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Este texto foi publicado no site Jus Navigandi no endereço http://jus.com.br/artigos/10290 Para ver outras publicações como esta, acesse http://jus.com.br A etiqueta do crime considerações sobre o "labelling approach" Sandro César Sell Publicado em 08/2007. Elaborado em 08/2007. RECEITA INDIGESTA Os criminosos são, em grande medida, uma invenção do sistema de repressão penal; ao contrário do que pensa o senso comum, eles não são simples seres malvados, que andavam livres sobre a terra até que o Direito os descobriu e que, desde então, tenta, por meio das penas, neutralizálos. Não, os criminosos não são produtos de descobertas, mas sim entes inventados pela lógica distorcida do sistema penal vigente. Para quem foi embalado pelo modelo etiológico – aquele do criminoso enquanto ser anormal as afirmações acima podem parecer tão estranhas quanto acusar o sistema de saúde pública de ter criado os doentes, e é por isso que a primeira impressão que se costuma ter diante da abordagem criminológica que as subscreve, o labelling approach, é a de estarmos diante de uma das muitas teorias da conspiração, aquelas paranóicas construções teóricas destinadas a apontar conluios maquiavélicos que dirigiriam, subrepticiamente, as instituições centrais de nossa sociedade, como o Direito e o Estado. O sistema penal inventar criminosos, onde já se viu... Mas antes de desenvolver uma antipatia irreversível pelo labelling approach, municiese de algumas informações que dão o que pensar. A primeira é a cifra oculta, ou seja, a constatação de que há muito mais condutas praticadas contra o direito criminal do que o sistema penal tem condições de investigar e processar. Isso significa que muitos cometem crimes, mas apenas alguns serão ditos criminosos (ninguém é criminoso até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, lembra?). A segunda: há, mesmo proporcionalmente, muito mais pobres nas cadeias do que membros de outras classes. Da primeira afirmação podemos concluir que muito mais gente mereceria ser chamada de criminosa em relação àquelas que efetivamente são. Da segunda, inferimos que, não podendo perseguir a todos, o sistema penal persegue prioritariamente os mais pobres. Somemse a isso contradições como a seguinte: se há tantas críticas ao sistema penal brasileiro, de que há excesso de recursos e procedimentos que inviabilizam, por exemplo, a prisão do político desonesto, por que os estratos mais marginalizados da população caem tão facilmente atrás das grades? Por que essas dificuldades que o jurista conformado diz ser "inerente ao processo" somem no andar debaixo? Mistério... Cifra oculta, dificuldade em criminalizar os ricos, excesso de pobres nas cadeias, esses são os ingredientes básicos da receita de como produzir criminosos. Reserve essas informações. E vamos em frente. São seus olhos Surgida nos EUA da década de 1960, a teoria do labelling approach, ou teoria do etiquetamento, sofreu uma forte influência do interacionismo simbólico, corrente sociológica que sustenta que a realidade humana não é tanto feita de fatos, mas da interpretação que as pessoas coletivamente atribuem a esses fatos. Isso significa, entre outras coisas, que uma conduta só será tida como criminosa se os mecanismos de controle social estiverem dispostos a assim classificála. O que é um crime, então? Crime, pelos menos em seus efeitos sociais, não serão, como ensinava o dogmático penalista, todas as transgressões injustificadas à lei penal. Não, crimes são apenas as condutas que a sociedade e seus órgãos punitivos decidem perseguir como tal. Sem certo consenso de que determinada conduta suspeita deve ser averiguada, que determinados fatos e indícios devem ser convertidos em um processo penal, não haverá, em seus efeitos práticos, crime. Era isso que H. Becker, um dos principais expoentes da abordagem do etiquetamento, queria dizer quando sustentava que o desvio não está no ato cometido, nem tampouco naquele que o comete, mas que o desvio é a conseqüência visível da reação social a um dado comportamento. Ser desviante, ou criminoso, é, assim, o resultado de um etiquetamento social, e não o corolário lógico de uma conduta praticada. É possível, como bem sabemos, infringir as normas penais sem que se seja criminalizado. Pensese, sobretudo, nas milhares de condutas presumivelmente delituosas das elites brasileiras, não investigadas por falta de "vontade" das autoridades competentes. Também não é incomum haver processos de criminalização sem que haja certeza acerca da autoria da conduta típica – pense nas investigações apressadas, nas exposições abusivas da imprensa, e nos processos judiciais mal conduzidos contra suspeitos miseráveis. Não, o crime não é algo que se faz, mas uma determinada resposta social a um algo supostamente feito.

