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1 Acordo Ortográfico: é a hora da recusa Cecília Enes Morais Acho difícil não me ocupar do Acordo Ortográfico, um dos assuntos mais sérios e preocupantes da actualidade. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (doravante AO90), que se nos apresenta como o “projecto de texto de ortografia unificada de língua portuguesa (...) para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa e para o seu prestígio internacional”, e se diz o resultado “de um aprofundado debate nos países signatários”: Angola, Brasil, Cabo Verde, GuinéBissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Ortografia unificada, unidade essencial, prestígio internacional e aprofundado debate são alguns dos pontos deste trabalho, que pretende questionar a autoridade e responsabilidade de todos os intervenientes no sistema educativo português. A ortografia da língua portuguesa tem sido alvo de sucessivas reformas ao longo do último século (enunciálasei em momento oportuno), o que tem impossibilitado a sua estabilização, factor necessário à sua afirmação e à transmissão do conhecimento entre gerações. Destas reformas, as unanimemente adoptadas pelos dois principais actores (Portugal e Brasil), foram, todas elas, posteriormente rejeitadas pelo Brasil, que nunca escondeu que adotar é dever dos portugueses (ideia deixada por Lindley Cintra, na década de 80 em entrevista ao «Expresso»). O ‘P’ da teimosia portuguesa – assim anuncia o texto oficial do AO90, Anexo II, 4.2, d) assinado pelos governantes portugueses – foi então declarado obstáculo eliminado do português euroafroasiáticooceânico por meio do AO90 que determina a adoção dos falantes e escreventes de Portugal, Angola, Cabo Verde, GuinéBissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. (É impossível não observar que, depois de quase um século de acordos assumidos e rejeitados pelo Brasil, o espírito unificador se entranhou pouco depois da entrada de Portugal para a Comunidade Europeia, que promoveu o português ao estatuto de língua oficial da mesma.) A 16 de Dezembro de 1990, Pedro Santana Lopes, então secretário de Estado da Cultura, assinou o AO90 por incumbência de Aníbal Cavaco Silva. Santana Lopes, mais de duas décadas depois, afirma, confiante, na sua coluna no Sol, que “Agora ‘facto’ é igual a fato (de roupa)” – do que se conclui que, ou Pedro Santana Lopes se esqueceu do que leu, ou Pedro Santana Lopes se esqueceu de ler o que assinou.¹Também mais de duas décadas depois de assinado

A HORA DA RECUSA

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"Acordo Ortográfico: é a hora da recusa" por Cecília Enes Morais. Publicado originalmente no Facebook da autora.

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Acordo Ortográfico: é a hora da recusa  

Cecília Enes Morais 

  Acho  difícil  não  me  ocupar  do  Acordo  Ortográfico,  um  dos  assuntos  mais  sérios  e preocupantes da actualidade. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (doravante AO90),  que  se  nos  apresenta  como  o  “projecto  de  texto  de  ortografia  unificada  de  língua portuguesa  (...)  para  a  defesa  da  unidade  essencial  da  língua  portuguesa  e  para  o  seu prestígio  internacional”,  e  se  diz  o  resultado  “de  um  aprofundado  debate  nos  países signatários”: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné‐Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe.  Ortografia  unificada,  unidade  essencial,  prestígio  internacional  e  aprofundado  debate  são alguns dos pontos deste trabalho, que pretende questionar a autoridade e responsabilidade de todos os intervenientes no sistema educativo português.  A ortografia da  língua portuguesa  tem sido alvo de sucessivas  reformas ao  longo do último século (enunciá‐las‐ei em momento oportuno), o que tem impossibilitado a sua estabilização, factor necessário à sua afirmação e à transmissão do conhecimento entre gerações.  Destas  reformas,  as  unanimemente  adoptadas  pelos  dois  principais  actores  (Portugal  e Brasil),  foram,  todas  elas,  posteriormente  rejeitadas  pelo  Brasil,  que  nunca  escondeu  que adotar  é  dever  dos  portugueses  (ideia  deixada  por  Lindley  Cintra,  na  década  de  80  em entrevista ao «Expresso»).   O  ‘P’  da  teimosia  portuguesa  –  assim  anuncia  o  texto  oficial  do  AO90,  Anexo  II,  4.2,  d) assinado  pelos  governantes  portugueses  –  foi  então  declarado  obstáculo  eliminado  do português  euro‐afro‐asiático‐oceânico  por  meio  do  AO90  que  determina  a  adoção  dos falantes  e  escreventes  de  Portugal, Angola,  Cabo Verde, Guiné‐Bissau, Moçambique  e  São Tomé  e  Príncipe.  (É  impossível  não  observar  que,  depois  de  quase  um  século  de  acordos assumidos  e  rejeitados  pelo  Brasil,  o  espírito  unificador  se  entranhou  pouco  depois  da entrada de Portugal para a Comunidade Europeia, que promoveu o português ao estatuto de língua oficial da mesma.)  A  16  de Dezembro  de  1990,  Pedro  Santana  Lopes,  então  secretário  de  Estado  da Cultura, assinou o AO90 por incumbência de Aníbal Cavaco Silva. Santana Lopes, mais de duas décadas depois, afirma, confiante, na sua coluna no Sol, que “Agora ‘facto’ é igual a fato (de roupa)” – do que se conclui que, ou Pedro Santana Lopes se esqueceu do que  leu, ou Pedro Santana Lopes se esqueceu de ler o que assinou.⁽¹⁾ Também mais de duas décadas depois de assinado 

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o «acordo», Aníbal Cavaco Silva confessa em Díli  (Maio de 2012): «quando estou a escrever em casa, tenho alguma dificuldade e mantenho o que aprendi na escola».⁽²⁾   Diz o art. 2.º do AO90 que os “Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 de Janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.”; e diz  o  art.  3.º  que  o  “Acordo Ortográfico  da  Língua  Portuguesa  entrará  em  vigor  em  1  de Janeiro de 1994, após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa.”.   Porém,  o  teimoso  ‘P´  ficou  inexplicavelmente  esquecido:  não  se  elaborou  o  vocabulário ortográfico comum, nem  se  ratificou o AO90. Até que, em 1998,  surge do nada o Primeiro Protocolo Modificativo a dar nova redacção aos dois artigos (Portugal demorou cerca de dois anos a ratificar este Protocolo, apenas o fazendo a 28 de Janeiro de 2000):  

₋ art.  2.º:  “Os  Estados  signatários  tomarão,  através  das  instituições  e  órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração de um vocabulário ortográfico  comum  da  língua  portuguesa,  tão  completo  quanto  desejável  e  tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.” 

₋ art.  3.º:  “O  Acordo  Ortográfico  da  Língua  Portuguesa  entrará  em  vigor  após depositados os  instrumentos de ratificação de todos os Estados  junto do Governo da República Portuguesa.” 

