamos também dos ditames sociais e capitalistas que cercam a vivência.

Mergulhamos no terreno psicológico, no qual o autor se conecta aos desconhecidos

por meio de sua própria “gratidão”, em resposta ao “cuidado” que sentiu, e afirma ter

sido isto um grande possibilitador para que houvesse nele despertado o “lirismo” e a

“ingenuidade” para escrever a crônica. Esta seqüência ilustra claramente como o

relacionamento conjuga o terceiro fator já citado, nos trazendo de forma palpável a

dinâmica consciência-inconsciente que promove a individuação. É no encontro do

cuidado com a abertura para o sentimento de gratidão sobre o qual brotará o lirismo e

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a ingenuidade para que transcendamos o cenário visível e alcancemos qualquer

desvelamento de consciência. A possibilidade de individuação ocorre na emergência

também do terceiro fator, como colocado por Groesbeck (1975, p. 77). Este fenômeno

se torna ainda mais relevante à medida em que ele ocorre no espaço público, entre

indivíduos, abrindo possibilidades para que o rompimento do compromisso do amor

romântico não nos leve às impossibilidades absolutas do desenvolvimento através do

universo relacional. Ao contrário, vemos a transformação das possibilidades de

individuação; o homem, agora, parece ser chamado a abrir-se aos outros, não mais

apenas ao outro. Se existe possibilidade de desenvolvimento e transformação, esta se

mostra nas crônicas vistas como aquela na qual é necessário estabelecer vínculos e

apropriar-se do espaço da comunidade. O outro romântico, na pós-modernidade,

tornou-se insuficiente.

Finalmente, De Paula (2008) nos dá algumas oposições complementares

àquelas trazidas por Hauke (2000, p. 30), quando este discrimina a modernidade e a

pós-modernidade, e suas diferenças. O cronista nos fala da diferença entre as grades e

os muros e a vida ao livre; o viver comum entre os homens e o viver distante e

separado pelas mesmas grades; o gosto “real” do pastel de feira versus as

possibilidades de alimentação industrializada trazidas por nossa sociedade; e,

finalmente, e talvez mais relevante para este trabalho, o autor nos fala da “arte

efêmera,” do lirismo, da gratidão e do cuidado, introduzindo possibilidades irracionais

e afetivas dentro da dinâmica do relacionamento comunitário. Quando a lei e a

separação, atributos do patriarcado, conseguem conviver com a arte, o lirismo e o

cuidado, entramos no terreno da coniunctio, como afirmado por Jung (2007, p. 51). A

união dos opostos aponta para uma nova forma de compreender e vivenciar o

relacionamento, possibilitando que caminhemos por novos terrenos e agregando ao

indivíduo mais do que aquilo com o que ele era capaz de lidar até ali. Em outras

palavras, esta vivência comunitária do cronista nos revela possibilidades de

individuação.

Entretanto, o cotidiano fantasiado da crônica também delineia para nós aquilo

que se coloca como o desafio de uma consciência que aspira à pós-modernidade. Leão

(2008) escreveu uma crônica que intitulou “questão de escolha,” e sem nenhuma

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outra explicação já diz uma das grandes questões (senão a maior delas) que

atravessam a estrada do pós-moderno. A narração nos fala de duas amigas que se

reencontram após muito tempo sem se ver, e um turbilhão de desejos e anseios são

lançados – uma quer a outra, uma quer sentir e saber da vida da outra. Em seu

primeiro lance pós-moderno, a cronista admite: “a outra ficou com uma certa inveja,

mas sabendo, bem dentro dela, que não teria coragem para fazer a mesma coisa.” A

admissão da inveja e o tecido de sentimentos sombrios ora negados por uma

moralidade conservadora, ora reprimidos pela impossibilidade do eu de lidar com a

questão, é notável. Como visto, a discriminação é um atributo do patriarcado, assim

como a hierarquização. Quando definimos, julgamos e contornamos algo como oposto

a uma outra coisa, também elegemos aquilo que preferimos e descartamos outras

alternativas. Contudo, o ato de descartar, jogar fora ou negar – reprimir – não faz, bem

se sabe, com que aquilo deixe de existir. É do patriarcado a eleição e a repressão. É da

alteridade a convivência dos opostos. Neste sentido, a inveja torna-se notável por

anteceder este comentário: “foi um encontro mágico e já deixaram marcado um

almoço para aquela semana. Ambas chegaras quinze minutos antes da hora, tal a

vontade de se reverem e botar as notícias em dia.” A convivência do desejo e da inveja

nos mostra que, vez ou outra, pisamos na alteridade e na pós-modernidade. Não é

necessário, portanto, negar o tempo todo.

Não fosse essa discriminação apurada de identificar o que é inveja e vontade de

se ver, o “encontro mágico” poderia ser visto como uma remissão a um dinamismo de

relacionamento simbiótico, junto, que impede a própria existência do eu. Mas a

diferenciação está ali, e não funciona no sentido de impedir a magia do encontro, mas

realçá-lo. O desejo transforma a rigidez do patriarcado, porque ele chega quinze

minutos antes – mas ainda utiliza o tempo marcado e cronometrado como referência,

reverenciando então o dinamismo do pai, no qual consegue viver.

Houve muitas noites em claro esperando que ele – o homem da hora – chegasse e

muito choro de madrugada, sozinha, porque ele não apareceu. Mas houve também

verões maravilhosos na Grécia, noites inesquecíveis em Veneza e momentos de

intensa felicidade. Mas um dia ela acordou e se perguntou: “O que é que estou

fazendo aqui?”. Resolveu voltar. E ali estava, aos 50 anos, sem trabalho, sem filhos,

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sem ter um homem para chamar de meu amor, tendo que começar tudo de novo e

sem se entender muito bem. E quis, logo, saber da história da amiga.

Neste ponto da crônica, poderíamos parar e nos deliciarmos com a poesia do

relato da vida de duas amigas tão diferentes. Saudar a diferença pode ser um atributo

pós-moderno, que compreende a função da alteridade para a individuação. O que

chama a atenção, contudo, está na última frase da autora: “...quis, logo, saber da

história da amiga.” É, pois, na vivência da angústia e da solidão, em suas muitas noites

em claro, e na reflexão de sua idade de quem já viveu mas não tem legado, que uma

das amigas encontra uma saída. Encontra no outro. Extrapolando um pouco as

hipóteses de fuga ou dependência, deve-se também pensar em possibilidades. Quando

um grande questionamento bate à porta, e uma revisão da vida simplesmente ocorre,

não apenas fugir ou depender do outro são saídas para o indivíduo. Mas o ímpeto para

logo saber da história do outro pode, de outra maneira, nos trazer novas

possibilidades. É conhecendo e se permitindo conhecer que talvez esta amiga, por um

momento quiçá inconsciente, debruçou-se sobre a história da outra, com a permissão

que o afeto compartilhado permitia, para que pudesse sair da melancolia de uma vida

sem filhos e sem trabalho. Ela poderia, se ajudada, ser convidada ao mundo de sua

amiga, ver e viver aquelas outras possibilidades, e talvez dentro de alguma

possibilidade que nem a tal amiga tivesse visto, encontrar a sua própria. Novamente,

falamos de um encontro que tem a disposição de revelar aos indivíduos algo novo,

algo conjugal, mas também que os desperte para uma individualidade mais coesa e,

porquê não, feliz. Como afirmado por Jung (2007, p. 100), é neste encontro que pode-

se vislumbrar a possibilidade de ocorrer a síntese da personalidade, na qual o encontro

das diferenças leva ao encontro de si mesmo. As possibilidades se somam, e partimos

para uma dinâmica de isto e aquilo ao invés do funcionamento isto ou aquilo, que

remeterá o aquilo diretamente para o universo reprimido uma vez que tenhamos

escolhido o isso.

