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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE DESENVOLVIMENTO REGIONAL Território, Capital Social e Desenvolvimento Regional Sessão temática 1: Territórios divididos: Heteronomia e Capital Social A FORMAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL EM SANTA CRUZ DO SUL/RS A PARTIR DOS PADRÕES MORFOLÓGICOS DE ORGANIZAÇÃO ESPACIAL André de Souza Silva 1 Robriane Lara 2 Resumo Investigar de que modo se estruturam os diferentes níveis de organização sócio espacial na cidade de Santa Cruz do Sul RS é o escopo desta pesquisa. Neste sentido, assumese que a configuração espacial urbana condicione parte do comportamento social devido à autonomia do ambiente construído em relação às inúmeras influências do meio e constância ao longo do tempo. Fundamentos conceituais e teóricos inerentes à Sintaxe Espacial (Hillier e Hanson, 1984) são utilizados para modelar, mensurar e simular o sistema de espaços públicos da cidade e sua relação com a solidariedade orgânica e mecânica postulada por Durkheim (1973). Os resultados alcançados indicam a existência de interrelação entre a estrutura espacial urbana e o modo como as pessoas se apropriam conjuntamente dos espaços públicos. A possibilidade de capturar a essência da organização sócioespacial, bem como as abordagens e contribuições de diferentes áreas do conhecimento, é ainda uma questão em aberto para a construção do conceito de Capital Social. Deste modo, fazse necessário suscitar novos questionamentos sobre a possibilidade do Capital Social ter uma abordagem mais sistêmica e adotar conceitos multidisciplinares, sobretudo as contribuições dos estudos configuracionais urbanos. 1 Arquiteto e Urbanista (UNISINOS), Doutorando e Mestre em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR/UFRGS); Professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URISantiago). Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Programa de PósGraduação em Planejamento Urbano e Regional – PROPUR Rua Sarmento Leite, 320 – 5º andar – sala 510 – Centro – CEP 90050170 – Porto Alegre – RS. Email: [email protected] 2 Arquiteta e Urbanista (UNISINOS); Mestranda em Desenvolvimento Regional (PPGDR/UNISC). Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Programa de PósGraduação em Desenvolvimento Regional – Mestrado e Doutorado. Av. Independência, 2293 – Bairro Universitário – CEP 96815900 – Santa Cruz do Sul – RS. Email: [email protected]

A FORMAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL EM SANTA CRUZ DO … · organização sócioespacial, bem como as abordagens e contribuições de diferentes áreas do conhecimento, é ainda uma questão

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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE DESENVOLVIMENTO REGIONAL Território, Capital Social e Desenvolvimento Regional

Sessão temática 1: Territórios divididos: Heteronomia e Capital Social

A FORMAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL EM SANTA CRUZ DO SUL/RS

A PARTIR DOS PADRÕES MORFOLÓGICOS DE

ORGANIZAÇÃO ESPACIAL André de Souza Silva 1

Robriane Lara 2

Resumo

Investigar de que modo se estruturam os diferentes níveis de organização sócio­

espacial na cidade de Santa Cruz do Sul ­RS é o escopo desta pesquisa. Neste

sentido, assume­se que a configuração espacial urbana condicione parte do

comportamento social devido à autonomia do ambiente construído em relação às

inúmeras influências do meio e constância ao longo do tempo. Fundamentos

conceituais e teóricos inerentes à Sintaxe Espacial (Hillier e Hanson, 1984) são

utilizados para modelar, mensurar e simular o sistema de espaços públicos da

cidade e sua relação com a solidariedade orgânica e mecânica postulada por

Durkheim (1973). Os resultados alcançados indicam a existência de inter­relação

entre a estrutura espacial urbana e o modo como as pessoas se apropriam

conjuntamente dos espaços públicos. A possibilidade de capturar a essência da

organização sócio­espacial, bem como as abordagens e contribuições de diferentes

áreas do conhecimento, é ainda uma questão em aberto para a construção do

conceito de Capital Social. Deste modo, faz­se necessário suscitar novos

questionamentos sobre a possibilidade do Capital Social ter uma abordagem mais

sistêmica e adotar conceitos multidisciplinares, sobretudo as contribuições dos

estudos configuracionais urbanos.

