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ARTIGOS A FUNDAMENTAÇÃO KANTIANA DO ESTADO DE DIREITO Aylton Barbieri Durão Universidade Estadual de Londrina A fundamentação kantiana do estado de direito é significativamente influenciada pelo pensamento do filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau, o qual propôs duas formas de fundamentação, elaborando duas concepções distintas do contrato social: uma explicação empírica (basea- da na antropologia) sobre a origem do estado civil mediante um contrato social espúrio firmado em condições de extrema desigualdade e, conse- qüentemente, violência 1 ; e uma fundamentação teórica a partir da filo- sofia política, que entende o contrato social como uma "associação para defender a pessoa e a propriedade de cada membro, na qual, cada um, unindo-se a todos, somente obedece a si mesmo e permanece tão livre quanto antes" 2 . Por isso, Kant enuncia também duas formas distintas de fundamentação do estado de direito: uma empírica, através da antropolo- gia e da filosofia da história, e outra racional-prática, na filosofia política e jurídica. A explicação histórico-antropológica sobre o surgimento do estado civil procede da extraordinária reconstrução que Kant realiza do pensa- mento de Rousseau. Desde as Observações sobre o sentimento do belo e o sublime, bem como as Explicações correspondentes, escritas na década de 1760, Kant expressa um sentimento ambíguo a respeito do filósofo genebrino, pois a primeira impressão que constata nascer da leitura de Rousseau é a fascinação pela beleza da expressão, jamais manifestada por nenhum outro escritor; não obstante, em um segundo momento, depois de 'ROUSSEAU, J.-J. Discours sur l 'origine et !es fondements de i'inégalité parmi les homines, p. 107. 2 14., Du contraí social, 1 VI. p. 522. Philosophica, 24, Lisboa, 2004, pp. 5-20

A Fundamentação Kantiana Do Estado de Direito

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  • ARTIGOS

    A F U N D A M E N T A O K A N T I A N A DO E S T A D O D E D I R E I T O

    Aylton Barbieri Duro Universidade Estadual de Londrina

    A fundamentao kantiana do estado de direito significativamente influenciada pelo pensamento do filsofo genebrino Jean-Jacques Rousseau, o qual props duas formas de fundamentao, elaborando duas concepes distintas do contrato social: uma explicao emprica (basea-da na antropologia) sobre a origem do estado civil mediante um contrato social esprio firmado em condies de extrema desigualdade e, conse-qentemente, violncia1; e uma fundamentao terica a partir da filo-sofia poltica, que entende o contrato social como uma "associao para defender a pessoa e a propriedade de cada membro, na qual, cada um, unindo-se a todos, somente obedece a si mesmo e permanece to livre quanto antes"2. Por isso, Kant enuncia tambm duas formas distintas de fundamentao do estado de direito: uma emprica, atravs da antropolo-gia e da filosofia da histria, e outra racional-prtica, na filosofia poltica e jurdica.

    A explicao histrico-antropolgica sobre o surgimento do estado civil procede da extraordinria reconstruo que Kant realiza do pensa-mento de Rousseau. Desde as Observaes sobre o sentimento do belo e o sublime, bem como as Explicaes correspondentes, escritas na dcada de 1760, Kant expressa um sentimento ambguo a respeito do filsofo genebrino, pois a primeira impresso que constata nascer da leitura de Rousseau a fascinao pela beleza da expresso, jamais manifestada por nenhum outro escritor; no obstante, em um segundo momento, depois de

    'ROUSSEAU, J.-J. Discours sur l 'origine et !es fondements de i'ingalit parmi les homines, p. 107.

    2 14., Du contra social, 1 V I . p. 522.

    Philosophica, 24, Lisboa, 2004, pp. 5-20

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    um estudo reflexivo, o leitor se sente perplexo diante das singularidades e paradoxos provocados por seus estranhos pontos de vista, o que inclusive leva Kant a pensar que se trata unicamente de uma esgrima de eloqncia com a inteno de prevalecer sobre todos os seus rivais3.

    Kant, contudo, entende que estes paradoxos provm exclusivamente do estilo "hipocondraco" de Rousseau, mas que, por trs das aparncias, ele descobriu "a natureza profunda do homem" e "a lei oculta sob a diver-sidade das aes humanas", assim como Newton explicou, mediante uma frmula simples, a lei da gravitao universal que confere ordem ao movimento dos corpos celestes, onde antes somente havia caos4.

