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A GRÁFICA DIGITAL E O PATRIMÔNIO
ARQUITETÔNICO - PANORAMA E ESTADO DA ARTE
Aurélia Tâmisa Silvestre de Alencar UFRJ, Programa de Pós Graduação em Arquitetura
Resumo
Ao longo das últimas décadas a gráfica digital a serviço da pesquisa e divulgação do patrimônio vem se consolidando como método cientificamente válido. O artigo aqui apresentado traça um panorama da evolução da visualização computadorizada do patrimônio cultural, com ênfase no patrimônio arquitetônico. O trabalho tem como objetivo assentar as questões mais contemporâneas desse campo disciplinar através de um panorama histórico, do levantamento do cenário atual e dos trabalhos considerados mais representativos nas esferas internacional e nacional, de maneira a produzir uma reflexão crítica sobre o conceito de restauro virtual inserido no universo da arquitetura. Por se tratar de um campo relativamente recente, ainda em processo de consolidação, carece de um corpo bibliográfico mais sólido. Desta forma, serão utilizados como principais referências alguns anais de congressos, teses e artigos especializados e as duas principais cartas de recomendação em circulação na comunidade científica, recentemente publicadas: a Carta de Londres e os Princípios de Sevilha. Palavras-chave: gráfica digital, patrimônio, arquitetura, restauro virtual.
Abstract
Over the last decades digital graphics in the research and dissemination of heritage has been consolidated as scientifically valid method. This article provides an overview of developments in computer-based visualisation of cultural heritage, with emphasis on architectural heritage. The work aims to raise the historical background and the current situation with the works considered most representative, so as to produce a critical reflection about the concept of virtual restoration inside the architecture's universe. Considering it’s a relatively new field, still in the process of consolidation, lacks a solid bibliographic scope. Thus, will be used as main references some conference proceedings, theses and specialized papers, and the two
main recommendation’s charters in the scientific community, recently published: the London Charter and the Principles of Seville. Keywords: digital graphic, heritage, architecture, virtual restoration.
1 Introdução
O universo da computação gráfica associada ao patrimônio histórico, apesar de
constituir um território ainda incipiente, tem se difundido e se mostrado cada vez mais
eficiente em iniciativas com vistas a políticas de educação patrimonial, principalmente
no sentido de resgate da memória/história quando se trata de edificações,
monumentos e sítios históricos que já não existem ou se encontram em ruínas. Na
esfera acadêmica, o conceito de ‘restauro virtual’ é relativamente recente e, apesar de
estar sendo amplamente discutido, ainda não foi alvo de debates mais consistentes na
comunidade científica que tenham produzido um conjunto de orientações consensuais
à sua execução. Ainda assim, uma série de projetos, grupos de pesquisas e
laboratórios especializados observados ao longo das duas últimas décadas possibilita
que enxerguemos, com alguma nitidez, o ‘estado da arte’ desse campo.
O artigo aqui apresentado insere-se no subtema Expressão gráfica como
linguagem e no tópico de interesse Aspectos históricos e teóricos envolvendo a
expressão gráfica. Trata-se de um panorama do estado da arte desse campo
disciplinar com enfoque nos dois principais documentos de recomendação editados
pela comunidade científica nos últimos anos no âmbito da visualização
computadorizada do patrimônio cultural; e nos trabalhos considerados melhores
práticas, tanto no cenário internacional, quanto nacional.
O termo visualização computadorizada do patrimônio cultural1 esta sendo utilizado
aqui como aporte conceitual por se tratar de uma expressão instituída recentemente
pelo documento da Carta de Londres e por dar conta do objeto de estudo do artigo
que trata justamente da relação entre a gráfica digital e o patrimônio (arquitetônico,
especificamente). Associado a esse conceito, vale menção também o chamado
patrimônio virtual. Para Addison (2006, apud PARAIZO, 2009), a expressão diz
respeito ao “uso de tecnologias digitais para registrar, modelar e visualizar o
patrimônio cultural e natural”.
2 O Contexto Internacional
Em 1996, os professores da Universidade da Califórnia (UCLA) Bernard Frischer e
Diane Favro fundaram o Laboratório de Realidade Virtual Cultural (CVRLab – Cultural
1 Tradução nossa.
Virtual Reality Lab). A instituição, que durante oito anos trabalhou na aplicação de
tecnologias digitais a projetos de reconstrução e documentação de sítios patrimoniais,
pode ser considerada um divisor de águas no contexto acadêmico da visualização
computadorizada do patrimônio cultural. Foi o primeiro laboratório no mundo a usar a
visualização tridimensional na modelagem e reconstrução do patrimônio cultural.2 Foi
no CVRLab, em 1997, sob a coordenação do professor Bernard Frischer, que se
iniciou o projeto de maior referência nessa área, o Rome Reborn.