O feliz e o infeliz convivem. Leão (2008) prossegue em sua crônica, narrando:

Embalada pelo segundo copo de vinho, a casada se abre e diz que o marido não

precisava ser tão previsível. Ah, como gostaria que um dia ele aparecesse com um

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brilho diferente nos olhos – fosse de desejo, admiração ou ódio –, um brilho que

significasse alguma vibração. É disso que ela sente falta; só disso, de mais nada.

O esforço da cronista se segue para relatar a dor e ansiedade de viver aquilo

que é típico do pós-moderno, e faz parte de sua crônica: a escolha. Os aspectos mais

introvertidos da individuação talvez não nos levem a abismos tão profundos como

aqueles da extroversão, já que mesmo sozinhos estamos, fundamentalmente,

refletindo sobre nossa experiência com o outro. E viver e conviver com o outro

significa, em última instância, fala a cronista, em escolher. Viver uma vida de aventuras

mágicas, inserida muito mais no funcionamento do matriarcado, ou optar pela

segurança de um casamento bem estruturado e nitidamente balizado por uma cultura

patriarcal predominante se constituem, afinal, como uma questão de escolha.

Neste momento, Leão (2008) arremata: “elas se despedem e cada uma vai para

o seu lado, sem saber, afinal, o que pensar da vida.” E nos revela mais uma

característica fundante do relacionamento de nossa época: aquele que era em outros

tempos um serviço de respostas para o indivíduo, agora se tornou um gerador de

dúvidas. Bauman (2004, p. 30) já havia afirmado que o papel do relacionamento havia

se transformado; outrora aquele que mitigava a insegurança, tornou-se uma fábrica de

medos e histeria. Entretanto, se pudermos nos ater a olhar sob outro ponto de vista

para a mesma frase, provavelmente continuaremos com a sensação de que relacionar-

se, per se, não responde às dúvidas, apenas gera mais questões. E é exatamente no

momento em que levantamos a hipótese do relacionamento ser um capaz gerador de

questões que se pode novamente afirmar que a dinâmica do relacionar-se transcende

e expande. A função do relacionamento se transforma, assim; não se trata de

buscarmos as respostas, mas expandirmos as questões. Afinal, para se conhecer

alguma coisa, ou alguém, é preciso primeiro desconhecê-los.

A realidade de uma convivência pós-moderna traz uma nota amarga para os

indivíduos. Como afirma a cronista ao iniciar, no título, e ao encerrar seu texto, a

questão de escolha não é fácil para o eu. Como apontado por Kast (2007), na

individuação se ganha e se perde, não se tratando de um processo de premiação

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contínua pelo desenvolvimento do indivíduo. A escolha traz esta característica de

modo retumbante, obrigando a cronista a se deparar, em uma separação nitidamente

patriarcal, de que suas duas personagens tiveram vantagens e desvantagens, alegrias e

tristezas, enfim, conseqüências, por terem escolhido a vida que viveram. O

relacionamento patriarcalizado e bem aceito foi aquele que trouxe consigo o tédio e a

previsibilidade, ao mesmo tempo que a segurança, o que proporcionalmente reduziu a

liberdade. A vida da amiga viajante de muitas paixões lhe trouxe animação, aventura e

liberdade, e pouca segurança, raízes ou legado. Bauman (2004, p. 29 e p. 30) já

afirmara anteriormente que o relacionamento havia se tornado um conflito de

segurança versus liberdade. Neste ponto, torna-se relevante para a psicologia

compreender que a dinâmica do relacionamento apontado pela autora levanta este

conflito, mas aponta para um espaço aberto no qual isto possa ser efetivamente

vivido. A capacidade de enxergar perdas e ganhos, escolher e viver a sua escolha assim

como a sua conseqüência, nos diz de um novo funcionamento, ainda que intercalado

pelos períodos de lamentação nos quais a cronista repete “mas algumas coisas a

irritam” e outros “mas;” “como gostaria que ele um dia...;” e outros verbos conjugados

no futuro do pretérito, que nos mostram que a vivência da alteridade não é plena,

trazendo grande desejo do eu que as coisas por vezes fossem diferentes e o eu

pudesse ter tudo, simbolicamente remetendo-nos às saudades do paraíso de Deus, no

qual o homem imortal não era privado de nada, como apontado por Jacoby (2007, p.

32). A capacidade de suportar a sua escolha todo o tempo parece algo ainda não

alcançado pelo eu pós-moderno, o que também impacta na sua vivência relacional.

Kanitz (2008) nos traz uma nova dimensão do relacionamento ao discutir, em

sua crônica sobre o relacionamento de pais e filhos. A situação proposta pelo autor é a

seguinte: um pai havia prometido levar os filhos à pré-estréia de um novo filme que os

filhos quiseram assistir; quando se aproxima da data, o pai recebe a notícia que

também haverá um churrasco naquele dia com a presença de seu chefe no trabalho.

Segundo o autor, todos escolhem pedir desculpas aos filhos e desmarcar o programa

em família para comparecer ao churrasco com o chefe. Diante desta situação, Kanitz

(2008) prossegue a reflexão:

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O que quero discutir aqui é a razão por trás da sua escolha, o raciocínio que

determinou a decisão de postergar o cinema com os filhos. Você fez essa opção

porque no fundo sabe que seus filhos o amam. E, porque o amam, eles entenderão.

Sem dúvida, eles ficarão desapontados, mas não para sempre. Afinal, você conseguiu

conciliar a agenda de cada um, só vai demorar mais um pouquinho. Porém, com esse

tipo de raciocínio, você acaba colocando as pessoas que o amam para trás. Justamente

as pessoas que nos amam é que acabamos decepcionando, vítimas dos nossos erros

do dia-a-dia. Que recompensa é essa que dispensamos àqueles que nos amam e que

nos são leais? Por quanto tempo eles continuarão nos amando diante de atitudes

assim?

A situação do autor nos remete novamente a um embate da segurança versus a

liberdade. Contudo, mais do que isso, este cronista nos fala sobre uma situação de

hierarquização entre a necessidade de corresponder a um relacionamento profissional

e o desejo de responder a uma demanda afetiva familiar. O autor prossegue:

Eu não tenho a menor dúvida de que você escolheu jogar futebol porque sabe muito

bem que seu chefe não o ama. Muito pelo contrário, ele não está nem aí para você. Ele

pode substituí-lo na hora que quiser, sem um pingo de remorso. Você aceitou jogar

com os colegas para que eles gostem um pouco mais de você. E com os seus filhos,

que já o adoram, você aproveitou para negociar. Eles não vão dizer nada, vão

entender, mas sentirão calados uma punhalada nas costas. A lógica diz que

deveríamos ser leais com as pessoas que nos amam, mas na prática fazemos

justamente o contrário.

O cronista coloca, pela primeira vez, uma face do conteúdo dos

relacionamentos que não havia ainda sido explorada. Quando fala em amor,

necessidade, insegurança e trabalho, Kanitz (2008) areja a vivência relacional

afirmando que o relacionamento pode prescindir do amor, mas “a lógica diz que

deveríamos ser leais com as pessoas que nos amam.” Neste momento, o

relacionamento passa a dialogar diretamente com uma questão ética profunda, ao

mesmo tempo em que começa a ter o seu conteúdo afetivo questionado.

