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Publicado em Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretação. Actas do II Seminário Internacional sobre a História de Angola (4 a 9 de agosto de 1997). Luanda, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000. p. 161-185. A história contemporânea de Angola: seus achados e suas armadilhas 1 Marcelo Bittencourt 2 I - Introdução A proposta deste estudo é iniciar uma discussão acerca dos trabalhos sobre a história contemporânea de Angola - mais precisamente em seu contexto pós-Segunda Guerra Mundial -, bem como apontar novos caminhos possíveis de serem trilhados. Para tanto, nos concentraremos inicialmente numa perspectiva panorâmica da produção referente a essa história, tornando possível a visualização das principais linhas de análise. Num segundo momento lançaremos algumas idéias que nos parecem pertinentes no que se refere a tal estudo, alertando para fatores e procedimentos que até o momento, em virtude de uma prática enraizada e de implicações fora do campo da história, não têm sido considerados na sua riqueza elucidativa para muitas das questões angolanas. II - O quadro geral Entre os estudos acerca da história contemporânea de Angola, podemos identificar duas linhas de análise, que tendem a predominar sobre as demais: a dos condicionamentos internacionais e a que defende a existência de um conflito étnico latente na sociedade angolana. Em alguns casos, elas aparecem de forma conjugada. O mais interessante, porém, é observar que tais perspectivas, com grande poder de influência no presente, podem por vezes ser apropriadas em virtude de motivações políticas com interesse em intervir nos acontecimentos, impedindo, assim, uma observação mais ampla que privilegie a discussão dos diferentes fatores envolvidos. A primeira concepção - a que considera os fatores internacionais como responsáveis pelos problemas surgidos no pré e no pós-independência - está intimamente associada ao fenômeno da Guerra Fria, que transformou Angola em importante laboratório político da bipolarização, como defendem Colin Legun, Arthur Klinghoffer e Gerald Bender. 3 No caso de Bender, esse enfoque foi sendo direcionado ao longo dos anos, já que seu trabalho inicial - muito importante por sinal - refletia sobre a questão racial em Angola no período colonial. 4 Dessa forma, a consolidação de Angola como peça do tabuleiro internacional, a partir dos anos 60, pode ser observada no próprio crescimento do interesse de cientistas sociais e historiadores americanos, o que seria revertido num crescimento da produção acadêmica sobre o tema. 1 Este texto é um desdobramento do 2º capítulo da minha dissertação de Mestrado, defendida junto ao Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, em dezembro de 1996, intitulada “As linhas que formam o ‘EME’. Um estudo sobre a criação do Movimento Popular de Libertação de Angola”. Naquela oportunidade o tema não foi suficientemente explorado. 2 Pesquisador do Centro de Estudos Afro-Asiáticos, da Universidade Candido Mendes, e doutorando do Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. 3 LEGUM, Colin. "The role of the big powers". In: After Angola. The war over Southern Africa. New York, Africana Publishing Company, 1976. KLINGHOFFER, Arthur Jay. The Angolan War: A study in soviet policy in the Third World. Colorado, Westview Press, 1980. BENDER, Gerald J. "Peacemaking in Southern Africa: the Luanda-Pretoria tug-of-war". In: Third World Quaterly, vol. 11, nº 2, April 1989, p. 15-30. 4 BENDER, Gerald J. Angola sob o domínio português: mito e realidade. Lisboa, Sá da Costa Editora, 1981.

A Historia Contemporanea de Angola

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  • Publicado em Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretao. Actas do II Seminrio Internacional sobre a Histria de Angola (4 a 9 de agosto de 1997). Luanda, Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 2000. p. 161-185. A histria contempornea de Angola: seus achados e suas armadilhas1 Marcelo Bittencourt2 I - Introduo A proposta deste estudo iniciar uma discusso acerca dos trabalhos sobre a histria contempornea de Angola - mais precisamente em seu contexto ps-Segunda Guerra Mundial -, bem como apontar novos caminhos possveis de serem trilhados. Para tanto, nos concentraremos inicialmente numa perspectiva panormica da produo referente a essa histria, tornando possvel a visualizao das principais linhas de anlise.

    Num segundo momento lanaremos algumas idias que nos parecem pertinentes no que se refere a tal estudo, alertando para fatores e procedimentos que at o momento, em virtude de uma prtica enraizada e de implicaes fora do campo da histria, no tm sido considerados na sua riqueza elucidativa para muitas das questes angolanas. II - O quadro geral Entre os estudos acerca da histria contempornea de Angola, podemos identificar duas linhas de anlise, que tendem a predominar sobre as demais: a dos condicionamentos internacionais e a que defende a existncia de um conflito tnico latente na sociedade angolana. Em alguns casos, elas aparecem de forma conjugada. O mais interessante, porm, observar que tais perspectivas, com grande poder de influncia no presente, podem por vezes ser apropriadas em virtude de motivaes polticas com interesse em intervir nos acontecimentos, impedindo, assim, uma observao mais ampla que privilegie a discusso dos diferentes fatores envolvidos. A primeira concepo - a que considera os fatores internacionais como responsveis pelos problemas surgidos no pr e no ps-independncia - est intimamente associada ao fenmeno da Guerra Fria, que transformou Angola em importante laboratrio poltico da bipolarizao, como defendem Colin Legun, Arthur Klinghoffer e Gerald Bender.3 No caso de Bender, esse enfoque foi sendo direcionado ao longo dos anos, j que seu trabalho inicial - muito importante por sinal - refletia sobre a questo racial em Angola no perodo colonial.4 Dessa forma, a consolidao de Angola como pea do tabuleiro internacional, a partir dos anos 60, pode ser observada no prprio crescimento do interesse de cientistas sociais e historiadores americanos, o que seria revertido num crescimento da produo acadmica sobre o tema. 1 Este texto um desdobramento do 2 captulo da minha dissertao de Mestrado, defendida junto ao Departamento de Antropologia da Universidade de So Paulo, em dezembro de 1996, intitulada As linhas que formam o EME. Um estudo sobre a criao do Movimento Popular de Libertao de Angola. Naquela oportunidade o tema no foi suficientemente explorado. 2 Pesquisador do Centro de Estudos Afro-Asiticos, da Universidade Candido Mendes, e doutorando do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense. 3 LEGUM, Colin. "The role of the big powers". In: After Angola. The war over Southern Africa. New York, Africana Publishing Company, 1976. KLINGHOFFER, Arthur Jay. The Angolan War: A study in soviet policy in the Third World. Colorado, Westview Press, 1980. BENDER, Gerald J. "Peacemaking in Southern Africa: the Luanda-Pretoria tug-of-war". In: Third World Quaterly, vol. 11, n 2, April 1989, p. 15-30. 4 BENDER, Gerald J. Angola sob o domnio portugus: mito e realidade. Lisboa, S da Costa Editora, 1981.