 Mas o teimoso ‘P’ volta a ficar esquecido, até que, em 2004 (quase década e meia depois de assinado o AO90), alguém  terá percebido que Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné‐Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe o continuam a utilizar. Surge então o não menos diligente e ainda mais ardiloso Segundo Protocolo Modificativo, que volta a dar nova redacção ao art. 3.º:  “entrará  em  vigor  com  o  terceiro  depósito  de  instrumento  de  ratificação  junto  da República Portuguesa”, ou  seja, os negociadores querem que  a  ratificação de  três  Estados baste para decidir a sorte da língua em todos os PALOP (Países de Língua Oficial Portuguesa).  Nove anos depois (2013), Angola e Moçambique ainda não ratificaram o Segundo Protocolo Modificativo, pelo que não basta que três países entreguem o instrumento de ratificação do AO90 para que este entre em vigor. Mas esta e outras questões jurídicas serão analisadas no final do trabalho.   Parece‐me  oportuno  notar  a  dificuldade  em  elaborar  um  vocabulário  ortográfico  comum (VOC), condição primeiramente necessária um ano antes (1993) da conjecturada entrada em vigor  do  AO90  (1994),  que,  nem  depois  de  convertido  em  simples  vocabulário  de «terminologias científicas e técnicas» parece realizável. A sua elaboração, ainda que apenas no que  respeita às  terminologias  científicas e  técnicas,  seria a prova da  impossibilidade de qualquer  unificação  ortográfica  (e  lexical).  Fica,  no  entanto,  a  pergunta:  aceitam  as universidades portuguesas um acordo ortográfico sem um vocabulário ortográfico comum às partes que o pactuam para o suportar?   

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Entretanto a ABL (Academia Brasileira de Letras) elaborou o VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 5.ª Edição) e Evanildo Bechara, declarou à Folha de S. Paulo (18/3/2009) que “em nenhum momento o Acordo fala em vocabulário comum” e acrescenta que o VOLP “é brasileiro, e os outros países de  língua portuguesa poderão criar os seus”. No obediente Portugal,  a  Porto  Editora  e Malaca  Casteleiro  elaboraram  um  VOLP,  o  ILTEC  (Instituto  de Linguística Teórica e Computacional) elaborou um VOP (Vocabulário Ortográfico Português) e, como dois não bastam para promover o caos, fomos brindados com um VOALP (Vocabulário Ortográfico Actualizado[sic] da Língua Portuguesa) da ACL (Academia de Ciências de Lisboa, a quem, inexplicavelmente, a AULP (Associação das Universidades de Língua Portuguesa) trata por Academia das Ciências Portuguesas).(3)   Temos assim 4 Vocabulários, divergentes entre si, mas todos oficiais. Se o AO90 estivesse em vigor  não  precisaríamos  de  fazer  pim‐pam‐pum  e  escolher,  pois  a  facultatividade  seria legítima em qualquer um dos Estados da CPLP (excepto em Angola e Moçambique).   O Brasil esqueceu‐se de que não pode violar tratados  internacionais e fixa no seu VOLP que co‐herdeiro se pode escrever «coerdeiro», tal como denuncia a professora Thaís Nicoleti de Camargo:  “ a ABL  entendeu  que  poderia  suprimir  o  hífen de  formas  como  co‐herdar  e  co‐herdeiro, em desacordo com o texto oficial”.(4) 

 Antes de prosseguir,  importa  ainda  saber de que maneira  se poderá entender o profundo debate do qual resultou o AO90: de todos pareceres solicitados pelo Instituto Camões, apenas um se mostrou favorável: o da ACL, assinado em causa própria por Malaca Casteleiro, um dos autores e negociadores do «acordo».(5)  

 Portugal aprovou o Segundo Protocolo Modificativo por meio da Resolução da Assembleia da 

República n.º 35/2008 de 29 de Julho de 2008, e ratificou‐o em 2009.  

A referida Resolução estabelece, no artigo 2.º, que até à vigência definitiva do AO90 decorre 

um período de transição de seis anos, e que, no decorrer deste período as duas ortografias 

são  legítimas. Qualquer  um  capaz  de  somar  6  a  2009  conclui  que  o  período  de  transição 

terminaria em 2015, e que Francisco José Viegas, a quem o resultado da soma deu 2014, não 

sabe  fazer  contas. Mas  há mais: os portugueses  só  tiveram  conhecimento de que o AO90 

estaria  em  vigor  desde  2009  a  17  de  Setembro  de  2010  (Aviso  n.º  255/2010  de  17  de 

Setembro de 2010), ou seja, quase um ano e meio depois. Assim sendo, e porque a data de 

vigência é a da publicação em Diário da República, o período de transição não terminaria em 

2015, mas em 2016, pois a “falta de publicidade dos actos previstos nas alíneas a) a h) do 

número  anterior  e  de  qualquer  acto  de  conteúdo  genérico  dos  órgãos  de  soberania,  das 

regiões autónomas e do poder local, implica a sua ineficácia jurídica” (art. 119 da Constituição 

da República Portuguesa). 

Que  razões  terão  levado  os  governantes  portugueses  a  assinar  o  AO90  para  depois  o 

esquecer, a esperar tanto tempo para ratificar os dois Protocolos Modificativos, e a esconder 

dos portugueses durante quase um ano e meio que o AO90 estaria em vigor apesar de  tal 

poder  incorrer  em  “ineficácia  jurídica”?  Talvez  a  resposta  nos  tenha  sido  dada  por  Aníbal 

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Cavaco Silva, num provável momento de distracção, a 22 de Maio último, em Díli: “Quando 

fui ao Brasil em 2008, face à pressão que então se fazia sentir no Brasil, o Governo português 

disse‐me que podia e devia anunciar a ratificação do acordo, o que fiz” (Público, 22 de Maio 

de 2012). Que levará os governantes e o representante do Estado Português, eleitos e pagos 

pelos portugueses para defenderem os seus interesses, a ceder a pressões estrangeiras? 

Menos de dois meses antes desta confissão de Cavaco Silva, a 30 de Março de 2012, ocorreu 

a  VII  Reunião  de  Ministros  da  Educação  da  CPLP  (Comunidade  de  Países  de  Língua 

Portuguesa), em cuja Declaração Final podemos  ler que a “Aplicação do Acordo Ortográfico 

de 1990 no processo de ensino e aprendizagem revelou a existência de constrangimentos”, e 

que  ficou  o  Secretariado  Técnico  Permanente  (do  qual  Portugal  faz  parte)  incumbido  de 

proceder a “um diagnóstico relativo aos constrangimentos e estrangulamentos na aplicação 

do Acordo Ortográfico de 1990”. 

