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REVISTA USP, São Paulo, n.41, p. 120-133, março/maio 1999 120 E S CALEB FARIA ALVES A FUNDAÇÃO DE SANTOS NA ÓTICA DE BENEDITO CALIXTO antos é uma das raras cidades paulistas das quais dispomos de uma grande quantidade de imagens re- ferentes ao seu período colonial, imperial e também da primeira república. Essas imagens foram inicialmente produzidas por um dos primeiros grandes pintores do esta- do de São Paulo, Benedito Calixto de Jesus (1). Dedicado a temas históricos e a paisagens, suas telas são registros raros e preciosos das cenas e dos eventos marcantes do passado dessa cidade, bem como de vistas urbanas e de marinhas à época em que ele viveu. Uma das características que mais ressalta aos olhos nas suas telas e paisagens históricas é o “movimento” nelas sugerido, tanto no espaço quanto no tempo. Esse “movi- mento” nos permite inserir Calixto no debate que tomou grande vulto na virada do século em São Paulo, a respeito dos eventos ocorridos nos primórdios da colonização por- tuguesa, e que envolvem a fundação da cidade de Santos e os fatos marcantes da história paulista. Este artigo é dedi- cado a uma análise dos painéis pintados por Calixto no 1 Benedito Calixto de Jesus foi pin- tor e historiador, nasceu em Itanhaém em 1853 e morreu em São Paulo em 1927. Mo- rou a maior parte de sua vida em São Vicente e ficou conhe- cido como grande marinhista e pintor de temas históricos. Co- meçou a carreira como autodi- data mas conseguiu meios, em 1883, para estudar na Academie Julian, em Paris.

A FUNDAÇÃO NA ÓTICA DE DE SANTOS E BENEDITO CALIXTO · ferentes ao seu período colonial, imperial e também da primeira república. Essas imagens foram inicialmente ... São Paulo,

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A FUNDAÇÃO

DE SANTOS

NA ÓTICA DE

BENEDITO CALIXTO

antos é uma das raras cidades paulistas das quais

dispomos de uma grande quantidade de imagens re-

ferentes ao seu período colonial, imperial e também

da primeira república. Essas imagens foram inicialmente

produzidas por um dos primeiros grandes pintores do esta-

do de São Paulo, Benedito Calixto de Jesus (1). Dedicado

a temas históricos e a paisagens, suas telas são registros

raros e preciosos das cenas e dos eventos marcantes do

passado dessa cidade, bem como de vistas urbanas e de

marinhas à época em que ele viveu.

Uma das características que mais ressalta aos olhos

nas suas telas e paisagens históricas é o “movimento” nelas

sugerido, tanto no espaço quanto no tempo. Esse “movi-

mento” nos permite inserir Calixto no debate que tomou

grande vulto na virada do século em São Paulo, a respeito

dos eventos ocorridos nos primórdios da colonização por-

tuguesa, e que envolvem a fundação da cidade de Santos e

os fatos marcantes da história paulista. Este artigo é dedi-

cado a uma análise dos painéis pintados por Calixto no

1 Benedito Calixto de Jesus foi pin-tor e historiador, nasceu emItanhaém em 1853 e morreuem São Paulo em 1927. Mo-rou a maior parte de sua vidaem São Vicente e ficou conhe-cido como grande marinhista epintor de temas históricos. Co-meçou a carreira como autodi-data mas conseguiu meios, em1883, para estudar naAcademie Julian, em Paris.

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E sdoEngenhorasmos

Palácio da Bolsa do Café, em Santos, em 1922, através da

qual pretendemos situar a sua posição frente a esse debate e o

seu papel enquanto um dos construtores dessa história.

Esse painel é, sem dúvida, um de seus mais conhecidos e

importantes trabalhos. Constitui-se de três telas, a primeira,

Porto de Santos em 1822, a segunda, Fundação da Villa de

Santos – 1545 e a terceira, Porto de Santos em 1922. Dois anos

após a morte de Calixto, seu amigo e colega do Instituto His-

tórico e Geográfico de São Paulo, Júlio Conceição, realizou um

levantamento de suas telas no qual assinala 28 quadros identi-

ficados como “desdobramentos da tela Santos de 1822” (2).

Ao observarmos o conjunto todo fica evidente que o foco

de atenção de Calixto é a transformação urbana sofrida por

Santos ao longo de toda sua história, com destaque para três

momentos de especial importância para a pátria: o momento

do “descobrimento”, isto é, a fundação da cidade e a sua eman-

cipação à categoria de vila; a independência (1822); e o ano em

que pinta os painéis (1922), data na qual se comemora cen-

tenário da independência. As telas apontadas por Júlio Con-

CALEB FARIA ALVESé doutorando em CiênciasSociais pela FFLCH-USP.

2 Essas 28 telas são as seguin-tes: “‘Rancho Grande’ – ‘Ter-ceira Igreja e Hospital da Mi-sericórdia’, ‘Quatro Cantos eCasa das Beatas’, ‘Largo daMatriz’, ‘Collegio e Quartéis’,‘Pateo da Cadeia’, ‘Casa doConselho’, ‘Pelourinho e Arse-nal de Marinha’, ‘Fórte deItapema’, ‘Porto do Bispo”,‘Casa do Trem’, ‘Capella deSanta Catharina’, ‘Casa fortedo tempo de Martim Affonsoem São Vicente’, ‘Ruínas daCapella das Neves’, ‘Ruína daCapela de Frei Gaspar’, ‘Fa-zenda do Acarahú’, ‘Aspectodo Porto de Santos’ – CâmaraMunicipal de Santos; ‘O portode Santos, antes do caes’ –

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ceição como “desdobramentos” desses pai-néis são closes do mesmo, e referem-se aedifícios de interesse público, igrejas e ca-pelas, a câmara, vistas do porto, uma fa-zenda, edifícios de empreendimentos em-presariais importantes e um carro de boi.