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    interessante perceber como essa linha de anlise foi usada por alguns dos atores do contexto angolano contemporneo. Basta dizer que deixou de ser novidade antigos quadros do MPLA afirmarem que nunca foram de fato autnticos marxistas-leninistas. Segundo eles, tal ideologia teria sido responsvel por muito da desgraa em que vive o pas, embora afirmem que enveredaram por tal caminho porque no havia na poca outra sada.5 Tal perspectiva, com o avano da luta militar e poltica, transformou-se em aliada do MPLA, que dessa forma encontrou uma justificativa para o atribulado processo de estabilizao do pas no ps-independncia e uma possibilidade de resgatar parte da desgastada credibilidade junto populao. Esse enquadramento, porm, ao mesmo tempo que facilitou a vida do MPLA, fez com que ocorresse uma exaltao desse fator, que tendeu a ser extrapolado nos demais momentos da histria do pas. Evidentemente, a influncia das condicionantes internacionais na histria de Angola por demais presente para que se pretenda minimiz-la. Contudo, a maximizao de sua importncia acabou por obscurecer o papel do aspecto poltico-ideolgico no processo histrico, que foi decisivo, por exemplo, para a no-colaborao no pr-independncia entre aqueles que mais tarde se tornariam os protagonistas da guerra em Angola. No podemos esquecer a histria e deixar de lembrar as alianas que foram feitas durante a luta de libertao, at mesmo com o inimigo nmero um, o colonialismo portugus. Essa tendncia a fazer tabula rasa do comportamento anterior dos principais atores angolanos tende a passar a imagem enganosa de que sua pretenso seja a de facilitar as negociaes de paz. Nada mais errado. A elucidao das perspectivas divergentes no passado pode facilitar a melhor compreenso dos desejos existentes entre aqueles que lutaram em lados opostos e esto tentando uma aproximao. Isso posto, voltemos ao que interessa aqui. Ao estabelecer os condicionamentos internacionais como um dos fatores a ser destacado na anlise da sociedade angolana, acreditamos que se deva faz-lo de forma relacionada a outros fatores. O pior que pode acontecer nesse caso uma anlise exclusivista, voltada apenas para tal fator. Acreditamos ainda que preciso tambm investigar a face interna desse processo no cenrio angolano, atravs dos comportamentos poltico-ideolgicos e da economia. Da a importncia - e no se trata de uma preferncia vocabular, mas sim de uma compreenso que busca dar maior dinamicidade - em tratarmos no de fatores externos, mas sim de internacionais, pois eles acabam freqentemente por se internalizar. A segunda concepo, bastante repetida, afirma que o conflito tnico o grande responsvel pelos problemas existentes em Angola. E mais, tal conflito teria sido agravado por uma poltica centralizadora do MPLA. O principal interessado em defender esse tipo de abordagem tem sido a Unita, visto que seus aliados polticos externos investem numa soluo negociada de partilha do poder. O pressuposto dessa concepo reside na aliana que estabelece entre os movimentos de libertao e suas respectivas bases tnico-regionais, numa arriscada transposio de categorias histrico-culturais para o terreno da poltica.6 O principal expoente dessa linha de anlise e responsvel pelo trabalho mais consistente e abrangente at hoje produzido sobre os movimentos de libertao angolanos John

    5 Isso est presente em algumas das entrevistas que realizamos em Luanda em 1995. Mesmo o presidente Jos Eduardo dos Santos, em entrevista ao jornal Expresso, em 18/7/92, afirma que no se poderia encontrar uma soluo justa para a questo interna de Angola sem que fossem afastados, ou mesmo eliminados, os fatores externos. Quanto ao socialismo, afirma foi uma inteno que talvez no tenha passado do papel. 6 Messiant apontou de forma precisa para este risco. MESSIANT, Christine. Social and political background to the "democratization" and the peace process in Angola. Leiden, African Studies Centre / Seminar "Democratization in Angola", 18 setembro de 1992, p. 16. De acordo com a concepo aqui criticada, o MPLA teria o apoio dos quimbundos (situados no centro-norte do pas), a FNLA, dos bakongos (norte), e a Unita, dos ovimbundos (centro-sul).

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    Marcum,7 cuja obra se tornou referncia obrigatria e influenciou muitos dos autores subseqentes. Justia seja feita, Marcum tambm avanou pelo terreno dos condicionamentos internacionais, da sua importncia. Ren Plissier e Gerard Chaliand tambm investiram nesse tipo de anlise.8 Esse discurso possui, no entanto, uma crtica de fundo importantssima e que no deve ser esquecida, mas acaba por ser apropriado em virtude do interesse estratgico em estabelecer uma determinada forma de comportamento poltico face crise angolana atual. A pretenso de alguns defensores desse discurso em atuar nas discusses sobre a crise ps-eleitoral em Angola acabou por causar danos sua prpria argumentao, por desconsiderar os demais fatores com forte poder de influncia na arrastada crise angolana. Ademais, o seu exclusivismo proporcionou um certo desprezo pelo acompanhamento histrico que deve ser dado questo tnica. Nesse tipo de anlise, tornou-se ntida no s a utilizao poltica dos ingredientes etnia e raa por parte dos agentes envolvidos em sua defesa, como tambm a tendncia em escamotear a consistncia dos demais fatores, como o poltico-ideolgico. Por outro lado, os conceitos de etnia e raa, envolvidos diretamente nessa questo e constantemente aplicados de forma confusa, devem ser analisados de forma mais cuidadosa. Em Angola, possvel verificar o perigo de considerar esses conceitos sem as necessrias ponderaes ou atravs de simples generalizaes. Corre-se o risco de no s perder tais conceitos como instrumentos capazes de auxiliar o entendimento, mas, principalmente, de torn-los to somente objetos da manipulao poltica por parte dos interessados em uma viso deturpada da realidade. forte a tendncia, como foi dito anteriormente, entre os defensores de uma viso estritamente tnica do problema, a esquecer que os diferentes condicionamentos histricos sofridos pelas mais diversas etnias angolanas colaboraram e muito para um maior acirramento entre algumas delas. Esses condicionamentos se intensificaram durante o perodo colonial e sofreram a ao desestabilizadora consciente de Portugal. Perseguindo a dominao do territrio, o Estado portugus enxertou algumas querelas e amplificou outras, que se agudizaram com o decorrer do colonialismo e foram responsveis por estereotipar determinados grupos tnicos no imaginrio local. Por exemplo, fruto do perodo colonial a idia hoje reinante quanto maior ou menor propenso ao trabalho dos ovimbundos e dos quimbundos, os dois maiores grupamentos etnolingsticos em Angola.9 Os primeiros estariam mais identificados como indivduos dispostos ao trabalho, seja ele pesado ou no, de preferncia vinculado ao campo e s tradies africanas. J os quimbundos estariam mais ligados s funes administrativas nas cidades e aos modismos ocidentais. No obstante o MPLA ter contribudo, por sua concentrao em Luanda, para a permanncia desse imaginrio, ele se deve muito forma como se deu a colonizao portuguesa, ao local de maior enraizamento da burocracia colonial e ao tipo de recrutamento efetuado junto populao nativa. Da mesma maneira, um erro reduzir a formao de todos os movimentos de libertao a uma perspectiva de vinculao estritamente tnica, esquecendo o componente poltico-ideolgico e os condicionamentos histricos. A elevada

    7 MARCUM, John. The angolan revolution. The anatomy of an explosion (1950-1962). Cambridge, The M.I.T. Press, 1969. MARCUM, John. The angolan revolution. Exile politics and guerrilla warfare (1962-1976). Cambridge, The M.I.T. Press, 1978. 8 PLISSIER, Ren. La colonie du minotaure. Nationalismes et revoltes en Angola (1926-1961). France, Pelissier, 1978. CHALIAND, Grard. "Problemas do nacionalismo angolano". In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 4 (8), Fevereiro 1966, p. 77-98. 9 Usaremos aqui, na denominao dos grupos etnolingsticos, a forma corriqueiramente adotada em Angola, em que por vezes sobressai o nome do grupo tnico e por vezes o termo lingstico.