1 Arquiteto e Urbanista (UNISINOS), Doutorando e Mestre em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR/UFRGS); Professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI­Santiago). Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Programa de Pós­Graduação em Planejamento Urbano e Regional – PROPUR Rua Sarmento Leite, 320 – 5º andar – sala 510 – Centro – CEP 90050­170 – Porto Alegre – RS. E­mail: [email protected]

2 Arquiteta e Urbanista (UNISINOS); Mestranda em Desenvolvimento Regional (PPGDR/UNISC). Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Programa de Pós­Graduação em Desenvolvimento Regional – Mestrado e Doutorado. Av. Independência, 2293 – Bairro Universitário – CEP 96815­900 – Santa Cruz do Sul – RS. E­mail: [email protected]

2

1. A inter­relação da lógica social do espaço e a formação do

Capital Social: fundamentação conceitual e teórica

Propõe­se um recorte específico do estudo dos padrões de organização social tão­

somente por meio da análise da configuração espacial urbana, centrando­se nos

fundamentos conceituais e teóricos inerentes à Sintaxe Espacial em consonância

com a formação do Capital Social na cidade de Santa Cruz do Sul, tomada como

estudo de caso. Isto significa que o enfoque adotado irá demonstrar em que medida

a integração sócio­espacial, entendida como a base física da formação do Capital

Social, pode ser influenciada direta ou indiretamente pela configuração espacial da

forma urbana. Cabe salientar que o modo pelo qual o enfoque conceitual e teórico

pode vir a contribuir para responder a questão proposta é uma decorrência natural

da escolha do instrumental metodológico. Neste sentido, será abordado detidamente

o fenômeno urbano da formação do Capital Social sob o ponto de vista

configuracional, não se propondo a incursões sobre outros condicionantes (culturais,

econômicos etc) que também têm seu peso junto à problemática.

Embora se pretenda examinar a dimensão físico­espacial urbana da formação de

padrões de organização espacial, faz­se necessário um breve apanhado sobre o

conceito de Capital Social adotado entre diferentes autores. De acordo com Baquero

(2003) a noção de Capital Social ainda não é um conceito unânime, há mais

divergências do que consensos em relação ao papel que o Capital Social tem (ou

não) no fortalecimento democrático. Níveis elevados de Capital Social geram normas

de cooperação e confiança, reduzem os custos de transação e atenuam a

intensidade de conflitos. Putnam (1997) ressalta que pesquisas empíricas têm

confirmado que as normas e redes de engajamento cívico (Capital Social) podem

melhorar a educação, diminuir a pobreza, controlar o crime, propiciar o

desenvolvimento econômico, promover melhores governos e até reduzir os índices

de mortalidade. Em estudo sobre a democracia italiana, Putnam (1996) apresentou

que a qualidade da governança é determinada pelo nível de Capital Social dentro de

uma região. Na mesma linha de análise, Fukuyama (1995) sustenta que a habilidade

de cooperar socialmente depende de hábitos, tradições e normas anteriores, as

quais servem para estruturar o mercado. Para esses autores é mais provável que

uma economia de mercado tenha sucesso em virtude dos estoques de Capital

Social. Se esse Capital Social á abundante, então tanto o mercado como a

3

democracia prosperarão e o mercado pode, de fato, incidir no desenvolvimento de

uma sociabilidade que reforça as instituições democráticas. Para Coleman (1990)

Capital Social é gerado como um corolário de envolvimento dos indivívuos em

atividades que exigem sociabilidade. Os laços sociais e as normas podem ajudar as

pessoas a se tornar mais educadas, encontrar empregos e acumular capital. Com

isto Coleman reconhece, através de seus estudos, a importância dos laços sociais e

culturais.