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A Etiqueta do Crime

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  • 01/06/2015 Aetiquetadocrime:JusNavigandi

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    Aetiquetadocrime

    consideraessobreo"labellingapproach"

    SandroCsarSell

    Publicadoem08/2007.Elaboradoem08/2007.

    RECEITAINDIGESTA

    Oscriminososso,emgrandemedida,uma invenodosistemade repressopenal ao contrriodoquepensao sensocomum,elesnososimplesseresmalvados,queandavamlivressobreaterraatqueoDireitoosdescobriueque,desdeento, tenta, por meio das penas, neutralizlos. No, os criminosos no so produtos de descobertas, mas sim entesinventadospelalgicadistorcidado sistemapenalvigente.Paraquem foi embaladopelomodeloetiolgicoaqueledocriminoso enquanto ser anormal as afirmaes acimapodemparecer to estranhas quanto acusar o sistema de sadepblica de ter criado os doentes, e por isso que a primeira impresso que se costuma ter diante da abordagemcriminolgicaqueassubscreve,olabellingapproach,adeestarmosdiantedeumadasmuitasteoriasdaconspirao,aquelasparanicasconstruestericasdestinadasaapontarconluiosmaquiavlicosquedirigiriam,subrepticiamente,asinstituiescentraisdenossasociedade,comooDireitoeoEstado.Osistemapenalinventarcriminosos,ondejseviu...

    Masantesdedesenvolverumaantipatiairreversvelpelolabellingapproach,municiesedealgumasinformaesquedooquepensar.Aprimeiraacifraoculta,ouseja,aconstataodequehmuitomaiscondutaspraticadascontraodireitocriminaldoqueosistemapenaltemcondiesdeinvestigareprocessar.Issosignificaquemuitoscometemcrimes,masapenas alguns sero ditos criminosos (ningum criminoso at o trnsito em julgado da sentena penal condenatria,lembra?).Asegunda:h,mesmoproporcionalmente,muitomaispobresnascadeiasdoquemembrosdeoutrasclasses.Daprimeiraafirmaopodemosconcluirquemuitomaisgentemereceriaserchamadadecriminosaemrelaoquelasqueefetivamenteso.Dasegunda,inferimosque,nopodendoperseguiratodos,osistemapenalpersegueprioritariamenteosmaispobres.Somemsea issocontradiescomoaseguinte:seh tantascrticasaosistemapenalbrasileiro,dequehexcessoderecursoseprocedimentosqueinviabilizam,porexemplo,aprisodopolticodesonesto,porqueosestratosmaismarginalizadosdapopulaocaemtofacilmenteatrsdasgrades?Porqueessasdificuldadesqueojuristaconformadodizser"inerenteaoprocesso"somemnoandardebaixo?Mistrio...

    Cifraoculta,dificuldadeemcriminalizarosricos,excessodepobresnascadeias,essessoosingredientesbsicosdareceitadecomoproduzircriminosos.Reserveessasinformaes.Evamosemfrente.

    Soseusolhos

    Surgida nos EUA da dcada de 1960, a teoria do labelling approach, ou teoria do etiquetamento, sofreu uma forteinflunciadointeracionismosimblico,correntesociolgicaquesustentaquearealidadehumananotantofeitadefatos,mas da interpretao que as pessoas coletivamente atribuem a esses fatos. Isso significa, entre outras coisas, que umacondutassertidacomocriminosaseosmecanismosdecontrolesocialestiveremdispostosaassimclassificla.Oqueumcrime,ento?Crime,pelosmenosemseusefeitos sociais,nosero, comoensinavaodogmticopenalista, todas astransgressesinjustificadasleipenal.No,crimessoapenasascondutasqueasociedadeeseusrgospunitivosdecidemperseguircomotal.Semcertoconsensodequedeterminadacondutasuspeitadeveseraveriguada,quedeterminadosfatoseindciosdevemserconvertidosemumprocessopenal,nohaver,emseusefeitosprticos,crime.