A tradição dos grandes panoramas dasnossas praias, cidades e florestas está, ob-viamente, ligada aos artistas viajantes e aosmembros da Missão Francesa. Mas o queos pintores do Rio de Janeiro demoraramdécadas, ou mesmo séculos, para produzir,em termos de visões diferenciadas das mes-mas vistas (3), Calixto realizou sozinho nosseus quadros. Uma diferença grande, en-tretanto, se impõe, os viajantes produziram“testemunhos” do que viram, enquantoCalixto pinta baseando-se em documentoshistóricos. Calixto faz as vezes, assim, deum falso viajante. Desse modo, as suas te-las adquirem um caráter diferenciado emrelação àquelas de seus predecessores. En-quanto os trabalhos desses aventureirospodem ser considerados “documentos ori-ginais”, porque produzidos em tempo realaos acontecimentos retratados, mesmo le-vando em conta todas as orientações decomposição a que estivessem condiciona-dos, Calixto, não sendo testemunha, pro-duz “teses” sobre a história.

Calixto participa ativamente do momen-to de nascimento de uma nova abordagemda história que recoloca em outras bases apresença e a importância do estado de SãoPaulo para a história pátria, orientada poruma perspectiva científica. São Paulo, poressa época, ainda não tinha plena convic-ção nem consenso a respeito dos fatos quemarcaram, e com os quais poderia repre-sentar, o seu desenvolvimento. O InstitutoHistórico e Geográfico de São Paulo foifundado apenas em 1895 e com objetivodiferenciado em relação ao Instituto Histó-rico e Geográfico Brasileiro, no qual seinspira.

“Havia, nesse novo estabelecimento, a in-tenção de imprimir uma marca ao mesmotempo comum ao modelo ilustrado e civi-lizado idealizado pelo IHGB, e, por outrolado, bastante diversa da forma original, já

que se buscava destacar primordialmenteuma suposta especificidade paulista. ‘Ahistória de São Paulo é a história do Brasil’era uma frase sem dúvida de efeito, masque ao abrir o primeiro volume da revista dogrêmio paulista representava, antes de maisnada, uma clara provocação” (4).

O instituto paulista nasce, ademais,com forte inclinação republicana e o bra-sileiro carregava anos de serviços presta-dos ao Império.

A participação do pintor nesse debatese dá através dos seus pincéis e de seusescritos. Calixto foi membro do InstitutoHistórico e Geográfico de São Paulo e tam-bém membro fundador do Instituto Histó-rico e Geográfico de Santos, contribuindocom vários textos a respeito, principalmen-te, das cidades litorâneas e dos primeiroscolonizadores vindos ao Brasil. Não há,entretanto, uma relação de primazia dostextos sobre as telas. As suas pesquisas his-tóricas ora servem aos textos, ora apenas àstelas, e freqüentemente a ambos. O painelpara o Palácio da Bolsa do Café é extrema-mente revelador no que diz respeito às cons-truções históricas de Calixto, à sua manei-ra de equacionar a história de São Paulo e

Benjamim de Mendonça; ‘Praiado Consulado’, onde se obser-va o antigo mercado, as lon-gas pontes de embarque de-sembarque, (anteriores à cons-trução do caes, da estrada deferro ingleza, da Mesa de Ren-das e das principaes firmascommerciaes - Zerrenner, Bülow& Cia., Augusto Leuba & Cia.e outras) – offerecido por JulioConceição à Câmara Munici-pal de Santos; ‘Capela da Gra-ça’ – Arcebispo D. DuarteLeopoldo, São Paulo; São Pau-lo, ‘Canto de Praia’, onde, em1532, desembarcou MartimAffonso – xxx; ‘Porto das Naus’– xxx; ‘Porto Tumyarú’ – xxx;‘Carro de Boi’ (2) - FamiliaCalixto; ‘Convento de N. S. daConceição’ – Itanhaem - xxx,‘Praia de Peruhybe e Trabalhode Saneamento’ – 1902 –offerecido pelo auctor a JulioConceição; ‘O vulcão em San-tos’, no Macuco, Setembro de1896 - Francisco de Andrade -; ‘O carro de boi’ – familia B.Calixto; ‘Eva no Paraiso’ ” (Jú-lio Conceição, Benedito Calixto– Traços Biographicos,Empreza Graphica da Revistados Tribunaes, 1929). É preci-so frisar ainda que Calixto jáhavia pintado outros panora-mas da cidade de Santos aolongo de sua carreira, um dosquais, inclusive, lhe valeu umapremiação na Exposição Ge-ral de Belas Artes de 1898.

3 A t í tu lo de exemplo dasrecorrências nas paisagenscariocas elaboradas pelos via-jantes podemos citar o que tal-vez seja a vista mais retratada:a Igreja da Nossa Senhora doOuteiro, pintada por ThomasEnder, Ludwig Czerny, PieterGodfred Bertchen, entre outros.Uma visão mais aprofundadasobre as paisagens dos viajan-tes pode ser encontrada na obraO Brasil dos Viajantes, particu-larmente no terceiro volume: AConstrução da Paisagem, deAna Maria de Maraes Belluzzo,São Paulo, Metalivros, 1994.

4 Lilia K. Moritz Schwarcz, OsGuardiões da Nossa HistóriaOficial, Idesp, Série Históriadas Ciências Socias, no 9,1989, p. 45.

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sua importância para a história nacional. Aanálise dessa obra pode contribuir paraentendermos melhor tanto as tendênciasartísticas quanto a perspectiva dos mem-bros desses institutos na virada do séculoem São Paulo.

