89
ISSN 1519-8774 9 771519 877001 00152 Outubro 2008 152 R$ 9,50 Outubro 2008 152 A HORA DA política Como o horário eleitoral gratuito influencia a eleição PESQUISA FAPESP Os desafios tecnológicos na exploração do pré-sal Os desafios tecnológicos na exploração do pré-sal O lado bom da fuga de cérebros O lado bom da fuga de cérebros Bactérias ajudam o sistema de defesa Bactérias ajudam o sistema de defesa

A hora da política

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Pesquisa FAPESP - Ed. 152

Citation preview

Page 1: A hora da política

ISS

N 1

519-

8774

97

71

51

98

77

00

10

01

52

Outubro 2008 ■ Nº 152 ■ R$ 9,50

Out

ubro

20

08

N

º 15

2

A HORA DA

políticaComo o horário eleitoral gratuito influencia a eleição

PE

SQ

UIS

A F

AP

ES

P

Os desafios tecnológicos na exploração do pré-sal

Os desafios tecnológicos na exploração do pré-sal

O lado bom da fuga de cérebrosO lado bom da fuga de cérebros

Bactérias ajudam o sistema de defesaBactérias ajudam o sistema de defesa

capa pesquisa banca-152.indd 1capa pesquisa banca-152.indd 1 01.10.08 15:13:5701.10.08 15:13:57

Page 2: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 3

IMAGEM DO MÊS*

O maior dinossauro encontrado no Brasil, o titanossauro Uberabatitan ribeiroi, foi apresentado ao público pela primeira vez no Rio de Janeiro. Trata-se de um gigante de até 3,5 metros de altura, de 12 a 20 metros de comprimento e de 12 a 16 toneladas de peso. A descoberta deve-se a Ismar Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Leonardo Salgado, da Universidade Nacional de Comahue, da Argentina, e ocorreu a 30 quilômetros de Uberaba, em Minas Gerais, entre 2004 e 2006. Foram encontrados 298 fragmentos de ossos. Destes, 198 foram identificados como sendo de três dinossauros diferentes. O mais impressionante deles é o titanossauro, um herbívoro que viveu há 65 milhões de anos, no final do período Cretáceo. A reconstituição do esqueleto foi realizada por dois anos com a participação de dez paleoartistas. É possível visitá-lo na Casa da Ciência, em Botafogo, no Rio, até 24 de outubro.

FAB

IO M

OT

TA/A

E

Gigante mineiro

03_imagemdomes_152.indd 303_imagemdomes_152.indd 3 10/1/08 4:44:22 PM10/1/08 4:44:22 PM

Page 3: A hora da política

152 OUTUBRO 2008

12

> CAPA

18 Ao contrário do mito, o horário eleitoral gratuito funciona e ajuda o eleitor

> ENTREVISTA

12 O geógrafo Dieter Muehe diz que é fundamental monitorar o litoral e o oceano para saber o que realmente vai mudar no clima

> POLÍTICA CIENTÍFICA

E TECNOLÓGICA

30 MIGRAÇÃO

Estudos mostram que a circulação de cérebros pode render benefícios para os países em desenvolvimento

36 PLANEJAMENTO

Universidade discute estratégias para preservar a excelência em seu centenário, daqui a 25 anos

38 MEDICAMENTOS

Elaborar moléculas que mimetizam outras poderia facilitar a procura por fármacos realmente originais

42 DIFUSÃO

Exposição revela a vida e a contribuição de Albert Einstein, o cientista símbolo do século XX

> CIÊNCIA

48 IMUNOLOGIA

Sem bactérias, mamíferos não produzem a reação inflamatória essencial para combater lesões

52 EVOLUÇÃO

Expressão de um mesmo gene em tecidos distintos ou momentos diferentes do desenvolvimento contribui para a diversidade biológica das espécies

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 8 CARTA DO EDITOR 10 MEMÓRIA 24 ESTRATÉGIAS 44 LABORATÓRIO 64 SCIELO NOTÍCIAS ...........................

BU

EN

O

O R

AM

OS

18 CAPA

LA

UR

A D

AV

IÑA

48

04-05_indice_152.indd 404-05_i ndice_152.indd 4 30.09.08 21:28:1930.09.08 21:28:19

Page 4: A hora da política

> EDITORIAS > POLÍTICA C&T > CIÊNCIA > TECNOLOGIA > HUMANIDADES WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

90

56 BOTÂNICA

Biólogos detalham a composição e o funcionamento do relógio biológico das plantas

60 METEOROLOGIA

Perigosos e raros, os raios positivos são cinco vezes mais freqüentes no Rio Grande do Sul

62 FÍSICA

Acelerador de partículas LHC cai no gosto da mídia, mas incidente paralisa os trabalhos

> TECNOLOGIA

70 INDÚSTRIA

PETROLÍFERA

Exploração de petróleo e gás das novas reservas abaixo do pré-sal requer conhecimento e tecnologia

76 QUÍMICA

Estudo mostra que plásticos oxibiodegradáveis não se decompõem na natureza como esperado

........................... 66 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 95 LIVROS 96 FICÇÃO 98 CLASSIFICADOS CAPA MAYUMI OKUYAMA ILUSTRAÇÃO © IMAGES.COM/CORBIS

78 CONSERVAÇÃO

Sensor monitora processo de corrosão em órgãos históricos e obras de arte

80 AGRONOMIA

Esterilizador dinâmico desenvolvido pela Fungibras inova no processo de cultivo de cogumelos

70

> HUMANIDADES

84 HISTÓRIA

A polêmica “política do coração” da princesa Isabel

90 ANTROPOLOGIA

Cientistas descobrem que primeiros habitantes formavam civilizações organizadas e complexas

PE

TR

OB

RA

S

RE

PR

OD

ÃO

04-05_indice_152.indd 504-05_i ndice_152.indd 5 01.10.08 15:12:1001.10.08 15:12:10

Page 5: A hora da política

6 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

[email protected]

■ Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008

■ Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail: [email protected] ou ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418

■ Assinaturas de pesquisadores e bolsistas Envie e-mail para [email protected] ou ligue (11) 3838-4304

■ Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para [email protected] ou ligue (11) 3838-4304

■ Site da revistaNo endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis asreportagens em inglês e espanhol.

■ Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: [email protected]

MIG

UE

L B

OY

AY

AN

As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

Leishmaniose

Excelente a reportagem “Uma doença anunciada” (edição 151). Só que o que está faltando para a saúde pública do Brasil (e para os cientistas também) é parar e pensar em coisas simples que existiam até recentemente quando as cidades eram menores e possuíam mata nativa em volta delas. Primeiro não podemos nos esquecer dos sapos que existiam aos montes, e como era bonito escutar o seu coaxar ao entar-decer, e a ação benéfi ca para todos que era a eliminação de boa parte dos mosquitos e insetos em geral pela sua alimentação. Outra estratégia que o homem do campo usa na agricultura e funciona muito bem na cidade é a armadilha luminosa para aprisionar e matar pragas que incluem moscas, mosquitos etc. Hoje estão voltando a usá-la em alguns municípios para combater o mosquito da dengue. Sa-bemos que os insetos criam resistência rapidamente aos diferentes produtos químicos utilizados no seu combate. Quanto à vacina concordo que é a melhor maneira de prevenir da doen-ça. Só estou lembrando como coisas simples podem resolver ou ajudar a combater o transmissor de doenças enquanto não se tem algo mais efi -caz. Com relação à disseminação da doença pelo Brasil, não podemos es-quecer dos caminhões que transitam pelo país inteiro. Em países que são ilhas, como Austrália e Nova Zelân-dia, quando o avião chega no aero-porto ele é lavado por fora com uma

solução para evitar que tenha trazido alguma praga. Dentro do avião tam-bém é passado um spray tanto no am-biente como nas pessoas. A Vigilância Sanitária brasileira, se concordar que é importante o controle dos veículos provenientes de zonas endêmicas, principalmente os caminhões ao pas-sarem na balança para pesar, poderia aspergir neles algum produto que eli-minasse os focos dos mosquitos que causam as várias doenças hoje em dia, como dengue e leishmaniose.

Valquiria AlcântaraInstituto de ZootecniaNova Odessa, SP

Fogões

Li, com interesse, a reportagem “Fogo limpo” (edição 151) sobre os tais eco stoves – fogões a lenha, carvão etc. –, ou seja, tecnologia a serviço dos pobres. Os tais fogões foram desenvolvidos pe-la ClimateCare, unidade do JP Mor-gan, segundo a reportagem e facilmente comprovado numa busca pela internet. Como em nosso país fogões a lenha são amplamente utilizados, procurei saber mais sobre essa inovação, para ver co-mo se comparam com os nossos fogões tradicionais. Para minha surpresa, não consegui nenhuma informação sobre a tecnologia empregada. No sítio da ClimateCare há muita propaganda do tal fogão, mas nenhuma descri-ção mais detalhada do como fazê-lo. Tecnologia em geral é coisa guardada com muito segredo, mas para esse tipo espera-se muita divulgação, já que não se imagina que alguém faça isso bus-cando lucro. Entretanto, parece que nesse caso há interesse em difi cultar que outros reproduzam a tal inovação. Espero que no futuro não tenhamos que pagar royalties para continuar a fazer nossos fogões a lenha, aliás pare-cidos com os que vi nas fotos e vídeos da ClimateCare.

Roberto V. RibasSão Paulo, SP

06-07_cartas_152.indd 606-07_cartas_152.indd 6 30.09.08 21:10:2030.09.08 21:10:20

Page 6: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 7

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected], pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

Goldemberg

Bem oportuna a entrevista com José Goldemberg na edição 150, apresentan-do um resumo de sua vida acadêmica e a infl uência especial nas questões ener-géticas e ambientais, que se fundem no momento. Há uma correção a fazer na fala do professor José Goldemberg: na página 15 ele afi rma que a “celulose é formada por uma longa cadeia de sacarose” – na verdade, a celulose é for-mada por cadeia de celobiose, que em essência é formada por duas moléculas de glicose. A sacarose, ou açúcar da ca-na, é um dímero formado pela união de uma molécula de glicose com ou-tra de frutose. Pequena reparação feita, acho importante realçar o fato de que políticas energéticas em diversas áreas devem ser mantidas para não se perder o bonde da história. No momento, o Brasil passa a ter importância interna-cional em biocombustíveis sem deixar de investir na exploração e prospecção de petróleo. É um modelo que foi elo-giado por autoridades mexicanas em evento recente de bioenergia naquele país e deve ser mantido e expandido.

Adilson Roberto GonçalvesEscola de Engenharia de Lorena/USPLorena, SP

cuidada é outro ponto que deve ser observado.Trabalhei em sala de aula o tema efeitos da violência, capa da edi-ção 150, utilizando a reportagem de Ricardo Zorzetto para levantar dis-cussões, o que foi muito produtivo.

Palmira PetrattiCedem/Unesp Marília, SP

Indicadores

Gostaria de parabenizar a revista Pes-quisa FAPESP pela excelente reporta-gem “O fôlego na berlinda” (edição 150) sobre o ranking de publicações científi cas em nível mundial. A repor-tagem aponta algumas das possíveis causas para o baixo crescimento no número de publicações brasileiras nos últimos anos; contudo, um fator muito importante que não foi men-cionado diz respeito à habilidade de nossos pós-graduandos e doutores de escreverem artigos científi cos em inglês, que em muitos casos é precá-rio. Esse fato tem sido evidenciado por mim e outros professores, após criarmos e ministrarmos um curso específi co sobre técnicas de escrita científi ca em inglês no programa de pós-graduação em física do Instituto de Física de São Carlos da Universi-dade de São Paulo. Nesse curso, que tem tido elevada procura em todas as turmas (entre 60 e 80 alunos, incluin-do ouvintes), nos deparamos com aspectos antagônicos interessantes: por um lado, a falta de preparo e de intimidade com a língua inglesa por parte de nossos pós-graduandos e pós-docs, no que tange à organiza-ção de idéias, argumentação etc., ou seja, à escrita, de maneira geral. Por outro lado, e bastante recompensador, é evidente o enorme interesse e força de vontade dos alunos em adquirirem independência na escrita de seus ar-tigos, o que refl ete o reconhecimento por parte deles da importância das publicações científi cas. Acredito que uma das alternativas para estimular-

mos o efetivo aumento do número de publicações científi cas no país a mé-dio e longo prazos são nossos progra-mas de pós-graduação incentivarem a implementação de cursos e ofi cinas voltados especifi camente à escrita científi ca com ênfase na linguagem, a exemplo dos inúmeros writing-centers facilmente encontrados em universi-dades norte-americanas e européias.

Valtencir ZucolottoInstituto de Física de São CarlosUniversidade de São PauloSão Carlos, SP

Vargas

A reportagem “Trabalhadoras do Brasil” foi por nós muito apreciada ao resgatar a memória da senhora Darcy Vargas, por sua atuação des-tacada no estabelecimento de ações sociais e defi nindo um patamar de infl uência da mulher na vida pública brasileira. A publicação foi também oportuna devido ao paralelo natu-ral entre sua atuação e a da doutora Ruth Cardoso, recentemente falecida. Entretanto, o texto possui uma in-correção em relação ao número de fi lhos do casal Getúlio e Darcy, que tiveram cinco em vez dos quatro fi -lhos informados. O texto se refere a três deles: Alzira, Jandira e Getúlio, este falecido prematuramente, mas já em idade adulta. Os outros dois fi lhos foram Lutero e Manoel Anto-nio, tendo este último se formado em engenharia agronômica na Escola Su-perior de Agricultura Luiz de Quei-roz da Universidade de São Paulo em Piracicaba, em 1936.

Antonio Vargas de Oliveira FigueiraHedda Vargas de Oliveira FigueiraPiracicaba, SP

Violência

Gostaria de parabenizar a equipe da revista Pesquisa FAPESP por suas re-portagens interessantes feitas de forma criteriosa. A apresentação gráfi ca bem

06-07_cartas_152.indd 706-07_cartas_152.indd 7 30.09.08 21:10:2130.09.08 21:10:21

Page 7: A hora da política

8 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

Mitos desfeitos

Luiz Henrique Lopes dos SantosDiretor de Redação em exercício

N este mês de eleições a capa desta edição põe em questão uma opinião arraiga-da na população. O horário eleitoral

gratuito interessa apenas aos próprios candidatos e é pouco visto pela população em geral? Pesquisas do Ibope indicam que a propaganda política alcança de 30% a 40% de audiência, números que desmentem a completa rejeição dos eleitores que assis-tem à TV e ouvem rádio. Cientistas sociais entrevistados pelo editor de humanidades, Carlos Haag, a partir da página 18, falam do poder efetivo que a informação passada diretamente pelos candidatos teria sobre o eleitor, o que seria comprovado pelos exemplos de políticos que saltam à frente dos adversários após terem a visibilidade das propostas ampliada pelos meios eletrô-nicos. Os pesquisadores lembram outro fa-tor que consideram benéfi co dos comerciais eleitorais: o fato de a propaganda não ser paga por políticos e partidos combateria, por tabela, o abuso do poder econômico. A Receita Federal dá isenção fi scal à mídia para fazer a transmissão e os candidatos têm de se adequar a um determinado tempo pre-viamente estipulado. Ou seja, ter recursos não garante mais tempo de exposição. Em-bora muito criticada pela mídia eletrônica, pode ser que o eleitor saia ganhando com a oportunidade de conhecer um pouco mais em quem votará.

A circulação de informações também está na raiz da expressão “fuga de cérebros”, utilizada desde a década de 1950 para des-crever o êxodo de pesquisadores rumo às melhores condições oferecidas por países mais ricos. Normalmente o fenômeno é citado de modo pejorativo, como se o Brasil e outros países em desenvolvimen-to que investem em talentos promissores estivessem sendo roubados por aliciadores estrangeiros. Defi nitivamente, não é assim que tudo acontece. Há estudos indicando que a ida e a vinda de cientistas de todos os matizes podem trazer benefícios para as nações economicamente menos favoreci-

das. No Brasil ainda há poucos trabalhos sobre o tema, mas dois deles, um de 1972 e outro de 1999, revelaram uma fuga de cérebros pequena. Algo em torno de 5% permaneceram trabalhando no exterior após completarem os estudos. O editor de política científi ca e tecnológica, Fabrício Marques, explica como as redes de diás-pora podem aproveitar, mesmo de forma remota, o capital humano dos profi ssionais que emigram (página 30).

Na editoria de tecnologia, procuramos entender o tamanho do desafi o que repre-sentam as reservas de petróleo e gás abaixo da camada de sal no mar. O editor Marcos de Oliveira conta que será preciso inovar desde a perfuração a uma profundidade máxima de 7 mil metros até o transporte da matéria-prima para terra fi rme (pági-na 70). Esses novos estímulos à pesquisa tornam bem-vindas não apenas a riqueza disponível no pré-sal – o país ganha tam-bém com o desenvolvimento de tecnolo-gias para sua exploração.

Nas páginas de ciência, Francisco Bi-cudo e Maria Guimarães apresentam uma nova visão das bactérias (página 48). Sem elas, o sistema imunológico não funciona como deveria. Um grupo de Minas Gerais demonstrou que a total ausência de bac-térias em mamíferos leva o organismo a deixar de produzir uma reação infl ama-tória essencial para combater lesões de vários tipos. Desde 2004 os pesquisadores trabalham para aprender mais sobre essa questão, que ajudará a entender alguns pro-cessos fi siológicos importantes.

Por fi m, não deixe de acompanhar Pes-quisa FAPESP nos próximos meses. Tal qual aconteceu com a exposição Revolução ge-nômica, a equipe da revista é a responsável, com o Instituto Sangari, pela programação cultural da exposição Einstein (página 42), em cartaz na capital paulista, e retratará em suas páginas as palestras e debates sobre a vida, obra e idéias de um dos grandes cien-tistas de todos os tempos. INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO

CELSO LAFERPRESIDENTE

JOSÉ ARANA VARELAVICE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANIDIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZDIRETOR CIENTÍFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLERDIRETOR ADMINISTRATIVO

CONSELHO EDITORIALLUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

DIRETOR EM EXERCÍCIOLUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS

EDITOR CHEFENELDSON MARCOLIN

EDITORA SÊNIORMARIA DA GRAÇA MASCARENHAS

EDITORES EXECUTIVOSCARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRÍCIO MARQUES (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA)

EDITORES ESPECIAISCARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTESDINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES

REVISÃOMÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO

EDITORA DE ARTEMAYUMI OKUYAMA

ARTEJÚLIA CHEREM RODRIGUES, LAURA DAVIÑA, MARIA CECILIA FELLI

FOTÓGRAFOSEDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN

SECRETARIA DA REDAÇÃOANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201

COLABORADORESANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BUENO, DANIEL DAS NEVES, DANIELLE MACIEL, FRANCISCO BICUDO, FURIO LONZA, GEISON MUNHOZ, GONÇALO JUNIOR, JAIME PRADES, EVANILDO DA SILVEIRA, LAURABEATRIZ, MANU MALTEZ, YURI VASCONCELOS

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

PARA ANUNCIAR(11) 3838-4008

PARA [email protected](11) 3038-1434FAX: (11) 3038-1418

GERÊNCIA DE OPERAÇÕESPAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008e-mail: [email protected]

GERÊNCIA DE CIRCULAÇÃO RUTE ROLLO ARAUJO TEL. (11) 3838-4304 e-mail: [email protected]

IMPRESSÃOPLURAL EDITORA E GRÁFICA

TIRAGEM: 35.800 EXEMPLARES

DISTRIBUIÇÃODINAP

GESTÃO ADMINISTRATIVAINSTITUTO UNIEMP

FAPESPRUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR

ISSN 1519-8774

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CARTA DO EDITOR

08_editorial_152.indd 808_editorial_152.indd 8 30.09.08 21:19:3930.09.08 21:19:39

Page 8: A hora da política

10 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

MEMÓRIA

( )

Caça ao barbeiroEmmanuel Dias fez as primeiras campanhas para erradicar o mal de Chagas do país

Em 1940 uma paciente com um sintoma característico da doença de Chagas – inchaço em um dos olhos conhecido

como sinal de Romaña – levou Amílcar Martins, pesquisador do Instituto Ezequiel Dias, de Belo Horizonte, até Bambuí, oeste de Minas Gerais. Lá ele percebeu estar diante de um foco altamente endêmico da moléstia e avisou Emmanuel Dias e Cecílio Romaña, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), do Rio de Janeiro, que visitaram a localidade. Foi naquela cidade localizada próxima à nascente do rio São Francisco onde ocorreram as principais experiências que permitiram combater com grande sucesso o mal no Brasil. Emmanuel Dias (1908-1962) foi o principal personagem dessa segunda fase de descobertas sobre a transmissão da doença.

Carlos Chagas causou espanto em abril de 1909 ao comunicar à comunidade científi ca que havia descoberto uma nova moléstia humana, seu agente (o protozoário Trypanosoma cruzi) e o vetor (o percevejo hematófago conhecido como barbeiro). É caso único da história da medicina brasileira de um mesmo cientista que tenha conseguido identifi car os três fatores. A doença freqüentemente leva à morte em razão dos sérios distúrbios cardíacos provocados pelo T. cruzi.

De 1908, quando Chagas começou seus estudos, até 1940 haviam sido identifi cados apenas 29 casos agudos, M

IGU

EL

BO

YA

YA

NNeldson Marcolin

Dias ausculta mulher em Bambuí (1945): barbeiro (abaixo) infestava 80% das casas

10-11_memoria_152.indd 1010-11_memoria_152.indd 10 30.09.08 21:27:1530.09.08 21:27:15

Page 9: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 11

Pesquisadores Valdemar Versiani

(esq.), Amílcar Martins e Dias à frente de cafuas

melhoradas, em 1946

todos no norte de Minas. Com a epidemia de Bambuí, Emmanuel Dias foi destacado para assumir as pesquisas na cidade onde identifi cou 80% das casas com infestação de barbeiros – na periferia, metade da população estava infectada. Em 1943 Dias instalou na cidade o Centro de Estudos e Profi laxia da Moléstia de Chagas, um posto avançado do IOC (atual Fiocruz). Mapeou o município e começou uma luta sem tréguas para eliminar o inseto. Na época, como hoje, não existia vacina ou tratamento efi caz para a doença. No total foram descritos 368 casos agudos e cerca de 10 mil crônicos da moléstia.

O barbeiro chegou a Bambuí com a estrada de ferro e a imigração. Uma vez instalado, encontrou condições ideais para se procriar: as casas eram miseráveis, de taipa ou madeira. Dias sabia que a única chance de brecar a transmissão seria eliminar o vetor. Por isso experimentou todos os métodos – de lança-chamas

a gás cianídrico, de compostos de soda cáustica a querosene. “Chegou a tentar comprar barbeiros, mas eram tantos que faltou dinheiro”, conta João Carlos Pinto Dias, um dos cinco fi lhos de Emmanuel, pesquisador do Centro de Pesquisas René Rachou, de Belo Horizonte, e hoje diretor do centro que o pai criou. Os melhores resultados foram conseguidos com o hexaclorocilo-hexano, o BHC, inseticida posteriormente proibido.

Dias foi às escolas, escreveu artigos, trouxe autoridades federais para conhecer a cidade infestada e conseguiu melhorar o padrão de algumas casas, como a dos ferroviários da antiga Rede Mineira de Viação, por meio de alvenaria e caiação. Essas foram

as primeiras campanhas contra a doença, depois levadas adiante pelo próprio pesquisador para todo o Brasil, além deChile, Uruguai, Venezuela, Costa Rica e Argentina, até sua morte em 1962, em um acidente de carro. “Hoje

a infestação em Bambuí é zero”, relata João Carlos. E, em 2006, a Organização Pan-americana da Saúde (Opas) certifi cou o país pela interrupção da transmissão da doença de Chagas no território nacional. Em agosto de 2008 o presidente da Fiocruz, Paulo Buss, proclamou Emmanuel Dias, numa homenagem pública, como o cientista que produziu o maior impacto no enfrentamento da doença.

FOT

OS

AR

QU

IVO

PE

SS

OA

L D

E J

CP

D

Ferrovia e casas reformadas: Dias convenceu direção da rede a fazer reformas

10-11_memoria_152.indd 1110-11_memoria_152.indd 11 30.09.08 21:27:1630.09.08 21:27:16

Page 10: A hora da política

12 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

12-17_entrevista_152.indd 1212-17_entrevista_152.indd 12 30.09.08 21:31:3530.09.08 21:31:35

Page 11: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 13

ENTREVISTA

Dieter Muehe

Não esqueçam o marGeógrafo diz que é fundamental monitorar o litoral e o oceano para saber o que realmente vai mudar no clima

A resposta do geógrafo baiano Dieter Carl Ernst Heino Muehe ao pedido de entrevista de Pesquisa FAPESP soou quase como um blefe. “Venha até meu apartamento, em Niterói, para conversarmos. Estou aposentado e vou pouco ao Fundão”, disse ele se referindo ao campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde é professor titular

e ainda orienta doutorandos. Aos 70 anos, a voz baixa e apa-rentemente tímida ao telefone dava a impressão de que se tratava de um pesquisador cansado, dedicado, a essa altura da existência, apenas a criar netos.

A realidade de Dieter Muehe é bem diferente do que sua discrição deixa ver. Durante a entrevista, este fi lho de alemães nascido em Maragogipe, no Recôncavo Baiano, colocou sobre a mesa dois livros da maior importância para quem estuda a costa do país e administra prefeituras no litoral brasileiro. O primeiro, Erosão e progradação no litoral brasi-leiro, foi feito para o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e lançado no segundo semestre de 2007. Trata-se de estudo cuidadoso com indicações de onde a linha da costa está se retraindo, em razão da erosão, e onde está se expandindo, por causa da progradação (depósito excessivo de sedimentos). O outro foi publicado no mês passado: Rio, próximos 100 anos – O aquecimento global e a cidade. O objetivo é oferecer subsídios científi cos para os administradores municipais enfrentarem as possíveis conseqüências das mudanças cli-máticas globais nas próximas décadas.

Os dois livros tiveram a ativa participação de Dieter Muehe como coordenador dos numerosos pesquisadores das mais diversas áreas envolvidos. Na entrevista a seguir, ele fala de outros trabalhos, até de maior destaque, como a par-ticipação ativa na reivindicação brasileira dos direitos sobre as 350 milhas (650 quilômetros) a partir da linha da costa. Também ressalta a importância de se monitorar o mar con-tinuamente e com método, utilizando equipamentos como medidores de marés e de ondas, entre outros. “Só com mais

Neldson Marcolin

FOT

OS

O R

AM

OS

informações é que saberemos, nos pró-ximos anos, o que vai realmente mudar no clima e quais as conseqüências para as populações”, alerta.

Ganhador do Prêmio Conrado Wes-sel 2003 na categoria Ciência Aplicada ao Mar, Dieter Muehe tem uma fi lha e dois netos. Mora com a mulher em Nite-rói, perto da praia. Nos fi nais de semana habituou-se a subir a serra de Itatiaia, onde tem um chalé, para descansar nas montanhas, longe do mar. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

■ Um dos pontos mais polêmicos no de-bate e nas pesquisas sobre as mudanças globais climáticas tem girado em torno de um possível aumento do nível mar. Como especialista na costa litorânea, qual a sua opinião?— Essa é sempre uma boa questão, ainda com poucas respostas confi áveis. Temos visto todo tipo de estudos contra e a favor das previsões do IPCC [Pai-nel Intergovernamental de Mudanças Climáticas]. Por exemplo, o efeito de correntes oceânicas no retardamento do aquecimento, a estabilidade do per-mafrost, isto é, a camada de solo conge-lado abaixo da superfície, mas também a descoberta recente de liberação de hi-drato de metano do fundo oceânico na Sibéria, um efeito que, se for ampliado, aumentará signifi cativamente o efeito estufa. O importante disso tudo é que, pela primeira vez, há um movimento

12-17_entrevista_152.indd 1312-17_entrevista_152.indd 13 30.09.08 21:31:3730.09.08 21:31:37

Page 12: A hora da política

14 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

ção ou tese e é interrompido depois da conclusão do trabalho. A própria medição da maré, que hoje é muito im-portante, era feita tendo como objetivo a navegação, e não a indicação de ten-dências de elevação ou rebaixamento. A busca pela interpretação de maregra-mas [registro gráfi co dos movimentos de elevação e abaixamento da maré] de longo prazo resulta na preocupação com a elevação do nível do mar, algo recente. É preciso que alguém tome conta, vigie, e não há gente para isso. O jeito de manter um marégrafo ou um ondógrafo [para medição de ondas] é fazer convênios com empresas para que elas assumam parte do problema. Por exemplo, os únicos marégrafos de longa duração estão em Cananéia (SP) e na Ilha Fiscal (RJ). Medições mare-gráfi cas começaram a ser feitas a partir de 1781, porém, de modo descontínuo, que não permitem uma defi nição de tendências. A partir de 1831começou o primeiro registro contínuo, no porto do Rio, que serviu de referência para a delimitação dos terrenos da Marinha. Tanto que esses terrenos são baseados no nível médio das marés mais altas desses primeiros registros. Em geral, apesar de hoje termos uma ampla rede de marégrafos ao longo da costa, são poucos os que permitem a determi-nação da variação do nível do mar ao longo do tempo por falhas de registro ou mudança de posição. A percepção da necessidade de realizar as medidas não apenas para a determinação da maré, mas também para a identifi cação do comportamento do nível do mar mu-dou, sendo necessária a obtenção de registros contínuos por várias décadas – 30, 40 ou 50 anos – para se ter uma tendência. Isso porque há variações de curto prazo, de alguns anos e mesmo uma ou duas décadas, que, se projeta-das, para um período maior incorrem em erros muito grandes. Esse é um pro-blema da informação de longo prazo.

■ Quer dizer, a instabilidade é que é o normal?— É, e ela pode se transformar radical-mente em razão de uma mudança no clima. Quando se vêem nossas planícies costeiras, temos cristas de praia alinha-das paralelamente. Nas fotos de satélite pode-se ver muito bem isso. De repen-te há uma mudança de direção nessas

cristas, cada uma representando uma posição da linha de costa. O que acon-tece? Temos um registro de um passado de alguns milhares ou centenas de anos em que houve uma mudança na direção preferencial das ondas e a linha de costa mudou de direção para se adaptar à no-va situação. Isso representa acumulação em um ponto e erosão no outro como resposta morfológica às mudanças do clima. É preciso estabelecer locais de registro contínuo. Pensando nisso aca-bamos de fazer um trabalho pioneiro na América Latina com a prefeitura do Rio com equipes de pesquisadores de geomorfologia, oceanografi a, engenha-ria e saúde, entre outros. O objetivo foi obter um diagnóstico da vulnerabili-dade potencial da cidade. O estudo foi patrocinado pelo Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos e chama Rio, próximos 100 anos – O aquecimento global e a cidade. Estudo semelhante foi realizado logo após para todo o estado do Rio por solicitação da Secretaria do Meio Ambiente. São trabalhos de avaliação de impactos devidos a mu-danças climáticas do nível do mar. Um dos problemas encontrados foi a falta de cartas topográfi cas de detalhe para a demarcação das áreas sujeitas à inunda-ção, um risco bem maior que a erosão costeira por afetar um número muito maior de pessoas.

■ Por que esse estudo é importante? — Não é comum uma prefeitura se preo cupar em consultar a academia pa-ra ter um diagnóstico sobre um proble-ma de vulnerabilidade que só ocorrerá em um futuro mais ou menos distan-te. Existe algo feito em Nova York, em Londres, mas não de forma tão global. Hoje temos uma visão completa sobre vários aspectos das mudanças climáti-cas que poderão vir a ocorrer e afetar o Rio. Com os dados que existem agora, se tivermos a previsão de inundações que poderão ocorrer em 70 anos e esse cenário de fato ocorrer sem que o poder público tenha feito nada, os habitantes poderão até entrar na Justiça. Os prefei-tos terão de assumir algumas respon-sabilidades, como evitar ocupações em áreas potencialmente de risco.

■ A erosão ajuda a causar a inundação? — A erosão é o recuo da linha de costa. Normalmente, a retaguarda da praia

realmente planetário de preocupação com o ambiente. Com relação ao mar, o único cuidado a tomar é que as ob-servações têm de ser feitas com base em monitoramento contínuo. E este é o grande problema no Brasil. Aqui quase não temos monitoramento contínuo do comportamento da linha da costa ou do mar. Na área costeira, estamos no início da formação de uma rede pa-ra relacionar efeitos de erosão costeira com fenômenos oceanográfi cos. Se por um lado é a atmosfera que vai provo-car mudanças, a resposta é o clima de ondas e a própria elevação do nível do mar. Ou seja, um dos principais me-canismos de controle da estabilidade da linha de costa é o mar e a maneira como ele se apresenta.

■ Por que o monitoramento ainda é um grande problema no Brasil? — Em relação ao monitoramento da mobilidade da linha de costa, este tra-balho é geralmente feito por grupos de pesquisadores da universidade com o objetivo de desenvolver uma disserta-

Com relação ao mar, é importante que as observações sejam sempre feitas com base em monitoramento contínuo

12-17_entrevista_152.indd 1412-17_entrevista_152.indd 14 30.09.08 21:31:3830.09.08 21:31:38

Page 13: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 15

tem um cordão arenoso mais alto, mui-tas vezes há dunas. No Brasil tivemos duas elevações do nível do mar no pas-sado. Uma, há 120 mil anos, para um nível do mar cerca de 6 metros mais alto, e outra com um máximo de 3 me-tros acima do mar atual, pouco menos de 6 mil anos atrás. Em cada uma dessas elevações o mar construiu cordões are-nosos que funcionam como barreiras, aprisionando lagunas a sua retaguarda. Muitas desssas lagunas se preenche-ram de sedimentos, viraram planícies costeiras e estão sendo ocupadas pelo homem. O problema é que estão em um nível topográfi co muito próximo ao nível do mar atual. Hoje, quando se tem uma chuva forte e o nível do mar sobe, não tem escoamento e ocorre a inundação. Fica muito pior quando se associa inundação com o transborda-mento dos rios e chuvas fortes. Nós já temos isso no Rio e em outras cidades erguidas na beira de estuário.

■ Se houver a elevação do nível do mar prevista em alguns cenários, como as ci-dades mais vulneráveis fi carão?— A situação só vai piorar. Não só por causa da erosão costeira ou das inunda-ções, mas também por intensifi cação de fenômenos meteorológicos extremos, como ventos muito fortes por causa da geração de ciclones. O oceano é funda-mental, mesmo porque toda mudança climática maior tem muito a ver com a circulação oceânica, tanto a de superfí-cie como a de fundo. Agora começamos a fazer monitoramento com bóias no mar. Existe um programa internacional chamado Goos [sigla em inglês para sistema global de observação dos ocea-nos] do qual o Brasil faz parte e tem, entre outros projetos, o lançamento e monitoramento de bóias oceanográfi -cas. Outros projetos como o da criação de uma rede de ondógrafos em águas rasas e a expansão da rede de monito-ramento do nível do mar estão sendo implementados.

■ Falta de monitoramento do mar é um problema apenas brasileiro? Ingleses, portugueses e espanhóis, com muitos séculos de tradição em navegação, por exemplo, monitoram o mar? — Não se olhava o mar com atenção porque éramos naturalmente volta-dos para os recursos minerais e para a

agricultura do continente. Mesmo nos países desenvolvidos era assim. Ouvi reclamações na Alemanha, nos anos 1970, de que o país estaria de costas para o mar. A preocupação maior era com a geologia. Havia, evidentemente, institutos de pesquisa oceanográfi ca re-nomados. Mas a tradição de pesquisa no mar foi interrompida durante a Se-gunda Guerra Mundial. Hoje a pesquisa oceanográfi ca, em todas as suas espe-cialidades, é amplamente desenvolvida nesses países, mas o monitoramento ao qual me refi ro é o costeiro. Isto é, o monitoramento contínuo de variáveis oceanográfi cas e meteorológicas capa-zes de detectar mudanças de padrão e a identifi cação de tendências.

■ É uma preocupação moderna...— Sem dúvida. Vamos pegar o exemplo das plataformas de petróleo do mar do Norte. A energia da onda varia em fun-ção do quadrado de sua altura. Se uma onda de 1 metro tem energia 1, uma onda de 2 metros tem o dobro. Mas uma onda de 4 metros tem 16 vezes mais energia. Ou seja, depois de um

pequeno patamar, o incremento é ex-ponencial. Aumentos de 30 centímetros nas alturas máximas de ondas geram um esforço que implica pensar em uma estrutura mais forte para as platafor-mas. É isso que se tem percebido com as medições. Agora estamos falando em termos operacionais de gerenciamento costeiro e de planejar o que fazer no ca-so de mudança climática em termos da orla costeira. Para tomar uma decisão precisamos de informação. A informa-ção passada não há como recuperar, porque não existia seqüenciamento de dados. Temos que fazer isso agora, para daqui a 20 ou 30 anos vislumbrar uma tendência. No Rio houve um consenso sobre a necessidade de criar organismos para fazer coleta de dados.

