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INSTITUTO DO EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL, IP DELEGAÇÃO REGIONAL DO CENTRO CENTRO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE AVEIRO Curso: Técnico/a de Ação Educativa – Aprendizagem; Nível 4 Módulo: Desenvolvimento da criança Formadora: Carla Marques Victor, o menino selvagem de Aveyron Victor, o menino selvagem de Aveyron Victor, o menino selvagem de Aveyron Victor, o menino selvagem de Aveyron «Em 8 de Janeiro de 1800, um rapaz nu, com o rosto e o pescoço muito arranhados apareceu nos arredores da vila de Saint-Sernin na província pouco povoada da Aveyron, na região centro do sul de França. O rapaz, que media apenas 1,35m e aparentava cerca de 12 anos de idade, tinha sido visto várias vezes nos dois anos e meio precedentes, a correr a quatro patas, a beber em regatos e à procura de bolotas e raízes para comer. Tinha sido capturado duas vezes, mas tinha escapado. Então, no Inverno invulgarmente frio de 1799-1800, ele começou a aparecer em quintas à procura de comida. Quando o rapaz de olhos escuros chegou a Saint-Sernin, não falava nem respondia ao discurso, embora se virasse imediatamente ao som de nozes a serem quebradas ou ao de um cão a ladrar. Ele rejeitava alimentos cozinhados, preferindo batatas cruas, que lançava na fogueira, retirando-as rapidamente com as mãos desprotegidas e devorando-as ainda a escaldarem. Como um animal habituado a viver na floresta, o rapaz parecia insensível quer ao calor, quer ao frio extremos, rasgando e tirando as roupas que lhe tentavam vestir. Parecia evidente que ele tinha perdido os seus pais ou que estes o tinham abandonado, mas era impossível de dizer há quanto tempo isso tinha sucedido. O rapaz apareceu num período de agitação intelectual e social, quando uma nova abordagem científica começava a substituir a especulação mística. Os filósofos debatiam questões sobre a natureza essencial do ser humano – questões que iriam, nos dois séculos seguintes, tornar-se centrais para o estudo do desenvolvimento da criança. As qualidades, o comportamento e as ideias que definem os seres humanos são inatas ou são adquiridas? Qual é o efeito do contacto social durante os primeiros anos de vida, e a sua falta pode ser superada? Um estudo cuidadosamente documentado de uma criança

A história de Victor - o menino selvagem de Aveyron

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Curso: Técnico/a de Ação Educativa – Aprendizagem; Nível 4 Módulo: Desenvolvimento da criança Formadora: Carla Marques

Victor, o menino selvagem de AveyronVictor, o menino selvagem de AveyronVictor, o menino selvagem de AveyronVictor, o menino selvagem de Aveyron

«Em 8 de Janeiro de 1800,

um rapaz nu, com o rosto e o

pescoço muito arranhados

apareceu nos arredores da vila de

Saint-Sernin na província pouco

povoada da Aveyron, na região

centro do sul de França. O rapaz,

que media apenas 1,35m e

aparentava cerca de 12 anos de

idade, tinha sido visto várias vezes

nos dois anos e meio precedentes,

a correr a quatro patas, a beber

em regatos e à procura de bolotas e raízes para comer. Tinha sido capturado duas vezes,

mas tinha escapado. Então, no Inverno invulgarmente frio de 1799-1800, ele começou a

aparecer em quintas à procura de comida.

Quando o rapaz de olhos escuros chegou a Saint-Sernin, não falava nem respondia

ao discurso, embora se virasse imediatamente ao som de nozes a serem quebradas ou ao

de um cão a ladrar. Ele rejeitava alimentos cozinhados, preferindo batatas cruas, que

lançava na fogueira, retirando-as rapidamente com as mãos desprotegidas e devorando-as

ainda a escaldarem. Como um animal habituado a viver na floresta, o rapaz parecia

insensível quer ao calor, quer ao frio extremos, rasgando e tirando as roupas que lhe

tentavam vestir. Parecia evidente que ele tinha perdido os seus pais ou que estes o

tinham abandonado, mas era impossível de dizer há quanto tempo isso tinha sucedido.

O rapaz apareceu num período de agitação intelectual e social, quando uma nova

abordagem científica começava a substituir a especulação mística. Os filósofos

debatiam questões sobre a natureza essencial do ser humano – questões que iriam, nos

dois séculos seguintes, tornar-se centrais para o estudo do desenvolvimento da criança.

