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A enciclopédia em cage

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A ENCICLOPÉDIA EM CAGE: 50 ALTURAS DA VOZ Por: Sérgio Medeiros

John Cage (1912-1992) dizia que alguns de seus textos, especialmente os mesósticos, que são um tipo de acróstico, não fazem sentido, conforme ordinariamente se entende sentido. Eles criam nonsense. Cage nos recorda que, em outras culturas, como a japonesa, por exemplo, ou sobretudo nela, o nonsense é ensinado nas universidades como coisa séria. Então Cage oferece este conselho aos leitores potenciais de sua vasta obra escrita, recheada de nonsense: “If nonsense is found intolerable, think of my work as music, which is, Arnold Schoenberg used to say, a question of repetition and variation, variations itself being a form of repetition in which some things are changed and others not” (2001, vi). Se existe uma enciclopédia em Cage, essa enciclopédia será também música, ou, como disse Cage na apresentação do seu épico Anarchy: “Anarchy was writen to be read out loud.” Um nonsense musical, feito de muitas vozes conjugadas, unindo-se ou separando-se, as quais, um dia, como veremos, acabaram sendo apresentadas, como desejava Cage, em grandes universidades norte-americanas, não sei, porém, se como “coisa séria”, conforme se entende ordinariamente essa locução. Da perspectiva de Claude Lévi-Strauss, autor de Mitológicas, em quatro volumes, um vasto compêndio de mitos que revela afinidades com a enciclopédia iluminista, indo, em suas referências, de A de Aruaque a Z de Zapoteca, segundo observou Clifford Geertz, é sabido que, da perspectiva de Lévi-Strauss, existiriam duas histórias, uma aquisitiva, que acumula, e outra não-aquisitiva, que não acumula, ou que não possui o dom sintético. As culturas inseridas na história aquisitiva são aquelas que se servem da escrita para fazer inventários, as outras, inseridas na história não-cumulativa, são ágrafas, orais. Essas seriam (embora seja difícil conceber isso) sociedades estacionárias, mas, sobretudo, sem escrita. Contudo, sem considerar agora o paradoxo de que não há história sem escrita, ou sociedade sem escrita, já que a escrita, nas culturas do presente ou do passado, precede necessariamente todas as suas estruturas, ou, simplificando, em todas elas ter estrutura já é ter escrita de algum modo, um fato que destacaria é que a história cumulativa, dos povos com escrita (perdoem-me a redundância), implica, simultaneamente, o aprimoramento do inventário, que, de agora em diante, será feito pelo escriba. Esse inventário, então, só é possível numa sociedade que se hierarquizou e que legalizou a exploração do homem pelo homem. Essa ficção ou fábula do pensamento logocentrista, resumida e deturpada (voltarei a ela a seguir), será confrontada, ao final, com o sonho de um inventário não-hierarquizado, um inventário que enlouqueça (falta-me uma palavra melhor) a forma do inventário e, em particular, a forma da enciclopédia. No seu ensaio “O tempo de enciclopédias”, Maurice Blanchot menciona um

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cosmos de 50 volumes que define, imagino, um ideal ou padrão enciclopédico moderno. Pergunto-me, e essa pergunta é inevitável: poderia um autor solitário, usando uma única linguagem (a sua própria, seja esta híbrida ou não), escrever sozinho uma enciclopédia? Tomando como referência o século XVIII, Blanchot define a enciclopédia como uma obra essencialmente coletiva.