A FUNDAÇÃO DA VILLA DE SANTOS

– 1545 E A GENEALOGIA PAULISTA

Comecemos com uma descrição dessestrês painéis pela tela central, A Fundaçãoda Villa de Santos – 1545 (Ilustração 1), omais complexo do conjunto por causa dosvários dados históricos que evoca. Inicial-mente chama-nos a atenção o fato de queSantos se apresenta como vilarejo já razoa-velmente desenvolvido, com um certo nú-mero de construções, ou seja, Calixto apre-senta Brás Cubas, o conhecido fundador dacidade, mais como propulsor oficial do quejá existia do que como um fundador propri-amente dito. Um segundo ponto em evi-dência é a confirmação da edificação daIgreja da Misericórdia por parte de BrásCubas, representado pelas obras em desta-

que no segundo plano da tela. As outrasedificações são: à esquerda dessa igreja aCasa do Conselho e à direita, mais ao fun-do, a capela de Santa Catarina, construídasobre o outeiro do mesmo nome por LuizGóes e sua esposa, d. Catarina de Aguilar.

Observando o painel da esquerda para adireita vemos os seguintes personagens: noalpendre da Casa do Conselho e na escadaque leva ao pátio estão os “homens bons navereança” e fidalgos da época. No pátio, aopé da escada, vemos lanceiros e alabar-deiros, e logo atrás desses um grupo depersonagens, que se estende até o lado es-querdo de Brás Cubas, composto pelosprimeiros governadores das capitanias deSão Vicente e Santo Amaro: capitão Antô-nio de Oliveira, capitão Gonçalo Afonso,capitão Jorge Ferreira, capitão AntônioRodrigues de Almeida, capitão Franciscode Morais Barreto, etc., e também peloprimeiro juiz pedâneo da cidade, PedroMartim Namorado, e pelo juiz CristovãoAguiar Altero. Os religiosos que aparecemem frente ao pelourinho são o pároco Gon-çalo Monteiro, e ao seu lado os dois fran-ciscanos que fundaram a primeira igreja deSanto Antônio em São Vicente. Mais à di-reita na tela, segurando um livro, está o

ILUSTRAÇÃO 1

A Fundação da

Villa de Santos

– 1545

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escrivão e tabelião Pedro Fernandes, irmãode Pascoal Fernandes. Em seguida figuramvários dos primeiros povoadores de San-tos: vemos Luís de Góes pousando a mãodireita sobre o ombro de seu filho, Serapiãode Góes, e ao lado dele Pascoal Fernandese Domingos Pires, as damas, atrás dessegrupo, são: d. Catarina de Aguilar, mulherde Luiz Góes, e outras matriarcas dagenealogia paulistana; e à sombra do velhoingazeiro “Iguassu”, está sentado “mestreBartholomeu”, e de pé, o seu filho. Os po-voadores do planalto estão representadosatravés dos personagens em segundo planono lado direito. Em destaque aparece JoãoRamalho e a seu lado o “almotacel de SãoVicente”, Antônio Rodrigues, sua mulher,filha do chefe índio Piquerobi, e sua filha,Antônia Rodrigues, que casou com AntônioFernandes. O índios que aparecem em am-bos os lados do painel são, na esquerda, pres-tando tributos e trazendo oferendas nativas,índios tupis e guaianazes; no lado direito,ainda presos ao trabalho escravo, segurandoapetrechos de trabalho, os índios carijós. Asdemais figuras que aparecem no fundo sãofidalgos, mulheres e operários (5).

É evidente a preocupação de Calixtocom a genealogia paulista nesse painel, poisnão se trata de um público qualquer, mas deuma rica descrição da composição socialda vila, das famílias e suas descendênciase da sucessão do poder político, religioso eadministrativo. Há ainda um outro elemen-to no qual Calixto empenhou seus conheci-mentos históricos sobre as famíliasvicentinas: o friso que emoldura o painel.Nos quatro cantos deste ele destaca o nomede quatro donatários e de suas respectivasdonatarias: no canto superior esquerdo,podemos ler o nome de Martim Affonso deSouza e da Capitania de São Vicente; emsegundo lugar, no mesmo lado, no cantoinferior, aparece o nome da condessa deVimieiro e da Capitania de Itanhaém; nocanto superior direito, o marquês de Cascaese Capitania de Santo Amaro; e, abaixo dele,no quarto canto, o marquês de Aracaty eCapitania de São Paulo. A ordem de leitu-ra, começando por Martim Affonso, é amesma da sucessão de posse e de nomen-

clatura das terras às quais pertenceu a cida-de. Os vários nomes das capitanias, portan-to, sugerem que as terras originais deMartim Affonso receberam denominaçõesdistintas ao longo do tempo. Esse dadoparece estranho se atentarmos para o fatode que ao tempo da condessa de Vimieiro,herdeira de Martim Affonso, existiu umaoutra capitania com o nome de Capitaniade São Vicente, possuída pelos descenden-tes de Pero Lopes, dando a entender que elaherdou as terras e outros herdaram o nomeda capitania, e mais estranho ainda porqueo marquês de Cascaes se auto-intitulavadonatário da Capitania de São Vicente, enão de Santo Amaro, contrariamente ao queCalixto indica no seu painel.

Essa sucessão aparentemente estranhase explica pelo fato de que Calixto acredi-tava que os descendentes de Pero Lopes,entre eles o marquês de Cascaes, donatárioda Capitania de Santo Amaro, vizinha aonorte à de São Vicente, haviam usurpadoos direitos dos legítimos descendentes deMartim Affonso, entre eles a condessa deVimieiro. A condessa por várias vezesimpetrou recursos nos tribunais da épocapara reaver seus direitos e foi bem-sucedi-da em várias ocasiões, recuperando tempo-rariamente os direitos sobre Santos. Porémo marquês sempre conseguia reverter a si-tuação a seu favor e reaver a posse das ter-ras. Os subterfúgios utilizados pelo mar-quês foram: contestar os marcos originaisde delimitação territorial das capitanias;contestar a legitimidade da linhagem dosdescendentes de Martim Affonso, uma vezque entre os mesmos se encontrava ummembro bastardo; e aliciar os membros dascâmaras, do governo geral, e o próprio rei,a seu favor. O marquês defende, num pro-cesso contra a condessa, que a ilha de SãoVicente, citada originalmente como limiteao norte da donataria de Martim Affonso,é a ilha conhecida hoje como Ilha Porchat,também chamada à época de Ilha do Mudo,e que divide as baías de Santos e SãoVicente, municípios vizinhos localizadosna mesma ilha de São Vicente. Consegue omarquês, assim, incluir Santos em suas pro-priedades, reduzindo as terras da condessa

5 A identificação dos personagense edificações foi baseada, prin-cipalmente, em: Thomas D’Alvin,O Grande Pintor Brasileiro Be-nedito Calixto, Sua Vida e suasObras, in revista Portugal, 23de junho de 1927, 2a série, no

102, pp. 338-44, e no 103,pp. 371-75.