    Kant tambm encontra coerncia e unidade no conjunto da obra de Rousseau, embora a considere escrita premeditadamente de forma pol-mica. Num primeiro grupo de livros, Rousseau descreve o estado de natureza como um estado de inocncia, uma vez que supe o homem como um ser naturalmente bom, embora de um modo negativo, porque no deliberadamente mau, mas corre o risco de ser corrompido pelos maus tutores medida em que evolui a cultura e a civilizao, o que resulta no conflito da cultura com a natureza da espcie humana, do qual se originam todos os males da humanidade; no Discurso sobre as cin-cias e as artes, mostra o preconceito originado pela cultura e as cincias; no discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade, expe como a civilizao engendra a desigualdade e a opresso recprocas; e, na Nova Elosa, descreve como uma educao antinatural ocasiona uma deformao da ndole moral; contudo, Rousseau no defende a volta do homem selva, o que inclusive impossvel, pois "o guardio da porta do paraso lhe impede retornar com sua espada de fogo"5. Portanto, este grupo de obras serve unicamente como fio condutor que indica como a espcie humana deve sair do erro dos males gerados por sua prpria culpa, o que permite, no segundo grupo, constitudo pelo Contrato social e o Emilio, solucionar um problema mais complicado que consiste em explicar como a cultura deve progredir para desenvolver as disposies da espcie humana em um sentido moral, sem entrar em contradio com seu sentido natural6.

    Kant, contudo, prefere evitar os paradoxos que Rousseau esgrimia contra seus adversrios, inclusive porque foram objeto de numerosos mal-entendidos e, conseqentemente, de crticas. Por isso, introduz a filosofia da histria como um elo intermedirio entre a antropologia evo-

    3 KANT, (. Kant: Antologia, p. 156. 4 Ibid., p. 157. 5 Id., Anthropologie in pragmatischer Hinsicht. IKW V I I I . p. 221. 6 Id., Mutmalicher Anfang der Menschengeschichte. IKW VII . p. 334. Cf. tambm: Anthro-

    pologie in pragmatischer Hinsicht, IKW VII I . p. 220-1 c Antropologia practica, p. 78.

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    lucinista e a filosofia poltico-jurdica de Rousseau, a qual desenvolve, juntamente com seu discpulo Herder, na dcada de 1780, no intento de apresentar uma explicao sistemtica do progresso da humanidade.

    Tanto a antropologia quanto a filosofia da histria investigam o homem como fenmeno, quer dizer, como um animal submetido causa-lidade pela natureza, ao contrrio da moral (tica e direito) que analisa o homem como noumenon, de acordo com a causalidade pela liberdade (soluo da terceira antinomia da razo pura), porque, independentemente do conceito que se possa formar sobre a liberdade de arbtrio, as manifes-taes fenomnicas das aes humanas so determinadas por leis da natureza como qualquer acontecimento natural7, Esta causalidade procede da prpria natureza humana e encadeia estatisticamente, embora no individualmente8, as aes, de tal forma que Kant atribui uma teleologa aos acontecimentos da natureza em explcita oposio idia epicurista de que a natureza governa pelo acaso9 e, em muitas ocasiones, afirma que a "Natureza" ou a "Providencia" determina o progresso da humanidade.

    A natureza estabelece que todas as espcies evoluam no sentido de desenvolver plenamente suas disposies naturais, mas, ao contrrio dos animais, entre os homens esse destino no pode ser alcanado pelo indiv-duo ao longo de sua vida, mas somente pela espcie que, mediante o anta-gonismo de suas disposies naturais, se aproxima, depois de muitas geraes, do iluminismo e do aperfeioamento1 0.

    Este antagonismo procede da dupla tendncia presente na natureza humana: por um lado, tende a se individualizar, pois cada um quer submeter tudo a sua vontade e se torna propenso a resistir aos demais, bem como esperar a resistncia deles; mas, por outro lado, tende a se socializar, j que somente junto com outros homens pode desenvolver verdadeiramente suas disposies naturais11. Portanto, Kant adota uma posio intermediria frente ao liberalismo e ao republicanismo com rela-o ao problema da natureza humana, pois qualifica o homem, simulta-neamente, como um animal individual e social; enquanto o primeiro defende o "individualismo possessivo", o segundo recorda a concepo aristotlica de que o homem um animal poltico. Mas, sob este aspecto, Kant tambm pretende unificar sistematicamente a concepo da natureza humana presente nos numerosos paradoxos da antropologia de Rousseau, uma vez que este oscila entre valorizar, por um lado, o individualismo do

    7 Id., Idee zu einer allgemeinem Geschichte in weitbrgerlicher Absicht. IKW IV. p. 151. 5 Ibid., 151. 9 Ibid., 159-60. 10 Id., Antropologa practica, p. 74-5. " Id., Idee zu einer allgemeinem Geschichte in weltbrgerlicher Absicht. IKW IV. p. 155.

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    homem originrio independente de qualquer determinao social {Discurso sobre a desigualdade) e a liberdade de uma educao liberal (Emilio), ou, por outro, a solidariedade da vontade geral no plano poltico que suprime todos os interesses privados (Contrato social).

    Kant denomina o antagonismo entre todos, que resulta da tendncia simultnea individualizao e socializao, de "insocivel sociabilida-de", a qual torna inseparvel a inclinao de viver em sociedade com as hostilidades que ameaam, insistentemente, dissolv-la. Este conflito desperta em cada indivduo o desejo de superar os seus adversrios, origi-na a ambio, a cobia e a vontade de dominar. Por isso, o homem sai do estado natural de preguia, em que viveria harmoniosamente como um pastor de ovelhas e, por causa da resistncia de cada um contra as inten-es egostas dos demais, desenvolve todas as disposies naturais que possui em grmen: a cultura e a civilizao. A insocivel sociabilidade obriga a que se desenvolva, tambm, uma organizao poltica e jurdica, a constituio republicana, o direito de gentes e o direito cosmopolita, que obriga o indivduo patologicamente a obedecer a lei, mas cujo com-portamento se converte gradualmente em um comportamento moral, na medida em que o indivduo comea a agir por respeito lei 1 2 .