As qualidades, o comportamento e as ideias que definem os seres humanos são inatas ou

são adquiridas? Qual é o efeito do contacto social durante os primeiros anos de vida, e a

sua falta pode ser superada? Um estudo cuidadosamente documentado de uma criança

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que tinha crescido no isolamento poderia fornecer evidência do impacto relativo da

“natureza” (as características inatas da criança) e do “ambiente” (a educação, a

escolaridade e outras influências sociais).

Após observações iniciais, o rapaz, que veio a ser chamado Victor, foi mandado

para uma escola de surdos em Paris. Aí, foi entregue aos cuidados de Jean-Marc-

Gaspard Itard, um médico ambicioso de 26 anos, que exercia a “”medicina mental” ou

psiquiatria, uma ciência em emergência na época. O rapaz, escreveu Itard, era “uma

criança repugnantemente suja…, que mordia e arranhava aqueles que se lhe opunham e

que não demonstrava nenhum afeto por aqueles que cuidavam dele; era alguém, em

resumo, indiferente a tudo e atento a nada” (Lane, 1976, p.4). Alguns observadores

concluíram que ele era um “idiota”, incapaz de aprender. Mas Itard acreditava que o

desenvolvimento de Victor tinha sido limitado pelo isolamento e que ele precisava

simplesmente que lhe ensinassem as competências que as crianças nas sociedades

civilizadas adquirem normalmente na vivência quotidiana.

Itard levou Victor para a sua própria casa e durante os cincos anos seguintes,

gradualmente “domesticou-o”. Inicialmente, despertou a capacidade do seu aluno para

discriminar experiências sensoriais através de banhos quentes e fricções secas e, depois,

prosseguiu com um trabalho meticuloso de treino passo-a-passo de respostas emocionais

e instrução do comportamento moral e social, linguagem e pensamento. Os métodos

utilizados por Itard – baseados nos princípios da imitação, condicionamento e

modificação do comportamento (…) – eram muito avançados para a sua época e ele

inventou muitas das técnicas de ensino usadas hoje em dia. De facto, Itard, refinando as

técnicas que tinha usado com Victor, veio a tornar-se um pioneiro da educação especial.

Mas a educação de Victor, a qual foi retratada no filme “A Criança Selvagem” de

François Truffaut, não foi um sucesso sem reservas. O rapaz teve progressos

extraordinários: aprendeu o nome de muitos objetos e era capaz de ler e de escrever

frases simples; era capaz de expressar desejos, obedecer a ordens e trocar ideias.

Demonstrava afeto, principalmente pela governanta de Itard, Madame Guérin, assim

como emoções tais como orgulho, vergonha, remorso e desejo de agradar. Contudo, para

além de emitir alguns sons vocálicos e consonânticos, nunca aprendeu a falar. Para além

disso, permaneceu totalmente centrado nas suas vontades e necessidades, e, como

admitiu Itard no seu relatório final, nunca pareceu perder os seus anseios “pela liberdade

do campo nem a sua indiferença pela maioria dos prazeres da vida social” (Lane, 1976,

p.160). Quando o estudo terminou, Victor – não mais capaz de se defender a si próprio

tal como havia feito na floresta – foi viver com Madame Guérin (a qual recebeu um

subsídio do governo francês para cuidar dele) até à sua morte em 1828, quando tinha

pouco mais de quarenta anos.»

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Para refletir:

«Porque razão é que Victor falhou em satisfazer as esperanças iniciais que Itard

tinha depositado nele? Tem sido sugerido que o rapaz tinha uma lesão cerebral, autismo

(uma perturbação que implica ausência de responsividade social) ou fora vítima de

graves maus tratos precoces. Os métodos de instrução de Itard, avançados como eram,

poderão ter sido inadequados. O próprio Itard chegou mesmo a considerar que os

efeitos do isolamento prolongado não poderiam ser totalmente superados e, que o Victor

poderia ser já demasiado crescido, sobretudo para a aprendizagem da linguagem.»

«Apesar da história de Victor não dar respostas definitivas às questões que Itard se

propôs explorar, ela é importante porque foi a primeira tentativa sistemática de estudar

o desenvolvimento da criança. Desde os tempos de Victor, temos vindo a aprender muito

acerca do desenvolvimento da criança, mas os desenvolvimentalistas continuam a

investigar questões fundamentais como a importância da natureza e do ambiente. A

história de Victor ilustra os desafios e as complexidades do estudo científico do

desenvolvimento da criança.»

Retirado de “O Mundo da Criança”