O ambicioso projeto, que atualmente se encontra em sua versão 2.1, consiste na
criação de modelos digitais 3D da Roma Antiga a partir do primeiro assentamento da
Idade do Bronze (cerca de 1000 a.C.) até o despovoamento da cidade no início da
Idade Média (aproximadamente 500 d.C.). Um Comitê Consultivo Científico
Internacional orientou os líderes do projeto a iniciarem a modelagem na data
específica de 320 d.C.
Nesse recorte temporal Roma já havia atingido o seu pico demográfico e as
principais igrejas cristãs e prédios públicos já tinham sido construídos. Muito do que
sobrevive hoje da cidade antiga remonta a esse período, e isso faz com que a
reconstrução seja o menos especulativa possível.
Esse primeiro projeto, especificamente, pretendeu espacializar e representar o
conhecimento existente sobre a Roma Antiga de 320 d.C. Duas classes de modelos
digitais foram elaborados a partir do nível de respaldo documental e arqueológico
disponível: a Classe I correspondente ao material de escavações arqueológicas,
moedas, inscrições antigas, fontes literárias e referências dos artistas do
Renascimento até o século XIX. Em suma, as principais edificações, monumentos e
estruturas urbanas; e a Classe II elaborada a partir de dois catálogos regionais (a
Curiosum e o Notitia) do século IV d.C. que ofereceu dados quantitativos sobre a
distribuição de tipos de edifícios ao longo das quatorze alas da cidade. Na ausência
total de fontes, elementos como estátuas, monumentos, a policromia e as inscrições
postadas nos edifícios, o interior dos prédios e elementos decorativos foram omitidos.
2 Disponível em <http://www.frischerconsulting.com/frischer/bio_cv.html>
Figura 1: Aqua Claudia - Rome Reborn 2.1
Figura 2: Fórum Romano - Rome Reborn 2.1
Foram disponibilizados para os usuários as fontes documentais e o raciocínio
especulativo que estruturou o modelo.
O Rome Reborn – e toda a discussão com ele introduzida – pode ser entendido
como o precursor dos debates sobre a certificação científica dos modelos digitais
históricos. E vem, desde o ano de sua fundação, mobilizando equipes
interdisciplinares e evoluindo paralelamente ao seu campo disciplinar,
retroalimentando-o.
Outros exemplos de relevância são as exibições do centro cultural Foundation
Hellenic World (FHW), em Atenas, que resgata a história da Grécia Antiga através da
reconstituição de edifícios do período helênico; os projetos de reconstrução digital
Archeoguide e 3D Murale que encontram-se em andamento sob a égide da União
Europeia, e o Fórum Flaviano de Conimbriga totalmente reconstruído em VRML
(Virtual Reality Modeling Language) que permite, através da web, que o visitante se
desloque nos ambientes internos do edifício explorando suas características. Não é
raro encontrar na web projetos deste tipo que promovem passeios virtuais imersivos
ou não imersivos em edifícios que possuam significado histórico – como, por exemplo,
o History Virtual Tours da BBC.
Em 2004, o CVRLab foi desativado e seus projetos foram relocados, em sua
maioria, para o Virtual World Heritage Laboratory (VWHL) da Universidade da
Virginia e para o Experiential Technology Center (ETC). Na UCLA, o ETC tem dado
continuidade ao trabalho do CVRLab na investigação e desenvolvimento de
ferramentas de código aberto para a criação de ambientes virtuais dinâmicos.
Quatro anos antes fora lançada a Carta de Cracóvia - Princípios para a
Conservação e Restauro do Património Edificado, que incluiu pela primeira vez na
história, no artigo 5º, uma recomendação específica para a utilização de novas
tecnologias no domínio do património arqueológico. No referido artigo pode ser lido na
íntegra: “Para a protecção e apresentação pública de sítios arqueológicos deve
encorajar-se: o recurso a técnicas modernas; a criação de bancos de dados; a
Figura 3: Projeto Archeoguide de Realidade Aumentada
Figura 4: Fórum Flaviano de Conimbriga em VRML
utilização de sistemas de informação e a utilização de técnicas de apresentação virtual
dos sítios”.3 Esta adição, sem precedentes, marcou um ponto de viragem importante
no uso da tecnologia da informação como uma ferramenta no trabalho regular de
conservação e valorização do patrimônio.