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    participao de ovimbundos no exrcito regular governamental ps-independncia algo difcil de ser explicado por tal lgica exclusivista.10 Esse tipo de anlise, que privilegia o aspecto tnico, possui elevado grau de repercusso, no s pelo fato de ser defendida, pelo menos por enquanto, pelo Departamento de Estado norte-americano, mas tambm por ter sido encampada pela mdia como forma de compreender as mais diversas crises existentes na frica. Ao que tudo indica, parece ser mais fcil para a mdia enfocar a diferena, o contraste - talvez porque este possua maior poder de assimilao por parte do pblico -, do que a semelhana. Benot j alertara para a tendncia em sublinhar sempre o excepcionalismo africano como forma de preservao da ordem estabelecida.11 O agravante que com isso produz-se um novo esquecimento, dessa vez sobre os fatores de ordem poltica e histrica, tal como j ocorrera, por influncia da esquerda europia, no tocante questo tnica. Antes de prosseguir, convm esclarecer, uma vez mais, que a ateno que se d aqui ao problema tnico decorre de acreditarmos constituir ele um dos pontos centrais para o entendimento da realidade angolana contempornea. Nossa preocupao apenas demonstrar as arbitrariedades e extrapolaes realizadas, que em muitos casos tm por base propostas polticas. Aproveitemos a oportunidade para afirmar que, se o simplismo do discurso tnico favorece sua absoro, no podemos esquecer o fato de o sentimento de pertena a um grupo tnico apresentar-se como o ltimo refgio para os inmeros expropriados da simples possibilidade de obter melhores condies de vida,12 dada a situao de carncia generalizada devido ao longo perodo de guerras. O indivduo que no consegue acompanhar as mudanas impostas pelo novo sistema vigente no pas, agarra-se, para no se sentir abandonado, aos valores antigos, com a referncia tnica passando a ser uma possibilidade de afirmao social. Portanto, o posicionamento do indivduo em relao s estruturas de poder e de controle das instituies pode acarretar num reforo da conscincia tnica.13 E no s do indivduo, como de um grupo. Lembremos tambm que o sentimento de pertena tnica no deve impedir o indivduo de se apresentar como angolano. A construo da nao angolana deve necessariamente implicar a absoro dessas particularidades. O que dificultou esse tipo de percepo aglutinadora de referncias parece ter sido no s a guerra, mas tambm o comportamento por parte do MPLA no ps-independncia, quando a construo da nao passou a implicar o fim das etnias. bem verdade que as orientaes do partido sobre esse tema foram alteradas em fins da dcada de 80, mas ainda hoje se mantm a necessidade de serem ultrapassados antigos obstculos, visto que a conscincia nacional "no um dado adquirido de uma vez por todas, pelo contrrio, pode consolidar-se ou diluir-se ao longo da histria".14 E a radicalizao dos conflitos marcados por caractersticas tnicas, como foi o caso da chamada "Sexta-Feira Sangrenta",15 tende a aumentar em muito o risco de diluio.

    10 Seguindo essa lgica os ovimbundos, maioria na Unita, no apoiariam o MPLA. A argumentao de que essa participao deve-se ao recrutamento obrigatrio no vlida para um contexto de enfrentamento militar. Poderia mesmo acarretar o efeito inverso. Dada a obrigatoriedade do alistamento no exrcito governamental os ovimbundos procurariam a Unita. 11 BENOT, Yves. Ideologias das independncias africanas. Lisboa, S da Costa Editora, 1981, vol. I, p. 33. 12 CLARENCE-SMITH, GERVASE. Le Problme Ethnique en Angola. Paris, Table ronde - La Dimension Historique de L`Ethnicit en Afrique, 21-22 de fevereiro de 1986. p. 2. 13 NGONDA, Lucas. Diversidade tnica e poder poltico. Luanda, Maka da Unio, 25 de maio de 1994. p. 5. 14 CONCEIO NETO, Maria da. As fronteiras por dentro da nao. Luanda, comunicao proferida no workshop organizado pela ADRA (Associao para o Desenvolvimento Rural e Ambiente) e pelo Programa Angola do C.C.C.I. ( Canad) e o CIDMAA (canad) chamado Angola: A Crise e o Desafio Democratico, 24-26 de agosto de 1992, p. 3. 15 Circulou em Luanda um documento denunciando esses acontecimentos, datado de 26 de janeiro de 1993 e assinado como "os bakongos angolanos". Nesse dia, a cidade de Luanda foi sacudida por uma onda de violncia contra os chamados regressados.

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    Mantendo viso panormica, constatamos que a produo mais recente dificilmente foge aos cenrios traados acima. No caso de William Minter, So Vicente, Chester Crocker e Alvaro O'da Silva, seus trabalhos possuem como dado relevante o fato de analisarem o caso angolano tendo em conta o cenrio da frica Austral, e no apenas as condicionantes decorrentes das duas potncias mundiais; de qualquer forma, continuam presos idia bsica de privilegiar as influncias externas para se entender o que se passa em Angola.16 Por outro lado, a par da carncia de trabalhos de historiadores sobre o tema e mesmo de cientistas sociais, quando comparamos com a produo sobre Moambique, por exemplo, merecem referncia os livros de memria de atores envolvidos no processo histrico. So de antigos militantes do MPLA, como o comandante Kiluanji, Adriano Sebastio e Iko Carreira,17 e at das Foras Armadas portuguesas, como o brigadeiro Pezarat Correia,18 ou mesmo de jornalistas responsveis pela cobertura dos embates militares, caso de Fred Bridgland e Karl Maier.19 Isso para no referir a preocupao demonstrada pela literatura de fico nos ltimos anos, atravs principalmente de Pepetela e Jos Agualusa,20 que constituem um material tambm de grande importncia.21 Nesse terreno da literatura, bom que se diga que a associao com a histria assume uma complexidade das mais interessantes. No novidade ou especificidade angolana tal aproximao entre os dois campos. Porm, no caso em questo, a literatura ao se debruar sobre os temas histricos acaba por assumir uma perspectiva diferenciada. De fato, a literatura angolana tradicionalmente acompanhou - pode-se mesmo dizer que foi parceira - as aspiraes independentistas dos angolanos. Desde fins do sculo passado, os jornais editados na colnia serviram de palco para discusses polticas entre os angolenses, em face das arbitrariedades do crescente colonialismo portugus. Todavia, ao lado dessa tribuna, podemos observar a proliferao de pequenas obras literrias que tinham como tema realar as especificidades da terra angolana.22 Com o passar dos anos e a intensificao da represso colonial salazarista, o papel da literatura como amplificadora dos questionamentos coloniais passou a ser dividido em maior escala com a msica, o teatro e outras manifestaes culturais. Numa tentativa de driblar as atenes da represso23. Portanto, muito da importncia da literatura na sociedade angolana se deve sua projeo como um local de acolhimento e divulgao dos anseios de revolta contra o colonialismo portugus. A conquista da independncia, por sua vez, no significou uma maior ateno com a formao de angolanos interessados em aprofundar os estudos ligados Histria

