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664 A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE PORTUGUÊS: AS CONTRIBUIÇÕES DA POESIA NA SUA CONSTRUÇÃO COMO AGENTE LETRADOR Arlete de FALCO –Universidade Estadual de Goiás - UEG( Câmpus de Morrinhos ) Eixo Temático : 1 - Formação inicial de professores da educação básica Financiadora da pesquisa: UEG [email protected] 1. Introdução Bakhtin, refletindo sobre o signo linguístico, considera que ele “se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes.” A metáfora bakhtiniana da arena nos sugere confrontos, embates, conflito de valores. Porém, apesar dos semas aparentemente negativos contidos nessa ideia, ela nada tem de negativo; antes, é positivo o valor final, já que, para ele é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo e móvel, capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social, se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se, degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo de filólogos e não será mais um instrumento racional e vivo para a sociedade. A memória da história da humanidade está cheia desses signos ideológicos defuntos, incapazes de constituir uma arena para o confronto dos valores sociais vivos ( BAKHTIN, 2009, p. 47 ) Aceitando as ideias contidas na afirmação de Bakhtin, propomos um diálogo com ela: a sala de aula é uma arena onde se desenvolvem e se confrontam vozes e valores diferenciados, os quais se relacionam inexoravelmente com a formação do aluno. No trabalho ora em desenvolvimento, a “arena” considerada são duas salas de aula de um curso de licenciatura em Letras de uma universidade pública estadual em Goiás. A partir do olhar sobre essas duas turmas buscam-se alternativas para otimizar o processo formação leitora desse profissional em construção. O ensino de língua portuguesa está atravessando um momento de crise. Inúmeros são os exemplos de que há um descompasso entre o que a sociedade espera dos cidadãos escolarizados e o que vem sendo oferecido nas salas de aula de língua portuguesa. A situação agrava-se mediante a constatação de que na maioria das vezes não se sabe que rumo tomar em prol de uma educação de qualidade. Em artigo em que discute o ensino institucionalizado da língua portuguesa em sua relação com a variação dialetal, Castilho afirma: Houve uma fase, infelizmente ainda em vigor em alguns ambientes, em que a visão do fenômeno linguístico era bastante simplificadora. Dispunham-se em planos diferentes os canais da comunicação,

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A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DE PORTUGUÊS: AS CONTRIBUIÇÕES DA POESIANA SUA CONSTRUÇÃO COMO AGENTE LETRADOR

Arlete de FALCO –Universidade Estadual de Goiás - UEG( Câmpus de Morrinhos )Eixo Temático : 1 - Formação inicial de professores da educação básica

Financiadora da pesquisa: [email protected]

1. Introdução

Bakhtin, refletindo sobre o signo linguístico, considera que ele “se torna a arena

onde se desenvolve a luta de classes.” A metáfora bakhtiniana da arena nos sugere

confrontos, embates, conflito de valores. Porém, apesar dos semas aparentemente

negativos contidos nessa ideia, ela nada tem de negativo; antes, é positivo o valor final, já

que, para ele

é este entrecruzamento dos índices de valor que torna o signo vivo emóvel, capaz de evoluir. O signo, se subtraído às tensões da luta social,se posto à margem da luta de classes, irá infalivelmente debilitar-se,degenerará em alegoria, tornar-se-á objeto de estudo de filólogos e nãoserá mais um instrumento racional e vivo para a sociedade. A memória dahistória da humanidade está cheia desses signos ideológicos defuntos,incapazes de constituir uma arena para o confronto dos valores sociaisvivos ( BAKHTIN, 2009, p. 47 )

Aceitando as ideias contidas na afirmação de Bakhtin, propomos um diálogo

com ela: a sala de aula é uma arena onde se desenvolvem e se confrontam vozes e

valores diferenciados, os quais se relacionam inexoravelmente com a formação do

aluno.