Um ensaio publicado no mesmo ano, de autoria de Bernard Frischer, F.
Niccolucci, N. Ryan e J. Barceló4, resumiu algumas das questões mais importantes
relativas às aplicações de visualização computadorizada no domínio da arqueologia.
Em particular, lidou com a mais desafiadora questão: a credibilidade e a validade dos
modelos de reconstrução de objetos, monumentos, sítios ou paisagens parcialmente
ou totalmente modificados ou destruídos, e virtualmente reconstruídos baseado numa
interpretação arqueológica. O ensaio nasceu de um debate ocorrido num simpósio no
mesmo ano que sintetizou uma série de questões já abordadas no âmbito das
publicações da comunidade científica, e deu início ao grupo Cultural Virtual Reality
Organisation (CVRO). Embora inativo atualmente, o CVRO foi fundamental nesse
cenário por ter estabelecido princípios que influenciaram profundamente importantes
projetos em ambos os lados do Atlântico.
No artigo foi sugerido que o processo de interpretação/reconstrução na criação do
modelo consiste em três etapas, como na análise filológica de um texto: verificar
fontes, analisar sua credibilidade, e interpretar/integrar dados com as partes em falta.
O resultado final deve mostrar os traços desse trabalho filológico, usando sinais na
modelagem tridimensional que denotem elementos correspondentes a interpolações,
adições e conjecturas.
No começo dessa década, inúmeros artigos, documentos – incluindo os Guias
AHDS de boas práticas para CAD e Realidade Virtual (2002) –, e iniciativas de grupos
como o CVRO e o Virtual Archaeology Special Interest Group (VASIG) sinalizaram a
importância de garantir que os métodos de visualização computadorizada fossem
aplicados com rigor científico, e que os resultados dessas pesquisas transmitissem
com transparência aos usuários as distinções entre evidência e hipótese, e entre
diferentes níveis de probabilidade.
Foi nesse contexto que em julho de 2005 o King's Visualisation Lab (KVL), do
King's College da Universidade de Londres, começou um projeto chamado ‘Making
Space’ para investigar uma metodologia para rastrear e documentar o processo
cognitivo de uma pesquisa baseada em visualização 3D.5 No decurso desse projeto,
3 Disponível em <http://www.igespar.pt/media/uploads/cc/cartadecracovia2000.pdf>
4 FRISCHER, B. et al. From CVR to CVRO. The Past, Present, and Future of Cultural
Virtual Reality. In: British Archaeological Report n. 834. Oxford: ArcheoPresss, 2000. 5 Projeto financiado pelo regime ICT Strategy Projects do Conselho do Arts and Humanities
Research (UK)
Drew Baker propôs o termo ‘Paradata’ para designar o capital intelectual gerado
durante uma pesquisa, destacando que grande parte das informações essenciais para
compreensão e avaliação dos métodos e resultados de visualização tridimensional é
constantemente perdida.6
O projeto reuniu, em fevereiro de 2006, um Simpósio e um Seminário de
especialistas na Academia Britânica e no centro Computing in the Humanities do
King's College. Durante os dois dias de simpósio cinquenta delegados debateram
abordagens para a questão da transparência e, no terceiro dia, um pequeno grupo de
especialistas discutiu um “documento de reflexão”, primeiro rascunho da Carta de
Londres.
2.1 A Carta de Londres
Primeiro e mais importante documento de recomendações aprovado pela comunidade
científica internacional no domínio do patrimônio cultural e das novas tecnologias, a
Carta de Londres tem como objetivo estabelecer os requisitos necessários para
conferir à visualização 3D a consistência e o rigor intelectual próprios de qualquer
método científico de investigação.
Idealizada para nortear o uso da visualização tridimensional na pesquisa e
comunicação do patrimônio cultural, a Carta busca construir um consenso em torno
dessas questões de maneira que impetre um largo reconhecimento e uma expectativa
de cumprimento dentro das comunidades especializadas. Nesse sentido, instituiu o
abrangente termo visualização computadorizada do patrimônio cultural e traz uma
definição ampla de patrimônio cultural englobando “todos os domínios da atividade
humana ligados ao entendimento da comunicação da cultura material e intelectual.