    16 MINTER, William. Apartheid's contras. An inquiry into the roots of war in Angola and Mozambique. London, Zed Books, 1994. VICENTE, So. Angola e frica do Sul. Luanda, Edio do autor, 1994. CROCKER, Chester. High noon in Southern Africa. Making peace in a rough neighborhood. Johannesburg, Jonathan Ball Publishers, 1993. SILVA, Alvaro O'da. Afrique Australe. la recherche d'une identit. Paris, ditions L'Harmattan, 1993. 17 KILUANJI, Csar Augusto. Trajectria da vida de um guerrilheiro. Lisboa, Editorial Caminho, 1990. SEBASTIO, Adriano Joo. Dos campos de algodo aos dias de hoje. S/L, edio do autor, 1993. CARREIRA, Iko. O pensamento estratgico de Agostinho Neto. Lisboa, Publicaes Dom Quixote, 1996. 18 PEZARAT CORREIA, Pedro. Descolonizao de Angola. A jia da coroa do imprio portugus. Lisboa, Editorial Inqurito, 1991. 19 BRIDGLAND, Fred. The war for Africa. Twelve months that transformed a continent. Gibraltar, Ashanti Publishing Limited, 1990. MAIER, Karl. Angola: promises and lies. London, William Waterman Publications, 1996. 20 PEPETELA. A gerao da utopia. Lisboa, Publicaes Dom Quixote, 1993. AGUALUSA, Jos Eduardo. Estao das chuvas. Lisboa, Publicaes Dom Quixote, 1996. 21 O destaque para esses dois autores se deve ao fato no s de terem publicado tais obras, mas tambm por terem em diversas ocasies explicitado consideraes acerca do processo histrico angolano. Poderamos acrescentar ainda o caso de Sousa Jamba, com seu livro Os patriotas (Lisboa, Cotovia, 1991). 22 Aquilo a que muitos autores do o nome de nativismo. 23 Esse importante alerta me foi feito por Maria da Conceio Neto durante minha pesquisa de campo em Luanda.

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    e s Cincias Sociais, dentro de uma perspectiva autnoma em relao ao MPLA. assim que a literatura no ps-independncia mantm sua atuao de destaque - ainda bem -, muitas vezes preenchendo uma lacuna existente e que caberia aos historiadores e cientistas sociais ocupar, proporcionando a riqueza do dilogo. O caso mais ilustrativo parece ser exatamente o dos autores citados. Tanto Pepetela quanto Agualusa, em livros recentes, realizam um balano do perodo que vai da luta pela independncia at os dias atuais. O que poderia ser encarado como algo comum, no fosse o fato de no haver trabalhos paralelos, pelo menos suficientemente divulgados, no campo das cincias sociais e da histria. A carncia de trabalhos que trilhem perspectivas diferentes das linhas de anlise tradicionais agravada pelas dificuldades em se realizar pesquisas na rea da histria contempornea em Angola. Alm da falta de recursos financeiros e da inexistncia de tradio nesse campo, h tambm o temor gerado pela situao de guerra, inibidor de possveis crticas aos diferentes centros de poder que possam vir a ser encaradas como sinais de uma aproximao com o inimigo. Alm disso, o governo, com todas as suas dificuldades, continua a ser, com exceo de alguns casos isolados,24 a nica fonte de recursos na rea acadmica em Angola. Antes de passarmos ao segundo momento do texto, importante reforarmos o aviso: os fatores apontados pelas principais vertentes de anlise da sociedade angolana - os condicionamentos internacionais e as vinculaes tnicas - certamente fazem parte do complexo mundo angolano, mas, ao serem utilizados de forma exclusivista ou mesmo privilegiados de maneira conjugada, em detrimento de outros, podem facilmente ser apropriados com o interesse de discutir qual ser o encaminhamento a ser dado crise atual. O que no por si s algo a ser execrado - j que so elementos constitutivos dessa realidade -; o agravante se encontra no fato de que tal concentrao tem ajudado a inviabilizar novas interpretaes, baseadas em outros fatores, por parte dos historiadores e cientistas sociais. III - Novos elementos Essa preocupao est inserida num contexto muito especial em que se verifica o incio, ainda de forma muito tmida, de um processo de reviso da histria contempornea de Angola. Nossa proposta, evidentemente, no caminha de maneira isolada. Existem vozes dissonantes quanto polarizao apresentada e que foram fundamentais para a construo de uma nova perspectiva para o cenrio angolano, empenhadas em despolitizar as anlises e na elaborao de uma abordagem no-excludente entre os fatores tnico e os internacionais, preocupadas tambm com a absoro de novos elementos. Nesse sentido, poderamos destacar a produo de alguns angolanos que conhecemos durante a realizao de nossa pesquisa em Luanda para a elaborao da dissertao de mestrado, como o caso de Maria da Conceio Neto, Fernando Pacheco e Ruy Duarte, lamentando, entretanto, o fato de trabalharem de forma isolada.25 H ainda os casos isolados de Carlos Pacheco, em Lisboa, 26 e Daniel dos Santos, no

    24 Fao referncia aqui aos poucos angolanos que conseguiram obter recursos no exterior para a formao em cincias humanas. Um balano, j um pouco desatualizado, foi feito em GONALVES, Jos. "As cincias sociais em Angola, Cabo Verde, Guin-Bissau, Moambique e So Tom e Princpe". In: Cincias Sociais em frica. Dacar, Codesria, 1992. 25 CONCEIO NETO, Maria da. Le peuple angolais. Une histoire qui unit et qui divise. In: Antipodes. Bruxelas, n 134-135, DITECO, 1996, p. 12-18. PACHECO, Fernando. Da independncia guerra, da guerra ao desenvolvimento. Texto indito, 1994. Um caso a parte o do antoplogo Ruy Duarte de Carvalho, pois j conhecamos os seus trabalhos publicados em Paris e Lisboa, principalmente Ana a Manda. Os filhos da rede. Lisboa, Instituto de Investigao Cientfica e Tropical, 1989. 26 Seus trabalhos concentram a anlise no sculo XIX, mas, aps encontrar importante e indita documentao at ento retida pelas autoridades portuguesas, iniciou a elaborao de um livro que causou muita agitao em Angola, at mesmo nos meios poltcos: MPLA - um nascimento polmico (as falsificaes da histria). Lisboa, Vega, 1997.

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    Canad.27 Tambm Carlos Serrano - no Brasil - que avanou suas anlises pelo perodo mais recente.28 No poderia deixar de mencionar tambm os estudos de Christine Messiant, que estabelecem pontes interessantes entre a antropologia, a sociologia e a histria.29 Para alm desses, numa linha de histria socioeconmica, sobressaem os trabalhos de grande flego de Gervase Clarence-Smith e Adelino Torres.30 Contou tambm e muito para a percepo dessas questes a realizao da pesquisa de campo para a citada dissertao de mestrado. Baseado em entrevistas e na coleta de razovel nmero de artigos locais pouco ou nada conhecidos fora de Angola, esse trabalho se mostrou fundamental para a construo de uma forma de anlise diferenciada. Destacaria ainda o contato direto e cotidiano com a prpria situao precria do pas que fomos obrigados a vivenciar em Luanda e com indivduos despossudos de espao para questionar a atuao dos mais diferentes atores da cena histrico-poltica angolana. A escassez de produtos e servios para aqueles que se encontram fora dos esquemas,31 mesmo no nosso caso - em que possuamos recursos financeiros elevados, quando comparados com a imensa maioria do povo angolano -, acabou por nos aproximar dessa populao sofrida. Esse fator se constituiu, com certeza, num elemento extremamente produtivo da pesquisa, pois muitos de seus questionamentos no haviam sido sequer percebidos e seus comentrios pouco ou nada investigados. Isso posto, podemos ento avanar com nossa proposta de anlise. Em linhas gerais ela ambiciona realar a presena constante e concomitante, eventualmente interagindo, das diversas variveis existentes nos modelos explicativos, da sociedade angolana. Mas no s, devemos tambm considerar outros fatores, tais como o que temos chamado de vnculos de solidariedade, para alm dos anteriormente citados (os poltico-ideolgicos e raa). O fundamental, portanto, atentarmos para a possibilidade de se enxergar novos elementos que sejam elucidativos e operacionais para a construo da histria de Angola e o processo de inter-relao com os demais fatores. No caso citado, a expresso vnculos de solidariedades pretende identificar os diversos comprometimentos e as relaes privilegiadas que surgem na trajetria de muitos grupos sociais angolanos e que dizem respeito regio militar onde lutaram, famlia e at mesmo sua opo religiosa ou misso que freqentavam. Constituem, portanto, os laos de solidariedade formados pelos angolanos em diversos momentos de sua vida e que vieram a influenciar na sua trajetria futura, como a filiao poltica, por exemplo. Em virtude de esses aspectos, muito raramente, terem sido enfocados em estudos anteriores, exceo da religio, e de a nossa pretenso aqui ser apenas a de alertar para a viabilidade dessa proposta, sua apresentao ter, necessariamente, um carter exploratrio.

