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ANTONIO HENRIQUE GRACIANO SUXBERGER A I NTERVENÇÃO PENAL COMO REFLEXO DO MODELO DE ESTADO : A BUSCA POR UMA I NTERVENÇÃO PENAL LEGÍ TI MA NO ESTADO DEMOCRÁTI CO DE D I REI TO Dissertação submetida à Faculdade de Direito da Universidade de Brasília para a obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração “Direito, Estado e Constituição”. Orientadora: Professora Doutora Ela Wiecko Volkmer de Castilho Brasília 2005

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ANTONIO HENRIQUE GRACIANO SUXBERGER

A I NTERVENÇÃO PENAL COMO REFLEXO

DO MODELO DE ESTADO : A BUSCA POR UMA I NTERVENÇÃO PENAL LEGÍ TI MA NO

ESTADO DEMOCRÁTI CO DE D I REI TO

Dissertação submetida à Faculdade de

Direito da Universidade de Brasília para a

obtenção do título de Mestre em Direito, área

de concentração “Direito, Estado e

Constituição”.

Orientadora: Professora Doutora Ela Wiecko

Volkmer de Castilho

Brasília

2005

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ANTONIO HENRIQUE GRACIANO SUXBERGER

A I NTERVENÇÃO PENAL COMO REFLEXO

DO MODELO DE ESTADO : A BUSCA POR UMA I NTERVENÇÃO PENAL LEGÍ TI MA NO

ESTADO DEMOCRÁTI CO DE D I REI TO

Dissertação submetida à Faculdade de

Direito da Universidade de Brasília para a

obtenção do título de Mestre em Direito, área

de concentração “Direito, Estado e

Constituição”.

Orientadora: Professora Doutora Ela Wiecko

Volkmer de Castilho

Brasília

2005

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Antonio Henrique Graciano Suxberger

A INTERVENÇÃO PENAL COMO RE FLEXO DO MODELO DE ESTADO :

A BUSCA POR UMA INTERVENÇÃO PENAL LEGÍ TIMA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração “Direito, Estado e Constituição”, e aprovada em sua forma final pela Coordenação do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

Banca Examinadora:

Presidente: Professora Doutora Ela Wiecko Volkmer de Castilho — UnB

Membro: Professor Doutor Paulo de Souza Queiroz — UniCEUB

Membro: Professor Doutor Alexandre Bernardino Costa — UnB

Membro: Professor Doutor Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto – UnB (Suplente)

Coordenador de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília: Professor Doutor Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto — UnB

Brasília/DF, de de 2005.

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Agradecimentos

Nenhuma realização — por mais singela que seja — é fruto de um esforço

solitário. Este trabalho hoje existe porque pessoas acreditaram na pessoa que o realizou.

Agradeço aos meus pais, Heini e Maria, que me provam a cada dia que o amor

deles supera e me faz superar qualquer desafio. Um merecido e por demais protelado

agradecimento também dirige-se aos meus irmãos Maria Helena e Heini, que juntamente com

o Cadu e a Rose, meus cunhados, servem-me de modelo, suporte e alegria para enfrentar os

problemas que vez por outra insistem em aparecer pela vida. Meus sobrinhos Matheus,

Luciano, Vinícius e Bruno confirmam isso.

Agradeço ao amigo de todas as horas Raphael Borges Leal de Souza e à sua

família recém-formada com a Mariana, que se junta à já presente que eu gosto tanto. Meu

agradecimento também vai para o amigo Paulo Eduardo Pinto de Almeida, que, como se não

bastasse nossa amizade, furtou-se da companhia da minha querida Carol para se ocupar da

leitura criteriosa dos originais do trabalho.

Agradeço também aos colegas do Mestrado: meus companheiros “inocentes”

Ivaldo, Leonardo, Antônio Pádua, Gustavo, Emmanuela, Cláudia e Cristiano, pelas reflexões

desenvolvidas sob a batuta do professor Inocêncio Mártires Coelho, a quem também

agradeço; aos meus colegas José Robalinho Cavalcanti e Cristina Ossipe Martins Botelho,

cujas considerações tornaram-se pontos deste trabalho; aos colegas Thiago Ávila, Marina

Quezado Grosner, Ana Flauzina e Fabiana Costa, pelas relevantes discussões criminológicas.

Meu obrigado se estende aos professores da Faculdade de Direito pelo exemplo de

dedicação à Universidade. Não posso deixar de agradecer aos alunos da graduação que

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conheci durante o Mestrado: fui premiado com amizades e com a troca desigual de

conhecimento (ganhei muito mais que ofereci). Obrigado à Universidade de Brasília: já se vão

dez anos desde a minha matrícula na graduação e parece que foi ontem.

Agradeço ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, instituição que

tenho orgulho de integrar e que me fomentou para realizar esta pesquisa, na pessoa de seu

Procurador-Geral de Justiça Rogério Schietti, exemplo de pessoa e profissional.

A gratidão é espelhada pelo coração. Por mais que as palavras tentem, elas jamais

tomarão o lugar de um olhar sincero e de um abraço verdadeiro. Obrigado.

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A aprovação da presente dissertação não implica o endosso da Professora Orientadora, da Banca Examinadora e da Universidade de Brasília às idéias que a fundamentam ou que nelas são expostas.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................................1 CAPÍTULO 1 – A busca por uma legitimação da intervenção penal ....................6

1.1. O giro valorativo na orientação do direito penal .........................................6

1.1.1. A política criminal como suporte a um direito penal axiologicamente orientado às suas finalidades ..........................................................................6 1.1.2. A compreensão atual da política criminal como instrumento de legitimação da intervenção penal .....................................................................................12

1.2. A compreensão do direito penal na contemporaneidade como reflexo

teleológico da opção de Estado.........................................................................27

1.2.1. O direito penal no Estado democrático de Direito .............................27 1.2.2. A influência da rigidez constitucional na compreensão da intervenção penal contemporânea..............................................................................................32

CAPÍTULO 2 – As razões da intervenção penal .................................................36 2.1. O abolicionismo penal ...............................................................................36

2.1.1. O pensamento de Louk Hulsman .......................................................38 2.1.2. O pensamento de Thomas Mathiesen.................................................42

2.2 . Ferrajoli e as razões do direito penal: quando proibir?.............................50

CAPÍTULO 3 – Do abolicionismo ao minimalismo garantista: as críticas mais relevantes e o movimento de expansão do direito penal ......................................64

3.1. Abolicionismo versus garantismo..............................................................64

3.1.1. A intervenção penal dirigida à prevenção de vinganças privadas......69 3.1.2. A intervenção penal dirigida à prevenção de delitos..........................74

3.2. A tendência contemporânea: o risco de um direito penal simbólico.........79

CAPÍTULO 4 – A abordagem funcionalista do direito penal..............................92 4.1. O funcionalismo sociológico no direito penal ...........................................92

4.2. A abordagem funcionalista sistêmica: concepção e crítica .......................99

4.3. Crítica ao funcionalismo sistêmico: a necessária opção pelo funcionalismo

teleológico.......................................................................................................114

CAPÍTULO 5 — Os fins da intervenção penal: visão geral ..............................122 5.1. Teoria da retribuição................................................................................124

5.2. Teoria da prevenção especial...................................................................128

5.3. Teoria da prevenção geral........................................................................133

CAPÍTULO 6 – A missão do direito penal: os fins da pena segundo o funcionalismo teleológico ..........................................................................................................138

6.1. Primeiro momento de realização do direito penal: o âmbito de incidência142

6.1.1. Princípio da subsidiariedade.............................................................143 6.1.2. Princípio da lesividade .....................................................................144

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6.2. Segundo momento de realização do direito penal: aplicação e mensuração da

pena .................................................................................................................145

6.3. Terceiro momento de realização do direito penal: a execução da pena ..149

6.4. Críticas à teoria de Claus Roxin: acréscimos e superações .....................152

CAPÍTULO 7 – A missão do direito penal: a exclusiva proteção de bens jurídicos............................................................................................................................162

7.1. Os valores jurídico-penais na Constituição: a Carta Política como pauta

valorativa.........................................................................................................162

7.2. Uma aproximação do conceito de bem jurídico ......................................170

7.2.1. O bem jurídico extraído da Constituição..........................................170 7.2.2. A construção do bem jurídico com base em suas funções ...............173

CONCLUSÃO....................................................................................................189 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................198

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RESUMO

A presente dissertação pretende investigar a legitimidade da intervenção penal

contemporânea. O direito penal expressa uma opção político-criminal, que se orienta, por sua

vez, consoante o modelo de Estado a que se aspira. Assim, a intervenção penal — orientada

por valores extraídos de uma política criminal acolhida pelo modelo de Estado democrático de

Direito — volta-se às suas finalidades. O direito penal justificar-se-á por duas funções: (i)

limitada prevenção de delitos e (ii) exclusiva proteção de bens jurídicos. A Constituição, além

de prestar-se como pauta de valores a informar o sistema-político criminal, por meio de sua

rigidez, fixa um novo paradigma e atua como limite e vínculo ao poder do Estado,

especialmente o penal. A discussão acerca das razões da intervenção penal enfrenta desde

aqueles que negam qualquer legitimidade à intervenção penal (abolicionismo) até a posição

segundo a qual o direito penal atua na prevenção de novos delitos e de reações informais ao

delito (garantismo). No entanto, vê-se um movimento de expansão do direito penal segundo

uma visão simbólica que o coloca como instrumento no combate à criminalidade. A busca por

uma intervenção penal legítima passa, então, necessariamente pela abordagem funcionalista

teleológica, que se ocupa das teorias da pena, para justificar a existência do direito penal, e do

estudo do bem jurídico-penal, para limitar o poder punitivo estatal.

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ABSTRACT

This dissertation is a study concerning the legitimacy of contemporary criminal

intervention. Criminal law is the result of criminal policy which, in turn, depends on the State

model that is pursued. Thus, criminal intervention is linked to criminal policy values, which

depend upon the model that the state adopts. Criminal law has two fundamental roles: 1) a

limited prevention of crimes; and 2) an exclusive protection of some values. In addition to

essentially being a guideline of values that limit the criminal policy system, by means of its

rigidity, the Constitution establishes a new paradigm, thus limiting and binding the power of

the State, especially when related to criminal intervention matters. Discussions concerning the

reasons for criminal intervention, through the state, range from positions that deny any

legitimacy to such criminal intervention (abolitionism) to those that consider criminal law as

an effective way to prevent crimes and punishment not forseen by a statute. However, there is

a contemporary trend that sees criminal law in a symbolic light and perceives it as an

instrument to fight crime. The search for a legitimate criminal intervention necessarily

involves the teleological functionalism approach, which analyses the theories of punishment,

in order to justify the existence of criminal law, and the study of criminal values, in order to

limit the punitive power of the State.

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INTRODUÇÃO

A intervenção penal do Estado, por substanciar a mais grave forma de controle

social, traz consigo um permanente questionamento acerca de sua legitimidade. Discutir a

razão de se optar por essa resposta tão grave, com aptidão para atingir um dos bens mais caros

à pessoa — a sua liberdade —, é tarefa que se põe tanto ao meio acadêmico como para

aqueles que operam o sistema de justiça criminal.

No entanto, além de discutir o se da intervenção penal, uma vez que se a admita,

caberá ao intérprete seguidamente questionar as finalidades a serem por ela atingidas, bem

assim, por configurar resposta tão grave, os rigorosos limites a serem observados pelo Estado

na utilização desse instrumento que, afirme-se desde logo, prestar-se-á à salvaguarda dos

valores mais importantes ao seio social. Em última análise, discutir a legitimidade da

intervenção penal implica descortinar as missões que o Estado reserva ao direito penal.

Nessa linha de idéias, surge como tarefa inarredável a identificação do sistema

político-penal que melhor se coadune com o modelo de Estado a que o seio social aspira. Isso

porque, subjacente ao questionamento acerca da legitimidade da intervenção penal, está a

assertiva de que o modo pelo qual o Estado a opera reflete exatamente o modelo de Estado

cuja realização se pretende. Com isso, e tomando-se por pressuposto que se pretende

justamente observar o paradigma de um Estado democrático de Direito, parece inafastável que

a construção do direito penal deverá observar uma orientação dirigida a valores, os quais

serão extraídos de um programa político-criminal de nítida inspiração e vinculação

constitucional.