Tais domínios compreendem (mas não se limitam a) museus, galerias de arte, centros
culturais, institutos de pesquisa em patrimônio cultural, institutos de educação superior
em matéria artística ou humanista, e os setores turísticos e educativos em geral”
(2009, p.12). 7
A Carta de Londres tem como princípio primeiro a Implementação que recomenda
que “cada comunidade seja acadêmica, educacional, de curadoria ou comercial deve
desenvolver diretrizes de implementação da Carta de Londres coerentes com suas
metas, objetivos e métodos”.8 Além deste, o documento define ainda outros princípios
6 Disponível em <http://www.londoncharter.org/fileadmin/templates/main/docs/ch6_denard.pdf>
7 Disponível em
<http://www.londoncharter.org/fileadmin/templates/main/docs/london_charter_2_1_en.pdf> (Tradução nossa) 8 Tradução nossa.
em relação à integridade intelectual, credibilidade, documentação, sustentabilidade e
acesso da visualização 3D.
Outra importante contribuição do documento é a introdução do conceito de
paradado, anteriormente mencionado, que diz respeito à informação sobre processo
humano de compreensão e interpretação dos dados. A Carta traz a seguinte
recomendação: “a documentação da avaliação, análise, dedução, interpretação e
decisões criativas realizadas no decorrer do processo de visualização
computadorizada deve ser disponibilizada de tal forma que a relação entre a
investigação, fontes, conhecimento implícito, linha de raciocínio e os resultados da
visualização sejam plenamente compreendidos.” (2009, p.8).
Atualmente a Carta de Londres se encontra em sua versão 2.1, editada no ano de
2009. As várias atualizações elaboradas ao longo desses três anos revelam a urgente
necessidade de se definir um estatuto que possa servir de base para o design de
novos projetos com um maior rigor no amplo campo do patrimônio cultural, mas
também propor novas recomendações e orientações adequadas às necessidades
específicas de cada ramo de aprendizagem e comunidade de especialistas. Por este
motivo, os objetivos definidos no documento visam "oferecer uma base sólida sobre a
qual cada comunidade possa construir diretrizes detalhadas de implementação da
Carta de Londres.” (2009, p.3).
2.2 Princípios de Sevilha
Em 2011 a Sociedade Espanhola de Arqueologia Virtual (SEAV) lançou um plano de
formação internacional em arqueologia virtual com cursos de graduação e pós-
graduação em convênio com universidades europeias, norte-americanas e latino-
americanas – inclusive brasileira, como é o caso da Universidade Federal da Bahia
através do LCAD. A plataforma, denominada Campus Internacional em Arqueologia e
Patrimônio Virtual é o primeiro projeto educacional estruturado para esta disciplina e
se insere no contexto do processo que formatou ao longo dos últimos quatro anos a
criação dos Princípios Internacionais de Arqueologia Virtual, os chamados: Princípios
de Sevilha.9
O documento, cuja versão final foi editada já em 2012 pelo Fórum Internacional de
Arqueologia Virtual, representa a implementação das diretrizes da Carta de Londres
no domínio da Arqueologia Virtual. É, desta forma, a primeira iniciativa publicada de
implementação da Carta num campo específico de conhecimento científico. Define oito
princípios fundamentais: Interdisciplinaridade, finalidade, complementaridade,
9 Disponível em <http://www.arqueologiavirtual.com/carta/?page_id=397>
autenticidade, rigor histórico, eficiência, transparência científica, e formação e
avaliação.
Além dos princípios, traz um rico glossário de definições específicas do campo.
Entre elas, os conceitos de Arqueologia Virtual, Restauração Virtual, Reconstrução
Virtual, Recriação Virtual e Anastilose Virtual.
A definição primeira do documento é a de Arqueologia Virtual. Trata-se da
“disciplina científica que procura pesquisar e desenvolver formas de uso da
visualização computadorizada para a gestão integrada do patrimônio
arqueológico”(2012, p.13).10
A Restauração Virtual é definida como sendo “o uso de um modelo virtual para
reordenar os materiais remanescentes disponíveis a fim de recriar visualmente algo
que existiu no passado”.11
3 O Contexto Nacional
No Brasil as pesquisas nesse campo datam do início da década de 1990 quando o
Núcleo de Computação Gráfica da UNISINOS no Rio Grande do Sul modelou
digitalmente o conjunto arquitetônico do povoado jesuíta de São Miguel Arcanjo,
construído no século XVII.