Partindo do princípio de que cada sociedade requer diferentes tipos de coesão social,

Durkheim (1973) distinguiu dois princípios de solidariedade social: a solidariedade orgânica, baseada na interdependência por diferenças sociais de um grupo; e a solidariedade mecânica, baseada na integração por semelhanças sociais de um grupo. A solidariedade orgânica requer um espaço integrado e denso, enquanto que a solidariedade mecânica requer um espaço segregado e disperso. Durkheim (1973), em sentido estrito, localizou a causa das diferentes variáveis de solidariedades no

espaço, i. e., a dependência recíproca dos vínculos sociais. Em síntese, o espaço

estabelece modos de solidariedade social e estes são em troca um produto da

estrutura da sociedade.

Com base nos estudos de Durkheim (1973), Hillier e Hanson (1984) sustentam que

cada sociedade possui grupos espaciais de pessoas que vivem e se locomovem em grande proximidade umas com as outras, e grupos transespaciais cujo agrupamento de pessoas não depende da proximidade espacial, embora possa coincidir com um grupo espacial. Hillier e Hanson (1984: 26­52) consideram que as sociedades se organizam em espaços com um maior ou menor grau de agregação e separação,

gerando padrões de movimentos e encontros. Estes espaços são compostos pelo

ambiente construído urbano, no qual cada parcela da sociedade assume um padrão

reconhecível de organização espacial.

Diante do exposto acima, se verifica o quanto a base da teoria da Sintaxe Espacial

possui convergência com os fundamentos de Capital Social. Isto porque, seja qual

for o meio de formação de Capital Social, desde as relações familiares, trabalho,

atividades culturais, associações comunitárias etc, este depende, mesmo que

indiretamente, de relações físicas espaciais para ocorrer. Como a sociedade

necessita de um suporte espacial para existir, a forma construída urbana pode ser

um dos condicionantes que tende a influenciar a aglomeração de pessoas em

4

determinadas áreas da cidade, a concentração de atividades e a continuidade de

usos dos espaços, em última instância, a formação do Capital Social propriamente

dito.

É uma ilusão imaginar que a sociedade exista abstratamente, uma vez que as

relações sociais são espaciais. A sociedade é o próprio espaço, ou seja, parte

integrante da cidade. Não há uma estratificação social e outra físico­espacial. Um

dos efeitos da organização espacial é a formação do Capital Social. Isto significa

que o ambiente construído é um processo cumulativo cultural que ao longo dos

tempos, revela a história e os costumes da sociedade em que nele está inserida.

O Capital Social está diretamente relacionado com a experiência urbana voltada à

prática da urbanidade, que envolve aspectos diversos da vida social, tais como a

maneira de se comportar e relacionar em público. O Capital Social gerado no espaço

urbano se estrutura a partir de códigos diversos, muitos dos quais são formais (leis,

regulamentos) enquanto outros são informais, mas não menos importantes. A

urbanidade é responsável pela formação, manutenção e enriquecimento contínuo de

diversos códigos sociais e pode, dessa maneira, constituir­se em instrumento de

educação social, de progresso civilizatório. Considerando que o Capital Social pode

ser heterogêneo e diversificado, a urbanidade (vida pública) nas cidades serve como

modo de reconhecimento dessa variedade, de conscientização a respeito de

diferenças sociais e desenvolvimento de tolerâncias (KRAFTA, 2006).

Dos estudos da espacialização e forma do ambiente construído urbano

(configuração espacial e morfologia urbana), Hillier e Hanson (1984) desenvolveram

os conceitos da Sintaxe Espacial a fim de possibilitar estudos das relações espaço

versus sociedade. Os estudos consideram a existência de uma lógica social definida

e fortemente vinculada à morfologia urbana. Este aspecto subentende a formação

de Capital Social, uma vez que a configuração espacial urbana possui relação com

unidades de vizinhança. Moradores de uma mesma unidade de vizinhança na

cidade tendem a compartilhar semelhantes modos de vida, conjunto de hábitos,

memórias coletivas, marcos referenciais e coesão social com forte caráter identitário.

