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5 A FESTA DE NATAL DO CRNORTE que já jogou no Benfica e por isso é como se fosse por- tuguês. E, com um bocado de sorte, até mesmo o Pepe, um brasileiro que é português, era capaz de molhar a sopa. Claro que, por “molhar a sopa”, não quero dizer “dar umas sarrafadas”, que, lá isso, ele dá sempre, mas sim a meter um golito ou dois. A verdade é que, quando os muitos presentes con- vivas se sentavam à mesa, daqui e dali saíam já alguns murmúrios de desconforto: e porque isto e porque aquilo, e que a organização deveria ter estado atenta a estes pormenores e fazer muito melhor, que diabo, ecrã até havia, era só uma ligaçãozita. Já se murmurava de tudo, até da comida que nem sequer servida estava. Por isso, era ver toda a gente, de Iphone na mão, a seguir as peripécias do jogo. Com um golo aos 20 segun- dos, o Real Madrid ia dar mesmo uma monumental cabazada, o Mourinho era, sem dúvida, o melhor do mundo e o Messi, ao lado do Cristiano Ronaldo, não passava de um artista cujo valor era igual à sua medida, isto é, muito baixo.

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A FESTA DE NATAL DO CRNORTE

que já jogou no Benfica e por isso é como se fosse por-

tuguês. E, com um bocado de sorte, até mesmo o Pepe,

um brasileiro que é português, era capaz de molhar a

sopa. Claro que, por “molhar a sopa”, não quero dizer

“dar umas sarrafadas”, que, lá isso, ele dá sempre, mas

sim a meter um golito ou dois.

A verdade é que, quando os muitos presentes con-

vivas se sentavam à mesa, daqui e dali saíam já alguns

murmúrios de desconforto: e porque isto e porque

aquilo, e que a organização deveria ter estado atenta a

estes pormenores e fazer muito melhor, que diabo, ecrã

até havia, era só uma ligaçãozita. Já se murmurava de

tudo, até da comida que nem sequer servida estava.

Por isso, era ver toda a gente, de Iphone na mão, a

seguir as peripécias do jogo. Com um golo aos 20 segun-

dos, o Real Madrid ia dar mesmo uma monumental

cabazada, o Mourinho era, sem dúvida, o melhor do

mundo e o Messi, ao lado do Cristiano Ronaldo, não

passava de um artista cujo valor era igual à sua medida,

isto é, muito baixo.

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A FESTA DE NATAL DO CRNORTE

Entretanto, como ninguém estava ali para escrever

um romance de tese ou compor um quarteto de cordas,

toda a gente foi fechando a boca para os murmúrios e a

foi abrindo para a comida, atirando-se a ela como leão

esfaimado a gazela acabada de caçar. Já os vinhos brancos

e tintos, maduros ou verdes, corriam alegremente pelas

gargantas dos convivas e se iniciava um louvor generali-

zado a toda a organização, como sempre impecável, que,

previdentemente, não tinha anuído a inaceitáveis pedidos

para montar ecrãs na sala por causa do jogo, e assim é

que estava bem, não tínhamos que estar ali a ver jogos de

futebol, mas antes em alegre convívio de Natal, cheio de

sininhos, criancinhas e balões.

Por falar em balões, havia também quem mordesse,

que raios partam os garotos que não sabem fazer mais

nada que não seja arrebentar balões, já não se pode estar

descansado numa festa com uma barulheira destas… A

estes desabafos, se vivo fosse e lá estivesse, teria respon-

deria Augusto Gil, “Mas as crianças Senhor/Porque lhes

dais tanta dor?” e não deixaria de exclamar Cristo (que

não é o Pai Natal porque não chegou a velho, mas sim o

menino Jesus já homem feito), “Deixai vir a mim as crian-

cinhas!”.