No trabalho ora em desenvolvimento, a “arena” considerada são duas salas de

aula de um curso de licenciatura em Letras de uma universidade pública estadual em

Goiás. A partir do olhar sobre essas duas turmas buscam-se alternativas para otimizar o

processo formação leitora desse profissional em construção.

O ensino de língua portuguesa está atravessando um momento de crise.

Inúmeros são os exemplos de que há um descompasso entre o que a sociedade espera

dos cidadãos escolarizados e o que vem sendo oferecido nas salas de aula de língua

portuguesa.

A situação agrava-se mediante a constatação de que na maioria das vezes não

se sabe que rumo tomar em prol de uma educação de qualidade. Em artigo em que

discute o ensino institucionalizado da língua portuguesa em sua relação com a variação

dialetal, Castilho afirma:

Houve uma fase, infelizmente ainda em vigor em alguns ambientes, emque a visão do fenômeno linguístico era bastante simplificadora.Dispunham-se em planos diferentes os canais da comunicação,

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privilegiando-se a língua escrita como fonte do padrão. Identificava-sedeterminada variante diacrônica ou geográfica como o melhor português.Valorizava-se o registro refletido e se desconsideravam as interferênciasde uma variante em outra, tudo o que levava a uma visão rígida epreconceituosa da linguagem.Desse extremo simplificador despencamos para uma visão simplista,valendo ao ensino qualquer modalidade linguística, pois “tudo comunica”,posição demagógica e igualmente inoperante [...] ( CASTILHO, 2004, pp.28-29 )

O fato apontado por Castilho infelizmente ainda permeia muitas salas de aula do

Brasil. Como bem pondera o autor, as duas atitudes são simplistas e redutoras e,

consequentemente, ambas fáceis de se implantarem em uma sala de aula, já que

exigem pouco esforço do professor.

Já Guedes ( 2006 ) pondera que o professor de português vive uma grave crise

de identidade, tanto do ponto de vista de sua formação quanto do exercício da profissão,

uma vez que exercê-la lhe exige uma relação íntima e natural com uma língua que ele

muitas vezes não sente como sua nem como natural. Uma língua na qual ele quase não

fala e raramente se atreve a escrever, limitando-se ao uso da metalinguagem no seu

fazer em sala de aula.

Discutindo essa questão, Bagno (2013) responsabiliza a universidade e os

cursos de Letras por parte dessa crise. Segundo esse autor, em muitas universidades

brasileiras há acentuada relutância entre os professores desse curso de o enxergarem

como um curso formador de professor. Para ele, o equívoco já se anuncia a partir do

nome do curso, que sinaliza seu pendor para o lado artístico. Além disso, suas matrizes

curriculares estariam de disciplinas voltadas para as correntes linguísticas, diante das

quais o aluno é posto a partir do primeiro período, como se lhe fosse possível receber

eficientemente um texto científico de tamanha complexidade. Pondera ainda esse autor

que a maioria dos alunos dos cursos de licenciatura em Letras chega à universidade com

um grau mínimo de letramento. Muitos deles nunca leram um romance completo,

tampouco um texto mais complexo em toda a sua vida; só ali vão fazê-lo pela primeira

vez.

As pessoas que atuam em nossos cursos superiores de Letras, porém,fazem de conta que esses estudantes são ótimos leitores e redatores, edespejam sobre eles, logo no primeiro semestre, teorias sofisticadas, queexigem alto poder de abstração e familiaridade com a reflexão filosófica,junto com textos de literatura clássica, escritos numa língua que para elesé quase estrangeira. ( BAGNO, 2013, p. 31 )

O resultado, denuncia esse autor, é catastrófico. A maioria dos alunos se forma

sem dominar as teorias linguísticas vistas ao longo do curso, sem conhecer a tradição

gramatical e, o que é mais grave: sem conseguir escrever um texto que exija um relativo

grau de monitoramento e formalidade.

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Assim, o que se busca com esse trabalho é contribuir com as reflexões sobre o

assunto, no sentido de buscar propostas e estratégias que possam otimizar a formação

do aluno de licenciatura em Letras, ampliando seu grau de letramento para que ele possa

atuar eficientemente como um agente letrador.