A Declaração não especifica quais são os constrangimentos e estrangulamentos revelados no 

processo de ensino e aprendizagem, porém, tentarei provar neste trabalho que só podem ser 

duas ordens:  

— A aplicação  ilegal do AO90, que, aliás, só é perpetrada pelo autonomeado 

motor do  indefinido e provavelmente  indefinível conceito «lusofonia» e pelo 

seu pressionado, porém alegre e deslumbrado, reboque: Brasil e Portugal. Os 

restantes PALOP  continuam  a escrever  segundo  a Convenção Ortográfica de 

1945 (CO45), que, como veremos adiante, é a única que vigora em Portugal.  

— As imprecisões, os erros e as ambiguidades que caracterizam o AO90 e que 

já  foram admitidas publicamente por Evanildo Bechara, que, ainda assim,  tal 

como os outros negociadores, nomeadamente o  também co‐autor português 

Malaca  Casteleiro,  teima  fazer  da  sua  confissão  uma  questão  insignificante. 

Julgue‐se a confissão: “o Acordo não tem condições para servir a uma proposta 

normativa, contendo imprecisões, erros e ambiguidades” (Lagoa, S. Miguel, em 

Maio de 2008).  

A 24 de Abril de 2012, menos de um mês depois da VII Reunião de Ministros da Comunidade 

de  Países  de  Língua  Portuguesa,  a  Agência  Lusa  informa  que  “O  secretário  de  Estado  da 

Cultura,  Francisco  José  Viegas,  garantiu  hoje  que  não  haverá  qualquer  revisão  do  acordo 

ortográfico”.  Que  poderá  levar  os  governantes  portugueses  a  continuar  a  promover 

sofregamente  o  AO90  depois  de  admitir  constrangimentos  e  estrangulamentos?  Como 

justificam  as  universidades  portuguesas  e  demais  intervenientes  no  processo  educativo  a 

adopção  forçada,  e  não  raras  vezes  aplaudida  e  promovida  por  docentes  e  discentes,  de 

constrangimentos e estrangulamentos? Serão as  instituições de ensino portuguesas  isentas 

de autoridade e responsabilidade, tendo a seu cargo a promoção e desenvolvimento cultural 

e científico dos seus cidadãos? Estarão privadas de autonomia ou voz? 

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Assinalo  de  seguida  alguns  dos  muitos  erros,  imprecisões  e  ambiguidades  que  o  AO90 apresenta ao  longo das 21 bases que o compõem, e para o qual “de entre os princípios em que assenta a ortografia portuguesa se privilegiou o critério fonético (ou da pronúncia) com um certo detrimento para o critério etimológico.” (ponto 5 do Anexo II do AO90).  Começo  pela  base  IV,  aquela  que  apresenta  mais  e  maiores  consequências  pedagógico‐didácticas.  Pode  ler‐se na página de  Internet da  FLUP, Mestrado em Tradução e Serviços  Linguísticos, código  MTSL015,  que  “Pelo  estudo  das  bases  greco‐latinas  das  terminologias  científicas procurar‐se‐á aumentar a capacidade de expressão e o rigor terminológico” e que “no fim do semestre  os  alunos  devem  ser  capazes  de  (...)  3.  deduzir  o  significado  de  palavras  de diferentes nomenclaturas a partir dos seus constituintes”.   É  sabido  que  a  esmagadora maioria  do  léxico  técnico  e  científico  especializado  tem  a  sua origem no latim e no grego: “A large proportion of the vocabulary of specific content areas is built  on  Greek  and  Latin  elements”(6),  carácter  etimológico  que  o  inglês,  língua  onde encontramos a maior parte da  literatura científica e técnica e cultural, não só preserva, mas promove. Quanto maior é o grau de literacia, maior é a estabilidade ortográfica: e a evolução da  língua  consiste  nisso.  Há  um  ganho  suplementar  nessa  estabilização  ortográfica  que  a literacia assegura: quanto maior é mais  fidedigna  será a  transmissão do património escrito entre as gerações.  A  falta de bibliografia  técnica e científica  traduzida para  língua portuguesa  faz do recurso a obras em língua estrangeira uma necessidade. O AO90, suprimindo sequências consonânticas (e não «consoantes mudas» como são erradamente chamadas), afasta‐nos «da raiz», e, por consequência, afasta‐nos também das línguas que podem suprir a falta de manuais em língua portuguesa.  Este  afastamento  dificulta  ainda  a  aprendizagem  do  português  como  língua estrangeira, como facilmente nos permite concluir Norman Herr (California State University):  

“Root words – A knowledge of Greek and Latin prefixes, suffixes, and roots can greatly  enhance  student  understanding  of  scientific  terms  and  facilitate  a better understanding of English and other European languages. Approximately 50% of all words  in English have  Latin  roots, many of which are  shared with Spanish, French, Portuguese and Italian. Learning scientific root words thereby helps  one  understand  the  vocabulary  of  a  variety  of  languages,  particularly English (1.1, 1.2, 1.3, 1.4). Cognates – Many  science  terms are used  internationally.  Identify  such  terms (2.3, 2.4) and ask your students to notify you whenever they recognize a new term that  is pronounced or written similarly  in their  first  language. This helps build  your  knowledge  of  cognates  (words  that  are  similar  in  two  or  more languages) so you can help future learners master science vocabulary”.(7)  

 Assim, e tal como atesta a FLUP, muitas das erradamente chamadas consoantes mudas que o AO90 quer eliminar são, afinal, fundamentais para um processo cognitivo de reconhecimento e aprendizagem racional de terminologia técnica e científica.  