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A questão ética referente às relações se coloca na forma do relacionar-se

exposta por Kanitz (2008). Quando o cronista propõe uma lógica na qual o amor e a

lealdade estão atrelados a um relacionamento saudável e de confiança, ele estabelece

parâmetros para que uma relação se desenvolva. Ao mesmo tempo,

contraditoriamente, o autor afirma que justamente quem cumpre estes parâmetros

leva uma “punhalada pelas costas.” O cronista conclui:

Se acha que ninguém o ama ou que não é amado o suficiente, talvez isso ocorra

porque você não tem sido leal com as pessoas a quem ama. Achar que elas serão

sempre compreensivas e razoáveis é seguramente o caminho para o desastre. Seus

filhos acreditarão em você na próxima vez que lhes fizer uma promessa? Eles

aprenderão o significado da palavra lealdade? Seu chefe vai esquecê-lo totalmente um

mês depois de você se aposentar, bem como os seus colegas de trabalho. Os únicos

que jamais vão esquecê-lo são seus filhos, pela sua lealdade ou pelas pequenas

decepções e infidelidades cometidas por você ao longo da vida.

Novamente, Kanitz (2008) propõe um questionamento de ordem moral para os

relacionamentos. O autor afirma que seus filhos lembrarão de você por aquilo que

você fez de moralmente correto, segundo a previamente estabelecida ética dos

relacionamentos, ou por aquilo que você fez de incorreto. O que é possível notar neste

trecho da crônica é que, independentemente das razões e do conteúdo desta “moral”

e do questionamento ético que foi levantado, a crônica, como representação da

consciência coletiva, aponta para uma preocupação que não se fazia presente na

modernidade, ou na predominância no dinamismo patriarcal. Na lógica do patriarcado,

a sociedade, as leis e as regras são estabelecidas de modo a sustentar um sistema

amplo e bem discriminado, no qual cada um sabe quem é, e por isso cada um se

interessa em preservar o que é seu. No momento em que se estabelece a lógica do

“ser leal a quem mais amo” ou qualquer outra forma de questionamento que envolva

o princípio do amor e o princípio da razão conjugados – eros e logos – está se

navegando em outros mares. O relacionamento desloca-se de sua posição de

satisfação garantida e bálsamo contra os pesares da vida, como apontado por Bauman

(2004, p. 29), e transforma-se em algo pertencente à categoria das coisas com

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fenomenologia própria, nas quais seu tom afetivo e seu código de ética se

desenvolvem concomitantemente. Neste sentido, o relacionamento torna-se uma

proposta viável para a hipótese de Schwartz-Salant (2000, p. 33), para quem a libido de

parentesco é o impulso que pode ajudar com que nos nivelemos como irmãos. É no

encontro da lealdade com o amor que resgatamos a velha situação de que “eu posso

falar mal do meu irmão, mas você não,” capaz de mover o relacionamento para fora

do dinamismo patriarcal e em um caminho que talvez responda mais às necessidades

atuais do que a dinâmica relacional vista anteriormente, na predominância do

patriarcado ou na predominância do matriarcado. Com esta proposição, elevando a

condição fraterna, lançamos o caminho para que um relacionamento gerador de

questões e completo em sua ética e afeto possa, também, trazer algo protetor ao seu

rol de características. É o tecido de comunidade que protege o indivíduo o qual faz

parte dela, embora neste dinamismo não vá impedi-lo de ser o que ele é, já que

também se trata de um funcionamento que expande e transcende.

Além da oposição segurança-liberdade, Kanitz (2008) também repete em seu

texto o tema da escolha. Embora seja uma escolha enviesada, sobre a qual o próprio

autor defende uma das opções em detrimento da outra, o cronista afirma que sempre

se escolhe comparecer ao churrasco com o chefe, contrariando a lógica da lealdade

por ele levantada. Novamente, vê-se o tema da escolha como uma dinâmica de difícil

manuseio, e que evoca naturalmente a questão da segurança: “afinal, é a sua carreira

que poderia estar em jogo. Você bem que podia se tornar mais amigo da turma do

trabalho. Você está inseguro. Aliás, quem não está?”

A insegurança, neste ponto, parece confundir-se com o dinamismo da

alteridade. O eu patriarcal não recebe mais a ordem hierárquica do que deve fazer, e

está inseguro; ele tem que escolher. Entretanto, “a sua carreira está em jogo” denota

claramente que não é uma escolha livre de conseqüências, como qualquer escolha

real. Intimidado pelo risco, “todo mundo escolhe a segunda opção,” segundo o

cronista, decepcionando os filhos e comparecendo ao compromisso de enrijecer as

relações de trabalho. Na medida em que a alteridade significa considerar o outro

inteiro neste funcionamento, o pai dá um passo para trás e retorna ao dinamismo

patriarcal, desconsiderando as necessidades do outro-filho e outros-família em favor

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de uma relação hierárquica e de algo que pode lhe dar segurança, garantindo sua

carreira. O cronista propõe, entretanto, que este tipo de “marcha ré” para o

dinamismo patriarcal também pode ter conseqüências desastrosas, já não servindo

mais à função de aliviar as angústias daquele pai perante uma escolha. Optando pelo

chefe e decepcionando o filho, o pai terá de lidar com os filhos que não o esquecerão

“pelas pequenas decepções e infidelidades cometidas por você ao longo da vida. ” Esta

conseqüência, logicamente, é desvelada apenas quando o relacionamento constitui

um fenômeno em si, ancorado por uma ética própria e um funcionamento único de

sua vivência afetiva.

O que se torna claro, contudo, é que tanto o dinamismo patriarcal por vezes

mostra-se inapto a responder a algumas demandas contemporâneas, como é

imensamente difícil para o indivíduo permanecer e sustentar-se no dinamismo da

alteridade no qual ele é obrigado a arcar integralmente com as conseqüências de seus

atos. E, também algo inédito, a conseqüência se coloca como fundamentalmente

psicológica: trata-se do amor, da culpa e da relação invisível com o outro e os outros

que serão prejudicados ao satisfazer o chefe em seu churrasco. Trata-se de uma

conseqüência que dialoga com o externo e o interno. Estrutura-se, assim, uma trama

complexa que envolve a temporalidade contínua do passado, presente e futuro não

apenas do eu, mas do outro e dos outros que fazem parte e estão vinculados à vida do

eu. A conseqüência aponta para o futuro e para a finalidade do fazer e do viver, e

vislumbrar e sustentar uma vida que não é finalizada nos anos do eu, mas continua no

tempo e na vivência do outro e dos outros.

Calligaris (2007), em uma crônica sobre as diferenças e o amor na diferença,

versa sobre as possibilidades do amor autêntico embasar-se justamente na presença

de um outro inteiro que precisa ser considerado para construir uma relação

duradoura. O autor é claro ao usar o termo “alteridade” como a possibilidade da

convivência entre opostos em uma relação difícil mas possível. O cronista levanta a

questão do amor romântico desta maneira:

No modelo Romeu e Julieta, a felicidade que os amantes teriam conhecido, se

tivessem podido se juntar, é uma hipótese indiscutível. O destino adverso que separou

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os amantes (ou os juntou na morte) perderia seu valor trágico se perguntássemos: será

que Romeu e Julieta continuariam se amando com afinco se, um dia, conseguissem

deitar-se juntos sem que Romeu tivesse que escalar a casa de Julieta até o famoso

balcão? Ou se, em vez de enfrentar a oposição letal de suas ascendências, eles

passassem os domingos em espantosos churrascos de família?