    27 SANTOS, Daniel dos. "L'Angola la croise des chemins: La dmocratie, le pouvoir politique et la constitution". In: CONAC, Grard (org.) L'Afrique du Sud en transition. Rconciliation et coopration en Afrique Australe. Paris, Economica / Universit de Paris I / Sorbonne, 1995. p. 249-266. 28 Esperamos para breve a publicao de sua tese de doutorado, defendida no Departamento de Antropologia, da Universidade de So Paulo, em 1988, intitulada Angola: nasce uma nao. 29 MESSIANT, Christine. "MPLA et Unita: processus de paix et logique de guerre". In: Politique Africaine. Paris, n 57, maro 1995, p. 40-57. 30 CLARENCE-SMITH, Gervase. O III imprio portugus, 1825-1975. Lisboa, Teorema, 1985. TORRES, Adelino. O imprio portugus entre o real e o imaginrio. Lisboa, Escher, 1991. 31 Palavra rotineiramente utilizada pelos angolanos quando pretendem identificar uma situao ilegal ou no que os faa driblar as carncias ou arbitrariedades existentes. Por exemplo, o caso de alguns trabalhadores que compram alimentos a preos subsidiados nos supermercados de suas empresas e os revendem no mercado paralelo. SANTOS, Daniel dos. The second economy in Angola: Esquema and candonga. In: Maria Ls (ed.). The second economy in marxist states. London (U.K.), The Macmillan Press, 1990. p. 157-174.

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    As ligaes de carter religioso passam, necessariamente, pela elucidao da diviso e, consequentemente, da oposio de mtodos e perspectivas existentes entre a igreja catlica, as misses protestantes e as chamadas religies sincrticas. Essa diferenciao dar um colorido especial vinculao, pois, como afirma Messiant, no s identifica o indivduo, como tambm molda sua atuao poltica: "(...) a religio tem uma grande importncia em Angola no s como critrio de identificao, mas tambm como um fator poltico e social".32 Todavia, no nossa inteno destacar a estreita relao entre o Estado portugus e a igreja catlica, que acabaria por dificultar a expanso das igrejas protestantes em territrio angolano. Ligao essa que por vezes encobre a ao de vrias figuras da igreja catlica na luta pela independncia. Nem tampouco pretendemos a concentrao na atuao dos protestantes, que levaria a uma situao no-institucionalizada, mas bem clara em alguns casos, de apoio aos quadros independentistas, em que a prpria rede de contatos entre os fiis estabelecida pela misso ajudava na comunicao entre muitos nacionalistas.33 Tudo isso j foi muito bem analisado por diversos autores, inclusive as diferenas entre batistas, metodistas e congregacionais. O que se busca apontar a existncia desse espao religioso, concretizado atravs da igreja e da misso, como local onde se potencializa um vnculo de solidariedade entre os participantes. Esse vnculo pode se explicitar de maneira mais aberta, quando da militncia em parceria num determinado movimento de libertao, ou, em alguns casos - e a reside nosso interesse -, de forma mais camuflada, atravs de apoios pessoais para a ascenso profissional e poltica. Da mesma forma, o lao familiar - que se constitui num elemento dos mais importantes quando se fala em sociedade africana e que se teve algumas de suas caractersticas alteradas no perdeu sua fora com o processo de expanso colonial sofrido por Angola a partir de meados do sculo passado - tambm constitui um importante meio de ascenso social e de unio poltica. As chamadas famlias tradicionais angolanas pontuam a histria de Angola antes mesmo do sculo passado e como tal no poderam deixar de influenciar na luta anticolonial. A consulta aos sobrenomes daqueles que criaram ou apoiaram os respectivos movimentos de libertao revela muito claramente tal associao.34 A importncia dessa instituio permaneceu no ps-luta de libertao e passou a ter um papel muito interessante. No decorrer do processo de intensificao das dificuldades econmicas e sociais enfrentadas pelo pas, o fato de se possuir um membro da famlia num cargo de importncia no Estado ou no Partido passou a significar a possibilidade de uma condio privilegiada no acesso aos servios monopolizados por esse Estado. Em muitos casos, dada a carncia de instituies oficiais que fizessem a ligao Estado-cidado, o parentesco familiar passou a canalizar o acesso possveis facilidades fornecidas pelo Estado. Encaixam-se nessa categoria as promoes funcionais, as bolsas para estudar no exterior, viagens internacionais etc. Tratava-se, portanto, da tarefa, nada original, de cuidar dos interesses da famlia. O que no deve ter sido muito diferente no lado da Unita.

    32 MESSIANT, Christine. Social and political background to the "democratization" and the peace process in Angola, p. 17. 33 Essa articulao a partir da rede protestante, no entanto, e apesar do discurso nacionalista, detinha forte conotao tnica, dada a natureza do trabalho das misses protestantes, mais voltada para essas realidades. CLARENCE-SMITH, Gervase. Le problme ethnique en Angola, p. 3. 34 MOURO, Fernando A. A. Continuidades e descontinuidades de um processo colonial atravs de uma leitura de Luanda. Tese de livre docncia defendida na Universidade de So Paulo em 1992. p. 515.