Proponho-me a falar, no entanto, de enciclopédias, ou não-enciclopédias, ou falsas enciclopédias escritas por um único autor, um enciclopedista solitário: Qorpo-Santo, John Cage... Talvez pudéssemos simplesmente falar de obras escritas por um só autor que possuem, entretanto, dimensão enciclopédica. Os próprios autores podem, às vezes, chamar essas obras de “enciclopédias”, como o fizeram Novalis e Qorpo-Santo, outras vezes, como o fez Cage, podem chamá-las de “diário”, “circus” etc. Ou ainda de romance, como talvez o tenha feito Joyce ao escrever o enciclopédico Finnegans Wake, uma obra que não teria sido escrita se o seu autor não tivesse à mão uma ou várias enciclopédias. Poderíamos então falar de enciclopédias em Joyce, assim como posso falar das enciclopédias em Cage, referindo-me às enciclopédias que alimentaram seus textos enciclopédicos; e, no caso de Cage, que à sua maneira fez uma versão sintética do volumoso Finnegans Wake, intitulada Writing for the second time through Finnegans Wake, poderíamos falar de enciclopédias de Joyce em Cage, já que as enciclopédias consultadas pelo primeiro também foram, indiretamente, consultadas pelo segundo. Um estudo ainda inédito sobre Joyce, mas em vias de ser publicado, assinado por Dirce Waltrick do Amarante, mostrará justamente isso, que o capítulo VIII desse romance, conhecido pelo nome de “Anna Livia Plurabelle”, contém milhares de nomes de rios, pinçados das enciclopédias que Joyce leu. Ou, ainda, poderíamos acreditar que existem duas culturas enciclopédicas, a coletiva e a individual, uma vazada numa escrita que se quer universal (aquela capaz de falar de todos os assuntos sem alterar o tom) e a outra vazada numa fala assumidamente pessoal, sempre outra em relação a si mesma, no seu limite.

Essa ainda não é, porém, a questão mais importante ou a mais instigante para abrir este debate que confrontará, espero, o autor com os autores. A questão mais importante, a questão talvez crucial para iniciar o referido debate é, parece-me, esta outra, também colocada por Blanchot, se não me engano (lerei o ensaio desse crítico “por cima”, pinçando aqui e ali certas idéias e teses, porém sem desenvolvê-las necessariamente como ele o fez nem extrair delas as mesmas conclusões): a enciclopédia não seria um modo de armazenar conhecimento que privilegiaria a forma e não o conteúdo? E se concluirmos, finalmente, que o verdadeiro conhecimento deste século já não se adapta mais a essa forma? O que é afinal essa forma, a enciclopédia? É possível transformá-la numa partitura e fazê-la cantar? Acredito que posso procurar uma resposta lendo o

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enciclopedista John Cage, mas passando antes, para definir o modelo do meu enciclopedista solitário, por escritores que levaram a escrita do século XIX ao seu limite, Qorpo-Santo e, en passant, Novalis.

Do enciclopedista brasileiro do século XIX, José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo (1829-1883), que afirmou: “Considerei pátria – o universo”, cito dois aforismos que, acredito, possam introduzir-nos no seu labor enciclopedístico, apontando sua motivação e seu limite, que desejo discutir: “Se eu não lesse, se eu não escrevesse – seria quiçá uma pedra.” “Pode-se alguém matar – escrevendo-se sem cessar.”

O “escrever sem cessar”, até a morte, anunciado no último aforismo, poderia ser uma referência crítica a certo procedimento compulsivo e desmesurado, inerente à dimensão enciclopédica de uma escrita pessoal, porém o aforismo anterior alerta para o fato de que, não se escrevendo, evitando-se exercer essa atividade, pode-se estar reduzido à condição de pedra. Talvez o labor enciclopédico seja mesmo infindável, a morte o interrompe sem que se possa, assim, concluí-lo, a Enciclopédia de Novalis, editada postumamente, seria um exemplo dos mais conhecidos. A obra obscura e desaparecida do próprio Qorpo-Santo seria outro exemplo. A fama atual de Qorpo-Santo repousa talvez em suas peças com enredos “sem pé nem cabeça”, como já afirmou a crítica brasileira, que as associa com uma vertente nacional da arte nonsense européia. Os seus escritos o próprio autor gaúcho os reuniu nos volumes (nove tomos, porém nem todos se conservaram) da Ensiqlopèdia ou seis mezes de huma enfermidade, obra que é, definindo o gênero “enciclopédia” na sua vertente pessoal, anárquica e não-sistemática, como um longo tecido sem começo, meio ou fim, recheado de “comédias, poemas, artigos, reflexões políticas, observações pedindo empregadas domésticas, páginas sobre suas dúvidas e hesitações sexuais, fantasias íntimas, conselhos homeopáticos, receitas culinárias, pensamentos e interpretações religiosas, observações incompreensíveis, uma autobiografia rápida escrita em 1876, pelo menos um romance, talvez dramas e/ou tragédias (diz a lenda que Qorpo-Santo escreveu uma tragédia em 74 atos...)” (Aguiar, 1975, p. 37).

