“A eficácia simbólica” revisitada. Cantos de cura · PDF fileO famoso artigo de Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”, ... plo típico da sua abordagem dialética, Lévi-Strauss

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  • A eficcia simblica revisitada.Cantos de cura ayoreo1

    John Renshaw

    Consultor independente

    RESUMO: O objetivo deste artigo analisar uma rea especfica do conhe-cimento indgena, os sarode ou cantos de cura dos Ayoreo do Gran Chaco,para poder esclarecer algumas das bases metafsicas da epistemologia ayoreo.O estudo se fundamenta no enfoque que Joanna Overing prope na intro-duo de sua obra Reason and Morality (1985) e sugere que, apesar de seremsimples e repetitivos, os cantos de cura pertencem a um corpus mais amplode conhecimentos mticos e derivam sua eficcia e poder no tanto da su-gesto ou da metfora, mas sim de sua capacidade de captar o poder domundo mtico dos jnani bajade, os seres originrios, que so ao mesmotempo Ayoreo e os antepassados ou donos dos que hoje em dia so animais,plantas e minerais.

    PALAVRAS-CHAVE: Ayoreo, Gran Chaco, xamanismo, medicina indgena.

    O famoso artigo de Lvi-Strauss, A eficcia simblica, publicado pelaprimeira vez em 1949, ainda usado como um texto bsico para o ensi-no da antropologia da sade e da doena (Lvi-Strauss, 1963, p. 186-205). Na verdade, eu argumentaria que, desde que o artigo foi escrito,houve pouco avano no debate sobre duas questes fundamentais que oautor levanta: primeiro, se as tcnicas de cura xamnicas so de fato efi-cazes, e segundo, se o so, como atingem seus objetivos.2

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    Essas so questes que a antropologia deve tratar com a mxima ho-nestidade possvel. Eu tambm acredito que os antroplogos devem ge-rar percepes novas sobre a natureza do que, na ausncia de um termomelhor, pode ser descrito como os modos de pensamento ocidentais,ou cientficos. Seguindo a abordagem proposta por Reason and Mo-rality de Joanna Overing, a inteno deste artigo testar os limites darealidade construda socialmente, usando uma discusso da cura indge-na para tentar elucidar alguns dos pressupostos que esto implcitos emnossas prprias idias sobre sade e doena (Overing, 1985, p. 1-25).O artigo examinar alguns desses conceitos implcitos no uso dos can-tos de cura ou sarode, que so algumas das tcnicas de cura utilizadaspelos Ayoreo, povo indgena do Gran Chaco, com o objetivo de com-parar entendimentos ayoreo e ocidentais sobre o mundo e a forma comoesses entendimentos informam sobre suas experincias de sade e doen-a. Minha inteno explorar e talvez estimular um dilogo entre dife-rentes sistemas de pensamento ou, para expressar isso de forma maisprecisa, entre diferentes entendimentos de mundo.

    Neste ponto, eu deveria tornar claro que, em minha prpria expe-rincia, nunca encontrei qualquer evidncia que justificasse uma distin-o entre modos de pensamento ocidentais e no ocidentais. Por exem-plo, considero a oposio de Lvi-Strauss entre o modo de pensamentomtico e o modo de pensamento cientfico como expresso na sua me-tfora do bricoleur e do engenheiro extremamente desorientadora(Lvi-Strauss, 1966, p. 15-32). No h qualquer diferena entre os po-deres de observao e deduo dos povos indgenas e dos cientistas.Na verdade, pouco provvel que povos tais como os Ayoreo teriamsobrevivido ao clima severo e rido do Gran Chaco se no tivessem ad-quirido um conhecimento detalhado e cientfico de seu meio ambien-te, um conhecimento que freqentemente ultrapassa o de botnicos ezologos profissionais (Schmeda Hirschmann, 2003). Se existem dife-

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    renas entre as maneiras como os povos indgenas e os ocidentais enten-dem o mundo, eu acredito que tenham mais a ver com o modo como ainformao compartilhada e comunicada particularmente por meiodo uso extenso da escrita e de outras tecnologias para armazenamento edisseminao da informao do que com as formas como as pessoasrealmente pensam.

    A construo social da sade e da doena uma questo sria domundo real. Em todos os pases em que trabalhei incluindo Paraguai,Bolvia e, mais recentemente, Guiana , as pessoas sofrem e freqente-mente morrem por falta de intervenes muito simples, que so roti-neiras no mundo desenvolvido. As mulheres morrem de parto maisem sociedades indgenas do que nas populaes que tm acesso a bonscuidados pr-natais e o recurso a cirurgias em caso de complicaes.A maioria das sociedades indgenas se caracteriza por altos nveis de mor-talidade infantil por infeces respiratrias, diarrias e doenas infec-ciosas como sarampo. E muita mortalidade de adultos causada portuberculose, malria, doena de Chagas e, crescentemente, Aids. Devodeixar claro que o meu propsito no fazer um relativismo lgico oumoral. No acredito que os povos indgenas devem se virar com umsistema, enquanto o Ocidente com outro. Ao contrrio, acredito queas sociedades indgenas e o Ocidente tm muito a aprender um com ooutro, desde que cada um saiba respeitar e reconhecer as conquistas dooutro. Todos sabem que muitas das drogas utilizadas pela medicina oci-dental so derivadas de produtos originalmente utilizados por povosindgenas, e que as empresas farmacuticas que dominam o mercadodessas drogas ocidentais consideram os conhecimentos indgenas comseriedade suficiente para investir grande quantidade de dinheiro na iden-tificao das plantas usadas na medicina indgena.