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    Pelo lado da guerrilha, que tambm se constitui num espao privilegiado para a formao de laos de solidariedade, o que pretendemos ressaltar no o fato de se ter lutado do mesmo lado, enquanto movimento de libertao - o que por si s seria aparentemente normal -, mas sim na mesma unidade de guerrilha, na mesma regio. No caso do MPLA, essa situao fortalecida pela quase incomunicabilidade, durante a guerra anticolonial, entre as regies militares, no s devido contra-ofensiva portuguesa, mas tambm s aes violentas da FNLA. Os laos criados nessas unidades militares ao longo dos vrios anos de luta armada e de mltiplas carncias, na busca da concretizao de um objetivo central, demonstraram ser um elemento muito forte para se entender o comportamento dos quadros que fizeram a guerrilha. A nossa preocupao com esse fator foi despertada em funo do estudo do momento ps-independncia. Deparamo-nos com tais vnculos quando tentvamos entender o conflito surgido entre os elementos do MPLA que fizeram a luta armada e os que permaneceram em Luanda, numa luta clandestina de baixa intensidade.35 As disputas entre os vencedores do processo de independncia pelos cargos e posies de chefia revelaram a fora dessa solidariedade construda na guerrilha. E, mesmo nos casos de dissidncia no prprio MPLA, podemos observar a importncia de tal vnculo na consolidao dos grupamentos. Dessa forma, podemos afirmar que esse amplo quadro dos vnculos de solidariedades nos possibilita identificar a existncia de posicionamentos sociais que sero importantes na elaborao da contestao anticolonial e no momento posterior. Esses posicionamentos foram adquiridos ou reforados em decorrncia do fato de se pertencer a determinadas famlias, em funo da proximidade religiosa, da participao na mesma unidade de guerrilha ou at mesmo por estarem embebidos do mesmo convvio cultural. Em geral, esses fatores ocorrem de forma simultnea, e o uso que se faz deles assim como o seu resultado dependero da capacidade dos indivduos em fazer valer tal capital. Aos fatores acima citados, poderamos anexar outros tipos de solidariedades possveis de atuar no contexto angolano, principalmente urbano, como o bairro em que o indivduo foi criado e que, de acordo com as entrevistas que realizamos e nossa prpria experincia em Angola, se consolida como algo mais que uma referncia trajetria do indivduo. Muitas das amizades assumidas na infncia e na mocidade, em virtude do convvio na mesma regio, tornam-se responsveis por filiaes profissionais e polticas. Devemos ainda enfatizar, uma vez mais, que, aos chamados vnculos de solidariedades, juntar-se-o os aspectos anteriormente referidos. Esperamos que uma de nossas contribuies tenha sido exatamente realar a interligao dos vrios fatores aqui apresentados. Os fatores tnicos e os condicionamentos internacionais, bem como os poltico-ideolgicos e o racial, tambm se articulam a tais vnculos, permeando e ajudando a construir uma rede de solidariedades que ir ter seus elementos de destaque de acordo com o momento histrico e os atores em questo. importante insistirmos nesse fato: dada a atuao de forma articulada desses fatores, no se pode abrir mo das correlaes existentes entre eles, apontando uma nica fora determinante. Em cada momento especfico, um poder ter maior importncia que o outro, mas a presena de qualquer um desses pode alterar os demais. Antes de finalizar, faz-se necessrio uma referncia ao fenmeno da crioulidade. Estaramos fugindo a um dos temas mais importantes e tambm dos mais polmicos

    35 Esses elementos da luta clandestina teriam grande destaque quando dos primeiros enfrentamentos militares entre os movimentos de libertao, em 1975, bem como no controle do aparelho de estado nessa poca.

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    surgidos ultimamente na historiografia angolana se no tocssemos nesse ponto. Alm disso, onde a crioulidade se faz presente, ela acaba por banhar os vnculos anteriormente citados. O primeiro autor a se debruar com maior intensidade sobre o estudo da sociedade crioula angolana e, provavelmente, o responsvel pela cunhagem desse termo foi, sem dvida, Mrio Antnio Fernandes de Oliveira.36 Ele afirma que tal grupo seria fruto de pequenos ncleos populacionais resultantes da penetrao portuguesa na frica. Penetrao essa restrita a uma faixa litornea pontuada por portos para o comrcio de escravos, alm de uma pequena insero nas margens do rio Cuanza, atravs da construo de presdios e do estabelecimento de mercados ou feiras. A presena crioula teria se consolidado nessas regies a partir do sculo XVII e Luanda constituiria o local privilegiado por seus componentes.37 A convivncia cotidiana entre brancos e negros foi a responsvel pela interpenetrao das culturas africana e europia, proporcionando um processo de radicao sofrido por parte da populao europia que chegara a Luanda. Dessa forma, estabelece-se um lento processo de sntese cultural que poder ser percebido, entre outras coisas, na forma de falar o portugus, na dana, na msica, na culinria e nas festas - ponto de discusso poltica dos mais importantes. E isso fica mais visvel na segunda metade do sculo XIX, atravs dos peridicos editados na colnia. Tratava-se, portanto, de uma mescla de tipo muito especial entre elementos ligados ao contexto africano, geralmente chamados de tradicionais, e os de origem europia, que por vezes so identificados como modernos.38 Essa composio resultou na formao de "um grupo intermedirio entre os europeus da metrpole e a maioria da populao negra rural",39 muitas vezes chamados de euro-africanos pelas autoridades coloniais. Essa designao ambgua, certamente, dava conta dos mulatos e dos negros "de boa posio social", at que fosse estabelecida uma legislao mais rigorosa no sculo XX.40 Um ponto que devemos esclarecer que o termo crioulo faz referncia a uma mestiagem de tipo cultural, ou seja, o crioulo a que nos referimos tanto pode ser preto como branco ou mulato. a presena simultnea de elementos de cultura africana e europia no seu comportamento que ir caracteriz-lo como crioulo. Ou seja, a sua capacidade de atuar nesses dois mundos e realizar uma interligao entre eles. Para alm dessa perspectiva cultural, que nos possibilita identific-los enquanto um grupo, entendemos que a crioulidade comporta indivduos com interesses divergentes em termos de ordem religiosa, social e de classe. A oposio entre catlicos e protestantes, o acesso diferenciado instruo e aos principais cargos pblicos, as rivalidades entre proprietrios e no-proprietrios e at mesmo as desavenas entre famlias so elementos importantes e que no devem ser esquecidos. Nossa proposta - de que a crioulidade deva ser vista por um prisma cultural, enquanto uma juno de referncias culturais africanas e europias - no implica o encobrimento das fissuras

    36 DIAS, Jill R. "Uma questo de identidade: respostas intelectuais s transformaes econmicas no seio da elite crioula da Angola portuguesa entre 1870 e 1930". In: Revista Internacional de Estudos Africanos, Lisboa, jan/jun, n 1, 1984, 61-94, p. 61, nota 1. 37 OLIVEIRA, Mrio Antnio Fernandes de. Luanda, "ilha" crioula. Lisboa, Agncia Geral do Ultramar, 1968, p. 17 38 Miller, por sua vez, prefere utilizar o termo luso-africano em vez de crioulo. Segundo o autor, essa designao pretende definir, para alm de propriedades raciais e culturais, uma especializao econmica desse grupo. Essa postura retrata bem a sua preocupao especfica com o estudo dos indivduos ligados diretamente ao trfico de escravos. MILLER, Joseph C. Way of death. Merchant capitalism and the the Angolan slave trade - 1730-1830. Wisconsin, The University of Wisconsin Press, 1988, p. 246-247. 39 DIAS, Jill R. "Uma questo de identidade: respostas intelectuais s transformaes econmicas no seio da elite crioula da Angola portuguesa entre 1870 e 1930", p. 61, nota 1. 40 MOURO, Fernado A. A. Continuidades e descontinuidades de um processo colonial atravs de uma leitura de Luanda, p. 102-104.