Parte desses elementos são vinculados à cidade enquanto forma física e lugar da

coletivização arraigados ao Capital Social.

A Sintaxe Espacial foi concebida para representar as malhas urbanas através de um

conjunto sucessivo de espaços, sendo possível reduzir a complexidade de sua

5

configuração a uma característica básica ­ sua dimensão linear. Sintaxe Espacial

define a malha urbana como um sistema de linhas que une origens e destinos, onde

o movimento pode acontecer de todas as origens a todos os destinos. O movimento

ao longo destas linhas compõe a rede que será determinada substancialmente por

medidas sintáticas, tais como integração global, integração local com limitação de

profundidade, conectividade, controle, inteligibilidade, profundidade, força do núcleo

de integração, dentre outras. Em relação ao conceito de acessibilidade, Hillier e

Hanson (1984) substituem a medida métrica pela topológica 3 e adotam o conceito de

linha axial para a descrição dos espaços públicos. As linhas axiais 4 , utilizadas para

calcular a integração do sistema, podem ser definidas como a maior extensão

possível em linha reta entre espaços convexos 5 . Entende­se como espaços

convexos, a relação de irrestrita visibilidade e domínio dentro do próprio espaço. Isto

significa que todos os espaços podem ser vistos de qualquer outra parte do espaço,

independentemente de onde a pessoa esteja localizada. A decomposição da rede de

percursos em linhas axiais é representada pelo mapa axial, o qual consiste no

conjunto do menor número das maiores linhas retas capazes de cobrir todos os

espaços convexos do sistema.

As propriedades configuracionais do espaço urbano são descritas a partir de duas

dimensões básicas: a organização global (axialidade) e a organização local

(convexidade). A organização global está mais relacionada com a presença e o movimento natural de pessoas estranhas ao sistema como um todo, enquanto a organização local está mais relacionada com a apropriação e concentração de pessoas familiarizadas com partes do sistema. Examinando de que modo a

integração é distribuída ao longo da malha urbana em níveis globais e locais, se

pode ter a noção de como as cidades com diferentes configurações de espaço geram

o que Hillier (1997) chamou de Campos de Encontros, i. e., padrões de movimento

criam possibilidades de interação social, de trocas, e de vida comunitária (HILLIER et al, 1993; HILLIER, 1997; PEPONIS et al, 1997). Conseqüentemente, espaços urbanos de qualquer cidade são vistos como instrumentos que potencializam as

relações sociais (HILLIER, 1997 apud DAWSON, 2003: 37.4).

3 Medida que independe de relações métricas e/ou geométricas. 4 Axialidade é a máxima extensão do espaço urbano de uso público numa dimensão; refere­se a extensibilidade global máxima das linhas do sistema, i. e., até que ponto alguns lugares podem ser correlacionados para formar um espaço unificado. 5 Convexidade é a máxima extensão do espaço urbano de uso público em duas dimensões; refere­se a extensibilidade local a todos os pontos que podem conformar um lugar unificado.

6

Em princípio, qualquer experiência urbana subentende uma experiência em potencial

de formação de Capital Social. Assim sendo, morar, trafegar, comprar, trabalhar, são

experiências urbanas de forte cunho social. A experiência de apreciar a paisagem

enquanto trafega, ver pessoas enquanto compra etc, depende fundamentalmente da

forma do ambiente construído da cidade, que pode, então, ser avaliada desde o

ponto de vista da formação do Capital Social como Campos de Encontro (KRAFTA,

2006).

