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Uma muito breve história da formação da síntese medieval do direito eclesial.
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Corpus iuris canonici: a síntese medieval do direito eclesial
MIGUEL CABEDO E VASCONCELOS
O presente documento, parte integrante dos elementos de avaliação da disciplina de
Direito Canónico Fundamental, pretende esquematizar um ponto do programa leccionado.
A nossa escolha recaiu sobre a área da História do Direito, concretamente sobre o
chamado Corpus iuris canonici, a síntese medieval do direito da Igreja, a sua formação gradual,
as suas fontes e o seu conteúdo.
Com efeito, publicado na sua versão final em 1582, o mesmo ano em que o Papa
Gregório XIII revira o calendário mundial, o Corpus iuris canonici é o corpo normativo da
Igreja Católica, com validade quer nos tribunais eclesiásticos locais, quer, e.g., na Sacra Rota
Romana, até à promulgação, por Bento XV, do Código de Direito Canónico de 1917.
Consiste numa colecção sistematizada de leis canónicas provenientes de diversas fontes,
outrora aplicadas algumas delas à Igreja universal e outras apenas a Igrejas particulares ou
às Igrejas orientais.
Embora a versão final seja apenas de 1582, já desde o século XII, o chamado Decretum
de Graciano, a que adiante voltaremos, era já tratado pela designação Corpus iuris canonici. A
mesma desigação é atribuída por Inocênio IV aos Decretales de Gregório IX na sua bula Ad
expediendos, de 9 de Setembro de 1253. Na segunda metade do século XIII, o termo
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opunha-se a Corpus iuris civillis, a lei romana, e referia-se aos documentos e colecções
jurídicas que, juntamente com o já referido Decretum de Graciano, eram utilizados
academicamente, a saber, os Decretales de Gregório IX, compostos pelo canonista espanhol
Raimundo de Peñafort, também chamados Liber extra (i.e., o livro dos decretos que estavam
fora – extra – do Decretum de Graciano); os Decretales de Bonifácio, também chamados Liber
sextus; e as Constitutiones de Clemente V. Ao longo dos dois seculos que se seguiram, sob o
nome Corpus iuris canonici designavam-se também os Extravagantes de João XXII, uma
colecção de decretos e normas redigidas predominantemente em.1317; e, finalmente, os
Extravagantes communes, uma colecção privada de decretos assim nomeada por João de
Chappuis aquando da sua primeira publicação, em Paris, no ano de 1500. No entanto, só
em 1580, com a bula Cum pro munere de Gregório III, é que este corpus jurídico viu a sua
aprovação e sanção oficial do Romano Pontífice, vindo a ser publicada oficialmente pela
primeira vez dois anos mais tarde, como já referimos. Sistematicamente, eis os livros que o
compunham: (i) Decretum Gratiani, (ii) Decretales Gregorii IX ou Liber extra; (iii) Decretales
Bonifacii ou Liber sextus; (iv) Constitutiones Clementinae; (v) Extravagantes Iohannis XXII; e (vi)
Extravagantes communes.
. DECRETUM GRATIANI – Sendo o documento predominante do Corpus iuris canonici, o
Decretum é também chamado Concordia discordantium canonum, precisamente porque se rege
pela finalidade de tornar concordes os distintos cânones ou colecções de cânones que
circulavam nos tribunais eclesiásticos do final do século XI e início do século XII, uma vez
que muitos deles eram, entre si, pelo menos aparentemente contraditórios.
Perseguindo tal objectivo, o seu autor, Graciano, um monge beneditino, canonista,
instalado em Bolonha, compilou e sistematizou organicamente as fontes, procurando
harmonizar todas as contradições e inconsistências existentes nas normas eclesiásticas
acumuladas ao longo dos séculos. Para tal, combinou o método tipicamente jurídico –
próprio aliás da sua cidade de Bolonha, o centro mundial de estudo de direito no período
da escolástica – com o método escolástico, que então se encontrava já fortemente
desenvolvido, embora não totalmente amadurecido. Recorreu, por isso, a inúmeras
autoridades, começando pelas Sagradas Escrituras e passando pela legislação papal e
conciliar, pelos Padres da Igreja e também pela legislação civil. As suas fontes, no que toca
concretamente aos cânones e às leis eclesiásticas, foram predominantemente a colecção de
cânones de Anselmo de Lucca, datada aproximadamente de 1083; a Collectio tripartita de Ivo
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de Chartres, provavelmente de 1095; o Canonum collectio "Polycarpus" de Gregório de São
Grisógono; e os tratados canónicos de Santo Isidoro de Sevilha.
Na realidade, o Decretum, embora não fosse a primeira compilação sistemática de leis
canónicas, mostrou ser o livro adequado para fazer face às dificuldades da época, dada a
sua abrangência – incluía temas como as fontes do direito, as ordens, a simonia, os
procedimentos legais, a propriedade eclesiástica, o monacato, as heresias, o matrimónio, as
penas atribuíveis e, entre outros, os sacramentos e os sacramentais – e dada também a
utilização de um método combinado jurídico-escolástico, método que se viria a tornar o
método modelo para aplicar sistematicamente a todo o material legal. Talvez por isso tenha
sido utilizado como manual de ensino em quase todas as escolas de direito da Idade Média
(Bolonha, Paris, Orleães, Cantuária, Oxford, Pádua) e comentado por quase todos os mais
ilustres canonistas que esse período conheceu.