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Uma intervenção penal que se pretenda legítima e que almeje um mínimo de êxito

(aptidão funcional) deve voltar-se ao cumprimento de uma política criminal valorativa e

teleologicamente orientada. A recepção de tendências político-criminais funcionalistas, bem

assim a abertura da dogmática penal a uma pauta de valores extraída da própria Carta Política

parecem traduzir o matiz de uma intervenção penal contemporânea, que revele

simultaneamente a preocupação normativa de segurança jurídica – em sua acepção de

segurança social – e o papel de garantia dos indivíduos submetidos a essa mesma intervenção.

O esboço de uma investigação dessa natureza não se mostra livre de percalços. É

que a recente produção legislativa brasileira e os discursos que a lastreiam parecem caminhar

em sentido contrário a todo delineamento de um direito penal orientado a valores de natureza

constitucional. Igualmente, na revisão bibliográfica, especialmente nos autores de língua

portuguesa, percebe-se uma falta de clareza conceitual acerca das distinções — tênues, porém

bastante importantes — entre os sistemas penais surgidos após o finalismo. Essa confusão

doutrinária, ao que parece, tem servido justamente de lastro a uma expansão do direito penal

pretensamente amparada em pressupostos funcionalistas.

A vertente de investigação a ser adotada é a jurídico-sociológica, que se propõe a

compreender as finalidades do direito penal num ambiente social mais amplo. O tipo genérico

de investigação ora pretendida é o jurídico-compreensivo ou jurídico-interpretativo1, que parte

da decomposição de um problema jurídico em seus diversos aspectos, relações e níveis.

No primeiro capítulo, intitulado “A busca por uma legitimação da intervenção

penal”, pretender-se-á demonstrar que o direito penal contemporâneo operou um verdadeiro

1 Cf. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 55-60. Igualmente, servem de arrimo metodológico ao presente trabalho: PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úteis para o

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giro em direção a uma orientação valorativa, afastando-se de uma tradição de abordagens

ônticas, a fim de orientar-se a soluções político-criminais inspiradas pelas próprias finalidades

do direito penal. Com isso, ver-se-á que a política criminal passa a assumir lugar de relevo na

construção da própria dogmática penal, porque a ela caberá sistematizar as constatações

advindas do empirismo criminológico e aglutiná-las com os reclamos axiológicos extraídos do

texto constitucional. Procurar-se-á demonstrar, então, que a compreensão do direito penal

contemporâneo será reflexo da missão constitucional relegada à intervenção penal segundo o

modelo de Estado a que se aspira, no caso, o do Estado democrático de Direito. Questionar-

se-á, assim, o papel da rigidez constitucional, própria do constitucionalismo desse modelo de

Estado, na elaboração das normas penais.

O segundo capítulo (“As razões da intervenção penal”) cuidará de, primeiramente,

enfrentar as propostas que negam por completo a própria intervenção penal pelo Estado. Em

seguida, passar-se-á a esboçar o sistema visualizado por Luigi Ferrajoli, corifeu do

pensamento garantista, de dúplice função atribuída ao direito penal.

O terceiro capítulo — “Do abolicionismo ao minimalismo garantista: as críticas

mais relevantes e o movimento de expansão do direito penal” —, tomando como ponto de

partida as perplexidades surgidas do enfrentamento entre os postulados abolicionistas e as

propostas do garantismo, ocupar-se-á de dimensionar uma síntese crítica das posições

abolicionistas e garantista. Só então, com o instrumental advindo desse enfrentamento,

analisar-se-á a tendência expansionista da intervenção penal contemporânea, a fim de se saber

se o direito penal, nesse contexto de crescimento de seus lindes, atinge suas funções ou se tão-

somente tem se prestado como instrumento simbólico.

pesquisador do Direito. 3. ed. atual. ampl. Florianópolis: OAB/SC Editora, 1999, 200 p., e MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Cláudia Servilha. Manual de Metodologia da Pesquisa no Direito. [s. l.]: [s. ed.], 2002.

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O quarto capítulo, intitulado “A abordagem funcionalista do direito penal”, deter-

se-á, inicialmente, sobre as próprias bases desse movimento sociológico lançado por Émile

Durkheim e capitaneado por Robert Merton. Em seguida, pretende-se, a partir das lições de

Niklas Luhmann, explorar as bases sobre as quais repousam as idéias advindas do

funcionalismo sistêmico defendido por Günther Jakobs, penalista alemão dos mais lidos nos

países latino-americanos, notadamente no Brasil, com considerável prestígio dirigido a tal

vertente de pensamento. Daí, cuidar-se-á de apresentar outra vertente do funcionalismo

representado pelo também alemão Claus Roxin.

O quinto capítulo – “Os fins da intervenção penal” – deparar-se-á com a assertiva

de que a pretensão de abordar as finalidades da intervenção penal implica debruçar-se sobre

as teorias da pena: absolutas, relativas e suas subespécies. As primeiras, como se verá, são de

evidente cariz retribucionista; ao passo que as segundas referem-se à prevenção de novos

delitos, ora pendem para uma prevenção especial de delitos em geral, ora pendem para uma

prevenção geral dos delitos futuros.

O sexto capítulo, por sua vez, chamado “A missão do direito penal: os fins da

pena segundo o funcionalismo teleológico”, reconhecerá a inclinação da investigação à

vertente do funcionalismo teleológico tal como asseverada por Claus Roxin. Perceber-se-á

que a intervenção penal deverá observar três momentos distintos: um de definição do âmbito

de incidência; um de aplicação e mensuração da reprimenda imposta; e o último, que diz

respeito à execução da sanção imposta. Nada obstante, a visão roxiniana também se

submeterá às críticas elaboradas por considerável número de doutrinadores.

O sétimo capítulo — “A missão do direito penal: a exclusiva proteção de bens

jurídicos” —, que guarda estreita relação com o capítulo anterior, servirá justamente como

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pano de fundo ao desenvolvimento de uma teoria do direito penal que exerce uma dúplice

função. Para isso, valer-se-á de uma pauta hermenêutica, extraída da própria Carta Política,

para em seguida perquirir acerca de um conceito de bem jurídico extraído das funções por ele

exercidas.

Tratar de temas da dogmática do direito penal revela-se sempre tarefa muito

custosa. É difícil traçar um enfoque ou um recorte nos temas que acabem não tocando de um

modo ou de outro algo já desenvolvido. No entanto, pretende-se que a investigação ora levada

a efeito forneça, ao fim, os pressupostos sobre os quais deverá uma intervenção penal,

condizente com um Estado democrático de Direito, exercer sua missão constitucional de

prevenção de delitos e de exclusiva proteção de bens jurídicos.

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CAPÍTULO 1 – A busca por uma legitimação da intervenção

penal

1.1. O GIRO VALORATIVO NA ORIENTAÇÃO DO DIREITO PENAL

1.1.1. A política criminal como supor te a um direito penal axiologicamente orientado às suas finalidades

A necessidade de uma orientação normativa axiologicamente voltada a valores

constitucionais surge como reclamo maior de um direito penal que hoje está em crise.

Verdadeiramente, ou o direito penal cumpre a exigência de dotar-se de uma melhor

compreensão axiológica e, por ela, de uma abordagem filosófico-política, ou corre o risco de

reduzir-se a uma pura técnica de controle social e policial.

Os desajustes sociais e a própria dinâmica das aglomerações urbanas produzem

conotações entre a criminalidade e a reação social frente a ela que não podem ser

compreendidas de um ponto de vista exclusivamente normativo, porque o direito penal não é

mais que uma forma de controle social, na lição de Muñoz Conde, “em que aquilo que não se

vê é talvez mais importante que aquilo que oficialmente se ensina”.2

Não há como escapar dessa percepção axiológica do direito penal. Questionar a

legitimidade da intervenção penal demanda do intérprete a utilização de critérios valorativos

externos à lei. Uma definição substancial do delito, que supere a assertiva tautológica de

concepção formal do delito — “é delito toda conduta proibida pela lei penal” —, exige uma

abordagem valorativa, sob pena de o intérprete satisfazer-se com uma legitimação

estritamente interna da intervenção penal, própria dos ordenamentos que incorporam e se

2 “La idea básica que preside este libro es precisamente esta: que no se puede compreender el Derecho penal más que como una forma de control social, en la que lo que no se ve es quizás más importante que lo que

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valem apenas da retribuição como móvel da intervenção estatal e da legalidade formal a

qualquer custo.

O direito penal, até o fim do século XIX, mais que qualquer outro ramo do

conhecimento jurídico, apresentava-se como uma ciência jurídico-filosófica. Converteu-se, no

começo do século XX, em uma disciplina puramente técnica, carente de fundamentos e de

referenciais axiológicos externos.3

São diversos os fatores que conduziram a essa mudança do direito penal. Para

melhor compreensão, no entanto, pode-se sintetizá-los em três grupos de argumentos.

Em primeiro lugar, destaca-se a marca reacionária do pensamento liberal do final

do século XIX, que, uma vez construída e consolidada a idéia de Estado moderno, não mais se

preocupou em assegurá-la mediante limites e vínculos em garantia dos direitos dos cidadãos;

mas, ao contrário, voltou-se a defender o próprio Estado desses cidadãos e, em particular, das

novas “classes perigosas” e potencialmente subversivas.

Em segundo lugar, em razão de uma abordagem epistemológica positivista,

lastreada na aproximação acrítica de um direito de cunho meramente descritivo, e a ilusão

supostamente científica de uma ciência jurídica desprovida de carga valorativa, admitindo-se

o direito como uma ciência puramente técnica, de onde se poderia retirar todo e qualquer

juízo de valor.

oficialmente se enseña”. CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, Prólogo a la edición brasileña. 3 Nesse sentido, cf. FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 17-31.

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Em terceiro lugar, em conseqüência da razão anterior, vislumbra-se uma evidente

tentativa de “naturalização” do direito penal como fenômeno externo e independente da obra

dos juristas, suscetível de conhecimento e, mais, de explicação, mas não de justificação ou

mesmo de deslegitimação. Com essa última razão, verificara-se uma redução da legitimação

externa (ou política) e da legitimação interna (ou jurídica) do direito penal, uma confusão

entre o seu conteúdo de justiça e a sua mera existência e concepção como técnica auto-

referencial de defesa e controle social, consoante propostas autoritárias de diversas índoles,

que ainda floreiam as discussões tacitamente filosóficas da cultura penal dominante, inclusive

a brasileira.

O crédito pela criação da política criminal como disciplina científica é de Franz

Von Liszt, que a concebeu como o conjunto de critérios determinantes de uma luta eficaz

contra o delito. Silva Sánchez4 chama a atenção para o profundo distanciamento entre o

pensamento do mesmo Liszt acerca da dogmática penal e da política criminal. A visão

dogmática do pensador alemão descreve e sistematiza o Código Penal alemão de 1871,

relegando à dogmática um papel — que ele próprio reputa inferior — de explicação

sistemática do código a estudantes de Direito.5 No entanto, o pensamento voltado à política

criminal, lastreada na ideologia terapêutica, propõe a substituição da pena e do direito penal

da culpabilidade pela medida de segurança e pelo direito penal da periculosidade.6

Inicialmente de caráter marcadamente terapêutico, voltada à realização de um

direito penal de caráter pretensamente “curativo”, a política criminal passou a assumir dois

4 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Reflexiones sobre las bases de la política criminal. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 227-228. 5 Essa postura é facilmente perceptível em seu Tratado de derecho penal. 3 volumes. Tradução de Quintiliano Saldaña. 3. ed. Madrid: [s.d.], passim. 6 O juízo é de Jesús-María Silva Sánchez (Reflexiones sobre las bases de la política criminal. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 228).

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referenciais de racionalidade: um empírico, de eficácia, e outro valorativo, de garantias. Trata-

se justamente do surgimento de uma política criminal valorativa, presente nos últimos

quarenta anos do direito penal.7 Essa política criminal valorativa, por um lado, estriba-se

justamente em duas idéias fundamentais: a crença na ressocialização do delinqüente e a

convicção na manutenção das garantias penais. De outro lado, porém, percebe-se igualmente

um nítido viés de orientação prática e eficientista, de orientação intimidatória e

segregacionista, próprio de contextos generalizados presididos pela oportunidade e pelo

populismo. Este último, infelizmente, é o que tem caracterizado a inflação legislativa

brasileira nos últimos anos.