    A filosofia kantiana da histria, evidentemente, realiza uma recons-truo do pensamento rousseauniano que integra elementos da doutrina liberal dos moralistas escoceses, Mandeville, David Hume e Adam Smith e da tica do estoicismo. Pois Kant considera que a evoluo das disposi-es naturais da espcie humana, que permite a aproximao da humani-dade da constituio republicana, da federao de estados e do direito cosmopolita e, finalmente, a moralizao das aes humanas, depende da insocivel sociabilidade, que uma verso da ideologia liberal segundo a qual a livre competio dos agentes econmicos que perseguem interes-ses privados gera o mximo de benefcios para todos como se fossem conduzidos por uma mo invisvel, mas a insere dentro da teoria estica de que existe um logos que governa todas as coisas na natureza, inclusive as aes humanas, conforme o adgio "o destino guia os que se subme-tem e arrasta os que resistem"13. Mas esta sntese permite a Kant neutrali-zar, simultaneamente, o empirismo liberal, porque a insocivel sociabili-dade constitui o mecanismo que possibilita a constante aproximao meta realizao da razo prtica na histria, e a metafsica estica, uma vez que a lgica da histria no procede de uma lei inerente natureza do universo, mas do antagonismo entre os interesses privados dos sujeitos e, por isso, a humanidade se aproxima constantemente de sua moralizao, sem jamais alcanar o final da "Histria".

    12 Ibid., p. 155. 1 3 Id., Zum ewigen Frieden. IKW V I . p. 452.

  • A fundamentao Kantiana ao cstaao ae uireuo

    Alm do mais, a insocivel sociabilidade aparece na filosofa kantia-na da historia como um mecanismo da natureza que permite, atravs do antagonismo recproco dos individuos, neutralizar suas tendncias egos-tas, de tal forma que o problema do estabelecimento do estado de direito tem soluo, inclusive para um povo de demonios, contanto que eles tenham entendimento, porque, apesar de suas intenes malvolas, a resistncia que cada um oferece ao outro, as elimina mutuamente, de tal forma que sua conduta pblica no reflete as inclinaes subjetivas, mas a obedincia externa lei, embora no o respeito pela lei. Contudo, o fato de que a insocivel sociabilidade permite que a razo prtica se realize na histria, no justifica a crtica de que o estado de direito poderia ser fun-damentado a partir da escolha racional de um benthamiano auto-interessado movido apenas pelo princpio utilitarista de maximizao da felici-dade, o que anularia a especificidade da razo prtica 1 4, porque, em pri-meiro lugar, Kant jamais afirmou que os egostas racionais deduziriam exatamente o mesmo estado de direito que surgiria do uso da razo prti-ca, mas apenas que a insocivel sociabilidade consiste em um mecanismo da natureza para auxiliar a razo prtica na sua tarefa de mostrar que o que correto na teoria tambm pode ser aplicado na prxis, e, por outro lado, inspirado na teoria da justia de John Rawls, que retoma a concep-o kantiana de que um povo de demnios pode deduzir um estado de direito, na medida em que desenvolve um procedimento segundo o qual os egostas racionais so obrigados a aceitar os princpios da justia, pode-se entender a insocivel sociabilidade tambm como um procedi-mento que estabelece as condies externas que obrigam os egostas racionais a chegar a um resultado moral, apesar de que os prprios sujei-tos, orientados por seu auto-interesse, percebam esses direitos simples-mente como um produto de sua escolha racional e no se do conta de seu contedo genuinamente prtico.

    A antropologia e filosofia da histria kantianas, contudo, explicam de duas formas distintas, embora vinculadas, o progresso das disposies naturais do indivduo: a partir da perspectiva da espcie, a evoluo da humanidade, que ocorre atravs da insocivel sociabilidade, conduz do pior para o melhor, uma vez que inclusive os males e infortnios que sofre por sua prpria culpa, conduzem moralizao da humanidade, mas isso contrasta significativamente com o ponto de vista do indivduo, para quem se d uma relao dialtica entre o natural e o social15, que engen-dra trs estgios de desenvolvimento.

    1 4 BAYNES, K. The normative grounds of social criticism, p. 12. 1 5 "As etapas naturais no coincidem com as especficas do estado civil, o que origina

    uma antinomia do bem e do mar'. KANT, I . Antropologia prctica p. 76. Cf. tambm: Mutmalicher Anfang der Menschengeschichte. IKW IV, p. 334.

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    O primeiro estgio corresponde ao estado de natureza, no qual os homens so felizes de um modo negativo, j que se encontram em uma forma de paraso no qual vivem em harmonia com a natureza, governados pelo instinto16, "a voz de Deus que todos os animais obedecem"17.