2. Construção do mapa axial e aferição das medidas sintáticas: o

método adotado

No que tange à análise da configuração espacial da cidade, foi utilizada a técnica de

Sintaxe Espacial, particularmente útil em termos de comparações dos diferentes

espaços que compõem o sistema de ruas da cidade. A análise das principais

medidas sintáticas a partir do mapa axial da cidade possibilitou compor um quadro

atual no que diz respeito às formas de apropriações e relações sociais, assim como,

inferir sobre as tendências de organização e apropriação espacial.

Com base no mapa digitalizado de todas as ruas da cidade, foram traçadas as linhas

axiais, de modo que representassem a estrutura contínua destes espaços abertos.

As linhas axiais foram interrompidas a cada deflexão, i. e., a cada mudança de

direção entre espaços convexos. O mapa axial foi então rodado no modelo

computacional Axman 6 . Ressalte­se que o algoritmo 7 matemático processou mais de

1615 linhas axiais, sendo que o cálculo deste número de matrizes de acessibilidade 8

somente foi possível com o auxílio computacional. O emprego do mapa axial como

recurso auxiliar de expressão gráfica da estrutura espacial da cidade determinou

uma facilidade operacional para fins de comparações. Esse método simplificou a

complexa rede de espaços contínuos da cidade em partes que pudessem ser

analisadas.

A análise sintática do mapa axial produziu dois tipos de resultados: dados numéricos

dos parâmetros relacionais entre espaços, e dados gráficos na forma de mapas de

6 Modelo de análise da configuração espacial da malha urbana desenvolvido na Bartlett School of Architecture and Planning ­ University College London. 7 Um algoritmo é um método preciso de cálculo ou avaliação quantitativa, cuja aplicação conduz a resultados e soluções exatas (CHADWICK, 1973: 178; NOVAES, 1982: 19). 8 Acessibilidade foi medida calculando os caminhos mais curtos em termos do menor número de mudanças de direção.

7

linhas com gradação de cores conforme seus valores de integração. Graficamente a

estratégia mais informativa foi observar no mapa axial a distribuição dos espaços,

desde o espectro vermelho (linhas na cor preta) para os mais integrados, até o azul

(linhas na cor cinza claro) para os menos integrados. Isso permitiu formar um quadro

visual de como a integração se distribui no sistema espacial da cidade por inteiro

(HILLIER et al, 1993).

Cumpridos os procedimentos anteriores e após os esclarecimentos de ordem geral,

procede­se agora à descrição e efetiva análise da configuração espacial urbana da

cidade de Santa Cruz do Sul e sua relação com a formação do Capital Social.

3. Análise Sintática da estrutura espacial urbana de Santa Cruz do

Sul e os padrões de organização sócio­espacial: resultados obtidos

A organização global de sistemas espaciais – domínio do visitante – estrutura­se a

partir da maior ou menor facilidade em linha reta de se unir as partes (espaços

convexos) do sistema. Deste modo aumentam­se as probabilidades dos encontros,

tanto a partir das relações dos moradores entre si, quanto entre os moradores e

visitantes ao sistema espacial considerado (RIGATTI, 1993: 89­92). Verificou­se,

pela gradação de cores das linhas, que o mapa de Integração Global possui uma

maior intensidade no centro geométrico do sistema da cidade, tendendo a níveis

mais baixos de integração à medida que se aproxima da periferia, principalmente em

relação aos quadrantes sudeste, sudoeste e nordeste (mapa 1).

8

MAPA 1: Mapa de Integração Global de todo o sistema de Santa Cruz do Sul, com valores de integração de 0,3650 até 1,0972 (Fonte: obtido no software Axman; original SILVA, 2004: 119)

Os valores da medida de integração encontrados variam de 0,3650 até 1,0972, com

integração média de 0,7009, o que denota um sistema relativamente integrado

globalmente, que tende a favorecer a co­presença das diferentes categorias de

pessoas independentemente do grau de conhecimento espacial das diferentes áreas

que compõem o sistema. Verificou­se então a força do núcleo de integração 9 das

1615 linhas axiais da cidade a qual corresponde aos 10% dos espaços mais

integrados, i. e., 162 linhas, cujo valor da medida encontrada é de 1,3738. Ao se

9 Comparando­se este valor com os valores de outros trabalhos (por exemplo, LOUREIRO et al, 1995: 23 e 27) se verifica que a força do núcleo de integração sintática de Santa Cruz do Sul apresenta uma razoável diferenciação entre a média de Integração Global da cidade (0,7009) e a média do núcleo de integração (0,9629).