A valer, a recente produção legislativa do direito penal brasileiro parece carecer

de qualquer racionalidade. Tal constatação não se confunde com aquela propugnada pela

Escola de Kiel, de Schafstein e Dahm, na Alemanha nazista, que se voltava à negativa do

conceito de bem jurídico8, mas alcança um direito penal que se afasta das constatações

dogmáticas de um sistema aberto de Direito, criminológicas e de política criminal. O direito

penal brasileiro tem passado de ultima ratio a prima ratio, efetuando a construção de

verdadeiras ignomínias, motivadoras de grandes embates doutrinários e jurisprudenciais. É o

que se vê em legislações recentes como a Lei dos crimes hediondos e suas reformulações (Lei

8.072/1990), a Lei dos crimes ambientais (Lei 9.605/1998), entre outras. Afastado de uma

preocupação acerca da legitimação da intervenção penal, o Estado cada vez mais se vale de

uma legislação de cunho simbólico e estigmatizante.

7 Como se verá adiante, a melhor percepção desse giro na leitura (e na influência) da política criminal é a ofertada por Claus Roxin (Política Criminal e Sistema Jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, passim). 8 A propósito, cf. NAVARRETE, Miguel Polaino. El bien jurídico en el derecho penal. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1974, p. 164 et seq. Igualmente, cf. FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: un ensayo de fundamentación dogmática. Buenos Aires: Editorial B de F, 2004, p. 31 et seq.

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10

O direito penal relaciona-se, outrossim, com importante categoria sociológica: a

violência. Muñoz Conde ressalta que a característica fundamental de todos os casos9 com que

lida o direito penal é a violência, pois são violentos todos os casos por ele tratados, como

também é violenta a forma pela qual ele os soluciona – a pena. “A violência é, desde logo, um

problema social, mas também um problema semântico, porque somente a partir de um

determinado contexto social, político e econômico pode ser valorada, explicada, condenada

ou defendida”.10 Por conseguinte, o conceito de violência não se constrói ou se extrai de modo

estático ou ahistórico; ao contrário, surge de ilação esboçada do problema social em que

evidenciada.11

O direito penal, portanto, seja nos casos em que prescreve sanções, seja na forma

com que essas sanções são prescritas, substancia violência, mas isso não significa que toda

violência substancie direito penal. Presta-se a violência como característica, reconheça-se, de

todas as instituições sociais voltadas à defesa ou à proteção de determinados interesses,

legítimos e ilegítimos. Trata-se, portanto, de mecanismo inerente à própria idéia de controle

social.

O direito penal está longe de ser o único meio de controle social de que dispõem a

sociedade e o Estado. Há outras formas que, inclusive, devem preceder ao direito penal, o

qual, pela gravidade de suas conseqüências, é a última ratio do sistema. Desse modo, são

formas de controle social extrajurídico que o antecedem: a família, a escola e a religião;

9 Vale-se o penalista espanhol da expressão “casos” na acepção delineada por Winfried Hassemer: “um caso (ou também: um fato) é um evento, um acontecimento real, o qual está sujeito a apreciação jurídica. Pode-se também dizer que: as leis são aplicadas aos casos; os casos são solucionados com a cooperação das normas legais”. HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 35. A missão do direito penal consiste, pois, em produzir, decidir e solucionar casos. 10 CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 4. 11 Zaffaroni, com a argúcia que lhe é peculiar, anota que o direito penal encerra um paradoxo em si mesmo, pois pretende tutelar a liberdade por meio da privação de liberdade, garantir bens jurídicos por meio da privação de

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11

ultrapassados esses primeiros filtros, aparecem também os métodos jurídicos de controle, que

são os outros ramos do ordenamento jurídico, como o direito civil, administrativo ou

econômico. Pablo Milanese insere o direito penal contemporâneo como um subsistema do

sistema maior de controle social: o direito penal se vale dos mesmos instrumentos das outras

formas de controle social na definição e correção da conduta desviada, como a norma, a

sanção e o processo, além de perseguir os mesmos fins de resguardo da ordem social.

Segundo Milanese, “é possível concluir que o direito penal converteu-se mais em um

instrumento político de direção social que um mecanismo de proteção jurídica subsidiária de

outros ramos do ordenamento jurídico”.12

Nada obstante, o que distingue a violência do direito penal da violência acometida

pelas outras instituições de controle social é justamente a formalização do controle. A

juridicização da imposição da sanção ao comportamento não tolerado, previamente à sua

própria realização, é o que legitima o direito penal como resposta última e extrema do Estado.

O que diferencia o direito penal de outras instituições de controle social é, simplesmente, a formalização do controle, liberando-o, dentro do possível, da espontaneidade, da surpresa, do conjunturalismo e da subjetividade própria de outros sistemas de controle social. O controle social jurídico-penal é, além disso, um controle normativo, quer dizer, exerce-se através de um conjunto de normas criadas previamente ao efeito.13

O modo pelo qual a intervenção penal se legitima é informado por valores

extraídos de um programa de política criminal, que segue orientado, por sua vez, pelas

finalidades a serem buscadas pelo direito penal. As finalidades da intervenção penal refletem

justamente a opção estatal pela realização da formalização dessa instância de controle social.

bens jurídicos. Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Política criminal latinoamericana: perspectivas – disyuntivas. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 1982, p. 22. 12 “(…) es posible concluir que el Derecho penal se ha convertido más en un instrumento político de dirección social que un mecanismo de protección jurídica subsidiaria de otras ramas del ordenamiento jurídico”. MILANESE, Pablo. El moderno derecho penal y la quiebra del principio de intervención mínima. In: Revista electrónica de doctrina y jurisprudencia, ano IV, n. 2, fevereiro 2004. Disponível em: <http://www.derechopenalonline.com>. Acesso em: 11 fevereiro 2004.

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12

A materialização do controle social jurídico-penal reproduz – ou deve reproduzir –

exatamente o modelo de Estado a que se aspira.

1.1.2. A compreensão atual da polít ica criminal como instrumento de legitimação da intervenção penal

Se a política criminal se presta justamente para informar uma intervenção penal –

e também para construir uma teoria penal (teoria do delito, teorias da pena etc.) — que se

pretenda legítima, é evidente que uma abordagem atenta a essa preocupação implicará

questionar as razões subjacentes a essa política.

Impende distinguir a política criminal na práxis da política criminal teórica. A

primeira constitui o conjunto de atividades – empíricas – organizadas e ordenadas à proteção

dos indivíduos e da sociedade, de modo a evitar a prática delituosa (conjunto de medidas

estatais para a prevenção e a repressão do delito). A segunda surge informada por um

conjunto de princípios teóricos hábeis a dotar de uma base racional a referida práxis de luta14

contra o delito, onde o matiz principal deita suas raízes na determinação do que substancia

solução “racional” e dos possíveis critérios de racionalidade e de legitimação.

Em todo caso, é certo que tais princípios da política criminal se efetivam por meio

da adoção de diversas formas voltadas a evitar o delito (estritamente preventivas umas,

repressivo-preventivas outras). Em boa medida, a política criminal manifesta-se em uma série

de instrumentos que devem associar-se nominal ou faticamente à produção presente ou futura

do delito, a fim de impedir que este se produza ou se reitere.

13 CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 6. 14 Melhor seria dizer “administração” do delito, porquanto o crime não se combate, haja vista a impossibilidade de erradicá-lo.

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Assim, de um lado, ainda que a política criminal seja tomada em termos mais

amplos, permite-se a assertiva de que todo o direito penal se integra na política criminal.

Nesse contexto, para o penalista existe uma prática identificação entre a teoria dos princípios

da política criminal e a dos fins (e meios) do direito penal. Como afirma Silva Sánchez,

(…) o direito penal é expressão de uma política criminal. Assim, a discussão sobre os fins do direito penal e sobre os meios necessários para alcançar tais fins não pode ser mais que uma discussão político-criminal. E a vocação da discussão político-criminal é, em última análise, a reforma do direito penal.15

De um lado, nota-se que a própria existência do direito penal estatal expressa uma

opção político-criminal (precisamente a que passa pela definição de determinados fatos como

delitos e pela atribuição ao Estado do monopólio da repressão a esses delitos); e, de outro

lado, tem-se que um direito penal considerado em concreto (com sua regulação legal e

também com sua (re)construção dogmática e aplicação prática) veicula expressão de

determinada orientação político-criminal dentro da linha geral mencionada. E mais: ainda que

a discussão político-criminal cumpra também uma função muito importante no âmbito da lex

lata, presta-se ela a principalmente fomentar os temas penais em sede de lex ferenda.

Não basta, contudo, associar a dogmática à política criminal: a orientação será

dada precisamente pelo modelo de Estado a que se aspira. É precisa a advertência de Muñoz

Conde a respeito:

Está claro, pois, que a Dogmática não pode ser desvinculada da Política criminal e que as finalidades político-criminais devem ser consideradas em sua elaboração. O problema consiste em saber qual é o modelo político-criminal que se deve ter em conta quando se faz Dogmática. Política criminal, está bem; mas qual? E este é um problema que, desde logo, não pode ser resolvido se não se leva em consideração o modelo de Estado e de sociedade no qual se utiliza esta Dogmática. Por isso, se deve ser muito cauteloso também ao conceber a Dogmática jurídico-penal só como uma “gramática universal” que pode ser empregada em qualquer

15 “El derecho penal es expresión de una política criminal. Así, la discusión sobre los fines del derecho penal y sobre los medios precisos para alcanzar tales fines no puede ser más que una discusión político-criminal. Y la vocación de la discusión político-criminal es, en último término, la reforma del derecho penal” (SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Reflexiones sobre las bases de la política criminal. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 233-234).

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tempo e lugar, ao mesmo tempo no Estado social e democrático de Direito e no Estado nacional-socialista, porque isso, a parte de ser bastante utópico, pode ser também muito perigoso e servir de legitimação de qualquer Direito Penal, incluído o do nacional-socialismo e o das ditaduras fascistas, a espanhola, as latino-americanas e as de qualquer outra parte do mundo onde se dêem tais modelos, que é, em definitivo, o que se desprende de uma proposta dogmática tão ascética e puramente sistemática como foi a que se cultivou na Dogmática jurídico-penal alemã dos anos 50 e 60.16

A preocupação com uma busca da legitimação do direito penal é inafastável e

contínua. Como lembra Enrique Gimbernat Ordeig, a imposição de uma pena, como, aliás,

toda a intervenção penal do Estado, “é algo que o Estado tem de justificar continuadamente

em seu se e em seu como, que tem de justificar demonstrando sua necessidade para alcançar

uma suportável convivência social”.17

A esta altura já se pode lançar a idéia basilar que permeará toda a investigação que

ora se pretende. A intervenção penal orienta-se à realização de valores extraídos da política

criminal: mas não de qualquer política criminal, e sim daquela acolhida pelo modelo de

Estado democrático de Direito.

A busca por uma legitimação da intervenção penal guarda relação com o relevante

debate hoje travado entre aqueles chamados principialistas e os ditos conseqüencialistas. Os

primeiros fixam um estrito vínculo entre as bases do direito penal – especialmente no que se

refere à dogmática do delito – e os fundamentos da ética de princípios lançada por Kant. A

ética clássica alemã afasta as considerações conseqüencialistas ou de utilidade para aquilatar o

valor moral das ações. Para o direito penal, essa abordagem filosófica revela-se de

fundamental importância na medida em que cuida essa espécie de controle social de valorar e,

como se abordará adiante, motivar condutas, respectivamente, contrárias ao e desejadas pelo

seio social. Segundo essa abordagem principialista, o sistema do direito penal teria uma

16 CONDE, Francisco Muñoz. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu tempo: estudos sobre o Direito Penal no Nacional-socialismo. Tradução de Paulo César Busado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 59.

Não entendi.
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15

configuração fechada e apriorística, livre de considerações axiológicas fornecidas pela política

criminal.18

Já o pensamento conseqüencialista reserva lugar substancial, justamente no

desenvolvimento da política criminal, às doutrinas de justificação do direito penal, inclusive

até mesmo os aportes trazidos pela vertente sistêmica de que é representante Günther

Jakobs.19 Um direito penal orientado às conseqüências afasta-se de uma simples análise

instrumental da intervenção penal, de sorte a também considerar as opções valorativas

veiculadas na escolha do âmbito de incidência e nos limites impostos ao direito penal.