Estando novamente no terreno do amor e do eros, o autor propõe a reflexão do

amor como um evento em que seres parciais tornam-se o um total ao se vincularem e

se relacionarem. Contudo, o questionamento da crônica evoca a temporalidade que

constitui a relação de escolha e conseqüência presente na alteridade. “Teria aquele

apaixonamento absoluto resistido ao tempo e à vida com os outros?” é a pergunta do

autor. A fundamentação desta pergunta reside no fato de que, fundindo-se como um

único eu, Romeu e Julieta jamais teriam que vivenciar e partilhar o encontro com o

outro, já que não há outro nesta vivência total proporcionada pela paixão. Entretanto,

diante das conseqüências do tempo e do encontro com outros, como a família, os

amigos e os colegas de trabalho, o amor romântico encontraria novas dificuldades. E,

neste caso, poderia ainda colocar a responsabilidade pela sua falência, caso ela

ocorresse, nos outros. É o que o cronista nomeia como evento quando “a união

esbarra num obstáculo intransponível.” Quando o amor romântico funde e considera

dois indivíduos como incompletos e permite que “se percam um no outro,” podemos

lançar a hipótese de uma vivência de relacionamento matriarcal. O dinamismo

matriarcal no amor romântico é atravessado diretamente pelo patriarcado quando o

eu formado pelos apaixonados discrimina os outros e o destino como obstáculos à

paixão, e ambos dinamismos são vividos defensivamente na medida em que

proporcionam a manutenção de um estado estanque para os indivíduos: na vivência

matriarcal, o amor Romeu e Julieta lança os envolvidos numa experiência de totalidade

e conforto absolutos simbolicamente semelhante ao paraíso, como explanado por

Jacoby (2007, p. 31). Na discriminação dos outros-inimigos, instrumento do dinamismo

patriarcal, o mecanismo de projeção das dificuldades do relacionamento sobre os

outros é usado para atender à manutenção do relacionamento total e não permitir a

reflexão que transforme o eu comum do casal em dois indivíduos completos e

distintos.

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Em oposição a este tipo de funcionamento, Calligaris (2007) aponta o casal

Calvin e Alice, extraído do livro “Sobre Alice,” de Calvin Trillin. O autor afirma que:

O segredo é o seguinte: Calvin e Alice, as personagens das crônicas, não eram artifícios

literários, eram os próprios. A oposição entre os dois foi, efetivamente, o jeito especial

que eles inventaram para conviver e prolongar o amor na convivência.

Considere esta citação de um texto anterior, que aparece no começo de "Sobre Alice":

"Minha mulher, Alice, tem a estranha propensão de limitar nossa família a três

refeições por dia". A graça está no fato de que a "propensão" de Alice não é

extravagante, mas é contemplada por Calvin como se fosse um hábito exótico.

Alice é situada e mantida numa alteridade rigorosa, em que é impossível distinguir

qualidades e defeitos: Calvin a ama e admira como a gente contempla, fascinado, uma

espécie desconhecida num documentário do Discovery Channel.

Se amo e admiro o outro por ele ser diferente de mim (e não apesar de ele ser

diferente de mim), não posso considerar que minha maneira de ser seja a única certa.

Se Calvin acha extraordinário que Alice acredite na virtude de três refeições diárias, ele

pode continuar petiscando o dia todo, mas seu hábito lhe parecerá, no fundo, tão

estranho quanto o de Alice.

Com isso, Calvin e Alice transformaram sua vida de casal numa aventura fascinante: a

aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença inesperada nos dá, de brinde, a

certeza de que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa neurose não

precisam ser uma norma universal, nem mesmo a norma do casal.

Há quem diga que o parceiro ideal é aquele que nos faz rir. Trillin completou a fórmula:

Alice era quem conseguia fazê-lo rir dele mesmo. Com isso, ele descobriu a receita do

amor que dura.

No que propõe Calligaris (2007), o dinamismo da alteridade produz, portanto, a

quebra daquilo que é “uma norma universal” para o eu. A vivência da alteridade

prontifica o eu a aceitar que existem outros não apenas indivíduos, mas outras leis,

outros funcionamentos, outras vidas e outras possibilidades de ser que extrapolam a

sua condição presente, mesmo que habitem o passado ou o futuro.

A “aventura fascinante” do relacionamento ameniza as dificuldades na medida

em que a alteridade possibilita que elas sejam relativizadas: o outro é diferente, tal

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como o eu é diferente, em relação a todos os outros. Se não existe certo ou errado

absoluto, as dores e prazeres trazidos pela dificuldade e a conseqüência da escolha

não pesam mais na amplitude moral ou ética do relacionamento. Contudo, pode se

formar a necessidade de uma ética constituída no viver do relacionamento eu-outro. A

ética é local. O sentimento e o sofrimento são alocados na esfera afetiva do

relacionamento, intimamente entrecruzada com a ética do respeito e da lealdade, que

permitem ver a diferença como “fascinante.” O relacionar-se ocorre levando em

consideração eros e logos, fascinando-se com a diferença, aprendendo os limites

éticos da convivência no próprio conviver, e dispondo-se a abertura para o afeto.

Como apontado pelo próprio cronista, contudo, este modo de ser e viver no mundo é

um desafio à própria neurose do eu patriarcal em estabelecer uma lei geral do

funcionamento do mundo. A “norma universal,” que ironicamente habita apenas no

eu, precisa ser transcendida, o que aponta para um desenvolvimento do eu a priori da

vivência do dinamismo da alteridade nos relacionamentos, embora este mesmo

desenvolvimento também pareça ocorrer concomitantemente à vivência do universo

relacional.

De qualquer maneira, novamente é visto em uma crônica o terceiro fator

conjugado pelo encontro com o outro, o que é material fundante para a individuação.

A necessidade de desenvolver-se a priori lança a hipótese de que os aspectos

introvertidos da individuação, ou aqueles que ocorrem na solidão do ser, tornam-se

tão importantes quanto a extroversão do encontro com o outro, e por vezes parecem

estas duas dimensões fundir-se em um impulso para o desenvolvimento virtualmente

indiferenciável. É apenas sozinho e inteiro que eu encontro o outro e os outros, e

apenas encontrando os outros pareço me dar conta de que sou sozinho e inteiro. O

que estas crônicas revelam, enfim, é a complexidade da vivência no dinamismo da

alteridade, ainda raro, mas apontando para um novo caminho que responda às

demandas pós-modernas não mais completamente satisfeitas pelos dinamismos

anteriores da consciência coletiva.

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CCoonncc lluussããoo

Se o que queremos determinar é o ser do

homem, nunca estamos certos de estar mais perto de nós

ao “recolhermo-nos” em nós mesmos, ao caminharmos

para o centro da espiral; freqüentemente, é no âmago do

ser que o ser é errante.

- Gaston Bachelard

O ser errante se relaciona, vive, muda, se transforma. Bachelard (2005), em sua

Poética do Espaço, é hábil em argumentar que a intimidade não significa reclusão. Ao

contrário, intimidade é ser no mundo e ser com o outro, mesmo que seja retornando

às lembranças que evocam nossas vivências com o outro (p. 112).

Nesta pesquisa, pôde-se averiguar exatamente esta questão. O eu na presença

do outro se transforma, se expande, é provocado por questões que, logicamente, lhe

lançam na insegurança de um novo horizonte. Como apontado por Jung (2007, p. 100)

e Groesbeck (1983, p. 77), o relacionamento faz com que haja uma movimentação em

opostos que conjugam um terceiro fator a fim de transcender o momento vivido em

direção à expansão da consciência. Viu-se, no material analisado, como a vivência e a

convivência promovem este fenômeno, especialmente em Kepp (2008), De Paula

(2008), Leão (2008) e Calligaris (2007).

O encontro com os outros não se trata de algo de baixa densidade. Uma vez

que se constitui como momento de peso na vida do eu, o encontro transformador

apresenta o desafio da massificação. Neste sentido, o perigo do eu na vivência pós-

moderna é tornar-se a personalidade pastiche de Gergen (1992, p. 202). Neste tipo de

experiência, o eu se perde na relação e nas relações com o outro, retornando a um

estado defensivo dos dinamismos patriarcal e matriarcal, fundindo-se ou segregando-

se para evitar um contato dialético e profundo, no qual a troca possa se dar de forma

efetivamente bilateral.