    Com o desenvolvimento natural da razo, contudo, o homem sai da custdia da natureza e passa ao estado de liberdade18, que representa o estgio intermedirio ou segundo estgio da histria humana, no qual abandona o isolamento para ingressar na sociedade com os demais. Mas, o estado de liberdade representa uma queda, pois a cultura e a civilizao que surgem com a sociedade, em lugar de possibilitar a manifestao da natureza boa do homem, trazem consigo toda uma srie de vcios que lhe corrompem. Kant descreve a perda da inocncia inicial em termos expli-citamente rousseaunianos: o homem, que cuidava moderadamente de suas pequenas necessidades, comea a se julgar pobre na medida em que teme que os demais o depreciem por sua condio e, por isso, o simples fato de que se encontre em meio a outros homens suficiente para que corrom-pam reciprocamente sua natureza, naturalmente moderada, independen-temente da influncia do mal ou de exemplos sedutores, o que origina a inveja, a cobia, a avareza e as hostilidades19. Portanto, surge uma contra-dio dialtica entre a natureza originalmente boa do homem e a forma de organizao da sociedade, da qual provm todos os males para a humani-dade, pois, como censura corretamente Rousseau, a estrutura poltica e jurdica da sociedade implica o surgimento da desigualdade de direitos entre os homens naturalmente livres e iguais por natureza20 e, por isso, Kant concorda com Rousseau em que o estado de liberdade com-parativamente pior que o estado de natureza21.

    Somente depois de muitos infortnios, porque a humanidade sai do estado de natureza sem um plano, a insocivel sociabilidade conduz, finalmente, ao terceiro estgio, no qual se reconcilia, mais uma vez, a sociedade com a natureza22, e a humanidade se aproxima de uma estrutu-

    1 6 Id., Antropologiaprctica. p. 75. 1 7 Id., Mutmalicher Anfang der Menschengeschichte. IKW IV. p. 329.

    18 Ibid., p. 66. 1 9 Id., Die Religion innerhalb der Grenzen der bloen Vernunft. IKW V I . p. 237-8.

    2 0 Id., Mutmalicher Anfang der Menschengeschichte. IKW IV. p. 336 n. 2 1 Id., Antropologia prctica. p. 75. 2 2 "No obstante, as incitaes aos vicios - que costumam ser responsabilizadas - so em

    si mesmas boas e adequadas enquanto disposies naturais, mas estas disposies so prejudicadas pelo progresso, porque esto ajustadas, ao estado de natureza, at que o aperfeioamento da cultura se torne novamente natureza: o que constitui o fim ltimo do destino da espcie humana" Id., Mutmalicher Anfang der Menschengeschichte. IKW IV. p. 335-6.

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    ra poltico-jurdica regida peia constituio republicana no direito polti-co, a federao de estados no direito de gentes e o direito cosmopolita, que implica um aumento crescente da legalidade, medida que as aes humanas passam a se conformar externamente com o dever, o que permi-te substituir gradualmente o estado de natureza jurdico pelo estado civil jurdico. Apesar do aumento da legalidade no implicar automaticamente no aumento da moralidade e tambm no se poder impor politicamente a moralizao das aes humanas, a legalidade possibilita ao sujeito agir tambm pelo sentimento de respeito lei moral, de tal forma que o estado de natureza tico em que nos encontramos seja substitudo pelo estado civil tico, no qual os homens obedeam a lei moral como uma segunda natureza23. Portanto, no ltimo estgio se reconciliam, novamente, socie-dade e natureza, porque as condies poltico-jurdicas da sociedade per-mitem que o sujeito aja moralmente a partir da conscincia da lei moral inscrita em sua prpria natureza, mas, depois desta larga evoluo, o homem no manifesta nas aes sua natureza originalmente boa, mas uma nova natureza cultivada pela razo prtica. Por conseguinte, se equi-vocam as antropologas quando inventam fices e utopias que identifi-cam a idade de ouro da humanidade no primitivo estado de natureza, pois somente neste ltimo estgio, ainda desconhecido, os homens sero feli-zes positivamente24.

    A partir desta reconstruo que realiza do pensamento de Rousseau, Kant explica ainda a passagem histrico-antropolgica do estado de natu-reza ao estado civil. Em primeiro lugar, a antropologia e a filosofia da histria aceitam a existncia do estado de natureza no qual o homem, como um animal governado pelo instinto, vive inicialmente, isolado dos seus semelhantes, subsistindo exclusivamente do que a natureza lhe ofe-rece mediante a coleta de frutos, a caa e a pesca; contudo, com o desen-volvimento da razo e, em conseqncia, da liberdade, o homem entra em um novo perodo da histria caracterizado pelo trabalho, pois aprende a agricultura e a domesticao dos animais, embora tambm pela discrdia entre agricultores e pastores, j que a agricultura demanda o surgimento da propriedade e do sedentarismo, enquanto o pastoreio exige continua-mente novos pastos, o que conduz ao nomadismo e resistncia a que se coloquem cerca nos campos, que s termina com o afastamento entre agricultores e pastores; na medida em que a agricultura necessita da resi-dncia permanente e da propriedade do solo, esta requer tambm o agru-pamento dos homens em pequenas comunidades para sua defesa contra os ataques de caadores selvagens e pastores nmades, o que possibilita o

    2 3 Id., Die Religion innerhalb der Grenzen der bloen Vernunft. IKW V I . p. 239-42. 2 4 Id., Antropologa prctica, p. 75.