O projeto de reconstrução digital, pioneiro no país, foi apresentado à comunidade
acadêmica no 1º Congresso Latino-Americano de Cultura Arquitetônica e Urbanística
em Porto Alegre, em 1991.12
Amplamente divulgado na década de 1990, passou
por uma reestruturação em 2001, por ocasião da edição
do livro ‘Missões’, no qual foi transformado num
aplicativo disponibilizado em CD-ROOM, editado pela
UNISINOS. Consiste na recuperação digital da
configuração arquitetônica das edificações permitindo ao
público um passeio virtual através do conjunto em sua
conformação original. Foi elaborado tendo como base as
iconografias existentes (incluindo o projeto original), o
levantamento gráfico e fotogramétrico elaborado pelo
IPHAN/RS e as próprias ruínas – os remanescentes
10
Disponível em <http://www.arqueologiavirtual.com/carta/wp-content/uploads/2012/03/BORRADOR-FINAL-FINAL-DRAFT.pdf> 11
Tradução nossa. 12
ROCHA, Isabel. Multimídia da Reconstituição Computadorizada da Redução de São Miguel Arcanjo no Rio Grande do Sul, 4
o SIGRADI. Rio de Janeiro, 2000.
Figura 5: Modelo Digital da Igreja
construtivos e arqueológicos do conjunto. A partir desses dados foi gerado no
AutoCAD um modelo tridimensional aramado do conjunto. Foram modelados
separadamente os elementos como fachada, frontão, pórtico, estrutura, cobertura e
ornamentos separados em layers e blocos para diferentes utilizações. Embora a
modelagem básica utilizada em 2001 tenha sido a original executada em 1991, as
possibilidades advindas das novas versões do AutoCAD e do 3D Studio possibilitaram
um aprimoramento em relação às texturas, cores e às simulações tridimensionais e
dinâmicas.
A visualização do modelo foi elaborada a partir de vistas aéreas e de percursos de
animação nas ruas principais e no interior da nave central da igreja.
Tais percursos resultaram em vídeos recheados de recursos artísticos – desde
trilha sonora original composta para o projeto até o tratamento de luz e fotografia –
conferindo uma certa dramaticidade ao aplicativo, atribuindo ao modelo uma poética
particular, quase cinematográfica.
Atualmente importantes projetos vêm sendo desenvolvidos em diversos
laboratórios de universidades brasileiras, e eventos científicos como o GRAPHICA e o
SIGRADI estão cada vez mais consolidando essa temática.
Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Laboratório de Análise Urbana e
Representação Digital (LAURD) coordena projetos de modelos urbanos digitais desde
meados da década de 1990 quando iniciou a elaboração de um amplo modelo
topográfico digital da cidade do Rio de Janeiro. Atualmente trabalha em vários projetos
de gráfica digital e história urbana, e na estruturação de metodologias de modelagem
digital em quatro escalas diferentes: territorial, urbana, arquitetônica e tectônica.
Na Universidade Federal da Bahia, o Laboratório de Computação Gráfica Aplicada
à Arquitetura e ao Desenho (LCAD) mantém convênio com a SEAV e vem
promovendo eventos de alcance nacional na divulgação e exploração de novas
tecnologias aplicadas à documentação do patrimônio arquitetônico.
Em São Paulo, o Laboratório de Sistemas Integrados da Universidade de São
Paulo (LSI-USP) trabalha na reconstrução para caves de alguns edifícios de valor
histórico da cidade retratados em sua constituição de 1911.
Com as tecnologias da realidade virtual e uma vasta pesquisa nos arquivos
históricos e iconográficos da cidade foi possível realizar um passeio no tempo e na
história da São Paulo de 1911 com a reconstrução tridimensional virtual das
edificações do Largo da Sé.
A modelagem se deu a partir de análise de fontes iconográficas, cartográficas e
documentais bem como registros de imagem em fotografias e postais. A escolha do
local e período do modelo teve por base as drásticas alterações no ambiente urbano a
partir da década de 1880, como a implantação de amplos serviços de infraestrutura
urbana (transporte público, serviços de água e esgoto, iluminação pública).