■ Quem se responsabilizará pelas medi-ções no Rio?— Ainda não sabemos. Não avançamos nesta questão por falta de tempo.

■ Esse monitoramento seria feito melhor se estivesse a cargo de um instituto? — No Rio achamos que deveria ter uma instituição para fazer a coordenação, as-sim como o gerenciamento costeiro, que deveria se estender por toda a costa do estado. Essa é uma ação administrativa complicada. Há órgãos que já têm a fun-ção de fazer uma série de tarefas. Para dar certo teria de ser feita uma costura harmoniosa. E é uma decisão política. São esses organismos que poderão gerar as informações que necessitamos.

■ Como foi o trabalho com o MMA sobre uso e ocupação da orla marítima?— Fiz um trabalho global como abor-dagem preliminar de delimitação da orla. É uma idéia muito simples que considera a declividade do fundo ma-rinho. O que acontece com o recuo da linha de costa quando o mar subir tan-tos centímetros? É algo em torno de 30 a 40 metros em lugares no Sudeste e no Sul. Para o Norte e Nordeste tende a au-mentar, porque a plataforma de fundo marinho é muito rasa e o declive, mais suave. O mar avançaria mais lá. Essas discussões foram feitas no MMA com o pessoal do gerenciamento costeiro. Meu trabalho é apenas um dos pontos do Projeto Orla, que tende a se preo-cupar mais com o que acontece nessa faixa litorânea. Até tem uns limites: a

O oceano é fundamental porque toda mudança climática maior tem muito a ver com a circulação oceânica, tanto a de superfície como a de fundo

12-17_entrevista_152.indd 1512-17_entrevista_152.indd 15 30.09.08 21:31:3930.09.08 21:31:39

Page 14: A hora da política

16 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

partir de 10 metros de profundidade e de 50 a 200 metros a partir do fi nal da praia, ou a partir do fi nal das dunas, deve ser estabelecida uma distância mínima de não-construção. O projeto está sendo implantado em vários mu-nicípios dos estados costeiros. Tudo leva tempo, porque em alguns lugares é mais difícil atuar. A maioria das pre-feituras não tem sequer uma equipe técnica para fazer a avaliação correta. A posição do Estado tem que ser muito mais forte. Voltando ao caso da cidade do Rio: temos aqui uma linha de costa barrada. As praias têm muros atrás de-las, não têm como se ajustar. Agora, se o nível do mar sobe em uma área não ocupada, sem muros, a linha de costa vai recuar e criar uma praia mais atrás. Não há problema nenhum. Como hoje a ocupação avançou muito, cresceu a percepção da erosão.

■ Quais os pesquisadores que trabalham com esse tipo de problema hoje?— Há um pessoal da área de geologia marinha integrado em um Programa de Geologia e Geofísica Marinha. São grupos de pesquisa marinha costeira que estão em praticamente todas as universidades federais. Tais grupos se

juntaram nesse programa que é, na verdade, uma associação informal de pesquisadores que começou a fazer geologia marinha no Brasil. A primei-ra excursão ocorreu em 1969, quando descobriram que o Amazonas tem um cânion no talude continental. Havia trabalhos antes disso afi rmando que no Brasil não teria um cânion. Isso mostra que a nossa margem continental era praticamente desconhecida. Nesse gru-po trabalham também oceanógrafos e geógrafos, eu entre eles, desde o início. Os oceanógrafos também começaram a se interessar muito pela parte de praias e não somente pelos oceanos. Essa tur-ma começou com a pesquisa sistemá-tica com ajuda da Marinha, que, junto com o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecno-lógico], motivou os estudos no senti-do de criar laboratórios ao longo do litoral e cedeu navios. Todo ano havia uma reunião para se defi nir as áreas a serem levantadas, principalmente para coleta de sedimentos, testemunhagem, geológica, análise de minerais pesados etc. Isso se tornou tão importante que resultou na criação do Projeto Remac – Reconhecimento da Margem Con-tinental Brasileira. Aí entraram a Pe-

trobras, o Departamento da Produção Mineral, a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais e a universidade, por meio do CNPq. Esse pessoal fi cou em tempo integral trabalhando nisso, com o navio oceanográfi co da USP e do Woods Hole, e fez o levantamento global da margem, isto é, a platafor-ma, o talude e a elevação continental, incluindo geofísica, geomorfologia e sedimentologia. O resultado foi um no-vo patamar de conhecimento da nossa margem continental.

■ O que é elevação continental?— Temos a plataforma continental e depois o fundo abissal. A transição entre os dois planos é o talude. Muitas vezes, entre o talude e a região abissal, temos ainda uma transição chamada elevação. É com base nessas unidades geomorfológicas que o Brasil defende a ampliação dos seus limites no mar para além das 200 milhas, segundo as nor-mas da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.

■ Se refere as 350 milhas marítimas para exploração de recursos naturais e minerais?— Sim, até mais, dependendo da si-tuação.

■ A questão já foi resolvida? — Faço parte do grupo e grande parte do que propusemos foi aceito. As pro-postas foram apresentadas à comissão de limites da ONU e eles acham que a gente está pedindo demais em algu-mas áreas. Acreditamos que podemos convencê-los do contrário.

■ As 350 milhas, ou um pouco mais ou menos do que isso, fi carão defi nitivamen-te sob o domínio do Brasil?— Domínio relativo. O Brasil domina os recursos minerais do fundo mari-nho. Na zona econômica exclusiva que vai até 200 milhas domina a pesca e os recursos minerais no leito e subsolo marinho. Se o Brasil não tiver capaci-dade de explorar os estoques de pesca, outro país terá o direito de fazê-lo. A mesma regra não vale para os recursos minerais. A exploração pode até pas-sar das 200 milhas quando a margem continental for larga o sufi ciente para estender a plataforma jurídica para além desse limite. Por isso pode che-

12-17_entrevista_152.indd 1612-17_entrevista_152.indd 16 30.09.08 21:31:3930.09.08 21:31:39

Page 15: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 17

gar no máximo a 350 milhas. A impor-tância da extensão da nossa fronteira marítima é bem percebida quando verifi camos que as perfurações para explorar petróleo já se aproximam das 200 milhas – ou seja, o limite da nossa Zona Econômica Exclusiva.

■ O que falta para as Nações Unidas aceitarem a reivindicação brasileira? — O limite é defi nido a partir do pé do talude continental. O problema é defi nir onde está o pé do talude, que nem sempre é muito claro. Há também feições geomorfológicas, como cadeias de montanhas submarinas, que, em de-terminadas situações, permitem esten-der o limite mar a fora. Isso, no entanto, exige uma argumentação geomorfo-lógica e geológica fortemente baseada em dados geofísicos e topográfi cos. O que está faltando é a apresentação dos resultados de novos levantamentos pa-ra esclarecer os pontos controversos. Então teremos defi nitivamente fi xados os nossos limites marítimos.

■ O senhor é geógrafo, mas seu trabalho abrange todas as frentes de pesquisa?— Sim. Dentro da geografi a existe a geo grafi a marinha. Na realidade, a ocea-nografi a nasceu dentro da geografi a, mas foi se distanciando à medida que aumentava a especialização dos diversos ramos da oceanografi a. A relação que a geografi a sempre teve com o mar foi a morfologia costeira. A própria geo-morfologia é uma especialidade que é desenvolvida tanto na geografi a física como na geologia e engenharia. O que é a geomorfologia? É a compreensão dos processos responsáveis pela elabo-ração das formas de relevo, e não apenas sua descrição. A praia é a ponta de um prisma sedimentar que vai até 10 a 20 metros de profundidade, dependendo da energia das ondas. O que acontece nessa faixa está completamente ligado a sua morfologia. Tanto que sugeri a pro-fundidade de dez metros como limite oceânico da orla.

■ E foi aceito? — Sim, a adoção desse limite ocorreu nos grupos de discussão na época da defi nição do Projeto Orla. Precisáva-mos saber tanto o limite oceânico co-mo o limite interno. Sugeri dez metros porque geralmente é a parte na qual

com a necessidade de cada um. Na ver-dade, e isso tem que ser dito, o trabalho foi resultado de anos de investimento do CNPq, de órgãos de fomento à pesquisa dos estados e, mesmo, de recursos dos próprios pesquisadores. Conseguimos ter em mãos o estado-da-arte do conhe-cimento sobre o litoral de cada estado. Isso vai se tornar obsoleto rapidamente, mas é o que serve para abalizar como se deve agir hoje. Precisamos de mais equi-pamentos, que vão do sensoriamento remoto à geofísica, oceanografi a e geo-física. Para, por exemplo, recuperar uma praia precisamos de areia apropriada, que está na plataforma continental. Te-mos de saber por que está acontecendo a erosão. É preciso conhecer os proces-sos, que são aquele conjunto de forças que levam os sedimentos a fi carem ou saírem do local.

■ Recuperar praia signifi ca pegar areia que foi para o mar e devolver para a praia? — É isso. Mas custa caro. Em Cuba tem praias que são refeitas todos os anos, mas a quantidade de turistas que fre-qüentam o local compensa.

■ Aqui também recuperamos praias?— A praia do Leblon, no Rio, já foi re-cuperada várias vezes. Às vezes, a areia fi ca muito tempo de um lado só e pode ir para o Arpoador. A solução é jogar areia de novo. Às vezes, com as tem-pestades – não é só uma questão de ir de um lado para o outro –, a areia vai para o oceano aberto, para muito longe, e não volta. Aí precisa pegar de outro lugar. Em Copacabana a reposição deu certo em termos de alargamento. Mas a qualidade da praia não é a mesma que tinha antes. Primeiro porque boa par-te da areia que está lá veio da enseada de Botafogo, então não é aquela areia redondinha típica de praias oceânicas. Isso nem dá para perceber, mas a zona de surfe diminuiu. A onda quebra mais perto da praia. Mas se resolveu um pro-blema muito maior, que foi a falta de espaço para o trânsito.

■ Pelo exposto nesta entrevista, aos 70 anos o senhor continua com múltiplas atividades. — Continuo a fazer o que vinha fazendo, pesquisa de campo com alunos e alguma consultoria. Não penso em parar. ■

as ondas começam a mobilizar os se-dimentos e também para impedir que nesta faixa sejam realizadas dragagens que, ao modifi car a morfologia do fun-do, alteram a propagação das ondas e o balanço dos sedimentos.

■ Uma parte importante de seu trabalho se refere ao cuidado com as populações costeiras.— A inclusão da realidade social nos estudos da parte física é algo compli-cado. Quando a erosão de praia atinge um lugar onde não mora ninguém, não tem problema. Ocorre que o risco maior da mudança climática atinge as populações. É fundamental ver onde elas estão localizadas e qual sua capaci-dade de reagir, que diminui com a po-breza. Quanto maior a pobreza, menor a chance de se defender. Agora estamos fazendo um estudo de vulnerabilida-de física e socioeconômica da região costeira da Região dos Lagos (RJ) que inclui a parte física e a socioeconômica. O fator socioeconômico é sempre difícil porque as estatísticas são apresentadas por unidades espaciais de baixa reso-lução. A menor unidade é a área que o censor do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística] pode percorrer. Só que essas células não são fi xas, elas podem mudar, mas é o mais próximo que podemos chegar até o momento. Atualmente tenho uma aluna de dou-torado trabalhando nisso.

■ No ano passado o senhor participou de um minucioso estudo sobre erosão. Do que se trata?— Coordenei um trabalho grande do grupo ligado ao Programa de Geologia e Geofísica Marinha, que resultou no livro Erosão e progradação no litoral bra-sileiro. Ele mostra que o litoral não tem processos apenas de erosão. Há setores que estão nitidamente avançando. Tudo começou com a idéia de fazer um estu-do sobre a erosão no nosso litoral, mas não tínhamos dinheiro. Consegui então a aprovação do projeto pelo comitê exe-cutivo do Goos. Eles viram que esse tipo de levantamento está dentro da fi losofi a do programa porque aquilo é uma ba-se para monitoramento. A proposta foi levada à Comissão Interministerial de Recursos do Mar, em Brasília. No fi nal, liberaram R$ 47 mil, que foram distri-buídos aos diversos grupos de acordo

12-17_entrevista_152.indd 1712-17_entrevista_152.indd 17 30.09.08 21:31:4030.09.08 21:31:40

Page 16: A hora da política

18 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

18-23_PropPolitica_152.indd 1818-23_PropPolitica_152.indd 18 30.09.08 21:36:4830.09.08 21:36:48

Page 17: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 19

Palanque eletrônicoAo contrário do mito, o horário eleitoral gratuito funciona e ajuda o eleitor

Interrompemos nossa leitura pa-ra um aviso importante: pesquisa recente feita pelo Datafolha re-vela que 45% dos eleitores não têm nenhum interesse em assis-tir na TV ao Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) e

38% dos espectadores afi rmam que o horário eleitoral não terá nenhuma importância na hora de defi nir o seu voto para prefeito. Ao mesmo tempo, o programa custará aos cofres públicos cerca de R$ 242 milhões, valor que a Receita Federal deixará de arrecadar em razão da isenção fi scal concedida às emissoras de rádio e TV para transmitir propaganda partidária, que não é paga nem pelos candidatos, nem pelos par-tidos políticos. Nos últimos sete anos a perda de arrecadação chegou a quase R$ 2,1 bilhões. O HGPE entra nas ca-sas dos eleitores no horário mais nobre do dia, na hora do descanso, na hora da família e, é claro, antes da novela, obrigando os espectadores a esperar 30 minutos, recheados de promessas de campanha e muitos “vote em mim”, an-tes de ver as mais recentes maldades da vilã Flora. Num país em que 90% dos domicílios (segundo a Media Dados) possuem televisão, meio que é o prin-cipal canal de informação para a grande maioria dos brasileiros, essa meia hora de interrupção do lazer cotidiano com a propaganda política não seria um “sa-crifício” demasiado e inútil?

“A análise das pesquisas de inten-ção de voto correlacionada com o ho-rário político mostra que os programas possuem um alto nível de efetividade,

Carlos Haag | ilustrações Bueno

ainda que contrarie o senso comum de que eles têm baixa audiência e re-duzido impacto político. A campanha eleitoral de fato só começa a se defi nir após a entrada do horário”, afi rma Fer-nando Antônio Azevedo, coordenador do programa de pós-graduação em ciência política da UFSCar (Univer-sidade Federal de São Carlos) e diretor da Associação Brasileira em Comu-nicação Política. “Em quase todas as capitais brasileiras temos exemplos de candidatos que estavam atrás na corrida eleitoral antes do HGPE e que passaram a liderar as pesquisas, ou cresceram expressivamente, após ter sua visibilidade aumentada na mídia eletrônica, via programas políticos, via veiculação de suas peças publicitárias”, observa. Afi nal, segundo o pesquisa-dor, o candidato entra “virtualmente” na casa de cada eleitor e mesmo que o eleitor não veja todos os programas ou que a propaganda não seja uma expe riência prazerosa como uma no-vela, nos seus 45 dias de veiculação, nota, “em algum momento o eleitor estará exposto ao horário e pesquisas do Ibope revelam que o HGPE atinge audiências em torno de 30% a 40%, o que é um número altamente expressivo e desmente a suposta rejeição do elei-tor”. Para ter uma idéia, um líder do horário nobre, o Jornal Nacional, fes-teja ao atingir uma média de 37 pontos de audiência e uma novela das oito está indo muito bem ao chegar aos 40 pontos. “O tempo da campanha não se mede mais em dias, mas em intensida-de de exposição na mídia. O palanque

decisivo não é físico, mas eletrônico. Em alguns anos, será virtual”, avalia o cientista político Sérgio Abranches, para quem a campanha na TV é funda-mental na conversão de indecisos (que, em inícios de corrida eleitoral, podem signifi car uma oferta de 60% de eleito-res disponíveis) e na consolidação das intenções mais fi rmes de votos.

Tempo – “Acima de tudo, o horário po-lítico demarca com nitidez o tempo da campanha eleitoral e coloca essa questão na agenda do debate público. Ela des-taca o ‘tempo da política’ na consciên-cia pública”, analisa o cientista político Afonso de Albuquerque, da Universi-dade Federal Fluminense (UFF). Mas a visão comum não costuma dissociar o entretenimento televisivo da refl exão, ainda mais a política? “Justamente por- que o Brasil tem tantos domicílios com TV é que se faz necessário reconhecer a centralidade da mídia na política. As campanhas dos últimos 20 anos encon-traram na televisão um lócus privilegia-do e estratégico para comunicação com eleitores e de debate com os adversá-rios”, analisa o cientista político Cloves Oliveira, pesquisador do Laboratório de Pesquisas em Comunicação Políti-ca e Opinião Pública (Doxa-Iuperj). Assim, as campanhas dialogam com o eleitor a fi m de persuadi-lo a votar em determinado candidato e a rejeitar seus adversários. O instrumento central des-sa “conversa” é a informação, um santo remédio para um fator “desvirtuante” do processo eleitoral: a pouca impor-tância dada ao assunto “política” no

CAPA

18-23_PropPolitica_152.indd 1918-23_PropPolitica_152.indd 19 30.09.08 21:36:5030.09.08 21:36:50

Page 18: A hora da política

argumentos para uma discussão com os outros, fator importante na escolha de muitos eleitores; a abertura de uma especulação sobre qual candidato tem mais chances de ganhar; o reforço da exposição àquelas mensagens que con-solidam as posições defendidas pelo candidato em quem já se decidiu votar. “Em suma, o eleitor, a partir de escassos recursos cognitivos, enfrenta o proble-ma do alto custo do voto, pois, mesmo descrente, ele busca se informar a fi m de ‘errar menos’, o que faz com que a propaganda eleitoral ocupe o local por excelência da discussão sobre a dispu-ta”, resume Luciana. O acesso gratuito à mídia eletrônica também seria um santo remédio para o abuso do poder econômico. “Ele reduz a infl uência do dinheiro, pois desvincula, ainda que parcialmente, o acesso à mídia da posse do poder econômico.

Exterior – Em outros países, como os EUA, o espaço para que partidos e can-didatos se apresentem ao público preci-sa ser comprado, como as propagandas comerciais”, afi rma o cientista político Luis Felipe Miguel, professor do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (Ceppac), da Universidade de Brasília. “A desvinculação é apenas par-cial, porque o que a propagada eleitoral faz é proporcionar uma janela gratuita na mídia. Isso, no entanto, não garante os meios para produzir seus programas, o que resulta num profundo desequilíbrio na qualidade das mensagens, em benefí-cio das campanhas mais ricas”, adverte.

Entram em cena, então, os chama-dos “marqueteiros”. A novidade criou raízes sólidas na eleição de 1989. “A partir da eleição de Collor, começa-se prestar atenção a três novos aspectos: ao desempenho performático do candi-dato vitorioso, à infl uência dos progra-mas eleitorais na formação e intenção de voto e à interferência da mídia no processo eleitoral”, analisa o cientista político Marcus Figueiredo, do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro). “Em todo o plane-ta, nenhuma democracia reserva tanto tempo à propaganda eleitoral gratuita dos partidos na TV como o Brasil. Nos EUA, Finlândia e Itália há apenas pro-paganda eleitoral paga. Na Dinamarca, na França e em Israel somente há aces-so público. Na Alemanha, Holanda e Inglaterra a propaganda eleitoral paga convive com o acesso público. No Brasil a obrigatoriedade do HGPE reside no entendimento de que rádio e TV são veículos insubstituíveis na irradiação de informações, por sua popularidade e abrangência”, afi rma a cientista po-lítica Maria Helena Weber, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Daí a grande vantagem obtida por Collor em sua campanha eleitoral, considerada pelos pesquisadores como um divisor de águas do horário eleitoral. “Pela primeira vez se fez uma campanha profi ssional, mobilizando intensamente a pesquisa de opinião, tanto qualitati-va quanto quantitativa, bem como as técnicas de marketing político e uma produção publicitária de alto nível pa-

cotidiano das pessoas comuns. “Ao se perceberem alijadas do processo deci-sório da política pública, as pessoas não vêem utilidade em inserir esse tema na sua pauta de interesses, o que faz com que a alienação política seja um grande obstáculo para a mobilização de eleito-res”, analisa Luciana Veiga, do Doxa.

Nesse contexto, o horário eleitoral ativa o eleitor para a política. “A propa-ganda eleitoral tem a importante fun-ção de reduzir o custo da informação, facilitando o acesso do eleitor comum aos temas relevantes para a decisão do voto.” Descrente dos políticos e com poucas informações, o eleitor, diante da obrigatoriedade da escolha do voto, usa o horário político, avalia a pesqui-sadora, motivado pela expectativa de maximizar suas oportunidades, ou seja, “errar menos”, votando em alguém que “faça pelo menos um pouco do que pro-meteu”. “Com a propaganda as pessoas recebem informações que as deixam mais seguras sobre a decisão e suprem uma demanda pessoal. Os eleitores ain-da buscam, na propaganda, argumentos que possam ser usados nas conversas do cotidiano, pois a política, no período eleitoral, faz parte dos assuntos que são debatidos em bares, no ponto de ônibus ou em conversas de colegas de trabalho e vizinhos. Ela, dessa forma, supre tam-bém uma demanda de interação social. Por isso o eleitor se expõe à propaganda eleitoral”, nota Luciana. Daí a notável incoerência do raciocínio dos votantes, detectada por uma pesquisa do Ibope (e que responde aos números recentes citados no início, de um suposto desin-teresse pelo horário gratuito): a maioria dos eleitores considera os programas eleitorais inúteis e sem infl uência no próprio voto, porém os mesmos en-trevistados acham que eles têm grande infl uência na decisão de voto da popu-lação. “Ele se apresenta como crítico o sufi ciente para não se deixar convencer por aqueles políticos que aparecem no comercial, mas é obrigado a aceitar que a população, incluindo ele mesmo no frigir dos ovos, dá muita importância àquela mesma propaganda na hora de escolher o seu candidato.”

Dessa maneira, o horário político permite: vigiar e saber o que pensam os políticos; é um guia para votar, já que ordena as idéias na decisão do voto; uma comunicação antecipatória, ou seja, traz

20 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

18-23_PropPolitica_152.indd 2018-23_PropPolitica_152.indd 20 01.10.08 16:54:3501.10.08 16:54:35

Page 19: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 21

ra o horário eleitoral. Hoje qualquer campanha para ser competitiva exige uma equipe de marqueteiros, publi-citários etc. Como conseqüência, elas se tornaram muito caras e demandam forte fi nanciamento”, avisa Fernando Azevedo.

Segundo o professor, toda eleição é uma competição retórica e a função do marqueteiro é vender seu candidato ao eleitor, o que ele faz, na campanha pela TV, por meio de argumentos e pela persuasão. No primeiro caso, ele usa uma estratégia próxima ao ideal do de-bate público, a “troca pública de razões” de que falava Habermas. No segundo, ele usa técnicas publicitárias em que predominam emoção e sentimento. “É por essa razão que os críticos falam que os candidatos são vendidos como uma mercadoria e que há uma ‘ameri-canização’ da campanha eleitoral. Em verdade, o que há é uma modernização da forma, por conta da centralidade da televisão. Nos EUA o grande peso está nos debates entre candidatos, funda-mental para a defi nição do voto. Aqui o debate infl ui menos e o HGPE possui um peso bem maior. É uma especifi ci-dade nacional, como a gratuidade da propaganda eleitoral”, explica Azevedo. Mas candidatos “bem embalados” no programa de TV ganham eleições com certeza? “Tenho minhas dúvidas. Mui-tas dessas campanhas parecem feitas para o público das classes A e B. Isso ganha eleição? Não sei. O efeito mais concreto da atuação dos marqueteiros é tornar proibitivamente caro aquilo que deveria ser muito barato, afi nal o elemento mais custoso, que é o acesso ao canal de TV, é subsidiado pelo Esta-do”, avalia Albuquerque, para quem o modelo brasileiro, apesar disso, é uma alternativa muito melhor ao modelo americano. “Se ele fosse mais bem ad-ministrado, permitiria campanhas mais baratas e uma melhor qualidade da in-formação oferecida ao eleitor.”

Em 1996, porém, surgiu uma novi-dade promissora. Além do fi m das proi-bições de externas e outros recursos, o Brasil passa a ter um novo produto de propaganda eleitoral: os spots, pro-gramas de 30 a 60 segundos veiculados nos intervalos comerciais e ao longo da programação normal das emissoras, uma idéia já experimentada no plebis-cito de 1993 sobre a forma e o sistema

de governo. “O recurso a spots curtos é comum nos EUA desde a década de 1970. Como a propaganda americana é pouco regulamentada, os candidatos adquirem o espaço comercialmente das emissoras, das quais se exige apenas que dêem iguais oportunidades de compra para todos os candidatos. Também não há limites legais para o conteúdo das peças publicitárias”, explica a cientista política Alessandra Aldé, do Doxa-Iu-perj. O pesquisador lembra dados do Ibope, que revelam ter a audiência do programa eleitoral a forma de um sino invertido, mais alta no início do horário eleitoral, caindo progressivamente até atingir baixos níveis, e voltando a crescer quando se aproxima do fi m, momento em que os telespectadores, na expectati-va da próxima atração da programação normal, voltam aos televisores.

Central – Não obstante, no jogo eleitoral brasileiro, o horário político tornou-se um elemento central, altamente valori-zado nos cálculos dos agentes políticos, quando projetam os lances seguintes de suas carreiras ou procuram alian-ças. “Ele é, nas circunstâncias atuais da nossa política, o grande mecanismo de valorização das hierarquias partidárias”, acredita Miguel. O horário gratuito, então, estaria na contramão do senso comum, que questiona se a campanha televisiva não provocaria uma “perso-nalização” das eleições em detrimento dos partidos, já que, no centro de todo o aparato midiático, está a fi gura a ser

“vendida”: sua excelência, o candidato. “Isso não procede. O uso dos meios de comunicação eletrônicos, em verdade, é um fator de fortalecimento dos par-tidos, e não o contrário. Afi nal, é aos partidos, e não aos candidatos, que a legislação concede tempo gratuito na televisão, o que faz com que os parti-dos se convertam em mediadores in-dispensáveis do acesso dos candidatos à mídia”, analisa Albuquerque. “Mais do que refl etir uma estratégia eleitoral consistente e unifi cada dos partidos po-líticos, a distribuição de tempo entre os candidatos às eleições proporcionais resulta de um arranjo que visa conciliar os interesses das facções e lideranças políticas dos partidos. Garantir a or-dem ‘intrapartidária’ é, assim, um obje-tivo primário da distribuição de tempo, tanto ou maior do que conquistar os votos do eleitorado.”

Segundo ele, o modelo nacional é um reforço dos partidos que parte de um subsídio do Estado, antes que do seu vínculo com setores da socie-dade. “No mesmo sentido, mesmo que não seja um modelo de virtude, as barganhas que se estabelecem en-tre os partidos políticos em torno da divisão de tempo televisivo dão con-ta de uma evidência suplementar da importância destes no jogo político”, nota. Isso, observa, ressalta a idéia de que o público do HGPE não seja ne-cessariamente o eleitor, mas também a imprensa, as campanhas adversárias e o próprio partido. “Nem sempre a

18-23_PropPolitica_152.indd 2118-23_PropPolitica_152.indd 21 01.10.08 16:54:3601.10.08 16:54:36

Page 20: A hora da política

22 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

questão é ganhar a eleição. Outras ve-zes o ponto é conquistar infl uência para negociar cargos ou mesmo manter a paz dentro do partido, fazer-se conhe-cido.” Nesse sentido, surge um ponto importante: o horário eleitoral, afi rma Miguel, ajudaria a reduzir a infl uência das empresas de comunicação de massa no resultado das eleições. “É a principal medida para contrabalançar o pode-rio da mídia eletrônica na formação da opinião pública, garantindo um espa-ço na programação sob controle direto dos partidos”, explica. Isso, observa o pesquisador, permitiria aos partidos se libertarem dos constrangimentos im-postos pelos meios de comunicação. “A propaganda eleitoral livra a comunica-ção política da ditadura do sound bite de poucos segundos, dando a chance de serem apresentados discursos mais lon-gos, complexos e aprofundados e, em especial, permite que os partidos e can-didatos proponham sua própria agenda temática.” Isso seria uma atenuan te pa-ra uma das limitações atuais do horário político que seria sua incapacidade de alterar a agenda da mídia.

“A relativa incapacidade do horário eleitoral em afetar a agenda da mídia, porém, não signifi ca sua irrelevância na construção da agenda pública. Isso ocor-reu com grande força em 1989, quando Collor conseguiu emplacar a temática dos ‘marajás’. A receptividade à agenda do HGPE limitou-se àquela eleição. Nas seguintes, a mídia estava mais bem pre-parada para conter as infl uências sobre a pauta dos noticiários e impor sua pró-pria primazia”, afi rma Miguel. “No en-tanto, o fracasso em sensibilizar a mídia é um indício importante de que o horário gratuito não está conseguindo cumprir satisfatoriamente sua missão. Aos olhos do público, há uma importante diferença de legitimidade entre a propaganda polí-tica e o telenoticiário. Este está revestido pelos valores da imparcialidade, próprios do jornalismo. Já aquele não pode ne-gar seu caráter de discurso interessado”, analisa. No entanto, para o pesquisador, a compreensão dos limites da campanha televisiva não implica descartá-lo como desnecessário. “Apesar de todas as suas imperfeições, e de ser incapaz de dar à democracia brasileira tudo o que se es-perava dele, trata-se de um instrumento raro voltado à geração de condições mais equânimes na disputa eleitoral. Diante

dos problemas que ele não resolve, po-rém, impõe-se a necessidade de buscar novas medidas que contrabalancem, no campo da política, os poderes do dinheiro e da mídia.” Isso adquire um caráter ainda mais importante e emer-gencial diante das pesquisas recentes que refl etem o novo caráter adquirido pela chamada classe C em termos econômi-cos e políticos.

“Com a emergência de novos seg-mentos sociais a confi guração eleitoral no Brasil se alterou. Não que a classe C tenha se transformado numa nova formadora de opinião, mas ela se des-locou da infl uência exercida pela classe média tradicional, e isso ocorreu por-que ela tem uma agenda política diversa em vários pontos das classes A e B”, diz Azevedo. “Nas últimas eleições de 2006, por exemplo, a questão ética teve um peso considerável nestas duas classes, mas um peso relativo na agenda das classes C e D, que tinham na estabili-dade econômica, no aumento da renda e do emprego e nos programas sociais os principais pontos de sua agenda.” Além disso, fala o pesquisador, o resul-tado eleitoral mostrou também que o peso e a infl uência dos jornais e revis-tas, que foram fortemente críticos no episódio do “mensalão” e do “dossiê”, se restringiram ao público leitor, essen-cialmente composto pelas classes A e B. “Na televisão, embora os noticiários também fossem críticos, havia o horário eleitoral que permitia ao PT, ao governo

e ao presidente Lula estabeleceram o contraditório, falando diretamente para o eleitor. Em síntese, somos uma socie-dade segmentada e socialmente hetero-gênea e isso é bom para a consolidação da nossa democracia e da pluralidade política. E também mostra a utilidade e poder do horário gratuito.” Mas será que o horário político está sabendo dar conta dessas mudanças?

“O horário gratuito está capitalizan-do isso, em minha opinião, de forma insufi ciente. A idéia de que a campanha é um assunto técnico, da competência de profi ssionais ultra-especializados me parece essencialmente antidemo-crática na sua essência, é uma ‘aristo-cracia da técnica’ que não está sabendo levar essas alterações em consideração com a rapidez e efi ciência necessárias”, pondera Albuquerque. “Afi nal, esse viés técnico, na maioria das vezes, implica construir a campanha em padrões de gosto e discurso que são profundamen-te elitistas. No caso do Rio de Janeiro, cidade em que resido, isso se refl ete, por exemplo, em um discurso de campanha televisiva que naturaliza a cidade nos termos de sua Zona Sul, ‘maravilhosa’, em detrimento do conjunto.”

Seja de que classe for o eleitor, é certo, avisam os pesquisadores, que a propaganda política marca o real início do “tempo da política”, fazendo com que a população fi que mais aten-ta à política, às eleições e que comece a buscar alternativas para o seu voto, bem como, numa etapa posterior, se confi gure num catalisador para cris-talizar escolhas, ao longo do período em que a propaganda política vai ao ar. “Alguns poderiam perguntar se o voto obrigatório não seria uma ferramenta institucional que garantiria automati-camente o reforço e a cristalização das candidaturas, independentemente da propaganda eleitoral. A resposta ló-gica é não”, avalia o cientista político Luiz Claudio Lourenço, pesquisador do Doxa-Iuperj. “A obrigatoriedade não aponta a direção do voto. Essa pode até colocar a demanda de uma escolha, mas não o infl uencia sobre qual escolha fa-zer. A propaganda eleitoral não só ativa e reforça o processo decisório, mas so-bretudo mostra quais são as opções que devem ser tomadas e tenta infl uenciar a escolha do eleitor.” Continue, agora, com a sua leitura normal. ■

Com a emergência

de novos segmentos

sociais a configuração

eleitoral no Brasil

se alterou, porque

cresceu o peso

econômico da

chamada classe C

18-23_PropPolitica_152.indd 2218-23_PropPolitica_152.indd 22 30.09.08 21:36:5230.09.08 21:36:52

Page 21: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 23

18-23_PropPolitica_152.indd 2318-23_PropPolitica_152.indd 23 30.09.08 21:36:5330.09.08 21:36:53

Page 22: A hora da política

24 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

ESTRATÉGIAS MUNDO>>

e também prevê a instalação de lousas interativas e sistemas de videovigilância. “Não quero que digam, uma vez mais, que o mundo mudou, a sociedade evoluiu, houve uma revolução tecnológica mas a escola fi cou para trás”, disse o primeiro-ministro José Sócrates ao lançar o programa, segundo o jornal on-line IOL PortugalDiário.

A Comunidade Andina de Na-

ções vai patrocinar um progra-

ma para ajudar três de seus

países membros, a Bolívia, o

Equador e o Peru, a se adapta-

rem a um fenômeno ligado às

mudanças climáticas globais.

Trata-se do derretimento de-

fi nitivo dos glaciares tropicais,

geleiras formadas em altitu-

des elevadas, que ameaça a

oferta de água para consumo

doméstico, irrigação e gera-

ção de energia elétrica. No ca-

so da cordilheira dos Andes,

elas ocupam uma área de 2,7

mil quilômetros quadrados,

da Bolívia até a Venezuela.

O programa receberá US$

10 milhões do Banco Mun-

dial e outros US$ 22 milhões

dos países andinos e prevê a

implantação de uma rede de

monitoramento para acompa-

nhar a velocidade do recuo dos

glaciares. A situação é pior no

Peru, que sofre com défi cit hí-

drico nos rios amazônicos pelo

quarto ano consecutivo. “O Peru já perdeu 22% de sua massa

de glaciares e isso está se acelerando”, disse à agência SciDev.

Net o ministro do meio ambiente peruano Antonio Brack Egg.

“Há previsões sugerindo que em 2050 só haverá glaciares

acima dos 6 mil metros de altitude”, afi rmou. A altitude mé-

dia da cordilheira gira em torno de 4 mil metros e seu ponto

culminante é o pico do Aconcágua, com 6.962 metros.

AS

ÁG

UA

S V

ÃO

RO

LA

R

Academia Chinesa de Ciências Agrícolas, em Pequim. “Os transgênicos podem converter a agricultura chinesa num modelo mais intensivo e avançado”, disse Dafang. Das seis espécies transgênicas autorizadas no país, apenas o algodão resistente a pragas disseminou-se e ocupa 70% da área dedicada a essa cultura. Cientistas chineses já desenvolveram variedades transgênicas do arroz. Mas como se trata do mais importante cultivo do país, o governo foi cauteloso e vem adiando sua comercialização, devido aos temores da população em relação à biossegurança.

> Internet em todas as escolas

Um programa lançado pelo governo de Portugal vai investir € 400 milhões na modernização tecnológica das escolas públicas do país. O Plano Tecnológico da Educação vai levar internet de banda larga a 30 mil salas de aula de 1.200 estabelecimentos

> China faz aposta nos transgênicos

Com 1,3 bilhão de pessoas para alimentar, a China vai ampliar sua aposta nos transgênicos na esperança de multiplicar a produção agrícola. O governo chinês anunciou em agosto investimentos de US$ 3,5 bilhões em pesquisa e desenvolvimento de plantas geneticamente modifi cadas. O objetivo é colocar a China na corrida mundial para identifi car genes de plantas de alto valor comercial, segundo disse à revista Science Huang Dafang, ex-diretor do Instituto de Pesquisa Biotecnológica da

Geleira nos Andes peruanos: derretimento gera défi cit hídrico

ST

EV

E S

CH

MID

T/U

NIV

ER

SIT

Y O

F C

OL

OR

AD

O

24-26_Estrat Mundo_152.indd 2424-26_Estrat Mundo_152.indd 24 30.09.08 21:40:3230.09.08 21:40:32

Page 23: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 25

Um dos mais famosos divulgadores da história da ciência, o as-

trônomo norte-americano Carl Sagan (1934-1996) recebeu uma

homenagem da Nasa só antes conferida ao gênio Albert Einstein e ao

astrônomo Edwin Hubble. Com a criação do Programa de Bolsas de

Pós-doutorado Carl Sagan em Exploração de Exoplanetas, a agência

espacial norte-americana reconhece o trabalho de um pesquisador

que, além de ter escrito obras que popularizam a ciência, como o

livro Cosmos, transformado em premiada série de televisão nos anos

1970, também foi um dos pioneiros na busca científi ca pela vida que

poderia existir nos planetas além do Sistema Solar, os chamados

exoplanetas – pelo menos 300 deles foram identifi cados nos últimos

anos. “Queremos investir nas melhores e mais brilhantes mentes

em um campo emergente que é muito inspirador para o público em

geral”, disse Jon Morse, diretor da Divisão de Astrofísica da Nasa.