  • Ayiwn tsaroieri uurao

    desenvolvimento da cultura, dos negocios e do cio; neste momento, surge a desigualdade entre os individuos dentro da cidade, o que causa o aparecimento da violncia, e como ambos (desigualdade e violncia) aumentam constantemente, ameaam a propriedade privada. O resultado a introduo da constituio civil e da justia pblica atravs de urna forma de governo que assume o monopolio legal da violncia, anterior-mente nas mos dos indivduos 2 5.

    Por conseguinte, em Provvel comeo da histria humana, Kant repete quase inteiramente as frmulas rousseaunianas expostas no Dis-curso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens: o direito e o estado civil surgem simultaneamente para proteger a pro-priedade privada do incremento permanente da violncia resultante da desigualdade econmica e social, o que introduz uma nova forma de desi-gualdade entre os homens no plano jurdico e poltico. Contudo, neste ponto surge uma diferena notvel entre Rousseau e Kant porque o pri-meiro explica a passagem do estado de natureza ao estado civil por meio de um contrato social esprio, enquanto que o segundo no faz nenhuma referencia ao contrato social na explicao histrica do surgimento do estado de direito.

    Efetivamente, Rousseau enuncia dois conceitos paradoxais de con-trato social, ambos constitutivos do estado civil: o contrato social esprio o princpio constitutivo da explicao emprica do estado civil, pois ele conjectura que os ricos, carentes de foras suficientes para proteger sua propriedade privada, bem como de razes legtimas para justific-la, uma vez que esta se apoiava em um direito precrio e abusivo, expuseram aos seus vizinhos a gravidade da situao em que todos se encontravam, na qual ningum tinha segurana para sua pessoa e sua propriedade e inven-taram um projeto de unio de todos, o contrato social esprio, para prote-ger os fracos da opresso, assegurar a propriedade e instituir a justia e a paz, argumento que convenceu facilmente os homens rudes para implan-tar o estado civ i l 2 6 ; enquanto o contrato social racional aparece como princpio constitutivo para fundamentao racional do estado civil, na medida em que Rousseau supe o aparecimento, em determinado momento, de obstculos prejudiciais conservao dos homens no estado de natureza, que superavam suas foras individuais e tornaram impossvel a subsistncia neste estado, por isso, os homens reuniram suas foras coletivamente, embora movidos pela preocupao de no prejudicar, nem desatender os cuidados que cada indivduo deve para si mesmo, e esta-beleceram uma forma de associao, o pacto social, para defender e pro-

    2 5 Id., Mutmalicher Anfang der Menschengeschichte. IKW IV. p. 338. 2 6 ROUSSEAU, J.-J. Discours sur 'origine et les fondements de l'ingalit parmi les

    hommes. p. 107.

  • A fundamentao Kantiana ao tLsiaao ae uireito

    teger a pessoa e a propriedade de cada associado, de tal modo que cada um somente obedea a si mesmo e permanea to livre quanto antes, por meio de uma alienao total de cada associado e de seus direitos comu-nidade27.

    Kant concorda expressamente com a segunda descrio do contrato social de Rousseau, porque define o contrato originrio, como o nico tipo de contrato a partir do qual possvel estabelecer uma comunidade, na medida em que permite a conciliao de todas as vontades particulares e privadas dentro de um povo para constituir uma vontade comunitria e pblica 2 8, portanto, como a prpria vontade unida do povo. Contudo, observa que para constituir o estado civil no suficiente a vontade de todos os indivduos (a unidade distributiva da vontade de todos), ou seja, que cada um dos indivduos privadamente deseje viver sob os princpios da liberdade garantidos pela constituio civil, uma vez que isto exige que todos, conjuntamente, o queiram (unidade coletiva da vontade unifi-cada). Mas, no estado de natureza, somente se pode esperar a conciliao da diversidade das vontades particulares a partir do princpio do direito e jamais a vontade unida de todos, ento, a nica causa unificadora da von-tade comum capaz de explicar a origem do estado civil a violncia2 9

    cometida por um usurpateur que se estabelece como soberano30 no momento em que rene a "selvagem multido em um povo"3 1.

    Evidentemente, ao considerar que a violncia exercida por um usurpador a causa da formao da vontade unificada e da comunidade jurdica entre os homens, Kant somente est aludindo explicao hist-rico-antropolgica do estado civil, o que explica por que desnecessria a hiptese de um contrato social esprio como princpio constitutivo do estado civil; isso confirmado pela inexistncia de qualquer referncia ao contrato social na explicao histrico-antropolgica sobre o surgimento do estado de direito3 2.