2. Metodologia

A pesquisa em foco caracteriza-se como uma pesquisa-ação, participativa

etnográfica, de natureza qualitativa. De acordo com Bortoni-Ricardo ( 2011, p. 49 ),

O objetivo da pesquisa qualitativa em sala de aula, em especial aetnográfica, é o desvelamento do que está dentro da “caixa-preta” no diaa dia dos ambientes escolares, identificando os processos que, porserem rotineiros, tornam-se invisíveis para os atores que dele participam.

As pesquisas voltadas para o interior da sala de aula costumam oferecer

dificuldades para sua execução. A dúvida sobre o que observar no desenrolar das ações

no seu interior, como descrever o que é observado, como transformar os resultados em

análises dotadas de objetivação tem levado muitos pesquisadores a agirem de maneira

precipitada, fixando-se mais em ausências do que no existente nesse espaço. De fato, a

transformação do espaço da sala de aula em objeto de estudo é um problema teórico; a

par de toda a história documentada que a escola apresenta, sendo uma instituição ou

aparelho do Estado, há todo um desenvolver histórico em seu interior que não é

documentado, conforme ponderam Rockwell; Ezpeleta(1989). Essas autoras ainda

apontam que

Diversas formas de racionalismo têm chamado a atenção para o perigode se perder na variedade e heterogeneidade infinita do individual, docotidiano, do conjuntural. Com isso tendem a relegar ao campo do “não-investigável” uma boa parte da realidade social, justamente esta quecoincide com o não-documentado.[...]

Historicamente, contudo, as fronteiras precisas das divisões dicotômicasda realidade em cognoscível e incognoscível modificaram-se juntamentecom o processo de construção teórica. (ROCKWELL; EZPELETA, 1989,p. 11 ) ).

Concordamos com as autoras que é possível tornar cognoscível essa realidade

não documentada. Em vista disso, propomos essa pesquisa, em que se busca uma

reflexão sobre as práticas cotidianas no interior da universidade, a partir do convívio,

apreciação, fruição e análise de poemas do poeta Donizete Galvão, o que se dará por

meio de atividades desenvolvidas em aulas dialógicas, alicerçadas em princípios teóricos

da estilística (PINHEIRO, 2015). Para tanto foram selecionadas duas obras: Mundo mudo

(2003) e Ruminações ( 1999 ), das quais selecionam-se poemas que são repassados aos

alunos. Optou-se por trabalhar com duas obras para se dispor de um leque maior de

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poemas, o que favorece procedimentos de abordagens diversificados, incluindo saraus e

dramatizações de poemas. Procura-se, por meio de um trabalho conduzido de forma

sistemática, lúdica, direcionada e continuada, ampliar a capacidade leitora, bem como a

sensibilidade, o conhecimento geral e o grau de letramento do aluno de Letras, futuro

letrador em formação.

O espaço delimitado para essa pesquisa são duas salas de aula de um curso de

licenciatura em Letras, de uma universidade estadual de Goiás, onde atuo como

professora efetiva. Compõem a população da pesquisa os alunos de duas turmas do

curso de licenciatura em Letras dessa universidade. Esses alunos são em sua grande

maioria oriundos de escolas públicas, da própria cidade em que a universidade está

inserida ou das cidades circunvizinhas. A maioria vem de escolas regulares, mas grande

parte deles está há algum tempo sem estudar, o que aumenta a insegurança e

compromete a competência comunicativa e leitora desses sujeitos. E como será o olhar

que esses alunos têm sobre a literatura? Como a literatura pode contribuir para ampliar

esses olhares sobre o mundo? É o que discutiremos, sucintamente, na seção seguinte.