Como apontado por Bauman (2004, p. 119), contudo, o desafio é realmente

difícil, porque um mundo globalizado e conectado demanda do eu que receba as

dificuldades e adversidades e realize por si próprio a devida relativização e apropriação

dos conteúdos que lhe caibam. A maturidade do eu precisa ser aquela que permita

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suportar a insegurança surgida a partir do fim do contrato “pra vida toda” sugerido

pelo costume do casamento e do amor romântico estruturados num período histórico

no qual o dinamismo patriarcal foi predominante na consciência coletiva. Ao contrário,

é requerido agora uma reestruturação e apropriação constantes em relação aos novos

conteúdos e novos relacionamentos que se apresentam mais facilmente. Este desafio

e esta insegurança são trabalhados por Kepp (2008), Kanitz (2008) e Calligaris (2007).

Maffesoli (2006) afirmou que o impulso de comunidade ressurgido na pós-

modernidade é capaz de trabalhar a favor da individuação, “fortificando o conjunto da

vida” (p. 60). Como visto em Kepp (2008), Leão (2008) e Di Paula (2008), a

possibilidade pós-moderna é a de extensão e expansão do vínculo para além das

dinâmicas familiares, gerando uma comunidade de relacionamentos sólidos que

apóiam os indivíduos que a compõe. Os indivíduos que se encontram são obrigados a

estabelecer uma ética própria em função dos relacionamentos que vivem, e o impulso

para relação se sustenta tanto devido aos motivos afetivos quanto às regulamentações

éticas que surgem no relacionamento. Desta maneira, surge um equilíbrio entre o

princípio do eros e o princípio do logos em que o primeiro faz uma função

mantenedora da relação na mesma medida em que o segundo a delimita para que

funcione de acordo com os limites e possibilidades de todos os envolvidos.

A trama de relações pós-modernas na alteridade não trata mais do dilema eu e

você versus eu ou você. Agora, lidamos com a questão do eu e você ou eu e vocês e do

eu e você e vocês. Da mesma maneira pela qual a vivência dos terceiros, quartos e N

indivíduos, que fortificam uma rede relacionamentos para escapar do amor romântico

e sustentar um novo funcionamento, darão suporte para o eu em um momento de

necessidade ou angústia, eles também provocarão a questão que se coloca diante do

fim do contrato de casamento patriarcal: é necessário hierarquizar, discernir e excluir

aqueles que não participam do encontro a dois, ou é possível conviver entre todos? O

relacionamento toca no dinamismo de alteridade, por assimilar uma nova

aproximação de opostos e considerar dois ou mais inteiros que se relacionam e

provocam novas questões e perspectivas no outro. A questão se responde ao se notar

que, mesmo relacionando-se entre todos, a alteridade pressupõe que não ignoremos

as diferenças entre os relacionamentos que emergem naquele grupo, tribo ou

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comunidade. Desta forma, os relacionamentos interagem entre si como numa situação

em que, diante da briga com o parceiro romântico de seu relacionamento amoroso,

você vive a possibilidade de recorrer a um amigo para compartilhar a sua experiência.

Se houver o momento no qual este amigo necessitar de ajuda e não puder recorrer a

você, é no universo relacional sólido da comunidade que ele poderá compartilhar a sua

própria angústia com um outro indivíduo, possivelmente um terceiro amigo em

comum. A comunidade é capaz de sustentar o indivíduo na medida em que o indivíduo

é capaz de responsabilizar-se por ela e também sustentá-la. Esta experiência dialética

se torna possível uma vez que se viva concomitantemente a dimensão ética e a

dimensão afetiva do relacionamento, as quais visam à continuidade dos

relacionamentos e, portanto, ao processo de individuação.

Uma segunda adversidade se coloca diante do relacionamento pós-moderno: a

questão da escolha. O relacionamento eu e você e vocês não implica viver tudo e viver

com todos, e um fenômeno com ética própria e forte vinculação exige que se respeite

o compromisso em termos diferentes de uma regulamentação social e coletiva. O

comprometimento não é mais com a sociedade, mas com os indivíduos e a

comunidade. Para tanto, o eu necessita ser capaz de escolher e suportar as

conseqüências de sua escolha, as quais limitarão e definirão também a sua

comunidade e seu espaço no mundo, o que exige ainda uma vivência de

temporalidade contínua entre passado, presente e futuro. Esta dificuldade é ilustrada

em Leão (2008) e Kanitz (2008), nos quais a tomada de decisão provoca a consciência

de que existirá uma conseqüência com aspectos positivos e negativos em relação aos

desejos do eu. A conseqüência, localizada logicamente no presente e no futuro,

demanda do eu a vivência de uma temporalidade integral.

Como apontado por Calligaris (2007) em sua crônica, a inteireza do eu em saber

de si e poder observar o outro como fascinante é uma perspectiva que torna a

alteridade possível. Por causa disso, conclui-se também que é necessário um

desenvolvimento do eu a priori para que ele possa acolher no relacionamento o outro

inteiro, que possui suas próprias necessidades e suas características únicas. Deste

modo, na mesma medida em que relacionar-se é um aspecto extrovertido da

individuação, é necessário que haja um desenvolvimento introvertido do eu, quer

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dizer, voltado a si mesmo, para que no encontro seja possível vivenciar o outro de

forma igualmente profunda e distinta. Todavia, a questão surgida aqui é considerar a

individuação como um processo único, no qual as dimensões de extroversão e

introversão são vividas concomitantemente. Concorre também a hipótese de que o

relacionar-se pode provocar o desenvolvimento do eu a posteriori em sua solidão,

apontando para os relacionamentos como capazes de iniciar um movimento

introvertido de desenvolvimento. De qualquer modo, não cabe ao relacionamento

mitigar a solidão do indivíduo, mas questioná-la.

Finalmente, afirma-se que, embora possam ter sido observadas vivências do

relacionamento na alteridade, a série de desafios, questões e necessidades de

desenvolvimento do eu para suportar tais vivências aponta para um período no qual a

consciência coletiva ainda inicia sua experiência de alteridade. Contudo, não se trata

aqui de julgar o eu demasiadamente patriarcal para conseguir suportar a alteridade

por muito tempo. Ao contrário, o que pôde ser visto nas crônicas e no material

histórico e sociológico observado é que a alteridade necessita de uma trama relacional

muito mais ampla do que pode ser intuído à primeira vista. Nesta trama, serão a

comunidade e os relacionamentos não-familiares em que o impulso de relacionar-se,

seja princípio de eros ou libido de parentesco, aqueles capazes de prover o subsídio

suficiente para que o eu se sustente em uma ética e um afeto construídos a partir do

encontro autêntico com o outro. Como apontado por Maffesoli (2006, p. 60), os sinais

de que estes grupos se estruturam já estão sendo dados e observados na forma das

“tribos” e na importância da amizade no relacionar-se contemporâneo. Bauman (2003,

p. 134) e Schwartz-Salant (2000, p. 33) identificaram que, na presença de uma

comunidade que apóie indivíduos inteiros, é possível viabilizar uma nova forma de

relacionar-se que abarque com mais sucesso as necessidades do eu contemporâneo.

Em última instância, cabe a ressalva de Calligaris (2007) que, em se tendo um

eu devidamente pronto para esta vivência, é a atitude de fascinação, abertura e

contemplação diante da diferença que possibilitará o vínculo autêntico e posto à

serviço da individuação. Talvez em nenhum outro momento da história, Jung (2007, p.