    2 7 Id., Du contrai social. 1 V I p. 522. 2 8 KANT, I . ber dem Gemeinspruch: das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber

    nicht fr die Praxis. IKW V I . p. 380. 2 9 Id., Zum ewigem Frieden. IKW V I . p. 458. 3 0 Id., Kant: antologia, p. 95. 3 1 Id., Zum ewigem Frieden. IKW V I . p. 458. 3 2 Isso tambm corroborado nas reflexes no publicadas por Kant sobre filosofia do

    direito, onde nega que o contrato primitivo seja a origem, ou princpio do estabeleci-mento ou o princpio de explicao, quer dizer, o princpio constitutivo ftico do estado civil, porque um prncipe usurpou o poder, instituiu o estado civil e utiliza o contrato social como a regra para a administrao do estado como um ideal da legislao, do governo e da justia pblica com o propsito de implantar um estado perfeito indepen-dentemente da opinio do povo. Id., Kant: antologia, p. 95.

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    Contudo, a partir da explicao anterior possvel justificar, tambm por que Kant estima que o contrato originrio tambm no pode ser o princpio constitutivo da fundamentao racional do estado de direito. Para Hobbes e Locke, o contrato social o princpio constitutivo do esta-do civil para sujeitos que se encontram no estado de natureza na medida que cada um julga segundo o critrio da escolha racional, portanto, subje-tivamente, se a entrada no estado civil o melhor para seus prprios inte-resses; entretanto, para Rousseau, o contrato social a prpria vontade geral e, para Kant, a vontade unida do povo, isso significa que, se o contrato social o princpio constitutivo do estado civil, ento, os sujeitos teriam que se reunir no estado de natureza movidos pela inteno de chegar ao genuno consentimento de fundamentar o estado civil; mas isso, alm de ser impossvel sob as condies do estado de natureza, em que no mximo se pode esperar a conciliao da vontade privada sob o princpio do direito, pois "a unio em todas as relaes externas... somente pode ocorrer em uma sociedade quando j se encontra no estado civil e constitui uma comunidade"33, representaria, conseqentemente, uma petitio principii, pois pressupe como fundamento do estado civil uma unidade das vontades que somente pode comear com o prprio estado civil.

    Por isso, o contrato originrio no um fato, uma vez que a usurpa-o provocou histrico-antropologicamente o estado civil, mas tambm no um princpio constitutivo do estado civil, j que a unidade das vontades que o contrato originrio representa somente pode se efetivar no prprio estado civil, quando o usurpador assume a soberania mediante a reunio da selvagem multido em um povo.

    Apesar do contrato originrio no funcionar como princpio constitu-tivo emprico ou racional do estado civil, ele uma idia da razo com indubitvel realidade prtica que serve como princpio regulativo que orienta as aes humanas34 para sair do estado de natureza e instituir o estado civil, pois, na "Doutrina do direito", Kant expressa claramente que o contrato originrio, ou, mais propriamente, a idia do contrato origin-rio, o ato atravs do qual o prprio povo se constitui como estado na medida em que todos renunciam a sua liberdade externa inata, que pode se conciliar somente no estado de natureza, para recuper-la como mem-bros de uma comunidade, ou seja, do estado civi l 3 5 , embora tambm constitui o modo a priori de elaborao de leis, uma vez institudo o estado civil, o contrato originrio uma idia da razo que obriga o

    3 3 Id., ber dem Gemeinspruch: das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht fr die Praxis. IKW V I . p. 372.

    34 Ibid., p. 381. 35 Id., Die Metaphysik der Sitten. IKW V I I . 47. p. 122. *.

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    legislador a promulgar as leis "como se" estas pudessem resultar da vontade unida do povo 3 6.

    Alm do mais, em duas ocasiones, em Teoria e praxis, Kant afirma, explicitamente, que o contrato originrio o fundamento do estado civil. Em primeiro lugar, declara que existem muitos tipos de contratos sociais em que os homens se unem para formar uma sociedade, conjugal, fami-liar, domstica, comercial, civil, etc., os quais tm em comum a forma de execuo, j que estabelecem uma associao de homens para realizar um fim; mas o contrato originrio se distingue de todos os demais contratos sociais no princpio de instituio, porque o fim que se prope a insti-tuio da constituio civil 3 7 , por isso, Kant prefere a expresso contrato originrio e no simplesmente contrato social; em seguida, declara que o contrato originrio o nico princpio a partir do qual possvel fundar uma constituio civil legtima e sem exceo para todos os homens38.

    O contrato originrio, contudo, como idia regulativa, no pode ser o princpio constitutivo do estado civil, por isso, Kant desenvolve um argu-mento para demonstrar como o contrato originrio orienta a relao externa entre os homens para sair do estado de natureza e entrar no estado civil, sem ser diretamente responsvel pela fundamentao do estado de direito:

    O estado civil seria impossvel caso no se quisesse reconhecer nenhu-ma aquisio legal, pelo menos provisoriamente, antes que se entre nele. Porque a forma das leis sobre o meu e o teu no estado de natureza con-tm o mesmo que sancionado no estado civil, quando este pensado simplesmente segundo princpios puros da razo; mas este ltimo espe-cifica as condies sob as quais aquelas podem ser realizadas (de acordo com a justia distributiva). - Portanto, se no houvesse ao menos provi-soriamente um meu e teu externos no estado de natureza, tambm no haveria deveres jurdicos com relao a eles e, conseqentemente, man-dato algum que obrigasse a sair daquele estado39.