9

comparar a força do núcleo de integração (1,3738), assim como, a média das linhas

que compõem o núcleo de integração (0,9629) com a média de Integração Global da

cidade (0,7009) se percebe claramente que o núcleo de integração reforça as

características de hierarquia na Integração Global, i. e., acentua os aspectos

relacionais com outras áreas da cidade (mapa 2).

MAPA 2: Núcleo de integração da cidade de Santa Cruz do Sul, com valores de 0,8278 até 1,0972 (Fonte: obtido no software Axman; original SILVA, 2004: 124)

A organização local de sistemas espaciais estrutura­se fundamentalmente nas

porções do espaço de uso público (espaço convexo). Estes espaços são delimitados

pela configuração das barreiras (edificações, muros, cercas, taludes etc)

conformadoras do conjunto do espaço público a partir do qual se pode identificar

10

partes (espaços convexos) do sistema espacial (RIGATTI, 1993: 89­92). A medida

local carrega a noção de fixação, pois se refere ao domínio dos espaços por seus

moradores. A diferenciação de distribuição sintática observada em relação às linhas

da cidade, sob o ponto de vista da organização local, padroniza as áreas limítrofes

localizadas nos quadrantes norte e sul. Isso implica numa menor diferenciação de

orientação espacial, que tende a privilegiar os deslocamentos dos moradores nas

áreas mais afastadas do núcleo de integração. Cabe destacar que esta condição de

segregação sintática observada indica uma precondição de formação de áreas intra­

urbanas, além de estabelecer uma boa relação de vizinhança entre estas e o próprio

núcleo de integração da cidade. Em contrapartida, o quadrante nordeste nas

proximidades do núcleo de integração é uma área relativamente integrada, ocupada

em boa parte por estratos sociais de mais alta renda, moradores dos bairros

Higienópolis, Verena, Santo Inácio e Jardim Europa.

A forma do núcleo de integração se aproxima à de uma malha ortogonal com

algumas poucas deformações, cuja característica mais marcante é a distributividade

das linhas mais integradas, tanto no sentido norte/sul quanto leste/oeste. A malha

ortogonal pouco deformada do núcleo de integração denota uma estrutura global

forte, na qual se verifica a máxima integração interna em oposição à mínima em seu

entorno. Ao ser circunscrito um círculo no conjunto de linhas que compõem o núcleo

de integração, se verifica que muitas das principais linhas estão contidas dentro

desta figura geométrica. Como a figura de um círculo é a forma geométrica mais

econômica na relação área e perímetro (maior área no menor perímetro possível)

isto significa que o núcleo de integração possibilita alcançar o maior número de

espaços na menor distância topológica possível. Neste caso, a delimitação física do

núcleo de integração tende a diferenciá­lo das demais áreas do sistema,

fortalecendo sua distinção como área central. Interessante observar que em grande

parte, as linhas do núcleo de integração da cidade coincidem com a noção de área

central, tanto em relação ao senso comum das pessoas, quanto em relação ao

zoneamento feito pelo Plano Diretor da cidade.

Num primeiro momento os dados do mapa axial permitiram uma análise global do

sistema da cidade e de seu núcleo de integração. Entretanto, faz­se necessária a

descrição local do sistema vinculada à análise global. As propriedades locais são

estabelecidas basicamente pela medida de Conectividade e Controle. A medida de

11

Conectividade refere­se à soma da quantidade de linhas conectadas diretamente a

uma outra linha, segundo as descrições (linhas, espaços convexos, trechos, arcos)

utilizadas para determinar os espaços públicos e privados. A medida de Controle

expressa o grau de escolha que cada linha representa para seu vizinho imediato, ou

o grau de dependência de acesso de um espaço em relação aos outros espaços do

sistema. Ou seja, correspondente às possibilidades dos espaços serem escolhidos

como parte de um percurso preferencial, considerando todas as possibilidades de

deslocamento de um espaço para todos os demais.