147) tenha feito tanto sentido: se há um problema com o indivíduo, há um problema

comigo.

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CCoonnss iiddeerraaççõõeess FF iinnaaiiss

Numa idéia criadora revivem mil noites de amor

esquecidas que se enchem de amor e altivez.

Não se deixe enganar pela superfície – nas

profundidades, tudo se torna lei.

Por isso, meu caro senhor, ame a sua solidão e

carregue com queixas harmoniosas a dor que ela lhe

causa. Diz que os que sente próximos estão longe. Isso

mostra que começa a fazer-se espaço ao redor de si. Se o

próximo lhe parece longe, seus longes alcançam as

estrelas, são imensos.

Mas sua solidão há de dar-lhe, mesmo entre

condições muito hostis, amparo e lar, e partindo dela

encontrarás todos os caminhos.

- Rainer Maria Rilke

O retorno à solidão poderia ser prefaciado apenas por Rilke (2008, p. 46), o

poeta do ser sozinho. Esta pesquisa partiu da solidão incompreensível, da angústia

incapacitante do viver solitário, para alcançar o amor pela solidão. Se há algo

provocador na questão do relacionamento, isto tem de ser o entrelaçamento da

solidão e do encontro em momentos transformadores, momentos de individuação,

vividos naqueles poucos segundos em que o tempo significa uma trama contínua no

qual podemos sentir nossa própria intimidade e nosso encontro com o outro.

No momento final, quando não há muito o que dizer, e o barulho inquietante

da vida lá fora se coloca para o ser, estar em seu canto rejuvenesce tanto quanto estar

com o outro. E a partir de mim mesmo, se torna possível ver o outro. O que algumas

crônicas puderam me dizer se trata exatamente disso: diante de toda dificuldade,

existem alguns momentos marcados, e o desejo de estender estes momentos, nos

quais é possível ver o fascínio no outro. É possível viver de forma a considerar o meu e

o seu em um espaço no qual nós não colidimos; nós nos encontramos.

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Contudo, o desafio que precede e orienta o encontro a todo momento é que

não basta mais o outro romântico. Não somos românticos; somos irmãos. A

fraternidade e a comunidade, termos intercambiáveis nesta acepção, significam que é

necessário admitir toda a fragilidade humana. Em certa ocasião, eu não conseguirei

dar conta de você. E neste momento, é preciso que outros existam. Estes outros,

devidamente aceitos e respeitados por mim, serão o universo relacional de confiança

que assegurarão a mim e a você que, a despeito de nossos limites, o nosso encontro

poderá se manter no tempo. Para isto, é necessário tanto que arquemos com nossa

própria solidão quanto que confiemos que haverá continência para nós no momento

em que arriscarmos acreditar que não estamos sozinhos, ainda que por um instante.

Não existe retorno. Se a alteridade se apresenta para nós na consciência

coletiva, é neste tempo, nesta época, que devemos nos erguer para, juntos, arcarmos

com toda a sua beleza e adversidade. É nesta época que encontramos todos os

paradoxos, e neste momento em que sentimento e intuição invadem, e que a lógica se

liquefaz em um rodamoinho de limitações que apontam que somos, afinal,

demasiadamente humanos. As luzes não iluminam tanto quando decidem apenas

espantar as sombras. Talvez seja a hora de caminhar na penumbra.

Restam questões. Este pesquisador partiu em busca de respostas, e em meio a

insegurança do relacionamento, restaram questões. Mas, na paz da solidão que se

encontra exatamente neste espaço, sabe-se agora que as respostas tardam a vir, e

talvez não virão. Pode-se verificar os mesmos resultados com outros métodos de

pesquisa? O “tribalismo” e outras vivências de grupo e comunidade serão capazes de

efetivamente suprir a angústia que se impõe ao ser pós-moderno daqui em diante?

Como articular os aspectos introvertidos e extrovertidos da individuação, uma vez

percebidos como dialeticamente conjugados na vivência do indivíduo? Existe uma

trama inconsciente relacional, do mesmo modo que ela se apresenta na consciência

coletiva? Como outros modelos de relacionamento, como o profissional, se colocam

diante do descoberto nesta pesquisa? Em que o recente interesse sobre a questão do

feminino contribui para a individuação no relacionamento pós-moderno? Onde

relacionar-se e ser sozinho se encontram? Como... ser... (contigo)... possível...?

Na limitação do homem pós-moderno, imerso em sua solidão, apenas me calo.

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AAppêênnddiiccee:: CCrrôônniiccaass CCoommpplleettaass

CCoommeemmoorr aarr oo qq uuêê??

MM ii cc hh aa ee ll KK ee pp pp

Qualquer coisa é pretexto para os brasileiros comemorarem. Uma filha tem um papel de uma frase só numa peça escolar e, quando a cortina cair, a família inteira celebra num restaurante. Um gol de um time já qualificado para as finais faz uma arquibancada inteira soltar fogos e tremular bandeiras. Churrascos homenageiam os santos católicos mais obscuros.

Descobri esse costume na minha festa de despedida, dias antes de me mudar da Califórnia para o Rio. Às 4h da manhã, os únicos convidados que ficaram, três cariocas, estavam batucando em panelas na cozinha. Por quê? "Para celebrar uma grande festa", um deles me disse. Foi meu primeiro "bem-vindo ao Brasil".

O ano-novo chinês, celebrado no bairro da Liberdade (SP), atrai hordas de não-chineses, assim como as paradas gays reúnem legiões de heterossexuais. Na última parada gay em Niterói, cidade de 460 mil habitantes, mais de 100 mil pessoas

compareceram.

Quem aqui dispensa uma festa de rua? Os brasileiros comemoram para criar um sentimento de comunidade. A música é elemento catalisador. Na Olimpíada de 2004, em Atenas, torceram por seus times de vôlei de praia dançando ritmos baianos, transformando a arquibancada num bloco dançante. Os blocos de rua do Carnaval são igualmente contagiosos, transformando os paradões em foliões. E as platéias que acompanham os cantores em shows reúnem muitas vozes em uma -o que faz artistas de outras terras se sentirem em casa. Essa postura inclusiva leva outros povos à reciprocidade. Uma vez, enquanto tentava pedir comida em português numa pizzaria de Roma, um grupo próximo me perguntou de onde eu vinha. Para evitar a reação que recebia ao dizer "dos Estados Unidos", eu disse "do Brasil", e o grupo todo soltou um grito de "brasiliano!" e me convidou a me juntar a eles.

Os americanos comemoram com menos freqüência e intensidade porque esse espírito não está no sangue nem no calendário. Têm menos feriados e festejos do que os brasileiros. Suas festas são menos inclusivas. Nos EUA, aniversários infantis são para crianças, não para toda a família e amigos, como aqui. Turistas americanos em restaurantes brasileiros acham o costume de cantar o "parabéns" intrusivo. Também não entendem por que, às vezes, pessoas de outras mesas, que nem conhecem o aniversariante, juntam-se ao coro.

No Brasil, a inclusiva passagem de ano reúne ricos e pobres nas praias para ver os fogos. Depois do show do ano passado, eu e minha mulher fomos atraídos a um dos quiosques, onde casais dançavam ao som das marchinhas de uma banda. No quiosque, onde pedi uma cerveja, o barman recusou meus reais e disse que era uma festa particular. Mas, em vez de nos excluir, ele nos serviu saideiras sem fim, o que nos manteve dançando até de madrugada. Afinal, os brasileiros não têm em seu DNA nada que abrevie uma comemoração, especialmente uma que não termina até as pessoas aplaudirem o nascer do sol.