    A primeira premissa do argumento consiste em asseverar que exis-tem direitos provisrios no estado de natureza, porque a liberdade externa inata (o meu interno) possibilita que os arbtrios utilizem objetos externos segundo o postulado jurdico da razo prtica, uma vez que se no fosse possvel juridicamente usar objetos externos do arbtrio que podem ser usados fisicamente, ento, a liberdade se privara a si mesma do uso de

    3 6 Id., ber dem Gemeinspruch: das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht fr die Praxis. I K W V I . p. 381.

    3 7 Ibid., p. 372. 3 Ibid., p. 380. 3 9 Id., Die Metaphysik der Sitten. IKW V I I . 44. p. 119.

  • Ib Ayuon tsaroieri uurao

    objetos utilizveis e haveria coisas sem dono ou res nullius. Mas, este postulado uma lei permissiva da razo e demonstra simplesmente que a liberdade externa inata regula a forma de relao externa entre os arbtrios de modo que o livre arbtrio de um pode se conciliar com o arbitrio de todos os demais no uso de objetos externos. Contudo, o direito privado no pode ser deduzido analiticamente da liberdade externa, mas apenas sinteticamente, mediante a vontade unida do povo (contrato originrio): todos os homens esto originariamente na posse comum inata do solo e manifestam a vontade de us-lo, embora o antagonismo recproco que surgiria entre eles anularia todo o uso do solo se no fosse permitida sua posse privada; ento, o primeiro ocupante toma posse .de um terreno particular por um ato do arbitrio privado, mas sua vontade unilateral no pode garantir a posse, porque somente a vontade universal pode gerar a obrigao para todos os demais de se afastar de seu terreno. Por conseguinte, a posse jurdica de objetos do arbtrio s possvel precisamente porque o contrato originrio uma idia da razo com realidade prtica que orienta o comportamento externo dos arbtrios, mas esta posse permanece provisria enquanto a vontade unida do povo no se tornar efetiva no estado civil.

    Por isso, Kant considera que o estado de natureza um estado no--jurdico, no qual os ocupantes mediante seu arbtrio privado somente possuem uma presuno de direitos, o que torna esses direitos privados provisrios enquanto no se dispe de todas as formas da justia pblica. A justia pblica constitui o princpio formal que define a possibilidade de uma relao entre homens segundo a qual cada um pode participar do seu direito quando que este concorda com a vontade universalmente legisladora. H trs formas da justia pblica, correspondentes respecti-vamente possibilidade, realidade e necessidade da posse dos objetos externos do arbtrio: a justia protetora (iustitia tutatrix), cuja lei enuncia qual comportamento internamente justo segundo a forma, uma vez que o arbtrio de um pode se conciliar com o arbtrio de todos os demais, a justia comutativa (iustitia commutativa), que enuncia a lei que externa-mente legal segundo a matria, o que determina a posse jurdica do objeto externo do arbtrio, e a justia distributiva (iustitia distributiva), que enuncia a lei a partir da qual o tribunal pode emitir a sentena adequada para um caso particular e, em conseqncia, o que juridicamente cor-reto40. No estado de natureza somente se podem encontrar as duas primeiras formas da justia pblica, pois o postulado jurdico da razo prtica possibilita a posse dos objetos externos do arbtrio (justia protetora), enquanto a antecipao da vontade unida de todos permite que

    40//., 4 1 . p . 112-3.

  • rUfiuumeniuuv rtimttunu ao asiuuit ue utrcuu

    haja uma presuno de direitos que se manifesta na posse jurdica provi-sria dos objetos externos do arbtrio (justia comutativa), mas carece da justia distributiva emitida pelo tribunal, no caso de que sujam conflitos na possejurdica dos objetos externos do arbtrio4 1.

    A segunda premissa enuncia que no suficiente reconhecer a exis-tncia da presuno de direitos propriedade privada provisria no esta-do de natureza, porque como pensa Hobbes, o contrato social poderia implicar a renncia destes direitos naturais no soberano; portanto, se estes desempenham um papel na fundamentao do estado civil, ento, o con-trato originrio tem que transform-los em peremptrios, e, por isso, a matria das leis referentes ao direito privado tem que ser a mesma no estado de natureza e no estado civil. Kant afirma, efetivamente, que a for-ma da lei comum aos dois estados; no obstante, isso constitui um erro, porque ele mesmo sustenta, em outra parte, que a matria idntica nos dois estados, embora no estado civil se agrega a forma jurdica da convi-vncia, ou seja, a constituio civil, que converte em pblicas as leis sobre a propriedade privada42.