. DECRETALES GREGORII IX ou LIBER EXTRA – A origem deste documento remonta,
como sugere o nome por que é conhecido, ao Papa Gregório IX, que, em 1230, encarregou
o seu capelão e confessor, São Raimundo de Peñafort, um frade dominicano de origem
catalã, de produzir um conjunto de cânones que pudessem substituir as distintas colecções
legais e jurídicas que existiam até então. No entanto, essa finalidade ficaria por cumprir: os
Decretales foram compilados juntamente com o Decretum de Graciano, recebendo a esse
propósito a designação de Liber extra, ou seja, o livro ‘fora’ do Decretum.
Raimundo de Peñafort, por sua vez, não começou do zero o seu trabalho jurídico. Na
realidade, no período em que a reforma gregoriana centralizou em Roma a administração
eclesiástica, aumentou grandemente o número de apelos jurídicos que chegavam aos
tribunais da Cidade Eterna. Por conseguinte, aumentou também o número de decisões e
leis papais que a esses apelos procuravam responder, às quais se chamava ‘decretos’,
decretales. Estes decretales foram adicionados numa primeira fase ao Decretum de Graciano,
mas rapidamente foram sendo reunidos em colecções separadas, como as Quinque
compilastiones antiquae, que dividiam o seu conteúdo em cinco temas – judex, judicium, clreus,
connubium e crimen – e estes, por sua vez, em capítulos ou cânones. Pegar nestes cânones e
efectuar um trabalho de re-compliação sistematizada foi a obra de Raimundo de Peñafort,
levando quatro anos, sendo finalmente promulgado no dia 5 de Setembro de 1234.
. DECRETALES BONIFACII OU LIBER SEXTUS – O Papa Bonifácio VIII, no dia 3 de
Março de 1298, promulgou, com a bula Sacrosanctae, aquele a que ele próprio chamou Liber
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sextus. O nome provém, em primero lugar, do facto de, inicialmente, ter sido pensado
como um acrescento aos cinco livros dos Decretales Gregorii IX. Em segundo lugar, porém,
deve-se também ao facto de o número seis ser um número perfeito, indicando, como se
pode ler na Sacrosanctae, que se trata do corpus completo da legislação canónica.
O documento em questão é composto não só por decretos e colecções de cânones
próprias de Bonifácio VIII, mas também pelas colecções canónicas oficias de Inocêncio
IV, Gregório X e Nicolau III. A produção do documento ficou a cargo de Guilherme de
Mandagot, Bispo de Embrun, de Berenger Fredoli, Bispo de Beziers, e de Ricardo Petroni,
vice-chanceler do Papa Bonifácio, originário de Sena, que o dividiram internamente de
acordo com os mesmos cinco temas que o Liber extra. Os Decretales de Bonifácio, aos quais
se juntou um conjunto de oitenta e oito regulce iuris provenientes do direito romano,
compiladas, ao que tudo indica, por Dino de Rossoni, formaram, enquanto durou o
pontificado de Bonifácio, um código obrigatório que abrogou toda a legislação anterior,
incluindo os Decretales de Gregório IX, tidos como incongruentes com os novos Decretales, à
excepção daquela legislação a que se chamou justamente reservatoe, uma vez que se
mantiveram em vigor.
. CONSTITUTIONES CLEMENTINAE – As chamadas Constitutiones Clementinae remontam,
como o nome faz esperar, ao Papa Clemente V, embora tenham sido apenas promulgadas e
validadas como cânones válidos para a Igreja Romana pelo Papa João XXII no dia 25 de
Outubro de 1317. Na realidade, trata-se de uma colecção de legislação canónica para a
Igreja universal redigida quase na sua totalidade ao longo do Concílio Ecuménico de
Vienne (1311-1312), em França, que fora convocado e presidido por Clemente V. Na
terceira sessão do Concílio, concretamente, a ordem de trabalhos incluía assuntos relativos
ao sustento do clero e à autonomia da Igreja, os quais, após debate e aprovação na ala
conciliar, deram origem a um esboço de material canónico. Depois de terminado o
Concílio, todo este material foi revisto e sistematizado, ficando então conhecido por
Constitutiones Clementinae. Esta colecção, ao contrário dos documentos anteriormente
referidos, não tinha pretensões universais.
. EXTRAVAGANTES IOHANNIS XXII e EXTRAVAGANTES COMMUNES – O termo
extravagantes designava alguns documentos canónicos papais que não tinham sido inseridos
por Graciano no seu Decretum (extravagantes significa, à letra, algo que circula fora, i.e.,
legislação canónica que circula fora do Decretum) e que, todavia, permaneciam com carácter
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obrigatório para a Igreja Universal. Juridicamente, o termo foi utlizado pela primeira vez
pelo canonista Bernardo de Pavia, que chamou Extravagantes à colecção de documentos
papais por ele compilada entre 1187 e 1191. Segundo a mesma ordem de ideias, quando o
Papa João XXII publicou as Clementinae, a designação extravagantes passou a atribuir-se aos
documentos pontifícios canónicos que entretanto circulavam validamente pelos tribunais
eclesiásticos e pelas escolas de Direito Canónico mas que não tinham ainda sido
compilados juntamente com o Corpus, bem como a toda a legislação posterior às Clementinae
produzida sob os pontificados seguintes.
No ano de 1325, um canonista chamado Zenselinus de Cassanis, tendo coligido alguns
desses documentos, deu-lhes a designação de Viginti Extravagantes papae Iohannis XXII. Por
sua vez, os cânones restantes – contendo decretos datados entre 1281 e 1484, provenientes
dos Papas Martinho IV, Bonifácio VIII, Bento XI, Clemente V, João XXII, Bento XII,
Clemente VI, Urbano V, Martinho V, Eugénio IV, Calixto III, Paulo II e Sisto IV –
ficaram conhecidos, aquando da edição completa do Corpus iuris canonici como Extravagantes
communes, nome dado por João de Chappuis, editor da edição de 1500 do Corpus, em Paris.
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