A orientação das decisões jurídicas pelas conseqüências é uma característica do moderno sistema de Direito. Até aí ela caracteriza também o Direito Penal. (…) A orientação pelas conseqüências no sistema jurídico-penal e a execução penal não se vêem (apenas) diante da tarefa de perseguir o injusto criminal e compensar pela expiação do autor, mas que elas perseguem pelo menos o objetivo de corrigir o autor e conter por completo a criminalidade.

(…)

Não se pode responder de modo totalmente preciso à pergunta acerca de como a profunda orientação do sistema do Direito Penal pelas conseqüências pode alcançar a práxis do Direito Penal – em todo caso é evidente que o moderno Direito Penal orienta seu procedimento pelas conseqüências e esta tendência atualmente se intensifica.20

17 ORDEIG, Enrique Gimbernat. O futuro do direito penal: tem algum futuro a dogmática jurídico-penal? Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 32. 18 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Eficiência e direito penal. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 2. 19 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Eficiência e direito penal. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 3. 20 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 53-54. Hassemer assenta que, a partir da metade da década de 1960, a reflexão penal avançou de uma ênfase no input para o output: “de uma justificação do Direito Penal fundada em abstração e sistema para uma justificação pelos efeitos que possa produzir”. Em seguida, menciona cinco pontos que passaram a dirigir os chamados “jovens” penalistas responsáveis pelo alinhamento e orientação da comunidade acadêmica: fundamentações sistêmicas no discurso jurídico-penal não mais valiam como verdades inquestionáveis; sanções e execução penal converteram-se em objetos centrais da reflexão penal; uma consistente teoria da política criminal começou a desenvolver-se; a criminologia e outras ciências sociais penalmente relevantes estabeleceram-se na teoria e no ensino como objeto de crescente atenção; e o empirismo teve acesso às fundamentações jurídico-penais. HASSEMER, Winfried. História das Idéias Penais na Alemanha do Pós-Guerra. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, ano 29, n. 118, abril-junho 1993, p. 254. No mesmo sentido, cf. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 70.

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O pensamento conseqüencialista mais difundido na atualidade, apesar de

encontrar opositores, no âmbito do direito penal, é o funcionalista porque, como se verá ao

longo da presente investigação, é justamente o pensamento funcionalista, por sua vertente

teleológica, que melhor responde às questões acerca da legitimação e dos limites da

intervenção penal.

O estudo elaborado por Claus Roxin, no início da década de 1970, nominado

Política criminal e sistema jurídico-penal21, marca o início de uma nova época na dogmática

jurídico-penal moderna marcada pelo sistema funcionalista, ou teleológico-funcional, da

teoria do delito. A proposição de um novo sistema funda-se justamente numa diferente

concepção – e de relação –entre direito e Estado, bem assim numa relação diversa até então

verificada entre direito penal e política criminal.

Roxin sugeriu, com sua proposta funcionalista, uma concepção normativa que

orientasse o sistema jurídico-penal em pontos de vista valorativos político-criminais. Nesse

sentido, opôs aos esforços naturalistas-causais e finalistas, marcados por uma fundamentação

ôntica, uma concepção normativa, por ele sugerida como orientadora de um sistema jurídico-

penal em pontos de vista valorativos político-criminais.

Superou ele, com isso, a relação de tensão então existente entre o direito penal e a

política criminal, que situa em extremos as preocupações fáticas e ontológicas do direito penal

em contraste com a orientação normativa e axiológica da política criminal. Propôs uma

abordagem mais ampla para a própria concepção do direito penal, de sorte a unir essas

tendências então tomadas como contrapostas.

21 A referência do exemplar utilizado no presente estudo é ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.

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A idéia de fim no direito penal, segundo Roxin, substancia o escopo maior da

política criminal. Cumpre rejeitar os esforços sistemáticos que não se dirijam a uma

orientação político-criminal, que acabem por ocupar-se com a construção de uma teoria do

delito infensa a modificações do sistema jurídico. Roxin registra “a exigência de que a

pesquisa e a doutrina orientem seus esforços, isso sim, para questionamentos criminológicos e

político-criminais”22. A preocupação com a necessária “decisão adequada do caso

concreto”23, ainda que esta só seja alcançável com vulneração à preocupação ontológica de

integração do sistema jurídico, acaba por orientar o ingresso dos questionamentos político-

criminais, mesmo que em prejuízo de soluções claras e uniformes pretendidas por uma teoria

do delito orientada tão-somente ao sistema jurídico. Aliás, essa pretensão avassaladora de

respostas uníssonas e previamente determinadas, afastadas de qualquer aspecto valorativo,

pode conduzir a uma dogmática reduzida a fórmulas abstratas, voltada a uma aplicação

automática de conceitos teóricos que não atente, por conseguinte, às peculiaridades do caso

concreto.

Figueiredo Dias registra com precisão que a solução dos casos colocados à

apreciação do direito penal deverá ser

uma solução justa do caso concreto e simultaneamente adequada ao (ou comportável pelo) sistema jurídico-penal. O que supõe a “penetração axiológica” do problema jurídico-penal, a qual, no âmbito da dogmática, tem de ser feita por apelo ou com referência teleológica a finalidades valorativas e ordenadoras de natureza político-criminal, numa palavra, a valorações político-criminais co-naturais ao sistema.24

22 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 7. Nessa toada, aponta Vera Andrade que “a situação presente da Dogmática Penal pode ser sumariada como a de convivência entre a continuidade do pensamento sistemático, que representa a conexão com o passado, e a recepção de tendências político-criminais funcionalistas e criminológicas críticas, que representa a característica do presente”. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Florianópolis: Livraria do Advogado, 1997, p. 166. 23 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 7. 24 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 35.

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Roxin verifica, portanto, a existência de uma crise no pensamento sistemático em

geral. Aliás, o excesso de relevância ao pensamento sistemático evidencia herança inegável

do positivismo. Nada obstante, quer parecer que as críticas às soluções dogmáticas isoladas

não implicam crítica ao pensamento sistemático em si, mas a premissas errôneas em seu

desenvolvimento dogmático. Também no direito penal, problemas político-criminais

constituem o conteúdo da teoria geral do delito. A valer, na solução de casos concretos, não

são raras as vezes em que o operador se depara com problemas de natureza puramente

político-criminal, cuja solução não pode ser alcançada adequadamente com o automatismo

dos conceitos teóricos.

A saída parece surgir da correção valorativa de soluções dogmático-conceituais

por meio de soluções político-criminais. A solução alcançada em cada caso – decisão

adequada do caso concreto – reclama um teste de considerações político-criminais, com

independência de construções conceituais e de respostas autônomas, com respostas obtidas a

partir da dedução lógico-dogmática para um controle complementar. A composição da

decisão adequada, portanto, agregaria perspectivas advindas da teoria do delito sistemática e

propostas axiológicas da política criminal.

Decerto que o ingresso de considerações próprias de construções conceituais

independentes e de respostas autônomas, como são as considerações político-criminais,

jamais deverá ser causa de um voluntarismo ou de arbitrariedades na orientação dessas

soluções. Com efeito, impende reconhecer que, “enquanto os fundamentos da valoração

provierem do sentimento jurídico ou de orientações isoladas, sem encontrar apoio na lei,

permanecerão eles turvos, causais e sem poder de convencimento científico”25. Com isso,

atribui-se à lei o papel de, além de assegurar os pressupostos e os limites legais de eventual

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punição, orientar os valores26 em que se lastreie a intervenção da política criminal para a

solução do caso concreto. Assim esclarece Roxin:

(…) fica claro que o caminho correto só pode ser deixar as decisões valorativas político-criminais introduzirem-se no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação legal, a clareza e previsibilidade, as interações harmônicas e as conseqüências detalhadas deste sistema não fiquem a dever nada à versão formal-positivista de proveniência lisztiana. Submissão ao direito e adequação a fins político-criminais (kriminalpolitische Zweckmäβigkeit) não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese, da mesma forma que Estado de Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidade dialética: uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito.27

Deveras, essa unidade sistemática a que se refere Roxin, que agrega política

criminal e direito penal, deve orientar também a própria construção da teoria do delito, sendo

certo que esta representa tão-somente uma tarefa a ser observada em todas as esferas da

ordem jurídica.

Esta confissão a favor de um sistema teleológico-funcional e teleológico racional da dogmática jurídico-penal não significa porém a recusa da intervenção de considerações axiológicas, de pontos de vista de valor, de critérios de validade e de intencionalidades normativas na dogmática, nem, muito menos, o pronunciamento a favor de argumentos de pura “engenharia social”. Os desenvolvimentos mais recentes e significativos da dogmática jurídico-penal e dos seus pressupostos fundamentais revelam que tal oposição não é necessária e que, em vez dela, o que entre aquelas concepções deve interceder é uma relação dialética capaz de conduzir, no fim, a uma unidade axiológico-funcional.28

Nesse sentido, relativamente à teoria do delito, a teoria finalista da ação, com sua

volta para as estruturas ônticas e para a realidade social, obteve considerável êxito na

aproximação da dogmática penal à realidade, de modo a devolver à teoria da ação e do tipo a

plasticidade de verdadeiras descrições de acontecimentos. No entanto, em grande parte por ter

25 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 18. 26 É indisfarçável a influência do pensamento orientado a valores na presente investigação. Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 297 et seq. 27 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 20. 28 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 38. Ao longo da presente investigação, mas principalmente ao seu cabo, procurar-se-á

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se valido de um método lógico-axiomático de dedução de soluções jurídicas de dados do ser,

acabou por conceber um sistema que não conferiu espaço autônomo a diretrizes político-

criminais na dogmática, em virtude da excessiva ênfase na construção lógico-conceitual de

suas categorias.

Sustenta, então, Roxin a necessidade de revisão de cada uma das categorias da

teoria do delito – tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade –, a fim de adequá-las aos

pressupostos de sua função político-criminal. De qualquer modo, “o desenvolvimento dos

princípios político-criminais não pode liberar-se dos parâmetros do legislador. Se isso for

feito, servirá à lex ferenda, deixando o âmbito da interpretação da lei”29. Nesse particular, vale

lembrar o papel delimitador da ação do intérprete que exerce a compreensão do “sentido

literal possível”, a que se refere Larenz30. Compreende-se como atividade interpretativa toda

aquela realizada nos limites do sentido literal possível da norma; caso o intérprete ultrapasse

esse limite, estará ele adentrando ao terreno da integração normativa, e não mais

interpretação.

Com isso, o direito penal passa a ostentar muito mais o papel de instrumento por

meio do qual as finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência

jurídica: a construção da teoria do delito, portanto, deve voltar-se teleologicamente aos

demonstrar que essa unidade sistemática é conferida justamente pela Constituição, pauta de valores mais relevantes a serem tutelados pela intervenção penal. 29 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 66. 30 “Por ‘sentido literal possível’ entendo tudo aquilo que nos termos do uso lingüístico que seja de considerar como determinante em caso concreto – mesmo que, porventura, em circunstâncias especiais -, pode ainda ser entendido como o que com esse termo se quer dizer. Pode certamente ser duvidoso em alguns casos, dado que os limites do sentido literal linguisticamente possível tão-pouco se encontram sempre traçados com exactidão, se se trata ainda de interpretação muito ‘ampla’ ou já de integração de lacunas por analogia. A impossibilidade de uma delimitação rigorosa não impede, no entanto, uma distinção, entendida esta não tanto conceptualmente, mas tipologicamente. Na grande maioria dos casos é em possível dizer-se que um evento a caracterizar de modo distinto se encontra de fora do campo de significação deste termo, do seu sentido literal possível”. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 454.

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valores político-criminais, de sorte a afastar as críticas contra a dogmática abstrato-conceitual

própria dos tempos positivistas. Nas palavras de Roxin:

Um divórcio entre construção dogmática e acertos político-criminais é de plano impossível, e também o tão querido procedimento de jogar o trabalho dogmático-penal e o criminológico um contra o outro perde seu sentido: pois transformar conhecimentos criminológicos em exigências político-criminais, e estas em regras jurídicas, da lex lata ou ferenda, é um processo, em cada uma de suas etapas, necessário e importante para a obtenção do socialmente correto.31

O processo de obtenção de soluções adequadas ao caso concreto, que reflitam em

última análise a própria opção de Estado, parte da percepção do trabalho criminológico, que

posteriormente informa as exigências político-criminais laureadas pelo Estado que

sedimentarão a criação das regras jurídicas. Cuida-se justamente daquilo a que Figueiredo

Dias chamou de unidade funcional entre a política criminal e a dogmática jurídico-penal.