Em suma, como concluiu o estudioso da obra de Qorpo-Santo, Flávio Aguiar, “um imenso painel da vida de um homem marginalizado, no Brasil do século XIX” (1975, p. 50). O objetivo que tinha em mente Qorpo-Santo, quando denominou sua coletânea de Enciclopédia, era elaborar, segundo o mesmo estudioso, “a produção de uma súmula completa e fiel do comportamento humano” (p. 65).

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Mas o que posso agora falar da recusa, também postulada por Qorpo-Santo, em enveredar por esse caminho da tarefa inconclusa, que é o resultado do labor enciclopedístico (uso aqui um adjetivo caro a Novalis, talvez incomum em português), permanecendo o autor na condição de não-autor, cujo símbolo é a pedra muda, que não lê, não escreve e, portanto, também não cessa. O enciclopedista cessa de exaustão, está fadado a cessar subitamente, quanto maior a realização, mas a pedra, que não lê, que não escreve, que não se gasta, permanece. Um monumento mais durável que a própria enciclopédia, esse monumento de papel. É interessante que Qorpo-Santo fale exatamente de pedra, aqui: assim, sonhadoramente, posso imaginar uma seqüência mítica no tempo, que da pedra bruta, ou calhau, passa para a pedra lascada, depois à pedra polida, à pedra de Roseta, enfim à Enciclopédia. De uma ausência de mundo a um cosmos vivo, de uma realidade muda a uma realidade criativa. A pedra, segundo Heidegger, é sem mundo, enquanto o animal é pobre de mundo e o homem é formador de mundo, conforme se lê na segunda parte de Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. Aqui não seria ocioso relembrar o “paradoxo do neolítico”, tema muito discutido por Claude Lévi-Strauss, quando ele aborda a invenção da escrita e o surgimento do inventário. No período neolítico, lemos, por exemplo, em Tristes trópicos, O pensamento selvagem e no ensaio “Raça e história”, uma das fases mais criativas da história da humanidade, surgiram as grandes artes da civilização, como a cerâmica, a tecelagem, a agricultura e a domesticação dos animais. A escrita alfabética, a geometria, a aritmética são melhorias acrescentadas pela nossa civilização a esse “capital neolítico” inicial, comum a todas as civilizações. Houve a seguir, a despeito da criação da escrita alfabética, uma estagnação que se estendeu por dois ou dois mil e quinhentos anos, do primeiro milênio antes da era cristã até o século XVIII, aproximadamente. O que quer dizer Lévi-Strauss, ao nos apresentar esse paradoxo do neolítico, ou essa prolongada estagnação? “Coisa estranha é a escrita”, afirma Lévi-Strauss em Tristes trópicos, para concluir que o aparecimento da escrita veio acompanhado da formação das cidades e dos impérios, isto é, “ela parece favorecer a exploração dos homens, antes de iluminá-los” (2004, p. 283). “Se minha hipótese estiver correta, há que se admitir que a função primária da comunicação escrita foi facilitar a servidão. O emprego da escrita com fins desinteressados, visando extrair-lhe satisfações intelectuais e estéticas, é um resultado secundário, se é que não se resume, no mais das vezes, a um meio para reforçar, justificar ou dissimular o outro (2004, p. 283).”

Em suma, como resumirá o autor, “Se a escrita não bastou para consolidar os conhecimentos, era talvez indispensável para fortalecer as dominações.” (2004, p. 283). Num mundo de alfabetizados, ninguém pode alegar que desconhece a lei. Pergunto-me: até que ponto uma

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enciclopédia estará a serviço da lei? O quanto pode ela afastar-se da lei? Até que ponto ela é também uma crítica à lei? O que seria, enfim, uma enciclopédia anárquica, plural ou democrática? Ou musical? Quis citar essa crítica à escrita (já mencionei, acima, o que ela tem de metafísica, ao pressupor sociedades sem escrita, sociedades harmoniosas ou felizes, uma ficção lévi-straussiana), enfim, quis mencioná-la porque uma crítica severa à linguagem, sobretudo à sintaxe (Cage notava que Joyce deixou a velha sintaxe inglesa intacta em Finnegans Wake), uma crítica severa existe também em Cage, nos escritos de Cage e na música de Cage. A sua enciclopédia questiona todo o tempo a sintaxe. No prefácio à edição brasileira de A year from monday, Augusto de Campos traduziu mais ou menos o que Cage afirmou no prefácio a “Writing for the second time through Finnegans Wake”:

“cage se diz interessado na ‘linguagem sem sintaxe’

(o que o aproxima da poesia concreta)

citando norman o. Brown

‘a sintaxe é a estrutura do exército’

e thoreau

‘quando ouço uma sentença

ouço pés marchando’

um devoto da linguagem ‘desmilitarizada’

não-sintática” (1985, p. xx)

Disse que para Blanchot a enciclopédia, esse cosmos vivo de 50 volumes, é uma obra coletiva. Quando Borges, ou o narrador Borges, no conto que abre o volume Ficções entra em contato com a famosa enciclopédia fantástica, a ficção suprema do Ocidente, como todos se lembram, o faz por intermédio de um aforismo, que, na memória de seu amigo Bioy Casares, era mais ou menos assim: “(...) um dos heresiarcas de Uqbar declarara que os espelhos e a cópula são abomináveis, porque multiplicam o número dos homens” (1969, p. 82). Borges, alguns dias depois, tem acesso direto à enciclopédia em questão e lê, finalmente, a frase antes só ouvida, a qual lhe parece um pouco diferente daquela que dissera Bioy Casares. Pondera Borges: “O nome do heresiarca não figurava, mas ali

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estava a notícia de sua doutrina, formulada em palavras quase idênticas às repetidas por ele [Bioy Casares], embora – talvez – literariamente inferiores” (1969, 83).

Considero essa passagem crucial, em qualquer discussão a respeito da linguagem das enciclopédias. Uma enciclopédia teria de adotar, em princípio, uma linguagem comum, ou uma linguagem apta a dizer qualquer assunto, daí tudo nela soar, digamos, previsível e monótono, sempre igual, daí também cada frase impressa nela apresentar-se literariamente inferior àquilo que, digamos, um artista poderia escrever ou dizer, usando quase as mesmas palavras. (Uma tradução brasileira do referido conto do Borges, tradução talvez pouco elegante, usa uma palavra terrível, para definir a impressão que provoca num leitor refinado o tom enciclopedístico padrão: “O resto parecia muito verossímil”, diz essa infeliz tradução, “muito ajustado ao tom geral da obra e (como é natural) um pouco cacete” (Borges, 1969, p. 84). É o que diz Borges em português, mas isso nos convém, pois é disso que estamos tratando agora: a má vontade para com o tom geral da enciclopédia. Como o trecho lido é falso, por ter sido acrescido indevidamente à enciclopédia tradicional, Borges faz uma extraordinária constatação, já esperada: “Relendo-o, descobrimos sob a forma rigorosa uma fundamental indeterminação” (Borges, 1969, p. 84).)

Maurice Blanchot, em seu ensaio sobre as enciclopédias já citado, afirma, se não estou enganado, que a linguagem da cultura enciclopédica é necessariamente uma linguagem universal, cuja função é dizer tudo, sem se identificar, parece-me óbvio, com uma linguagem particular, com um estilo literário qualquer. O grande trunfo dessa linguagem, em si não literária, é poder falar da ciência, ou do supremo conhecimento de uma época, numa linguagem que não é a de um saber científico particular, mas a linguagem própria para falar de tudo. Parece absurdo, parece algo arcaico, hoje, pensar assim a linguagem das enciclopédias. O paradoxo foi naturalmente enfatizado pelo lúcido Blanchot.

Diria que, e essa é a hipótese que quero lançar neste ensaio, a enciclopédia pessoal, assinada por um só autor, não lograria nunca essa linguagem universal, mas, por assim dizer, à falta de um verbo melhor, enlouqueceria o inventário, como ocorre na enciclopédia de Cage, sobretudo quando, nos textos que a compõem, a ênfase retórica delira e cria a enciclopédia sonora, a enciclopédia cantada ou entoada, a enciclopédia do xamã. Poderíamos definir essa obra, como já fizemos com respeito à obra de Qorpo-Santo, como um imenso painel, mas não da vida de um homem marginalizado do século XIX, mas, sim, da vida de um dos artistas mais ativos e influentes do século XX.