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PPaasstteell dd ee FF eeii rr aa :: OO qq uu ee rr éésstt iiaass ddee cceebb oollaa ttêêmm aa vvee rr ccoomm

cc iivv ii ll ii zzaaççããoo ee ii mmpp eerrmmaann êênn cciiaa??

CC aa cc oo dd ee PP aa uu ll aa

Naquela manhã saí para caminhar tão cedo que, ao passar pela feira, a barraca

de pastel sequer estava montada. Ainda fazia um friozinho nesta cidade cada vez mais quente e já havia no ar uma certa animação que só as feiras-livres têm. Gente simples ganhando a vida. O andar gracioso da vendedora de café que trazia garrafas térmicas em um tabuleiro preso com alças ao seu pescoço parecia uma cena de pintura renascentista. Réstias de cebola e cachos de banana compunham naturezas-mortas tridimensionais. A superfície metálica sobre a banca do consertador de panelas refletia a luz ainda baixa e amarelada do sol. Era possível sentir o perfume das flores sendo retiradas de um caminhãozinho.

Crescia o rumor das conversas e já se iniciava o pregão: “Vai laranja hoje, freguesa? Moça bonita não paga, mas também não leva”. O luxuoso brilho vermelho dos tomates sendo dispostos sobre a banca. Aos poucos me dei conta de que estava diante de uma das práticas mais antigas que se conhecem, a do comércio feito na rua, que ainda resiste nestes tempos de shopping centers e hipermercados. Nada contra as comodidades dos centros de compras onde se entra e sai de carros que lotam enormes estacionamentos.

Mas parece haver algo de errado com uma sociedade em que as pessoas sequer pisam nas calçadas diante dos prédios em que moram. E que se afastam cada vez mais do que acontece além das guaritas e duplas grades de seus condomínios. Parece que isso nos afasta também da noção mais essencial de cidade, de civilização, de coexistência em um espaço público.

Por isso, a alegria multicolorida e ruidosa da feira parece nos lembrar que há, sim, uma possibilidade de vida em comum ao ar livre, ainda que as últimas manchetes sobre a violência insistam em nos dizer o contrário. Mas há algo mais nesse ritual de vender e comprar verduras no meio da rua. Existe nela a beleza do que apenas parece simples, mas que na verdade é complexo. Há o esforço anônimo de alguém que trabalhou a terra, que cuidou das plantas até que elas se expressassem em forma de frutas suculentas, verduras tenras e ervas perfumadas.

Há o cuidado de quem transportou, comprou e vendeu num entreposto onde o feirante, bem de madrugada, foi buscar os ingredientes que agora estão dispostos na forma de arte mais efêmera: a que se pode perceber num prato de comida preparado por quem foi à feira pela manhã, ou neste pastel quentinho e saboroso que provo agora, enquanto mentalmente tomo algumas notas para escrever estas linhas. Na tabuleta da barraca na feira está escrito que o pastel tem sabor de pizza. E tem mesmo.

Mas, além da massa crocante, da mussarela e do tomate, sinto também um sabor de gratidão pelo esforço anônimo de tantas pessoas que contribuíram para que eu pudesse encontrar tudo isso numa simples caminhada matinal e enxergar um pouco de lirismo e, vá lá, ingenuidade, no cotidiano de uma cidade que não seria a mesma sem os seus pastéis e suas feiras.

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AAmmoorr ee LL eeaallddaadd ee

SS ttee pp hh ee nn KK aa nn ii tt zz Seu filho e sua filha de 12 anos mostram enorme interesse em assistir ao filme

baseado em um livro que eles estão lendo na escola. Você descobre que o lançamento será daqui a quatro sábados e promete que vai levá-los já na pré-estréia. Será uma tarde muito especial, só vocês. Você ganhou pontos como pai, fez um golaço e tanto. Melhor ainda, agora eles serão os primeiros a contar para os colegas de escola como o filme se desenrola, serão o centro da roda e heróis por um dia, graças a você. E eles começam a sonhar com o grande dia. Três semanas se passam e na quinta-feira anterior à pré-estréia seus colegas de trabalho o convidam para um jogo de futebol seguido de churrasco. Seu chefe vai estar lá, jogando com a turma. Um amigo se prontifica a buscá-lo às 10 horas do sábado. Você aceita sem pestanejar. Ser convidado para jogar com o chefe é muito importante para a sua carreira, que por sinal não anda muito bem. Seria uma boa oportunidade para fazer média. Você nem se lembrou do compromisso anterior com os filhos.

No sábado, às 10 horas em ponto, seu amigo está à porta, quando seu filho, absolutamente estarrecido, lhe pergunta: "Pai, você esqueceu o nosso filme?".

O que você faz numa situação dessas? 1. Você diz que não irá ao futebol. Pede mil desculpas ao amigo, diz que não

poderá jogar conforme o prometido, pede que ele explique o ocorrido ao seu chefe, e fim de papo.

2. Você pede mil desculpas aos seus filhos, explica a situação, diz que o chefe vai estar lá, que você os levará no sábado que vem, com direito a pipoca em dobro. E tudo se resolverá a contento, sem prejuízo de ninguém.

Qual das duas opções você escolhe? Se respondeu que é a primeira, lamento dizer que você está mentindo. Todo mundo escolhe a segunda opção. Afinal, é sua carreira que poderia estar em jogo. Você bem que podia se tornar mais amigo da turma do trabalho, você está inseguro. Aliás, quem não está?

O que quero discutir aqui é a razão por trás da sua escolha, o raciocínio que determinou a decisão de postergar o cinema com os filhos. Você fez essa opção porque no fundo sabe que seus filhos o amam. E, porque o amam, eles entenderão. Sem dúvida, eles ficarão desapontados, mas não para sempre. Afinal, você conseguiu conciliar a agenda de cada um, só vai demorar mais um pouquinho.

Porém, com esse tipo de raciocínio, você acaba colocando as pessoas que o amam para trás. Justamente as pessoas que nos amam é que acabamos decepcionando, vítimas dos nossos erros do dia-a-dia. Que recompensa é essa que dispensamos àqueles que nos amam e que nos são leais? Por quanto tempo eles continuarão nos amando diante de atitudes assim?

Eu não tenho a menor dúvida de que você escolheu jogar futebol porque sabe muito bem que seu chefe não o ama. Muito pelo contrário, ele não está nem aí para você. Ele pode substituí-lo na hora que quiser, sem um pingo de remorso. Você aceitou jogar com os colegas para que eles gostem um pouco mais de você. E com os seus

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filhos, que já o adoram, você aproveitou para negociar. Eles não vão dizer nada, vão entender, mas sentirão calados uma punhalada nas costas. A lógica diz que deveríamos ser leais com as pessoas que nos amam, mas na prática fazemos justamente o contrário.

Se acha que ninguém o ama ou que não é amado o suficiente, talvez isso ocorra porque você não tem sido leal com as pessoas a quem ama. Achar que elas serão sempre compreensivas e razoáveis é seguramente o caminho para o desastre. Seus filhos acreditarão em você na próxima vez que lhes fizer uma promessa? Eles aprenderão o significado da palavra lealdade?

Seu chefe vai esquecê-lo totalmente um mês depois de você se aposentar, bem como os seus colegas de trabalho. Os únicos que jamais vão esquecê-lo são seus filhos, pela sua lealdade ou pelas pequenas decepções e infidelidades cometidas por você ao longo da vida.

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QQuu eessttããoo dd ee EEssccoo ll hhaa

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Até os 30, eram amigas inseparáveis. Saíam, viajavam e aprontavam sempre juntas. Até que uma delas se apaixonou por um estrangeiro meio aventureiro e sumiu no mundo com ele. A outra ficou com uma certa inveja, mas sabendo, bem dentro dela, que não teria coragem para fazer a mesma coisa. Continuou sua vida, casou com um homem que lhe dava paz e nunca mais teve notícias da amiga tão querida.