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Mas não é o único erro da base IV: lê‐se no ponto 4.1 do Anexo II, a respeito das erradamente chamadas  consoantes mudas  que  “na  norma  gráfica  brasileira  há muito  estas  consoantes foram abolidas, ao contrário do que sucede na norma gráfica lusitana, em que tais consoantes se conservam”. Pois eu preciso do ‘C’ para pronunciar ‘corrector’, doutro modo pronunciarei da mesma maneira que pronuncio ‘corretor’, e não quero confundir o corrector que tenho na gaveta da secretária com as pessoas que trabalham na bolsa de valores ou nas agências de seguros;  eu  preciso  do  ‘P’  para  pronunciar  ‘recepção’,  «receção»  pronuncio  da  mesma maneira que  ‘recessão’,  e para  recessão  já me  chega  a económica;  eu preciso do  ‘P’ para pronunciar  ‘concepção’,  «conceção»  pronuncio  da  mesma  maneira  que  pronuncio ‘concessão’, e eu não quero conceder tudo aquilo que concebo. Peço a quem não «ouve» a diferença  que  leia  em  voz  alta  baptismo  e  «batismo»,  baptizado  e  «batizado»,  afectivo  e «afetivo», colectivo e «coletivo», lectivo e «letivo», factura e «fatura», adopção e «adoção», efectivo e «efetivo»,...   Os  brasileiros  não  precisam  dos  cês,  pês  e  acentos  nessas  palavras  pois  dizem  de modo indistinto  «para»  e  pára»,  «corrector»  e  «corretor»...  Porém,  para  nós,  as  erradamente chamadas  consoantes  mudas  têm,  na  maioria  dos  casos,  um  valor  diacrítico  essencial  à correcta pronunciação.  Aconselho vivamente a  leitura do único trabalho científico realizado até hoje a respeito  (da base  IV) do AO90 e que desmistifica o  logro das erradamente chamadas consoantes mudas: OS LEMAS EM ‘‐ACÇÃO’ E A BASE IV DO AO90.(8)  Que  terá  levado  estes  iluminados  negociadores  a  alegar  aproximação  da  fala  à  escrita  e unificação ao mesmo tempo, quando qualquer que veja uma das muitas telenovelas com que se  entretêm  os  portugueses  repara  no  contra‐senso,  isto  é,  repara  que  as  diferenças  de pronunciação não o permitem?  O desvario não só continua como se agrava:  lê‐se ainda na Base  IV que é “inevitável que se aceitem grafias duplas”. Vejamos algumas  inevitáveis duplas grafias:  ‘recepção’ em Portugal deve  escrever‐se  «receção»,  e no Brasil  continua  a escrever‐se  ‘recepção’;  ‘percepção’ em Portugal deve escrever‐se «perceção», e no Brasil continua a escrever‐se ‘percepção’...  Será  este  mais  um  “passo  importante  para  a  defesa  da  unidade  essencial  da  língua portuguesa e para o seu prestígio internacional.”? Já agora: qual unidade e qual prestígio? A unidade  não  existe  nem  poderá  existir  (as  divergências  semânticas  e  sintácticas  já  não  o permitem), e o prestígio obtém‐se pela estabilidade e pela ordem, como tão bem exemplifica a língua inglesa.   Apesar da estranha supressão de pês e cês em palavras que no Brasil se continuam a grafar com os cês e os pês, creio que a esta altura já todos terão percebido que (sobretudo) a base IV impõe a sete países que escrevam como se escreve no Brasil. E quem esteja minimamente atento ao que se passa nas  redes sociais, páginas de  Internet oficiais e, pasmem‐se!,  leia o Diário da República,  já reparou que  ‘facto’ e  ‘contacto’, apesar do que nos diz a base  IV do AO90, são constantemente grafadas sem cê, ou seja, como no Brasil, e que os mais activos acordistas também já referem discretamente a inadaptação à estranha ausência dos cês e dos pês nas palavras que para os  falantes brasileiros são necessárias. Quem não acredita que o 

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«acordo  ortográfico»  é  o  instrumento  para  pôr  todos  os  PALOP  a  escrever,  e  por consequência, a médio prazo, a falar brasileiro, deveria começar a preocupar‐se seriamente: para estas e/ou outras alterações “os próximos passos serão definidos no primeiro trimestre de 2013, altura em que tem programada uma visita a Portugal.”, disse a 7 de Dezembro um ministro brasileiro alegando que assim “poderemos ser uma língua da ONU”.(9)  Os interesses políticos e económicos do Brasil não deveriam ser atingidos à custa do prejuízo dos portugueses. Pedro Passos Coelho, questionado em 2008 por um cidadão, respondeu que o AO90 “não  representa nenhum benefício para a  língua e cultura portuguesa”. No mesmo ano  é  concedido  o  título  de  cidadão  honorário  do  Rio  de  Janeiro  a Miguel  Relvas...  E  a negociata  energicamente  reiniciada  pelo  governo  de  José  Sócrates  continua. Mas  nem  os portugueses  tiram nenhuma  vantagem dos benefícios  concedidos ao maçon, nem Portugal lucra com as aspirações políticas e económicas de outros países, por muito que elas  sejam apresentadas sob a forma de doces promessas.   Outra  das  graves  consequências  da  base  IV  é  o  aumento  exponencial  do  número  de homografias, mas já iremos.   “Não se emprega o hífen nas ligações da preposição de às formas monossilábicas do presente do indicativo do verbo haver: hei de, hás de, hão de, etc.”, diz‐nos a base XVII. Leio Hamlet, e a certa altura diz o príncipe da Dinamarca que “algo há de mal”... eu também digo, a respeito do  AO90,  que  algo  há  de mal, mas  que  o mal  há‐de  ter  fim  quando  for  sensatamente rejeitado por todos os intervenientes do sistema educativo.  Pela base XV  ficamos a saber que cor‐de‐rosa e água‐de‐colónia continuariam a escrever‐se com hífen por causa da consagração pelo uso. Mas que um cão‐de‐guarda passaria a ser um qualquer  cão  que  esteja  de  guarda,  e  que  os  fins‐de‐semana  também  perderiam  o  hífen porque sim.   Como justificam os professores estas e demais arbitrariedades aos seus alunos? E aos alunos estrangeiros  que  queiram  aprender  a  língua  portuguesa?  Dirão  que Malaca  Casteleiro  e Evanildo  Bechara  querem  que  seja  assim? De  Zamora,  Espanha,  já  chegou  a  Portugal  um manifesto de 88 estudantes aprendentes da Língua Portuguesa contra o AO90.(10)   Se  lerem  a  base  XIX,  verão  que  o  Estio  passaria  a  verão.  Dezembro  também  passaria  a dezembro porque  sim. A mui nobre e  invicta deixaria de  ser  cidade do Norte e passaria  a cidade do norte. Em Lisboa, Santo António passaria, facultativamente, a santo António.   Nas universidades portuguesas os cursos de Filosofia passariam, facultativamente, a cursos de filosofia.  E,  também  facultativamente,  a  disciplina  de  Lógica  passaria  a  uma  qualquer disciplina de lógica.   Fazendo um percurso desde a base VIII até à base XIII com passagem pelo Anexo  II  (a Nota Explicativa), não encontramos um rol de alterações menos anedótico. Os sábios negociadores admitem que o sistema de acentuação gráfica não se limita “a assinalar apenas a tonicidade das  vogais  sobre  as  quais  recaem  os  acentos  gráficos,  mas  distingue  também  o  timbre destas.”,  e  salientam  que  o  acento  circunflexo  se manteria  na  “forma  verbal  pôr,  para  a distinguir  da  preposição  por.”.  Porém,  dizem  também  que  seremos  obrigados  a  escrever 