Segundo a agência Reuters, a bolsa Sagan se somará à bolsa Einstein

em física e à bolsa Hubble em origens cósmicas. Elas representam

uma nova abordagem temática da agência, na qual bolsistas direcio-

nam seus trabalhos para focos considerados desafi adores, como na

busca por planetas semelhantes à Terra em órbita de outras estrelas.

“Há uma explosão de interesse nesse campo. Vamos seguir a trilha

científi ca que Sagan foi um dos primeiros a explorar”, disse Charles

Beichman, do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa.

Chang Escobedo, justifi cou a mudança. “Nossos alunos precisam usar as ferramentas mais modernas e de uso mais disseminado”, afi rmou.

Ele advertiu, contudo, que a tecnologia não faz milagres nem substitui o engajamento de pais e professores na educação das crianças e jovens. “Não há nenhum programa governamental, nada que substitua os pais, a quem cabe desligar a televisão ou impedir o acesso a jogos de computador quando os fi lhos têm trabalhos da escola para fazer”, afi rmou.

> Windows no lugar do Linux

O governo do Peru começou a distribuir 100 mil laptops de baixo custo nas áreas mais pobres do país, dentro do programa internacional Um laptop por criança (OLPC, na sigla em inglês). Mas resolveu desafi ar um dos ícones do programa, que é o uso da plataforma de software livre Linux, voltada tanto para baratear o custo dos

equipamentos quanto para estimular o aperfeiçoamento do programa pelos próprios estudantes. No lugar do Linux, os computadores

portáteis são abastecidos com o programa Windows XP, da gigante Microsoft. O ministro da Educação peruano, Jose Antonio

JO

N E

PS

TE

IN /

CE

NT

ER

FO

R C

ON

SE

RV

AT

ION

ME

DIC

INE A National Science

Foundation (NSF)

e os National Ins-

titutes of Health

(NIH), dos Estados Unidos, vão destinar US$

16 milhões para oito novos projetos no âmbito

de seu programa de Ecologia das Doenças In-

fecciosas, que já existe há nove anos. Os pro-

jetos vão estudar como as mudanças no clima

e na biodiversidade podem estar aumentando

o risco de emergência ou re-emergência de

doenças causadas por vírus, bactérias e para-

sitas. Seria o caso, por exemplo, da expansão

do letal vírus Nipah em Bangladesh, transmitido

por morcegos – entre as vítimas destacam-se

catadores de tâmaras que, por subirem nas ár-

vores, têm contato com o vírus propagado pelos

mamíferos voadores. “Num tempo de rápidas

mudanças globais, o surgimento de moléstias

infecciosas tende a ser mais comum”, disse

James Collins, diretor da NSF para ciências

biológicas. “Os projetos vão realizar os estudos

básicos necessários para antever a iminência

da eclosão dessas doenças, assim como a sua

virulência e a velocidade de disseminação.” Catador de tâmaras em Bangladesh: elo

À M

EM

ÓR

IA D

O D

IVU

LG

AD

OR

Sagan: programa de bolsas de pós-doutorado

MIC

HA

EL

OK

ON

IEW

SK

I

ECOLOGIA DAS DOENÇAS

24-26_Estrat Mundo_152.indd 2524-26_Estrat Mundo_152.indd 25 30.09.08 21:40:3430.09.08 21:40:34

Page 24: A hora da política

26 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

ESTRATÉGIAS MUNDO>>

funcionar de forma independente do ministério e terá orçamento próprio. Entre diversas funções, irá supervisionar e avaliar a qualidade dos centros de pesquisa universitários, além de distribuir recursos.

> Polêmica britânica

O biólogo Michael Reiss renunciou ao cargo de diretor de educação da Royal Society, a academia de ciências da Grã-Bretanha. Ele foi pressionado a deixar o cargo depois de manifestar-se a favor da discussão de todas as idéias sobre a origem do Universo nas aulas de ciências, até mesmo o criacionismo, segundo o qual o mundo foi criado por um ser superior. Reiss, que também é sacerdote anglicano,

Alguns dos astronautas mais

célebres da história da corrida

espacial estiveram juntos na

celebração do 50º aniversá-

rio da Nasa, a agência espacial

norte-americana. John Glenn,

87 anos, o primeiro norte-

americano a orbitar a Terra

(dez meses depois do soviético

Yuri Gagarin); Neil Armstrong,

78, o primeiro homem a pisar

na Lua; Jim Lovell, 80, vete-

rano de duas missões Apolo;

e Kathryn Sullivan, 57, que

em 1984 se tornou a primeira

mulher a caminhar no espa-

ço, reuniram-se com outros 15

colegas na celebração. Longe

de ser um evento nostálgico,

o encontro foi marcado pela

crítica ao programa da Estação Espacial Internacional, que

obrigou a Nasa a reestruturar seu orçamento em prejuízo da

pesquisa na exploração de outros planetas. “Nosso conheci-

mento sobre o Universo cresceu mil vezes ou mais nos últimos

50 anos”, disse Armstrong. “Nossa responsabilidade agora é

desenvolver novas opções para as futuras gerações: opções

capazes de expandir o conhecimento humano e de levar os

homens além do universo que nos rodeia”, afi rmou.

NA

SA

públicas voltadas para estimular a ciência e a tecnologia. O anúncio foi feito por Abd Dhiab al-Ajili, ministro iraquiano para a Educação Superior e a Pesquisa Científi ca. Segundo a agência de notícias SciDev.Net, a estrutura vai

Armstrong e Glenn (sentados ao centro) com outros astronautas

justifi cou-se dizendo que, embora não veja sentido no criacionismo, a discussão ajudaria a evitar que fi lhos de famílias religiosas se distanciassem da ciência. “O criacionismo se baseia na fé e não tem nada a ver com a ciência”, diz Lewis Wolpert, da University College, de Londres.

> Estrutura para pesquisa

O Iraque terá uma estrutura específi ca para promover a pesquisa e criar políticas

BA

LA

O D

E M

EIO

CU

LO

LA

UR

AB

EA

TR

IZ

24-26_Estrat Mundo_152.indd 2624-26_Estrat Mundo_152.indd 26 30.09.08 21:40:3430.09.08 21:40:34

Page 25: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 27

ESTRATÉGIAS BRASIL>>

liderados pela Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), o Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (Cobea) e a Sociedade Brasileira de Biofísica (SBBF) promoveram uma forte mobilização junto aos parlamentares pela aprovação do projeto depois que leis municipais em cidades como Rio de Janeiro e Florianópolis impuseram restrições ao uso de animais de laboratório (ver Pesquisa FAPESP nº 144). A lei, com abrangência federal, vai tirar o efeito de dispositivos aprovados pelas câmaras de vereadores. “A lei passou exatamente da forma que a comunidade científi ca esperava e atende às necessidades do país em relação às pesquisas com animais”, diz Marcelo Morales, presidente da SBBF.

para evitar abusos, mas permitirá punir pesquisadores e instituições que não respeitem as normas do Concea, o que não era possível até então. As penalidades previstas vão de advertências e multas à suspensão de fi nanciamentos ofi ciais e à interdição defi nitiva. Setores da comunidade acadêmica

O Instituto Nacional

de Pesquisas Espa-

ciais (Inpe) e a Empre-

sa Brasileira de Pes-

quisa Agropecuária

(Embrapa) vão atuar

em conjunto para ga-

rantir a fi dedignidade

das informações sobre

desmatamento no Bra-

sil. Segundo o acordo,

os dados gerados pelo

Inpe agora serão con-

firmados em campo

pela Embrapa, que

também identificará

as atividades causa-

doras da derrubada da

fl oresta. A parceria é

concebida nove meses

depois de o Inpe fazer

um alerta sobre o re-

crudescimento do desma-

tamento da Amazônia e ver

sua metodologia questiona-

da por políticos, embora o

aumento da devastação no

começo do ano tenha sido

confi rmado em medições

recentes de melhor reso-

lução. A partir do estudo

das áreas já desmatadas

em anos anteriores, será

gerado um histórico do

uso e ocupação da Ama-

zônia, avaliando a eventual

ocorrência de regeneração

fl orestal. Segundo a Embra-

pa Monitoramento por Sa-

télite, unidade da Embrapa

sediada em Campinas, a in-

tenção do projeto é contex-

tualizar os dados de des-

matamento. Atualmente, já

é possível saber o local e

a intensidade do desmata-

mento. A parceria permitirá

avançar na compreensão

das atividades promotoras

da devastação.

> Congresso aprova Lei Arouca

Após 13 anos de tramitação no Congresso, foi aprovado pelo Senado no dia 9 de setembro o projeto de lei que regulamenta o uso de animais em experimentos científi cos. Conhecida como Lei Arouca, em alusão a seu autor, o sanitarista e ex-deputado federal Sérgio Arouca (1941-2003), a proposta estabelece, entre outros dispositivos, a criação do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), responsável por estabelecer normas éticas e credenciar as instituições que poderão utilizar animais para fi ns científi cos. A nova lei terá pouco impacto nas universidades e grandes centros de pesquisa, que já mantêm comitês de ética

Pesquisa FAPESP abordouo tema na capa de fevereiro

MA

RC

EL

LO

CA

SA

L J

R/A

BR

DE

SM

ATA

ME

NT

O E

M D

ETA

LH

ES

Queimada no interior do Pará: avaliação em campo

27-29_EST.Brasil_152.indd 2727-29_EST.Brasil_152.indd 27 30.09.08 21:43:3530.09.08 21:43:35

Page 26: A hora da política

28 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

ESTRATÉGIAS BRASIL>>

instituições brasileiras seria voltar a atenção para as novas universidades federais, que terão necessidade de muitos jovens professores. Poderíamos implementar projetos triangulares entre elas, as universidades francesas e as universidades brasileiras já consolidadas”, disse Jaisson à Agência FAPESP. Sediado na Universidade Paris 13, o comitê avalia e coordena três acordos franco-brasileiros. O mais antigo tem como parceira a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e envolve a formação de doutores. Também há acordos com a Universidade de São Paulo (USP) e com a FAPESP. “O USP-Cofecub é um

> Cooperação francesa

O Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária e Científi ca com o Brasil (Cofecub, na sigla em francês) pretende criar projetos que ajudem a formar recursos humanos para as novas universidades federais brasileiras. De acordo com o presidente do comitê, Pierre Jaisson, os projetos ainda não foram formalizados, mas poderão ser a principal novidade do Cofecub para 2009, quando o comitê completará 30 anos. Jaisson visitou a sede da FAPESP, no dia 18 de setembro, e foi recebido pelo presidente da Fundação, Celso Lafer. “Uma forma interessante de ampliar nossa colaboração com as

acordo de pesquisa entre pesquisadores seniores. Já o FAPESP-Cofecub é um acordo de mobilidade especialmente voltado para estudantes franceses de pós-doutorado”, explicou Jaisson.

Um aparelho seqüenciador de

genoma de alto desempenho

foi instalado no Laboratório

Nacional de Computação Cien-

tífi ca (LNCC), em Petrópolis

(RJ). O Ministério da Saúde

investiu R$ 2,1 milhões no

Genome Sequencer FLX Ins-

trument, adquirido do grupo

Roche Diagnostics Brasil, que

tem capacidade de seqüenciar

até 500 milhões de pares de

bases de DNA em dez horas.

A criação da unidade genômica

no LNCC permitirá a realização

de estudos nas áreas de gené-

tica animal e vegetal, de micro-

organismos e da saúde huma-

na, entre outras. Os primeiros

projetos estão dirigidos para a

área de câncer, que envolve o

Instituto Ludwig de Pesquisa

contra o Câncer, de São Paulo,

e o Instituto Nacional de Câncer (Inca), do Rio de Janeiro. Há

outros programas em articulação, como o do seqüenciamento

parcial do Trypanosoma cruzi, aprovado pela Fundação de Am-

paro à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), e o de estudos da

biodiversidade brasileira, em negociação com a Petrobras.

ILU

ST

RA

ÇÕ

ES

LA

UR

AB

EA

TR

IZ

> Denúncia anônima

O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, mandou uma carta para o colega Carlos Minc, da pasta do Meio Ambiente, pedindo

ALT

O D

ES

EM

PE

NH

O

27-29_EST.Brasil_152.indd 2827-29_EST.Brasil_152.indd 28 30.09.08 21:43:3730.09.08 21:43:37

Page 27: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 29

A Marinha do Brasil vai rece-

ber R$ 69 milhões da Fi-

nanciadora de Estudos

e Projetos (Finep)

a fi m de comprar

um novo navio

polar para o

Programa An-

tártico Brasilei-

ro (Proantar). A

embarcação norue-

guesa Ocean Empress,

construída em 1988 e re-

formada em 2001, está sendo

reequipada num estaleiro em Bremerha-

ven, na Alemanha, para dar suporte a pesquisas oceanográfi -

cas e deverá entrar em operação no início de 2010. Entre as

inovações incorporadas ao navio, há um conjunto de sensores

que permite captar imagens do fundo do mar e processá-las

de maneira tridimensional. O navio, com capacidade para 106

pessoas e autonomia de 90 dias em alto-mar, contará com

cinco laboratórios para pesquisa, sendo dois “molhados”, que

poderão receber amostras retiradas do mar. Neles poderão ser

realizadas pesquisas em meteorologia, geologia, oceanogra-

fi a, biologia, astrofísica, geomagnetismo e geofísica nuclear.

Atualmente a Marinha dispõe apenas do navio de apoio

ocea nográfi co Ary Rongel para dar suporte às atividades

do Proan tar. Construído em 1981 e adquirido pela Marinha

em 1994, o Ary Rongel deve ser aposentado em 2016.

RU

MO

À A

NT

ÁR

TID

Asua intervenção num episódio que contrapôs, em Rondônia, autoridades ambientais do estado e dois pesquisadores, Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Rodrigo Stabeli, ambos do Instituto de Patologia Tropical de Rondônia (Ipepatro). Segundo o relato de Rezende, Hildebrando e Stabeli foram procurados por funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que lhes entregaram uma intimação relacionada a uma denúncia anônima em que são acusados de biopirataria. A reação à carta foi imediata: o Ibama voltou atrás e suspendeu as intimações. O Ipepatro desenvolve pesquisas em doenças como a malária em colaboração com a Universidade Federal de Rondônia (Unir) e Centro de Pesquisas em Medicina Tropical (Cepem), ligado ao governo do estado. Um manifesto em defesa dos pesquisadores chegou a ser lançado pelo cientista Sergio Mascarenhas. “O absurdo é que os trabalhos se referem a pesquisas autorizadas e são realizados em difíceis condições e com muito idealismo”, disse Mascarenhas.

> Ciência no ensino médio

Foi lançado no fi nal de setembro o Programa de Pré-iniciação Científi ca da Universidade de São Paulo (USP), uma iniciativa da pró-reitoria de Pesquisa da universidade apoiada pela Secretaria Estadual de Educação. A proposta é oferecer a alunos de escolas públicas do primeiro e do segundo ano do ensino médio, com idade entre 15 e 18 anos, a oportunidade de entrar em contato, nos laboratórios e junto a grupos de pesquisa da USP, com procedimentos e metodologias adotados em estudos científi cos de diversas áreas do conhecimento. A partir desse mês, 380 alunos vão dedicar oito horas semanais, durante o período letivo, para o desenvolvimento

de atividades científi cas. Nas férias e em períodos de recesso escolar os trabalhos ocuparão 16 horas por semana. A seleção dos alunos foi realizada pela Secretaria Estadual de Educação, que teve como critério o desempenho escolar dos estudantes. Eles receberão uma bolsa de estudo de R$ 150 mensais durante um ano.

> Os 75 anos da Unifesp

O lançamento de dois livros, no dia 25 de setembro, marcou o aniversário de 75 anos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), fundada em junho 1933

como Escola Paulista de Medicina. Fruto da pesquisa de um grupo de professores do curso de história da Unifesp campus Guarulhos, o livro A Universidade Federal de São Paulo aos 75 anos: ensaios sobre história e memória apresenta refl exões de intelectuais sobre a trajetória da instituição. A obra é assinada pelos docentes Jaime Rodrigues, Ana Lúcia Nemi, Karen Macknow Lisboa e Luigi Biondi. Já o livro 75 x 75: EPM/Unifesp, uma história, 75 vidas, de Dante Claramonte Gallian, reúne fatos narrados por professores, alunos, funcionários que atuaram ou atuam na instituição.

27-29_EST.Brasil_152.indd 2927-29_EST.Brasil_152.indd 29 30.09.08 21:43:3830.09.08 21:43:38

Page 28: A hora da política

30 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

MIGRAÇÃO

Talentos em

Estudos mostram que a circulação de cérebros pode render benefícios para os países em desenvolvimento

Ganhou novos contornos o debate sobre a “fuga de cérebros”, ex-pressão utilizada desde a década de 1950 para descrever o êxodo rumo a nações ricas de talentos formados a duras penas por países pobres. Nos últimos anos, com o

aprofundamento da integração econômica entre os países e o barateamento dos meios de transporte e de comunicação ligados ao processo de globalização, acentuou-se de tal modo a mobilidade internacional de profissionais bem formados que a aca-demia passou a compreender o fenômeno como algo bem mais complexo e multi-facetado, capaz eventualmente de trazer compensações e benefícios para os países atingidos. O termo original desdobrou-se em outros, como “intercâmbio de cére-bros” (brain exchange), para designar o que ocorre em países como a Inglaterra, a Alemanha e o Canadá, capazes de atrair pessoal qualificado mas também de perdê-lo, sobretudo para os Estados Unidos. Ou ainda “ganho de cérebros” (brain gain), vinculado a países que obtiveram sucesso em atrair de volta profissionais perdidos para outras nações. Já o conceito de “fuga de cérebros ótima” (optimal brain drain) refere-se a nações que conseguiram man-ter a saída de talentos em níveis toleráveis e, no longo prazo, ainda extraíram algum benefício da expertise obtida no exterior por seus cidadãos desgarrados.

A lista de expressões derivadas é extensa. Num relatório produzido sob encomenda

Fabrício Marques | ilustrações Jaime Prades

da Organização Internacional do Trabalho, o norte-americano Briant Lindsay Lowell, professor da Universidade Georgetown, e o escocês Allan Findlay, da Universidade de Dundee, descreveram uma coleção de subfenômenos. Um seria o brain waste (“desperdício de cérebros”), a exportação de profi ssionais para trabalhar em ocupa-ções bem remuneradas, mas pouco quali-fi cadas, que não exploram ou valorizam a formação obtida no país de origem. Já a “exportação de cérebros” (brain export) serviria para qualifi car o êxodo de talentos que conseguem compensar sua ausência de formas variadas, seja fazendo remessas de dinheiro para a família, seja propiciando transferência de tecnologia para seu país de origem, como no caso da Índia, que criou uma pujante indústria de software graças, em boa medida, às legiões de estudantes de computação que foram estudar nos Esta-dos Unidos. As expressões “globalização de cérebros” (brain globalisation) e “circulação de cérebros” (brain circulation) seriam ta-lhadas para defi nir a mobilidade interna-cional de talentos que se tornou parte na-tural da vida das grandes corporações, em particular o rodízio de executivos voltado para garantir vantagens competitivas em mercados globais.

Já a fuga de cérebros em seu sentido tradicional atingiria países em desenvolvi-mento do Sul e do Leste da Ásia, como In-donésia, Paquistão, Bangladesh e Sri Lanka, da África e da América Latina – a Argentina é o caso mais lembrado – , que continuam a

>POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

trânsito

30-35_Fugadecerebros_152.indd 3030-35_Fugadecerebros_152.indd 30 30.09.08 21:48:0030.09.08 21:48:00

Page 29: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 31

30-35_Fugadecerebros_152.indd 3130-35_Fugadecerebros_152.indd 31 30.09.08 21:48:0030.09.08 21:48:00

Page 30: A hora da política

perder pessoal bem formado sem con-seguir reavê-los nem benefi ciar-se de sua circulação internacional. “Como muitos processos sociais, o impacto da saída de talentos dos países em desen-volvimento depende de efeitos diretos e indiretos”, escreveram Lowell e Fin-dlay. “Um efeito direto e imediato é a redução do número de trabalhadores bem formados, perda difícil de reparar no curto prazo, mas também existem efeitos indiretos com força para incen-tivar o crescimento econômico.”

V árias estratégias foram concebidas ou testadas para enfrentar a fuga de cérebros. Curiosamente, elas pou-

co têm em comum além de nomes que, em inglês, começam pela letra R. Uma delas, a “reparação”, foi abandonada. Consistia na idéia, lançada na década de 1970 pelo economista indiano Jagdish Bhagwati (1934- ), de criar um imposto cobrado dos países ricos para compen-sar a predação de talentos do mundo em desenvolvimento. Outra que anda em desuso é a que estabelece “restrição” à saída de pessoal qualifi cado, pela in-compatibilidade desse tipo de iniciativa com o respeito a direitos civis em regi-mes democráticos. Há, ainda, as políti-cas de “recrutamento”, em que um país tenta oxigenar seu ambiente acadêmico e produtivo atraindo talentos de fora; e as de “retenção”, voltadas para deses-timular a evasão pelo fortalecimento dos setores científi co e produtivo ou do desenvolvimento econômico. Por fi m, há as opções de “retorno”, que busca atrair de volta parte dos profi ssionais perdidos, e a resourcing option, também

conhecida como “opção de diáspora”, que busca mobilizar pesquisadores ra-dicados no exterior para que ajudem a fortalecer conexões da academia e da indústria de seu país de origem com o mundo desenvolvido.

O Brasil, que no passado recorreu à opção de recrutamento para dar consis-tência à sua comunidade científi ca – a fundação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, é o principal exemplo dessa estratégia –, seguiu nas últimas quatro décadas uma opção de retenção, ao patrocinar o desenvolvimento de um forte sistema nacional de pós-gradua-ção. As pesquisas sobre a mobilidade internacional de talentos brasileiros, embora escassas, mostram que o país não sofreu prejuízos signifi cativos. Um estudo liderado pelo sociólogo Simon Schwartzman em 1972 constatou que o Brasil tinha uma fuga de cérebros pe-quena: apenas 5% dos brasileiros de sua amostra fi caram trabalhando no exterior após completarem os estudos. Uma pesquisa feita em 2002 por Reinal-do Guimarães, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Fede-ral do Rio de Janeiro (UFRJ), chegou a resultados semelhantes. Sua análise abrangeu o período de 1993 a 1999 e envolveu a consulta a 2.769 líderes de grupos de pesquisa em todo o Brasil. Ele constatou que 966 cientistas brasi-

leiros migraram para o exterior nesses anos, sendo 443 para trabalhar e 523 para estudar. O resultado representa também 5% do total de 18.180 douto-res envolvidos em atividades de pesqui-sa que se formaram no período.

O país também ostenta uma capa-cidade apreciável de atrair cientistas de outros países. Um levantamento feito pelo Conselho Nacional de Desenvolvi-mento Científi co e Tecnológico (CNPq) em 2005 mostrou que havia 2.145 es-trangeiros com vínculos permanentes nas universidades brasileiras. Isso não signifi ca, contudo, que a aparente imuni-dade do Brasil ao problema não possa ser revertida. Existe a tendência de o mundo desenvolvido recorrer crescentemente aos países do Sul e do Leste Europeu para suprir suas carências de profi ssionais de alto nível. Em 2000, a Alemanha ofereceu 20 mil vistos de permanência para espe-cialistas em tecnologia de informação e em pouco mais de um ano conseguiu recrutar a metade desse contingente, principalmente do Leste Europeu.

Uma acentuada tendência de voltar ao país separa os pesquisadores brasi-leiros no exterior de colegas de outras nacionalidades. Maria Luiza Lombas, que em 1999 defendeu uma dissertação de mestrado na Universidade de Brasília sobre as expectativas de retorno de dou-torandos brasileiros em quatro países, lembra que as agências de fomento têm políticas rigorosas no sentido de exigir o retorno de seus bolsistas ao Brasil, sob pena de devolverem o dinheiro investido

32 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

30-35_Fugadecerebros_152.indd 3230-35_Fugadecerebros_152.indd 32 30.09.08 21:48:0130.09.08 21:48:01

Page 31: A hora da política

em sua formação. Em sua pesquisa, ela constatou que 84% dos 346 doutoran-dos entrevistados planejavam retornar ao Brasil imediatamente após o curso. Dos 16% restantes, a imensa maioria desejava fi car apenas por alguns meses, para complementar o seu treinamento em pesquisa. Desse conjunto, apenas 2% declararam a intenção de estender a sua permanência no exterior por mais de um ano, para exercer, inclusive, alguma atividade profi ssional. A pesquisadora, que atual mente é coordenadora-geral de bolsas no exterior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), observa ainda que a consolidação da pós-graduação brasilei-ra fez com que as agências repensassem a oferta de bolsas para doutorado no exterior. Elas passaram a priorizar mo-dalidades como o doutorado sanduíche ou o pós-doutorado, de permanência bem mais curta, que expõem menos os bolsistas a convites para permane-cer no exterior, ainda que a intenção da estratégia não seja essa. “As bolsas estimulam a interação de nossos pes-quisadores com o ambiente acadêmico internacional. E eles, quando voltam ao Brasil, retroa limentam o nosso sistema com sua experiência”, afi rma.

Léa Velho, professora do Depar-tamento de Política Científi ca e Tec-nológica do Instituto de Geociências da Unicamp, crê que outros fatores infl uenciam na tendência de retorno. “O Brasil, apesar das difi culdades, ainda oferece chances de trabalho na área aca-dêmica para esses pesquisadores. Eles têm para onde voltar, o que faz a dife-rença”, afi rma. Léa acrescenta alguns

dados culturais. Diz que os brasileiros são avessos à mobilidade até mesmo dentro do território nacional e, quan-do dizem que querem voltar ao Brasil, estão falando de grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro. E acrescenta: “Os bolsistas no exterior pertencem a um estrato social que dispõe, aqui no Brasil, de regalias inexistentes em paí ses desenvolvidos, como a possibilidade de ter empregados ou famílias que ajudam na educação dos fi lhos. O choque cul-tural é forte e acho natural que muitos deles não queiram fi car no exterior de-fi nitivamente”, afi rma. A bióloga Mar-cia Triunfol, que retornou ao Brasil há dois anos depois de trabalhar por mais de uma década nos Estados Unidos, concorda com a análise de Léa Velho. “A cultura é muito diferente. Senti que aquele compromisso com o trabalho que os brasileiros têm no exterior fi ca mais relaxado quando eles retornam ao Brasil, talvez pelas condições nem sempre favoráveis ou por viverem sob a asa do fi nanciamento público”, diz.

Marcia havia trabalhado na revista Science e nos Institutos Nacionais de Saúde. Uma razão pessoal marcou sua decisão: ela, que se casara nos Estados Unidos, fi cou viúva. “Tinha um bom emprego e podia continuar lá por mui-tos anos, que provavelmente ninguém me mandaria embora. Mas queria fazer coisas que não estavam ao meu alcance nos Estados Unidos.” Hoje ela vive em Itaipava, no Rio de Janeiro, abriu uma

empresa de comunicação científi ca e peregrina pelo país fazendo workshops que orientam pesquisadores a escrever trabalhos científi cos – em inglês.

Para Elizabeth Balbachevsky, pro-fessora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofi a, Le-tras e Ciências Humanas (FFLCH), da USP, a opção brasileira de investir no fortalecimento de seu sistema de pós-graduação, embora bem-sucedida, pro-duziu um efeito colateral importante, que é a baixa inserção internacional da pesquisa brasileira. Ela participa de uma rede que estuda a profi ssão acadê-mica em 19 países. Segundo os dados que obteve no Brasil, apenas 21,8% dos profi ssionais brasileiros entrevistados declararam ter participado de colabo-rações de pesquisa internacionais nos últimos três anos, índice considerado baixo. Esse índice sobe para 37,6% entre os professores ligados às gran-des universidades de pesquisa, onde a pós-graduação é forte, mas que respon-de por apenas 18 instituições no Brasil. “Embora um número crescente de arti-gos de pesquisadores brasileiros seja pu-blicado em revistas indexadas interna-cionalmente, o trabalho em rede ainda é restrito. Se houvesse uma mobilidade de talentos mais acentuada, provavelmente isso seria diferente”, afi rma.

Um desses efeitos benéfi cos regis-trados em alguns países tradicio-nalmente atingidos pela fuga de

cérebros é a ampliação do investimento das famílias em educação. Há indícios de que a perspectiva da obtenção de um visto de permanência num país desenvolvido estimula mais pessoas

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 33

30-35_Fugadecerebros_152.indd 3330-35_Fugadecerebros_152.indd 33 30.09.08 21:48:0230.09.08 21:48:02

Page 32: A hora da política

em países pobres a investir em edu-cação. Como nem todos os aspirantes efetivamente vão embora, o saldo fi -nal é positivo para o país. Num arti-go publicado em 2006 numa revista da britânica Royal Economic Society, o trio de economistas Michel Beine, Frederic Docquier e Hillel Rapoport apresentou os resultados de um mode-lo matemático abastecido por taxas de imigração e pelo nível educacional de vários países. Eles fi zeram as contas e chegaram à conclusão de que, quando se dobra a propensão de migração de pessoas bem formadas num determi-nado país, observa-se um aumento de 5% na proporção com elevado nível de escolaridade entre a população na-tiva. No caso da Índia, segundo artigo publicado em 2007 pelos economistas Chengze Fan, da Universidade Lingnan, em Hong Kong, e Oded Stark, a chance de migrar para os Estados Unidos pa-ra estudar engenharia de computação teria levado muitos jovens indianos a aprender programação, criando uma plataforma de competências que per-mitiu ao país criar um forte setor de software. Mas esse efeito dependeria de um nível de imigração “ótimo”, além do qual as perdas causam prejuízos difíceis de compensar e abaixo do qual não se geraria o estímulo a ampliar a formação geral da população.

A idéia de que a fuga de cérebros seria inapelavelmente prejudicial partia da premissa de que cada

talento representa um ativo de capital humano, cuja formação e qualifi ca-ções resultam de investimentos feitos por um país. A migração, segundo tal perspectiva, aborta irremediavelmente a expectativa de retorno do investimento realizado. De acordo com o sociólogo francês Jean-Baptiste Meyer, um des-tacado especialista em mobilidade de talentos, a abordagem do capital huma-no é falha por contemplar apenas uma das variáveis do fenômeno. Ele lembra que a sociologia da ciência desenvol-veu uma concepção dos processos de criação, transmissão e aplicação do co-nhecimento que é calcada no trabalho coletivo, com ênfase no papel das redes e das comunidades científi cas. “As ati-vidades e habilidades individuais ape-nas fazem sentido ou geram resultados quando vinculadas às comunidades às

quais são ligadas”, diz Meyer. De acordo com ele, isso é facilmente observado nos exemplos de cientistas que voltam aos países de origem para amargar o sucateamento de suas competências, pois suas habilidades estão desconecta-das do ambiente em que obtiveram seu desempenho máximo. Cálculos feitos por Meyer e pela socióloga sul-africana Mercy Brown mostram que a produti-vidade do setor de pesquisa e desenvol-vimento da chamada Tríade (Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão) era 4,5 vezes maior em termos de artigos publicados e dez vezes maior em ter-mos de patentes do que o mesmo setor no mundo em desenvolvimento. “Esse é um grande problema do conceito de fuga de cérebros”, diz Elizabeth Balba-chevsky, da USP. “Ele parte do princípio de que a formação de um doutor é uma aquisição estática, que o profi ssional conquistou um pacote estanque de conhecimento e de competências. Na verdade, esse patrimônio é dinâmico. Para mantê-lo e aperfeiçoá-lo, é preciso estar num ambiente de pesquisa favorá-vel, caso contrário aquela competência se perderá”, afi rma.

Jean-Baptiste Meyer tornou-se um dos principais defensores das poten-

cialidades das opções de retorno, que busca atrair de volta profi ssionais emi-grados, e de diáspora, que tenta engajar a distância os pesquisadores dispersos no exterior com o sistema de ciência e tecnologia de seu país de origem. “Co-mo a capacidade dos emigrados é pri-vilegiada, eles representam um enorme potencial de adicionar recursos para o país de origem”, conclui Meyer. “Isso caso se consiga trazê-los de volta em condições favoráveis ou aproveitá-los de alguma outra forma. Nesse caso, a perda de cérebros se converteria em ga-nho, pois o país em desenvolvimento se apropriaria de um capital humano cujo treinamento foi feito e fi nanciado em outro país, que seria capaz, eventual-mente, de se tornar um multiplicador do conhecimento de ponta que obteve no exterior”, afi rma.

Países como Cingapura, Coréia do Sul e Índia conseguiram atrair de vol-ta uma parte dos cérebros perdidos. Programas de repatriação de talentos foram defl agrados desde os anos 1980, que criaram redes locais nas quais os egressos puderam efetivamente en-contrar um lugar e se tornarem ope-racionais. Os exemplos de maior êxito são o de nações que investem quantias signifi cativas em ciência e tecnologia e dispõem de infra-estrutura capaz de abrigar os egressos. O problema é que tais requisitos não se reproduzem em

34 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

30-35_Fugadecerebros_152.indd 3430-35_Fugadecerebros_152.indd 34 30.09.08 21:48:0330.09.08 21:48:03

Page 33: A hora da política

países mais pobres. Para estes, haveria a opção da diáspora, baseada na estra-tégia de envolver pesquisadores radica-dos no exterior em redes voltadas para ajudar o desenvolvimento da ciência e da economia de sua terra natal.

As redes de diáspora baseiam-se na premissa segundo a qual é possível aproveitar, mesmo que de forma remo-ta, o capital humano dos profi ssionais que emigraram. A vantagem é que elas não dependem de um investimento em infra-estrutura, mas de utilizar recursos já existentes. Seu objetivo é criar elos através dos quais elas consigam se co-nectar com o país de origem sem que precisem voltar de modo temporário ou permanente. Esse tipo de parceria a distância é hoje possível, como de-monstra a proliferação de projetos de pesquisa colaborativa transnacionais, envolvendo tanto instituições acadê-micas como corporações industriais. A South African Network of Skills Abroad (Sansa), criada em 1998, é um exemplo de rede ativa. Seu objetivo é conectar sul-africanos altamente qualifi cados radicados no exterior com seus con-terrâneos a fi m de criar um ambiente para colaboração e transferência de co-nhecimento. Tem mais de 2,2 mil mem-

Na prática, a distinção entre as op-ções de retorno e de diáspora nem sem pre respeita limites traçados pela teo ria e aparecem em formas com-binadas. Num artigo publicado no início deste ano, Anna Lee Saxenian, professora da Universidade da Califór-nia, Berkeley, explora o exemplo dos pesquisadores formados no Vale do Silício, nos Estados Unidos, e mostra que é possível, através da mobilidade de talentos, transferir know how téc-nico e institucional entre economias distantes de modo rápido e fl exível. Em 2000, cerca da metade dos cientistas e engenheiros do Vale do Silício era es-trangeira – juntos, eles somavam 40 mil profi ssionais em 2000, segundo o Censo norte-americano daquele ano.

Segundo Anna, existem exemplos de pesquisadores formados no Vale do Silício que foram responsáveis por con-tribuições notáveis no estreitamento de laços tecnológicos entre seus países e as economias mais avançadas. Muitos des-ses talentos viajam regularmente entre os Estados Unidos e sua terra natal e há os que se tornaram “transnacionais” e mantêm endereço em mais de um lu-gar. No início dos anos 1980, israelenses e taiwaneses que se formaram no Vale do Silício retornaram a seus países e começaram a transferir o modelo nor-te-americano de investimento de risco em empresas nascentes. Eles tinham experiência técnica, conhecimento em modelos de negócio e redes de contato – que se somaram à vantagem de co-nhecer a cultura desses mercados.