Se o aparelho conceitual da dogmática jurídico-penal deve ser determinado a partir de proposições político-criminais; e se desta forma, mas por outro lado, é à política criminal que pertence definir as fronteiras da punibilidade – então, sem por isso perder a sua intenção especificamente (e diria mais: autenticamente) jurídica, a política criminal surge como uma ciência transpositiva, transdogmática e trans-sistemática face a um qualquer direito penal positivo. A sua função última consiste em servir de padrão crítico tanto do direito constituído, como do direito a constituir, dos seus limites e da sua legitimação. Neste sentido se deverá compreender a minha afirmação de que a política criminal oferece o critério decisivo de determinação dos limites da punibilidade e constitui, deste modo, a pedra-angular de todo o discurso legal-social da criminalização/descriminalização.32

A adoção de uma dogmática penal voltada apenas a um pensamento abstrato,

restrito a categorias ônticas, acabará por desprezar as peculiaridades do caso concreto e, por

conseguinte, conduzir a draconianas soluções com vista a uma equivocada salvaguarda da

31 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 82. Nessa linha de pensamento, vale conferir as propostas apresentadas por Lolita Aniyar de Castro dirigidas a uma política criminal coerente com a contemporaneidade e com a realidade da América Latina. CASTRO, Lolita Anyiar de. La criminologia hoy: política criminal como síntesis de la criminología. Política criminal y relaciones con la teoría de la responsabilidad. Un control social alternativo o la criminología de los Derechos Humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 8, n. 32, outubro-dezembro 2000, p. 262 et seq. 32 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 42.

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segurança jurídica em detrimento do próprio sentido de Justiça. É sempre o fato global que

deve ser considerado sob a perspectiva das diferentes categorias do delito33.

Decerto que a crescente complexidade dos esforços político-criminais e a entrega

de determinadas tarefas a categorias sistemáticas individuais evidencia risco de ocasionar uma

grande imobilidade dos respectivos pontos de vista valorativos. Uma interpretação voltada à

proteção de bens jurídicos e informada por valores político-criminais pode servir como

mecanismo de segurança contra eventuais voluntarismos injustificados ou arbitrariedades. As

diretrizes político-criminais de sistematização e interpretação apontadas por Roxin devem ser

tomadas somente como motivos retores, ordenadores, com predominância na hierarquia dos

topoi a serem sopesados, sem prejuízo de outros pontos de vista a serem considerados no

processo de criação da decisão adequada ao caso concreto.

Entre os princípios da política criminal, ocupam um lugar primordial aqueles que

gerem a própria qualificação de um fato como delito – e não como fato anti-social

juridicamente proibido, ilícito civil ou ilícito administrativo. Em outras palavras, a própria

definição de quais são os delitos ou de quantas são as condutas a que cabe racionalmente

qualificar como delitivas constitui atribuição outorgada à política criminal. A criminalidade,

portanto, não constitui um a priori da política criminal; a individualização e a definição legal

da criminalidade, sim, são encargos da política criminal. Essa tarefa não diz respeito apenas a

que bens jurídicos merecem e demandam proteção penal, senão também em qual intensidade

essas classes de delitos veiculam riscos relevantes: tentativas, condutas culposas, atos

praticados por comissão ou omissão etc.

33 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 86.

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Nesse ponto percebe-se uma das características fundamentais da política criminal:

esta substancia um sistema que se autodefine. Tal traço determina a necessidade de abordar o

problema dos limites exteriores à autodefinição da política criminal: não apenas em face do

próprio legislador, mas também do próprio constituinte. É dizer, a decisão acerca de se saber

se qualquer conduta pode ser definida em um dado momento como delitiva.

Insere-se como atribuição da política criminal a determinação de como é o delito,

isto é, seus traços estruturais característicos. Assim, cuida a política criminal de definir se o

delito é um “modo de ser”, um sintoma, um estado ou, pelo contrário, um fato. E, a partir

dessa última constatação, define a política criminal os elementos integrantes desse fato. A

teoria do delito não deixa de ser, desse modo, um dos elos que integra a política criminal.

Releva saber, pois, até que ponto é certa a afirmação de que também a ciência do direito

penal, bem como a própria dogmática da teoria do delito realizam política criminal.

A compreensão da racionalidade própria à política criminal implica perquirir

acerca da existência de critérios materiais de correção que, de algum modo, vinculem o

legislador no momento de tomar uma decisão político-criminal concreta, ou se, pelo contrário,

a política criminal pertence ao âmbito do disponível, de sorte que se configura em termos

absolutamente relativistas.

Uma legitimação dotada de um mínimo de pretensão de permanência certamente

deverá orientar-se segundo os princípios da necessidade e da proporcionalidade. As decisões

político-criminais direcionadas à criminalização de uma conduta supõem um mal para

alguém, de sorte que tal imposição só cabe de modo subsidiário34 (isto é, se a finalidade

34 Afirmar que o direito penal é subsidiário “quer dizer que a sua intervenção no círculo jurídico dos cidadãos só tem sentido se se fizer como imperativo de necessidade, isto é, quando a pena se mostrar como único e último recurso para a proteção do bem jurídico. Precisamente por causa desse enfoque, que se confunde muitas vezes com o caráter fragmentário, é que se fala hoje, sentido amplo, de necessidade de pena como pressuposto da

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perseguida não puder ser obtida por meio menos danoso) e proporcional (isto é, de maneira

que o dano causado seja adequado ao fim pretendido, não causando um dano maior que

aquele que visa evitar).

No entanto, é de ver que tais princípios revelam-se com certa vagueza, porquanto

ambos exigem uma comparação: no primeiro caso, entre a alternativa de proteção eleita e

outras alternativas possíveis, para valorar se aquela pela qual se opta revela-se efetivamente

menos lesiva que as demais; no segundo caso, entre o interesse protegido e o interesse

lesionado, para valorar se precisamente o protegido é ou não de maior valor que o lesionado.

Assim, dois sistemas que se socorrem de princípios estruturais fundamentadores de sua

política criminal (ou de outras intervenções estatais) podem alcançar conclusões

absolutamente díspares no momento de resolver – já no plano legislativo – determinados

problemas. O ponto crucial não reside na simples acolhida de tais princípios, mas nos critérios

de valoração dos interesses presentes, a partir dos quais se pode sustentar que uma

intervenção seja efetivamente subsidiária de outra e proporcional à consecução de

determinado objetivo.

Com isso, o problema se transfere ao método de determinação do valor relativo

dos bens em jogo no cenário social. Somente a partir daí cabe definir determinadas lesões

como delitivas — e legitimar, com isso, a intervenção penal, por razões de proporcionalidade

e necessidade: merecimento e necessidade da pena –, bem assim mensurar a sanção aplicável

recorrendo também a considerações de merecimento e necessidade. Logo, cabe adotar

métodos relativistas, de modo que o valor relativo dos bens que se manifesta na interação

social seja uma questão sobre a qual, sob um ponto de vista, decidirão os próprios integrantes

incidência e da elaboração da norma penal”. TAVARES, Juarez. Critérios de seleção de crimes e cominação de penas. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, número especial de lançamento, dezembro 1992. p. 82.

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do grupo social com esteio em um critério procedimental comunicativo, que se entende de

modo diverso a depender da perspectiva adotada (teoria do consenso, ética do discurso etc.).

O produto dessa proposta substanciaria exatamente um relativismo individualista de base

liberal.

Sob outro ponto de vista, tal valor seria extraído da própria constituição social,

que não está conformada de modo essencial pelo dito consenso, senão principalmente por

determinada tradição cultural, a qual alguns agregam a idéia de que nessa configuração

prevalece o aspecto funcionalista relativo à autoconservação do grupo social. O produto dessa

proposta seria um relativismo comunitarista de base sócio-cultural, eventualmente

funcionalista.35

Não há dúvida de que o debate mais aprofundado acerca da política criminal

ocorre justamente entre os dois pontos de vista assinalados. No entanto, cumpre observar que

ambos se dirigem a um certo relativismo. A questão, portanto, reside na possibilidade, ou não,

de se estabelecer critérios de ponderação entre valores em36 jogo que gozem de validade

universal, de modo que se fixe um marco de indisponibilidade para as políticas criminais de

matiz relativista (consensualista ou culturalista). Em termos mais simples, impende

questionar: há condutas que necessariamente devem ser proibidas por meio da imposição de

pena (eventualmente por meio de uma pena determinada?)? Ou vice-versa: há condutas que

de nenhum modo podem ser proibidas por meio da imposição de pena?

35 Nesse sentido, cf. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Reflexiones sobre las bases de la política criminal. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 237. 36 Hassemer assenta que hoje se aconselha a ponderação de bens por sua flexibilidade e adaptabilidade à situação concreta, na medida em que, como método jurídico, pode legitimar decisões que se alteram caso a caso e simplificar situações complexas de decisão. É, demais disso, um método “moderno” de que tem se valido o direito penal com cada vez mais freqüência. Porém, adverte ele que o método de ponderação de bens legitima, em momentos de necessidade, a flexibilização de direitos e princípios fundamentais da própria cultura jurídica (princípio da culpabilidade, proporcionalidade da pena, in dubio pro reo, proteção da intimidade etc.). O sistema, com isso, eleva sua eficiência prescindindo em parte da sujeição a seus próprios princípios, para colocar-se,

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Se for possível dar a essas perguntas uma resposta afirmativa (e não relativa, por

conseguinte), estar-se-á admitindo a existência de um âmbito, ainda que muito limitado,

indisponível da política criminal37, além dos diversos fatos relativos ou derivados do consenso

social vigente em um momento dado ou da influência de uma dada cultura38.

Com efeito, vislumbra-se um viés nitidamente universalista nessa proposta. No

entanto, isso não implica negar radicalmente toda possibilidade de particularismo ou

diversidade cultural (que, aliás, substancia justamente a nuança da pós-modernidade, frente às

pretensões uniformizadoras da modernidade). Trata-se, simplesmente, de salvar um conteúdo

mínimo, frente ao qual não caberia contrapor o consenso conjuntural de uma dada sociedade

tampouco o relativismo cultural. Sem olvidar a evidente “relatividade” ou “condicionalidade

sócio-cultural” do direito penal, cuida-se de demarcar a política criminal no contexto do

conceito de pessoa, sua dignidade e seus direitos fundamentais, de modo definitivo, segundo o

marco de uma fundamentação objetiva.

Assim, seguramente, a partir de tais premissas – que são indiscutivelmente

compatíveis com o reconhecimento da dificuldade presente em abordar de modo inequívoco o

objeto de conhecimento – é que se possibilitará a reconstrução de um modelo satisfatório, e

legitimador, de política criminal.

assim, como forte instrumento de intervenção. Cf. HASSEMER, Winfried. Crítica al derecho penal de hoy. Tradução de Patricia S. Ziffer. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1998, p. 58-59. 37 Como se houvesse uma gama de fatos ou condutas mallum/bonum in se ipsum, que remontam à teoria do delito natural de Garofalo, segundo o qual o delito seria mal por si mesmo. 38 A referência aqui, por sua vez, é aos chamados crimes mala quia prohibita, que decorrem de uma idéia de que o delito substancia uma criação política, que é mal porque o Estado o proíbe (em contrariedade à idéia de delito natural de Garofalo).

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1.2. A COMPREENSÃO DO DIREITO PENAL NA CONTEMPORANEIDADE COMO

REFLEXO TELEOLÓGICO DA OPÇÃO DE ESTADO

1.2.1. O direito penal no Es tado democrático de Direito

O exame das teorias da pena, a valer, traduzem a própria justificativa de

intervenção penal do Estado. Como se verá mais adiante, a retribuição, a prevenção geral e a

prevenção especial — orientações que informaram e ainda informam a teoria da pena — não

substanciam opções afastadas de um contexto histórico, mas, ao contrário, refletem

justamente as distintas concepções que o Estado assumiu em diferentes momentos,

especialmente para o direito penal.

Questionar a legitimidade da intervenção penal, portanto, não significa perquirir

apenas acerca da função da pena em abstrato, mas, verdadeiramente, averiguar a que função

corresponde a pena no direito penal de um determinado modelo de Estado. A pena, portanto,

revela-se como instrumento que pode ser utilizado com fins muito diversos.