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A FESTA DE NATAL DO CRNORTE

Mas não estavam, e o pior é que, entretanto, o Barce-

lona vinha por ali a baixo e toca de meter golos: discreta-

mente iam-se os Iphones escapando para os bolsos. Que raio

de equipa o Real Madrid! Vê-se logo que não joga nada! Só

portugueses e ainda por cima reforçados com espanhóis o

que é que era de esperar? Nem era preciso o Messi marcar,

bastavam o Alexis Sanchez, o Xavi e o Fabregas para arru-

mar uma equipa que não sabe o que é jogar futebol! Então

aquele Cristiano Ronaldo é sempre a mesma coisa. Aquilo é

só gajas e manias. É grande, mas não é grande coisa. Ao

cabo e ao resto, ao lado do Messi não passa de um aprendiz!

Mas, à medida que avançavam novos pratos e se des-

pejavam os copos de brancos e tintos (água só para as crian-

ças ou para os adultos tomarem os comprimidos), o futebol

esvaiu-se: afinal, o que é que nos interessam a nós uns

ranhosos de um clubes espanhóis que terminam sempre os

jogos à porrada. Espanhóis, queremos é caçá-los cá, em

Aljubarrota! e as espanholas pelas praias! Aí sim, é que

fazíamos uma grande razia nelas todas!

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A FESTA DE NATAL DO CRNORTE

Enfim, se não tínhamos os espanhóis por aqui, em

comparação tínhamos os nossos presidentes que, a bem

dizer, não deverão ser menos que todos os espanhóis jun-

tos. Tenho para mim que, na nossa Câmara, há mais presi-

dentes do que grãos de areia na praia da Nazaré. Atente só o

curioso leitor: Ele é o presidente da Câmara, ele é o presi-

dente do Conselho Superior e o Presidente Regional do Nor-

te e do Sul e o da SRD Norte e o da SRD Sul e o presidente do

Conselho de Especialidade e o presidente da Delegação de

Especialidade Norte e o da do Sul e também o presidente da

Assembleia Geral e o da Assembleia Regional do Norte e o

da do Sul, não contando com os presidentes de círculo, que

são mais umas dezenas, para além de todos os outros que,

não sendo presidentes, ainda querem mandar mais do que

eles, em suma, são tantos, tantos, que estou em crer que só

mesmo eu próprio e mais outros dois ou três colegas não

somos presidentes de nada nesta Câmara. Nem queremos,

valha a verdade.

Muitos deles lá estavam neste jantar, dando-nos a ale-

gria da sua gratuita e gentil presença. Pessoalmente, con-

fesso, estava um pouco receoso de enfrentá-los. Mas por-

quê? – perguntar-se-á o amável leitor. - Será que são assim

tão maus os nossos presidentes?

E então eu iria lá pensar uma enormidade dessas? O

problema é que, segundo ouvira, parecia ter-lhes desagra-

dado uma certa crónica, que escrevi sobre o Congresso, em

que lhes tecia tais louvores e os elevava a tal nível que, apa-

rentemente, teriam ficado incomodados. Pois, afinal, tal

não correspondia à realidade. Duas ou três palavras troca-

das e tudo estava explicado. – Então – perguntará, de novo,

o perplexo leitor – nem levou na cabeça, nem nada?

De modo nenhum, excelente e amigo leitor! Antes pelo

contrário: alguns sorrisos e boas palavras! Afinal já se esta-

va naquele inefável espírito natalício, com sons celestiais e

música barroca, anjinhos no ar, os corações cheios de boa

vontade e os espíritos plenos de alegria. Era previsível, eu

deveria sabê-lo perfeitamente, que nestas circunstâncias e

com a ajuda de um bom jantar, tudo se arranjaria.

Depois das excelentes sobremesas que comemos e

das muito boas funcionarias que ouvimos cantar (por esta

mesma ordem) dei uma volta pelas mesas e tive o prazer de

encontrar muitos dos meus colegas e grandes amigos. As

palavras de incentivo que me deram ajudar-me-ão sempre ao

longo do resto da minha vida. Em resposta, seleccionei uma

das muitas famílias amigas ali presentes, a família Mota Fer-

reira, subi ao palco, meti a mão no saco e retirei o prémio

para a Maria Helena. Para que vejam que este humilde cronis-

ta também é capaz, de vez em quando, de tirar uma habilida-

de da cartola, ora bem!...

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