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Quando digo enciclopédia sonora, enciclopédia musical, penso novamente naquela experiência borgiana, resumida atrás: a de que o aforismo, ao ser falado, adquire uma dada forma, em razão de certa ênfase, de certo efeito retórico calculado, o qual a versão impressa anula, ou atenua, pois deve ajustar-se ao tom geral de uma pretensa língua universal, a língua que serve para dizer tudo, a língua do escriba máximo do Ocidente. É contra isso – pois aumenta a insatisfação com essa escrita, surge um desejo de dizer com ênfase, ou com um sabor particular -- que se insurge a linguagem das enciclopédias pessoais, assinadas por Qorpo-Santo ou por Cage, ou por Novalis, entre outros.

Gostaria de poder demonstrar isso, ou seja, que a enciclopédia pessoal é um cosmos de 50 volumes, também, e que nisso ela não difere da enciclopédia tradicional, exceto pelo detalhe crucial de que são 50 volumes ou alturas de voz, não de tomos, não de livros. Uma enciclopédia pessoal pode ser fisicamente mínima, desde que expresse seu não-saber em 50 alturas de voz.

Há uma anedota, dentre as muitas contadas por Cage em seu livro De segunda a um ano, que se pode ouvir como uma introdução à mescla sonora que é a sua enciclopédia pessoal. A anedota, em si, já é um gênero musical, pois, se boa ou bem contada, pode provocar reações físicas imediatas, como o riso e o gesto, ou mesmo a gargalhada. A enciclopédia pessoal, e isso é um distintivo dela, comporta, pois, a piada, o riso. A enciclopédia de Qorpo-Santo é exemplar nesse sentido. Mas o que diz essa anedota? Em suma, ela situa Cage entre o cotidiano e a indústria cultural, entre a arte e a religião, o silêncio e o som musical, entre o Ocidente e o Oriente. Cage sabia, ou virá a saber, lendo Joyce, que a manifestação de Deus é um grito na rua. Portanto, a anedota reza o seguinte: “Minha avó era às vezes muito surda, e outras vezes, particularmente quando alguém estava falando dela, não era nada surda. Um domingo, ela estava sentada na sala de estar, bem na frente do rádio. Estava com um sermão ligado tão alto que podia ser ouvido por todos os prédios vizinhos. Mesmo assim, ela estava ressonando e roncando. Eu entrei na sala na ponta dos pés, pretendendo pegar um manuscrito que estava no piano e sair de novo sem despertá-la. Quase consegui. Mas quando eu já estava na porta, desligou-se o rádio e vovó falou ríspida: ‘John, você está preparado para a segunda vinda do Senhor?’” (1985, p. 20). Para mostrar a importância dessa anedota como uma antevisão da enciclopédia de ou em Cage, da enciclopédia numa gaiola superpovoada de pássaros felizes e/ou infelizes, mas ruidosos (espero ainda voltar a falar desses pássaros, ou desses pássaros em Stanford, Califórnia, onde, me 1992, sete meses antes de sua morte, Cage proferiu a palestra “Overpopulation and Art”), destacarei dela dois ou três aspectos: o rádio,

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o piano e o som ensurdecedor, o ruído. Vejamos a composição Imaginary Landscape No.4, de 1951, que requer, para ser executada, 12 aparelhos de rádios, ligados simultaneamente e manipulados cada um por duas pessoas (a dinâmica é rigorosamente controlada), aparelhos que (imagino) sejam capazes de falar, cantar, orar, emitir ruídos, como doze apóstolos, doze discípulos, embora, como já foi observado por James Pritchett, o compositor norte-americano não buscasse, nessa composição em especial, um efeito bombástico, pois inseriu nela também o silêncio, a claridade, a porosidade e, por conta disso, acabou optando por criar uma textura fina, delicada, como se, às vezes, as estações de rádio, ou algumas delas, não estivessem mais no ar. Quando a composição estreou, nos EUA, era tarde da noite e muitas estações estavam efetivamente fora do ar. Uma composição para surdos que ouvem bem (como o é, aliás, a célebre peça para piano mudo, intitulada “4’ 33’’”), mas sobretudo uma composição que, por causa do número doze, bastante mítico, tem inegavelmente algo de religioso. Por trás dessa composição poderia estar a cena descrita acima, a da avó quase surda que ouve no rádio a voz de Deus, a ruidosa voz de Deus, segundo Joyce; mas diria ainda que a própria composição em si poderia ser o cerne da enciclopédia cagiana, a enciclopédia de 40 alturas de voz.