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desse ponto até a Ilha do Mel, hoje porto deParanaguá. A Capitania de São Vicentecontinua existindo, mas Santos pertenciaagora à capitania vizinha, a de Santo Amaro.Com o tempo, o marquês teria usurpadotambém o nome da donataria vizinha, pas-sando a autodenominar-se donatário daCapitania de São Vicente, abandonando anomenclatura original das terras de seuancestral (Capitania de Santo Amaro). Acondessa de Vimieiro adotou o nome deCapitania de Itanhaém porque transferiu asua sede para a cidade assim denominada.Mais tarde, como a Vila de São Paulo haviatomado partido do marquês nas suas dispu-tas, foi recompensada com o título de cabe-ça da capitania, e esta passou a denominar-se Capitania de São Paulo, e Santos ficouentão sob sua jurisdição.

Essa confusão de nomes e limites teriapassado desapercebida a muitos historia-dores, segundo Calixto, e suas posiçõescausaram certa querela no Instituto Histó-rico e Geográfico de São Paulo. Calixto, aorecusar a associação do nome do marquêsà Capitania de São Vicente, colocando-ocomo donatário da Capitania de SantoAmaro, e também a inclusão da condessana galeria dos donatários ilustres, eviden-cia uma situação de ilegitimidade, de in-justiça. Esta situação contrasta com a per-feita ordem do momento da fundação dacidade, quando tudo parece em completaharmonia. O momento da fundação trans-corre numa celebração que faz transparecera hierarquia de autoridade na vila, que podeser lida nos cargos dos personagens dis-postos em seqüência de subordinação, daesquerda para a direita, inicialmente osvereadores, em posição mais elevada, noalpendre, depois os capitães e os juízes, emseguida os povoadores, pairando à frentede todos o capitão-mor, Brás Cubas, e osreligiosos. Aqui e ali figuram ainda fidal-gos e outros povoadores de menor impor-tância, e os soldados. A presença no mes-mo grupo dos ex e futuros capitães de am-bas as donatarias sugere uma convivênciae sucessão pacífica, reforçando a presençada ordem pública com o seu reconhecimen-to e respeito por todos. Esse momento teria

sido seguido por outro de instabilidade noque diz respeito à ordem pública, conformeas figuras no friso o sugerem.

O painel pode ser visto, assim, comoum empenho de Calixto no sentido de recu-perar a verdadeira linhagem santista epaulista, o papel histórico legítimo dosherdeiros de Martim Affonso, e tambémcomo uma denúncia da usurpação dos di-reitos desses descendentes com conivênciado poder real. Uma das provas mais evi-dentes desses fatos, segundo Calixto, erajustamente a obediência desses primeirospovoadores e seus descendentes ao troncogenealógico de Martim Affonso, através daincontestável aceitação da autoridade de BrásCubas, capitão-mor de Martim Affonso,desconhecendo os povoadores e demaisautoridades de Santos qualquer obediênciaaos descendentes de Pero Lopes (6).

PORTO DE SANTOS EM 1822

E PORTO DE SANTOS EM 1922:

A PAISAGEM URBANA

Comparando os três painéis, percebe-mos que a rica composição de personagens,presente na cena central, contrasta incri-velmente com a absoluta ausência de qual-quer figura humana, ou de qualquer indíciode atividade nos painéis laterais. O meiofísico é isoladamente destacado frente aosocial, e este último é representado emprimeiro plano em relação às construçõesapenas no painel central. Calixto parecequerer salientar que o meio faz o homem,apresentando um encadeamento entre umelemento inicial, a terra, um segundo, ohomem e, finalmente, as edificações porele construídas.

Esse meio está mais detalhado nos doispainéis laterais e sua análise revela a rela-ção proposta por Calixto entre os homens ea natureza. O primeiro deles (Ilustração 2)apresenta uma composição bastante rara noque diz respeito à divisão entre água e terra.Geralmente os paisagistas escolhem ou o

6 Calixto escreveu uma obra bas-tante aprofundada a esse res-peito na qual explicita a suavisão sobre a sucessão dosdireitos nas capitanias de San-to Amaro e São Vicente:Benetido Calixto, CapitaniasPaulistas, São Paulo, Estabele-cimento gráfico J. Rossetti,1924.

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ponto de vista próximo ao espelho d’água,descortinando no horizonte a faixa litorâ-nea, ou a perspectiva oposta, de uma loca-lidade elevada os olhos descansam monta-nha ou cidade abaixo até encontrarem omar. Calixto pinta uma porção de terra, outrade água fluvial, mais uma de terra insular,e o mar ao fundo, só então o céu desponta.A própria porção de terra de onde se avistaa paisagem é uma ilha. Poucos retrataram,de um ponto de vista elevado e frontal, oencontro da água com a terra numa cenalitorânea, nessa ordem, com o porto e asgrandes naus à frente. Esse ponto de vistapermite que se dê um grande destaque parao traçado urbano da cidade de Santos. Acosta da ilha de São Vicente é bastante re-gular e paralela aos limites superior e infe-

rior da tela, dando quase a idéia de um re-tângulo encimado por alguns pequenosmontes. O traçado das ruas, quase todasparalelas, com poucas vias sinuosas, e tam-bém os percursos das águas e dos caminhosque atravessam a ilha, apontam, de manei-ra simétrica, para o horizonte, para o pontode fuga da tela. A extrema regularidade daslinhas é quebrada pelos montes, pelo pe-queno pedaço da Ilha de Santo Amaro aofundo à esquerda, e pelos acessórios postosna mesma direção (a vegetação em primei-ro plano à esquerda da paisagem).