A Conectividade média para a cidade é de 3,9331. Isto significa que cada linha se

une em média a outras quatro linhas. No geral, a cidade apresenta uma certa

dispersão na distribuição da Conectividade, sendo definidos dois setores: um setor

mais concentrado onde estão as linhas mais conectadas, que corresponde às linhas

do núcleo de integração; e um setor com linhas pouco conectadas, que abrange

praticamente todo o restante da cidade (mapa 3).

12

MAPA 3: Mapa de Conectividade de todo o sistema, com valores de 1 até 35 (Fonte: obtido no software Axman; original SILVA, 2004: 128)

Em relação à medida de Controle se constatou que das 1615 linhas pertencentes ao

mapa axial da cidade, cerca de 400 linhas controlam mais de 50% das linhas de

toda a cidade. Trata­se de um sistema pouco concentrado em relação à medida de

Controle, cujos valores encontrados para a cidade variam de 0,0286 até 11,8586

(mapa 4).

13

MAPA 4: Mapa de Controle de todo o sistema, com valores de controle de 0,0286 até 11,8586 (Fonte: obtido no software Axman; original SILVA, 2004: 130)

O mapa de Controle não exibe muitas novidades em relação ao que já foi mostrado

no mapa de Conectividade, tendo em vista que a medida de Controle é diretamente

calculada a partir do número de conexões de linhas vizinhas e adjacentes, e não

apenas as conexões da linha em si. Portanto, trata­se (Conectividade e Controle) de

medidas fundamentalmente recíprocas, cuja medida de Controle apenas possibilita

uma noção mais abrangente da probabilidade de acessar estas linhas a partir das

demais linhas que compõem o seu entorno imediato. Em outras palavras, são

medidas que possibilitam entender o local com base no próprio local.

14

A análise do mapa axial da cidade em relação às medidas de Conectividade e

Controle permite verificar que, embora o sistema de linhas da cidade apresente a

medida de Controle bastante distribuída, há algumas linhas axiais bem conectadas

ao norte e ao sul da cidade. Isto significa que o quadrante norte e principalmente o

quadrante sul são áreas potencialmente propícias à formação de novas unidades de

vizinhança e bairros. Os mapas indicam que a distribuição do sistema tende a se

deslocar no sentido do quadrante sul, principalmente ao longo da Av. Euclides N.

Kliemann (linha 23). Isto confirma as cogitações a respeito desta área ser

potencialmente a formadora de novos núcleos urbanos do sistema, pois suas

medidas locais também possuem uma boa Integração Global.

A partir da análise do mapa axial de toda a cidade é possível inferir algumas

tendências do sistema relacionadas à formação do capital social. Áreas integradas

globalmente costumam ser associadas à animação urbana gerada pela

superposição de percursos e atividades levadas a cabo pelos agentes sociais no

espaço urbano. Lugares animados e globalmente integrados tendem a reunir num

dado momento um grande contingente de pessoas que, para desenvolverem suas

atividades normais, utilizam­nos. É notória a preferência que pessoas dispensam

aos lugares urbanos animados, tais como áreas centrais, praças, parques em virtude

de sua animação e coesão social. As atividades­fim são de consumo, de lazer, mas

a experiência urbana concomitante é alimentada pela animação (KRAFTA, 2006).