A partir das referências analisadas, os modelos foram construídos utilizando-se
o software de modelagem Maya (Autodesk). O ambiente em 3D foi gerado para ser
visualizado na Caverna Digital da USP. A caverna digital é uma aplicação de realidade
virtual que consiste na projeção do modelo em um ambiente imersivo permitindo que
os usuários – com o uso de óculos obturadores – possam interagir como se
estivessem caminhando pelo ambiente. Neste caso, pelo Largo da Sé, observando as
edificações e os espaços urbanos em sua configuração de 1911.
Também pela USP, no âmbito do projeto de pesquisa “Arqueometria e
Restauração: Sistemas de Documentação para Registro e Leitura Estratigráfica de
Edifícios Históricos”, sob a coordenação da pesquisadora Regina Tirello, destaca-se o
sofisticado trabalho O Restauro Digital de Arquitetura Histórica de Cronologia
Construtiva Complexa: A Casa De Dona Yayá. Um dos mais representativos projetos
de restauro virtual do país.
A casa de Dona Yayá é um edifício de cronologia construtiva ornamental
complexa, composta por quatro fases construtivas diversas relacionadas a cada um de
seus proprietários que resultaram em alterações consideráveis no perímetro e nas
características arquitetônicas e ambientais do edifício ao longo de mais de um século.
A opção pelo restauro “físico” de um único ciclo decorativo nos cômodos foi
direcionada pelo estado de conservação e de unidade ornamental e cromática dos
Figura 6: Casa Lebre e Palacete Tietê Figura 7: Torre da Catedral
Figura 8: Síntese gráfica da cronologia histórica da edificação
Figura 9: Dois ciclos decorativos no mesmo ambiente
Figura 10: Fachada principal
murais em prol da comunicação adequada de um determinado período. A
documentação dos demais ciclos ficou por conta do projeto digital que visou, entre
outros aspectos, o registro e a representação dos trabalhos de prospecção
arqueológica de superfície para datação relativa das etapas construtivas e
ornamentais da edificação.
O método utilizado apoiou-se na análise combinada de fontes indiretas (as
pesquisas histórico-documentais convencionais) e fontes diretas, relativas a medições,
avaliações dos sistemas e técnicas construtivas presentes, sondagens cromáticas e
arquitetônicas e análises laboratoriais de caracterização.13
O restauro virtual propriamente dito se deu na elaboração de ambientes
tridimensionais de alta resolução gráfica integrados numa única interface em 3D por
meio da qual se acessam todas as informações multimídia e a documentação
associadas à história construtiva e ao restauro da edificação e de suas pinturas
murais. Foram utilizados para os desenhos de precisão o software AutoCAD, o
CorelDRAW para ornamentos, elevações e montagens, o 3D Studio para a aplicação
de texturas e iluminação, e o Adobe PhotoShop para o tratamento de imagens.
Além da riqueza documental que o projeto geriu e disponibilizou, o aplicativo
oferece ainda um sofisticado padrão de tratamento de imagens, com aplicação de
texturas e iluminação, que além de fornecer os indicativos históricos, possibilita uma
representação hiperverossímil da edificação.
4 Conclusão
Ao longo das últimas décadas a gráfica digital a serviço da pesquisa e divulgação do
patrimônio vem se consolidando como método cientificamente válido e a pesquisa
brasileira em restauro virtual tem se mostrado alinhada com as pesquisas
internacionais no que diz respeito ao uso dos recursos e ao rigor técnico-científico.
Muito recentemente, em janeiro de 2013, foi anunciado pelo professor Bernard
Frischer o lançamento da primeira publicação indexada on-line de divulgação de
13
TIRELLO, Regina. Restauro Digital de Arquitetura Histórica de Cronologia Construtiva Complexa: A Casa De Dona Yayá. Seminário de Computação Gráfica. São Paulo, 2008.
pesquisas ligadas à visualização computadorizada do patrimônio cultural. O jornal,
intitulado "Digital Applications to Archaeology and Cultural Heritage" (DAACH), tem
como foco a possibilidade inédita de publicar modelos 3D interativos junto aos
artigos.14 É um passo sem precedentes na consolidação desse campo disciplinar.
A Carta de Londres, ponto capital dentro desse processo, deve ser entendida no
contexto do que se tornou nos últimos anos uma das questões centrais de aplicações
de visualização 3D para o patrimônio cultural: a "transparência”; a questão da
credibilidade científica, que distancia a modelagem espetacular da indústria do
entretenimento daquela válida enquanto documento científico.