Para a paisagem à direita (Ilustração 3),Calixto escolheu um ponto de vista dife-rente e que, exceto pelo porto, pouco lem-bra uma cidade litorânea. A paisagem étomada do Morro do Pacheco, na própriailha. Avista-se dali a face norte da ilha, comdestaque para o canal que aparece do ladoesquerdo da tela e dobra à direita mais adi-ante, passando entre as ilhas de São Vicentee Santo Amaro, ao encontro do mar, for-mando um “L” de cabeça para baixo. Omar, à direita do ponto que estamos, nãoaparece. Alguém que desconhecesse a ci-dade de Santos e visse a cena provavel-mente suporia tratar-se de um porto fluvi-al. Do lado direito, aparecem novamenteacessórios em forma de vegetação, umaárvore mais alta e uma porção de terra des-cendente da direita para a esquerda. Simé-trico, porém invertido, ao acessório da pai-sagem Santos em 1822, no outro extremo.

Se examinarmos cuidadosamente o tra-çado urbano de Santos nessa segunda pai-sagem urbana verificaremos que a cidadeparece planejada. Os quarteirões são incri-velmente simétricos, salvo poucas exce-ções. Entre os edifícios há dois que se des-tacam, a catedral e o palácio da Bolsa doCafé. Fora isso, o único elemento que su-gere alterações na representação é o pró-prio porto e seus armazéns. É uma cidadelinear, serena, com quarteirões perfeitamen-te dispostos como num tabuleiro de xadrez.

Esses três painéis são ladeados por umfriso onde estão desenhadas figuras de avesbrasileiras e, nos cantos, emblemas e fra-ses. Os desenhos das aves lembram os re-gistros que os viajantes faziam da nossa

ILUSTRAÇÃO 2

Porto de Santos

em 1822

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fauna, numa espécie de inventário de ani-mais, e as frases têm evidente inspiraçãopositivista. Começam na esquerda com “tra-balho e ordem” e finalizam na direita com“evolução e progresso”.

DE COSTAS PARA O MAR: O VITRAL

E OS GRANDES PERÍODOS DO

DESENVOLVIMENTO DO BRASIL

Encimando os painéis há um grandevitral de nove metros (Ilustração 4), tam-bém desenhado por Calixto, que comple-menta, como mostraremos, a idéia de pro-cesso histórico. Estranhamente ausente dolevantamento de Júlio Conceição sobre tra-balhos de Calixto relacionados a este pai-nel, ele é fundamental para a compreensãodo mesmo. O vitral também está divididoem três cenas, cada uma representando umdos três “grandes períodos do desenvolvi-mento do Brasil” segundo a concepção deCalixto, são eles: “A Penetração e Conquis-ta do Sertão pelos Bandeirantes”, “A La-voura e Abundância”, “A Indústria e oComércio”. Ao contrário do primeiro, não

há localização precisa das cenas nem setrata de panoramas. São alegorias dos “gran-des períodos”. Na cena central um bandei-rante encontra com a mãe d’água e algumasninfas num quadro bucólico de descobertaem meio à generosa natureza. Apesar da pre-sença dos animais peçonhentos e perigosos,a mãe d’água convida o bandeirante ofere-cendo-lhe seus tesouros, como se não hou-vesse perigo algum. O bandeirante parecedestemido a enfrentar e sobrepujar os peri-gos da selva representados pelas cobras ejacarés. Na cena da lavoura, uma deusa daabundância ou fertilidade recompensa o es-forço do agricultor com a fartura. Na cenaconsagrada à indústria e ao comércio, estãorepresentadas algumas figuras em meio acolunas clássicas, insinuando o aprendiza-do dos ofícios por um operário que segurauma roda, diretamente das deusas da ciên-cia, trajando as togas gregas.

Há uma relação proposta entre os trêsgrandes momentos da nação e os três gran-des momentos da evolução urbana de San-tos. O período da busca bandeirante dostesouros da terra é um momento de desco-bertas e ocupação de território; o períodoseguinte, da agricultura, é de desenvolvi-mento e estabelecimento de pequenos nú-cleos fixos; e o terceiro é quando há o gran-

ILUSTRAÇÃO 3

Porto de

Santos em

1922

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de crescimento urbano impulsionado pelaindústria e pelo comércio. Uma fase ser-vindo de impulso à outra e todas elas serefletindo na cidade de Santos, num per-curso que vai do natural ao urbano, da des-coberta e ocupação ao estabelecimento degrandes contingentes humanos, interme-diado pela agricultura.

O conjunto, painéis e vitral, converge aatenção do observador para o painel cen-tral descrito anteriormente, o da fundaçãoda vila de Santos, cuja cena é destacada porCalixto como ponto culminante de todo oprocesso histórico analisado. Esse painelcontrasta com os que o ladeiam, como jáfrisamos. No entanto, a relação com a idéiade crescimento urbano continua presente eé enfatizada através das obras de constru-ção da Igreja da Misericórdia e dos demaisedifícios ao fundo. O destaque escolhidopara o pequeno núcleo inicial é justamenteo da ampliação do mesmo, ou seja, da cons-trução de mais um edifício. Podemos repa-rar que a idéia de “processo”, de uma obraem andamento, é reforçada pelo destaquedado por Calixto aos andaimes, necessá-rios ao trabalho de alvenaria, que se apói-am nas paredes da futura igreja.

Brás Cubas está em pé sobre a pequenaplataforma que sustenta o pelourinho, sím-bolo do poder público e da justiça duranteo período escravista. Aqui também nota-se uma nova perspectiva temporal, a su-cessão dos governadores, dos trabalhado-res, dos antigos e novos povoadores, e,

acima de tudo, na formação de uma genea-logia paulistana, como bem o percebeuD’Alvin, a partir da mistura entre as raças,nas figuras de João Ramalho e Piquerobi,o primeiro retratado, e o segundo repre-sentado por sua filha, que desposou Antô-nio Rodrigues.