3.A literatura e o seu papel na formação do homem: algumas considerações

Na obra A formação do professor de português: que língua vamos ensinar?,

Guedes (2006) lança um olhar perscrutador e inquietante sobre o contexto educacional

brasileiro, focando sua atenção no professor de português em atuação, sem deixar de

estender sua preocupação àquele que se encontra em formação. Numa abordagem

clara, crítica e contundente, o autor traça um perfil desse profissional em diversas partes

do país, e denuncia a situação de carência linguística em que na maioria dos lugares ele

se encontra.

Um das principais responsáveis por esse quadro, na avaliação do autor, é o

progressivo processo de desvalorização que os profissionais da educação enfrentam no

país, o que vem provocando o desinteresse dos jovens estudantes pela carreira de

professor. Aquelas pessoas em condições de enfrentar um processo de seleção mais

competitivo optam por carreiras que julgam mais atraentes e promissoras. Poucos são os

estudantes que, dispondo de bagagem sólida de conhecimento, escolhem a docência

como profissão. E quem são os estudantes que escolhem os cursos de licenciatura?

Corroborando a opinião de outros pesquisadores (BAGNO, 2013; CASTILHO, 2004;

LUCCHESI, 2004; KLEIMAN, 2014; PINHEIRO, 2015, entre outros), Guedes (2006)

pondera que a grande maioria dos alunos que procuram o curso de licenciatura em

Letras vêm de famílias de médio ou baixo poder aquisitivo, oriundos, em grande parte, de

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lares de pais analfabetos ou semianalfabetos. Conforme lembra Bagno (2013), muitos

desses alunos chegam à universidade sem nunca terem um livro completo.

É com base nesse contexto que Guedes (2006) aponta como alternativa o trabalho

com a literatura nos cursos de licenciatura em Letras. A proposta parece um tanto óbvia

quando se considera que a literatura faz parte da matriz curricular desses cursos. Mas a

proposta do autor vai mais além: ele defende que todo o trabalho de formação no curso

seja pautado pela literatura. E mais: que o aluno seja, desde o princípio do curso,

também um produtor de literatura e paralelamente a esse processo de produção literária

o aluno seria posto paulatina e gradualmente em contato com os clássicos de nossa

literatura, ficando sob a responsabilidade do professor estabelecer o diálogo profícuo

entre essas duas produções.

Conquanto seja inovadora e arrojada, a proposta do autor não nos parece

exequível. Num país continental como o Brasil, é temerária uma decisão desse porte,

que poderia comprometer a inserção desses futuros profissionais no mercado de

trabalho, pois, ainda que apresente aspectos promissores do ponto de vista do

amadurecimento de sua competência linguística, a decisão levaria a um não

cumprimento de parte da matriz curricular do curso. Além do mais, cremos que nos falta

a nós, docentes, uma maturidade profissional e uma independência intelectual suficientes

para tocar adiante tal proposta. Falta-nos ainda um longo caminho a trilhar. Porém não

deixa de ser sedutora a perspectiva de um trabalho dessa grandeza num contexto de

pouca ou nenhuma leitura.

De acordo com Antônio Cândido, quando se pensa no papel da literatura na

formação do ser humano, a primeira coisa que nos ocorre é uma função psicológica. De

acordo com esse autor,

A produção e a fruição desta [da literatura ] se baseiam numa espécie denecessidade universal de ficção e de fantasia, que decerto é coextensivaao homem, pois aparece invariavelmente em sua vida, como indivíduo ecomo grupo, ao lado da satisfação das necessidades mais elementares.E isso ocorre no primitivo e no civilizado, na criança e no adulto, noinstruído e no analfabeto. ( CÂNDIDO, 2012, pp.82-83 )

Enfatizando a grandeza da literatura, o autor indiretamente estabelece uma

negação do lado pragmático que insistimos em buscar nela quando a associamos ao

trabalho em sala de aula.

Falando também do papel da literatura, em especial da poesia, Eliot (1990) ressalta

que sua única grande função social é dar prazer. Ora, nesse ponto é possível

estabelecermos uma ligação entre esses dois aspectos aparentemente díspares: a

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grandeza da literatura e a perspectiva de usá-la como uma possibilidade para

proporcionar ampliação da competência leitora de alunos; noutras palavras: a concepção

da literatura como um veículo de letramento.