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‘ninguém  para  a  AE  da  FLUP’.  Eu  prefiro  saber  que  alguém  foi  para  a  AE  da  FLUP  e  que ninguém pára a AE da FLUP.   Ler, na Base IX, enormidades como esta que determina que passa a ser “facultativo assinalar com  acento  agudo  as  formas  verbais  de  pretérito  perfeito  do  Indicativo,  de  tipo  amámos, louvámos, para as distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo (amamos, louvamos)” deveria bastar para que qualquer instituição de ensino ou professor repugnasse o AO90.  Por esta altura  já  todos  terão percebido que o AO90 não  só não  cumpre o que  se propôs como cria problemas até agora inexistentes.   A exponencial multiplicação de palavras homógrafas é igualmente inqualificável. Alegarão os acordistas a este respeito que estas já existem na  língua portuguesa. Eu acrescento que não existem apenas na língua portuguesa, que existem em todas as que conheço; contudo, afirmo também que a justificação ou a desculpa da sua multiplicação com o facto de já termos casos como casa (habitação) e casa (terceira pessoa do singular no presente do indicativo do verbo casar), é fundamento inaceitável por quem se paute pelo rigor.  Rui Estrela Oliveira proibiu a aplicação do AO90 no  tribunal de Viana do Castelo(11): “Se há campo onde há mais mudanças, na intensidade de utilização de certas palavras, é no Direito. Pode provocar, com o mesmo texto, um sentido totalmente diferente. Isto nunca foi pensado nem acautelado de nenhum modo. Juridicamente é muito  importante o que se diz e o modo como  se  diz”,  afirma  o  juiz,  para  quem  a  ambiguidade  de  interpretação  em  documentos jurídicos é inadmissível, e exemplifica com esta frase de sentido indecifrável:   “De início, o corretor da sala 3 assumia a função de corretor do corretor da sala 2, para depois passar  a  ser  o  corretor  de  todos,  até  do  corretor  da  última  sala  que,  confrontado  com  a situação, esboçou um sorriso”.   A inaceitável ambiguidade de interpretação não é (como veremos) o único factor que permite ao  juiz proibir a aplicação do AO90 no seu tribunal; todavia, parece‐me o bastante para que alunos e professores de Direito lhe sigam o exemplo.   A língua portuguesa, que tem duas ortografias oficiais (a do Brasil e a dos restantes países da CPLP), passaria, com a aplicação do AO90, a permitir o caos ortográfico em qualquer um dos PALOP. Vejamos um exemplo: no Brasil escreve‐se Rua de Santo Antônio, em Portugal e nos restantes 6 países da CPLP escreve‐se Rua de Santo António; segundo o AO90, Rua de Santo António, Rua de Santo Antônio,  rua de Santo António,  rua de Santo Antônio, Rua de  santo António, Rua de santo Antônio, rua de santo António e rua de santo Antônio, seriam  igual e facultativamente maneiras  correctas  de  escrever  em  língua  portuguesa,  dentro  e  fora  da CPLP.  Que o AO90 é um instrumento que atenta contra o sistema educativo e que fragiliza a língua portuguesa,  já  terá  ficado  assente.  Que  a  alegada  «unificação»  é  impossível,  também  (o próprio AO90 atesta‐o pelos milhares de múltiplas grafias que anuncia e outros milhares que cria). De resto, as diferenças ortográficas entre a  língua  falada e escrita no Brasil e a  língua 

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falada e escrita nos restantes PALOP nunca representaram dificuldades à comunicação. O que verdadeiramente  impede o entendimento  claro e  imediato entre os  falantes e escreventes das duas variantes é o  léxico, a  semântica e a  sintaxe:  se eu entrar numa  loja em Portugal para comprar balas, é provável que o dono do estabelecimento chame a polícia; mas a quem pede  balas  no  Rio  de  Janeiro  é‐lhe  vendido  rebuçados.  Eu  digo  que  o  Vítor  Baía  foi  um guarda‐redes, mas os brasileiros dizem que o mesmo Vítor Baía foi um goleiro.  A língua falada e escrita no Brasil teve influências diversas e diferentes das sentidas na língua falada  e  escrita  em  Portugal  ou  nos  restantes  PALOP,  sobretudo  em  virtude  dos  dialectos indígenas e do multiculturalismo.   Mas  estas  não  são  as  únicas  causas  do  afastamento  da  variante  brasileira:  justificando‐as como meio  de  alfabetização,  as  reformas/acordos  ortográficos  dão‐se,  nos  dois  lados  do Atlântico,  desde  o  início  do  século  passado:  em  1907  a  ABL  (Brasil)  propôs  uma  reforma unilateral;  a  de  1911  foi  primeiramente  adoptada  pelos  dois  países, mas  posteriormente rejeitada pelo Brasil (em 1919); em 1943 o Brasil fez outra reforma unilateral; a de 1945 foi novamente rejeitada pelo Brasil dez anos depois de a perfilhar  (em 1955), que, dando mais uma vez o dito pelo não dito, continuou a usar a ortografia que, unilateralmente, estabeleceu em 1943.   Fernando  Pessoa  nunca  aceitou  esta  maneira  tão  simplista  de  encarar  o  problema  da alfabetização iniciada em 1911 (Evanildo Bechara, co‐autor e negociador do AO90, afirmou ao Expresso, a 20 de Outubro de 2012 que «Fernando Pessoa [1888‐1935] não aderiu à Reforma 1945») e escreveu a sua poética philosofia até ao  fim dos seus dias: “Mas odeio, com ódio verdadeiro  (...) a ortografia  sem  ípsilon  (...). A palavra é  completa  vista  e ouvida. E a gala transliteração  greco‐romana  veste‐ma  do  seu  vero  manto  régio,  pelo  qual  é  senhora  e rainha”.  As sucessivas reformas  impedem a estabilidade necessária à afirmação duma  língua, mesmo (ou sobretudo) para os seus falantes e escreventes naturais. Alegar a simplificação (que nem é o que se verifica com o complicador AO90, por muito que aleguem o contrário) como meio de  alfabetização,  em  vez  de  investir  no  ensino,  é  tratar  a  língua  e  os  seus  falantes  e escreventes por incapazes. Os resultados da habilidade são estes:  

— o pressionado mas maravilhado reboque é um dos países com menor taxa de alfabetização da Europa e consegue estar 21 lugares abaixo da vizinha Espanha; 

— o motor da lusofonia (conceito por mim ignorado, mas que a muitos maravilha) consegue ficar 7 lugares abaixo do Zimbabwe; a grande potência mundial consegue ainda obter o penúltimo lugar no «ranking global de qualidade de educação» de um recente estudo levado a cabo pela britânica Economist Intelligence Unit.(12)  

Diversas causas terão contribuído para resultados tão vergonhosos, no entanto há muito não se podem alegar com justiça. E como diz a professora Thaís Nicoleti de Camargo à Folha de S. Paulo, a 22 de Abril de 2009, “A  ideia de unificação, que produziu um discurso politicamente 