Israel tornou-se conhecido por criar empresas de software e de inter-net. Taiwan tornou-se um centro de produção de computadores pessoais e de circuitos integrados. Não por acaso, esse processo foi mais rápido em países pequenos do que em economias mais complexas, como as da China e da Ín-dia. Contudo, segundo a pesquisadora, a partir de 2004 fundos de venture capital e private equity começaram a investir mais de US$ 1 bilhão anualmente em empresas localizadas nos dois grandes países emergentes. “Embora seja apenas uma fração do capital de risco investido anualmente nos EUA, isso fomenta o empreendedorismo local e vem criando uma trajetória competitiva para empre-sas domésticas e corporações multina-cionais”, diz a professora. ■

bros espalhados por 60 países. A rede foi criada pelo Science and Technology Policy Centre na Universidade de Cape Town e é hoje gerenciada pela National Research Foundation, organização de pesquisa mantida pelo governo.

H á diversos outros exemplos como a Chinese Scholars Abroad (Chisa), a Red Caldas, rede colombiana de

cientistas e profi ssionais de pesquisa, a Arab Scientists and Technologists Abroad (Asta) e a Silicon Valley In-dian Professionals Association (Sipa). Embora geralmente se apresentem co-mo independentes, muitas delas têm ligações com instituições do governo. Mas Meyer e Brown advertem que há poucos exemplos de redes remotas criadas por países em desenvolvimento que conseguiram alcançar uma con-solidação. A hipótese mais provável é que pesquisadores e cientistas, atuando lado a lado num mesmo laboratório ou trabalhando remotamente por meio de uma rede internacional, precisam identifi car relevância na pesquisa co-laborativa para começar a interagir, o que nem sempre acontece com as he-terogêneas redes de diáspora. Por isso, países em desenvolvimento devem ser realistas acerca do impacto e usar essa opção de diáspora de forma combinada com outras políticas.

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 35

30-35_Fugadecerebros_152.indd 3530-35_Fugadecerebros_152.indd 35 10/1/08 4:35:17 PM10/1/08 4:35:17 PM

Page 34: A hora da política

PLANEJAMENTO

A US

P do

futu

roUniversidade discute estratégias para preservar a excelência em seu centenário, daqui a 25 anos

>

Deve ser apresentado em janeiro de 2009, nas comemorações do 75º aniversário da Universidade de São Paulo (USP), um do-cumento com um diagnóstico dos desa-fi os que a instituição terá nos próximos 25 anos além de refl exões e propostas para enfrentá-los. Sugestões para o documento

foram discutidas num workshop aberto ao público realizado no início de setembro e será complementa-do com um novo evento em meados de outubro. No encontro inaugural, uma das discussões principais girou em torno das estratégias para manter a USP como universidade de classe mundial. “As condições que permitiram à universidade conquistar essa po-sição estão mudando. Ela precisará enfrentar vários desafi os para não correr o risco de perder relevância”, diz Glaucius Oliva, diretor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) e coordenador da Comissão de Planejamento da USP, a instância incumbida de refl etir sobre os próximos 25 anos da instituição. “Temos como meta atingir a faixa das 50 melhores universidades do mundo em 2034”, afi rma. Atual-mente, rankings internacionais situam a USP no rol das cem melhores do planeta.

Para Glaucius Oliva, o planejamento da USP nos próximos anos deve levar em conta o papel que a instituição tem no sistema de ensino superior do

MIG

UE

L B

OY

AY

AN

36-37_Usp_152.indd 3636-37_Usp_152.indd 36 30.09.08 21:52:1830.09.08 21:52:18

Page 35: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 37

mas só na gestão atual foi constituída. Se o planejamento de curto e de mé-dio prazo vem sendo garantido pelos planos de metas das unidades e pela comissão permanente de avaliação, faltava uma instância que pensasse o futuro da instituição. “O aniversário de 75 anos despontou como uma boa oportunidade para fazer uma pros-pecção sobre o que a USP planeja ser em seu centenário”, diz a reitora Suely Vilela. Ela ressalta que o documento a ser compilado pela comissão busca dar subsídios para auxiliar os próximos dirigentes. Mas se propõe a enfrentar logo pelo menos um grande desafi o da universidade: a burocracia concentrada na reitoria. “Eu defendo o modelo atual da USP em vários aspectos. Creio que a instituição deve prosseguir como uma universidade de classe mundial, com pesquisa de fronteira, e que o modelo acadêmico dividido em pró-reitorias é o mais adequado. Mas é preciso descen-tralizar”, afi rma a reitora. “Temos seis campi no estado. Qualquer obra que precise ser feita em algum deles tem de passar pela reitoria. Acontece o mesmo com a assessoria jurídica, fortemente concentrada em São Paulo. Qualquer problema se transforma num processo que precisa viajar até São Paulo. A saída é defi nir normas para orientar a ação dos dirigentes e delegar a eles a tarefa de resolver diversos problemas”, afi rma.

Entraves legais - A Comissão de Pla-nejamento não está se furtando a dis-cutir nenhum tema, embora se saiba que vários deles são de difícil solução. Há entraves legais, por exemplo, para reduzir barreiras burocráticas ou ofe-recer pacotes variáveis de remuneração para professores. “Um primeiro pas-so é ampliar a transparência nos gas-tos”, diz Oliva. “Se eu preciso comprar um reagente sem fazer licitação para minha pesquisa não parar, eu devo fazê-lo e logo tornar público porque isso é necessário. Se formos fi rmes e transparentes, teremos respaldo para

propor a mudança de normas legais que embaraçam a pesquisa”, diz Oliva. Para Carlos Antônio Luque, professor da Faculdade de Economia, Adminis-tração e Contabilidade e membro da Comissão de Planejamento, a USP deveria tomar a iniciativa de propor uma lei que regulamente a autonomia universitária, prevista na Constituição, mas jamais esmiuçada na legislação comum. “Apesar de a autonomia estar garantida, temos de nos adequar ao regimento do funcionalismo público e à Lei de Responsabilidade Fiscal. A falta de uma legislação faz com que o Ministério Público e o Tribunal de Contas estejam sempre nos interpe-lando”, afi rma Luque.

O ensino a distância é outro tópico em aberto. A comunidade acadêmica da USP resiste em incorporá-lo às suas práticas, por considerar difícil manter a mesma qualidade do ensino presencial. A comissão está discutindo, contudo, a oportunidade de investir no ensino a distância de forma delimitada pelo me-nos para garantir o desenvolvimento de expertise na universidade, que pode ter utilidade no futuro. A busca de novas fontes de fi nanciamento é outra ques-tão polêmica, embora haja consenso na comissão sobre a necessidade de buscar também fontes privadas. “A autono-mia universitária nos garantiu recursos públicos que são absolutamente indis-pensáveis para manter a excelência da universidade”, diz a reitora Suely Vilela. “Todas as universidades de classe mun-dial dependem fortemente de recursos públicos, mas também se abastecem de fontes privadas.” De acordo com a rei-tora, a interação com o setor privado é necessária para enfrentar uma difi -culdade da instituição, que é transferir conhecimento para a sociedade. “Há um descompasso entre o aumento da produção científi ca e a estagnação dos indicadores ligados à transferência tec-nológica”, diz a reitora. ■

estado de São Paulo e do Brasil, além de buscar responder a demandas da socie-dade, embora uma coisa nem sempre seja compatível com a outra. “Há uma crescente pressão para ampliar o nú-mero de vagas, mas a característica de universidade de pesquisa com ensino de excelência impõe limites a isso”, diz Oliva. O professor observa que, além de a USP oferecer formação acadêmica de nível internacional e realizar intensa atividade de pesquisa na fronteira do conhecimento, um maior engajamento da universidade no desenvolvimento econômico, com uma preocupação maior com as necessidades das in-dústrias e no apoio à formulação de políticas públicas, ajudará a mostrar à sociedade o papel diferenciado que ela é capaz de cumprir. “A USP não pode se fechar e pensar seu futuro de forma isolada. Ela integra uma engrenagem complexa que congrega mais de 2 mil instituições de ensino superior do país e o que ela faz tem repercussão em vários pontos do sistema. Precisa se comunicar melhor com a sociedade para garantir respaldo e manter sua excelência”, sus-tenta Oliva.

O diagnóstico preliminar feito no primeiro workshop apontou um cal-canhar-de-aquiles da instituição, que é a sua ainda restrita inserção interna-cional. “As melhores universidades do mundo estão bastante integradas inter-nacionalmente. Brigam para trazer alu-nos e recursos de fora para reforçar sua competitividade. A USP precisa entrar nessa briga”, diz Oliva. Ele cita o exem-plo de seu instituto, que há alguns anos celebrou uma parceria com a Escola Po-litécnica de Paris para intercâmbio de estudantes. “Sete brasileiros já foram estudar na França, mas nenhum francês veio para cá. Isso acontece porque nós ainda não vamos nos expor no exte-rior, como a maioria das instituições faz hoje”, diz o professor.

A comissão presidida por Glau-cius Oliva estava prevista no estatuto da universidade, em vigor desde 1988, Fabrício Marques

36-37_Usp_152.indd 3736-37_Usp_152.indd 37 30.09.08 21:52:2330.09.08 21:52:23

Page 36: A hora da política

38 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

Cópias criativasMEDICAMENTOS

Cópias criativasElaborar moléculas que mimetizam outras poderia facilitar a procura por fármacos realmente originais

Dez anos atrás uma indústria farmacêutica multinacional, a Pfi zer, começava a vender o primeiro medicamento contra impotência sexual, o Viagra, descoberto por pesquisadores ingleses e inicialmente ima-

ginado como alternativa para tratar doenças do coração. As pílulas azuis chegavam com a iminência de lucros rápidos e um mecanismo de ação já esclarecido, que permitiu a duas ou-tras representantes da big pharma, a Bayer e a Lilly Icos, lançarem nos anos seguintes moléculas similares com o mesmo efeito. Agora é uma indústria nacional, o laboratório paulista Cris-tália, que entrou no páreo com uma molécula que tem o mesmo modo de ação que as outras três. Sua história po-de ter o que ensinar a quem pesquisa, desenvolve ou simplesmente consome fármacos no Brasil.

Ainda que não seja um primor de originalidade, por reproduzir em outra molécula o mesmo mecanismo de ação que o Viagra, esse fármaco é o primeiro a percorrer no Brasil o percurso com-pleto de desenvolvimento de novos me-dicamentos – a concepção, os testes em modelos animais e em seres humanos e a aprovação nos órgãos regulatórios. Moléculas desse tipo, chamadas de me-toos por conterem inovações menores ou incrementais, nascidas a partir de um medicamento com inovações ra-dicais, sugerem que seguir caminhos já abertos pode ser uma forma de ga-nhar fôlego e experiência que poderiam

Carlos Fioravanti

levar a projetos mais longos, caros e realmente originais. Podem, ainda, re-presentar uma nova estratégia de ação para a indústria farmacêutica nacional, que sobreviveu da cópia livre de me-dicamentos até 1997, quando a lei de patentes começou a vigorar também para fármacos, e desde 1999 vem enfa-tizando a produção de genéricos.

Os me-toos representam um cami-nho rápido e de custos relativamente baixos. A cópia criativa do Viagra, que ganhou o nome comercial de Helleva, consumiu sete anos de trabalho e um investimento em reais não divulgado. Mas certamente menos que os 15 a 20 anos e os US$ 800 milhões que as em-presas farmacêuticas consideram como o mínimo atualmente necessário para descobrir, testar e aprovar um novo re-médio. Fazer moléculas não exatamen-te iguais, mas estruturalmente muito semelhantes a outras já conhecidas, não é, porém, tão simples, principalmente para quem as faz pela primeira vez. Implica capacidade de planejamento, habilidade para encontrar brechas nas patentes das moléculas originais e mui-to suor para identifi car e reunir pesqui-sadores, médicos e estatísticos aptos a fazer todos os testes que a autoridade regulatória – no Brasil, a Agência Na-cional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – exige para liberar para venda.

“Algumas indústrias e grupos de pesquisa querem fazer moléculas re-volucionárias, mas não dá”, diz o farma-cologista Gilberto De Nucci, professor da Universidade de São Paulo (USP) e

da Estadual de Campinas (Unicamp), que selecionou a molécula brasileira que mais se assemelhava ao Viagra. “Temos de aprender a fazer me-toos antes de fazer compostos efetivamente novos”, acredita. Essas moléculas ofere-cem poucos riscos de fracasso ao tomar forma a partir de mecanismo de ação já comprovado e entram em mercados já formados. “Os me-toos chegam com pedigree, porque já foram selecionados.” A expressão me-too (“eu também”) car-rega uma conotação negativa, embora as moléculas desse gênero possam tam-bém incentivar a competição e fazer os preços caírem, como se passou com o Ciallis, da Lilly, e o Levitra, da Bayer, que derrubaram as vendas do Viagra à metade, depois de terem atingido US$ 1 bilhão entre 1999 e 2001.

Ogari Pacheco, presidente do conse-lho de administração do Cristália, dis-corda do conceito de me-toos, diz que não chamaria o Ciallis e o Levitra de me-toos, por serem moléculas originais, mas concorda que seguir a estrutura de um composto mais conhecido é “o caminho mais fácil, mais rápido e mais lógico” para a indústria farmacêutica nacional criar reservas fi nanceiras e investir em coisas realmente novas: “É impossível para qualquer laboratório ter só pro-dutos inovadores”, afi rma. Ele sabia que nem tudo seria tão fácil e rápido ao decidir em 2001 “mimetizar o efeito da droga-mãe”, como diz. Era a primeira vez na história da empresa que ajudou a criar em 1974 que ele se dispunha a se-guir todas as etapas do desenvolvimen-

>

FOT

OS

MIG

UE

L B

OY

AY

AN

38-41_metoo_152.indd 3838-41_metoo_152.indd 38 30.09.08 21:56:1730.09.08 21:56:17

Page 37: A hora da política

38-41_metoo_152.indd 3938-41_metoo_152.indd 39 30.09.08 21:56:1730.09.08 21:56:17

Page 38: A hora da política

40 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

to de um fármaco – concepção, testes pré-clínicos e clínicos, patenteamento e aprovação pelos órgãos regulatórios. Pacheco e sua equipe de desenvolvi-mento tiveram de aprender as regras do jogo e encontrar especialistas para fazer os testes que demonstrassem que a molécula sintetizada por eles era segura e efi caz contra disfunção erétil.

Sobrevivência - Antonio Carlos Mar-tins de Camargo, diretor do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), sediado no Instituto Butantan, classifi ca as em-presas farmacêuticas em dois tipos: as que inovam e as que copiam. A equipe que ele dirige descobriu e patenteou 12 moléculas que poderiam ajudar a tratar doenças cardiovasculares, hipertensão pulmonar, pré-eclâmpsia e Alzheimer, se passarem por todos os testes em mo-delos animais e em seres humanos. Ca-margo reconhece, porém, que as cópias criativas têm valor do ponto de vista prático, por favorecer a sobrevivência das empresas.

“Enfrentamos muitos preconceitos”, conta Jorge Afi une, diretor médico da Cristália. “Durante boa parte do desen-volvimento fomos vistos como uma versão tupiniquim de um laboratório que se pretende capaz de fazer alguma coisa nova.” Alba Brito, farmacologista da Unicamp que participa há quase 30 anos das etapas iniciais do desenvolvi-mento de novos medicamentos, enume-ra quatro dogmas: fazer medicamentos é coisa para multinacionais; é caro; não é para amador; não temos experiência. “Os dogmas barram qualquer iniciativa independente e na indústria nacional não há quem banque a briga, porque pode ser que dê em nada”, diz.

Rahim Rezaie e Sarah Frew, pesqui-sadores da Universidade de Toronto, Canadá, que visitaram o Brasil para examinar as perspectivas de interação entre empresas e centros de pesquisa públicos, contam em artigo publicado em junho na Nature Biotechnology que os próprios empresários atribuíam os escassos projetos conjuntos à idéia de que tudo que era bom era feito fora do país. Rezaie considera esse preconceito compreensível, “em vista da natureza crescentemente global da biotecnolo-gia e das especialidades exigidas”, mas também estranhou, porque, para ele, os empreendedores poderiam buscar

soluções primeiro na própria vizinhan-ça. Dar mais atenção ao global que ao local é uma das características do que o historiador norte-americano George Basalla chamou de “cientista colonial” em artigo na Science sobre a produção de conhecimento científi co.

Rezaie acredita que a permanência dessas idéias contribui para a divergên-cia dos setores público e privado: “Há núcleos de excelência, que permanecem desconhecidos, principalmente pela co-munidade empresarial”.

Em 2001, no mesmo ano em que farmacologistas do Cristália e da USP selecionaram o carbonato de lodenafi la como a molécula que mais se asseme-lhava ao sidenafi l do Viagra, começaram os testes em camundongos, ratos e cães que mostraram que o novo composto apresentava uma toxicidade aceitável, além das propriedades farmacológicas desejadas. Uma das lições aprendidas dessa fase inicial: “Nem tudo precisa ser feito no Brasil”, diz De Nucci, que coordenou parte desses estudos, feitos parcialmente na França.

Em outubro de 2004 começou uma etapa mais difícil, a dos testes clínicos (em seres humanos), carente de pro-fi ssionais experientes. Marco Antonio Zago, professor da USP e presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimen-to Científi co e Tecnológico (CNPq), defendia já em 2004, em um artigo publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva, o fortalecimento da pesquisa clínica no Brasil, por meio da criação, expansão ou recuperação de centros de pesquisa médica. “Certamente as instituições médicas e universitárias precisam reavaliar suas relações com a indústria, no sentido de atender ao interesse público”, comentou.

Foi De Nucci quem coordenou a primeira fase dos testes com o espelho brasileiro do Viagra em 33 voluntá-rios saudáveis. A etapa seguinte, que avaliou a efi cácia do composto em 72 homens com disfunção erétil, ocorreu em três hospitais públicos, sendo dois deles universitários, sob a coordenação da equipe do Cristália. Para conquistar os médicos que haviam avaliado me-dicamentos criados em outros países e poderiam também participar desse novo teste, Afi une podia agora argu-mentar, não apenas pedir ou contratar os serviços, mostrando os resultados dos

38-41_metoo_152.indd 4038-41_metoo_152.indd 40 30.09.08 21:56:1930.09.08 21:56:19

Page 39: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 41

testes que já haviam sido feitos com a molécula que inibia a mesma enzima, a fosfodiesterase-5, sobre a qual o Viagra atua. O equivalente nacional começava a acumular credibilidade científi ca. Já os testes da fase seguinte, com 350 portado-res de disfunção erétil atendidos em 12 centros médicos, sob a coordenação de uma empresa brasileira especializada em testes clínicos, terminaram em dezembro de 2006 com resultados positivos. Mos-traram que a molécula nacional tinha os mesmos efeitos colaterais que o Viagra e seus equivalentes, com vermelhidão na face e leve obstrução nasal.

Competências - Os testes clínicos também deixaram lições. A primeira e mais óbvia é que existem competên-cias dispersas nos centros de pesqui-sa nacionais, embora seja necessário “mais rigor documental”, sugere Afi u-ne: “Diferentemente de uma pesquisa puramente acadêmica, a pesquisa clí-nica de um candidato a medicamento precisa ser muito bem documentada, deve ter uma rastreabilidade absoluta”. Mais uma lição? Planejar os testes em conjunto com todos os profi ssionais envolvidos ajuda a evitar erros. Por fi m: para não colher dados a mais ou a me-nos e prejudicar as análises, “é muito importante ter um estatístico ao lado desde a concepção do protocolo”.

Durante a etapa fi nal, a análise e aprovação do novo medicamento na Anvisa, Pacheco conta que notou o “descompasso entre a demanda e a ca-pacidade de resolução de problemas” ao longo de um processo que fez a em-presa enviar 70 quilos de documentos à agência. “É despreparo da agência regu-latória em julgar esse tipo de processo, não creio que seja má-fé”, observa De Nucci. “Tem pouca gente qualifi cada para avaliar medicamento novo no Bra-sil.” Pacheco recebeu em 2006 a patente do novo fármaco nos Estados Unidos, em 2007 a da Europa e continua à es-pera da brasileira, solicitada em 2003, como a dos Estados Unidos.

O laboratório paulista pretende agora disputar a preferência do 1,7 milhão de homens que tomam medi-camentos contra disfunção erétil com um medicamento nacional que deverá custar 30% menos (a versão indiana do Viagra custa 10% da original). Não há, porém, garantia de lucros fáceis.

Em um estudo publicado em 2001 na Research Policy, Basil Achilladelis e Ni-cholas Antonakis, da Universidade de Atenas, Grécia, estudaram a origem e o resultado comercial de 1.736 novos me-dicamentos lançados de 1800 a 1990. Verifi caram que 65% das inovações radicais são um sucesso comercial, as inovações intermediárias (me-better, algo como “cópia melhorada”) apre-sentam um desempenho também in-termediário e que a maioria das inova-ções incrementais (me-toos) fracassam comercialmente por não conseguirem espaços próprios em mercados com-petitivos. As reais inovações analisadas nesse trabalho concentravam-se em cinco países (Estados Unidos, Alema-nha, Suíça, Reino Unido e França), que respondem por 80% das novidades que fazem diferença.

Outro ganho da empresa ao fazer o Helleva é o fato de, agora, se tornar modelo para si própria. “O que apren-demos poderá ser usado em outros projetos”, diz Afi une. Segundo ele, a empresa trabalha no desenvolvimento de 26 novas moléculas, das quais 14 são incrementais ou me-better, com melho-rias em relação à original, e 12 radi-cais, incluindo uma contra enfarte. “O pessoal de pesquisa do Cristália gosta de desafi os, porque veio da universi-dade”, afi rma a farmacologista Regina Scivoletto, professora aposentada da USP e presidente do conselho científi -co da companhia. No início deste ano a empresa sediada em Itapira (SP) foi uma das ganhadoras do Prêmio Finep de Inovação Tecnológica.

As lições podem servir para outras empresas criarem me-toos e ganharem fôlego para tentar moléculas originais, afi rma Henry Suzuki, diretor técnico da Incrementha, laboratório que reúne os esforços de pesquisa e desenvolvimento de duas empresas nacionais, a Biolab e a Eurofarma. “Existe agora um esforço para desenvolver um portfólio próprio, com pesquisa e desenvolvimento mais consistentes e titularidade da proprie-dade intelectual”, diz. Poderia também ser uma estratégia para desenvolver me-dicamentos contra doenças negligencia-das, como malária, tuberculose, leish-maniose e hanseníase, cuja incidência ainda é elevada no Brasil. “Se houver garantia de escoamento”, diz Pacheco, “posso produzir, sem problemas”. ■

38-41_metoo_152.indd 4138-41_metoo_152.indd 41 30.09.08 21:56:2030.09.08 21:56:20

Page 40: A hora da política

DIFUSÃO

O espectro do

Exposição revela a vida e a contribuição de Albert Einstein, o cientista símbolo do século XX

Depois da exposição Revolução genômica, que esteve em car-taz entre fevereiro e julho, o Pavilhão Armando de Arruda Pereira, no Parque do Ibira-puera, em São Paulo, abriga até dezembro mais uma mos-

tra do Museu Americano de História Natural. Agora é a vez da vida, das teo-rias e do universo de um dos maiores cientistas de todos os tempos, o físico alemão radicado nos Estados Unidos Albert Einstein (1879-1955). Inaugu-rada em Nova York em 2002 e vista por mais de 2 milhões de pessoas em vários países, a exposição Einstein apresen-ta objetos pessoais, fotos, cópias de cartas e manuscritos do pai da Teoria da Relatividade. O Instituto Sangari, responsável pela vinda da exposição, espera uma audiência entre 300 e 400 mil visitantes apenas na capital pau-lista. A mostra deve percorrer várias cidades brasileiras.

O roteiro da exposição contempla dez blocos temáticos, em que se mes-clam aspectos biográfi cos e acadêmicos do cientista. A seção “Vida e tempo” aborda a vida pessoal e a carreira de Einstein . Em “Luz” o destaque é uma instalação que desafi a o visitan-te a atravessar uma sala cortada por feixes de luz sem tocá-los – Einstein ganhou o Nobel da Física de 1921 em reconhecimento à explicação do efeito fotoelétrico. O bloco “Tempo” é dotado de instalações que exploram o conceito de relatividade do tempo. “Átomos” traz as idéias que abriram as portas da física quântica. Em “Energia” o mote é a equação (E = mc2) com a qual Eins-

tein deduziu a relação entre energia e massa. No bloco “Gravidade”, uma projeção cuja imagem se deforma com a gravidade de quem se aproxima dela, é usada para ilustrar a Teoria da Rela-tividade Geral. “Guerra e paz” explora as preocupações pacifi stas do cientista em relação ao uso da energia nuclear. “Cidadão global” apresenta o engaja-mento de Einstein contra a segregação e o anti-semitismo e na defesa dos di-reitos humanos. A seção “Legado” reú-ne os campos de pesquisa abertos pelos trabalhos de Einstein, da evolução do Universo à tecnologia.

Mistura étnica - Por fi m, a ala “Eins-tein no Brasil” narra a sua viagem à América Latina em 1925, expõe obje-tos pessoais e ainda mostra um retrato pintado por Candido Portinari e um boneco do Carnaval pernambucano representando o cientista. Trechos dos diários de Einstein são apresentados, incluindo anotações sobre sua visita ao Rio de Janeiro: “Deliciosa mistura étnica nas ruas. Portugueses, índios e negros em todos os cruzamentos. Es-pontâneos como plantas, subjugados pelo calor. Experiência fantástica. Uma indescritível abundância de impressões em poucas horas”, escreveu. De pas-sagem pelo Jardim Botânico, ele fez o seguinte comentário: “O problema que minha mente formulou foi respondido pelo luminoso céu do Brasil”. Referia-se a uma observação do eclipse solar registrada na cidade cearense de Sobral por equipe de cientistas ingleses. A ob-servação mostrou que a gravidade do Sol agia como uma lente, desviando a

luz das estrelas distantes que apare-ciam no céu em posições diferentes das originais. Era a confi rmação de uma previsão feita por Einstein no ano de 1916, corroborando a Teoria da Rela-tividade Geral.

As seções “Átomos” e “Einstein no Brasil” são exclusivas da versão brasileira da mostra. Segundo o coor-denador-geral da exposição, Marcelo Knobel, professor do Instituto de Fí-sica Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e di-retor científi co do Instituto Sangari, a exposição recebeu outras adaptações e acréscimos. “Os painéis interativos fo-ram elaborados pela equipe brasileira. Além disso, praticamente todos os tex-tos foram recriados”, afi rmou. “A expo-sição é voltada não só para quem gosta de física, mas também para quem se in-teressa por saber mais sobre o mundo em que vivemos. A idéia não é levar o visitante a dominar conceitos da física, mas que saia com número ainda maior de perguntas, estimulado a saber mais”, destacou Knobel. A comissão científi ca incumbida da adaptação foi formada por Carmen Pimentel Cintra do Prado, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), Nelson Studart, do Departamento de Física na Universida-de Federal de São Carlos (UFSCar), e Alfredo Tomalsquim, diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afi ns (Mast), no Rio de Janeiro.

Escolas e grupos de estudantes po-derão agendar visitas monitoradas por educadores. A exposição oferece um curso gratuito para professores, no qual são fornecidos subsídios teóricos para

>

gênio

42 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

42-43_Exposicao_152.indd 4242-43_Exposicao_152.indd 42 30.09.08 21:58:2930.09.08 21:58:29

Page 41: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 43

a preparação das visitas com os alunos e para o trabalho em sala de aula. No percurso da mostra foram montados dois Laboratórios do Aprendizado, nos quais os estudantes poderão par-ticipar de atividades que abordam al-guns dos conceitos apresentados. Um dos laboratórios permite ver, com o auxílio de microscópios, o movimen-to browniano, evidência experimental da existência dos átomos descrita por Einstein em 1905. No outro laboratório são exploradas as propriedades da luz, por meio de experimentos de espectros-copia óptica.

Em colaboração com o Instituto Sangari, a revista Pesquisa FAPESP está responsável pela programação cultural paralela à exposição. Serão palestras e debates com físicos e pesquisadores de outras áreas. Os sábados trarão mesas-redondas com o tema “O tempo em dois tempos”. Nelas, um físico e um pesquisador de diversas áreas de hu-manas falarão sobre a noção do tempo em sua especialidade. Na série “Muito além da relatividade”, aos domingos, físicos e escritores especializados em física nacionais ou internacionais abordarão aspectos pouco conhecidos sobre a vida, o contexto histórico ou a obra de Einstein. As palestras e de-bates acontecerão no auditório junto à exposição, nos sábados às 15h e nos domingos às 11h. Assim que defi nida, a programação será anunciada no ende-reço www.revistapesquisa.fapesp.br. A partir de novembro, Pesquisa FAPESP trará reportagens sobre as palestras e os debates, cujas íntegras também esta-rão disponíveis no site da revista. ■FO

TO

S E

DU

AR

DO

CE

SA

R

42-43_Exposicao_152.indd 4342-43_Exposicao_152.indd 43 30.09.08 21:58:3130.09.08 21:58:31

Page 42: A hora da política

44 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

LABORATÓRIO MUNDO>>

Quando o time sofre

uma derrota, a torci-

da pede a cabeça do

técnico. Nem sempre

adianta. A entrada de

um novo treinador ra-

ramente resolve os

problemas, segundo

estudo conduzido por

pesquisadores da Mid

Sweden University. A

equipe de Leif Arnes-

son analisou a substi-

tuição de treinadores e

os resultados dos jogos

da série de elite sueca

de hóquei sobre o gelo

em 360 temporadas,

entre 1975 e 2006. No

período, 128 técnicos

foram substituídos.

“Em todos os casos

foi um erro trocar o

técnico”, diz Arnesson.

De acordo com o pesquisador,

a substituição raramente re-

solve o problema. A mudança

prejudicou os times quando era feita no decorrer do campeonato,

pois custa à equipe se adaptar ao novo treinador. “Quando se

pensa em contratar um novo técnico, deve-se ao menos evitar

mexer durante a temporada”, afi rma. Segundo os pesquisadores,

os achados também se aplicam a outros esportes praticados em

equipe, como o futebol (Swedish Research Council).

O A

DIA

NTA

MU

DA

R O

CN

ICO > Bach, para

ser visto

Foi necessário um século para que a música do maior compositor do período barroco – e, para muitos, o maior de todos os tempos – se tornasse conhecida. E mais tempo ainda para que se tivesse uma idéia mais precisa da aparência de Johann Sebastian Bach, o gênio das fugas e cantatas. Nascido em 1685 em Eisenach, na Alemanha, Bach compôs cerca de 1.100 obras, mas, dizem, deixou-se retratar só uma vez. Agora especialistas em arte forense desvendaram sua provável aparência. O grupo de Caroline Wilkinson, da Universidade de Dundee, na Escócia, reconstituiu a face de Bach a partir de um molde em bronze do crânio do compositor cedido pelo Museu Bachhaus. “Fizemos varreduras do crânio com

> Um teste para príons

Sabe-se que o príon – forma alterada de uma proteína encontrada principalmente no cérebro dos mamíferos – pode ser transmitido entre animais de espécies aparentadas e causar uma doença progressiva que mata as células do sistema nervoso e leva a uma morte trágica. Claudio Soto e sua equipe na Universidade

do Texas em Galveston verifi caram que, misturados em tubos de vidro, os príons de hamster convertem a versão normal da proteína de camundongo em uma nova forma de príon. Algo parecido ocorre quando se adicionam príons de camundongo à proteína normal de hamster, segundo artigo publicado em setembro na Cell. “Isso é preocupante”, disse Soto ao site NatureNews.

“O universo de príons pode ser muito maior do que imaginávamos.” A equipe de Soto desenvolveu um método chamado amplifi cação cíclica do enovelamento errado de proteínas (PMCA) que permite os príons de hamster converter as proteínas de camundongo em poucas semanas, fenômeno que geralmente leva anos nos animais vivos. A descoberta pode gerar um teste para identifi car formas de príon transmissíveis entre espécies – nos seres humanos o príon provoca a doença de Creutzfeldt-Jakob, que deixa o cérebro como um queijo suíço.

Face reconstruída: exposta no Museu Bachhaus

LA

UR

AB

EA

TR

IZ

UN

IVE

RS

IDA

DE

DE

DU

ND

EE

/BA

CH

HA

US

EIS

EN

AC

H

44-45_Lab Mundo_152.indd 4444-45_Lab Mundo_152.indd 44 30.09.08 21:59:5830.09.08 21:59:58

Page 43: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 45

> As invasoras da Europa

Em 25 anos passou de 580 para 2.843 o número de espécies de plantas originárias de outras partes do mundo (exóticas) na Europa. Bélgica e Reino Unido concentram a maior parte das espécies exóticas, como a erva Conyza canadensis, natural da América do Norte. Segundo os autores do estudo, publicado na Preslia, seis novas espécies de plantas chegam todos os anos à Europa, a maior parte trazida de modo não-intencional em viagens. A entrada dessas plantas preocupa porque pode afetar a biodiversidade local. Nessa invasão, as plantas não são as únicas ameaçadas: o pólen liberado no ar pode causar alergias.

laser, o que nos permitiu recriar em computador a musculatura e a pele da face”, disse Caroline. “Até onde se pode assegurar, essa foi a aparência de Bach”, disse a coordenadora do grupo, que se baseou ainda no retrato original de Bach e em documentos de época descrevendo os problemas que deixaram as pálpebras do compositor inchadas (London Press Service).

> Os primeiros americanos?

Uma caverna submarina no Sul do México guardou por milhares de anos os restos mortais dos que podem ter sido os mais antigos habitantes das Américas. A equipe do arqueólogo Arturo González, diretor do Museu do Deserto, em Santillo, encontrou perto da cidade de Tulum, na península de Yucatán, no mar do Caribe, esqueletos de quatro pessoas que viveram há mais de 11 mil anos. O mais antigo é de uma mulher, a chamada

Eva de Naharon, que viveu há 13.600 anos, segundo datação por carbono radiativo. Se a idade estiver correta, ela será a mais antiga habitante das Américas. “Não sabemos como chegaram nem se vieram pelo Atlântico, pela fl oresta ou pelo interior do continente”, disse González à National Geographic. A análise dos crânios sugere que eram de indivíduos com

traços típicos de povos do Sul da Ásia e não do Norte, origem dos primeiros colonizadores, segundo a teoria dominante.

RIC

AR

DO

ZO

RZ

ET

TO

Quem toma o ca-

minho mais curto

nem sempre chega

mais rápido. Físicos da

Coréia do Sul e dos Esta-

dos Unidos avaliaram o que

aconteceria se os motoristas

usassem diferentes rotas para

se deslocar entre dois pon-

tos de Nova York, Boston ou

Londres. Resultado: se todos

pegassem as rotas mais cur-

tas, o trânsito se tornaria mais

complicado. O afl uxo de carros

obstrui essas rotas, deixando

livres as mais longas, segundo

estudo a ser publicado na Physical Review Letters. Para

escapar, parte dos motoristas faria meia volta atrás de

alternativas até que o sistema atingisse um ponto de

equilíbrio no qual não se consegue reduzir o tempo até

o destino. Nos horários de pico o tráfego obrigaria os

motoristas a percorrerem caminhos 30% mais extensos

que a menor rota possível (Economist).

NE

M S

EM

PR

E M

AIS

PID

O

AN

DR

É K

ÜN

ZE

LM

AN

N/U

FZ

Conyza canadensis: natural da América do Norte

Nova York: trânsito embaralhado

44-45_Lab Mundo_152.indd 4544-45_Lab Mundo_152.indd 45 30.09.08 21:59:5930.09.08 21:59:59

Page 44: A hora da política

LABORATÓRIO BRASIL>>

Após quase dois anos de trabalho, pesquisadores da

Universidade de São Paulo (USP) produziram a primeira

linhagem brasileira de células-tronco embrionárias hu-

manas. No fi nal de setembro chegaram ao laboratório

da geneticista Lygia da Veiga Pereira os resultados de

testes mostrando que as células cultivadas por ela eram

de fato pluripotentes, ou seja, matinham-se capazes

de se dividir indefi nidamente e de originar células de

diferentes tecidos do corpo – como pele, músculos e

neurônios. Lygia e a bióloga Ana Maria Fraga obtiveram

essas células-tronco a partir de um embrião que estava

congelado havia mais de três anos, como exige a legis-

lação brasileira, e foi doado por uma clínica de fertili-

zação in vitro com autorização dos pais. Para chegar a

essa linhagem batizada de BR-1, no entanto, foi preciso

descongelar cerca de 250 embriões, dos quais apenas

35 se desenvolveram até o quinto dia, estágio em que

as células são extraídas. É um passo importante para a

ciência nacional que ocorre dez anos depois de James

Thomson, da Universidade de Wisconsin, em Madison, nos Estados Unidos, ter criado a

primeira linhagem de células-tronco extraídas de embriões humanos. “Esse resultado

nos dá autonomia”, afi rma o biólogo Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, que trabalha com Lygia. “A partir de agora os pesquisadores brasileiros não

dependerão apenas de células importadas para trabalhar.” O trabalho de Lygia e Rehen

correu risco de ser paralisado até maio passado, quando o Supremo Tribunal Federal julgou

improcedente a ação que contestava o uso de células-tronco embrionárias em pesquisa.