De grande relevância para esse trabalho são as reflexões de Pinheiro ( 2015 ), que

ao tratar do trabalho com a literatura na sala de aula nos lembra que, num primeiro

momento, o objetivo principal não deve ser “priorizar a transmissão de um saber sobre a

literatura – histórico, estrutural, contextual”. O que deve dirigir nossas ações é o

compromisso de “formar leitores de literatura, e não críticos literários” ( PINHEIRO, 2015,

p. 145 ).

No tópico seguinte, procuraremos aprofundar um pouco mais essa discussão,

direcionando o foco das reflexões para o trabalho com a literatura em forma de poesia na

sala de aula como uma possibilidade de formar leitores.

4.A poesia na sala de aula: prazer e diferença

Como já se mencionou anteriormente, Eliot ( 1990 ) nega toda e qualquer função

social da poesia. Segundo ele, a poesia não exerceu papel social no passado e é

provável que não venha a fazê-lo no futuro. Ao afirmar isso, o poeta não está negando o

valor da poesia, óbvio. Para ele, as formas primitivas do gênero épico e a saga, pelo

lugar que ocuparam ao longo da história, e pelo tipo de verso que apresentavam entre

povos que ainda não dominavam a escrita, devem ter sido de grande utilidade para o

aperfeiçoamento da memória. Mas desenvolver e aprimorar a memória não é função da

poesia. Igualmente não é função da poesia passar informações. Como também não é sua

função ensinar, discutir princípios filosóficos ou religiosos. A função específica de cada

uma dessas poesias se relaciona ao assunto ao qual elas estão vinculadas, como a

didática, a filosofia ou a religião.

Para esse poeta e ensaísta, o compromisso da poesia, já o dissemos antes, é com

o prazer. Além disso, a poesia pode estabelecer uma diferença em nossas vidas. “Todos

compreendemos, creio eu, tanto a espécie de prazer que a poesia pode proporcionar

quanto a diferença que, para além do prazer, ela pode oferecer às nossas vidas” ( ELIOT,

1990, p. 29 ).

A proposta de trabalho intensivo com a poesia nas salas de aula de um curso de

Letras no interior de Goiás relaciona-se com o ponto de vista de Eliot. Os alunos que

compõem a população desse curso não se diferenciam daquele quadro apresentado

pelos estudiosos discutidos em seções anteriores. São, em sua grande maioria, pessoas

com pouco ou nenhum histórico de leitura, oriundos de lares igualmente sem esse

histórico. Consequentemente muitos deles não apresentam intimidade com qualquer tipo

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de texto, não leem com fluência e, claro, não conseguem ter prazer nenhum na leitura; o

que se busca, então, é uma formação leitora por intermédio do prazer.

Claro que a educação básica tem sua grande parcela de culpa na manutenção

desse quadro. Um trabalho feito de forma eficiente poderia aproximar um pouco mais o

estudante do texto literário, quer em prosa quer em poesia. De acordo com Pinheiro

(2015), a escola tem falhado nessa sua missão. Quando se trata da leitura de poemas, a

situação é ainda mais séria:

Até há poucas décadas, os livros didáticos de língua portuguesa [...]traziam capítulos de teoria do verso, que eram aplicados de formatécnica, seca, independente de o aluno ter ou não uma experiência deleitura de poemas. Se por um lado a teoria do verso não perturba mais ojovem, por outro, a poesia no nível médio é estudada, no primeiro ano, apartir do gênero lírico, novamente pouco importando se o leitor tem ou nãovivência de leitura de poemas. Logo a seguir os poemas são retomadospara assimilação das características das escolas literárias, sempre emnúmero pouco significativo para comprovar determinada característica dopoeta e do estilo de época a que pertence (PINHEIRO, 2015, p. 144 ).