No Estado moderno, considera-se a pena como monopólio do Estado e a função a

ser exercida pela pena dependerá dos fins atribuídos a esse Estado. No Estado de base

teocrática, a pena (e a própria intervenção penal) justifica-se como exigência de justiça,

análoga ao castigo divino. No Estado absoluto, estabelecido como um fim em si mesmo, a

pena atua como um instrumento tendencialmente ilimitado para submissão dos súditos: foi

justamente sob esse paradigma de Estado que se alcançou um verdadeiro “terror penal”,

decorrente da atribuição à pena de uma função de prevenção geral sem restrições. O Estado

liberal clássico, preocupado com a submissão do poder ao direito – e justamente nessa atenção

é que se substancia a idéia de Estado de Direito -, buscou antes a limitação jurídica da

potestade punitiva que a prevenção de delitos. A limitação jurídica do Estado liberal se

amparou em boa parte em princípios abstratos e ideais, como o da igualdade perante a lei, que

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por trás de si veiculava uma concepção ideal de homem, como “homem-razão”. A pena,

então, poderia ser elaborada com lastro em outro princípio ideal: a exigência de justiça, base

da retribuição. Constituía um limite ao poder punitivo do Estado, que somente poderia

castigar segundo uma idéia de merecimento, embora possuísse a mácula da rigidez, e

obrigava, também, a estender a pena àqueles casos em que ela não seria necessária.

A progressiva aparição do Estado social como Estado intervencionista — que

toma efetivo partido no jogo social — revigorou a missão de luta contra a delinqüência.

Voltou-se à função de prevenção especial, de improvável adoção sob o paradigma do Estado

liberal clássico, porque supunha admitir um tratamento penal distinto para autores de um

mesmo delito, o qual se chocava com a idéia de igualdade perante a lei, entendida como a

forma absoluta do liberalismo. No novo contexto do Estado social-intervencionista, surgiram

as medidas de segurança, instrumento de prevenção especial inadequados ao estrito legalismo

liberal clássico.

A tendência intervencionista do Estado social conduziu (ou fomentou), em alguns

países, a implantação sistemas políticos totalitários, o que culminou, no continente europeu,

com o período que mediou entre as duas grandes guerras mundiais. A experiência dos

horrores que isso provocou, primeiro na paz e logo com a guerra, tornou evidente a

necessidade de um Estado que, sem abandonar seus deveres com a sociedade, isto é, sem

deixar de ser social, reforçasse seus limites jurídicos em um sentido democrático. O direito

penal de tal Estado passa a assumir várias funções, correlatas aos distintos aspectos que nele

se combinam. Enquanto o direito penal de um Estado social legitima-se como sistema de

proteção efetiva dos cidadãos, ao qual se atribui a missão de prevenção na medida – e

somente na medida – do necessário para essa proteção; o direito penal de um Estado

democrático de Direito deverá submeter a prevenção penal a outra série de limites, em parte

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decorrentes da tradição liberal do Estado de Direito e em parte reforçados pela necessidade de

satisfazer ao conteúdo democrático do direito penal.

Importará, portanto, não apenas a eficácia da prevenção (princípio da máxima

utilidade possível), mas também a máxima limitação dos custos (princípio do mínimo

sofrimento necessário), de sorte que a proteção que oferece o direito penal do Estado

democrático de Direito resulte menos gravosa que outros meios de controle social ilimitados

(como a vingança privada ou pública) ou desprovidos de garantias (como as atuações policiais

sem controle, as condenações sem a observância do devido processo legal, a imposição de

medidas abusivas de prevenção da criminalidade etc.) ou mesmo decorrentes de um direito

penal autoritário.39

O modelo de Estado democrático de Direito, portanto, recomenda a opção, dentre

as alternativas básicas de retribuição ou prevenção, em favor de uma prevenção limitada, que

permita combinar a necessidade de proteção da sociedade não apenas com as garantias que

oferecia a retribuição, senão também com as que oferecem outros princípios limitadores.

Somente uma prevenção assim limitada poderá provocar um efeito positivo de afirmação do

direito próprio de um Estado democrático de Direito, e, somente assim, podem ser conciliadas

as exigências antitéticas da retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial num

conceito superior de prevenção geral positiva. 40

39 Como se desenvolverá ao longo da presente investigação, Luigi Ferrajoli, por exemplo, justifica o direito penal a partir de uma finalidade preventiva dúplice: prevenção de delitos e prevenção de respostas informais ou abusivas que extrapolem a sanção penal estrita. Na esteira do posicionamento de Claus Roxin, vislumbra-se que a função do direito penal é tanto a prevenção de delitos como a redução ao mínimo da violência estatal, de sorte que a limitação da prevenção não configura apenas um limite à função do direito penal, senão parte essencial desta. 40 Nesse sentido, cf. PUIG Mir, Santiago. Revisión de la teoría del delito en un Estado social y democrático de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 127-158.

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O Estado de Direito deve ser entendido como um “princípio diretivo” que requer

uma concreção de seus detalhes em cada situação dada. Caracteriza-se por, ao menos, garantir

a segurança dos cidadãos, mediante uma vinculação da atuação do Estado a normas e

princípios jurídicos de justiça conhecidos de tal maneira que resultem eles em todo caso

compreensíveis. O Estado de Direito, portanto, substancia uma “forma de racionalização da

vida estatal”. Embora o direito penal seja compreendido com um “direito constitucional

aplicado” – expressão de Jürgen Wolter -, nem todas as decisões político-criminais guardam

relevância constitucional direta. Por conseguinte, os princípios do direito penal que

constituem uma concreção da idéia do Estado de Direito são aqueles que se referem

basicamente à previsibilidade pelo cidadão da ação repressiva estatal e aos limites dessa

ação.41

Também a teoria do delito, e não somente a da pena, se deverá basear na função

de prevenção limitada que corresponde ao direito penal do Estado democrático de Direito. Se

o modelo de Estado deve determinar uma concepção do direito penal, esta há de informar o

suporte de seus componentes básicos, a pena e o delito. Estado, direito penal, pena e delito

guardam uma estrita relação de dependência. A teoria do delito traduz, com efeito, a

determinação das fronteiras mínimas do que pode ser proibido e apenado pelo direito penal,

bem como da resposta à pergunta acerca dos elementos que devem concorrer, como mínimo e

com caráter geral, para que algo seja jurídico-penalmente proibido e punível. A resposta a

essa pergunta dependerá, portanto, da função que se atribui ao direito penal e dos limites

impostos de modo geral ao seu exercício.

A função de prevenção a que corresponde o direito penal de um Estado, não

somente social, mas também democrático e de Direito, há de estar sujeita, portanto, a certos

41 Cf. BACIGALUPO, Enrique. Principios constitucionales de Derecho Penal. Buenos Aires, Editorial

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limites. O princípio da legalidade, por exemplo, impõe de uma parte, que o delito seja

determinado com suficiente precisão — há de estar especificamente tipificado — e, de outra

parte, que constitua a infração de uma norma primária.42 Revela-se emergencial para a

estruturação de um Estado democrático de Direito – cuja marca reside no grau de liberdade

política que concede aos seus cidadãos – a fixação material do princípio da legalidade. Para a

consecução da segurança do cidadão perante e o Estado, com a conseqüente eliminação do

temor, impende reconhecer que “(…) as leis penais são essencialmente protetoras da liberdade

e da igualdade individual, representando o tipo penal uma garantia de permissão das condutas

contrárias ou diferentes de sua hipótese expressa”.43

O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, por sua vez, obriga a

conceber o delito como um ataque a um bem jurídico-penal, quando tal ataque não seja

justificado pela necessidade de salvaguarda de outro bem jurídico igualmente relevante ou

mesmo prevalente.

O princípio da culpabilidade (em sentido amplo) exige que esse ataque possa ser

imputado objetiva, subjetiva e pessoalmente a seu autor, em determinadas condições. Por

derradeiro, o caráter de ultima ratio do direito penal há de condicionar a punibilidade do fato

a que manifeste uma suficiente gravidade e necessidade de pena. São elementos, e acerca de

alguns deles a presente investigação se deterá mais adiante, que não apenas permitem articular

uma idéia de sistema à teoria do delito, mas também se prestam a atribuir um caráter

Hammurabi, 1999, p. 231-232. 42 A referência a expressão “norma primária” refere-se à classificação entre norma primária e norma secundária para construção da norma penal incriminadora. A norma primária cuida justamente de descrever a conduta tida por delituosa, ao passo que a norma secundária delineia a sanção cabível no caso de vulneração à norma de conduta contida na norma primária. Para fins didáticos, exemplifique-se com o tipo clássico do homicídio, descrito no art. 121 do Código Penal: a norma primária seria justamente a prescrição proibitiva de “matar alguém”, ao passo que a norma secundária seria a previsão de pena de reclusão “de 6 (seis) a 20 (vinte) anos”. 43 LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 58.

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legitimador à intervenção penal, na medida em que resultam de uma evolução que tem

reconhecido as exigências que a concepção dominante de Estado impõe ao direito penal.

1.2.2. A influência da rigidez consti tucional na compreen são da intervenção penal contemporânea

A par da evolução histórica havida entre os modelos de Estado teocrático,

moderno, absoluto, liberal e social, pode-se afirmar que a segunda metade do século XX

permitiu uma mudança de paradigma44 relativamente ao modelo de Estado a que se aspira. Tal

mudança implicou também uma alteração na compreensão do direito positivo das

democracias avançadas, bem como uma verdadeira revolução epistemológica nas ciências

penais e, em geral, na ciência jurídica em seu conjunto. Tal mutação de paradigma na

estrutura de direito positivo, pode-se afirmar, produziu-se na Europa após a Segunda Guerra

Mundial e também no Brasil por meio das garantias de rigidez lançadas nas Constituições,

justamente por intermédio da introdução de previsão de procedimentos especiais

(qualificados) para revisão do texto dessas Constituições e do controle da legitimidade das leis

por parte de Cortes Constitucionais. O implemento dessas garantias de rigidez provocou uma

transformação radical no papel dessas mesmas Constituições.

Mesmo depois do reconhecimento de seu caráter jurídico-normativo, as

Constituições subsistiram durante muito tempo apenas como simples leis e, como tais, sujeitas

a modificações e – o mais importante — a violações por parte do legislador. Somente a

introdução de garantias à rigidez das Constituições modifica a estrutura dos sistemas, por

meio de processo que naturalmente não se deve apenas a fatores institucionais, mas,

44 A expressão paradigma é aqui compreendida como o modelo teórico de compreensão do mundo no contexto histórico. É a partir da construção desse conceito que a assertiva que lastreia a investigação – a intervenção penal reflete o modelo de Estado – ganha conteúdo. O modelo de Estado a que se aspira, a rigor, não decorre de um wishful thinking ou de uma imposição normativa advinda da Carta Política, mas sim da contextualização necessariamente imposta pelo paradigma do Estado democrático de Direito. Desse modo, “aspirar” a um modelo de Estado assume, na verdade, a veste obrigatória de inserção no paradigma contemporâneo.

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sobretudo, a fatores culturais. Essa mudança acabou por provocar a descoberta do significado

e do valor da Constituição como limite e vínculo impostos a qualquer poder, inclusive aquele

majoritário. O resultado substancia uma estrutura do ordenamento jurídico muito mais

complexa.

Essa nova estrutura de ordenamento jurídico passa a se caracterizar por uma dupla

percepção: não apenas pelo caráter positivo das normas produzidas, que é a contribuição

específica do positivismo jurídico à teoria da Constituição, mas também por sua sujeição ao

direito, que veicula precisamente a característica mais robusta do Estado constitucional de

Direito, onde a produção jurídica mesma se faz consoante normas de direito positivo relativas

ao procedimento de elaboração e, o mais importante, ao conteúdo. Em virtude dessa segunda

contribuição (sujeição ao conteúdo constitucional na elaboração das leis), também o “dever

ser” do direito positivo, ou seja, suas condições de “validade”, resulta positivado por um

sistema de regras que disciplinam as próprias opções mediante as quais se pensa e se projeta o

direito, estabelecendo os valores ético-políticos que devem ser informadores dessas

escolhas.45 Assim, o direito programa seus conteúdos essenciais, vinculando-os

normativamente aos princípios, aos valores e aos direitos inscritos na Constituição, por meio

de técnicas de garantia que a cultura jurídica tem o dever e a responsabilidade de elaboração.