    Ao mesmo tempo, deve-se reconhecer que a medicina ocidental temtido um impacto significativo nas vidas dos povos indgenas. No

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    Paraguai, por exemplo, apesar das deficincias espantosas nos serviospblicos de sade, a medicina ocidental teve um impacto positivo nopadro de sade dos povos indgenas do pas. As duas conquistas maisdramticas foram as mais simples. Campanhas de vacinao, lanadas apartir de meados da dcada de 1970, mudaram o padro demogrficodos povos indgenas do Paraguai de uma populao declinante para umaalta taxa de crescimento, enquanto o uso generalizado de terapia oral dereidratao, que nada mais que uma mistura de sal e gua, reduziusignificativamente a mortalidade infantil causada por diarria e desidra-tao. Nos anos 70, parecia provvel que sociedades como a dos Achpudessem desaparecer como Darcy Ribeiro demonstra que ocorreucom muitas sociedades indgenas no Brasil (Ribeiro, 1971, p. 48-62).Mesmo recentemente, em 1992, visitei algumas comunidades Mbya-Guaran na Cordilheira de San Rafael, no Paraguai oriental, que se re-cusaram a aceitar a vacinao e tinham perdido todos os seus filhos parauma epidemia de sarampo. No final da dcada de 1970, no entanto, asituao demogrfica da maioria das comunidades indgenas tinha seinvertido, e os censos realizados em 1981, 1992 e 2002 mostraram umcrescimento consistente e firme na populao indgena do Paraguai(INDI, 1982; DGEEC, 1997 e 2002).

    Voltando s questes levantadas por Lvi-Strauss, se argumentarmosque as tcnicas de cura, tais como o canto xamnico cuna que ele des-creve em seu ensaio, so eficazes, ento temos de abordar a questo decomo essa cura alcanada. A resposta de Lvi-Strauss sugerir que ocanto do xam cuna est situado no limite entre a medicina fsica con-tempornea e as terapias psicolgicas como a psicanlise. Num exem-plo tpico da sua abordagem dialtica, Lvi-Strauss sugere que a canode cura seja uma inverso da psicanlise: no caso do esquizofrnico, ocurador faz a performance das aes e o paciente produz o mito; na curaxamnica, o curador oferece o mito e o paciente faz a performance das

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    aes (Lvi-Strauss, 1963, p. 201). aqui que o argumento parece umpouco ultrapassado, j que foi escrito antes de Psychiatry and Anti-psychiatry ou The Myth of Mental Illness, quando a psicanlise ainda ti-nha mais status de cincia (Cooper, 1967; Laing, 1965; Szasz, 1972).Acredito que, para a maioria dos antroplogos contemporneos, a psi-canlise tem um status bem mais ambguo agora do que tinha no tempoem que Lvi-Strauss escreveu o seu ensaio, e os estudos antropolgicos,eu penso, esto menos dispostos a aceitar que as noes freudianas doinconsciente tenham um valor explicativo maior do que as idias nati-vas sobre pessoa.

    A morte da psicanlise no apenas para explicaes antropolgicas,mas tambm talvez no contexto mais amplo da prtica mdica ociden-tal uma questo que merece mais comentrios. Pelo momento,gostaria de apontar simplesmente que, embora a doena mental sejareconhecida como uma preocupao significativa, tanto em pasesdesenvolvidos quanto naqueles que enganosamente so descritos comopases em desenvolvimento, ela recebe pouca prioridade no apoio fi-nanceiro pblico ou outros apoios. E eu argumentaria que isso temmenos a ver com a validade ou mrito cientfico da psicanlise do quecom a racionalidade econmica que movimenta a prtica mdica oci-dental. Mas primeiro, no entanto, gostaria de voltar aos Ayoreo.

    Os cantos de cura ayoreo

    Os Ayoreo so um povo indgena do Gran Chaco e vivem de ambos oslados da fronteira que separa o Paraguai e a Bolvia. Falam uma lnguapertencente famlia lingstica zamuco na verdade, o Ayoreo mui-to semelhante lngua zamuco descrita pelo lingista jesuta do sculoXVIII, padre Ignacio Chom (Lussagnet, 1961-1962). Os nicos po-

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    vos contemporneos que falam as lnguas pertencentes a essa famlia lin-gstica so os Ebitoso e Tomaraha, conhecidos geralmente na literaturaetnogrfica como Chamacoco.3

    No total, os Ayoreo so em nmero de 4.000 a 5.000 pessoas, commais de 2.000 residentes no Paraguai o Censo Indgena Paraguaio de2002 conta 2.016 Ayoreo no pas (DGEEC, 2002, p. 234). At a dcadade 1950, os Ayoreo evitavam contato com as sociedades nacionais ououtros povos indgenas, e as relaes entre diferentes grupos territoriaisayoreo eram freqentemente hostis, especialmente entre os Ayoreo donorte e os do sul os Guidaigosode e os Direquedejnaigosode, para usartermos correntes entre os Ayoreo paraguaios. Mesmo hoje, os Ayoreoso e