No conjunto, emerge uma equação cujosprotagonistas são a linhagem paulista, o meiofísico e a manifestação do resultado desseencontro ao longo de alguns séculos de con-vivência, nos quais é possível distinguir oprogresso e o desenvolvimento através demarcos significativos, a fundação, a agri-cultura e o estabelecimento da indústria e docomércio. A cidade é o lugar por excelênciada consolidação dessas conquistas, o centrodecisório, o catalisador. O seu crescimentolinear, regular, constante, é uma espécie deprova desse progresso. Benedito Calixtoapresenta Santos como o berço do país. Oslapsos de tempo servem para permitir o aca-bamento dessa vocação construtiva inicialde um poder público obreiro.

Curioso nisso tudo é que Santos nãorecebe destaque enquanto cidade litorânea,parece haver uma distância entre a cidadee o mar. Os pontos de vista de Calixto,panoramas da cidade de Santos que reali-zou, são tomados sempre do oeste para oleste: a cidade parece vista de uma monta-nha, margeando um rio ou um lago, comose tivéssemos que descer encosta abaixo eatravessar o canal para adentrá-la.

A cidade começa e se desenvolve, as-

ILUSTRAÇÃO 4

Vitral

representando

os três grandes

períodos do

desenvolvimento

do Brasil,

segundo Calixto

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sim, de costas para o oceano. A Serra doMar está implícita. É dali que temos asmelhores vistas panorâmicas de Santos ede toda a ilha de São Vicente. A cidade seapresenta mais como abrigo e ponto dechegada de quem desce a serra do que dequem vem pelo mar. Nesse sentido, o quese valoriza é o porto exportador e não im-portador. Exportador dos nossos produtosagrícolas. Convergência e conseqüência deum processo de desenvolvimento que acon-teceu no interior.

O TRAÇADO URBANO EM XADREZ

É importante ressaltar, para entender-mos melhor os painéis de Calixto, que suaobra é contemporânea à elaboração de umsérie de projetos de reurbanização da cida-de de Santos, e que esses projetos compar-tilham, entre si e com as telas de Calixto,uma série de elementos visuais recorren-tes, denunciando, assim, todo um hábitovisual presente naquela época, ligado à idéiade um traçado de ruas bastante uniforme.Como a maior parte das cidades portugue-sas, Santos não se desenvolveu, entretan-to, dessa maneira simétrica. Segundo car-ta de Tomé de Souza destinada ao rei em1 de junho de 1553, “estas duas vilas deSão Vicente e Santos não estão cerquadase as casas de tal maneira espalhadas quenão se podem cercar senão com muito tra-balho e perda os moradores, porque temcasas de pedra e cal e grandes quintais etudo feito em desordem, por onde não lhevejo melhor telha que em cada ua delasque fazer-se no sitio em que puder e maisconvinhavel para sua defensão, cada uaseu castelo, e desta maneira ficarão bem,segundo a qualidade da terra e tudo deve-se logo prover nisto que com razão deverfazer, doutra maneira estão mal” (7). ParaSergio Buarque de Holanda as cidadesportuguesas se caracterizavam pela ausên-cia de rigor, “sua silhueta se enlaça na li-nha da paisagem” (8).

A cidade espanhola seguiu um cami-nho completamente diferente:

“[…] o próprio traçado dos centros urbanosna América Espanhola denuncia o esforçodeterminado de vencer e retificar a fantasiacaprichosa da paisagem agreste: é um atodefinido da vontade humana. As ruas não sedeixam modelar pela sinuosidade e pelas as-perezas do solo, impõem-lhe antes o acentovoluntário da linha reta. O plano regular […]foi simplesmente um triunfo da aspiraçãode ordenar e dominar o mundo conquistado.O traço retilíneo, em que se exprime a di-reção da vontade a um fim previsto e eleito,manifesta bem esta deliberação” (9).

Não queremos com esses trechos detextos antigos questionar a veracidade dastelas de Calixto, mas ressaltar o surgimen-to de uma nova visão com relação ao meiourbano e natural, ligada ao traçado retilí-neo e regular. Essa nova concepção urbanaestá diretamente ligada aos intoleráveisníveis de degradação ambiental a que acidade estava sujeita. As condições sanitá-rias eram alarmantes e as epidemias queassolavam o local eram constantes e sem-pre levavam consigo grande número dehabitantes (10). Contam os viajantes, quepor ali passaram, que o cheiro e a imundiceeram insuportáveis e uma grande multidãopobre e doente perambulava pelas ruas.Uma reforma urbana que alterasse essequadro se impunha como necessidade ecomo questão de saúde coletiva, sendoamplamente discutida nos órgãos públicose na imprensa.

Através desses planos, percebe-se quea cidade que habitava a imaginação dosmoradores de Santos abrangia o espaço paraos passeios de bicicleta, restaurantes, cafése bares. Deveria parecer européia, maisprecisamente, parisiense. Os sinais damodernidade pululavam nos projetos queeram discutidos, e, entre os mais requeri-dos, estavam os sanitários públicos: as plan-tas das praças continham sempre váriosmictórios. Sonhava-se com chafarizes, ruaslargas para as caminhadas, muito ar frescopara o deleite dos pulmões.