Na próxima edição Pesquisa FAPESP trará reportagem detalhada sobre o assunto.

da pele do sapo-cururu (Rhinella jimi) dois esteróides: a telocinobufagina e a helebrigenina. Em testes em laboratório, ambos mataram a Leishmania chagasi, parasita causador da leishmaniose visceral, que atinge 2 milhões de pessoas no mundo. A helebrigenina eliminou o Trypanosoma cruzi, causador do mal de Chagas. Os esteróides não danifi caram células de mamíferos,

segundo artigo publicado na Toxicon. “Estamos estudando a possibilidade de síntese dessas moléculas, para fazer ensaios em animais infectados com os parasitas”, diz Tempone, que tenta desenvolver fármacos contra doenças negligenciadas.

> Desmemoriados na fl oresta

A vida urbana exige muito do cérebro. Dirigir, ouvir música, falar ao telefone, listar afazeres profi ssionais e domésticos – às vezes, tudo ao mesmo tempo –, uma correria que leva a culpa pela memória que falha. Talvez seja um vilão injusto, segundo Sonia Brucki e Ricardo Nitrini, da Universidade de São Paulo. Eles avaliaram a saúde física e mental e a memória de 163 habitantes das Reservas de Desenvolvimento Sustentável de Amanã e Mamirauá, na Amazônia, com idades entre 50 e 94 anos (International Psychogeriatrics). São pessoas que vivem em casas de palafi tas, caçam, pescam e cultivam mandioca. Mesmo com estilo de vida mais simples, 70% das pessoas examinadas relataram ter

Neurônios gerados a partir de células-tronco embrionárias

> Veneno contra protozoários

Em suas andanças pela Caatinga o biólogo Carlos Jared, do Instituto Butantan, já encontrou sapos que sobreviveram três anos enterrados no leito seco de rios. Com base no que conhece da biologia desses animais e dos parasitas que podem atacá-los em ambiente úmido, Jared suspeitou que a pele dos anfíbios deveria produzir potentes antimicrobianos. Com André Tempone, do Instituto Adolfo Lutz em São Paulo, Jared isolou da secreção de glândulas

LU

LA

S-T

RO

NC

O M

AD

E I

N B

RA

ZIL

Sapo-cururu: esteróides eliminam parasita da leishmaniose

AN

A M

AR

IA F

RA

GA

/US

P

46 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

CA

RL

OS

JA

RE

D/I

NS

TIT

UT

O B

UTA

NTA

N

46-47_Lab Brasil_152.indd 4646-47_Lab Brasil_152.indd 46 10/1/08 5:55:28 PM10/1/08 5:55:28 PM

Page 45: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 47

(Anodorhynchus leari) e um de papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva) a testes complexos em que tinham de puxar um barbante, prendê-lo e voltar a puxar até recuperar um amendoim. Baterias feitas com e sem amendoim amarrado ao barbante deixaram claro que as aves perceberam que o barbante era um meio de alcançar uma recompensa. São resultados consistentes com a expectativa de que essas aves, por terem cérebros proporcionalmente grandes à semelhança dos primatas, conseguiriam resolver tarefas complexas (Animal Cognition).

problemas de memória, índice superior ao observado em outros estudos. A surpresa foi verifi car que o problema não está associado à idade ou à escolaridade. Pessoas com falhas de memória apresentaram mais sintomas psicológicos como distúrbios de humor. Pelo visto, depressão afeta muito mais a memória do que a correria urbana.

> Agropecuária na Amazônia

Nas várzeas do Amazonas e do Pará vivem 3 milhões de pessoas, quase 1 milhão em áreas rurais que geram por ano R$ 2,5 bilhões (14% da renda desses estados). Ocupadas antes da chegada dos europeus, as várzeas poderiam produzir mais, sem agredir o ambiente. Mas o apoio institucional recente, que favorece a pecuária e a produção intensiva de arroz e soja, ameaça várzeas e rios. No livro Agropecuária na economia de várzea da Amazônia, publicado pelo Ministério do Meio Ambiente, Francisco de Assis Costa e Tomas Inhetvin investigam os processos produtivos nas várzeas e identifi cam defi ciências e potenciais.

> Os meios e os fi ns

Usar apetrechos para conseguir comida não é habilidade exclusiva do Homo sapiens. Experimentos com grandes primatas como os chimpanzés, além de

C.

GO

LD

SM

ITH

/CD

C

A variedade do vírus da Aids que nos últimos anos mais cresce

no Brasil e no mundo – o HIV do subtipo C – chegou ao país a

partir do Leste da África, provavelmente vinda da Etiópia ou do

Quê nia. Foi trazida por uma única pessoa ou por um pequeno

grupo de portadores de cepas próximas do ponto de vista ge-

nético, afi rmam pesquisadores do Rio de Janeiro em estudo na

AIDS. Rachel Fontella, do Laboratório Nacional de Computação

Científi ca, e Marcelo Soares e Carlos Schrago, da Universi-

dade Federal do Rio de Janeiro, compararam a seqüência de

dois genes do HIV em

51 amostras do vírus

coletadas na América

do Sul e 46 de outras

regiões do mundo.

Refazendo o percurso

do HIV na América do

Sul, viram que do Brasil

essa variedade se es-

palhou para o Uruguai

e a Argentina. Antes

comum no Leste da

África, na Índia e na

China, essa cepa vem

se disseminando pelo

mundo e se sobrepon-

do às outras. É uma

informação relevante.

O que se sabe sobre re-

sistência a medicamen-

tos se baseia em testes

com o subtipo B, o mais

comum no país.

OS

CA

MIN

HO

S D

O H

IV

HIV: cópias do vírus (em verde) se multiplicam em cultura

macacos e corvos, já mostraram que esses animais são capazes de lidar com varetas e pedras para se alimentar. Mas será que os outros bichos entendem para que servem as ferramentas? Estudos com corvos e papagaios da Nova Zelândia sugerem que sim. Agora os biólogos Cynthia Schuck Paim, Andressa Borsari e Eduardo Ottoni, da Universidade de São Paulo, mostraram que algumas espécies de araras e papagaios originais das Américas também

Arara-azul-grande: capaz de usar ferramenta para obter comida

ED

UA

RD

O C

ES

AR

identifi cam a utilidade das ferramentas. Os biólogos submeteram dois casais de arara-azul-grande (Anodorhynchus hyacinthinus), dois de arara-azul-de-lear

46-47_Lab Brasil_152.indd 4746-47_Lab Brasil_152.indd 47 10/1/08 5:55:29 PM10/1/08 5:55:29 PM

Page 46: A hora da política

48-51_Doreinfla_152.indd 4848-51_Doreinfla_152.indd 48 30.09.08 22:06:1130.09.08 22:06:11

Page 47: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 49

Sem bactérias, mamíferos não produzem a reação infl amatória essencial para combater lesões

Francisco Bicudo e Maria Guimarães | ilustrações Laura Daviña

Camundongos visivelmente sentem dor quando recebem injeções de uma substância irritante nas patas. Lambem os membros inchados e evitam usá-los para caminhar, rea-ção que não causa espanto a quem já sentiu infl amar um corte na mão ou

no pé. Mas não é sempre assim. No laboratório do imunologista Mauro Teixeira, do Departa-mento de Bioquímica e Imunologia da Uni-versidade Federal de Minas Gerais (UFMG), alguns camundongos passam incólumes por essas injeções e custam a sentir dor quando suas patas são cutucadas por um objeto pon-tiagudo. Aparentemente são super-roedores imunes à dor. Mas o que há de especial neles é a ausência dos micróbios que habitam o corpo de qualquer mamífero – inclusive dos seres humanos –, essenciais para que o sistema imu-nológico funcione de maneira adequada. O grupo mineiro descobriu que, além de menos sensíveis à dor, os camundongos sem germes não têm meios de combater uma infecção causada por microorganismos nocivos nem o refl exo de proteger uma pata ferida.

Manter esses roedores livres de bactérias que normalmente habitam o organismo, a microbiota, requer muito cuidado e um apa-rato complexo. Eles vivem dentro de bolhas de plástico e tudo o que consomem – ar, água e comida – é esterilizado e entregue por pas-sagens especiais. Monitorados 24 horas por dia, não podem ter contato com o mundo exterior. Em vez de causar doenças, as espé-

cies de bactérias que integram a microbiota ajudam em diversas funções essenciais à vida como a digestão de alimentos, a produção de vitamina K, essencial para a coagulação do sangue, e o controle do armazenamento de gordura. Além disso, a microbiota com-pete por um espaço que, de outra maneira, estaria disponível para invasores nocivos ao organismo. Qualquer pessoa costuma ter em seu corpo dez vezes mais bactérias do que cé-lulas humanas – a maior dessas bactérias se encontra nos intestinos, onde convivem em equilíbrio com o corpo.

Camundongos livres de bactérias existem há décadas em laboratórios que pesquisam a ação de micróbios no organismo. A abor-dagem inovadora do grupo de Teixeira foi usá-los não para estudar doenças, mas para desvendar como a microbiota contribui para amadurecer o sistema imunológico. Um artigo publicado este ano na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) explica o segredo dos supercamundongos. Quando re-cebem injeções de substâncias irritantes como as carragenanas, extraídas de algas-vermelhas, o organismo desses roedores produz uma pro-teína chamada interleucina-10 (IL-10), com potente ação antiinfl amatória. É o contrário do que acontece nos camundongos normais, nos quais as carragenanas desencadeiam uma cascata de reações bioquímicas que provoca a infl amação, essencial para chamar a atenção do animal para a lesão e para recrutar as células de defesa para o local da ferida. Quando bactérias

>CIÊNCIA

inesperadosAliadosIMUNOLOGIA

48-51_Doreinfla_152.indd 4948-51_Doreinfla_152.indd 49 30.09.08 22:06:1230.09.08 22:06:12

Page 48: A hora da política

nocivas aproveitam um ferimento para invadir o organismo, são essas células de defesa que as eliminam, evitando maiores danos.

Até 2004 não se conhecia essa rea-ção antiinfl amatória apresentada pe-los animais sem microbiota. Naquele ano o grupo de Teixeira publicou no Journal of Immunology os resultados de um experimento em que ele e seus colaboradores interrompiam momen-taneamente o fl uxo de sangue em uma artéria importante do intestino de dois grupos de camundongos – um deles li-vre de bactérias e o outro com a micro-biota normal. Quando o sangue volta a fl uir com força, geralmente causa uma lesão no intestino. Nos camundongos normais essa lesão originou uma infl a-mação generalizada que matou todos os animais. “A resposta à infl amação no intestino era tão intensa que ataca-va células e tecidos sadios em todo o corpo”, explica Flávio Almeida Ama-ral, integrante do grupo mineiro que atual mente faz parte da pesquisa de seu doutorado no William Harvey Research Institute, na Inglaterra. Com os animais sem bactérias, lembra Amaral, ocorreu algo diferente: eles venceram a infl ama-ção e sobreviveram.

O que aconteceu com os camun-dongos normais foi um descon-trole de um processo corriqueiro.

Geralmente acompanhada de inchaço, aumento da temperatura no local atin-gido e dor, a infl amação induz o corpo a produzir substâncias químicas cha-madas mediadores. Essas moléculas disparam mensagens para o sistema imunológico, que, por sua vez, envia células de defesa como os macrófagos e os leucócitos para o local lesionado, onde combatem microorganismos no-civos. Nos camundongos normais dos experimentos de Teixeira essa resposta era tão exagerada que não se restrin-gia ao intestino. Células de defesa em grande quantidade caíam na circula-ção sangüínea, combatendo bactérias e, como balas perdidas, agredindo também as células de tecidos sadios. Em órgãos sensíveis como os pulmões esse processo causa mais danos e pode levar à morte.

O grupo da UFMG descobriu que os animais que nunca tiveram conta-to com bactérias reagem à lesão pro-

duzindo o antiinfl amatório natural interleucina-10. Mas perdem essa ca-pacidade antiinfl amatória ao adquirir uma microbiota – para isso, basta te-rem contato com fezes de camundon-gos normais. “É como se as bactérias inofensivas deixassem o organismo do mamífero em estado de alerta, pron-to para combater invasores com uma infl amação”, explica Teixeira.

A descoberta representou um avan-ço importante na compreensão de como se desenvolve a imunidade,

mas não bastava. Era preciso entender em detalhes como os camundongos sem germes produzem interleucina e assim, quem sabe, chegar a alguma estratégia que auxilie no tratamento de doenças infl amatórias agudas e crô-nicas como artrite reumatóide, asma e esclerose múltipla. Em 2007 o gru-po publicou mais detalhes, outra vez no Journal of Immunology. Surgiram então na trama as anexinas e as lipoxi-nas, proteínas responsáveis por ativar o sistema imunológico. Em seguida à lesão no intestino, os pesquisadores de-tectaram níveis até três vezes maiores de lipoxinas no sangue dos camundon-gos sem germes. Eles também tinham teores mais altos de anexinas do que o detectado nos roedores normais. Foi a primeira vez que se demonstrou que as lipoxinas e anexinas são essenciais para estimular a produção de interleu-cina-10. Como são moléculas menores, talvez sejam boas candidatas a servir de base para medicamentos com ação antiinfl amatória. A esperança do grupo da UFMG é que compostos derivados dessas proteínas possam substituir os antiinfl amatórios atuais à base de cor-ticóides, que geram efeitos colaterais como aumento de peso, perda de massa muscular e maior propensão ao diabe-tes e à osteoporose.

De fato, a equipe da UFMG mostrou que injetar lipoxina e anexina no sangue de camundongos com microbiota pro-tege o organismo das lesões no intestino causadas pela interrupção temporária do fl uxo sangüíneo. O tratamento é efi caz em reduzir signifi cativamente a hemorragia local e em combater a in-fl amação, devolvendo as propriedades características e o bom funcionamento do tecido intestinal dos animais. A lipo-xina e a anexina também diminuem em

50 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

48-51_Doreinfla_152.indd 5048-51_Doreinfla_152.indd 50 30.09.08 22:06:1230.09.08 22:06:12

Page 49: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 51

50% a mortalidade dos animais. Esses benefícios decorrem da forma de ação dessas proteínas, que atuam local, direta e independentemente, impedindo os tecidos de acumular líquido demais e formar edemas típicos da infl amação.

Evitar a infl amação não é sempre bom, porém. Danielle da Gloria de Sou-za, colega de Teixeira na UFMG, alerta que os mecanismos antiinfl amatórios podem atrapalhar quando a infl ama-ção é acompanhada por uma invasão de bactérias, ou seja, uma infecção. É que as substâncias antiinfl amatórias bloqueiam a comunicação da área le-sionada com os leucócitos, células de defesa que englobam e destroem bac-térias prejudiciais ao organismo. Sem o recrutamento dos leucócitos, o orga-nismo fi ca vulnerável, um terreno fértil para infecções. “É uma desvantagem. A proteção acontece pela metade”, ad-mite Danielle. “Por outro lado, é uma novidade a ser mais bem estudada e que abre horizontes promissores, pois há uma resposta pontual efi ciente para combater a infl amação”, reforça.

O s pesquisadores da UFMG afi rmam que ainda é preciso compreender de que maneira as bactérias in-

fl uenciam a produção de determinados mediadores e por que, na ausência delas, o organismo secreta outros mediadores. Uma explicação possível deve envolver o que chamam de programação gênica: a microbiota ativa no organismo que a hospeda genes ligados à estimulação do sistema imunológico; sem essas bac-térias, o organismo precisa organizar outras estratégias de defesa.

O mais recente desdobramento do estudo revela que os camundongos sem germes têm também quase 50% a mais de resistência à dor, em relação àqueles com microbiota. “Não se trata da dor normal”, ressalta Teixeira, “se espetar-mos a pata, eles sentem dor. Estamos falando da sensibilidade exagerada que a infl amação causa”. Os pesquisadores identifi caram a interleucina-10 como responsável pelo efeito analgésico, mas resta detalhar os processos de resistên-cia à dor para entender como acontece o efeito analgésico. “Por enquanto são apenas suspeitas e hipóteses. Com os dados que temos, vamos novamen-te investigar quais os sinalizadores e mediadores químicos diretamente

envolvidos no processo de produção e resistência à dor”, diz Amaral, sem descartar que algum dia esse conheci-mento possa contribuir para o arsenal de analgésicos nas farmácias.

“A relação da microbiota com a pro-teção do organismo já era conhecida”, conta Teixeira. “O que fi zemos foi dar um passo adiante e refi nar o conheci-mento a respeito dessa colaboração que se dá entre as bactérias e o sistema de defesa, trazendo à tona informações mais precisas sobre etapas e substâncias que ajudam a organizar essa relação.” Para ele, as descobertas têm abrangência muito maior do que as conseqüências práticas que poderão ter no desenvolvi-mento de fármacos. O trabalho mostra que a convivência pacífi ca com bactérias é na verdade o que nos permite sobrevi-ver num mundo onde esses minúsculos organismos se revelam cada vez mais dominantes e numerosos. ■

> Artigos científicos

1. SOUZA, D. G. et al. The essential role of the intestinal microbiota in facilitating acute infl ammatory responser. The Journal of Immunology. v. 173, n. 6, p. 4137-4146. set. 2004.2. SOUZA, D. G. et al. The required role of endogenously produced lipoxin A4 and annexin-1 for the production of IL-10 and infl ammatory hyporesponsiveness in mice. The Journal of Immunology. v. 179, n. 12, p. 8533-8543. dez. 2007.3. AMARAL, F. A. et al. Commensal micro-biota is fundamental for the development of infl ammatory pain. PNAS. v. 105, n. 6, p. 2193-2197. fev. 2008.

48-51_Doreinfla_152.indd 5148-51_Doreinfla_152.indd 51 30.09.08 22:06:1330.09.08 22:06:13

Page 50: A hora da política

EVOLUÇÃO

Expressão de um mesmo gene em tecidos distintos ou momentos diferentes contribui para a diversidade biológica das espécies

Maria Guimarães

>

A mão de uma pessoa e a asa de um morcego exercem funções tão dis-tintas que parecem ser projetos diferentes. Mas é só olhar de perto para ver as semelhanças. São formadas pelo mesmo número de ossos, segundo instruções dos mesmos genes. Durante o desenvolvimento, basta que um gene central na formação da mão esteja mais ativo na pata dianteira do embrião do morcego para criar uma asa. Usar o desenvolvimento embrionário para entender como alterações míni-

mas no mesmo projeto criam boa parte da diversidade biológica do planeta é tarefa de uma área da biologia apelidada de evo-devo, resultado da fusão de duas outras – evolução e desenvolvimento – e tema central do 54o Congresso Brasileiro de Genética, realizado em setembro em Salvador, na Bahia.

Pesquisas apresentadas no congresso mostram que muitas vezes pequenas diferenças no momento ou no local em que um gene é ativado determina a origem de novidades evolutivas. “Se você tem o rosto diferente de quem está ao lado, isso se deve às células da crista neural – é melhor saber alguma coisa sobre elas”, disse a norte-americana Marianne Bronner-Fraser, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech).

As células da crista neural surgem no início da formação do sistema nervoso dos vertebrados, animais com coluna vertebral como peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Essas células migram para a periferia do embrião, onde ori-ginam o sistema nervoso periférico, a cor do rosto de alguns animais, parte dos ossos faciais e o bico das aves. São pequenas variações nesse processo que

Um molde e muitas

formas

FU

O D

AS

IMA

GE

NS

DE

AS

A D

E M

OR

CE

GO

(J

OH

N Z

OO

K/U

NIV

ER

SID

AD

E D

E O

HIO

) E

O (

ED

UA

RD

O C

ES

AR

)

52-55_Genetica_152.indd 5252-55_Gene tica_152.indd 52 10/1/08 4:11:46 PM10/1/08 4:11:46 PM

Page 51: A hora da política

As aparências enganam: mão e asa têm a mesma origem genética

52-55_Genetica_152.indd 5352-55_Gene tica_152.indd 53 10/1/08 4:11:53 PM10/1/08 4:11:53 PM

Page 52: A hora da política

tornam os rostos humanos diferentes uns dos outros. Marianne estuda os genes que coordenam a formação e a migração dessas células para responder a uma pergunta básica: como um tipo de célula que não existia surgiu junto com os vertebrados.

O primeiro desafi o foi descrever os genes que regulam o desenvolvimen-to embrionário da lampreia, um pei-xe alongado de consistência gelatinosa que se alimenta do sangue de outros peixes. Pouco atraente, a lampreia re-presenta o ramo mais antigo dos ver-tebrados, razão por que compará-la aos outros animais dá pistas de como o grupo surgiu. A equipe de Marianne examinou cerca de 50 genes ativos no embrião da lampreia e, em artigo de 2007 na Developmental Cell, mostrou que alguns dos genes mais importantes para formar uma lampreia adulta são semelhantes aos que controlam o de-senvolvimento embrionário de outros vertebrados. Em muitos casos, a dife-rença principal é que alguns genes que entram em ação no início do desenvol-vimento desses animais só são ativados mais adiante nas lampreias. Com isso, a pesquisadora mostrou que a parte inicial do circuito de genes que regula o desenvolvimento existe há mais de 500 milhões de anos.

Para entender a origem desse circuito, Marianne comparou o desenvolvi-mento das lampreias com o dos anfi oxos – representan-tes vivos dos ancestrais dos vertebrados que parecem fi lhotes de peixes, mas não têm coluna vertebral nem crista neural. Marianne vas-culhou o genoma do anfi o-xo e encontrou genes seme-lhantes aos que regulam a formação da crista neural em vertebrados, segundo artigo deste ano na Geno-me Research. “No anfi oxo há ao menos uma cópia de todos os genes que existem em várias cópias nos verte-brados”, conta, sugerindo que já existiam em ances-

trais dos vertebrados genes que foram cooptados para uma nova função nesses animais: fabricar a crista neural.

O argentino Pablo Wappner, da Uni-versidade de Buenos Aires, tam-bém investiga genes que cumprem

funções distintas em organismos dife-rentes. Ele estuda a formação do siste-ma respiratório nas drosófi las. Dife-rentemente dos vertebrados, os insetos não têm sistema vascular e respiram por traquéias, tubos ramifi cados que levam oxigênio para diversas partes do corpo e se formam segundo instruções dos mesmos genes que constroem o sis-tema vascular em mamíferos. Wappner vem mostrando por que as traquéias das drosófi las e os vasos sangüíneos de mamíferos se tornam mais ramifi cados em situações de baixo oxigênio, aumen-tando a efi ciência de transporte do gás para os tecidos. Em artigo da Methods in Enzymology de 2007, Wappner des-creveu a cascata de genes ativada na fal-ta oxigênio que leva à ramifi cação das traquéias. Ele aposta que seja possível aplicar ao sistema vascular humano o que se aprende sobre as drosófi las.

Quem avançou na compreensão de como se forma o coração humano é o médico José Xavier Neto, do Instituto do Coração (InCor) da Universidade de

São Paulo. O que há de especial no co-ração de vertebrados é a arquitetura em câmaras: uma recebe o sangue e outra se contrai e lança o sangue adiante. Em outros animais, exceto moluscos, os va-sos sangüíneos empurram o sangue por meio de constrições das paredes – um método que tem o defeito de criar mo-vimento nos dois sentidos, como quan-do se aperta um tubo de pasta de dentes pelo meio. Xavier vem mostrando que a formação das câmaras depende dos níveis de ácido retinóico no embrião. “Se tratamos o embrião com altas doses de ácido retinóico, o coração vira um grande átrio; se inibimos a produção do ácido, só o ventrículo se desenvolve.” Xavier mostrou que durante o desen-volvimento do embrião o ácido retinói-co se espalha como uma onda: começa a ser produzido na cauda e aos poucos avança em direção à cabeça. Como o coração está alinhado com o eixo do corpo, no início as enzimas que produ-zem o composto só são produzidas nas células do átrio. Quando a onda chega aos ventrículos, seu desenvolvimento já está defi nido e não é alterado.

O pesquisador do InCor compro-vou que a onda de ácido retinóico tam-bém existe em anfíbios, aves, mamíferos e peixes, inclusive lampreias. O anfi oxo produz enzimas semelhantes às que fa-zem o ácido retinóico, mas o compos-to não se dissemina como uma onda. Em congressos, Xavier tem discutido a síntese de seu trabalho. Ele reuniu os dados que obteve até agora e sugere que a onda de ácido retinóico já existia an-tes do surgimento dos vertebrados e do coração dividido em câmaras. O grupo estuda agora os genes que comandam a produção do ácido retinóico. Enten-

Material genético corado em azul marca diferentes estágios de desenvolvimento no embrião de crustáceo

MA

TT

HIA

S G

ER

BE

RD

ING

/IN

ST

ITU

TO

MA

X P

LA

NC

K

54 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

52-55_Genetica_152.indd 5452-55_Gene tica_152.indd 54 10/1/08 4:12:00 PM10/1/08 4:12:00 PM

Page 53: A hora da política

der como o coração se desenvolve pode nortear o diagnóstico e o tratamento de defeitos cardíacos congênitos.

Outra fonte de diversidade é a expressão de genes que dão origem a segmentos do corpo de insetos – os mesmos genes que determinam as diferentes seções na coluna vertebral de um camundongo. Como todas as moscas, as drosófi las têm um par de asas e um par de pequenos apêndices chamados halteres. O biólogo Nipam Patel, da Universidade da Califórnia em Berkeley, relatou que, ao inativar o gene ultrabitórax (ubx), surgem asas no lugar dos halteres. Com quatro asas a mosca fi ca parecida com borboletas e abelhas, outra indicação de que pe-quenas mudanças geram diversidade de formas. Mas o desenvolvimento das asas ainda não está plenamente des-vendado: nas borboletas, Patel encon-trou grande atividade do ubx nas asas de trás, mas não nas da frente, que são maiores. A evolução parece ter recurso a mecanismos alternativos na constru-ção das asas dos insetos.

P atel também investiga a função do ubx em crustáceos, que têm uma diversidade incomum em termos

de desenvolvimento e de arquitetura. A parte anterior desses animais é com-posta por diversos segmentos – cada um dos quais pode ter patas, pinças ou apêndices especializados em alimenta-ção chamados maxilípedes. O pesqui-sador de Berkeley constatou que nos camarões do gênero Periclimenes o gene ubx só entra em ação a partir do quarto segmento, onde começam as patas. Patel desenvolveu um método de ativar o ge-ne nos primeiros segmentos e diminuir sua expressão nos posteriores. Assim, fez nascerem patas onde deveriam estar os maxilípedes e vice-versa.

Ele também investiga outra questão de simetria: as diferenças entre os lados direito e esquerdo dos organismos. Nos seres humanos, o coração e o estômago fi cam mais para o lado esquerdo e o fí-gado à direita. Quando essa assimetria falha, os órgãos fi cam mal encaixados, uma condição geralmente fatal. O prin-cipal gene responsável pela assimetria é o Nodal, expresso no lado esquerdo dos vertebrados. Patel mostrou que esse mesmo gene determina a torção da con-cha de caramujos, em algumas espécies

para a direita e em outras para a esquerda. Se o No-dal for inibido no início do desenvolvimento, a concha se forma esticada. Mas por que o gene só é expresso num lado do corpo? Patel ainda não sabe dizer.

Ele não é o único a se interessar por asas de dro-sófi las. A geneticista Blan-che Bitner-Mathé, da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estuda a diversidade de formas e tamanhos das asas dessas moscas. Ao contrário dos outros especialistas em evo-devo que estudaram a embriologia antes de chegar aos genes, Blanche partiu de uma abordagem de genética evolutiva e agora busca no desenvolvimento a explicação para suas descobertas. Ela criou drosófi las da es-pécie Drosophila melanogaster em tem-peraturas diferentes (16,5˚ C e 22˚ C) e a cada geração selecionava as dez com asas mais alongadas e as dez com asas mais arredondadas. Essas moscas da-riam origem à geração seguinte, sempre à mesma temperatura. O grupo carioca verifi cou que a resposta à seleção varia conforme o ambiente. A 22˚ C, ao fi m de 50 gerações, a equipe obteve moscas com asas alongadas e outras com asas quase redondas, formato não observa-do na temperatura mais fria nem na na-tureza. “O genoma tem potencial para criar formas que não necessariamente existem”, resume a pesquisadora, que investiga o gene rotund, que ganhou esse nome por gerar asas mais redondas quando alterado.

O trabalho de Blanche vai além de evolução e desenvolvimento. “Nossos resultados reforçam a importância de estudar a interface entre ecologia, evolução e desenvolvimento”, conta, defi nindo a eco-evo-devo. Em colabo-ração com o Laboratório de Biologia Molecular de Insetos da Fundação Oswaldo Cruz, o grupo observou que as asas alongadas produzem um som diferente das redondas – e que as fê-meas preferem machos de asas longas. O sucesso entre as fêmeas talvez ajude a explicar por que na natureza as dro-sófi las sempre têm asas longas.

Klaus Hartfelder, do campus de Ri-beirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), também se concentra em uma única espécie: busca explicar como duas larvas de abelhas geneticamente iguais se diferenciam em rainha ou ope-rária. Ele observou que genes ligados ao metabolismo da insulina são mais ativos durante o desenvolvimento de operárias do que o das rainhas, segundo artigo publicado este ano no Journal of Insect Physiology. É o que o pesquisador chama de paradoxo das abelhas, porque em outros insetos a insulina promo-ve o crescimento. Nas abelhas parece ser o contrário: as rainhas são muito maiores, mas têm esses genes inativados durante o desenvolvimento.

Hartfelder verifi cou também que os teores de hormônio juvenil são mais altos no início do desenvolvimento das larvas das rainhas. Esse hormônio protege os ovários da morte celular, fazendo com que rainhas adultas te-nham cerca de duzentas estruturas que produzem óvulos, enquanto operárias só têm entre 2 e 12 em cada ovário. O grupo de Hartfelder analisa agora quais são os genes mais ativos nos ovários de rainhas e operárias, para esmiuçar me-lhor como as duas castas se formam.

A solução para o enigma das abelhas? O rosto de Hartfelder se ilumina: “Não sei!” Mistérios como esse, que atiçam a curiosidade dos pesquisadores, tornam a eco-evo-devo uma das áreas mais ba-daladas da biologia no momento. ■

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 55

52-55_Genetica_152.indd 5552-55_Gene tica_152.indd 55 10/1/08 4:12:00 PM10/1/08 4:12:00 PM

Page 54: A hora da política

56 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

BOTÂNICA

Engrenagens do tempo

Em 1729 o astrônomo fran-cês Jean Jacques d’Ortous de Mairan fez uma descoberta importante em biologia. Ao lado da luneta que usava para observar os astros, ele man-tinha um vaso com a planta

Mimosa pudica, a popular sensitiva ou dormideira, que fecha suas folhas miúdas quando alguém as toca. De Marian notou que nem sempre era preciso roçar suas folhas para que se recolhessem – à noite se fechavam naturalmente e voltavam a abrir-se quando o dia clareava. Por curiosida-de, ele colocou a planta em baú fecha-do, que guardou em um porão escuro. Para sua surpresa, mesmo sem luz ela continuava a abrir e fechar suas folhas como se preservasse uma memória da duração do dia e da noite. Um século e meio mais tarde o botânico alemão

Evanildo da Silveira

ED

UA

RD

O C

ES

AR

Wilhelm Pfeffer concluiria que os movimentos da Mimosa pudica na escuridão constante tinham origem em um mecanismo interno da plan-ta: o chamado relógio biológico, um conjunto de genes, proteínas e outras moléculas que regula o ritmo de fenô-menos físicos e químicos – a exemplo do movimento das folhas, a abertura das fl ores ou a produção de açúcares (fotossíntese) – e os mantém em sin-cronia com mudanças no ambiente como a duração do dia ou a mudança das estações do ano.

Séculos depois dos primeiros ex-perimentos, uma série de estudos re-centes conduzidos na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, com a par-ticipação de um pesquisador brasilei-ro, traz uma nova compreensão sobre o funcionamento e a composição do relógio biológico das plantas.

>

Com hora marcada: folhas abrem emciclos de24 horas

56-59_plantas_152.indd 5656-59_plantas_152.indd 56 30.09.08 22:10:3830.09.08 22:10:38

Page 55: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 57

Biólogos do Brasil e da

Inglaterra detalham

a composição e o

funcionamento do relógio

biológico das plantas

Até pouco tempo atrás se pensava que o funcionamento do relógio bio-lógico fosse regulado apenas por um conjunto de cerca de dez genes e as proteínas por eles produzidas. Expe-rimentos liderados por Alex Webb, do Departamento de Ciências das Plan-tas, de Cambridge, mostraram que não é bem assim. O grupo, do qual fez parte o biólogo brasileiro Carlos Hotta, descobriu que na verdade o re-lógio biológico dos vegetais é ajustado por moléculas muito menores, como a adenosina difosfato ribose cíclica (AD-PRc), já conhecida por sinalizar para as plantas situações ambientais extremas como escassez de água, falta ou excesso de luz solar, ausência de nutrientes no solo e frio ou calor intensos.

“Já sabíamos que a ADPRc era responsável por ativar parte dos me-canismos de proteção da planta, entre

eles o fechamento de pequenos po-ros existentes nas folhas para evitar a perda de água”, diz Hotta, que teve papel fundamental no planejamento, na condução e na análise dos resulta-dos da pesquisa realizada durante seu doutorado em Cambridge entre 2003 e 2007. “Agora vimos que a ADPRc também pode incorporar informa-ções sobre mudanças ambientais ao relógio biológico que regula a fi sio-logia das plantas”, afi rma o biólogo, que faz pós-doutorado no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), um dos autores do artigo que descreveu o achado em dezembro passado na Science.

Esse trabalho altera de modo im-portante a compreensão de como fun-cionam os relógios biológicos, com possíveis implicações até na agricul-tura. “Demonstramos que uma parte

56-59_plantas_152.indd 5756-59_plantas_152.indd 57 30.09.08 22:10:4430.09.08 22:10:44

Page 56: A hora da política

58 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

do mecanismo de marcação do tempo depende de moléculas pequenas co-mo a ADPRc e não apenas de genes ou proteínas”, afi rma Hotta. “É uma pequena mudança de paradigma.” Se antes os pesquisadores prestavam atenção apenas aos níveis de atividade dos genes, de agora em diante terão de aprender também como essas molé-culas se comportam no interior das células vegetais e contribuem para o ajuste do relógio biológico.

A participação da ADPRc como engrenagem desse mecanismo de medição do tempo permite,

por exemplo, compreender por que as plantas se adaptam tão rapidamente a alterações no ambiente como variação na temperatura ou na luz solar. Por ser muito pequena a ADPRc é produzida pelas células em questão de minutos, enquanto a fabricação de uma proteí-na, milhares de vezes maior, consome horas. “Essa molécula parece atuar na regulação fi na do relógio biológico”, comenta Hotta.

Já se sabia que, em mamíferos, a ADPRc se liga a canais de organe-

las celulares que armazenam cálcio, abrindo-os. Como um interruptor, o cálcio liberado ativa e desativa uma série de proteínas, funcionando como uma espécie de mensageiro químico. Também havia evidências de que fun-cionava da mesma forma nas plantas, controlando a abertura e fechamento dos poros (estômatos) das folhas, o crescimento dos pêlos das raízes e a fecundação das fl ores.

Hotta, aliás, iniciou seu doutora-do interessado em investigar a fun-ção do cálcio, e não da ADPRc, nas células vegetais. “Meu objetivo era descobrir se esse elemento químico influenciava o funcionamento do relógio biológico”, explica. Estudos anteriores mostraram que os níveis de cálcio nas células das plantas variam no decorrer do dia, aumentando no período de luz e baixando no escuro, em um padrão que se repete a cada 24 horas – razão por que esse ritmo é conhecido como circadiano, ou seja, que oscila no período de aproxima-damente um dia. Mas não se conhecia o efeito provocado por essa variação. “Até então se pensava que o relógio

biológico mandava informações pa-ra as células, usando o cálcio como mensageiro”, conta o biólogo. Para surpresa do grupo, os experimentos revelaram que a função do cálcio não é regular a fotossíntese ou outros pro-cessos. Esse elemento químico integra o próprio relógio biológico, como se fosse uma engrenagem do centro des-se mecanismo de marcação do tem-po. “Há uma retroalimentação nesse processo, isto é, a ADPRc controla o relógio e ao mesmo tempo é contro-lada por ele”, diz Hotta.

Para chegar a essa conclusão, os pes-quisadores usaram drogas que blo-quearam a produção do ADPRc na Arabidopsis thaliana, erva da família das mostardas adotada como mode-lo para estudar diversos fenômenos em biologia. A ausência de ADPRc retardou o mecanismo de marcação do tempo. Os ciclos de movimenta-ção das folhas, o uso de açúcares na produção de energia ou a abertura e fechamento dos estômatos, que antes se repetiam a cada 24 horas, passaram a durar até 27 horas. “Todos os ritmos dependentes do relógio que medimos se tornam mais lentos”, afi rma Hot-ta. “Isso nos ajudou a concluir que a ADPRc é parte desse sistema de me-dição do tempo que ajuda a otimizar o crescimento da planta.”