No direito penal, por exemplo, todas as respostas às clássicas questões relativas à

sua legitimação – quando e como punir, quando e como proibir, quando e como julgar –

resultam condicionadas aos princípios veiculados na Constituição, que deixam de ser apenas

reitores teóricos para converterem-se em normas jurídicas vinculantes para o legislador.

45 A concepção ora desenvolvida guarda estrita relação com o conceito de modelo ou sistema garantista desenvolvido por Ferrajoli em contraposição a uma idéia paleopositivista. FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 25. Mais que isso, essa idéia guarda compatibilidade com a proposta formulada por Claus Roxin de positivar programas de política criminal, a ser melhor abordada no Capítulo 6.

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34

Essa mudança de paradigma possui conteúdo revolucionário e talvez represente a

maior conquista jurídica do século XX. No plano da teoria do Direito, essa mudança pode ser

expressa pela tese da subordinação da lei mesma ao direito, com a conseqüente dissociação

entre vigência (ou existência) e validade das normas. Significa, em outras palavras, completar

o próprio paradigma do Estado de Direito, ou seja, a sujeição de todos os Poderes à lei,

incluída a maioria, que se subordina, também ela, ao Direito, mais precisamente à

Constituição, não apenas em relação às formas e aos procedimentos de formação das leis,

senão precisamente em relação ao seu conteúdo. Por conseguinte, no Estado constitucional de

Direito, o legislador já não se apresenta como onipotente, no sentido de que as leis não são

válidas somente por terem sido produzidas segundo as formas e os procedimentos

normativamente estabelecidos: as leis somente serão válidas se resultarem também coerentes

com os princípios constitucionais.

Mesmo a relação da política com o direito se inverte: também a política,

juntamente com a legislação — que é seu produto — subordinam-se ao direito. Tal assertiva

assume especial relevância no que toca à intervenção penal, na medida em que é a política

criminal que informará a orientação axiológica da produção normativa penal e aquela,

portanto, atentará justamente à Constituição. Já não é mais o direito que é concebido como

instrumento da política, mas, ao contrário, é a Política que há de assumir-se como instrumento

para a atuação do direito e, precisamente, dos princípios e dos direitos fundamentais inscritos

nesse projeto, por sua vez, jurídico e político, que é a Constituição. É precisa a assertiva de

Ferrajoli:46

46 “Hay aquí un cambio en la propia naturaleza de la democracia: ésta ya no consiste simplemente en su dimensión política proveniente de la forma representativa y mayoritaria de la producción legislativa que condiciona la vigencia de las leyes, sino, además, en la dimensión sustancial que le viene impuesta por los principios constitucionales, que vinculan el contenido de las leyes, condicionando su validez sustancial a la garantía de los derechos fundamentales de todos” (FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de

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35

Há aqui uma mudança na própria natureza da democracia: esta já não consiste na sua dimensão política proveniente da forma representativa e majoritária da produção legislativa que condiciona a vigência das leis, mas, ademais, na dimensão substancial que lhe é imposta pelos princípios constitucionais, que vinculam o conteúdo das leis, condicionando sua validade substancial à garantia dos direitos fundamentais de todos.

Além disso, registre-se que a interpretação da lei veicula sempre um juízo sobre a

própria lei, como aliás toda experiência com a verdade igualmente reclama um juízo

interpretativo. Verdadeiramente, o conflito entre o direito “como deve ser” e o direito “como

é”, próprio da dicotomia entre positivismo e realismo jurídico, passou, ao menos no que se

refere ao direito penal, ao próprio corpo do direito positivo, de modo a configurar uma

tendencial e permanente divergência entre os distintos níveis do ordenamento: entre o nível

constitucional, que incorpora normas e princípios de justiça sob a forma de direitos

fundamentais, e o nível legislativo, cujas normas apresentam-se sempre suscetíveis de censura

por ilegitimidade, seja pelo juiz no plano operativo, seja pelo jurista no plano doutrinário, ao

argumento de incoerência em face da Constituição. Esse conflito resolve-se justamente por

força da dupla dimensão – descritiva do “ser” do direito e prescritiva de seu “dever ser”

jurídico – imposta tanto à teoria como à análise dogmática pelo paradigma constitucional

responsável pelo delineamento dos sistemas jurídicos contemporâneos. Em outras palavras,

(…) o novo paradigma constitucional, ao passo em que comporta inevitavelmente antinomias e lacunas vinculadas aos diferentes níveis normativos nos quais se articula sua própria estrutura formal, leva, por assim dizer, inscrito em sua própria estrutura um duplo papel da ciência jurídica em geral e da pena em particular: antes de tudo, a crítica do direito existente, mediante a análise e a censura dos seus perfis de invalidade constitucional, e logo, o desenho do direito que deve ser, por meio da identificação de suas lacunas, ou seja, das garantias que ainda faltem e que devem ser introduzidas em apoio aos direitos sancionados nas Constituições.47

Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 27). 47 “(…) el nuevo paradigma constitucional, en cuanto comporta inevitablemente antinomias y lagunas vinculadas a los diferentes niveles normativos en los cuales se articula su propia estructura formal, lleva, por así decirlo, inscrito en su propia estructura un doble papel de la ciencia jurídica en general y de la penal en particular: ante todo, la crítica del derecho existente, mediante el análisis y la censura de sus perfiles de invalidez constitucional, y luego, el diseño del derecho que debe ser, por medio de la identificación de sus lagunas, o sea, de las garantías que aún faltan y que deben ser introducidas en apoyo de los derechos sancionados en las Constituciones”(FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 29).

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A ciência jurídica, assim compreendida, toca a política do direito e com ela se

entrelaça, de sorte a promover uma luta pelo direito e pela efetividade de suas prescrições.

Especificamente no que se refere ao direito penal, vê-se que à sua crise não há outra resposta

que não o próprio direito. Uma intervenção penal consentânea com o modelo de Estado a que

se aspira, portanto, não apenas expressa um modelo de Direito e de Estado, mas também um

modelo de democracia.

CAPÍTULO 2 – As razões da intervenção penal

2.1. O ABOLICIONISMO PENAL

O desafio mais relevante à compreensão de uma justificação do direito penal

refere-se à posição abolicionista do sistema penal. Quando se menciona o abolicionismo,

cumpre distinguir uma compreensão desse termo num sentido estrito e num sentido mais

amplo. No primeiro, o abolicionismo refere-se à abolição de um aspecto específico do sistema

penal. Por exemplo, enquadram-se como vertentes abolicionistas as que sustentam a abolição

da pena de morte. Essa compreensão estrita do abolicionismo refere-se à descriminalização

entendida como o processo por meio do qual se retira atribuição do sistema penal para aplicar

sanções.48

Num sentido mais amplo, entende-se o abolicionismo quando o sistema de justiça

penal, em seu conjunto, é considerado um problema social em si mesmo e, portanto, a

abolição de todo o sistema aparece como a única solução adequada para a sociedade. É essa

espécie de abolicionismo de que se ocupará a presente investigação.

48 Nesse sentido, por exemplo, é que se diz que Beccaria filia-se ao abolicionismo, por defender a abolição da pena capital com amparo na teoria do contrato social, porquanto nada existe que possa outorgar a outro o direito de matar (Dos delitos e das penas. Tradução de Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 94-102).

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O abolicionismo, portanto, surge como negação de qualquer justificação ou

legitimidade externa à intervenção punitiva do Estado sobre o desvio. As acepções mais

radicais cuidam de apontar a ausência de legitimação, incondicionalmente, de todo e qualquer

tipo de constrição ou coerção, penal ou social. Já as vertentes mais difundidas do

abolicionismo reivindicam a supressão da pena como medida jurídica aflitiva e coercitiva,

bem assim a própria abolição do direito penal, sem, no entanto, sustentar a abolição de toda e

qualquer forma de controle social. Tais vertentes evidenciam-se como marcadamente

moralistas e informadas por forte caráter de solidariedade, influenciadas que são por uma

referência de tipo jusnaturalista de uma moral superior que deveria regulamentar diretamente

a sociedade. Já o abolicionismo contemporâneo49 caracteriza-se por projetos de microcosmos

sociais fundados na solidariedade e na irmandade50, pela “reapropriação social” do conflito,

para devolvê-lo a ofensores e vítimas, e por métodos primitivos de composição patrimonial de

ofensas.51

Pretende-se, para uma visão panorâmica do abolicionismo do sistema de justiça

penal, abordar a visão de dois autores abolicionistas com abordagens diversas: o criminólogo

holandês Louk Hulsman e o sociólogo norueguês Thomas Mathiesen.52

49 São apontados como representantes desse pensamento Louk Hulsman, sobre quem esta investigação se deterá logo adiante, e Nils Christie. Para este, a pena – e por conseguinte o próprio direito penal – substancia um mal com a intenção de assim sê-lo. Além disso, as razões expostas para a pena (retórica oficial, teorias do direito penal) variam de lugar para lugar, ao argumento de que as teorias penais modernas são o reflexo dos interesses do Estado e da visão dele próprio. CHRISTIE, Nils. Los imagenes del hombre en el derecho penal moderno. In: Abolicionismo Penal. Traducción de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 127-142. Acerca dessa última assertiva – as teorias penais modernas são o reflexo dos interesses do Estado e da visão dele próprio -, vê-se com precisão que, a despeito de prestar-se ela para Christie a outra finalidade, ela reflete justamente aquilo que se sustentou no primeiro capítulo do presente trabalho. 50 Cf. DELMAS-MARTY, Meirelle. Os grandes sistemas de política criminal. Tradução de Denise Radanovic Vieira. Barueri: Manole, 2004, p. 308 et seq. 51 Alberto Bovino assinala que a proposta abolicionista não cuida de buscar uma política criminal alternativa, mas uma alternativa à política criminal. Cf. BOVINO, Alberto. La víctima como preocupación del abolicionismo penal. In: MAIER, Julio B (org.). De los delitos y de las víctimas. Buenos Aires: Ad hoc, 2001, p. 263. 52 A escolha desses dois autores, além de se justificar pela relevância que possuem entre as vertentes abolicionistas, deve-se ao fato de serem eles fundadores de grupos de ação ou de pressão contra o sistema de justiça penal. Hulsman é um dos principais responsáveis pela Liga Coornhert; Mathiesen encabeça o KROM – Norsk forening for kriminalreform. São autores, portanto, responsáveis não apenas pela produção acadêmica

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2.1.1. O pensamento de Louk Hulsman

O pensamento abolicionista de Hulsman partiu, inicialmente, de uma busca pelo

desenvolvimento de critérios racionais de criminalização de condutas até que, ao longo do

tempo, em razão da idéia de que haveria uma relação contraproducente entre o sistema penal e

seus objetivos, firmou-se no sentido de que seria melhor abolir o sistema penal em sua

totalidade, afastando, portanto, toda intervenção penal do Estado. Sua visão abolicionista

nasce da dúvida cada vez maior que repousa, ao seu entender, na justiça e na conveniência do

sistema de justiça penal.

Entende ele que o sistema penal não se presta como sistema de controle social por

três razões: (i) causa um sofrimento desnecessário que, ademais, é partilhado de modo

desigual; (ii) subtrai o conflito, uma vez que apenas atinge aqueles que se vêem diretamente

envolvidos com esse sistema; (iii) parece difícil de controlar, de se lhe impor limites. A

abolição do sistema penal, para Hulsman53, inclui os distintos campos do direito penal e

caminha a uma crescente radicalização. A abolição de todo o sistema penal, para ele, não

veicula uma utopia, mas uma necessidade lógica, uma gestão realista e uma demanda de

justiça.

Relativamente ao modo pelo qual se pode alcançar a abolição do sistema penal,

Hulsman sustenta que a administração estatal centralizada da justiça penal deveria ser

substituída por formas descentralizadas de regulação autônoma de conflitos. Não é sua

intenção abolir a estrutura das sanções penais e substituí-las por estruturas de tratamento

médico ou pedagógico ou simplesmente por uma estrutura menor de justiça penal. O que

sobre o tema, mas que exercem papel de nítida relevância para aqueles voltados a uma efetiva prática abolicionista. 53 O pensamento do criminólogo holandês encontra-se sinteticamente veiculado em língua portuguesa: HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In: Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, passim.