Os projetos elaborados pela comissãode saneamento denotam bem a expectativaque se tinha com relação ao desenvolvi-

7 Tomé de Souza apud SérgioBuarque de Holanda, Raízes doBrasi l , 26a edição, JoséOlympio, Rio de Janeiro, 1994,p. 75.

8 Sérgio Buarque de Holanda,op. cit., p. 76.

9 Idem, ibidem, p. 62.

10 Entre 1849 e 1904 a febreamarela atinge a cidade 31vezes, a varíola aparece em1863, 1865, cinco vezes nadécada de 70, em 1887,1888, 1892 e 1894. Outrasdoenças constantes eram o im-paludismo, o sarampão e atuberculose. Só a tuberculosematou mais de cem pessoas porano entre 1892 e 1913. Paramais dados ver: WilmaTerezinha Fernandes deAndrade, O Discurso do Pro-gresso: a Evolução Urbana deSantos, 1870-1930, tese dedoutoramente apresentada àFaculdade de História daFFLCH-USP, 1989. Nessa tesee no livro de Ana Lúcia DuarteLanna, Uma Cidade na Transi-ção – Santos: 1870-1913(Hucitec e Prefeitura Municipalde Santos, 1996), pode ser en-contrada uma visão maisaprofundada das transforma-ção urbanas sofridas por San-tos no período.

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mento futuro da cidade e também as proje-ções dos moradores, políticos, sanitaristas,engenheiros e demais pessoas mais direta-mente envolvidas no processo, a respeitodo traçado urbano de Santos.

Um primeiro exemplo é o projeto deexpansão da cidade proposto pela CâmaraMunicipal de Santos em 1896 (Ilustração5). A legenda é muito simples, contém trêsitens: quarteirões existentes; quarteirõesprojetados; ruas existentes prejudicadasno projeto em xadrez. A particularidadeque salta aos olhos é a ausência absolutade qualquer via que não seja retilínea, aspoucas já existentes são as “prejudicadasno projeto”. Há uma predominância abso-

luta das linhas verticais e horizontais, semqualquer indicação de acidentes naturais,exceto as montanhas. As praças, indicadaspelos vários “P”, estão dispostas de ma-neira regular e, com exceção de duas, seencaixam perfeitamente no espaço de umquarteirão, não provocando o menor des-vio. No que diz respeito à cidade antiga,localizada no lado norte da ilha, os quar-teirões não são tão simétricos quanto nasoutras partes, mas o traçado foi alteradode modo a garantir a linearidade das ruas.O projeto é de uma simplicidade e aomesmo tempo de uma ingenuidade gritan-tes, pois é absolutamente impraticávelimprimir tal rede de vias numa topografia

ILUSTRAÇÃO 5

Projeto de

expansão da

ciadade de

Santos

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acidentada e irregular como a da ilha deSão Vicente, com seus promontórios,córregos e alagados.

Essa tentativa é uma entre muitas cujaexecução, não sendo viável, foi abandona-da. O projeto finalmente aprovado e colo-cado em prática foi elaborado pelo enge-nheiro chefe da Comissão de Saneamento,F. Saturnino Rodrigues de Brito, em 1910.O triunfo da linha reta se mantém, mas dessavez os acidentes naturais (rios, charcos,montes, etc.) são equacionados. Nas pala-vras do próprio Saturnino: “O nosso proje-to tem o caráter dos traçados reticularesnão sistemáticos, com avenidas diagonaesque facilitem as communicações dos arra-baldes” (11). Um dos pontos de maior des-taque nesse projeto é a separação do siste-ma de coleta de esgoto do sistema de escoa-mento da água pluvial (os canais que aindahoje cortam a cidade de Santos), responsá-veis maiores pela epidemias e pelo maucheiro. Sobre esse complexo sistema decanais elaborados de acordo com as neces-sidades regionais do escoamento da águaimprimiu-se um sistema de vias retilíneo,mas com várias diagonais. Na planta há doistabuleiros em xadrez que se ligam, um queabrange a maior parte da ilha e outro queocupa a Ponta da Praia, o primeiro no sen-tido norte/sul e o segundo no sentido noro-este. A defesa que Saturnino fez nos jor-nais a respeito de seu projeto associa dire-tamente o traçado retilíneo à solução maiseficiente e econômica para o problema daágua e da higiene.

Essas plantas revelam a preocupação dosmunícipes e seus representantes em elabo-rar um plano que solucionasse de maneira“racional” os problemas que os afligiam,através da linearidade no traçado urbano,com uma planta que fosse passível de exe-cução dadas as características naturais dailha. As telas de Calixto tematizam essedebate e apresentam a sua versão para aquestão. Obviamente, sua preocupação nãoera a de um urbanista, mas a de um artista ehistoriador que utiliza vários elementos co-muns a essa discussão numa equação pictó-rica própria que envolve a história de Santose sua inserção na história da nação.

O ponto de vista escolhido para seuspanoramas reforça a atenção do observa-dor sobre o traçado urbano. No Panoramade Santos em 1822 isto é evidente noscórregos e trilhas que apontam para o ladooposto da linha em relação ao sítio originale que correm perpendiculares a ruas verti-cais já existentes, como se os acidentes na-turais que condicionavam os caminhos dospassantes sugerissem uma propensão natu-ral à linearidade das vias, o que pode servisto desde os tempos remotos da ocupa-ção daquelas plagas. O efeito é reforçadopela convergência de todos os traçados emdireção ao ponto de fuga, situado exata-mente na linha central e que divide a tela aomeio no sentido vertical. A sensação cau-sada é de repouso e conforto, os olhos des-cem montanha abaixo, encontram a cidadeplana cujo traçado aponta para o ponto defuga no outro lado da ilha num percursosem desvios ou acidentes. Parece espontâ-neo e lógico. Já na sua apresentação deSantos em 1922, a ilha inteira está tomadapela regularidade do xadrez. Se o ponto devista em 1822 era quase que o melhor paraa perspectiva desejada, pois a cidade eraapenas um pequeno núcleo a oeste da ilha,em 1922 ele pode ser alterado, pois de qual-quer ângulo que se observe a cidade o xa-drez urbano é evidente.