O autor aponta a necessidade de se buscarem alternativas metodológicas que

favoreçam mudanças no quadro ora vigente. Segundo ele, para que essa mudança

ocorra, é necessário “...que haja propostas que sinalizem para a vivência com o texto

literário capaz de formar leitores”( id., ib. ).

Defendemos que um trabalho com o texto literário capaz de formar leitores deve ser

aquele pautado no princípio do prazer, conforme propõe Eliot ( 1990 ). E é tomando esse

princípio como norte que se vem desenvolvendo o trabalho com o texto poético na

condução da pesquisa em foco.

O poeta escolhido para este trabalho foi o mineiro Donizete Galvão. Dono de uma

poesia densa e contundente, ao mesmo tempo que revestida numa linguagem

aparentemente simples, esse poeta tem todos os requisitos para agradar tanto ao leitor

maduro como àquele em formação. Em um artigo publicado no jornal A Tarde Cultural,

em 1996, ele expõe seu ponto de vista a respeito da literatura contemporânea e da força

da tradição sobre ela. Pondera que já virou lugar-comum dizer que não há romance

possível depois de Joyce ou que “Mallarmé levou a poesia a um reino de refinamento que

não pode ser alcançado”. Longe de negar a importância da tradição mencionada, Galvão

critica, porém, a insistência na valorização excessiva dessa tradição literária e aponta

perigos decorrentes da manutenção de mitos. Refletindo sobre a influência de Mallarmé,

Galvão afirma que “presos a essa corrente que faz do poema um artefato, e do poeta

uma máquina de fazer poemas, muitos giram em falso em sua esterilidade. Muitos tentam

imitar sua técnica, sem conseguir chegar à poética”. ( p. 10 ) O resultado é uma poesia

de recortes, em que, na ânsia de se tirar gorduras, muitos poetas cortam-lhe a carne e os

músculos. O medo do ridículo de parecer lírico tem levado ao excesso de brevidade e

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concisão, o que, para Galvão, impede o grande salto que a poesia exige. Defende o autor

de Mundo Mudo que a concepção da arte como um produto divino tem provocado o

surgimento de um produto artificial, um bibelô estético.

Concebendo uma poesia que vai na contramão do “bibelô estético”, e assumindo

corajosamente que poesia é também inspiração - a que ele dá nome de visitação -, o

mineiro apresenta uma poesia que agrada ao leitor, mesmo àqueles com pouca ou

nenhuma vivência literária, como é o caso da população dessa pesquisa.

A estratégia para o trabalho com sua poesia tem sido aquela defendida por Pinheiro

(2015), que é tomar o texto como ponto de partida e ir penetrando no seu âmago,

dialogicamente. Para tanto segue-se à risca a proposta de Antonio Cândido, de se

fazerem leituras insistentes do poema; ler e ler incansavelmente, buscando em cada

verso, em cada palavra, o desvelamento de seus mistérios, a percepção de novos

sentidos. E à medida que se vai avançando nesse exercício, os sentidos vão sendo

construídos, quer oportunizados pelo ritmo, pela seleção e combinação de palavras ou

pelas imagens. O poema abaixo ilustra a poética desse autor:

ObjetosAgora,homens são coisas,badulaques penduradoscomo galinhas na peia, pelas feiras,de cabeça para baixoà espera de compradores.

Agora,mercadorias têm vida própriaSaracoteiam quinquilhariasdiante dos homens-coisasque continuamcom pés atadose bicos ávidos.( GALVÃO, Mundo mudo, 2003, p. 65 )

O primeiro passo para o trabalho com um poema é a sua fruição, por meio de uma

leitura compartilhada, o que fazemos várias vezes, sem pressa. É importante que a

primeira leitura, porém, seja feita pelo professor que, por sua vez já experimentou

solitariamente o poema, seu ritmo, sua composição interna, à busca do melhor tom. Uma

leitura apressada, sem esse preparo, pode comprometer a recepção do poema e afastar

o leitor em formação que se quer cativar. Esse gênero, mais que qualquer outro, exige

habilidade acentuada do leitor e isso só vem com muito trabalho.