Vinte anos se passaram e, um dia, as duas se cruzaram num restaurante. Foi um encontro mágico e já deixaram marcado um almoço para aquela semana. Ambas chegaram 15 minutos antes da hora, tal a vontade de se reverem e de botar as notícias em dia. A que havia ganho o mundo contou que a grande paixão tinha durado pouco mais de um ano, mas, como estava em Paris, cidade que adorava, procurou um trabalho, mesmo modesto, com salário apertado, para poder ficar. Foi pulando de paixão em paixão, nas férias viajava de trem para outros países – viagens econômicas – e assim conheceu grande parte da Europa. Houve muitas noites em claro esperando que ele – o homem da hora – chegasse e muito choro de madrugada, sozinha, porque ele não apareceu. Mas houve também verões maravilhosos na Grécia, noites inesquecíveis em Veneza e momentos de intensa felicidade. Mas um dia ela acordou e se perguntou: “O que é que estou fazendo aqui?”. Resolveu voltar. E ali estava, aos 50 anos, sem trabalho, sem filhos, sem ter um homem para chamar de meu amor, tendo que começar tudo de novo e sem se entender muito bem. E quis, logo, saber da história da amiga.

A outra havia se casado, tinha dois filhos já grandes e uma vida confortável, tranqüila, sem muitas novidades. Mas era feliz, isso é o que importava.Não tinha do que se queixar: o marido é um bom pai, não reclama de nada, chega sempre na hora e todo ano, no dia do aniversário de casamento, data que ele nunca esquece, vão jantar fora – e da última vez terminaram a noite num motel. Mas algumas bobagens a irritam. Quando, por exemplo, nos fins de semana, ele veste invariavelmente uma bermuda, camiseta, põe nos pés aquela sandália – aquela – e fica vendo futebol na televisão, seja que jogo for. Nesses longos anos de casamento nunca se sentiu atraída por outro homem, a não ser em pensamento, claro. Mas nunca o traiu, pois sente nele uma firmeza reconfortante. Toda vez que ele volta de uma viagem e ela vai esperá-lo no aeroporto, seu coração bate mais forte e pensa, na porta do desembarque: “E se ele não chegar?”, só que ele sempre chega. O bem maior desse casamento, segundo ela, é que entre os dois existe um grande respeito.

Embalada pelo segundo copo de vinho, a casada se abre e diz que o marido não precisava ser tão previsível. Ah, como gostaria que um dia ele aparecesse com um brilho diferente nos olhos – fosse de desejo, admiração ou ódio –, um brilho que significasse alguma vibração. É disso que ela sente falta; só disso, de mais nada.

A solteira, que passou todos esses anos só com esse “isso”, pensa que gostaria de ter uma casa, um marido, uma certa paz. Será que foi louca e jogou a vida fora? Já a outra fica pensando que está há 20 anos com o mesmo homem, não conheceu nada do mundo e acha que talvez devesse ter tido mais coragem de se aventurar antes de entrar num casamento tão sólido. Será que foi louca e jogou a vida fora? Elas se despedem e cada uma vai para o seu lado, sem saber, afinal, o que pensar da vida.

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OO SSeeggrr eedd oo dd ee UUmmaa VV ii ddaa dd ee CCaassaa ll

CC oo nn tt aa rr dd oo CC aa ll ll ii gg aa rr ii ss Em geral , na literatura, no cinema e nas nossa fantasias, as histórias de amor

acabam quando os amantes se juntam (é o modelo Cinderela) ou, então, quando a união esbarra num obstáculo intransponível (é o modelo Romeu e Julieta). No modelo Cinderela, o narrador nos deixa sonhando com um "viveram felizes para sempre", que seria a "óbvia" conseqüência da paixão.

No modelo Romeu e Julieta, a felicidade que os amantes teriam conhecido, se tivessem podido se juntar, é uma hipótese indiscutível. O destino adverso que separou os amantes (ou os juntou na morte) perderia seu valor trágico se perguntássemos: será que Romeu e Julieta continuariam se amando com afinco se, um dia, conseguissem deitar-se juntos sem que Romeu tivesse que escalar a casa de Julieta até o famoso balcão? Ou se, em vez de enfrentar a oposição letal de suas ascendências, eles passassem os domingos em espantosos churrascos de família?

Talvez as histórias de amor que acabam mal nos fascinem porque, nelas, a dificuldade do amor se apresenta disfarçada. A luta trágica contra o mundo que se opõe à felicidade dos amantes pode ser uma metáfora gloriosa da dificuldade, tragicômica e inglória, da vida conjugal.

O casal que dura no tempo, em regra, não é tema para uma história de amor, mas para farsa ou vaudeville -às vezes, para conto de terror, à La "Dormindo com o Inimigo". Durante décadas, Calvin Trillin escreveu uma narrativa de sua vida de casal, na revista "New Yorker" e em alguns livros (por exemplo, "Travels with Alice", viajando com Alice, de 1989, e "Alice, Let's Eat", Alice, vamos para a mesa, de 1978). Nesses escritos, que são só uma parte de sua produção, Trillin compunha com sua mulher, Alice, uma dobradinha humorística, em que Calvin era o avoado, o feio e o desajeitado, e Alice encarnava, ao mesmo tempo, a beleza, a graça e a sabedoria concreta de vida.

À primeira vista, isso confirma a regra: a vida de casal é um tema cômico. Mas as crônicas de Trillin eram delicadas e tocantes: engraçadas, mas nunca grotescas. Trillin não zombava da dificuldade da vida de casal: ele nos divertia celebrando a alegria do casamento. Qual era seu segredo?

Pois bem, Alice, com quem Trillin se casou em 1965, morreu em 2001. Trillin escreveu "Sobre Alice", que acaba de ser publicado pela Globo. Esse pequeno e tocante texto de despedida desvenda o segredo de um amor e de uma convivência felizes, que duraram 35 anos.

O segredo é o seguinte: Calvin e Alice, as personagens das crônicas, não eram artifícios literários, eram os próprios. A oposição entre os dois foi, efetivamente, o jeito especial que eles inventaram para conviver e prolongar o amor na convivência. Considere esta citação de um texto anterior, que aparece no começo de "Sobre Alice": "Minha mulher, Alice, tem a estranha propensão de limitar nossa família a três refeições por dia". A graça está no fato de que a "propensão" de Alice não é extravagante, mas é contemplada por Calvin como se fosse um hábito exótico. Alice é situada e mantida numa alteridade rigorosa, em que é impossível distinguir

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qualidades e defeitos: Calvin a ama e admira como a gente contempla, fascinado, uma espécie desconhecida num documentário do Discovery Channel.

Se amo e admiro o outro por ele ser diferente de mim (e não apesar de ele ser diferente de mim), não posso considerar que minha maneira de ser seja a única certa. Se Calvin acha extraordinário que Alice acredite na virtude de três refeições diárias, ele pode continuar petiscando o dia todo, mas seu hábito lhe parecerá, no fundo, tão estranho quanto o de Alice.

Com isso, Calvin e Alice transformaram sua vida de casal numa aventura fascinante: a aventura de sempre descobrir o outro, cuja diferença inesperada nos dá, de brinde, a certeza de que nossa obstinada maneira de ser, nossos jeitos e nossa neurose não precisam ser uma norma universal, nem mesmo a norma do casal. Há quem diga que o parceiro ideal é aquele que nos faz rir. Trillin completou a fórmula: Alice era quem conseguia fazê-lo rir dele mesmo. Com isso, ele descobriu a receita do amor que dura.

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