    EraissoqueH.Becker,umdosprincipaisexpoentesdaabordagemdoetiquetamento,queriadizerquandosustentavaqueodesvionoestnoatocometido,nemtampouconaquelequeocomete,masqueodesvioaconseqnciavisveldareaosocialaumdadocomportamento.Serdesviante,oucriminoso,,assim,oresultadodeumetiquetamentosocial,enoocorolriolgico de uma conduta praticada. possvel, comobem sabemos, infringir as normaspenais semque se sejacriminalizado. Pensese, sobretudo, nas milhares de condutas presumivelmente delituosas das elites brasileiras, noinvestigadas por falta de "vontade" das autoridades competentes. Tambm no incomum haver processos decriminalizao sem que haja certeza acerca da autoria da conduta tpica pense nas investigaes apressadas, nasexposiesabusivasdaimprensa,enosprocessosjudiciaismalconduzidoscontrasuspeitosmiserveis.No,ocrimenoalgoquesefaz,masumadeterminadarespostasocialaumalgosupostamentefeito.

  • 01/06/2015 Aetiquetadocrime:JusNavigandi

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    Ocrime,portanto,noemergenaturalmenteapartirdeumacondutaproibidapraticadaporumagenteimputvel(modelodogmtico),nemresultadiretamentedeumacondutaproibidapraticadaporumserantisocial(modeloetiolgico),masoresultado de uma interpretao sobre que aquela conduta, vinda daquela pessoa,merece ser classificada como crime.Exemplificase. Imaginemosumamulherque tenta sairdeuma joalheria comumcaroenopagobraceletequandobarradapelosseguranas.Seessaaparentetentativadesubtraocoisaalheiamvel(art.155doCdigoPenal)sertomadacomo crime, sintoma compreensvel de cleptomania oumera distrao, vai depender menos dos detalhes da condutatentadadoquedoperfildaapontadainfratora.Atesedadistraocaibem,porexemplo,seasupostatentativafosserealizadaporumaclientehabitualdajoalheriaassimcomoatesedacleptomaniaseadequariaperfeitamenteseaacusadafosseumafamosaatrizdenovela.Jparaumaempregadadaloja,anicatese"compatvelcomarealidadedascoisas"adetentativadefurtopuroesimples.Acondutaamesma,aausnciadeprovastambm,soquevariar,nestecaso,soassuposiessocialmenteconsideradasadequadasaocaso.

    Crenaspresumidamentelgicas,masclaramenteideolgicasnaproteodosmaispoderososqueresolveroaquesto."Acreditamosserumsintomadecleptomania"dizemnotaodonodaloja"poisilgicocrerqueumapessoadeelevadaposiosocialiriaserebaixarapontodefurtarumajia".Eisaumadeclaraocoerentecomoimaginriopopulardequeofurtodelitoexclusivodepessoaspobres.Ora,seacleptomaniaumtranstornopsquico,suamanifestaonoseligaraofatodesepoderpagarounopelobracelete,mascompulsodetlosempagar.Assim,acondiodeserpobreourico,clinicamente,nodeveriaimportar.Ouessetranstornoexclusivodequemganhaacimadetantosmilhesporano?MesmooDSMIV(omanualdepsiquiatrianorteamericano)pareceinduziraessacrena,aocolocarqueofurtonacleptomaniacostumaserdeumbemdepoucovalormonetrio,relativamentespossesdeseupraticante.Masissosedeveorientaocorrente,abemdasociedade,dequeodiagnsticoparaacleptomaniadeveserresidual,sdevendoprevalecersenoformaisbemexplicadoporoutrotranstornodeconduta.Rasteiramente:seapessoanoprecisavadoquefurtou,ganhaforaatesedacleptomaniaseprecisava,deveserfurtomesmo.