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positivo em torno do assunto, além de não ter utilidade prática, gera vultoso gasto de energia e de recursos, que bem poderiam ser empregados no estímulo à educação e à cultura”.  Mas  voltemos  à  «unificação»  e  analisemos  este  artigo  de  Paula  Neves  Blank  (Público, 28/10/2012), licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela FLUP:  

“O meu trabalho consiste, em suma, na revisão de traduções do Inglês para o Português de manuais de instruções e interfaces do utilizador de equipamento médico. (...) O que me chega às mãos está 90% das vezes muito longe do nível de qualidade que seria de esperar para qualquer tradução, quanto mais para traduções nesta área. Os exemplos são infindáveis, mas escolhi um que servirá para demonstrar aquilo de que falo. Na tradução do manual de um ventilador, feita por um tradutor brasileiro, lê‐se: “Usar o ventilador de maneira diferente como  foi  instruída  pode  causar  danos  ao  digitalizar  de  RM”. Uma  tradução correcta do original em Inglês poderia ser assim: “A utilização do ventilador de maneira diferente da que  foi  indicada nas  instruções, pode  causar danos ao aparelho de RM (ressonância magnética)”. Em praticamente todos os manuais traduzidos para Português do Brasil,  e  também no deste  exemplo,  chama‐se “vazamento”  a  fuga,  “cabo  de  força”  a  cabo  de  alimentação,  “tela”  a  ecrã, “plugue”  a  ficha  (um  “plugue”  que  se  “pluga”,  do  verbo  “plugar”),  “jack”  a tomada, “leiaute” a disposição, “acurácia” a precisão, diz‐se que a impressora “está  aquecendo”,  que  “você  tem  de  acessar  isso”  (aceder)  ou  “você  deve apertar aquilo”  (pressionar), os verbos  reflexivos são conjugados ao contrário (“isso  se  faz  assim”  em  vez  de  “isso  faz‐se  assim”),  etc.  O  manual  de  um dispositivo de suporte de vida chega a ter 300‐400 páginas e o deste exemplo era uma tradução que estava autorizada, em utilização em Portugal, e que só foi  corrigida  (1)  quando  o  fabricante  passou  a  fazer  parte  da  gama  de comercialização  de  certa  empresa  e  (2)  porque,  depois  de  muita argumentação, o fabricante acabou por concordar em produzir uma versão em Português de Portugal. (...) A maioria dos manuais traduzidos no Brasil que eu revi  estão  escritos  assim  e,  provavelmente,  no  Brasil  até  são  textos perfeitamente  aceitáveis,  não  sei,  nem  discuto.  Mas  em  Portugal  não.  As traduções  utilizadas  em  Portugal  têm  forçosamente  que  ser  feitas  por tradutores  portugueses,  em  Português  de  Portugal,  para  que  se  possam cumprir os critérios exigíveis. (...) A realidade é que os fabricantes pressionam os distribuidores portugueses a utilizar as traduções brasileiras em Portugal. Os argumentos são sempre os mesmos: (1) só se produz uma versão em Português e, dado que o Brasil é um mercado maior, a versão a produzir será em Pt‐Br ou (2)  temos  que  reduzir  custos,  por  isso  há  que  anular  uma  das  versões  em Português; o Brasil é um mercado maior, portanto eliminamos a versão Pt‐Pt. Ponto final. Contra‐argumentar dizendo que a sintaxe e a terminologia não são aceitáveis  para  textos  que  se  destinam  a  profissionais  clínicos,  que  os  erros podem provocar acidentes de proporções mais  ou menos  sérias,  é por  regra inútil. Algumas vezes, felizmente, o esforço de argumentação é recompensado, e os médicos e enfermeiros em Portugal podem usufruir do privilégio de ler as instruções do dispositivo médico, que adquiriram em Portugal, num Português de  fácil e natural  compreensão.  (...) É, portanto,  com profunda  consternação 

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que  vemos  o  Governo  português,  que  devia  defender  os  nossos  interesses, assinar um Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que  (defendem alguns) visa unificar a ortografia e resolver todas as diferenças entre ambos os registos do Português. O Acordo Ortográfico, ao criar esta falsa noção de uniformidade, extremamente  nefasta  para  o  Português‐padrão,  tem  um  resultado  terrível para a tradução, porque enche o mercado português de instruções que quanto mais técnicas, mais incompreensíveis são. (...)”.  

 Destas palavras de Paula Blank já alguns dos mestrandos em Tradução e Serviços Linguísticos da FLUP se sentirão inquietos a respeito do seu (já incerto) futuro profissional.   Consideremos mais alguns factos:  

₋ A bandeira brasileira é cada vez mais utilizada para identificar a língua portuguesa:   

  

₋ O Público noticiou, a 4 de  Janeiro de 2012, que o grupo editorial “Leya despede em Portugal e aposta no Brasil”.   

₋ O  “G1,  dedica  espaço  alargado  à  expansão  do  ensino  do  português  do  Brasil  na Europa”.(13) 

 ₋ A  francesa  Larousse,  que  parece  já  ter  entendido  o  significado  de  «lusofonia»  (os 

portugueses  continuam  ofuscados  com  a miragem),  editou  (em  2012)  o  dicionário “Français‐Brésilien / Bréslien‐Français”, que uma das empresas do grupo Porto Editora (que  não  se  cansa  de  dizer  que  a  língua  no  Brasil  e  em  Portugal  é  a  mesma) disponibiliza: 

 

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 Só os mais distraídos é que não terão ainda reparado nas alterações que certamente não solicitaram no Office (ou outro)... O jornalista e escritor Manuel António Pina, falecido em Outubro último, deixou‐nos este desabafo:  

“Ainda não vi ninguém queixar‐se (e, que diabo!, não acredito que seja só eu o eleito  e  o  escolhido):  fui  atacado  por  um  “hacker”  anónimo  ao  serviço  da Kultura  e  do  dr. Malaca  Casteleiro  e,  em  silêncio,  sem  aviso,  o meu Word adoptou  o  celerado Acordo Ortográfico. Mesmo  agora  acaba  de  sublinhar a vermelho a palavra “adoptou” (e voltou a fazê‐lo!). Não tenho conhecimentos de informática nem tempo para tentar desactivar (outra vez!) no corrector (de novo!)  ortográfico  o  cavalo  de  Troia  nele  alojado  não  sei  por  que  sinistro Torquemada  linguístico,  e  irrita‐me  saber  que  alguém  vigia  o  modo  como escrevo pois, a  seguir a  isso, há‐de  vir  também a  vigilância  sobre aquilo que escrevo. (O biltre sublinhou o “há‐de” a vermelho; só falta notificar‐me, como nas  cartas  de  condução,  de  que  já  cometi  x  ou  y  infracções  (outra  vez!) ortográficas graves e de que ficarei  impedido de escrever durante um mês ou, sabe‐se  lá, para  sempre). Que  fazer? A quem pedir  satisfações? Ao Windows Update? Ao dr. Miguel Relvas? Ao SIS? À Loja Mozart? Por que obscura porta se terá  infiltrado a Coisa no meu computador? Poderá entrar  igualmente pela minha consciência e pela minha vontade dentro, censurando a vermelho o que penso e o que quero como censura o que escrevo? Já pensei voltar a escrever à mão, mas  temo  que  até  esferográficas  e  lápis  tenham  já  sido  programados pelo dr. Casteleiro para não me deixarem escrever consoantes mudas”. 