    Por isso, Kant distingue o direito privado e o direito pblico simples-mente a partir do critrio de que o primeiro corresponde ao estado de natureza, enquanto que no estado civil, o direito privado se converte em direito pblico sancionado pelo contrato originrio, entretanto, nem todo direito pblico do estado civil direito privado, uma vez que a vontade unida do povo promulga tambm os princpios do estado de direito (do direito poltico expressos na constituio republicana, inclusive do direito penal e do bem-estar social), do direito de gentes e cosmopolita, que so direitos pblicos que no podem ser fundamentadas no estado de nature-za. Ademais, ao considerar que o estado civil torna peremptria a presun-o de direitos do estado de natureza, Kant no concorda com Locke, mas com Rousseau, segundo quem quando se forma a comunidade, cada membro se entrega a ela com todas as suas foras, inclusive com seus bens, mas isso no significa que, pelo pacto social, a posse problemtica do estado de natureza, que procede da fora ou do direito do primeiro ocupante, mude de mos e passe a pertencer ao soberano, uma vez que o pacto social simplesmente a converte em propriedade privada, que se pode fundar em um ttulo positivo mais forte e irrevogvel4 3.

    Em concluso, Kant enuncia que, em virtude da violncia que proce-de da ausncia da justia pblica, ningum est seguro dos seus direitos provisrios no estado de natureza. Kant entende esta violncia simulta-

    4 1 Ibid., 41. p. 112-3. 4 2 Ibid., 41, p, 113. 4 3 ROUSSEAU, J. J. Du contra social, 1 IX. p. 524.

  • 18 Aylton Barbieri Duro

    neamente da perspectiva histrico-antropolgica, por um lado, e da normativa, por outro. Do ponto de vista histrico-antropolgico, se ope a Hobbes, que considera o estado de natureza como um estado de violn-cia efetiva entre os homens, bem como a Locke, que o apresenta como um perodo relativamente pacfico e fraternal, na medida em que se apropria da concepo antropolgica evolucionista de Rousseau e, por isso, alega que o desenvolvimento das prprias disposies naturais do homem (regidas pela insocivel sociabilidade) conduz contradio entre a natureza e a sociedade que resulta no crescimento gradual da violncia. Por outro lado, do ponto de vista normativo, o estado de natureza um estado de injustia formaliter entre os homens, embora nem sempre materiater, porque no comete injustia material contra o outro quando responde a uma injustia anteriormente cometida e, se permanecem neste estado de liberdade exterior sem lei, os homens no so injustos uns com os outros se lutam efetivamente entre si, porque a violncia que vale para um vale tambm para o outro, mas so injustos em sumo grado, j que, se persistem neste estado no-jurdico, tornam inseguros todos os direitos dos homens (o direito propriedade privada) e prejudicam a validade do prprio conceito de direito. Portanto, possvel deduzir analiticamente a partir do conceito de direito, por oposio violncia que se comete con-tra o direito privado no estado de natureza, o postulado do direito pblico, que representa o princpio constitutivo do estado civil, segundo o qual est permitido coagir a todos aqueles com quem se mantenham relaes externas recprocas a sair do estado de natureza e entrar no estado civil, sem esperar as hostilidades efetivas, porque a simples permanncia no primeiro estado sem lei lesa todo o direito em geral, na medida que torna insegura a propriedade frente violncia 4 4.

    Em resumo, o argumento de fundamentao do estado civil pode ser reconstrudo do seguinte modo: (1) a partir do contrato originrio (vonta-de unida do povo) como princpio regulativo que orienta as aes huma-nas, possvel fundamentar a existncia de uma presuno de direitos ou direitos privados provisrios no estado de natureza; (2) a matria do direi-to privado a mesma no estado de natureza e no estado civil, embora se distinga pela forma, porque este torna peremptrio o direito privado atra-vs da justia distributiva; (3), ento, permanecer no estado de natureza uma violncia formaliter contra os demais, uma vez que torna insegura toda posse externa, o que possibilita deduzir analiticamente do conceito de direito por oposio violncia, o postulado do direito pblico, enquanto princpio constitutivo do estado civil, que permite obrigar a qualquer um com quem se mantenha relaes a sair do estado de natureza e entrar conosco no estado civil.

    4 4 KANT, I . Die Metaphysik der Sitten. KW V I I . 42. p. 113-4.

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  • s\yiiun Duruieri uuruu

    ABSTRACT

    Kant intends to present a foundation o f the state o f right based on the reconstruction o f Jean-Jacques Rousseau's thought. Like the Genevanese philosopher who presents an empirical explanation based on the evolutionary anthropology, and a rational foundation, based on the political and juridical philosophy, Kant also imagines two ways to fundament the state o f right. In his empirical explanation, along wi th the anthropology, he introduces the history philosophy, which considers that the unsociable sociability makes the humankind leave its state o f nature and establish, by means o f an usurper, the c iv i l state, in which it gradually approaches the republican constitution and, later, the states federation and the cosmopolitan right; the rational foundation, on the other hand, shows how the original contract indirectly determines the foundation o f the c iv i l state, to the extent that only through it is it possible to establish the presumption of the right to the private property that w i l l just turn effective in the c ivi l state itself, although the public right directly postulates the state fundament, which is obtained analytically from the principle o f the right in opposition to the concept o f violence.