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    existentes entre os grupos sociais. Da a preocupao em privilegiar a designao cultura crioula ou crioulidade em vez de sociedade crioula.41 Mas nos resta ainda uma dvida, talvez a principal: estamos tratando de crioulos ou assimilados? A resposta a essa indagao est ligada a duas formas diferentes de se considerar o perodo ps-30 e a categorias tambm diferenciadas de anlise. Enquanto o assimilado corresponde a um estatuto jurdico com pretenses de legislar sobre fenmenos culturais, o crioulo est ligado a uma perspectiva to somente cultural. A utilizao do termo crioulo responde a vrias questes. Em primeiro lugar, o pressuposto da ideologia colonial que os indivduos assimilados teriam se integrado de maneira total cultura portuguesa, abandonando, consequentemente, os vestgios de outras vertentes culturais. A idia de assimilao, imposta pelo Estado colonial, implicava, como afirma Adriano Moreira, a adoo, por parte do africano, da lei comum e da conduta nos moldes do povo colonizador.42 Portanto, o estatuto de assimilado pressupe a absoro de um determinado padro cultural e no admite a juno ou a interpenetrao cultural, que a marca da crioulidade. Esta implica sntese, enquanto a assimilao, na forma como era entendida, opo. Evidentemente, o fato de os crioulos terem alcanado tal estatuto no significou sua submisso cultura portuguesa, em detrimento da africana. As acomodaes foram sendo realizadas paralelamente ao incremento de uma legislao mais precisa no tocante aos requisitos necessrios obteno do estatuto. O termo assimilado, portanto, no traduz, no caso dos crioulos, o carter marcadamente cultural, acabando por assumir um tom pejorativo que rechaado por eles. Esse repdio legislao que define os critrios da assimilao fcil de ser percebido e entendido. Era uma grande humilhao para os crioulos ter de provar os nveis exigidos de civilizao, quando na verdade h muito tempo participavam ativamente de toda a vida poltica e econmica da colnia, em ligao constante com a metrpole. Outro ponto a considerar diz respeito limitao legal imposta pela assimilao. Quando nos referimos aos crioulos, fazemos meno no apenas aos que eram oficialmente reconhecidos como assimilados, at porque o nmero exato de assimilados no to importante quanto a realidade que ele deveria retratar e que por vezes acabava por falsear.43 Por sua vez, as autoridades coloniais sabiam que a assimilao no dava conta de todos aqueles que participavam da cultura crioula e o seu temor que a contestao ao colonialismo pudesse se alastrar justamente a partir desse segmento.44 Dessa forma, defendemos o enfoque da crioulidade, que nos parece o mais apropriado, principalmente quando se trabalha com algumas regies especficas de Angola, partindo de uma perspectiva cultural que se pretende mais alargada do que o termo assimilado. No entanto, destacamos que essa anlise no deve implicar a impossibilidade de que se percebam os conflitos existentes no interior da crioulidade.

    41 A ateno para esse vis surgiu quando das leituras de Mrio Antnio e Viriato da Cruz, apesar de, no caso de Viriato, seu trabalho fazer referncia a momento posterior ao que estamos nos referindo. CRUZ, Viriato da. "Angola: quelle indpendance...". In: Rvolution, n 6, Revue Mensuelle Internationale, Paris, fvrier, 1964, p. 5-16. OLIVEIRA, Mrio Antnio Fernandes de. Reler frica. Coimbra, Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Africanos, 1990, p. 348. Mouro tambm nos chamou a ateno para tal perspectiva. Ele acredita ter sido a literatura a responsvel em grande parte pela transmisso dessa imagem de tal grupo como um todo. MOURO, Fernado A. A. Continuidades e descontinuidades de um processo colonial atravs de uma leitura de Luanda, p. 8-9. 42 MOREIRA, Adriano. Poltica ultramarina. Lisboa, Junta de Investigaes do Ultramar, 1961, p. 139. 43 BENDER, Gerald J. Angola sob o domnio portugus: mito e realidade, p. 218. 44 MOREIRA, Adriano. Poltica ultramarina, p. 142.

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    Da a necessidade de identificarmos os interesses e os segmentos atuantes, ao analisarmos um determinado momento histrico.45 A opo pela utilizao do termo crioulo se relaciona tambm com o problema racial. Uma forma bem difundida de analisar a criao do MPLA tende a distinguir a atuao das trs comunidades raciais existentes em Luanda - os negros, os mulatos e os brancos.46 A opo pela tica da crioulidade busca perceber a imerso de parte desses grupos num caldo sociocultural que lhes dava a possibilidade de uma mobilizao coesa contra o sufocamento a que estavam sendo expostos. Essa anlise, no entanto, no acarreta numa perspectiva de a-racialidade. evidente que se alguns brancos foram banhados pela crioulidade, devido principalmente sua condio socioeconmica,47 a grande maioria mantm o discurso racial como barreira legitimadora.48 Para alm disso, bom frisar que o tema racial no se esgota no seio da crioulidade. Os brancos e, em menor grau, os mulatos tero que conviver com as recorrentes suspeitas quanto sua real vinculao agitao colonial.49 Para finalizar essa questo, importante afirmar que os crioulos do sculo passado e meados deste sculo no assumem quer o nome de crioulos, quer o de assimilados. No caso do termo crioulo, trata-se de uma construo analtica que pretende diferenci-los dos demais angolanos. A convico desses indivduos de que eles eram os verdadeiros angolanos, j que os demais teriam as etnias como laos primordiais.50 O termo assimilado, por sua vez, era uma construo jurdica do colonialismo portugus, que muitos desejavam adquirir, mas que geralmente, quando obtida, no era explicitada gratuitamente e em muitos casos sua utilizao se dava com o objetivo de tratar com desmerecimento o outro, retratando uma forma caricatural de comportamento. Os detentores de tal chancela no se referiam a si mesmos assim e muito menos aos seus pares. Consideravam-se, da mesma forma, angolanos.51 No entanto, acredito que devemos enfrentar o problema de frente e uma boa opo manter o termo crioulo, visto que se impe, para alm do nosso desejo de no ferir suscetibilidades, a necessidade de identific-los como uma camada especfica, localizada regionalmente e diferenciada tanto dos colonos quanto da massa africana

    45 Nesse ponto, de grande valia a distino elaborada por Viriato da Cruz entre o "assimilado objeto" - que diz respeito ao explorado pelo colonialismo cotidianamente e que o recusa como um comportamento vital - e o "assimilado destinado" - que seriam, por exemplo, os estudantes que conseguem sair de Angola para completar sua formao em Portugal e que se opem ao colonialismo por razes de patriotismo, de interesse ou ainda de solidariedade. CRUZ, Viriato da. "Angola: quelle indpendance...", p. 6-7. 46 Como o caso de John Marcum, responsvel por uma obra de grande importncia sobre Angola que, sem dvida, marcou a produo de muitos pesquisadores. 47 Quanto a isso, muito elucidativa a entrevista de Luandino Vieira a Michel Laban, na qual o escritor afirma que na sua infncia e adolescncia abraou "valores culturais africanos, valores populares angolanos" que, posteriormente, comprovou serem corretos. Nessa entrevista tem-se tambm noo exata da importncia da condio socioeconmica do branco como fator capaz de inseri-lo na crioulidade; no que isso significasse a sua adeso a um compromisso anticolonial, pois muitos partiam em direo oposta, radicalizando sua postura racial na tentativa de melhorar tal condio, mas a partir dessa situao poderia surgir uma atitute diferenciada. LABAN, Michel e outros. Luandino. Jos Luandino Vieira e a sua obra (estudos, testemunhos, entrevistas). Lisboa, Edies 70, 1980, p. 13-14. 48 Existem tambm os brancos que, no pertencendo a esse mundo crioulo, estavam conscientes de que aquela era sua terra e que as injustias existentes deveriam cessar. Possuem, portanto, uma perspectiva mais consciente, mais militante. 49 bom mais uma vez frisar que a crioulidade vai dar conta da grande maioria dos mulatos, mas tambm de um elevado nmero de negros, basta considerar os indivduos presos em finais dos anos 50 e incio dos anos 60, bem como os dados referentes assimilao, em que mais da metade composta por negros. verdade que proporcionalmente essa relao irrisria, mas de qualquer forma no se pode esquecer a sua participao. PLISSIER, Ren. La colonie du minotaure. Nationalismes et revoltes en Angola (1926-1961), p. 65. 50 Quanto a esse tema da angolanidade especial dos crioulos, ver CAHEN, Michel. "Angola, Moambique: que futuro para os crioulos?". In: Informfrica Confidencial, n 63, jul 94, p. 18-19. 51 HAMILTON, Russel G. Literatura africana. Literatura necessria - I / Angola. Lisboa, Edies 70, 1981. p. 142.