Creio  que  serão  igualmente  os  mais  distraídos  os  únicos  que  ainda  não  repararam  na proveniência  do  resultado  das  pesquisas  que  fazem  na  Internet.  Segundo  a Newmediaconsulting, “Desde a  implementação no novo  (des)acordo ortográfico que muitas empresas e marcas online em Portugal sentem uma quebra significativa nas visitas ao seu site e no volume de negócios daí provenientes”.(14)  

Como  salientou  Augusto  Manuel  Seabra:  “acho  sumamente  lamentável  a  insistência  no Acordo Ortográfico, que não só é uma barbaridade em termos de  língua e  linguística, o que tantos  já devidamente assinalaram, como vai ser mais um  instrumento para a expansão das indústrias culturais brasileiras – e mesmo sendo a 'brasileirofilia', de Viegas, espanta‐me que ele, sendo editor, não saiba que há congéneres brasileiras a adquirir os direitos universais de obras  de  língua  portuguesa”.  (Público,  06/07/2001  no  artigo  «Um  governante  e  o  seu programa»)  Maurício  Silva,  professor  da  Universidade  Nove  de  Julho,  São  Paulo,  não  dissimula:  “não estamos mais dispostos a aceitar que tomamos a língua deles emprestada e nos cabe apenas respeitá‐la. Afinal somos a maioria”, e acrescenta: “Assim, pode‐se dizer que grande parte da discussão em torno da ortografia da língua portuguesa – como, de resto, em torno da própria língua – redunda na tentativa de afirmação nacionalista de uma vertente brasileira do idioma, em franca oposição à vertente lusitana”.(15)   

 

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É  legítimo, e  louvável, que o Brasil queira o expansionismo da sua  língua e economia; mas é inadmissível que o procure à custa do empobrecimento cultural alheio.   Sobre o Acordo Ortográfico, até a imprensa estrangeira noticiou que:  

“Portugal adopts Brazilian spellings” (Chicago Tribune); “Brazilian devours its mother tongue” (Gulf Stream Blues); “Le  créole  brésilien  remplace  officiellement  le  portugais  au  Portugal” (Témoignages); “In portogallo si parlerá brasiliano” (Oz Traveller).  

 O  prestígio  internacional  e  demais  «potenciais»  duma  língua  não  se  conseguem  com ambiguidades, imprecisões e erros técnicos; só a ingenuidade e a ignorância, acalentadas com falácias e estatísticas de ilusão, acreditam que o AO90 é um passe de mágica para a afirmação do português no mundo, como adverte Desidério Murcho.(16)   O  inglês,  língua  de  referência  mundial,  nunca  «acordizou»  inglês  britânico  com  inglês americano, mas a sua estabilização secular contribui certamente para a sua afirmação.  Assim sendo, a pergunta da APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros) é da maior pertinência: “Se o Acordo não serve, a quem serve o Acordo?”. Acrescenta a APEL no mesmo comunicado de imprensa (Estudo revela inutilidade do Acordo Ortográfico):  

“ao  contrário  do  que  é  dito  pelos  seus  defensores,  não  se  afigura  a aproximação das diversas variantes do Português, mas sim a consagração das diferenças naquilo que é fundamental – a sintaxe, a semântica e o vocabulário – com clara vantagem para a variante do Brasil.  (...) pois não haja quaisquer dúvidas  que  as  instituições  internacionais,  a  partir  do  momento  em  que Portugal ceder às  intenções do Brasil, não hesitarão em ter como referência o Português daquele país.  

 Assim, com base neste estudo que agora se torna público, a APEL convida todos os agentes políticos, culturais e educativos a reflectirem com profundidade sobre este assunto. Ainda não é  tarde demais para  se  evitar uma  catástrofe, pois,  certamente, o Acordo Ortográfico não serve a Portugal”.(17)   O  lucro  imediato contribuiu para que muitos portugueses, sobretudo formadores, entidades formadoras  e  fazedores  de  manuais  do  tipo  auto‐ajuda  para  aprender  a  porra  da  nova ortografia  (como  lhe  chamou  a  cantora  brasileira  Rita  Lee),  se  aliassem  a  este  atentado cultural. A Porto Editora é o caso mais flagrante: em 2005 emitiu parecer bastante negativo ao  AO90,  salientado  as  “consequências muito  graves  a  nível  económico”,  o  facto  de  “as diferenças da Língua Portuguesa nos vários países  lusófonos situam‐se ao nível semântico e sintáctico” e “os problemas de ambiguidade criados”, mas depois aproveitou a oportunidade obter lucro propagandeando o que considera não só inútil como nefasto.   No Anexo  II do AO90 os negociadores perguntam, como quem atenua a culpa: “como é que uma  criança  de  6‐7  anos  pode  compreender  que  em  palavras  como  concepção,  excepção, 