A partir dessas leituras, vai –se construindo o diálogo com o grupo. Nesse ponto,

retomamos o ponto de vista de Pinheiro ( 2015, p. 145 ), segundo o qual nesse momento

“ o objetivo nuclear é o de formar leitores de literatura e não críticos literários; [...] o papel

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do professor, nesta perspectiva, é o de mediador da leitura e, para tanto, terá que cultivar

a capacidade de ouvir o outro, de pôr em relevo sua fala...” Lembra o autor que essa

atitude não significa, porém, aceitar como definitivo tudo que se diz sobre o texto, mas

colocar em discussão as diferentes maneiras de recepção do poema.

Ao trabalharmos com o poema acima, percebemos uma certa surpresa no início. A

pouca vivência com o texto poético faz com que muitos ainda tragam uma memória de

poesia que difere dessa poética cultivada por Galvão. Acostumados com a ideia de que

poesia é derramamento sentimental e confessionalismo, sentem um certo estranhamento

diante de uma poesia envolvendo elementos prosaicos, pouco poéticos, como a imagem

de “galinhas na peia/pelas feiras”, colocada à guisa de esclarecimento da metáfora dos

“homens-coisas”, “badulaques”. Passado, porém, o primeiro impacto, vão percebendo os

sentidos que se insinuam. José Paulo Paes (1997) esclarece que esse é o papel da

metáfora: ocultar para em seguida desocultar. Numa brilhante imagem, esse autor

compara o emprego da metáfora com aquela brincadeira muito comum que se faz com

crianças pequenas de se esconder o rosto e perguntar “cadê”?, para pouco depois

mostrá-lo, exclamando “Achou!”. Segundo esse autor, a surpresa e a alegria da criança

ao ver o rosto desaparecido ressurgir é a mesma do leitor diante da descoberta de um

sentido até então oculto. Ressalta ainda o poeta e ensaísta que é preciso comedimento,

pois assim como a criança se desinteressa e procura outro brinquedo se houver demora

na desocultação do rosto, assim também o leitor se afastará de uma poesia

desmedidamente elaborada e hermética, ou, nas palavras de Galvão: um bibelô estético.

Assim, dialogicamente, os sentidos vão se definindo, à medida que se vão

observando os detalhes do texto. No caso do poema acima, até os aspectos formais

aparentemente mais ingênuos ganham força. A estrutura paralelística das duas estrofes

já não se mostra casual, tampouco a medida dos versos, mais longos na segunda

estrofe. Isso remeteria à supremacia da “coisificação” do homem no mundo

contemporâneo? A imagem final do poema não deixa dúvidas quanto à inexorabilidade

do nosso estar no mundo: homens-coisa, continuamos com pés atados e bicos ávidos,

expostos em feiras livres.

Cagiano (2004), ao falar sobre Mundo Mudo, afirma que, nesse livro, Galvão

consolida sua relação afetiva e poética com suas raízes, sem,contudo lançar uma visão piegas ou cair numa dicção rebarbativadas lembranças caóticas do passado. Mais do que afirmar oapreço pelas origens ou entender o que sugere um espaçogeográfico e social, Donizete demarca um território de reflexões,concentrando-se não apenas em desvelar o místico sentido da(con)vivência interiorana, demarcada por valores e signos. Vaialém, confrontando-se com seu estar no mundo numa perspectivauniversal ( CAGIANO, Jornal do Brasil, 2004 ).

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Essa é uma das grandes marcas da poesia de Donizete Galvão e a razão principal

que nos motivou a tomá-lo para o desenvolvimento desse trabalho. Dono de uma escrita

contudente, ricamente elaborada a ponto de resultar aparentemente simples, o mineiro

traz para o leitor pedaços de suas raízes, elementos banais de suas memórias que, no

fim e ao cabo, reconhecemos como nossas pela universalidade que atingem.