O ajuste rápido do sistema permite à planta se preparar de antemão para mudanças no ambiente e estar pronta, por exemplo, para capturar gás carbô-nico e iniciar a fi xação de açúcares (fo-tossíntese) antes do amanhecer, em vez de pôr esse processo em andamento só depois de perceber os primeiros raios de sol. Esse mesmo mecanismo torna possível a produção de moléculas que protegem as folhas da radiação ultra-violeta antes que o sol esteja mais forte no meio do dia.

Como a ADPRc ajusta o que os bió-logos chamam de período do relógio – tempo que um fenômeno leva para se repetir –, acredita-se que essa molécula infl uencie todos os ritmos biológicos controlados pelo relógio da planta, a

Moléculas muito menores que as proteínas fazem o ajuste

fino do ritmo de fenômenos físicos e químicos nos vegetais

ED

UA

RD

O C

ES

AR

Produção de frutos: em sincronia com mudança na duração do dia

56-59_plantas_152.indd 5856-59_plantas_152.indd 58 30.09.08 22:10:4930.09.08 22:10:49

Page 57: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 59

exemplo da fl oração, da fotossíntese, da síntese e da quebra de amido.

Tamanha infl uência estimula os pesquisadores a buscar estratégias de ajustar o relógio de plantas usadas na agricultura e aumentar a produ-tividade. Embora o estudo tenha sido feito com a Arabidopsis thaliana, Hotta acredita que muitas das descobertas devem valer para outras espécies. “Tra-balhos feitos com outras plantas têm revelado que vários dos componentes do relógio são os mesmos”, diz.

Em outra série de experimentos com Arabidopsis thaliana, Hotta cons-tatou que a oscilação dos níveis de

cálcio é controlada pelo gene TOC1 (si-gla em inglês de regulador da proteína que se liga às clorofi las A e BL). Uma alteração específi ca – a TOC1-2 – nesse gene reduziu o período de variação dos níveis de cálcio e outros ritmos para 21 horas. Mudanças em outras regiões do

gene deixaram ritmos biológicos co-mo o da abertura dos estômatos ou de movimento das folhas com 21 horas, enquanto o da variação de cálcio per-maneceu com 24 horas, segundo estudo publicado em novembro do ano pas-sado na Plant Cell. “Esse é um indício de que existem dois tipos de relógio na planta, ambos dependentes da TOC1, mas com características diferentes”, diz Hotta, que investiga a existência e o funcionamento de relógios biológicos na cana-de-açúcar no pós-doutorado que desenvolve com fi nanciamento da FAPESP no Laboratório de Sinalização Celular do IQ-USP.

O primeiro passo é verifi car se o relógio da cana é similar ao da Ara-bidopsis para depois saber o seu papel no controle de características como o acúmulo de açúcar e resistência à seca. Essas informações podem, no futuro, levar ao melhoramento e ao aumento de produtividade da cana. ■

> Artigos científicos

1. DODD, A.N. et al. The Arabidopsis circa-dian clock incorporates a cADPR-based fee-dback loop. Science. v. 318, p. 1789-1792. 14 dez. 2007.2. XU, X.; HOTTA, C.T. et al. Distinct light and clock modulation of cytosolic free Ca2+ oscillations and rhythmic chlorophyll A/B binding protein2 promoter activity in Arabidopsis. The Plant Cell. v. 19, p. 3474-3490. nov. 2007.

MIG

UE

L B

OY

AY

AN

Sem demora: regulagem rápida do relógio prepara planta para a fotossíntese antes do primeiro raio de luz

56-59_plantas_152.indd 5956-59_plantas_152.indd 59 30.09.08 22:10:5030.09.08 22:10:50

Page 58: A hora da política

Relâmpago nos pampas

Mais raros e mais destrutivos, os raios positivos respon-dem por apenas 5% do to-tal de descargas elétricas que saem das nuvens e atingem algum ponto da Terra. No Sudeste, a região do territó-

rio nacional mais bem monitorada, essa também é a sua prevalência. Mas dados coletados nos últimos três anos pelos sensores da Rede Brasileira de Descargas Atmosféricas (BrasilDat) e medições de campo realizadas nos dois últimos ve-rões esboçam um quadro bastante dis-tinto e preocupante num outro canto do país. No oeste e norte do Rio Grande do Sul e no oeste de Santa Catarina, a formação de raios positivos é até cin-co vezes mais freqüente e as descargas desse tipo representam 25% do total. “Índices semelhantes são conhecidos apenas em duas áreas do planeta, no

ga sobre o chão é sempre mais longo. “Os raios positivos tocam o solo e se mantêm conectados por centenas de milissegundos”, comenta o físico Mar-celo Saba, do Elat, que participa dos tra-balhos de campo de caça às descargas elétricas. Nos municípios gaúchos de Uruguaiana e Santa Rosa, os pesquisa-dores fl agraram raios positivos que per-maneceram transferindo eletricidade para o ambiente terrestre por mais de 500 milissegundos, o dobro do tempo médio de um raio negativo. Descargas duradouras são mais destrutivas do que as mais breves, ainda que ambas apre-sentem a mesma corrente elétrica. O ar em torno de um raio dessa magnitude pode atingir, por frações de segundo, temperaturas cinco vezes maiores do que na superfície do Sol.

Compostas de gotículas de água e partículas de gelo de várias dimensões, as nuvens de tempestade do tipo cúmu-lo-nimbo, que originam a maioria dos relâmpagos, e podem ser comparadas a uma pilha. Em razão da ação de corren-tes ascendentes e descendentes de ar e também da gravidade, essas partículas se chocam, tornam-se carregadas ele-tricamente e se separam em dois pólos: no topo, fi cam as partículas menores (cristais), de carga positiva, e na ba-se se encontram as maiores (granizo), carregadas negati-vamente. Esse sis-tema se encontra em equilíbrio, pois vale lembrar que cargas elétricas de polaridade distinta

Perigosos e raros, os raios positivos são cinco vezes mais freqüentes no oeste gaúcho do que no resto do país | Marcos Pivetta

METEOROLOGIA

>

centro dos Estados Unidos e no Japão”, compara Osmar Pinto Junior, coorde-nador do Grupo de Eletricidade Atmos-férica (Elat) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, interior paulista, que está à frente dos estudos sobre raios. “Pre-cisamos prestar atenção a essa situação distinta do Sul.” Incêndios fl orestais e danos na rede de força elétrica causados por raios são geralmente debitados na conta das descargas positivas.

Algumas particularidades tornam os raios positivos potencialmente mais perigosos. Embora não seja uma regra absoluta, a intensidade de sua corren-te elétrica tende a ser mais elevada do que nas descargas negativas. Em casos extremos, pode ser até dez vezes maior e chegar a 300 mil ampère. Se o valor da corrente não é necessariamente maior, o tempo de duração da descar-

Raio positivo observado em Uruguaiana: 25% das descargas elétricas na região são desse tipo

60-61_raios_152.indd 6060-61_raios_152.indd 60 9/30/08 11:01:16 PM9/30/08 11:01:16 PM

Page 59: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 61

o ar como se fossem um único fi o de luz e eletricidade, quase sempre sem as ramifi cações comumente observa-das em torno das descargas negativas. Podem percorrer trajetos relativamente longos na atmosfera e cair a mais de dez quilômetros de distância da nuvem que o gerou.

Não há nenhuma evidência cien-tífi ca de que a maior incidência de raios positivos no Sul do país seja um fenômeno atmosférico recente ou es-teja ligado às tão decantadas mudanças climáticas aparentemente em curso na Terra. “Não temos uma série histórica da ocorrência dessas descargas no Rio Grande do Sul, mas acho que não se trata de algo realmente novo”, comen-ta Pinto Junior, cujos estudos foram, em parte, fi nanciados por um projeto temático da FAPESP. Provavelmente, a região exibe a peculiaridade há décadas, talvez séculos, e simplesmente ninguém a percebeu. Não é de estranhar que isso tenha ocorrido. Até o fi nal de 2006, não havia meios confi áveis de medir esse ti-

po de ocorrência na porção meridional do país. Desde então, a abrangência da BrasilDat, que se limitava aos estados do Sudeste, passou a incluir todos os estados do Sul. Só então as primeiras informações mais detalhadas sobre os raios dessa parte do Brasil começaram a ser geradas.

Os pesquisadores suspeitam que a maior ocorrência de descargas positi-vas na região de Uruguaiana e Santa Rosa possa estar ligada a uma caracterís-tica climática local: ali ocorre com fre-qüência o choque de massas de ar frias e secas, vindas da Argentina, e massas de ar quentes e úmidas originadas na Ama-zônia. O produto dessas colisões, que também acontecem na Argentina, Para-guai e Uruguai, são fortes tempestades, que, em tese, podem originar a porcen-tagem anormal de descargas positivas. Há alguns indícios de que nos últimos dez anos as tempestades no Sul estão se tornando mais intensas, com grande quantidade de chuva e raios concen-trados em poucas horas, mas ainda é cedo para relacionar uma coisa à outra. Agora, em plena primavera, munida de sensores de campo elétrico e câmeras de vídeo que produzem 8 mil quadros por segundo, uma equipe do Elat faz uma campanha em Santa Maria, município no centro do Rio Grande do Sul, para observar in loco mais raios positivos. “Desde 2003 fi lmamos cerca de 1.500 raios no país”, afi rma Saba. “Mas apenas 50 eram positivos.” ■

se atraem. As nuvens de tempestade originam raios quando algum dese-quilíbrio nesse sistema faz com que o campo elétrico produzido por todas essas cargas ultrapasse a capacidade isolante do ar num dado ponto dentro da nuvem. Nesse momento surge um raio. Cerca de 70% dos raios perma-necem dentro da nuvem ou na própria atmosfera e apenas 30% rumam para o solo. Se o relâmpago que desce para a Terra é dotado de corrente negativa, esse raio vai procurar o melhor cami-nho na atmosfera que o conduza a um ponto do solo carregado de corrente positiva – e vice-versa. Como se sabe, os pólos opostos se atraem.

Sem ramificações - Dada essa bre-ve explicação sobre a distribuição das cargas elétricas nas nuvens do tipo cúmulo-nimbo, fi ca relativamente fá-cil de entender por que a ocorrência de raios positivos que tocam o solo se mostra, em qualquer parte do globo, bem menos freqüente do que a dos negativos. Como o setor inferior das nuvens está mais próximo da superfí-cie da Terra, as descargas com corrente negativa são mais fáceis de observar e tornam-se quase corriqueiras em dias de forte chuva. Já boa parte dos raios originados no topo das nuvens, onde estão as cargas positivas, permanece dentro dessas próprias formações, entre 5 e 20 quilômetros acima do nível do solo. Algumas dessas descargas origina-das no andar superior das tempestades, no entanto, escapam da formação chu-vosa e atingem o chão. Em sua descida, os raios positivos costumam queimar

Programa nacional de monitoramento de raios (Pronar)

MODALIDADE

Projeto Temático

CO OR DE NA DOR

OSMAR PINTO JUNIOR - Inpe

INVESTIMENTO

R$ 673.089,30

O PROJETO>

EL

AT/

INP

E

Ver vídeo de raio positivo em www.revistapesquisa.fapesp.br

60-61_raios_152.indd 6160-61_raios_152.indd 61 9/30/08 11:01:17 PM9/30/08 11:01:17 PM

Page 60: A hora da política

62 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

FÍSICA

O LHC é POPAcelerador de partículas cai no gosto da mídia, mas incidente paralisa os trabalhos até 2009

Setembro de 2008 pode entrar para a história como o mês em que a física de partículas, tema tão fascinante quanto complexo, esteve no topo de todos os noticiários como raramente se viu. O primeiro

assunto do período foi, claro, a crise na economia americana, que ameaça provocar uma recessão de proporções mundiais e imprevisíveis. O segundo, a esperada entrada em funcionamen-to do Large Hadron Collider (LHC), o maior acelerador de partículas do pla-neta, montado pelo Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) 100 metros abaixo da superfície, nos arredores de Genebra, bem na fronteira da Suíça com a França.

Em 10 de setembro, quando o primeiro feixe de prótons percorreu o túnel circular de 27 quilômetros de extensão do LHC, uma audiência tele-visiva estimada em 1 bilhão de pessoas, um sexto da população do planeta, as-sistiu a reportagens sobre o início dos trabalhos da maior e mais complexa estrutura científi ca edifi cada pelo ho-mem. Mais uma prova de que o LHC era o destaque do momento apareceu

FOT

OS

CE

RN

na internet: nesse dia a página inicial do buscador Google, uma parada qua-se obrigatória para quem usa cotidia-namente o computador, estampava um desenho do megaacelerador. Ta-manha publicidade em torno do LHC rendeu também algumas notícias que desagradaram à comunidade científi -ca. Disseminada por alguns meios de comunicação, a hipótese, absurda, de que a operação do equipamento po-deria criar um buraco negro capaz de sugar a Terra primeiro irritou os físicos e depois foi motivo de piadas.

Mas em 19 de setembro houve um revés bastante concreto que colocou no-vamente o LHC no centro das notícias: um vazamento de gás hélio no setor 3-4 de seu túnel, desencadeado provavel-mente por uma falha elétrica que le-vou ao derretimento de dois eletroímãs, interrompeu os trabalhos e provocou a interdição da megaestrutura erigida nos arredores de Genebra. O conserto deverá demorar meses e o equipamento está previsto para voltar a funcionar no primeiro semestre de 2009, após o fi m do inverno no hemisfério Norte. “Por ter acontecido imediatamente depois do grande sucesso que foi a entrada em

operação do LHC, o incidente é sem dúvida um golpe psicológico”, disse, num comunicado à imprensa, Robert Aymar, diretor-geral do Cern. “Não te-nho dúvida, no entanto, de que vamos superar esse obstáculo com o mesmo grau de rigor e aplicação que empre-gamos na construção e operação do complexo que abriga o acelerador.”

Respostas para o Big Bang - O LHCé uma obra que consumiu quase duas décadas, contando planejamento, construção e atrasos, e custou perto de US$ 10 bilhões. O equipamento, on-de pesquisadores esperam provocar e observar as tão aguardadas colisões de prótons, se propõe a investigar o Uni-verso frações de segundo após a explo-são primordial (Big Bang) que o teria criado e os misteriosos bósons de Hi-ggs, hipotéticas partículas elementares da matéria que seriam as responsáveis por dar massa às demais partículas, mas cuja existência nunca foi comprovada. Ou seja, respostas para a física do muito pequeno e do muito grande. Quase 10 mil pesquisadores, dos quais cerca de 70 brasileiros, devem produzir algum tipo de trabalho científi co no LHC nos próximos anos.

Os eletroímãs são peças fundamen-tais na estrutura do LHC. Quando res-friados a temperaturas absurdamente baixas, assumem propriedades super-condutoras e servem de guia para os prótons em suas viagens pelo enorme túnel subterrâneo. Com auxílio do gás hélio, trabalham resfriados a -271,3° C no megaacelerador do Cern. Para con-sertar os dois eletroímãs que apresenta-ram falha e derreteram no mês passado, será necessário esquentar o local onde eles estão instalados, fazer as trocas e reparos e, em seguida, resfriar nova-mente todo o ambiente. Todo esse pro-cesso deverá se estender por dois meses e terminar perto de dezembro, à beira do inverno europeu. Como o Cern fecha na estação fria para a realização de manutenções periódicas, o LHC só deverá voltar a funcionar em 2009, na primavera do hemisfério Norte.

O contratempo não deve abalar a confi ança da comunidade científi ca no LHC ou a popularidade do acelerador

>

62-63_Cern_152.indd 6262-63_Cern_152.indd 62 01.10.08 15:46:3101.10.08 15:46:31

Page 61: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 63

da matéria, o prestígio da ciência pro-duzida no Cern, tudo isso fez com que o megaacelerador tenha sido alvo de uma publicidade excepcional nos meios de comunicação, mas mais do que justi-fi cada na opinião do físico brasileiro. “No passado, quando não era conhe-cido do grande público, o Cern obteve resultados que produziram verdadeiras revoluções na física, mas o público nem percebeu”, comenta Salmeron. “Essa foi uma grave falha dos cientistas, que não mantiveram com o público o contato que deveriam ter tido.”

Dessa vez os físicos europeus con-taram com um reforço inusitado para difundir o seu trabalho. O vídeo de um rap de quase cinco minutos sobre o me-gaacelerador, produzido e estrelado por

uma jornalista norte-americana de 23 anos, Katherine McAlpine, tornou-se um hit na internet. O Large hadron rap foi acessado quase 3,5 milhões de ve-zes no You Tube, o site mais popular de hospedagem de vídeos na rede mundial de computadores, e virou tema de re-portagens na imprensa internacional. O sucesso do vídeo musical, amador, mas bem-feito, transformou Alpinekat, no-me artístico da rapper encarnada pela jovem comunicadora, numa pequena celebridade do mundo digital. “Achava que, com toda a badalação em torno do LHC, o vídeo seria visto por umas 10 mil pessoas”, disse à Pesquisa FAPESP Ka-therine, que se formou no ano passado em física e jornalismo pela Universidade Estadual de Michigan. “Mas, depois de alguns dias, os acessos dispararam.” Sua previsão inicial se baseava na audiência obtida por seu rap de estréia na área de divulgação científi ca. Seu vídeo sobre um neurochip desenvolvido por pesqui-sadores israelenses foi inicialmente visto por 600 pessoas.

No geral, as reações provocadas pelo rap sobre o LHC foram positivas entre os pesquisadores, segundo Kathe-rine. “A maioria dos cientistas do Cern encarou o rap como uma forma nova, ainda que boba, de chamar a atenção para o acelerador”, afi rmou a jornalis-ta. “Uns poucos cientistas que levam a física de partículas a sério demais me censuraram. Acham que eu fi z papel de boba e embaracei a área de trabalho deles.” Vale lembrar que a world wide web – o famoso www, a face da internet usada pela maioria das pessoas, onde está inclusive o Large hadron rap – foi inventada em 1989 por Tim Berners-Lee, um físico então a serviço do Cern. Quando o LHC fi nalmente estiver a pleno serviço no próximo ano, é pro-vável que os físicos do Cern produzam muito mais do que boa ciência sobre a origem do Universo. De quebra, pode surgir algum invento tão revolucioná-rio quanto a web. ■

Marcos Pivetta

Página do Google sobre o acelerador

e Katherine McAlpine, autora

do rap sobre o LHC: grandes hits na internet

entre o público leigo. “A causa específi ca do vazamento de hélio é atípica, mas podem ocorrer problemas no início do funcionamento de uma máquina tão complexa”, pondera o físico brasileiro Roberto Salmeron, radicado há mais de 30 anos em Paris e que fez parte da primeira turma de pesquisadores con-tratados pelo Cern, ainda na década de 1950. Para o veterano pesquisador, o retardo no início do funcionamento do LHC devido ao incidente não chega a representar realmente um atraso no cronograma de trabalho do acelerador de partículas. “Nem tem sentido se falar de atraso, tudo ocorreu como previsto”, diz Salmeron. A grandeza e o ineditismo da missão científi ca do LHC, a excelên-cia da pesquisa européia em estrutura

RE

PR

OD

ÃO

CR

IST

INA

JIM

EN

EZ

62-63_Cern_152.indd 6362-63_Cern_152.indd 63 01.10.08 15:46:3201.10.08 15:46:32

Page 62: A hora da política

64 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internetwww.scielo.org

Notícias

AB

L

valorizadas na explicação do sucesso escolar. Por outro lado, os rapazes parecem recorrer mais à capacidade para explicar o seu sucesso, e as meninas mais ao esforço e às bases de conhecimento. Na explicação do insucesso, a falta de esforço e de método de estudo surge mais valorizada que a capacidade conforme se avança na escolaridade, o que parece proteger a auto-estima dos alunos.

Estudos de Psicologia (Campinas) – v. 25 – nº 2 – Cam-pinas – abr./jun. 2008

■ Literatura

Machado e a Abolição

“O Memorial de Aires e a Abolição”, artigo de Pedro Coelho Fragelli, da Universidade de São Paulo, sugere que o último romance de Machado de Assis tem na conivência de clas-se do narrador seu princípio de composição fundamental.

O autor procura demonstrar que, longe de ser obra de um escritor ab-senteísta, o livro registra uma visão desencantada da Abolição – mais lúcida e profunda que a dos apolo-gistas do 13 de Maio.

Novos Estudos - Cebrap – nº 79 – São Paulo – nov. 2007

■ Ginecologia

Síndrome dos ovários

A síndrome dos ovários policísticos (SOP) é a principal endocrinopatia ginecológica na idade reprodutiva, com incidência de 6% a 10% das mulheres no menacme. A resistência insulínica e a hiperinsulinemia compensatória permanecem como os elementos mais importantes na etio-patogenia da SOP. A revisão “Tratamento da infertilidade em mulheres com síndrome dos ovários policísticos”, de Laura Ferreira Santana, Rui Alberto Ferriani, Marcos Fe-lipe Silva de Sá e Rosana Maria dos Reis, da Faculdade de Medicina de Riberão Preto da Universidade de São Paulo, teve como objetivo discutir as controvérsias no tratamento de mulheres com SOP nos diferentes contextos da infer-tilidade feminina e gestação, à luz das evidências atuais, com ênfase no consenso de 2008 proposto pelas sociedades

■ Economia

Modelos para o PIB

O objetivo central do artigo “Prevendo o crescimento da produção industrial usando um número limitado de combinações de previsões”, de Gilberto Hollauer, do Minis-tério das Minas e Energia, e João Victor Issler e Hilton H. Notini, da Fundação Getúlio Vargas, é o de propor e avaliar modelos econométricos de previsão para o PIB industrial brasileiro. Para tanto, foram utilizados diversos modelos de previsão como também combinações de modelos. Foi reali-zada uma análise criteriosa das séries a serem utilizadas na previsão. Os autores concluíram que a utilização de vetores de co-integração melhora substancialmente a performance da previsão. Além disso, os modelos de combinação de previsão, na maioria dos casos, tiveram uma performance superior aos demais modelos, que já apresentavam boa capacidade preditiva.

Economia Aplicada – v. 12 – nº 2 – Ribeirão Preto – 2008

■ Educação

Sucesso e fracasso escolares

A Teoria da Atribuição de Causalidade representa um interessante corpo teórico para analisar como os alunos explicam as suas situações de sucesso e de insucesso esco-lar. O artigo “Atribuições causais para o sucesso e fracasso escolares”, de Leandro da Silva Almeida e Lúcia Miranda, da Universidade do Minho, em Braga, Portugal, e María Adelina Guisande, da Universidade de Santiago de Com-postela, de Santiago de Compostela, Espanha, analisa se essas atribuições causais se diferenciam de acordo com o gênero e o ano escolar dos alunos. A amostra foi composta por 868 alunos do 5º ao 9º ano de escolaridade. A avaliação recorreu ao Questionário de Atribuições de Resultados Escolares, no qual os alunos ordenam seis causas possíveis (esforço, método de estudo, bases/conhecimentos, aju-da dos professores, sorte e capacidade) consoante a sua importância na explicação dos seus sucessos e dos seus insucessos escolares. Os resultados sugerem que os alunos, independentemente do sexo e do ano escolar, associam os seus resultados acadêmicos (sucesso e fracasso) ao es-forço, surgindo ainda para explicar o insucesso à falta de métodos apropriados de estudo. À medida que se avança na escolaridade, as bases de conhecimento surgem mais

64-65_Scielo_152.indd 6464-65_Scielo_152.indd 64 30.09.08 22:15:0230.09.08 22:15:02

Page 63: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 65

européia (European Society of Human Reproduction and Embryology) e norte-americana (American Society for Reproductive Medicine) de reprodução.

Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia – v. 30 – nº 4 – Rio de Janeiro – abr. 2008

■ Sono

Distúrbios noturnos

O artigo “Sintomas da síndrome de apnéia-hipopnéia obstrutiva do sono em crianças” investigou os sintomas mais freqüentes encontrados em crianças com diagnós-tico polissonográfi co de síndrome da apnéia-hipopnéia obstrutiva do sono (Sahos). Os autores são Paloma Baiardi Gregório e Francisco Hora, do Instituto Cardiopulmonar, de Salvador, Rodrigo Abensur Athanazio, da Universidade Federal de São Paulo, Almir Galvão Vieira Bitencourt, da Universidade Federal da Bahia, Flávia Branco Cerquei-ra Serra Neves, da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, e Regina Terse, da Fundação Bahiana para Desen-volvimento das Ciências. Foram avaliadas 38 crianças con-secutivamente encaminhadas ao laboratório do sono com suspeita de Sahos no período de junho de 2003 a dezembro de 2004. Os pacientes foram submetidos a um questionário pré-sono e à polissonografi a. A idade média foi de 7,8 ± 4 anos (variação, 2-15 anos), sendo 50% das crianças do sexo masculino. Observou-se maior freqüência de casos severos de apnéia entre crianças menores de 6 anos (idade pré-escolar). Dentre as crianças com Sahos, os sintomas mais citados foram ronco e obstrução nasal, presentes em 74,3% e 72,7% das crianças, respectivamente. Sonolên-cia excessiva e bruxismo ocorreram em, respectivamente, 29,4% e 34,3% dos casos e doença do refl uxo em apenas 3,1%. Agitação das pernas e difi culdade para iniciar o sono foram encontradas em, respectivamente, 65% e 33% dos avaliados. Todas as crianças que apresentaram Sahos de grau severo tinham queixa de ronco e bruxismo. Os autores mostraram que os sintomas mais freqüentes em crianças e adolescentes com Sahos são ronco e obstrução nasal. Além disso, quadros mais graves da Sahos estão associados à menor faixa etária.

Jornal Brasileiro de Pneumologia – v. 34 – nº 6 – São Paulo – jun. 2008

■ Agronomia

Proteína na semente de arroz

O trabalho “Teor de proteína e qualidade fi siológica de sementes de arroz”, de Rafael Pivotto Bortolotto, Nilson Le-mos de Menezes, Danton Camacho Garcia e Nilson Matheus Mattioni, da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, teve como objetivo avaliar o teor de proteína como elemento auxiliar na determinação da qualidade fi siológica de sementes de arroz, além de correlacioná-la com a emer-gência em campo. Foram utilizados seis lotes de sementes

de arroz, sendo três lotes da cultivar IRGA 417 e três lotes da cultivar IRGA 422 CL, submetidas ao conjunto de testes, para caracterizar o potencial fi siológico dos lotes: germi-nação, primeira contagem de germinação, envelhecimento acelerado, frio sem terra, comprimento de plântula e massa seca de plântula. Após a determinação da qualidade inicial dos lotes foi aplicado novo conjunto de testes, composto pelo teor de proteína bruta e pelas avaliações das plântulas e plantas em campo. Conclui-se que o teor de proteína bruta é capaz de identifi car diferenças entre lotes de arroz, em razão da qualidade das sementes, e correlacionar-se com a emergência em campo, quando ocorre em condições desfa-voráveis; portanto, trata-se de uma determinação promissora para associação aos testes convencionais a fi m de avaliar o potencial fi siológico das sementes de arroz.

Bragantia – v. 67 – nº 2 – Campinas – 2008

■ Gastroenterologia

Efeitos perversos da pimenta

A pimenta-vermelha e outras especiarias têm sido res-ponsabilizadas por agravar a sintomatologia das doenças anais, tais como fi ssuras e hemorróidas. O objetivo do estudo “Efeito da pimenta-vermelha nos sintomas de pacientes com fi ssuras anais agudas”, de Pravin J. Gupta, do Fine Morning Hospital and Research Center, Nagpur, Índia, foi o de determinar se o consumo desse produto acarreta problemas físicos. Pacientes foram recrutados e randomizados para receber cáp-sulas contendo pimenta ou placebos por uma semana, somadas a anal-gésicos e suplementos de fi bras. Foi solicitado que anotassem um escore de sintomas, tais como dor, queimação anal, prurido, durante o período de estudo. Após uma semana o tratamento foi cruzado e administrado ao mesmo grupo de pacientes com a mesma metodologia e os resultados foram anotados ao fi nal de duas semanas. Cinqüenta pacientes foram selecionados e 43 completaram o estudo (22 no grupo pimenta e 23 no grupo placebo). O escore médio diário de dor foi signifi cativamente mais baixo (2,05 no grupo pimenta e 0,97 no grupo placebo). A sensação de queimação foi sentida de modo signifi cativo no grupo pimenta (1,85 para o grupo pimenta versus 0,71 para o grupo placebo). O escore de melhora dos sintomas foi signifi cantemente alto após tomar o placebo; 81,3% dos pacientes preferiram tomar placebo ante 13,9% que prefe-riram pimenta. Dois pacientes não referiram preferências. A conclusão da pesquisa é que o consumo de pimentas agra-va os sintomas de fi ssuras anais agudas.

Arquivos de Gastroenterologia – v. 45 – nº 2 – São Paulo – abr./jun. 2008

ED

UA

RD

O C

ES

AR

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dis-poníveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

64-65_Scielo_152.indd 6564-65_Scielo_152.indd 65 30.09.08 22:15:0230.09.08 22:15:02

Page 64: A hora da política

66 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO>>

de acompanhantes socialmente inteligentes e interativos, capazes de se relacionar com humanos. O primeiro passo da pesquisa é examinar a percepção que as pessoas têm dos robôs. Os pesquisadores também irão avaliar como as pessoas

Para responder a questões como essa, uma equipe de pesquisadores europeus está à frente do Projeto Lirec, sigla em inglês para vivendo com robôs e acompanhantes interativos. Seu objetivo é criar uma nova geração de tecnologia robótica que permita o desenvolvimento

reagem quando esses seres robóticos de companhia familiar se transferem em forma virtual para telas de computador assumindo as mesmas ou outras funções. O projeto conta com a participação de nove instituições acadêmicas do continente (London Press).

> Cinema para lá de real

Se uma das mais recentes inovações criadas no Media Lab do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) ganhar corpo e for adotada pelas salas de cinema, assistir a fi lmes como Missão impossível ou Indiana Jones vai ser uma experiência ainda mais eletrizante.

> A vida com os robôs

Será que um dia os robôs farão parte do nosso dia-a-dia, nos ajudando em tarefas triviais como atender ao telefone, levar o cachorro para passear ou lembrar a hora do remédio?

Se, por um lado, os es-

pectadores de grandes

shows ou acontecimen-

tos esportivos têm a

chance de ver de perto seus ídolos em ação, por outro deixam de

apreciar muitos detalhes dos eventos ocorridos longe de seu campo

de visão – e que são acompanhados por quem está assistindo ao

espetáculo em casa pela televisão. Para “corrigir” essa falha, um

grupo de pesquisadores britânicos trabalha em estreita cooperação

com parceiros industriais a fi m de criar um aparelho que permita

ver todas as cenas dos eventos. Batizado de Visualise, o projeto

prevê o uso de terminais móveis como telefones celulares e mini-

computadores do tipo PDA (sigla em inglês para Assistente Digital

Pessoal) para visualizar todo o evento com imagens captadas por

redes de TV e por câmeras próprias do sistema. Um primeiro teste

da tecnologia já foi feito durante uma etapa do campeonato mundial

de rally realizada no fi nal de 2007. Na ocasião, os espectadores,

munidos de celulares e PDAs, puderam acompanhar trechos da

corrida que aconteciam fora de sua área de visão por meio de

vários canais de imagem nesses aparelhos. O projeto, avaliado em

€ 1,3 milhão, é patrocinado pelo governo britânico e executado

pela Universidade de Bristol (London Press).

VISÃO COMPLETA DA CORRIDA E DO SHOW

Aparelho de mão para não perder cenas de um evento

LO

ND

ON

PR

ES

S

66-67_LinProd Mundo_152.indd 6666-67_LinProd Mundo_152.indd 66 30.09.08 22:17:2930.09.08 22:17:29

Page 65: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 67

no petróleo. O novo combustível tem alto valor energético, o que lhe confere mais efi ciência quando comparado à gasolina comum ou à mistura gasolina-etanol. Outro diferencial desse biocombustível feito do açúcar é que ele pode ser obtido a partir de fontes não-alimentares, como resíduos de milho, palha de trigo ou bagaço de cana-de-açúcar. O processo de produção é inovador e prevê a transformação, a partir de manipulações bioquímicas, das moléculas de açúcares em um produto com propriedades similares à gasolina produzida a partir do petróleo. Pesquisas semelhantes também são realizadas por outras empresas e instituições, como a Universidade de Wisconsin e a companhia química Dupont.

foram utilizados pó de óxido de cério, um ingrediente comum e barato encontrado em cerâmicas, e cálcio recoberto com partículas de cobalto. O catalisador deverá ser usado em aparelhos chamados de reformadores nos postos de combustível, fazendo a conversão do etanol em hidrogênio.

> Vem aí a gasolina verde

No futuro, se as pesquisas realizadas pela empresa Virent Energy, da cidade de Madison, nos Estados Unidos, derem certo, o abastecimento dos carros poderá contar também com biogasolina ou gasolina verde. Esse combustível resulta da conversão direta de açúcares vegetais em gasolina, sem precisar passar pela fase de refi no como

ED

UA

RD

O C

ES

AR

Um tipo de tinta é o mais novo aliado contra as su-

perbactérias resistentes a antibióticos, imunes aos

sistemas de esterilização e, por isso, responsáveis

por milhares de mortes todos os anos em hospitais.

Pesquisadores da Universidade Metropolitana de

Manchester, na Inglaterra, desenvolveram uma nova

família de tintas para paredes, tetos e outras superfí-

cies com nanopartículas de dióxido de titânio capazes

de eliminar tais microorganismos quando expostas a

lâmpadas fluorescentes comuns.

O grupo analisou a reação da

bactéria Escherichia coli a di-

versas formulações da nova

tinta sob diferentes tipos e in-

tensidades de luz e concluiu que

aquelas com maiores concentra-

ções de dióxido de titânio foram

mais eficientes na eliminação

do microorganismo. O dióxido

de titânio já é usado nas tintas

atuais, mas a presença de outros

componentes, como o carbonato

de cálcio, segundo os cientistas

ingleses, reduz sua eficiência na

luta contra as superbactérias.

TIN

TA

IM

UN

E

Esterilização possível com tinta contendo nanopartículas

ILU

ST

RA

ÇÕ

ES

LA

UR

AB

EA

TR

IZ

Pesquisadores do MIT desenvolveram uma tecnologia de imagem 6D, que torna as projeções ultra-realistas. O novo sistema tem a aparência das imagens tridimensionais, mas incorpora também sombras naturais, dependendo da direção

e intensidade da iluminação em volta do objeto retratado. O conceito fundamental da tecnologia é similar ao da produção de imagens 3D: a superposição de um conjunto de lentes, em paralelo, a fi m de criar uma série de linhas verticais sobre a imagem. A diferença é que as lentes lineares da produção 3D dão lugar a uma variedade de minúsculos quadros que facilitam a reprodução de movimentos a partir da alteração do ângulo de visualização.

> Hidrogênio do etanol

Pesquisadores da Universidade do Estado de Ohio, nos Estados Unidos, desenvolveram um método para converter etanol e outros biocombustíveis em hidrogênio, facilitando o uso das células a combustível que são geradores de energia elétrica a partir desse gás. O pulo-do-gato foi a descoberta de um novo catalisador, substância que acelera a reação química, capaz de fazer a conversão com 90% de rendimento. Na produção do catalisador

66-67_LinProd Mundo_152.indd 6766-67_LinProd Mundo_152.indd 67 30.09.08 22:17:3130.09.08 22:17:31

Page 66: A hora da política

68 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL>>

nos segmentos da indústria têxtil, calçadista e cerâmica e decoração. Em Florianópolis também está localizada a Incubadora de Empresas Midi Tecnológico, ganhadora na categoria Melhor Programa de Incubação de Empreendimentos Inovadores Orientados para o Desenvolvimento de Produtos Intensivos em Tecnologia. Ao completar dez anos, ela já graduou 41 empresas, inclusive a

Um som que imita o canto de aca-

salamento do macho é o principal

atrativo de uma armadilha, que já

está sendo fabricada pela Idéia, da

cidade de Jaboticabal, para acabar com as cigarras adultas da

espécie Quesada gigas, que causa sérios danos às plantações

de café. Nessa fase, que dura 40 dias, ocorre o acasalamento e

cada fêmea põe cerca de 300 ovos. Assim que as ninfas (forma

juvenil do inseto) nascem, elas se alojam nas raízes da planta

e sugam a sua seiva. “A armadilha é composta por um sistema

de som acoplado a um de pulverização, que funciona em circui-

to fechado”, diz o biólogo Douglas Henrique Maccagnan, que

desenvolveu a armadilha como tema da sua tese de doutorado,

orientada pelo professor Fábio de Melo Sene, da Faculdade de

Filosofi a, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de

São Paulo, e pela professora Nilza Maria Martinelli, da Faculdade

de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual

Paulista de Jaboticabal. Atraídas pelo som em um raio de 80

metros, as fêmeas são mortas por jatos de inseticida.