O espaço público pode ser, e é continuamente, meio para realização dos mais

variados tipos de movimentos sociais. Comícios, passeatas, paradas, desfiles,

eventos esportivos, protestos, etc são atividades de forte coesão social que ocorrem

no cotidiano e se referem à organização da sociedade e qualificam a experiência

urbana. A configuração espacial fomenta e reforça redes de solidariedade e de

coesão social necessárias ao desenvolvimento da sociedade. O sistema urbano de

Santa Cruz do Sul, desde esse ponto de vista, pode ser considerado de um lado em

termos do ambiente construído que define um tipo de espaço onde o controle da

atividade é prioritário. A forma do ambiente construído pode tanto ser um espaço

conservador, voltado à reprodução da sociedade segundo padrões estabelecidos,

quanto se caracterizar pelo inverso, sendo o lugar da atividade não controlada, da

espontaneidade e do anonimato (conforme observado anteriormente). Em condições

como estas, o surgimento de novos modos de relação social pode ocorrer tanto em

15

espaço integrados ou não, e, assim, torna­se um espaço com potencial criador, um

espaço de produção da dinâmica social correspondente à forma do espaço

(KRAFTA, 2006).

Hoje, devido a Integração Global das linhas, praticamente todos os bairros da cidade

convergem para a área central ou para as suas proximidades. Como conseqüência,

o movimento em direção a este núcleo de integração tende a aumentar à medida

que surgem novas áreas que não concentram atividades suficientes a ponto de

concorrem com a área central. Deste modo, há um contínuo processo de reforço da

acessibilidade à área central devido às transformações morfológicas ocorridas ao

longo dos anos.

Contudo, se verifica que a expansão horizontal da cidade está gradativamente

gerando uma maior fragmentação e descontinuidade espacial, assim como tende a

diminuir sensivelmente as possibilidades de contatos com a área central. Em termos

práticos, o arranjo espacial destas áreas mais afastadas e, portanto, mais

segregadas do sistema, resulta em maiores deslocamentos das pessoas às

atividades das quais necessitam. Porém, quanto mais afastadas estas novas áreas

estiverem do núcleo de integração (desde que mantenham uma boa articulação

global) maiores serão as possibilidades de concentrarem comércios e atividades que

atendam às necessidades dos moradores, fomentando a formação de novas

unidades de vizinhança com forte coesão social capazes de diminuir a necessidade

de deslocamentos diários das pessoas a grandes distâncias. Este processo de

centralização funcional e morfológica e de formação de Capital Social se deve aos

condicionantes impostos pela configuração espacial urbana, como já fora visto, e

tende a ocorrer no quadrante sudeste da cidade ao longo das linhas mais acessíveis

vinculadas ao núcleo de integração da cidade. Deste modo, a médio e longo prazo,

a morfologia influencia a dinâmica urbana que tenderá a ocorrer não mais em função

de um único centro polarizador, mas em função da articulação de vários núcleos

funcionais integrados em unidades de vizinhança. Deste modo, a forma e o

crescimento urbano possuem uma dinâmica própria que refletem os valores de toda

a sociedade.

16

4. A sociabilidade da vida espacial: considerações finais

Em meio a diversas abordagens possíveis deste fenômeno urbano, a partir de

diferentes áreas do saber e, na medida em que o conhecimento é a soma das

contribuições dos diferentes pontos de vista a respeito de um mesmo fenômeno,

esta pesquisa contribui junto às ciências sociais, aplicada na formação de um

mosaico interdisciplinar de análise dos padrões de organização social no espaço

urbano de Santa Cruz do Sul.

Num momento em que tantas áreas do saber discorrem sobre o Capital Social, é

importante também analisar criticamente a cidade sob o ponto de vista de sua

configuração espacial. Com isso, se abre o campo das alternativas de

questionamento, análise e entendimento em torno da influência recíproca de

cooperação entre sociedade e espaço. Isto significa que a cidade passa a ser

entendida como um processo sistemático da dialética sócio­espacial de adequação

da forma urbana às necessidades das pessoas, que por sua vez passa a influenciar

o comportamento associativo destas.

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Referências Bibliográficas

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