A UNIDADE DOS PAINÉIS:

O MOMENTO DA FUNDAÇÃO

A unidade do conjunto é trabalhada porCalixto através dos acessórios, os quais eleutiliza como recurso para fazer convergirtodas as telas numa só perspectiva, comose os traçados se unissem num único planoatemporal. Os acessórios cumprem o papelde unificadores de todas as cenas numaúnica paisagem. Se tomarmos as vistas iso-ladamente elas parecem ter uma funçãomeramente decorativa, mas se atentarmospara o conjunto altera-se a percepção. Ge-ralmente, os acessórios são dispostos emambos os lados de um panorama ou cena,

11 F. Saturnino Rodrigues de Brito,A Planta de Santos, São Pau-lo, Typographia Brasil deRothschild & Co., 1915, p. 11.

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de modo a chamar atenção para a cena prin-cipal através de um contraste de luz entreesse plano e o seguinte. No presente casoos acessórios nos forçam a entender ospainéis em conjunto. Ao serem colocadosem apenas um dos lados das paisagensperiféricas, remetem para um equilíbriovisual que só pode ser alcançado se tomar-mos as três telas juntas. O acessório daesquerda se complementa e se equilibra noda direita. Ambos emolduram o conjuntotodo como se fosse uma paisagem só.

Esse equilíbrio é reforçado pela dife-rença entre os pontos de vista pelos quaisa cidade é retratada, pois de qualquer ladoque seja observada ela sempre apresenta-rá linhas horizontais e verticais em rela-ção ao observador, paralelas às linhas dospontos cardeais norte/sul, leste/oeste, for-mando o mesmo tabuleiro em xadrez, namesma direção escolhida pelos projetosurbanos discutidos na época. Num primei-ro momento, no painel central, o traçadoainda é invisível, destacando-se apenas oímpeto construtor; no painel da esquerdaele está incompleto, mas insinuante; nooutro, em 1922, já terminado, tomandotoda a ilha. A natureza, assim, é tambéminserida na perspectiva temporal. Não setrata da natureza tropical que envolve,estimula e intriga o observador, nem danatureza provedora. É uma natureza quetem em si um plano, uma direção, e o de-senvolvimento é justamente a comunhãoda raça, da linhagem genealógica legíti-ma, do plano. O que está sendo retratadoé a adequação de um ao outro, coincidên-cia feliz e promissora.

As telas de Calixto, assim como as dosviajantes, devem ser entendidas em con-junto, embora o efeito por ele almejado sejadiferente. Os viajantes retratavam váriasvistas como um esforço de registro da na-tureza, observar seus trabalhos é comoacompanhá-los em seu passeio. Calixtomantém esse efeito, mas acrescenta-lhe adimensão temporal. A cidade apresenta-semutante no tempo, por isso não é solida-mente estabelecida, não tem nada que de-note eternidade, muito pelo contrário, elase transfigura ao longo dos anos. Por outro

lado, a relação com o solo ainda é uma re-lação de sujeição, isto é, a cidade segue otraçado impresso “naturalmente” nos ele-mentos da geografia da ilha.

Nos pincéis de Calixto, a paisagem na-tural e a paisagem urbana não evocam ex-periências díspares, não se contrapõem, elasse complementam em função de uma pers-pectiva histórica na qual natureza e socie-dade devem existir em sintonia uma com aoutra. À natureza, que tem em si um prin-cípio racional, sobrepõe-se a sociedadenuma estrutura hierárquica ordenada, e oresultado é uma cidade cuja urbanizaçãotraduz as qualidades dos dois primeiros ele-mentos. A construção da cidade e seus pré-dios, e principalmente o seu traçado urba-no, são a resultante dessa conjugação, aprova de seu acontecimento, da sua efici-ência, da sua racionalidade.

A sua visão de uma cidade moderna eorganizada, portanto, não implica o rompi-mento com o passado mas, justamente, ooposto: a cidade é moderna porque credorado seu passado, isto é, credora da conjun-ção dos fatores que permitiram o seu de-senvolvimento. Os momentos celebradosnos painéis são aqueles nos quais essa con-junção de elementos é reforçada: a funda-ção da cidade, independência e seu cente-nário, épocas retratadas em paisagens sere-nas, calmas, que evidenciam a organizaçãosocial e urbanística. Há, no entanto, ummomento de perturbação dessa ordem, su-bentendida nos nomes dos donatários ilus-tres realçados no friso, que denunciam asfalcatruas do marquês de Cascaes contra acondessa de Vimieiro, como mostramosanteriormente, momento esse associado aoperíodo colonial, no qual o próprio rei teriatomado parte do conluio contra a condessa(Calixto, 1924). À celebração da indepen-dência contrapõe-se a denúncia da colônia.Nessa perspectiva, a fundação da cidadenão tem sentido se for vista como um atofechado em si mesmo, mas como o pontode partida de um processo que é precisoentender e impulsionar, ou acontece o seudesvio, como na colônia.

O recurso unificador dos acessórios fazcom que as referências temporais sejam

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relativizadas. Benedito Calixto está natu-ralizando um processo, como se as leis danatureza fossem tão verdadeiras que dequalquer ponto, no tempo ou no espaço,dadas certas características, poder-se-iaadivinhar o desenvolvimento futuro ou opassado. No painel central é onde se reve-lam essas características essenciais: estacena central parece mais um close de lune-ta tomado a partir de um dos pontos dosquais se avista Santos, assemelhando-se aum destaque ampliado da paisagem, no qualse enfatiza a configuração do povo, ou li-nhagem, e a tomada de contato efetivo,ordenado, regulado pelo poder público, coma terra, o meio natural. Ao contrário do que

se poderia imaginar a princípio, ou seja, deque Calixto estaria contestando a exatidãoda data ou da autoria da fundação da cidade,ao apresentar Santos já com algumas casasquando da chegada de Brás Cubas, ele o estáreforçando numa outra perspectiva, ou seja,está construindo a sua tese a respeito do mo-mento da fundação. Não exatamente o dachegada do primeiro português, do estabe-lecimento do primeiro engenho, câmara,construção do porto ou qualquer outro indí-cio físico específico, mas o momento emque três fatores se conjugam: um novo povo,uma natureza e um poder organizado e ins-tituído. Para ele, esse encontro é o momentoda fundação por excelência.