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recepção, a consoante não articulada é um p, ao passo que em vocábulos como correcção, direcção,  objecção,  tal  consoante  é  um  c?”.  Eu  diria  que  as  curiosas  crianças,  que  tudo querem aprender e saber, perguntarão por que é que têm que escrever o  ‘h’ da onestidade dos omens que as mandam escrever assim, já que é esse ‘h’ o que não lêem; provavelmente também  se  lhes  terá  que  explicar  o  que  significa  ‘arbitrariedade  no  uso  de  critério’  e ‘consagração  pelo  uso’.  A  ingenuidade  dará  lugar  à  compaixão  pelas  crianças  inglesas, francesas ou espanholas, obrigadas a escrever psychology,  jouet e diccionario. Porém, mais tarde,  quererão  que  lhe  expliquem  por  que  é  que  o  dinheiro  e  o  empenho  gastos  a desestabilizar a língua portuguesa não foi investido no ensino.   Como  disse  o  escritor  Vasco  Graça Moura  (Diário  de  Notícias,  30/05/2012)  é  “pela  boa aprendizagem  de  uma  língua  que  se  torna  possível  a  formulação  eficaz  do  pensamento abstracto nas suas  implicações filosóficas, matemáticas, científicas. É por aí que se chega ao conhecimento e ao progresso”.   Na  língua  e  na  aprendizagem,  “como  em  tudo  na  vida,  os  que  sabem mais  têm  o  dever sagrado de passar a  sua  sabedoria para os que  sabem menos. Nunca descer ao  seu nível. Porque é batota!” (Património em risco, Jornal de Angola, 08/02/2012)  Como  se  justifica  tanto  investimento  de  recursos  se  o  AO90, mesmo  que  não  criasse  os problemas que cria, não conseguiria melhorar a comunicação entre os PALOP? Quem diz que o AO90 unifica ou simplifica a ortografia ou vê outro tipo de vantagens neste «acordo», ou repete acriticamente o que ouve ou age de má‐fé. Não é o caso da organização mundial de escritores P.E.N., que anunciou em Setembro último que o “P.E.N. Internacional condena por unanimidade o Acordo Ortográfico”.(18) Nem o caso da Sociedade Portuguesa de Autores, que se recusa a adoptá‐lo.  Quem leu com atenção o depoimento de Paula Neves Blank e tenha percebido o que foi dito ao  longo deste  trabalho,  concordará  com  Lyris Wiedemann, professora da Universidade de Stanford,  que  afirma  que  “it  is  virtually  impossible  for  a  native  speaker  of  one  variety  of Portuguese (European or Brazilian) to do a good translation into the other. Although there are unfortunately people who may  feel, and announce  themselves, as capable os  translating or editing  for both varieties,  their work usually does not pass  the  simplest  scrutiny of a native speaker”.   Também considero  inaceitável “a perda de tempo e recursos a reformar a ortografia em vez de concentrar os esforços na produção de boas obras de divulgação, gramáticas e dicionários de qualidade, que realmente ajudem o público a dominar a sua  língua e a escrever cada vez melhor nela”.(19)   Por fim, faço minhas as palavras do  juiz de Viana do Castelo que garante que quem escreve segundo  o  AO90  dá  erros  ortográficos,  visto  o  «acordo»  não  estar  em  vigor  no  Estado português (comunicado em anexo).  Angola  e  Moçambique  não  ratificaram  o  AO90,  pelo  que,  Portugal,  tendo  aderido  à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados em 2003, a qual determina que um Tratado 

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Internacional só vigora depois de ratificado por todos os seus signatários, não o pode aplicar oficialmente (art. 24.º).   Do  que  se  disse  resulta  ainda  a  ilegalidade  da  Resolução  da  Assembleia  da  República  n.º 35/2008 de 29 de  Julho de 2008, ao  tentar sobrepor‐se ao Decreto‐Lei n.º 35.228, de 8 de Dezembro  de  1945,  que  não  foi  revogado  e  que  determina  a  aplicação  da  Convenção Ortográfica de 1945.   José de Faria Costa e Francisco Ferreira de Almeida, Professores da Faculdade de Direito da Universidade  de  Coimbra,  dão  prova  dessa  ilegalidade  num  artigo  publicado  em  Fevereiro último no Diário de Notícias, que anexo e cuja leitura recomendo.  Anexo  ainda  a  “Pergunta  ao  Governo”  de  23  de  Novembro  último  pelos  Deputados  João Bosco  Mota  Amaral,  Joaquim  Ponte  e  Lídia  Bulcão,  onde  podemos  ler  que  “Interesses económicos  poderosos  pressionaram  no  sentido  da  imediata  aplicação  de  um  tratado internacional que nem sequer está em vigor”.  Espero que este trabalho contribua para que todos compreendam a urgência de travar este atentado e unam esforços para que as crianças e jovens não sejam obrigadas a mais um ano de «aprendizagem»  segundo um  “açordo ortopédico”  como  lhe  chama o Prof. Doutor  José Barata‐Moura(20).  O  açordo  apresenta  “pontos  escandalosos  do  ponto  de  vista  técnico‐linguístico, como o da facultatividade ortográfica, que coloca grandes problemas de natureza pedagógico‐didáctica”,  como declarou Vítor Manuel Aguiar e  Silva após  ter‐se demitido do cargo de coordenador da Comissão Nacional de Língua Portuguesa por  lhe  ter  sido negado acesso ao texto  final do AO90, depois de ter dado um parecer negativo ao anteprojecto de 1998.  Chegou a hora de todos os intervenientes no sistema educativo rejeitarem o açordo.  Porto, 15 de Janeiro de 2013 ________________________  (1) http://sol.sapo.pt/inicio/Opiniao/interior.aspx?content_id=41357&opiniao=Opini%E3o (2) http://www.tsf.pt/PaginaInicial/Portugal/Interior.aspx?content_id=2536190 (3) http://aulp.org/noticias/revista‐de‐imprensa/ensino‐superior/1478‐academia‐de‐ciencias‐defende‐ alteracoes‐ao‐acordo‐ortografico (4) http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2204200909.htm (5) http://issuu.com/roquedias/docs/pareceres‐icamoes2005/1 (6) http://beyond‐the‐book.com/strategies/strategies_041608.html (7) http://www.csun.edu/science/ref/language/teaching‐ell.html  (8) http://issuu.com/roquedias/docs/fmv_diacritica24‐1‐1 (9) http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=26&did=88283  (10) http://networkedblogs.com/FISeq  (11) http://www.asjp.pt/2012/03/14/juiz‐de‐viana‐do‐castelo‐proibe‐aplicacao‐do‐novo‐acordo‐ortografico ‐no‐tribunal/ (12) http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/11/121127_educacao_ranking_eiu_jp.shtml (13) http://www.ciberduvidas.pt/aberturas.php?id=1556 (14) http://www.newmediaconsulting.pt/artigos/desacordo‐ortogr%C3%A1fico‐afecta‐desempenho‐online/ (15) http://www.filologia.org.br/revista/artigo/5%2815%2958‐67.html (16) http://dererummundi.blogspot.nl/2008/04/para‐qu‐o‐acordo‐ortogrfico.html 

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(17) http://www.apel.pt/pageview.aspx?pageid=118&langid=1 (18) http://proximidade.penclubeportugues.org/2012/09/peninternacional‐condena‐por.html (19) http://criticanarede.com/ed1.html (20)http://www.tvi.iol.pt/programa/4601/videos/249776/video/13769141/1  

Publicado na Biblioteca do Desacordo Ortográfico a 7 de Abril de 2013 http://www.jrdias.com/acordo-ortografico-biblioteca.htm Subscreva a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico http://ilcao.cedilha.net/docs/ilcassinaturaindividual.pdf Veja também como vai A Choldra Ortográfica em Portugal http://www.jrdias.com/acordo-ortografico-biblioteca.htm