O poema abaixo também gerou acirrada discussão entre os sujeitos da pesquisa,

sobretudo pelo salto que o poeta realiza do trivial de uma água de cisterna para a

densidade da existência humana.

CisternaÁgua parada de poço.Só um feixe de luz da luavem tocar-lhe a superfície.

Não mais se ouve a música da carretilha.Não mais se ouveo balde batendo nas paredes de tijolos

e a água a se derramar.Ninguém mais lava o rostoe a bebe com sofreguidão.

Água parada de poço: Ambos estamos estáticos,

Imersos no negrume da noite. ( GALVÃO, Mundo mudo, 2003, p. 17 )

Como se vê, a presença da memória é um traço marcante da poesia de Galvãol.

De acordo com Yakozawa (2015, p. 47), “... quando imagens da memória pessoal

comparecem de modo indeterminado, não estamos diante de uma poesia estrita do eu ou

de uma poesia autobiográfica stricto sensu”. Isso porque o poeta pode trabalhar esses

dados de modo a tirar deles as marcas estritamente pessoais, de forma que o texto

resulte despersonalizado, sem, contudo, perder a sua humanidade. E o trabalho com

essa pesquisa vem demonstrando o acerto da escolha desse poeta. Nas diversas etapas

em que o trabalho se desdobra – saraus, dramatizações ou simples leitura, fruição e

debate – a grandeza da poesia desse poeta sido reconhecida, o que nos leva a sonhar

com a possibilidade de estarmos, com ele, seduzindo e formando leitores.

5. Conclusão

Preocupados com a formação leitora dos alunos de Letras, a opção pela texto

poético se deu por razões diversificadas, mas a principal delas é a brevidade desse texto,

que favorece uma abordagem densa em espaços menores de tempo. Além disso, esse

gênero se abre a abordagens lúdicas tão necessárias numa etapa em que se busca em

primeiro lugar a sedução desse aluno. Retomamos Eliot ( 1990, p. 29 ), que defende que

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a poesia tem apenas duas funções sociais: dar prazer e estabelecer diferença. A primeira

dessas funções é condição sine qua non para que o trabalho se efetive. Jamais se

formarão leitores de um gênero que causa desprazer. E esse objetivo os resultados

parciais da pesquisa mostram que vimos alcançando. O grau de envolvimento dos alunos

nas atividades e a adesão às propostas indiciam esse resultado positivo. E quanto à

segunda função? Como seria essa diferença?

Para esse poeta e ensaísta, todo povo deve ter sua poesia, porque isso faz

grande diferença para a sociedade, da qual se beneficiam mesmo aqueles que afirmam

não gostarem do gênero. Eliot ( 1990 ) lembra que, além de favorecer a manutenção da

identidade e independência de uma língua, a poesia influencia a capacidade de

sentimentos e expressão de emoções de um povo. E o que é melhor: essa diferença que

a poesia promove atinge a todas as pessoas, independentemente de sua classe social.

Para ilustrar a força da poesia sobre uma nação, Eliot usa a imagem de um avião que

cruza o céu. Afirma ele que se estivermos enxergando o avião desde o momento que ele

aparece no céu, seremos capazes de acompanhá-lo com o olhar até muito distante, até

onde outras pessoas que não o viram antes não o divisarão no espaço.

Tem sido esse nosso objetivo com a poesia: ampliar a formação leitora dos alunos

de forma que seus olhares se tornem mais perspicazes, capazes de perceber no espaço

que os cerca aquilo que os não leitores não conseguem.

Referências

BAGNO, M. Sete erros aos quatro ventos: a variação linguística no ensino de português.São Paulo: Parábola, 2013.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 16ª ed.São Paulo: Ed.Hucitec, 2009.

BORTONI-RICARDO, S.M. O professor pesquisador: Introdução à pesquisa qualitativa.São Paulo: Parábola, 2011.

CAGIANO, R. Cartografia das raízes. E.M. Caderno de Poesia, Jornal do Brasil, BeloHorizonte, 2004.

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