    Polticosecorruptosdeelitedefendemsedamesmaforma:"Noprecisoroubar."Se,aolongodomundoe,particularmentenestepas, sseapropriassedosbens alheiosquemprecisasse, ouniversodas finanaspblicas seria esplendidamentesuperavitrio.Aocontrrio,setodososnecessitadospassassemaroubar,avidanumpasdetantosmiserveiscomooBrasilseriainsuportvel.Paraomalouparaobem,algicado"comosourico,noroubo"/"comosoupobre,roubo"noguardarelaocomosfatos:apenascomideologias.Edessaideologiaquesebeneficiaroasocialiteeaatrizparaexplicaremqueumbraceletenopago,emseupoder,nasadadaloja,spodeindicardistraoousintomaclnicofurtonunca.Masessamesmaideologiaselarofuturodaempregada,sobreaqualatesedadistrao,oudoena,servistacomoumaafrontainteligncia dos personagens que conduzem seu indiciamento criminal. Logo o delegado a lembrar que "no nasceuontem!".

    Entooqueumcriminoso?Criminosoaqueleaquem,porsuacondutaealgomais,asociedadeconseguiuatribuircomsucessoortulodecriminoso.PodeterhavidoacondutacontrriaaoDireitopenal,masapenascomesse"algomais"queseu praticante se tornar efetivamente criminoso. Em geral, esse algomais composto por uma espcie de ndice demarginalizaodosujeito:quantomaiorondicedemarginalizao,maioraprobabilidadedeeleserditocriminoso.Talndicecresceproporcionalmenteaonmerodeposiesestigmatizadasqueosujeitoacumula.Assim,seelenegro,pobre,desempregado,homossexual,deaspectolombrosianoeimigranteparaguaio,seundicedemarginalizaoseraltssimoe,qualquerdeslize,farcomquesejarotuladodemarginal.Emcompensao,seoindivduorico,turistanorteamericanoemfrias,casadoebranco,seundicedemarginalizaosertendentezero.Ortulodevtimalhecairfcil,masodemarginalscomumespetculoinvestigativosemprecedentes.

    Nooquesefaz,masoquese

    Contrariandoosmanuaisacadmicos,olabellingapproachsustentaquemaisfcilsertidocomocriminosopeloquesedoquepeloquesefaz.Essaafirmaoganhaforaquandonoslembramosdacifraoculta,nomenclaturaquedestacaqueascondutasdelituosasquechegamavirarprocessosjudiciaisconstituemapenasapontadoicebergdototaldecondutasilcitasefetivamente existentes em uma sociedade. Se nem tudo que, pela leitura da lei, deveria ser tido como crime assim reconhecido pela prtica dos operadores do sistema penal, deve haver um critrio de seleo para decidir entre tantascondutas ilcitaspraticadasquaissero,de fato, tratadascomocrime.O labellingapproach sustentaque talcritrioondicedemarginalizaodosujeito,onmerodeestigmasqueelecarrega,aindaquenenhumdelespreciseserdenaturezacriminal.Nessesentido,osistemapenalnoteriaafunodecombaterocrime,masadeatribuirrtulosdecriminososaosjmarginalizados.

    Pensemosemduaspessoasviajandonumnibus.Escondidaentreaspoltronasdasduasencontraseumpacotecontendodrogailcita.Nosesabendoaqualdelaspertence,investigamseambas.Asduassedizeminocenteseosindcioscolhidosnosoesclarecedores.Investigasequemsoelas.Odadireitacontabilista,empregadodamesmaempresah10anos,paidefamlia,depaletegravata.Jodaesquerdaumsurfista,sustentadopelospais,comumpiercingnasobrancelha.Bastasaber em qual dos dois seria mais fcil acrescentar o rtulo de criminoso para saber quem ser mais enfaticamenteinvestigado. Um rtulo predispe ao outro. Surfista desocupado e traficante combinammuito mais facilmente do quecontabilista empregado e traficante (pelo tirocnio de alguns policiais, quem temmenos dinheiro para viver temmaisdinheiroparacomprardrogas).Naprtica,emsituaescomoessas,sabesequeoEstadoselembrar,defatoededireito,queseudeverprovaraeventualculpadocontabilistaantesdesairalardeandoqueachouoculpado.oquemandaalei.Noentanto,comumafreqnciaassustadora,diantedosurfistadesocupadoonusseinverter,cabendoaoestedemonstrarsuainocncia,trocandoseapresunodeinocnciadeterminadapelaleipelasregrasdapragmticarepressiva.