Graduada, que já deixou a incubadora, e Empresa Incubada. A Pixeon se destacou pelo desenvolvimento de soluções para o setor de radiologia e de diagnóstico de imagens médicas em formato digital. A Automatisa, instalada no Centro Empresarial para Laboração de Tecnologias Avançadas (Celta), desenvolve tecnologia para máquinas de corte e gravação a laser e já atua

ganhadora Pixeon, e apóia outras 19. O quarto prêmio foi o da categoria Melhor Projeto de Promoção

de Cultura do Empreendedorismo Inovador. A ganhadora foi a Rede InovaPUC, que congrega os mecanismos relativos aos processos de inovação e empreendedorismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Ela reúne, entre outras instituições, uma agência de gestão tecnológica, um escritório de transferência de tecnologia e uma incubadora de empresas.

> Promotores da inovação

Santa Catarina foi o estado que mais forneceu vencedores para a 12ª edição do Prêmio Nacional de Empreendedorismo Inovador promovido pela Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec) que reúne as incubadoras de empresas do país. Duas empresas catarinenses, a Pixeon e a Automatisa, ambas de Florianópolis, foram as ganhadoras, respectivamente, nas categorias Empresa

ARMADILHASONORA

Cigarras adultassão atraídaspelo som da armadilha

DO

UG

LA

S H

EN

RIQ

UE

MA

CC

AG

NA

N

68-69_LinProd Brasil_152.indd 6868-69_LinProd Brasil_152.indd 68 10/1/08 5:17:49 PM10/1/08 5:17:49 PM

Page 67: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 69

os estados que mais vendem rochas ornamentais e, portanto, mais sentem o impacto ambiental com o descarte. Um projeto desenvolvido pela Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo e apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), permitiu estudar o resíduo de quatro empresas de benefi ciamento de rochas, duas baianas e duas capixabas. Foram avaliados diferentes teores de substituição de cimento por resíduo e realizados testes de resistência à compressão e à absorção de água, além de análises de custos de produção. Os resultados apontaram que os resíduos do Espírito Santo podem substituir até 10% de cimento nos blocos de vedação e 5% nos estruturais, enquanto os da Bahia podem chegar a 15% na produção de pisos e 10% nos blocos de vedação.

> Prêmio Jabuti para a UFSCar

Introdução à engenharia de produção foi escolhido como Melhor Livro de Ciências Exatas, Tecnologia e Informática do Prêmio Jabuti 2008. Coordenado pelo professor Mário Otávio Batalha, do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o livro lançado pela Elsevier Editora apresenta de forma didática, em 13 capítulos, a engenharia de produção e suas principais áreas de conhecimento e atuação.

Também foram premiados na mesma categoria os livros Enciclopédia de automática – Controle e automação, de Luís Antonio Aguirre, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, e Introdução ao teste de software, de Márcio Eduardo Delamaro, do Centro Universitário Eurípedes de Marília, José Carlos Maldonado, da Universidade de São Paulo, e Mario Jino, da Universidade Estadual de Campinas.

> Do pó para a construção

Os resíduos gerados na extração e corte de rochas ornamentais, como granitos e mármores, podem substituir parte do cimento utilizado na produção de blocos construtivos e de pisos para pavimentação. A estimativa é que o Brasil produza cerca de 800 mil toneladas de pó de pedras por ano. Espírito Santo, Bahia, Ceará e Paraíba são

Produtos sintetizados em medidas nanomé-

tricas menores que 1 milímetro dividido por 1

milhão de vezes estão começando a se tornar

importantes para as várias áreas industriais.

Duas patentes depositadas pela Universidade Federal de São Carlos (UFS-

Car) no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) mostram o

potencial dessas tecnologias. Uma delas trata do uso de argilas na prepa-

ração de polímeros nanoestruturados para a obtenção de compósitos com

mais elasticidade, resistência e redução de permeabilidade, formando uma

barreira para gases e aromas. Esses polímeros poderão ser usados em celu-

lares, canetas, copos plásticos, embalagens e partes de veículos. A segunda

patente trata da preparação de nanopartículas revestidas com dióxido de

titânio e de outros óxidos metálicos também para uso em polímeros. Com

esses nanocompósitos aplicados a um produto pode-se obter propriedades

de fotodegradação, processo que dilui o produto quando descartado à luz

do sol, e função biocida, capaz de eliminar bactérias, por exemplo. Eles

podem ter aplicação em vários setores como em produtos para agricultura,

embalagens de alimentos e sensores. As patentes são resultado de traba-

lhos dos pesquisadores Suel Eric Vidotti, Paulo Rodrigo Alves Bernardo e

Antonio José Felix de Carvalho coordenados pelo professor Luiz Antônio

Pessan, do Departamento de Engenharia de Materiais da UFSCar.

PATENTES NANOMÉTRICAS

Nanocompósito preparado com argila e polímero

Corte de granito gera impacto ambiental

Didatismo em13 capítulos

ED

UA

RD

O C

ES

AR

FAB

RÍC

IO M

AZ

OC

CO

– F

AI/

UFS

CA

R

68-69_LinProd Brasil_152.indd 6968-69_LinProd Brasil_152.indd 69 30.09.08 22:19:3430.09.08 22:19:34

Page 68: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 71

INDÚSTRIA PETROLÍFERA

A exploração de petróleo e gás abaixo da camada de sal no mar gera demanda de conhecimento e tecnologia | Marcos de Oliveira

DO INTERIOR DE UM CONJUNTO DE SALAS NO PRÉDIO DA ENGENHARIA MECÂNICA DA ESCOLA POLITÉCNICA (POLI) DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, NA CAPITAL PAULISTA, ESTÁ SAINDO PARTE DAS SOLUÇÕES que vão permitir o transporte do gás natural extraído das profundezas da camada pré-sal na bacia de Santos, nas no-vas reservas petrolíferas confi rmadas pela Petrobras desde o fi nal de 2007. A equipe do professor Kazuo Nishimoto, coordenador do Tanque de Provas Numérico (TPN), um laboratório especializado em hidrodinâmica formado por aglomerados ou clusters de computadores, desenvolve sistemas para simular o futuro transbordo do gás natural das plataformas para os navios, uma das alternativas leva-das em conta pela Petrobras para transportar esse tipo de recurso mineral. A outra opção seria fazer grandes tubu-lações ao longo do fundo do mar, mas essa é uma solução cara e de difícil execução, com a necessidade de dutos com diâmetro muito grande e de longa distância no ambiente marinho. O produto que está associado ao petróleo deverá ser transformado do estado gasoso para o líquido em plena plataforma petrolífera para facilitar o transporte em um navio especializado em gás liquefeito. Um sistema para funcionar em pleno alto-mar, a mais de 300 quilômetros da costa, num ambiente hostil em meio a ondas e ventos fortes e a uma profundidade, da superfície até o chão do mar, de 2.200 a 3.000 metros, a chamada lâmina d’ água, fator que difi culta a ancoragem e a estabilidade dos risers, que são as tubulações presas a equipamentos no fundo do oceano que levam petróleo e gás para a plataforma na superfície.

“Não existe no mundo um sistema em funcionamento em alto-mar para transformar o gás em líquido. Nesse es-tado, o gás natural líquido (GNL) tem que estar preservado a baixas temperaturas, num ambiente criogênico e de bai-

TECNOLOGIA>

xa pressão. Todo o sistema e o duto de transferência da plataforma que fará o transbordo para o navio precisarão es-tar a uma temperatura de -120° a -160° Celsius (C). O tanque também deverá ser resfriado. O problema é que o me-tal quando muito frio se torna frágil e pode trincar”, diz Nishimoto, que é do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Poli. Outro desafi o é fazer o transbordo em condições críticas, com o movimento do mar e das plataformas, que podem ser as semi-submersíveis ou navios-tanques fundeados, conhecidos por FPSOs, sigla de Floating, Produc-tion, Storage and Offl oading, ou sistema fl utuante de produção, armazenamento e descarga, e do navio de GNL, que terá comportamento diferente com os tan-ques cheios e vazios.

O TPN, que faz parte do grupo de desenvolvimento de sistemas da Petro-bras, produz cálculos e simula situações sobre esses futuros eventos consideran-do as diversas variáveis do ambiente marinho e dos equipamentos envolvi-dos. Ele foi montado com recursos da Petrobras e da Financiadora de Estu-dos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia em 2002. Dele fazem parte também pesquisadores da Coordenação dos Programas de Pós-

PE

TR

OB

RA

S

70-75_Pre-sal_152.indd 7170-75_Pre-sal_152.indd 71 01.10.08 14:54:3101.10.08 14:54:31

Page 69: A hora da política

76 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

QUÍMICA

Degradação difícilEstudo revela que plásticos oxibiodegradáveis não se decompõem na natureza como esperado

Os consumidores mais atentos já devem ter notado que certas sacolas plásticas, dessas utili-zadas para embalar produtos comprados em supermerca-dos, drogarias e lojas as mais diversas, trazem a informação

de que são confeccionadas com plástico oxibiodegradável. Esse tipo de plástico começou a ser produzido no fi nal dos anos 1980 e, segundo seus fabricantes, são ambientalmente corretos porque se decompõem rapidamente na na-tureza. Com isso minimizariam uma série de riscos ambientais decorrentes do descarte desses produtos, como a impermeabilização do solo e a conta-minação de lençóis freáticos. Agora uma pesquisa concluída recentemente por um pesquisador brasileiro mostra que não é bem assim. O engenheiro de ma-teriais Guilherme José MacedoFechine, professor da Universidade Presbiteria-na Mackenzie, de São Paulo, realizou uma bateria de testes com um tipo de plástico oxibiodegradável vendido no mercado nacional e constatou que, apesar de ele se fragmentar e virar pó, não é consumido por fungos, bactérias, protozoários e outros microorganismos – condição necessária para ser consi-derado biodegradável e desaparecer do solo ou da água. De acordo com o pesquisador, que não quer falar os no-mes comerciais dos produtos porque as empresas não foram consultadas, não é de hoje que a biodegradabilidade dos polímeros oxibiodegráveis é conside-rada um assunto polêmico na comu-nidade científi ca internacional. Uma corrente de estudiosos duvida se eles

Yuri Vasconcelos

são, de fato, biodegradáveis. No início do ano, o governador José Serra vetou um projeto de lei da Assembléia Legis-lativa paulista que tornava obrigatório o uso de sacolas plásticas com o aditivo oxibiodegradável porque havia dúvidas sobre o real benefício ao ambiente. “Meu estudo comprovou que não são biode-gradáveis”, afi rma Fechine, que acaba de retornar da Bélgica, onde participou de um congresso internacional sobre modifi cação e degradação de polímeros, o Modest 2008 na sigla em inglês.

Para entender a controvérsia sobre os polímeros oxibiodegradáveis, é im-portante, primeiro, compreender como ocorre o processo de biodegradação desses plásticos e, em seguida, saber como eles são produzidos. A oxibiode-gradação acontece em dois estágios. No início o plástico é convertido, pela ação de oxigênio, temperatura ou radiação

ultravioleta em fragmentos moleculares menores. Em seguida esses fragmentos se biodegradam, o que signifi ca que são convertidos em dióxido de carbono, água e biomassa por microorganismos decompositores. Para fomentar tal ca-racterística, os fabricantes misturam um aditivo pró-oxidante a polímeros convencionais, como polipropileno, polietileno ou outros. Esses polímeros são os mais usados para confecção de sacos e outros produtos plásticos. O aditivo pró-oxidante acaba por tornar o polímero supostamente biodegradá-vel. Quando descartado em aterros ou lixões, o aditivo quebraria as longas ca-deias moleculares que formam os polí-meros, conferindo-lhe as características necessárias para ser consumido pelos microorganismos presentes no solo.

“Segundo meu estudo, a única dife-rença dos polímeros oxibiodegradáveis é que o tempo de fragmentação é muito mais rápido do que o dos polímeros convencionais”, afi rma Fechine. “As em-presas que comercializam esse tipo de aditivo pró-oxidante deveriam alertar que apenas sua presença não tornará o plástico biodegradável. Para que is-so ocorra, o polímero precisaria pas-sar por uma forte degradação prévia, causada por radiação ultravioleta ou temperatura, por exemplo, e ser des-cartado em solo apropriado, com pH, umidade, temperatura e presença de microorganismos que permitissem a ocorrência da biodegradação.”

Nem todos concordam com as limi-tações do aditivo. “Não conheço o traba-lho, não sei se foi feito com o aditivo que represento, nem sei que metodologia o

>

Fotodegradação e fotoestabilização de blendas e compósitos poliméricos

MODALIDADE

Programa Apoio a Jovens Pesquisadores

CO OR DE NA DOR

GUILHERMINO JOSÉ MACEDO FECHINE – USP e Mackenzie

INVESTIMENTO

R$ 59.645,00 e US$ 48.470,55 (FAPESP)

O PROJETO>

76-77_Plasticos_152.indd 7676-77_Plasticos_152.indd 76 9/30/08 10:32:13 PM9/30/08 10:32:13 PM

Page 70: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 77

FOT

OS

MIG

UE

L B

OY

AY

AN

pesquisador utilizou. Mas posso garantir que testes conduzidos pela Ecosigma, empresa com sede em Campinas espe-cializada em compostagem e gestão de resíduos, e com participação da Uni-versidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Instituto Agronômico de Campinas (IAC), demonstraram que os plásticos oxibiodegradáveis fabricados com o aditivo d2w, que representamos no Brasil, são, de fato, biodegradáveis, compostáveis e não ecotóxicos para plantas superiores, minhocas e micro-organismos metanogênicos [que pro-duzem metano]”, afi rma Eduardo van Roost, diretor-superintendente da Res Brasil, que comercializa o aditivo d2w para mais de 160 fabricantes brasileiros de embalagens plásticas. “Uma prova da efi ciência, desempenho e segurança do nosso aditivo é o fato de ele estar presente em mais de 60 países”, complementa.

Comparação de amostras - O expe-rimento conduzido por Fechine, que há três anos está à frente de um projeto Jovem Pesquisador da FAPESP, realizado no Departamento de Engenharia de Materiais da Escola Politécnica (Poli) da Universidade de São Paulo (USP) antes de ele se tornar professor do Ma-ckenzie, comparou a degradação de duas amostras de polipropileno, uma delas contendo o aditivo pró-oxidante e outra sem essa substância. Na primeira etapa do trabalho, as duas amostras foram previamente fotodegradadas numa câ-mara de envelhecimento acelerado com emissão de radiação ultravioleta. “Com isso simulamos a fotodegradação que os plásticos sofrem num aterro sanitário ou lixão em função da radiação solar que incide sobre eles”, explica o professor. As amostras foram submetidas a dife-rentes tempos de radiação, sendo que a mais longa exposição correspondeu a 480 horas (ou 20 dias) na câmara de envelhecimento. Ao fi nal desse período o polímero com aditivo pró-oxidante encontrava-se em avançado estado de decomposição. “Medimos a massa mo-lar (mede quantidade de moléculas) das duas amostras antes e depois do ensaio na câmara de envelhecimento e constatamos que o aditivo pró-oxidante realmente acelerou a fotodegradação de forma intensa, quando comparado à amostra com polímero convencional.

Restava saber se, além de fragmentado, ele se tornara biodegradável”, conta o professor Fechine.

As duas amostras foram, então, sub-metidas a testes de biodegradabilidade em um terreno previamente prepara-do. Foram enterradas e, de tempos em tempos, coletadas para pesagem e avaliação de perda de massa. “Depois de quase dois meses constatamos que não houve perda signifi cativa de massa para ambas as amostras. Isso quer dizer que nenhuma das duas foi consumida pelos microorganismos do solo durante esse tempo”, diz Fechine. “Nosso expe-

rimento mostrou que o aditivo acelera a fragmentação do polímero, mas não o torna biodegradável.” Um artigo com os resultados dos ensaios já foi aceito para publicação pela revista Polymer Engine-ering and Science, uma das mais concei-tuadas na área de polímeros. Intitulado Effect of UV radiation and pro-oxidant biodegradability, o artigo foi escrito em parceria com os pesquisadores Nico-le Demarquette, da Poli-USP, Derval dos Santos Rosa e Marina Rezende, da Universidade São Francisco, em Itatiba, no interior paulista, responsáveis pelos ensaios de biodegradação em solo. ■

Representação da degradação e da decomposição de plásticos no solo

76-77_Plasticos_152.indd 7776-77_Plasticos_152.indd 77 9/30/08 10:32:13 PM9/30/08 10:32:13 PM

Page 71: A hora da política

78 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

CONSERVAÇÃO

Preservação sob medidaSensor monitora processo de corrosão a que estão submetidos órgãos históricos em igrejas e obras de arte em museus

Um órgão do período barroco instalado na Catedral da Sé em Mariana, cidade histórica de Minas Gerais, foi monito-rado durante um ano e quatro meses com um sensor desen-volvido por pesquisadores da

Universidade de São Paulo (USP), como parte de um projeto de preservação de órgãos históricos chamado Sensorgan, fi nanciado pela Comunidade Européia. A técnica permite avaliar a infl uência da umidade, da temperatura e de vapo-res de ácidos orgânicos liberados pela madeira no processo de corrosão dos tubos de emissão do som. “Com base nesse monitoramento, podemos defi -nir melhor, por exemplo, a que horas as janelas e portas da catedral devem ser abertas e fechadas para colaborar com a manutenção do metal, para que tenha uma sobrevida mais longa”, diz a organista Elisa Freixo, curadora do ór-gão de Mariana, fabricado em 1700 pelo construtor Arp Schnitger e um dos mais bem preservados fora da Europa.

“O monitor é uma combinação de sensores de temperatura, umidade rela-tiva e luminosidade e de um dosímetro baseado em uma microbalança com um disco de cristal de quartzo de 0,5 cen-tímetro de diâmetro por 0,1 milímetro de espessura, ligado a dois eletrodos de ouro que registram alterações de peso sutis que ocorrem em qualquer material depositado na superfície do quartzo”, ex-plica o professor Andrea Cavicchioli, da Escola de Artes, Ciências e Humanida-des da USP, que participa do projeto eu-ropeu. Uma camada fi na da substância investigada – no caso dos órgãos, óxido de chumbo – é depositada no disco de quartzo, em forma de fi lme de espes-

Dinorah Ereno

sura nanométrica. Quando o sensor é colocado no microambiente em que se encontra o órgão, ele consegue medir a velocidade do processo de desgaste por-que o disco registra a corrosão do metal como uma mudança de peso.

Antes de ser usada na avaliação de órgãos históricos, a técnica da micro-

balança de quartzo já era empregada em sensores ambientais para monitora-mento de gases presentes na atmosfera. Cavicchioli, também químico, resolveu adaptar a metodologia para monitorar a resposta de materiais pictóricos em ambientes fechados que abrigam obras de arte, como museus e galerias, basea-do no conhecimento de que o proces-so de degradação de substâncias como tintas, vernizes e colas ocorre com a variação de massa. “Quando um fi lme de verniz colocado na microbalança é atacado por fatores ambientais ele se oxida, sofrendo uma transformação ir-reversível, fi ca um pouco mais pesado e isso pode ser registrado pela microba-lança”, relata. A técnica, que hoje pode ser aplicada com o auxílio de um dis-positivo automático desenvolvido pelo grupo, permite avaliar a qualidade do ambiente onde as obras estão expostas, já que registra os efeitos oxidantes da atmosfera na decomposição de mate-riais orgânicos usados em quadros.

>

Impacto de microambientes na conservação de bens culturais

MODALIDADE

Programa Apoio a Jovens Pesquisadores

CO OR DE NA DOR

ANDREA CAVICCHIOLI – USP

INVESTIMENTO

R$ 201.187,36 (FAPESP)

O PROJETO>

Sensor detecta substâncias liberadas pela degradação da madeira

78-79_Sensor_152.indd 7878-79_Sensor_152.indd 78 30.09.08 22:33:3330.09.08 22:33:33

Page 72: A hora da política

PESQUISA FAPESP 145 ■ NONONNON DE 2008 ■ 79

FOT

OS

ED

UA

RD

O C

ES

AR

Tubos emissores de som no órgão

do Mosteiro de São Bento,

em São Paulo

Esse trabalho resultou em um convi-te para participar do projeto europeu, li-derado pela Göteborg Organ Art Center, instituição sueca dedicada à conservação da arte organística. O projeto, que tem como objetivo desenvolver tecnologias para detectar se as condições ambientais onde o órgão se encontra são favoráveis ou não à sua degradação, reuniu sete ins-tituições parceiras. Além da USP e do centro de conservação sueco, participam pesquisadores da Universidade de Lon-dres, do Instituto de Catálise e Química de Superfície na Polônia, do Instituto de Ciências Atmosféricas e Clima de Padova, na Itália, do Centro Municipal de Cultura de Olkusz, na Polônia, e da Universidade de Tecnologia Chalmers, da Suécia. As pesquisas foram iniciadas em janeiro de 2006 e, desde então, as técnicas de monitoramento desenvol-vidas estão sendo testadas em instru-mentos do patrimônio europeu, além do órgão de Mariana.

O grupo da USP desenvolveu protó-tipos automáticos para detectar a ação de substâncias gasosas dentro do ór-gão. Essas substâncias, principalmente o ácido acético e o ácido fórmico, são liberadas pela degradação da madeira. Em combinação com fenômenos de condensação, criam condições favorá-veis para causar sérios danos às partes metálicas dos órgãos. “Embora pareça um material inerte, a madeira é o prin-cipal inimigo dos tubos de chumbo”, diz Cavicchioli. Paralelamente à cola-boração com o programa europeu, ele iniciou um projeto Jovem Pesquisador, fi nanciado pela FAPESP, para avaliar como a combinação de diferentes fa-tores ambientais leva à degradação de vernizes em obras de arte. ■

78-79_Sensor_152.indd 7978-79_Sensor_152.indd 79 30.09.08 22:33:3530.09.08 22:33:35

Page 73: A hora da política

80 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

80-83_COGUMELOS_152.indd 8080-83_COGUMELOS_152.indd 80 9/30/08 10:36:02 PM9/30/08 10:36:02 PM

Page 74: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 81

Alimento rico em proteínas, vitaminas, sais minerais, car-boidratos e com baixo teor de substâncias gordurosas, os cogumelos comestíveis têm gradativamente conquistado novos consumidores brasi-

leiros. Mesmo assim, o consumo em torno de 30 gramas por pessoa ao ano ainda está muito distante dos dois qui-los consumidos pelos franceses e dos oito quilos utilizados pelos chineses no mesmo período. O preço é certamente um dos obstáculos para a ampliação do mercado desses fungos, que têm alto custo pela complexidade do cultivo. A preparação do substrato, composto à base de serragem e farelo de cereais que precisa passar por cuidadosa esteriliza-ção para evitar futura contaminação por outros fungos e bactérias, é uma das etapas desse processo quando o cultivo é feito em câmaras de cultivo climatizadas (com temperatura, umi-dade e aeração controladas). Um siste-ma inovador de esterilização dinâmica foi desenvolvido na empresa Fungibras, de Botucatu, no interior paulista, pe-lo pesquisador Augusto Ferreira Eira, professor aposentado da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Em vez das tradicionais autocla-ves – equipamento que utiliza vapor d’água sob pressão –, onde o substrato é colocado em pequenos sacos plásticos de polipropileno para ser esterilizado a 120º Celsius, Eira criou uma máquina

AGRONOMIA

Esterilização dinâmicaEquipamento desenvolvido pela Fungibras inova no processo de cultivo de cogumelos

>

cilíndrica com 2,5 metros de altura que gira no sentido horizontal, com capaci-dade para abrigar de uma única vez 1,5 tonelada do composto. O esterilizador foi desenvolvido com o apoio da FA-PESP por meio do programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Microempresa (Pipe). “Como é um equipamento di-nâmico, a massa entra constantemente em contato com o vapor em alta tem-peratura, ou seja, a esterilização ocor-re no substrato inteiro”, diz Eira. “Na autoclave, como o processo é estático, a esterilização demora cerca de duas horas para a parte externa do substrato e pode chegar a várias horas para atin-gir o centro, principalmente no caso de sacos com grandes quantidades do composto.”

Um parafuso grande em formato he-licoidal de rosca sem-fi m, colocado no centro do equipamento, permite tanto tirar o substrato pronto de dentro do esterilizador como prepará-lo, depois de frio, para a inoculação de cogume-los. Tudo feito por uma escotilha, sem contato externo e, portanto, sem risco de contaminação para o material. O tempo total para aquecimento da massa de 1,5 tonelada é de cerca de três horas, o mes-mo gasto para o resfriamento. Os dois ciclos são completados em seis horas, no máximo. “Para esterilizar a mesma quantidade na autoclave, seriam neces-sárias cinco máquinas com volume de 10 mil litros cada uma”, compara. Ou seja, mais gasto de tempo e da energia necessária para produzir o vapor.

Shiitake com o chapéu

aberto: ponto ideal de colheita M

IGU

EL

BO

YA

YA

N

80-83_COGUMELOS_152.indd 8180-83_COGUMELOS_152.indd 81 9/30/08 10:36:05 PM9/30/08 10:36:05 PM

Page 75: A hora da política

O desenvolvi-mento do esteri-lizador dinâmico é um desdobra-mento da trajetó-ria acadêmica do pesquisador. For-mado em agrono-mia, Eira dedicou-se à microbiologia desde o início de sua carreira, quando ainda era estagiário bolsista, em 1965. O inte-resse pelos fungos resultou na criação do Módulo de Cogumelos na Faculda-de de Ciências Agronômicas da Unesp, em 1985, e na realização de um projeto temático fi nanciado pela FAPESP, para estudar a tecnologia de cultivo, a ca-racterização bioquímica e os efeitos protetores dos cogumelos comestíveis e medicinais (leia matéria na edição nº 100 de Pesquisa FAPESP).

Empresa familiar - Em 2004, depois de se aposentar, criou a empresa Fungibras com os fi lhos Guilherme e Frederico Castilho da Eira, ambos engenheiros agrônomos. “Antes de dar início ao projeto, fi z um levantamento de equipa-mentos para esterilização patenteados no mundo e descobri a existência de alguns que procuram fazer a mesma coisa, mas trabalham de maneira to-talmente diferente”, relata o professor Augusto. “Nenhum deles executa todas as operações em um único equipa-mento: homogeneização, esterilização, resfriamento, inoculação e extrusão do substrato.” Os detalhes construtivos que permitem todas as operações constam do pedido de patente da máquina.

Na primeira fase do projeto foi cons-truído um protótipo do esterilizador. Os testes mostraram que os pesquisadores estavam no caminho certo. Na segunda etapa foi construída a máquina que hoje está em uso na Fungibras, usada tanto para a produção de substrato pelo método chamado axênico – que signifi ca livre de outros organismos, por passar por um

processo de esterilização que impede o aparecimento de pragas e doenças até a fase da frutifi cação – como para a produção de matrizes (sementes) de cogumelos. Essas matrizes são originadas a partir de pequenos fi lamentos fi nos, chamados hifas ou micélios, retirados do chapéu do cogumelo.

O substrato sai do esterilizador por uma porta que se abre dentro de um laboratório com ar estéril. Para a produção das sementes, basta colocar o micélio na quantidade desejada no substrato pronto. Feito isso, a massa inoculada é colocada em galpões cli-

matizados e, após 50 a 60 dias, os cogumelos estão prontos para se-rem colhidos. Esse método é bem di-ferente da técnica chamada in natura, ainda bastante usa-da em algumas re-giões do Brasil, em que os micélios são inoculados direta-mente em troncos de madeira ou em

substratos compostados e pasteuriza-dos. Mas como é uma técnica muito rudimentar, a primeira colheita em to-ras inoculadas pode demorar de seis meses a um ano depois da semeadura. No cultivo axênico em substrato estéril, os cogumelos crescem sem competição em um meio com mais nutrientes, equi-líbrio de pH e umidade controlada. A Fungibras já está produzindo shiitake (Lentinula edodes) e shimeji (Pleurotus ostreatus) em câmaras de cultivo cli-matizadas e também micélio semente para vários cogumelos, incluindo o cogumelo-do-sol (Agaricus blazei) sob encomenda para produtores.

A empresa, que começou suas ati-vidades incubada no Núcleo de Desen-volvimento Empresarial de Botucatu, cresceu e, desde setembro de 2006, está instalada em uma área de 3 mil metros quadrados no Distrito Industrial da ci-dade. As pesquisas com o esterilizador dinâmico ainda não foram encerradas. “Só vamos pensar em efetivamente maximizar o uso do equipamento, com uma estratégia de marketing, quando todas as variáveis da produção de co-gumelos estiverem defi nidas”, diz Eira.

“A literatura científica cita em torno de 2 mil espécies de cogumelos comestíveis”, relata a pesquisadora Arailde Urben, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasí-lia, uma das 41 unidades da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Dessas, só dez se tornaram populares comercialmente. Embora não existam

Processo para operações múltiplas de esterilização, homogeneização, inoculação e ensacamento, visando à produção de inoculantes e substratos para cultivo de cogumelos comestíveis e medicinais

MODALIDADE

Pesquisa Inovativa na Pequena e Microempresa (Pipe)

CO OR DE NA DOR

AUGUSTO FERREIRA DA EIRA – Fungibras

INVESTIMENTO

R$ 371.058,87

O PROJETO>

Bloco de shiitake em câmara de cultivo climatizada

82 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

FU

NG

IBR

AS

MIG

UE

L B

OY

AY

AN

80-83_COGUMELOS_152.indd 8280-83_COGUMELOS_152.indd 82 9/30/08 10:36:06 PM9/30/08 10:36:06 PM

Page 76: A hora da política

dados ofi ciais relativos à quantidade produzida no Brasil, porque as ven-das são feitas em muitos casos direta-mente do produtor para o consumidor, principalmente para os restaurantes e a rede hoteleira, as estimativas são de que em 2004 foram produzidas cerca de 8 mil toneladas no Brasil, divididas entre champignon, cogumelo-do-sol, shimeji e shiitake.

Clima favorável - Os produtores bra-sileiros estão concentrados principal-mente no Sul e Sudeste. A região de Mogi das Cruzes, no interior paulista, onde existe uma grande comunidade japonesa, responde por 70% da pro-dução de cogumelos comestíveis no Brasil. “As condições climáticas daqui, como temperatura amena e alta umida-de, são favoráveis ao cultivo”, explica o engenheiro agrônomo Renato Augusto Abdo, coordenador de agronegócios do Sindicato Rural de Mogi das Cruzes. Condições ideais para o cultivo do champignon, produzido principalmen-te na região do Alto Tietê, que engloba, além de Mogi das Cruzes, as cidades de Salesópolis, Biritiba Mirim e Suzano.

Cogumelo-do-sol em várias fases de maturação

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 83

Cultivo tropicalizado

Uma técnica de origem chinesa para o cultivo de cogumelos, que tem o capim como principal matéria-prima do composto, tem sido disseminada no Brasil pela Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. “Chamada de Jun-Cao (fungo-gramínea em tradução literal), usa capim desidratado, triturado em pequenos fragmentos de cerca de dois a três centímetros, misturado com farinha de arroz e trigo”, explica a pesquisadora Arailde Urben. Para neutralizar o pH do composto utiliza-se gesso agrícola, que funciona como um elemento de ligação entre as partículas do grão e do farelo. A esterilização do material pode ser feita em uma panela de pressão comercial, em autoclave ou também pelo processo de pasteurização.

“A técnica Jun-Cao foi desenvolvida pelos chineses em 1983 e, em apenas quatro anos, permitiu à China aumentar em 250% a sua produção”, diz a pesquisadora formada em biologia e especialista em fungos, que participou em 1995 do primeiro curso internacional de difusão do método para países em desenvolvimento. “Essa técnica evita a derrubada de árvores, o preço do capim é bem mais barato que o de toras e o tempo de cultivo é de cerca de 40 dias.” O tema será tratado no 4º Simpósio Internacional sobre Cogumelos no Brasil, a ser realizado em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, entre os dias 27 e 30 de outubro.

A Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia possui um banco de germoplasma de cogumelos com 321 espécies de interesse alimentar e me-dicinal, organizado por meio de coleta de espécies nativas em diversas regiões brasileiras e também de outras que foram introduzidas aqui no Brasil. “Quando encontramos espécies com bom potencial terapêutico, peço para uma bioquímica analisar”, relata Arail-de. Nos últimos anos várias pesquisas têm sido feitas por pesquisadores bra-sileiros, japoneses e norte-americanos para testar alegados efeitos terapêuti-cos dos cogumelos, principalmente do cogumelo-do-sol. “Eles são estudados como possíveis aliados no tratamento complementar de doenças como câncer, lúpus, papilomavírus humano (HPV) e aids”, diz Arailde, que acompanha de perto esses estudos. Não há consen-so entre os pesquisadores sobre os reais efeitos protetores para esses ca-sos. O que se sabe com certeza é que eles funcionam como um excelente complemento alimentar. ■

Dinorah Ereno

80-83_COGUMELOS_152.indd 8380-83_COGUMELOS_152.indd 83 9/30/08 10:36:11 PM9/30/08 10:36:11 PM

Page 77: A hora da política

HISTÓRIA

A polêmica “política do coração” da princesa Isabel | Carlos Haag

RE

PR

OD

ÕE

S D

O L

IVR

O C

OL

ÃO

PR

INC

ES

A IS

AB

EL

, ED

ITO

RA

CA

PIV

AR

A

>HUMANIDADES

84-89_Isabel_152.indd 8484-89_Isabel_152.indd 84 30.09.08 22:40:2230.09.08 22:40:22

Page 78: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 85

Em A mão e a luva (1874), de Machado de Assis, a heroína, Guiomar, na contramão do comportamento esperado de uma boa mocinha de romance romântico, “experimenta” o na-morado antes de cogitar aceitá-

lo. Enquanto isso, Luís Estevão, o mo-cinho, sofria horrores, contorcendo-se no leito e suspirando o nome da amada entre lágrimas e ranger de dentes. Guio-mar, porém, pensava pragmaticamente, ou, nas palavras de Machado, fazia um “cálculo, um bom cálculo, nesse caso to-do fi lho do coração”. Nisso, ela se apro-xima muito de outra fi gura do século XIX, que igualmente representou, por toda a sua vida, o papel de “heroína” (ou, no seu caso, de “redentora”), que vivia pelo coração, sem, no entanto, abrir mão do cálculo. Isabel Cristina Augusta Miguela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon, a princesa Isabel (1846-1921), herdeira do trono de dom Pedro II, passou à história como a “li-bertadora” dos escravos, fascínio dos monarquistas de ontem e de sempre e terror dos republicanos de primeira hora, que penaram para dissociar a sua imagem dinástica da abolição do escra-vismo em 1888.

“Ela foi uma mulher do século XIX, marcada por uma visão católica rea-cionária-aristocrática que, de alguma forma, contribuiu para a modifi cação do cenário imperial brasileiro. Não foi tão abnegadamente altruísta em sua política, nem tão responsável pela farsa de uma abolição incompleta da miséria, nem tão imobilizada pelas estruturas patriarcais machistas, nem tão rebelde e revolucionária. Ela sempre buscou pa-vimentar o caminho para o trono por meio do que chamei de ‘política do co-ração’”, explica Robert Daibert Júnior, autor da tese de doutorado Princesa Isa-bel: a “política do coração” entre o trono e

o altar, defendida recentemente na Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro sob orientação de José Murilo de Carvalho. “Sua luta antiescravista é a ponta de um iceberg, cujas bases giravam ao redor de um abolicionismo católico, afi nado com a visão do papa e dos bispos. Ou seja, estavam baseadas num abolicio-nismo redentor, doador da liberdade, previdente, previsível, pacífi co. E, aci-ma de tudo, esse abolicionismo deveria garantir a formação de libertos ordei-ros, catolicamente civilizados e fi éis à Igreja e à sua concepção de sociedade e política”, analisa. Segundo o pesqui-sador, manteve sempre os olhos fi xos no Brasil, que, por décadas, no exílio, planejou governar. “Mas sempre olhou para o país debruçada da janela do Vati-cano.” A pecha de “princesa carola”, que enfurecia os liberais e os republicanos, porém, não deve ser entendida como apenas um sentimento sincero de reli-giosidade e de obediência conservadora à Igreja, mas como “um cálculo”, ainda que “fi lho do coração”. Ainda assim, um “cálculo” que seria a base de um futuro terceiro reinado, que saberia aproveitar as benesses da modernidade em nome

de um passado reacionário e católico que ela gostaria de fazer presente.