Citarei outra realização do mesmo gênero, mas que é, no entanto, um desdobramento bem posterior: a performance musical que o compositor denominou de musicircus. Vejamos do que se trata: é um evento democrático, relativamente anárquico., já que pressupõe a idéia de processo indeterminado, em inglês, indeterminate process. Durante três horas, na Stanford University, ouviu-se/tocou-se simultaneamente o máximo de música que se pôde executar, naquele momento e naquele espaço, por quem o quis fazer. Os outros, que não eram músicos ou que, por alguma razão, não quiseram tocar ou cantar, apenas ouviram/viram o extraordinário concerto. Não foi preciso pagar para entrar, e nada se recebeu para tocar. O resultado musical, almejado por Cage, que teve obras suas executadas nesse evento, ou nesse carnaval, segundo consta, deveria ser “Alto e suave. Sério e popular. Jovem e velho.” Esse grandioso evento, ao qual compareceram coros, corais, todos eles pássaros de uma mesma gaiola, esse evento, o circus -- que também foi denominado pelo compositor de “Campus Full of Music” -- é, certamente, um tipo de enciclopédia em 40 ou mais alturas de voz. A possível voz do Senhor, segundo Cage.

Se entrarmos no universo escrito de John Cage, onde, entretanto, o escrito é relativo, já que, no seu caso, todo escrito pede, e às vezes isso está dito explicitamente no prefácio, para ser lido em voz alta, veremos que os poemas e as demais produções do autor não se reduzem ao verbal num sentido estrito. Certas marcas em seus textos, marcas que já estavam, aliás, ou que reconhecemos claramente em textos anteriores, como num poema de Emily Dickinson, por exemplo, breve porém sobrecarregado de travessões e sobretudo de itálicos e de aspas, ou no

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grande poema de Mallarmé, que Cage efetivamente leu com proveito, O Lance de dados, essas marcas, ou essa cena tipográfica da modernidade, que, no seu palco, incorpora tanto o diminuto quanto o desmesurado, em termos de escritura, enfim, essa visualidade excessiva, composta de grandes e pequenas letras, itálicos, negrito, aspas etc., sugerem a voz, pedem a leitura oral. Mas não se trata apenas disso. À pergunta: “Why, if God is good, is there evil in the world?”, conforme conta o compositor e poeta norte-americano, a resposta do sábio indiano foi uma resposta literária, para dizer o mínimo: “To thicken the plot”. O aparato retórico de Cage tem igualmente, poderíamos concluir, uma função estético-religiosa, e serve também “To thicken the plot”, conferindo-lhe uma imagem complexa e de grande alcance, à semelhança do que ocorre no poema de Mallarmé, uma partitura em que o naufrágio e a constelação estão sobrepostos, um refletindo o outro.

Mas como enriquecer o “plot”? A resposta está num outro slogan estético do nosso autor músico: “Coexistance of dissimilar; multiplicity; plurality of centers”. Esse é o método anárquico da enciclopédia em Cage – a forma da enciclopédia é, aqui, como na enciclopédia tradicional, acentuada, visto que o conteúdo, no caso da escrita cagiana, tende à partitura e é, num outro nível, forma inesperada (anarquiza-se assim a escrita padrão das enciclopédias, que é uma fôrma); ou, no seu limite, o conteúdo tende a confundir-se com um conjunto caótico de traços e de sobre-impressões que anunciam uma voz, um canto – os sublinhados, os negritos, os itálicos, enfim, esses artifícios tradicionais da ênfase, quando aparecem nos “diários” de Cage, usam as palavras e não o contrário. Como em português, ao que me consta, só foi traduzido um livro de Cage, que em nossa língua recebeu o título De segunda a um ano, convido o leitor a verificar isso em suas páginas, em algumas de suas páginas, mais especificamente naqueles intituladas “Diário: como melhorar o mundo (você só tornará as coisas piores)”.

Um dos slogans da estética de Cage diz, em Themes & Variations, algo que adotarei como conclusão provisória: “Process instead of objet”, ou, numa adaptação ou tradução aos termos desta leitura, o processo enciclopédico em lugar do objeto enciclopédico. O processo, para Cage, não tem começo, meio e fim. Se aceitarmos essa noção de processo enciclopédico, como um fazer infinito, sem limites, certas distinções, como escrever um “diário” ou uma “enciclopédia”, só continuarão válidas num outro nível, o do objeto, não o do processo.

(junho de 2006)

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