  • 01/06/2015 Aetiquetadocrime:JusNavigandi

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    Ortulodemarginalparecenoteradernciadiretapeledosindivduos.Paraaderir,necessrioquetais indivduosprimeirotenhamsidoseladoscomoutrosrtulosestigmatizantes,precisoqueseundicedemarginalizao sejaalto.assimqueoprocesso contra opolticodesonestoquase nunca concluir nada.As recorrentes alegaes de ausncia deprovas,decerceamentodedefesaeademoranaao,quelevarprescrio"semjulgamentodemrito",ofavoreceroantesqueortulodecriminosopossalheserimpingido.Jparainvestigar,processareencarcerarumindivduopobre,osistemarepressivorpidoequaseinfalivelmentecondenatrio.queabaseondefixarortulodemarginaljexistia:aprpriapobreza.Todosesperavamacondenaoeelaveio.Nenhumasurpresa.

    Ladeiraescorregadia

    Umestigmapredispeaooutro.comoumaladeiraescorregadia:umaveztendodescidooprimeirodegraudaexcluso(serpobre,desempregado,bicha,pretoouprostituta)precisotermuitocuidadoparanodescermaisoutroeoutro,atchegarao final do processo excludente, sintetizado no rtulo de criminoso. assim que comentrios aparentemente causaisexplicativossodadosnamdiaquandosedescobre,porexemplo,queoassassinoerahomossexual.Naleiturapopularhumcontinuumdotipo:homossexual,pervertido,criminoso.Jseesperava.Damesmaforma,tudopareceestaresclarecidoquandosedescobrenacasadoacusadodeassassinatoumacoleodefilmespornogrficosqueaautoridadeexibircomosefossederelevnciacrucialprovaquelhecabebuscar.Amentecozidaemfolhetinspoliciais,amide,segueumanefastalgicadotipo:gostoporpornografia=perverso=apredisposioassassina.Esseumexpedientequeencantaaplatia,vidaporcuriosidadeseaberraes,epermitedisfararaausnciadecompetnciaprobatriadoespetculo.

    Mas,bemverdade,queumestigmanolevaaoutroapenasporefeitodeumetiquetamentodesonesto.No,umestigmaefetivamentepodelevaraoutro,porquequantomaisestigmasalgumcarregamenoscustosolheserassumiroutros.Bastalembrarque todoestigmaumadepreciaonovalorsocialdealgum.Assim,quantomaisestigmasessealgumtivermenos socialmente ele valer, tendo pouco a perder ao se dispor a assumir mais um rtulo depreciativo. Um sujeitomarginalizado mais facilmente recrutado para os modos de vida ilcitos. Depois de ter perdido o lar e a escola, relativamentepoucocustosoaoadolescenteembrenharsenomundodasinfraes,quersejaassumindoaculpadeoutrem,quersejaefetivamentetomandopartenaaocriminosa.Apartirdomomentoemquedesseadolescentej"noseesperavagrandecoisa",abriuseoconviteparaquedeleseesperassemaspiorescoisas.Cadaestigmaaumentaavulnerabilidadedosujeitosdemandasdomundodocrime.

    Aquemjestnoinfernoinferealgicapopularcustapoucodarumabraonodiabo.Sejnosetemmuitoaperder,podese, com poucos receios, arriscar perder tudo, pois, em se tratando de dignidade, o valor de cada um de seuscomponentesdecrescemedidaquedecresceseutodo.precisoterahonrageralintactaparaquesepossaserdesonradoemaspectosespecficos.MesmooDireitocivilsegueessacrena.Assim,tradicionalmentesermaiorovalordaindenizaoestticadeumdanoproduzidocontraumrostointacto,bonito, semcicatrizes,doqueseomesmodano fosseproduzidocontraumrostojmarcadoedeformado.Algicadareparaocivil,nestecaso,bblica:muitoserdadoaquemmuitojtem(outeve).Emformadeexemplo,quemnopossuiosdentesincisivosnodeversofrertantocomaperdadeumdoscaninossofrimentoconsideradoterrvelparaaquelequetemumadentioperfeita.Paraasquestesdeestigma,essecritriodereparaocivilpareceaplicvel:quantomenosrespeitosocialsepossuimenoscustosoperderesseresduodedignidade.