Por sua vez, os Princípios de Sevilha constituem uma sólida contribuição
metodológica e conceitual para o campo específico da arqueologia. Mas é importante
considerar esses documentos não prescindem de um equivalente para a arquitetura.
Faz-se necessário uma leitura que coloque em paralelo essa questão da lacuna na
modelagem digital (do raciocínio dedutivo na ausência das fontes) e o tratamento de
lacunas da Teoria da Restauração de Cesare Brandi, por exemplo. Enxergamos aqui a
necessidade de transpor as leituras clássicas da teoria do restauro para essas novas
diretrizes do campo virtual.
A disciplina da história da arquitetura se abastece da arqueologia, mas ultrapassa
suas contingências e tem demandas próprias. Ademais, o conceito de Restauro Virtual
trazido pelos Princípios de Sevilha trata de “restos materiales existentes”.15 Como
tratar uma possibilidade de restauro virtual de objetos arquitetônicos que só existem
em iconografia se não há “restos materiais”? Há que se estabelecer uma outra
abordagem que subsidie esse tipo de atividade com respaldo em um corpo teórico já
estabelecido, próprio da disciplina. Estatutos teóricos clássicos, já tradicionais, do
campo da arte e da arquitetura podem ser replicados, devidamente rebatidos nessa
nova topografia que se apresenta: a virtual.
A transparência e a credibilidade exigida na documentação do patrimônio
arquitetônico com sistemas multimídia, seus limites e possibilidades são questões
importantes que devem ser cada vez mais discutidas e aprofundadas no ambiente
acadêmico visando colaborações interdisciplinares mais qualificadas. É nesse sentido
que a pesquisa ratifica sua relevância procurando contribuir com o campo da teoria,
história e crítica da arquitetura brasileira através desse novo espectro que as novas
tecnologias vêm oferecendo.
14
Disponível em <http://www.journals.elsevier.com/digital-applications-in-archaeology-and-cultural-heritage/> 15
Texto original sem tradução (2012, p.13)
Referências
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Anais do Seminário de Computação gráfica: pesquisas e projetos rumo à Educação Patrimonial. AHMWL: São Paulo, 2008.
CAMERON, Fiona; KENDERDINE, Sarah. Theorizing digital cultural heritage: a critical discourse. Cambridge / Londres: MIT Press, 2007.
Carta de Londres, Draft 2.1, 2009. Disponível em <http://www.londoncharter.org/>
FRISCHER, B. et al. From CVR to CVRO. The Past, Present, and Future of Cultural Virtual Reality. In: British Archaeological Report n. 834. Oxford: ArcheoPresss, 2000.
PARAIZO, Rodrigo Cury. A representação do patrimônio urbano em hiperdocumentos: um estudo sobre o Palácio Monroe. 2003. Dissertação (Mestrado em Urbanismo). Programa de Pós-Graduação em Urbanismo – FAU-UFRJ, Rio de Janeiro.
PIAZZALUNGA, Renata. A virtualização da arquitetura. Campinas: Papirus, 2005.
Princípios de Sevilha, Final Draft, 2012. Disponível em http://www.arqueologiavirtual.com/
ROCHA, Isabel. Multimídia da Reconstituição Computadorizada da Redução de São Miguel Arcanjo no Rio Grande do Sul, 4o SIGRADI. Rio de Janeiro, 2000.
TIRELLO, Regina A. Computer grafics and preservation of brasilian cultural and architectural heritage. In: Sigrad mx 07_La Comunicación en la Comunidad Visual. XI
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_________________. Restauro Digital de Arquitetura Histórica de Cronologia Construtiva Complexa: A Casa De Dona Yayá. Seminário de Computação gráfica:
pesquisas e projetos rumo à Educação Patrimonial. AHMWL: São Paulo, 2008.
VILAS BOAS, Naylor. A Esplanada do Castelo: Fragmentos de uma História Urbana. Tese (Doutorado em Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2007.
__________________. Além da Imagem Estática: A Representação Gráfica Digital da Experiência Espacial na Arquitetura. In: Visão e Visualização. Anais do IX
Congresso Ibero-Americano de Gráfica Digital - SIGRADi. Angulo e Velasco Editores. Lima, 2005.
ZUFFO, Marcelo. LOPES, Roseli. Ambientes de Realidade Virtual e Realidade Aumentada na Preservação do Patrimônio Histórico Seminário de Computação
gráfica: pesquisas e projetos rumo à Educação Patrimonial. AHMWL: São Paulo, 2008.