Uma metáfora notável disso está na sua paixão pela fotografi a, herdada do pai, dono de mais de 2.500 imagens. No exílio, Isabel, conta Daibert, lança-va mão de um “recurso iconográfi co”, sempre pedindo para que lhe enviassem fotos em que aparecia com os fi lhos e o imperador. “Provavelmente, queria demarcar a legitimidade da linha su-cessória que ia do pai, passava por ela e chegava até o fi lho. Marcava com isso seu território, mandava seu recado e costurava alianças a favor de si, do fi -lho e contra os sobrinhos que queriam usurpar a sucessão.” A modernidade a serviço do mais antigo dos desejos de poder. Seu amor pela imagem, aliás, acaba de render um belíssimo livro, Coleção princesa Isabel (Editora Capi-vara, 423 páginas, R$ 190), com mais de 1.200 fotografi as de nomes como Ferrez, Stahl, Henschel, Leuzinger, Malta, entre outros (algumas delas ilustram esta reportagem). Ao lado da beleza estética, há fotos de valor his-tórico e jornalístico, como a série de 13 imagens, até então desconhecidas,

Isabel observa experiência de

Santos-Dumont com balões (esq.); ao lado,

a familia imperial no exílio, em 1920

84-89_Isabel_152.indd 8584-89_Isabel_152.indd 85 30.09.08 22:40:2430.09.08 22:40:24

Page 79: A hora da política

86 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

Esse amor pela imagem é uma das poucas características do pai que Isabel parece ter herdado, apesar dos cuidados do imperador em criá-la em condições de ser a futura herdeira do reinado. “O caráter das princesas deve ser formado tal qual convém a senhoras que poderão ter que dirigir o governo constitucio-nal de um império como o do Brasil”, escreveu Pedro II para regulamentar o estudo das fi lhas. Nem tudo funcionou como o esperado. “Diferente do pai, Isa-bel encarava os inventos e as tecnolo-gias como bênçãos divinas oferecidas aos homens. Enquanto o imperador recomendava à fi lha honrar os que se aplicam às ciências naturais, a princesa atribuía responsabilidade, honra e valor a Deus por ter permitido aos homens tal conhecimento”, nota Daibert. Sua perspectiva sobre o modelo do “prínci-pe virtuoso” era bem diverso do que lhe era oferecido pelo pai e pelos mestres, quase todos antigos professores de dom Pedro. “Os governantes exemplares para dona Isabel eram aqueles que exercita-vam a prática da caridade e trabalhavam em favor da expansão do cristianismo e apresentavam respeito à Igreja e seus ministros, esforçando-se por favorecer a esfera de ação do clero católico na so-ciedade. Seus santos de devoção eram

aqueles que ocuparam uma posição política como reis e rainhas. Era assim que entendia o papel dos governantes e concebia sua própria posição.”

Diante de uma sociedade cada vez mais secular, marcada por problemas modernos sociais e disputas políticas, Isabel imaginava que uma sociedade melhor seria alcançada por meio da readoção de valores cristãos católicos e, assim, se espelhava em governantes devotos para achar suportes que, na sua visão, eram estáveis o bastante pa-ra mantê-la, futuramente, à frente do governo monárquico. “Por sua própria condição de herdeira do trono, ela provavelmente ambicionava tornar-se o instrumento de propagação das prerrogativas católicas nos quadros do Estado imperial brasileiro”, explica. Esse “cálculo do coração” foi reforçado com seu casamento, em 1864, com Gaston de Orleans, o conde d’Eu, um príncipe católico e francês de 22 anos, exilado na Inglaterra desde a revolução de 1848. “O catolicismo de Isabel trazia-lhe à me-mória lembranças de sua mãe, morta quando ele era adolescente. Sua prepa-ração e educação, a partir do casamento, passaram a ser assumidas por Gaston, que buscou situá-la dentro do cenário oitocentista no qual ela precisava se mo-

Te Deum, 1887 (Marc Ferrez)Aprovação da Lei Áurea, 1888 (Luiz Ferreira)

que mostram o 13 de Maio “ao vivo”, da votação no Senado à celebração nas ruas. Ou, ainda, o Te Deum, na catedral do Rio, de Ferrez, quando a princesa foi aclamada regente, em 1887, pela terceira e última vez.

Revelação – As fotos estavam guardadas num baú em posse de Thereza Maria de Orleans e Bragança, última neta viva de dona Isabel, e foram resgatadas por Pedro e Bia Corrêa do Lago. “A descoberta e a revelação da coleção operam uma revolu-ção no campo da fotografi a oitocentista. A princesa e o conde d’Eu prepararam um festim iconográfi co e póstumo pa-ra historiadores do Brasil e da fotogra-fi a”, observa o historiador José Murilo de Carvalho. São paisagens, retratos da intimidade da nobreza, mas, sintoma-ticamente, há pouquíssimas imagens de negros. “Apesar de a imagem da princesa ter fi cado ligada à Abolição, são poucas as fotos de negros, salvo uma foto de Ruy Santos, Congada em Minas Gerais, e o retrato inédito de dom Obá II d’África, em verdade o baiano Cândido da Fonseca Galvão, neto de um soberano africano que era reverenciado como príncipe real pelos escravos e que participava das audi-ências com Pedro II vestindo fraque, car-tola e pince-nez”, conta Corrêa do Lago.

84-89_Isabel_152.indd 8684-89_Isabel_152.indd 86 30.09.08 22:40:2430.09.08 22:40:24

Page 80: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 87

ver. Lia livros indicados pelo marido e se inteirava dos confl itos entre capital e trabalho que assombravam a Euro-pa, em especial a respeito das ‘ambições perigosas’ das classes trabalhadoras.” O conde, por sua parte, passou a atrair a simpatia dos liberais que, por ocasião da Guerra do Paraguai, o tinham co-mo aliado, vendo nele um representan-te possível de seus interesses, capaz de tirá-los do ostracismo em que viviam nas disputas pelo gabinete. “Dona Isabel não encontrava segurança na postura liberal do marido e suas supostas postu-ras liberais haviam causado sérios pro-blemas. Ela não podia se transformar em fantoche dos partidos se quisesse manter a questionada neutralidade do poder moderador, base do regime.”

Além disso, a politização a afastava mais do trono, pois não era essa a polí-tica que aprendera e que desejava, não encontrando na realidade expressões de seus santos heróis e heroínas medie-vais. “Não se identifi cava com aquele mundo e, pior, quanto mais investia na aquisição de certa visibilidade, mais era intimada a mostrar sua cara, a se posi-cionar, a mostrar sua política”, analisa o pesquisador. Os jornais liberais, que defendiam uma maior secularização da sociedade, noticiavam, com desconfi an-ça, a sua ligação estreita com o Vatica-no e o conde parecia, a cada dia, uma aposta frustrada. Para piorar, durante a Questão Religiosa, confl ito entre a ma-çonaria e a Igreja, que culminou com a prisão de dois bispos a mando de Pedro II, a princesa tomou as dores eclesiásti-cas contra o pai. “Devemos defender os direitos dos cidadãos brasileiros, os da Constituição, mas qual a segurança de tudo isso se não obedecemos em pri-meiro lugar à Igreja?”, questionou ao pai, em carta, solicitando ao imperador que o Estado favorecesse a Igreja. “O pensamento de Isabel parecia preocupar o próprio imperador, que, antes de se ausentar, deixa registradas as diretrizes a serem seguidas, embora, posterior-mente, tente negar interferências no governo regencial da fi lha.” Isabel che-ga ao extremo de condenar a visita do pai, na Europa, a uma sinagoga e sua visita ao rei italiano Vittorio Emanuel-le, a quem não perdoa ter unifi cado o país com a submissão do Vaticano e do papa ao novo Estado. “Ela começa ser desqualifi cada em sua capacidade de go-

vernar futuramente o país. Preocupada, passou a ir à missa apenas aos domingos e deixou de ter confessor efetivo. Sem sucesso. As críticas ganharam reper-cussão intensa”, conta Daibert. A carta guardada na manga nesse momento era o seu abolicionismo “caridoso” e de for-te cunho católico.

Roupagens – Ao encontrar-se com um padre negro, no Recife, o conde d’Eu deu à esposa mais argumentos. “Ele viu naquilo uma solução à brasileira: os brancos poderiam contribuir para que membros das raças ‘inferiores’ su-perassem a sua condição. O padre era isso, um negro com novas roupagens concedidas pelos brancos, típicas da civilização européia representada pelo catolicismo.” Vivendo no mundo das elites deslumbradas com a Europa, mo-

Congada em Minas Gerais, 1876 (Ruy Santos)

delo a ser repetido nos trópicos, Isabel percebeu que o combate à escravidão no “mundo civilizado” ganhava força, informando disso o imperador, um monarca preocupado com sua ima-gem no exterior. Num baile à fantasia oferecido pela rainha Vitória, Isabel vestiu-se de preta baiana e o marido de mouro. “Na festa, Isabel naturaliza para si e para os outros a posição de seu país crioulo, diante das luzes do velho, uma declaração de um princípio não racista”, avalia o autor. “Quanto gos-taria que o nosso bom Brasil estivesse tão adiantado como a Inglaterra. Ele é muito moço ainda, o mundo não se fez em um dia. Já ele tem feito bastante e espero que ainda fará mais”, escreveu ao pai, revelando sua crença na superação do atraso nacional. Nisso as crenças de Isabel a ajudavam a ir além de muitos

84-89_Isabel_152.indd 8784-89_Isabel_152.indd 87 30.09.08 22:40:2530.09.08 22:40:25

Page 81: A hora da política

88 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

de seus contemporâneos. “O pessimis-mo científi co do conde Gobineau, ami-go de Pedro II e adepto de teorias sobre a degeneração das raças nos trópicos, em relação aos negros brasileiros não convencia dona Isabel. Seu catolicismo, nesse caso, servia-lhe de argumento na crença de que poderia favorecer a inte-gração do negro livre na sociedade.”

Eficiência – Em 1887, com o pai grave-mente adoentado, assumiu pela terceira vez a regência do Império e já se falava num Terceiro Reinado próximo. A ação abolicionista, acreditava, fora uma “po-lítica do coração” efi ciente. “Essa ação a colocava em sintonia com expectativas gerais da população, desvinculada de uma minoria de proprietários agrários. Esse pequeno, mas poderoso segmento sentia-se cada vez mais insatisfeito com a coroa que feria seus interesses. Ao se

afastar deles, a Monarquia precisou construir uma nova base de legitimidade junto aos grupos econômicos emergen-tes”, avalia o pesquisador. Aproximar-se dos abolicionistas foi um bom caminho. “Tratava-se de empreender a moderni-zação do país sem aderir aos radicais. O abolicionismo de Isabel e o teor li-beral, ambos moderados e pragmáti-cos, tinham elementos em comum que permitiram, a partir de certa afi nidade programática, um maior fortalecimento de suas propostas e uma relativa uni-dade de ação.” O que a princesa queria evitar era a solução violenta da questão servil, o temor de uma “onda negra” de vingança geral contra os brancos. Daí a boa aceitação de seu abolicionismo paternalista, pacífi co, moderado e di-rigido a garantir os interesses materiais dos grandes proprietários. “A abolição sonhada por ela era fruto de uma ação

caridosa, uma doação oferecida por um governo benfeitor, com os motivos reli-giosos destacados como fundamento de sua atitude. Essa, ao menos, foi a forma com que Isabel tentou registrar para a posteridade a sua ação.” O papa Leão XIII, mais esperto, entendeu melhor a atitude da princesa, vista por ele como uma expressão de dedicação às orienta-ções da Sé Apostólica, o que fazia com a Lei Áurea prenunciava a obediência do Terceiro Reinado às prerrogativas católicas. Isso não a ajudou em nada junto aos republicanos.

No exílio, após a morte de Pedro II, já convertida em imperatriz, viveu a fantasia de que seria chamada de vol-ta ao Brasil a qualquer momento para assumir o poder, desdobrando-se em articulações com monarquistas e inimi-gos da República. Há uma curiosa troca dupla de correspondências que dá uma visão de como Isabel agia. Numa carta enviada à cúpula monarquista carioca, Isabel afi rmava: “Repugna-me a idéia da guerra civil” como meio de voltar ao Brasil, um modelo de virtude do poder moderador imparcial. Em outra carta, datada do mesmo dia, mas destinada a um amigo, o tom é outro, mais sutil e revelador: “Lamento sempre as circuns-tâncias que armam irmãos contra ir-mãos. De forma alguma desejo animar tal guerra, tanto mais que não vejo nela base segura e nem êxito muito provável. O senhor, porém, conhece meus senti-mentos de católica e brasileira. Não du-vidarei, pois, que uma vez que a nação se pronunciar por convicção geral pela monarquia, para lá voltaremos”.

Daí a necessidade, observa Dai-bert, de entender a religiosidade e o sentimento humanitário e piedoso de Isabel dentro do contexto de sua épo-ca e classe social, bem como de seus planos futuros de poder. “As práticas de piedade, aparentemente restritas à esfera privada, ganhavam signifi cação política na medida em que se consti-tuíam espaços de gestação de identi-dades, ações e reações ao mundo em sua volta.” Sua prática era acompanha-da por uma visão intransigente, que rejeitava o mundo moderno em suas expressões de secularização. “De modo reacionário, acreditava que o retorno a valores antigos seria a garantia de suportes estáveis para o seu governo”, afi rma o pesquisador. ■

Ouro Preto, 1880 (Marc Ferrez)

84-89_Isabel_152.indd 8884-89_Isabel_152.indd 88 30.09.08 22:40:2730.09.08 22:40:27

Page 82: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 89

Ao lado, Hotel Bragança,

Petrópolis, 1874 (Klumb);

abaixo, praia do Diabo, 1889

(Marc Ferrez)

84-89_Isabel_152.indd 8984-89_Isabel_152.indd 89 30.09.08 22:40:2830.09.08 22:40:28

Page 83: A hora da política

Amazônia perdida e achada

Cientistas descobrem que primeiros habitantes

formavam civilizações organizadas e complexas

Gonçalo Junior

ANTROPOLOGIA

>

90-93_indios_152.indd 9090-93_indios_152.indd 90 30.09.08 22:42:4230.09.08 22:42:42

Page 84: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 91

gia Brasileira. Denise ainda comanda o grupo de pesquisa Geoglifos da Ama-zônia, fi nanciado pelo Conselho Na-cional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico (CNPq), juntamente com Miriam Bueno, geógrafa da Ufac.

Trata-se de uma investigação que deve mudar boa parte do que se tinha estudado sobre a ocupação da região amazônica. De imediato, desmente que o lado oeste da Amazônia é uma vasta área estéril de cultura humana complexa, como se pensava. Trabalhos de terraple-nagem enigmáticos deixados por socie-dades organizadas mostram que elas vi-veram e cultivaram ali. São indícios que podem levar a descobertas importantes no alvorecer do século XXI, quando não se acreditava em maiores novidades nes-sa área. “A ocorrência dos geoglifos no Acre põe por terra o paradigma de que as sociedades complexas da Amazônia tenham se desenvolvido apenas nas zo-nas de várzea dos grandes rios”, obser-

va Alceu Ranzi, do Instituto Histórico e Geográfi co do Acre e que fez parte da equipe comandada por Ondemar Dias da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro (UFRJ), que em 1977 descobriu os primeiros vestígios desses sinais.

Ranzi explica que os geoglifos ocorrem principalmente em áreas de interfl úvios – terras altas que dividem as águas dos rios Acre, Iquiri, Abunã. Ou seja, em terra fi rme. A descoberta da equipe de Dias só foi comunicada ofi cialmente à comunidade científi ca em 1988, sem nenhuma repercussão, em um artigo publicado pela antro-póloga Eliana de Carvalho. Nos últi-mos nove anos, porém, os trabalhos na região ganharam uma repercussão internacional. No momento, equipe de antropólogos comandada por Denise está fazendo um grande levantamento regional dos geoglifos. “Se olharmos pelo lado do domínio da geometria, círculos, octógonos e ângulos perfeitos, T

IAG

O Q

UE

IRO

Z/A

E

Uma ironia das mais cruéis: o desmatamento descontrola-do e criminoso da Floresta Amazônica tornou possível uma das mais importantes descobertas arqueológicas do Brasil em todos os tem-

pos. Por meio de imagens de satélite e pesquisas de campo, cientistas brasilei-ros e fi nlandeses estão descobrindo e mapeando geoglifos, gigantescos dese-nhos geométricos de até 350 metros de extensão, construídos pelos primeiros grupos organizados de homens que habitaram a região há cerca de 13 mil anos. “Sem o desmatamento, talvez ainda nem soubéssemos de sua exis-tência”, reconhece a professora Deni-se Pahl Schaan, vice-coordenadora do programa de pós-graduação em ciên -cias sociais, coordenadora do curso de especialização em arqueologia da Universidade Federal do Acre (Ufac) e presidente da Sociedade de Arqueolo-

90-93_indios_152.indd 9190-93_indios_152.indd 91 30.09.08 22:42:4430.09.08 22:42:44

Page 85: A hora da política

92 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

percebe-se a complexidade que envol-via a construção desses gigantescos geo-glifos”, acrescenta o professor Ranzi.

O projeto Geoglifos da Amazônia nasceu em 2007. No ano anterior, em as-sociação com pesquisadores fi nlandeses, foi criado um projeto para estudo de cinco geoglifos considerados de grande importância. Denise Pahl Schaan conta que as informações dos viajantes nos úl-timos séculos falavam de grandes socie-dades vivendo ao longo do Amazonas e seus afl uentes mais importantes. Da mesma forma as primeiras pesquisas arqueológicas privilegiaram as áreas de várzea. Uma vez que as populações indí-genas remanescentes da época colonial se refugiaram nos interfl úvios, foram lá encontradas pelos etnógrafos, que descreveram seu modo de vida.

Na década de 1950 alguns pesquisa-dores propuseram que o modo de vida indígena (pequenas aldeias, mudança de aldeia a cada cinco anos, em média) conhecido pelos etnógrafos refl etia o modelo de vida típico da terra fi rme em todas as épocas. “Os geoglifos mostram que essa noção estava errada, a constru-ção dos gigantescos desenhos indica or-ganização de força de trabalho e planeja-mento, existência de hierarquia social e provavelmente confl itos armados, uma vez que as trincheiras escavadas podem ter sido construídas para defesa.” A pes-quisadora destaca que sua geometria é perfeita e denota uma preocupação com o simbólico. “O estágio de desenvolvi-mento cultural desses povos que se en-contravam seria dos cacicados, socieda-des regionais com estratifi cação social.”

Não existem, porém, informações sobre quando e por que esses povos desapareceram. “Estamos atualmen-te fazendo o levantamento dos sítios em todo o estado do Acre e adjacên-cias, realizando escavações em alguns e coletando amostras de solo e matéria vegetal para datação para descobrirmos qual era a cobertura vegetal na época de sua construção. Assim será possível saber se a fl oresta foi derrubada para a construção dos geoglifos ou se a área era aberta, uma savana.

Quando comparados aos índios que vivem na Amazônia hoje, esses antigos povos eram mais numerosos e possuíam uma organização social mais complexa. Segundo Denise, os geoglifos representam uma população conside-rável vivendo na terra fi rme. As obras de terra apontam mobilização de força

de trabalho e de planejamento, o que só existe em sociedades complexas. “A dis-tribuição bastante extensa dos geoglifos por uma área de mais de 250 quilôme-tros de extensão indica padronização de práticas culturais monumentais sobre vastas regiões, o que só acontece em sociedades complexas”, acrescenta. “É preciso lembrar que as transformações da paisagem realizadas através dos geo-glifos também só existem em socieda-des complexas.”

D entre os pesquisadores que fi zeram parte da equipe de Ondemar Dias estava o hoje doutor em antropolo-

gia Franklin Levy. Por e-mail, o pesqui-sador fi nlandês recorda que depois da descoberta da primeira estrutura de ter-ra do Acre, em 1977, nos anos seguintes ele assumiu as pesquisas da frente orien-tal, de Cruzeiro do Sul até a divisa com o Peru. “Lá ainda não foram localizadas estruturas de terra.” Durante esse tempo, observa Levy, desconhecia-se esse lado oeste da Amazônia. “Dados esparsos e achados fortuitos não compunham um conhecimento arqueológico organizado, permitindo que esse vazio fosse preen-chido pela imaginação de cada um e, ocasionalmente, como extensão do co-nhecimento etnológico moderno.”

Para o antropólogo, a preconcebida observação de culturas modernas cal-cada na idéia de evolução linear, acre-ditando que cada povo galga patamares evolutivos de fácil observação – ou seja, progressos materiais –, criou distorções tanto de avaliação quanto de interpre-tação de outros pensadores e teóricos.

SE

RG

IO V

AL

E

SE

RG

IO V

AL

E

Círculo da civilização: encontros inesperados

Escavações reveladoras: pesquisadores encontram novas evidências

90-93_indios_152.indd 9290-93_indios_152.indd 92 30.09.08 22:42:4730.09.08 22:42:47

Page 86: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 93

“Mas essa confusão, aos poucos, vai sen-do esclarecida e dando lugar a uma nova visão, que fala de culturas complexas no sentido organizacional, chefi as e cacica-dos. Entender como compreenderam internamente esse fenômeno sem tentar explicá-lo pelo tamanho de suas emprei-tadas é trabalho do arqueólogo.”

P ode dizer com convicção, afi rma Levy, que, pelas evidências arqueo-lógicas, uma sociedade permane-

ceu nos seus geoglifos, mesmo com idas e vindas, por mais de 2.500 anos. Assim teve tempo de desenvolver uma cultura tão complexa que jamais será possível resgatá-la em todas as suas nuances. “Esses povos dominaram o ambiente com os inúmeros recursos técnicos que dispunham e venceram as vicissitudes do clima, mantendo a produção em todas as estações do ano.” Também habitaram savanas nos interfl úvios mais altos. Como as águas impediam habitar e plantar, cavavam grandes valas envolventes ao lugar a ser benefi ciado, rebaixando o lençol freáti-co insurgente, desafogando as raízes, e conseguiram manter o chão das casas mais seco na estação das chuvas.

Quando as chuvas cessassem e fos-se necessário queimar a palhada dos

campos, prossegue Levy, as valas se tor-navam refúgios seguros e preservavam o ambiente doméstico. Assim seguros, também controlavam o avanço da fl o-resta pelo fogo. “Eles diversifi cavam a economia com os recursos das várzeas que, a descoberto, no fi m das chuvas forneciam o que faltava nas terras altas.” Lá permaneciam por rápidas tempo-radas, como provado pelos restos ar-queológicos. “O perfeito domínio das condições climáticas e ambientais, ex-plorando produtivamente até as formas de interação entre os diversos povos que compunham essa cultura, denota um grau de evolução incompreensível para o observador atual”, avalia Levy. “Atribuímos intencionalidade e inven-tividade a essas tecnologias de sobrevi-vência, descartando a casualidade no processo e nas intenções.”

O também fi nlandês Martti Pärssi-nen, diretor científi co do projeto Man and Nature in Western Amazonian History, fi nanciado pela Universidade de Helsinque, ressalta que Alceu Ranzi é a alma da investigação dos geoglifos porque foi ele quem mobilizou todos os pesquisadores a formarem um gru-po de investigação. Pela ordem de im-portância, ele enumera os principais objetivos do projeto que coordena: (1)

reconstruir a história, a cultura, a eco-nomia, a etnia e a distribuição demo-gráfi ca dos povos que habitaram a re-gião localizada na fronteira entre Brasil e Bolívia antes e depois da chegada dos europeus; (2) prover as autoridades dos dois países de informações que ajudem a proteger os sítios arqueológicos, além de um rigoroso controle do turismo na região, de modo sustentável.

Pärssinen foi convidado por Ranzi em 2002 para conhecer os geoglifos no Acre, quando ele estudava uma fortifi -cação inca perto de Riberalta, na Bolí-via, a 200 quilômetros de Rio Branco. “Até meados do século XX os povos da Amazônia pré-europeus eram ge-ralmente interpretados por uma pers-pectiva etnográfi ca contemporânea. As sociedades amazônicas eram principal-mente vistas como grupos primitivos vivendo em pequenos grupos hostis e sem uma complexa organização social.” Ele cita o que Julian H. Steward escreveu em 1948: “A cultura da fl oresta tropical foi adaptada numa região extremamen-te quente, úmida e densamente arbori-zada. A caçada, a pesca e as queimadas produziram uma densidade baixa de população e comunidades pequenas”. Hoje as evidências demonstram exa-tamente o contrário. ■

MA

RIS

A C

AU

DU

RO

/FO

LH

A IM

AG

EM

Visão atual da aldeia: antropologia revê conceito de povos primitivos

90-93_indios_152.indd 9390-93_indios_152.indd 93 30.09.08 22:42:4930.09.08 22:42:49

Page 87: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 95

LIVROS

....FO

TO

S E

DU

AR

DO

CE

SA

R

Mas afi nal... o que é mesmo documentário?Fernão Pessoa RamosEditora Senac448 páginas, R$ 60,00

Através de uma abordagem histórico-fenome-nológica, Mas afi nal... o que é mesmo documentá-rio? proporciona fundamentos teóricos àqueles interessados na sétima arte. Traçando a evolução desse gênero constantemente em inovação, o livro discute as defi nições, a prática documental no Brasil e aponta as tendências dessa forma particular de ver e retratar a realidade.

Editora Senac (11) 2187-4450 www.editorasenacsp.com.br

Espelhos deformantes: fontes, problemas e pesquisas em história modernaRodrigo Bentes Monteiro (org.)Alameda Casa Editorial336 páginas, R$ 42,00

A fi m de questionar o “quanto de nós é re-fl etido nos processos históricos”, Rodrigo Monteiro lança hipóteses como a de Carlo Ginzburg, em que os espelhos deformariam seus objetos, ou a de Umberto Eco, segundo quem as diferenças dos refl exos seriam cau-sadas pelas posições dos ângulos. O livro fala sobre a necessidade de interpretar as imagens distorcidas do passado que, se não trabalha-das, se perdem ao longo do tempo.

Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

Não matarás: desenvolvimento, desigualdade e homicídiosGláucio Ary Dillon SoaresEditora FGV200 páginas, R$ 35,00

Gláucio Soares utiliza múltiplos pontos de vista, teóricos e metodológicos, para enten-der os contextos em que se enquadram os diferentes tipos de homicídio. O livro aborda desde a história da violência, o caráter estru-tural das mortes, até a correlação entre as va-riáveis econômicas, sociais e culturais. Além disso, aponta a necessidade de se construírem teorias do crime e do homicídio.

Editora FGV (21) 2559-4427 www.fgv.br/editora

A AboliçãoEmília Viotti da CostaEditora Unesp144 páginas, R$ 27,00

Publicado originalmente em 1982 e acrescido de mais um capítulo nessa reedição, o livro da historiadora Emília Viotti da Costa é uma poderosa síntese do processo de abolição da escravatura no Brasil. As lutas políticas e parlamentares e a discussão das leis eman-cipacionistas são esmiuçadas pela autora, o que torna acessível ao público leigo as com-plexidades políticas, econômicas, sociais e ideológicas desse processo histórico.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Mulheres viajantes no Brasil (1764-1820)Jemima Kindersley, Elizabeth Macquarie, Rose FreycinetJosé Olympio Editora98 páginas, R$ 20,00

Mulheres viajantes no Brasil, organizado e tra-duzido pelo historiador Jean Marcel Carvalho França, reúne as impressões de viagem de três estrangeiras que acompanharam seus mari-dos em peregrinações, atividades comerciais, militares ou diplomáticas no Brasil Colônia. Duas inglesas e uma francesa retratam sob um ponto de vista inusitado cidades como Salvador e Rio de Janeiro no século XIX.

José Olympio Editora (21) 2585-2060 www.record.com.br

A Constituição brasileira de 10 de novembro de 1937Paulo Sérgio da SilvaEditora Unesp200 páginas, R$ 35,00

Com o suporte político de Getúlio Vargas, a Constituição de 1937 foi resultado concreto da imposição de um poder político que sub-verteu e reformulou o jurídico, recolocando e redesenhando a legalidade. O livro está divi-dido em duas partes: a primeira contextualiza a história do processo político de implantação do Estado Novo; e a segunda analisa normati-vamente o documento jurídico em questão.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

95-livros_152.indd Sec1:9595-livros_152.indd Sec1:95 30.09.08 22:46:2330.09.08 22:46:23

Page 88: A hora da política

96 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ PESQUISA FAPESP 152

FICÇÃO...

A última comédia em preto & branco

F oram duas batidas na porta: a primeira, viril; a segunda, um pouco mais prudente, como se o visitante quisesse neutralizá-las. Dois toques espaçados por segundos in-

fi nitos de tempo. Alguém queria me ver, conversar comigo, eventualmente trocar idéias, mas denotava receio.

Cinco horas da tarde. Sexta-feira. 30 de setembro. Fim do dia. Fim da semana. Fim do mês. Essa espécie de cronome-tragem arbitrária, no entanto, para mim, não tem o menor sentido: meus dias são todos iguais: acordo invariavelmente às sete da manhã, tomo um café puro e venho para a univer-sidade. Às terças e quintas dou aula; o resto da semana fi co aqui no gabinete, conversando com as aranhas, que tecem suas infi ndáveis teias pelos cantos.

Mesmo que fossem vinte e três horas e cinqüenta e nove minutos do dia 31 de dezembro, em que isso me afetaria? A essa altura do campeonato, um novo ano, para mim, signifi ca apenas uma possibilidade maior de fi car sem próstata.

Minha vida como acadêmico foi metódica: no começo, era o verbo. Depois, vieram os eufemismos. Em seguida, as elipses – minha memória tinha mais buracos que um queijo suíço. Hoje, não passo de um vulgar estereótipo. Não ligo. A vida não é mais do que isso. Me disseram que a resignação é um sinal de maturidade e eu acreditei.

Entra, eu disse.Ele entrou. Como professor de literatura durante mais de

trinta anos, aprendi a tomar muito cuidado com as palavras. Como descrever o sujeito? Quais adjetivos usar? Carcomido pelo tempo. Jubilado pela vida. Desesperançado. Pela bola sete. Aparentava mais que sessenta. Beiraria os setenta? Quais parâmetros empregar?

Senta.Ele sentou.Silêncio.Ele me olhou. Eu olhei para ele. As aranhas fi caram de

sobreaviso. Partículas de antimônio pairaram pelo ar denso e decantaram. Algo estava para acontecer. A vigília era latente. Iniciei uma hipotética contagem regressiva no intuito de testar minha paciência. Por fi m, ele disse:

Professor, tenho uma tese.

Todos têm uma, retruquei, mais para marcar presença do que para dar prosseguimento à conversa.

É sobre Jayme Fusco.Não conheço, eu disse, mentindo. Sabia quem era o sujeito:

um escritor mineiro de Cataguases. Não tinha lido nada dele mas sabia que fi zera um barulho com suas transgressões lite-rárias lá pela década de 60. Resumindo: ele queria um orien-tador.

Podemos conversar, eu disse, lacônico. Fazia tipo: um homem de poucas palavras, um mestre acima do Bem e do Mal, categórico, disciplinado, ciente de suas responsabilidades. Um cara que já viu e ouviu de tudo na vida e anda cético. As aranhas adotaram uma atitude de prudência que me pareceu exagerada.

Quem é ele?, perguntei.Um escritor importante, ele disse. Assumi meu já característico tom blasé e retruquei em cima:

Meu amigo, existem parâmetros subjetivos para medir isso. E outra coisa: há todo um processo seletivo para que eu aceite orientar quem quer que seja. A fi la é grande!

Ouvi distintamente risadas de galhofa provenientes de um dos cantos do gabinete, onde duas aranhas se cutucavam.

O visitante recuou mas percebi que era apenas um artifício para tomar um impulso maior. Não captei qualquer traço de contrariedade em sua fi sionomia diante de minhas palavras du-ras. Pelo contrário: ele riu. Estávamos falando a mesma língua. O sujeito jogava no meu time. E botou em cima de minha mesa dois exemplares bastante (agora sim) carcomidos pelo tempo. Folheei ao acaso. Eram dois livros porcamente editados: capas toscas, revisão descuidada, tipos evanescentes. Um inferno.

Por que ele é importante?, perguntei.Ele disse. “Explanou” seria um termo mais adequado. Falou

por dez minutos sem parar. Seu discurso tinha uma lucidez de arrepiar. Forma e conteúdo. Verossimilhança. Narração sólida e diálogos certeiros. Ficção e realidade. Transgressão técnica. Método. Engenhosidade. Quando parou, eu disse:

Topo.Ele riu de novo. E me apertou a mão, despedindo-se. As

aranhas, então, deram início a uma espécie de dança tribal

Furio Lonza

96-97_ficcao_152.indd 9696-97_ficcao_152.indd 96 30.09.08 22:47:4230.09.08 22:47:42

Page 89: A hora da política

PESQUISA FAPESP 152 ■ OUTUBRO DE 2008 ■ 97

que (pelo que pude deduzir) representava um tipo exótico de rito de passagem. Afi nal, já lá iam pelo menos sete anos que eu não orientava ninguém. Com toda razão, elas comemoravam o desenlace feliz do inusitado encontro. Mas fi ngi não prestar atenção à festinha. Tinha que manter meu distanciamento crítico a todo custo. São bichos matreiros & oblíquos. Não se deve confi ar em quem anda de lado.

Muito bem. Daquele dia em diante, novos encontros se sucederam em avassaladoras sessões de análise da obra de Fusco. A essa altura, eu já tinha lido os dois romances, percebe -ra a genialidade do autor, sua fi losofi a de vida, sua rebeldia, sua crítica voraz às instituições. Nasceu daí minha simpatia por seus livros e por sua atitude diante da injustiça humana.

Em seu estilo ácido, denunciara hipocrisias, arrivismos, pi-cuinhas & todo tipo de preconceito. Mas o autor se metera em inúmeras intrigas de salão, ironizando vaidade e mediocridade. Rompera com tudo, brigara com todos, fora (em seu tempo) uma autêntica usina de metáforas, beleza & sarcasmos. Mas percebi que, com seu cinismo, cavara sua própria ruína.

Mais: segundo as próprias informações do meu ilustre orientando, a Academia o tinha esnobado solenemente. Era hora de reparar esse equívoco. Mergulhei no trabalho: dei di-cas, sugeri atalhos, instiguei sua imaginação e criamos juntos um esqueleto prévio da tese. Os dias passaram rapidamente, algumas semanas, meses. O ano terminou com pendências. Em março, elas persistiam. Mas abril me deixou claro o que eu já suspeitava: meu orientando não estava fazendo nada, não tinha escrito sequer uma linha. Queria conversar, trocar dedos de prosa. A situação era francamente bizarra: enquanto meu entusiasmo pela obra de Fusco crescia, ele estagnava numa pe-rigosa inércia absolutamente incompreensível. Perguntei o que estava acontecendo. Ele me respondeu de forma enigmática:

Tenho a impressão que já cheguei a um bom termo.Percebi que, enquanto minúsculas bolhas de antimônio

estouravam no teto, no canto esquerdo de meu gabinete, duas aranhas se entreolharam de forma suspeita. E estacaram.

Como assim?, perguntei, horrorizado.Ostentando um sorriso franco de felicidade em seu

rosto, meu orientando se levantou da cadeira, esticou a

espinha, assumindo uma jovialidade inédita em todo nosso relacionamento, e rodeou minha mesa. Vamos colocar as coisas da seguinte maneira: apesar de sempre ter me orgu-lhado das atitudes distanciadas e quase nobres com que me relacionava com as pessoas, nunca tive a certeza absoluta de que isso poderia me trazer algum bem-estar. Isso fi cou límpido como água mineral quando ele me deu um abraço bem apertado. Deduzi que aquela era sua melhor maneira de demonstrar gratidão mas não entendi toda a extensão daquele gesto. Contrariando completamente minha tão arraigada discrição, não negligenciei essa velha forma de contato humano: o abraço durou uma eternidade. Em se-guida, ele se despediu, me deixando sozinho com minhas aranhas contorcionistas.

No dia seguinte, acordei como sempre às sete horas da manhã, e meus pés me dirigiram ao bar próximo de casa. Uma voz surgiu de dentro de mim:

E aí, qual a boa?Mesmo estranhando aquela intimidade toda, o atendente

disse: Tudo nos conforme, doutor. O que vai ser?Uma média e pão com manteiga.Adotei aquilo para os dias que se seguiram. O ser humano

pode demorar bastante tempo para descobrir a felicidade mas chega o dia em que ele acorda para sempre: felicidade é tomar café e pão com manteiga no bar da esquina. Até as aranhas sabem disso.

Chegou o sábado. Atiraram o jornal na porta, como sem-pre – identifi quei o estrondo com nitidez. Peguei e comecei a ler. De repente, no fi m do segundo caderno, uma foto. Li o necrológio ao mesmo tempo em que uma pontada aguda atingia o lado esquerdo de meu peito. Era breve: Escritor mi-neiro de Cataguases, radicado no Rio de Janeiro desde a década de 70, Jayme Fusco morreu ontem de embolia pulmonar. A foto era de meu orientando.

MA

NU

MA

LTE

Z

Furio Lonza é escritor, jornalista e dramaturgo, tendo publi-cado, entre outros, Eric com o pé na estrada, Máquina de fazer doidos, As mil taturanas douradas e História impossível.

96-97_ficcao_152.indd 9796-97_ficcao_152.indd 97 30.09.08 22:47:4230.09.08 22:47:42