    A sociedade cria omarginalizado de forma a deixlo a apenas um passo damarginalidade. assim que o dito crimeorganizadocomandadoporpessoasnemumpoucoexcludaspoderecrutartofacilmentepobres,negrosemiserveisparafazerapartesujaearriscadadotrfico.Recrutamsepessoascujadinmicadasobrevivnciadesceuaonveldo"seforpreso, azar" ou "semorrer,morreu". Pessoas que j no tm o que perder. Tire de uma pessoa uma boa parte de suadignidadesocialeelafacilmenteseencarregardeacabarcomoresto,poisquantomaisbaixaasuaposionasociedade,menorsosuasalternativasdevidahonrosaemenoressotambmoscustossimblicosdesuaentradanomundodocrime.Umaexclusoabrecaminhoparaaoutraeassimsucessivamente.

    Emboraumestigmapossafacilitaraentradaemoutro, issonoautorizaosacusadorespblicosafazeremumadeduosimplista de que quem j tem pouco a perder foi o responsvel pelo crime de autoria incerta. Seria inverter causa econseqncia.Oraaprostituta,porexemplo,tempoucoaperderacrescentandoaoseumtieraescriminosas(comoopequeno trfico de entorpecentes) justamente porque, mesmo antes de entrar no crime, j era tratada como se fossecriminosa.Seumapessoanoperdesseadignidadeporserprostituta,nolhecairiafacilmenteortulodecriminosadiantedeumaacusaomal fundamentada. justamente porque a sociedade faz comque um estigma leve a outro que elesefetivamenteseguemessalgica.Numexemploinverso,omdicoviciadoemmorfina,quetendoacessofcildroga,ehorriosdeplantoparadisfarar seu vcio, ser capazde conservar suadignidadedepessoa honesta e produtiva, nosofrendoosefeitosdamarginalizao.viciadoapenas,sendorazovelsuporquerepudiariapropostascriminosascomotraficar,furtar,matarcomoqualqueroutrapessoa.Algicano,portanto,adequeumacondutailcitaleveaoutra,masadequeumasituaodemarginalizaosejaumefetivoconviteaqueseabraceoutra.

    Oqueservecomoexplicaosociolgicadaentradafacilitadadosmarginalizadosnomundocrime,noservecomorecursosimplificadordosprocedimentosdeinvestigaocriminal.Aconclusodeumainvestigaocriminalnopodeseapoiaremmximasdo tipo: "Dentreosacusados,criminosoaquelequepossuiromaior ndicedemarginalizao."Assim, umabsurdoquecertosdelegadosdiantedeumamorteviolentaeincertanumafavela,semsaberquemavtimaeseuautor,semnadasaberdaquelecrimeespecificamente,digamcomestpidaconvicoaoreprterdaTV:"provvelenvolvimentocomotrficodedrogas",comoseamortedosquevivememfavelasnopudessedecorrerdemotivospassionais,vingana

  • 01/06/2015 Aetiquetadocrime:JusNavigandi

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    pessoal,motivosfteis,crimespatrimoniais,familiaresetc.paraaconteceralisemorreapenasporaodotrfico.Aplatiasocialnovamentegostaeoespetculopodeserconduzidodequalquerforma,poisquemseimportacomtodesqualificadomorto?Agora,diantedamortedopolticoqueiadepornumprocessocriminalnodiaseguinte,alardeandoqueentregariamuitosnomesdepessoasimportantes,omesmodelegadoseriapateticamentecauteloso:"Todasashipteses,inclusivedecrimepormotivaespolticas,estosendoaveriguadas".que,particularmentenoBrasil,ricospodemmorrerdemuitasformaspobresapenasdaformaquemenostrabalhoderinvestigao.