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    rural.52 Alm do crioulo e do assimilado, pode-se encontrar outros termos, como modernos, ocidentalizados e destribalizados, mas nenhum deles consegue passar a idia de sntese cultural to bem quanto o termo crioulo. A maneira de minorar o problema chamar a ateno para ele. bom ressaltar que estamos discorrendo sobre um tema ainda em discusso, o que tende a aumentar o grau de dificuldade da avaliao, j que as contribuies aparecem conforme os novos questionamentos vo sendo lanados. Lembremos ainda que a existncia de cultura crioula em Angola no nada de excepcional. O mesmo processo de conjuno j ocorrera em outros pases africanos e caribenhos, gerando inclusive lnguas crioulas. Frisemos ainda a distino entre, por um lado, acesso educao de tipo ocidental e contato com valores europeus e, por outro, a pertena a um determinado padro cultural. O ensino e a relao prxima com crioulos e europeus so elementos que podem ajudar no processo de crioulizao, mas no significam a certeza da crioulidade. Esta deve ser identificada a partir do modo como se comportam os indivduos em suas relaes, nos seus hbitos e nas suas aspiraes. A possibilidade de acesso a esse contato no significa que se ir assumir a cultura crioula. Podemos citar como exemplo o fato de muitos dos que foram educados em misses religiosas terem preferido continuar, poca da criao dos movimentos de libertao, prximos s suas vinculaes tnicas. Se possvel que seus lderes tenham se prendido a tal perfil como forma de garantir uma base de apoio, o mais provvel, porm, que tenham agido dessa maneira porque assim encaravam a luta que tinham pela frente. a capacidade de circulao entre esses mundos que diferencia o crioulo dos demais angolanos. Os crioulos no podem dar sinais de que perderam as razes africanas, ao mesmo tempo que tentam passar esse conhecimento embalado numa forma moderna. A distino entre tradio e modernidade, tema dos mais apreciados quando se fala de frica, no deve existir para o crioulo. Ele representa essa sntese. A confluncia sempre o objetivo, pois a modernizao isolada, sem a tradio, representaria a assimilao. As leis portuguesas de assimilao no iriam criar cultura, constituram apenas normas de relacionamento jurdico entre o colono e o colonizado. O convvio cotidiano de que estamos falando, em sua forma mais elementar, que ir crioulizar grande parte daqueles que at ento estavam afastados dos ncleos urbanos e do poder portugus. Todavia, e aqui camos noutra questo delicada, o termo, ou suas derivaes - crioulidade, cultura crioula, crioulos -, tem sido utilizado sem grandes preocupaes por autores que analisam a sociedade angolana em sua conjuntura atual. No entanto, no devemos nunca deixar de realizar a devida ressalva s nuances histricas que estaro presentes no desdobramento desse grupo e ao fato de o termo ter sido criado com o objetivo inicial de retratar uma realidade especfica. Sua utilizao por muitos autores contemporneos, porm, no se d apenas por ser um bom nome, que carrega uma inteligibilidade acerca da mestiagem cultural. Ela ocorre tambm porque existe a permanncia e a continuidade de uma srie de elementos daquele grupo, no s na nova fase colonial, mas tambm no ps-independncia.

    52 Mesmo os autores que no esto diretamente preocupados com tal tema defrontam-se com a impossibilidade de fugir discusso. o caso, por exemplo, de Mouro, que, ao tratar de Luanda, aponta uma diviso entre os negros "tradicionais e os inseridos no mundo moderno, que so chamados na literatura colonial de 'civilizados' e, mais tarde, assimilados". MOURO, Fernado A. A. Continuidades e descontinuidades de um processo colonial atravs de uma leitura de Luanda, p. 502

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    At o momento, parece-nos que uma viso retrospectiva como a que tentamos elaborar fornece elementos para boa compreenso do problema e nos mantm fiis na utilizao do termo, desde que realizadas tais ressalvas. Mas qual o temor em recorrer a ele? parte a confuso quanto nomenclatura, de que j tratamos, podemos afirmar que a utilizao pouco criteriosa do termo crioulo para se definir um grupo poltica e economicamente muito forte que atua junto ao governo angolano deixa a desejar no que diz respeito sua operacionalidade. A linha divisria entre os elementos desse grupo e os indivduos frutos da crescente urbanidade dos anos 60 em diante, principalmente luandense, muito tnue. Facilmente se pode cair numa crioulizao das elites angolanas. evidente que h uma grande relao entre as cidades e a crioulidade, visto que nos centros urbanos que se tem mais acesso diversidade cultural, incluindo a maior presena da cultura portuguesa nesse espao. Mas a crioulidade no se restringe a isso. Por exemplo, no Dondo e no Golungo Alto, zonas de prolongamento do circuito comercial do eixo Luanda-Malange, a cultura crioula se expandiu desde o sculo passado. Essa utilizao sem critrios o temor, por exemplo, de Pepetela, que no descarta a possibilidade de ocorrer uma identificao do termo crioulo com outras minorias da populao, como os brancos e mulatos. Pepetela nos lembra tambm as acusaes da Unita aos crioulos nas eleies de 1992, quando esses foram associados aos luandenses destribalizados,53 embora, na verdade, o fenmeno da crioulizao no se encontre apenas em Luanda. Por outro lado, e por mais contraditrio que possa parecer, essas diferenciaes podem vir a se atenuar num futuro prximo, contribuindo para isso o convvio social dinmico existente nas cidades e uma possvel melhoria da situao econmica do pas, com o fim das hostilidades militares. Evidentemente, toda essa discusso sobre a crioulidade ganha importncia ainda maior na nossa argumentao pelo fato de que tal processo de sntese cultural ocorrido na colnia ao longo de vrios sculos pode, em determinados momentos, abarcar os vnculos de solidariedades anteriormente citados. V - Concluso Acreditamos que a concluso, para no dizermos que bvia, no possa ser outra a no ser a de que se tem muita coisa a fazer para o progresso da histria contempornea de Angola. O bom sinal permanece: estamos diante de um vasto leque de possibilidades no que diz respeito s temticas a serem tratadas, embora continuem inmeras as dificuldades. interessante ressaltar ainda que, apesar da pequena produo brasileira e do pouco espao de tempo, desde que passamos a nos dedicar aos estudos africanos, arriscamo-nos a apostar no crescimento dessa rea e, consequentemente, do terreno da contemporaneidade. Tal previso se baseia nos laos histricos atados h muitos sculos e agora redescobertos por uma nova safra de antroplogos e historiadores, com destaque para aqueles que se dedicam aos sculos XIX e XX, e pela descoberta do Brasil por parte dos africanos de lngua oficial portuguesa como alternativa acadmica, e no apenas comercial, ao continente europeu. No podemos deixar de mencionar ainda, sobre esse assunto, o trabalho de base realizado pelos africanistas mais velhos.

    53 Essas opinies se encontram num texto chamado Conflitos tnicos em Angola?, ao qual tivemos acesso quando entrevistamos o autor em fevereiro de 1995, numa verso manuscrita. Posteriormente Conceio Neto alertou-me que tal texto foi publicado em OIKOS. Boletim bimestral. Ano III, n 13. Julho Agosto, 1993.