    Snopagaquempode

    Nos desdobramentos tericos do labelling approach, o que chamamos de imputao criminosa seria, na verdade, oresultadodeduasdistores,sintetizadassobosugestivonomede"processodecriminalizao".Naprimeiradistoro,hachamada criminalizao primria, feita, sobretudo, pelo legislador penal, que consiste na eleio de condutas a seremconsideradascriminosasnopelocritriododanosocialqueprovocam,maspelaorigemhabitualdosquepraticamtaiscondutas.Umexemploparadigmticonestesentidoexpressopeloartigo176doCdigoPenalbrasileiroque incriminaaqueleque,dentreoutrascondutas,tomarefeioemrestaurante"semdisporderecursosparaefetuaropagamento".Sim,vocleucerto,shcrimesequemtomouarefeionorestaurantenotinhadinheiroparapagla,masseeledispunhaderecursosparatalesimplesmentepreferiunoefetuaropagamentonopoderserincriminado.Oobjetivodessaleino,comoentoficabvio,evitardanosaopatrimnioalheio,nemconvenceraspessoasaquepaguemarefeiotomada,masevitarqueosmaispobrespossamse"aproveitar"desuapobreza.Ajurisprudnciaconfirma:"Paraconfigurarseocrime,necessrioqueoagentefaaarefeiosemterdinheiroparapaglasetemrecursos,masnopaga,comoacontecenospindurasestudantis,oilcitoscivilenopenal"(TACrSP,Julgados90/83).

    Aocriarleis,portanto,humprocessodecriminalizaoprimria,resultantedaintolerncialegislativacomacondutadosmaispobres.Quandofalamosdecriminalizaoprimria,falamos,emsntese,deduascoisas:

    a)Ocrimenoumarealidadenatural,descobertaedeclaradapeloDireito,masumainvenodolegislador,algocrimenonecessariamenteporquerepresenteumacondutasocialmenteintolervel,masporqueoslegisladoresdesejaramqueassimfosseb)E essa inveno segue critrios de preferncia legislativa, cujos balizamentos no costumam respeitar princpios derazoabilidadeouproporcionalidade,gerandoleispenaisdurssimascontraascondutasdosmaispobreserarefeitasemsetratandodecrimestpicosdosestratossociaiselevados.

    Na segunda distoro, chamada de criminalizao secundria, entram em ao os rgos de controle social (polcia,judicirio,imprensaetc.)que,aoinvestigaremprioritariamenteosportadoresdemaiorndicedemarginalizao,acharopor bvioummaiornmerode condutas criminosas entre eles. Semais vezes os pobres so tidos como suspeitos, secondiescomopossuirempregoeresidnciafixainfluenciamnosrumosdoprocessopenal,semuitosdosadvogadosquedefendemosmaispobreschegamtardesaudinciasedemonstrampoucointeressenessascausas,senoterummodelofamiliaridnticoaodasclassesdeondeprovmosjuzeseseusauxiliaresfacilita,sobremaneira,ortulode"provenientedefamliadesestruturada",seterumpassadotortuosocapazdesupriraausnciadeprovasnapresenteacusao,ento,nohoutrasada:osmarginalizadosserofacilmenteconvertidosemmarginais.Aetiquetapenallhesaderirpele,edelajamaissair.

    Emsntese,olabellingapproachatuoucomoumdespertadorinconvenientenosonodopenalistadogmtico,quejuravaqueoDireitopenalnadamaisfaziadoquenosprotegerdepessoasessencialmentems.Aocontrrio,olabellingveioparamostrarquenossotipohabitualdecriminosopobreeencarceradorevelamuitopoucosobreaestruturadomalemsi,emuito,masmuitomesmo,sobreaideologiadesigualitriadenossasociedade.

    Bibliografia:

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  • 01/06/2015 Aetiquetadocrime:JusNavigandi

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    Autor

    SandroCsarSell

    advogado em Florianpolis (SC), mestre e doutorando em Direito pelaUniversidadeFederaldeSantaCatarina,professordeCriminologiaeDireitoPenaldaUNIVALIeCESUSC

    Informaessobreotexto

    Comocitarestetexto(NBR6023:2002ABNT)

    SELL, Sandro Csar. A etiqueta do crime:. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1507, 17 ago.2007.Disponvelem:.Acessoem:1jun.2015.