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importa é a abolição do nível estatal de regulação de conflitos em favor de um nível direto ou

mais autônomo, como ocorre nas sociedades tribais, em que a regulação dos conflitos se dá

por intergrupos e relações diretas entre indivíduos com a ajuda de instituições ou

procedimentos que estão muito mais vinculados com a experiência direta das pessoas

envolvidas no conflito.

A organização central burocrática do sistema penal subtrai o conflito daqueles

diretamente envolvidos com o delito. A abolição do sistema penal centralizado ocasionaria

dois importantes efeitos. Em primeiro lugar, implicaria a eliminação dos problemas sociais

causados pelo sistema, como a fabricação de pessoas culpáveis, a estigmatização dos

prisioneiros, a marginalização de determinados grupos, a dramatização dos conflitos por parte

dos meios de comunicação etc. Em segundo lugar, seria responsável pela revitalização do

tecido social; a ausência do sistema com seus esquemas de interpretação reducionistas e suas

soluções estereotipadas permitiria em todos os níveis da vida social outros tipos de solução de

conflitos muito mais vinculados com a experiência imediata dos que estão diretamente

envolvidos com o delito. A idéia de solidariedade – surgida de um sentimento agudo de

igualdade entre as pessoas e que se opõe à acepção tradicional, variada e excludente -,

portanto, está intimamente vinculada à perspectiva de Hulsman.

Com efeito, a abolição do sistema penal sustentada por Hulsman requer de seu

adepto uma verdadeira conversão, aqui compreendida, em sentido metafórico, por meio de um

salto significativo no nível de compreensão acerca da ação no mundo. De fato, trata-se de uma

conversão coletiva, uma vez que a abolição radical do sistema penal implicaria a abolição do

conceito de delito, ou seja, dos conceitos tradicionais e dos próprios acordos semânticos já

sedimentados no sistema penal.

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Para Hulsman, constitui um erro fundamental considerar o delito e a criminalidade

como categorias básicas para a compreensão e definição dos fatos e para a organização da

reação a esses fatos. Essa abolição traria, pois, uma outra grama de definições e reações ante

os fatos então tidos por delituosos, tais como um sistema mais informal de resolução de

conflitos por meios compensatórios, conciliatórios, terapêuticos ou educativos de reação.

Verdadeiramente, a abolição do conceito de delito obriga uma revisão completa do próprio

vocabulário do sistema de justiça penal (não mais haveria categorias como “gravidade do

delito”, “periculosidade”, “culpabilidade” etc.).

A preocupação do tradicional sistema de justiça penal reside no atendimento aos

interesses da sociedade (prevenção geral, prevenção especial e ressocialização); a proposta de

Hulsman é voltar essa lógica para as necessidades e os interesses das pessoas que se sentem

vítimas da prática dos fatos então compreendidos como delitos. Aos perigos decorrentes da

abolição do sistema penal – a vingança privada, a autodefesa exacerbada, a violência, a

insegurança social – Hulsman responde que a abolição da máquina penal não resultaria na

exclusão de toda coerção.

Embora não delineie um plano minudenciado acerca da realização concreta dessa

abolição do sistema penal, Hulsman traça uma estratégia global para levar a cabo sua política

penal abolicionista. Em primeiro lugar, registra a necessidade de observância de critérios

racionais para controlar as decisões de criminalização de condutas ainda não criminalizadas.

Sugere, então, a fiel observância do princípio da subsidiariedade do direito penal, de critérios

sobre o caráter pragmático das situações que eventualmente legitimem a criminalização, de

critérios atinentes aos custos e aos benefícios das ações penais e de critérios relacionais com a

capacidade do sistema penal. Em outras palavras, a atenção deve voltar-se ao problema da

redução e da minimalização da criminalização.

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Em segundo lugar, Hulsman refere-se a uma estratégia para reduzir a atual

aplicação do sistema penal, ou seja, aponta estratégias para a descriminalização – de fato e de

direito — de condutas. Finalmente, registra que é necessário criar alternativas ao enfoque da

justiça penal perante situações problemáticas. Nesse particular, aponta que uma alternativa

seria uma mudança do enfoque hoje adotado, segundo o qual o direito penal possui carga

nitidamente simbólica, para uma avaliação do que não se deseja ou do que se tolera. Outra

alternativa, segundo ele, reside na mudança operada pela intervenção física de meios técnicos

em situações, para que estas resultem menos danosas. Refere-se, por exemplo, ao uso de

dispositivos eletrônicos, restrição de acesso a determinados produtos para diminuir os furtos

em supermercados etc. Aponta também a necessidade de mudanças na forma de organização

da vida social e de incremento de outras formas de controle social (medidas compensatórias,

terapêuticas ou conciliatórias).

O enfoque abolicionista de Hulsman deita suas raízes metodológicas numa atitude

anti-reducionista frente às situações problemas. Para ele, não se percebe que o enfoque

criminalizador é somente uma dentre várias opções para compreender uma situação

problemática e atuar sobre ela. Percebe-se em Hulsman uma crítica contra o processo de

“reificação” do delito, segundo o qual uma interpretação da realidade, uma construção

humana, é transformada numa realidade em si mesma, independentemente da realidade

constitutiva da atividade humana. Rolf S. de Folter reconhece na abordagem de Hulsman,

especificamente por se deter este na destruição fenomenológica do sistema de justiça penal,

traços da fenomenologia de Edmund Husserl. É que Hulsman efetivamente prega a incidência

do antigo adágio fenomenológico de “retorno às coisas”.54 O ponto inicial de qualquer análise,

segundo Hulsman, não deveria ser as categorias totalizadoras, objetivadas e abstratas do

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sistema de justiça penal, mas aquelas situações concretas que são vividas como problemas

pelas pessoas diretamente envolvidas e que precedem ao mundo abstrato do direito penal.

2.1.2. O pensamento de Thomas Mathiesen

Thomas Mathiesen, reconhecido pensador abolicionista escandinavo, elabora, no

início da década de 1970, um trabalho intitulado “The politics of abolition”.

Aproximadamente 15 anos depois, ele próprio retornou às idéias que então havia lançado

para, além revisitá-las, a elas somar outras.55

Na sua concepção, as razões do abolicionismo penal, se limitadas a uma

perspectiva político-criminal, podem ser resumidas em três pontos. Em primeiro lugar, a

abolição dos cárceres aparecia como meta de uma política criminal radical. Em segundo lugar,

sustentar a abolição dos cárceres, para no lugar deles desenvolver soluções ditas

“alternativas”, constituía um perigo relevante que poderia acabar por transformar facilmente

as novas estruturas carcerárias em instituições com funções similares as dos próprios cárceres.

A mudança quedaria por ser apenas nominal. A única e verdadeira alternativa seria um estado

de mudança, de revolução permanente. Em terceiro lugar, para se chegar à abolição, revelava-

se necessária uma estratégia cuidadosamente trabalhada e uma análise da relação entre as

reformas a curto prazo e a abolição pretendida a longo prazo. De modo efetivo, para não

obstar o objetivo abolicionista a longo prazo, as reformas, a curto prazo, deveriam ser do tipo

“negativo”, ou seja, tendentes a obstar a expansão das prisões e a não mais utilizar penas

privativas de liberdade.

54 FOLTER, Rolf S. de. Sobre la fundamentacion metodológica del enfoque abolicionista del sistema de justicia penal. Una comparación de ideas de Hulsman, Mathiesen y Foucault. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 67-68. 55 O resultado foi justamente um trabalho lançado com o mesmo título “The politics of abolition”. O texto possui versão em espanhol. MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 109-126.

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No entanto, quais eram, à época do trabalho original, as verdadeiras intenções do

autor e do movimento que representava? Uma reforma do sistema vigente ou uma verdadeira

revolução para afastar o modelo encarcerador? Segundo o próprio Mathiesen, eram

exatamente as duas intenções delineadas por ele e pelo movimento de que faz parte. No

entanto, essa “ubiqüidade” de propósitos converteu-se justamente na mais robusta das críticas

a eles dirigidas. Ainda assim, Mathiesen entendeu por bem em sustentar a totalidade de sua

concepção, tomada justamente sob um viés de luta política.56 Passados mais de quinze anos

do trabalho original, percebe-se, ao menos nos ordenamentos ocidentais, uma prática dirigida

justamente em sentido oposto: tem-se a opção política de carcerização como pseudo-solução

aos problemas econômico-sociais.57

A expansão do cárcere é realmente notável. Em parte, revela-se como

conseqüência do aumento do período de execução das penas, em outra parte, parece

conseqüência do aumento do número de detentos. A expansão parece se originar nos

profundos conflitos de classe e políticos próprios das sociedades ocidentais. Para Mathiesen, o

cárcere converte-se numa importante arma repressiva nas mãos de um Estado poderoso.58 De

qualquer sorte, registra esse pensador que a prática orientada em sentido oposto ao

movimento abolicionista não significa que os princípios básicos desse movimento tenham se

tornado irrelevantes ou infundados.

56 MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 111. 57 Nesse sentido, “(…) mais do que o detalhe dos números, é a lógica profunda dessa guinada do social para o penal que é preciso apreender. Longe de contradizer o projeto neoliberal de desregulamentação e falência do setor público, a irresistível ascensão do Estado penal americano é como se fora o negativo disso – no sentido de avesso mas também de revelador –, na medida em que traduz a implementação de uma política de criminalização da miséria que é complemento indispensável da imposição do trabalho assalariado precário e sub-remunerado como obrigação cívica, assim como o desdobramento dos programas sociais num sentido restritivo e punitivo que lhe é concomitante”. WACQUANT, Loïc J. D. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. Embora as assertivas se refiram aos Estados Unidos da América, quer parecer que são elas extensíveis à realidade brasileira e aos países europeu-continentais. 58 MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 112.

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Os princípios do pensamento abolicionista de Mathiesen podem ser reunidos em

três grupos de idéias. O primeiro deles diz respeito à idéia de que a importância da abolição

do cárcere repousa na concepção de que a intervenção penal substancia forma de resolver

conflitos humanos. A seu ver, os cárceres são parte do aparato estatal para a repressão

política, razão pela qual se integra justamente no sistema político a que serve, por isso,

veicula estratégias e táticas que conduzem à desilusão e à desesperança. Nessa toada,

vislumbra nas organizações e nos movimentos sociais, como alternativas à esfera pública, os

meios para a consolidação de uma estratégia dirigida à abolição do cárcere. Frisa, igualmente,

a premente necessidade de afastar uma dependência cada vez mais presente em relação aos

novos meios de comunicação.59

O segundo grupo de idéias refere-se à constatação de que, se o objetivo é diminuir

a confiança na política de encarceramento, pode ser igualmente perigoso o delineamento de

alternativas ao cárcere, no sentido de que as soluções que possam surgir podem acabar sendo

mais cruéis e graves que o próprio cárcere em si. Mathiesen chama a atenção para a

necessidade de a sociedade reestruturar-se em meios alternativos. Vislumbra a contribuição da

sociologia como norte aos movimentos políticos, com a finalidade de organizar

alternativamente as relações humanas de tal modo que os conflitos se resolvam em novas

formas que sejam socialmente aceitáveis. Reclama, pois, uma imagem da sociedade ou de

estruturas dentro da sociedade, formuladas como ideologias60 sobre as quais trabalhar.

O terceiro grupo de idéias, por fim, refere-se à concepção de que o trabalho contra

a solução carcerária deve ser realizado com amparo em reformas “negativas”. Em outras

59 É como se as ações por si só não bastassem: releva notar sim a disseminação e o atingimento dessas informações para a coletividade. Essa importância acaba por configurar uma incômoda dependência em face dos meios de comunicação. 60 Ideologia aqui é compreendida como conjunto de idéias, pensamentos, doutrinas e visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo, orientado para suas ações sociais e, principalmente, políticas.

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palavras, mais que concentrados na proposta de alternativas ao cárcere — ao menos numa

perspectiva mais iminente -, os esforços abolicionistas devem dirigir-se a uma imediata

redução do sistema carcerário. Mathiesen chega mesmo a propor uma imediata moratória na

construção de cárceres, ao argumento de que metade do caminho rumo ao abolicionismo

estará cumprido caso se consiga, a curto prazo, deter a expansão dos cárceres. A paralisação

da expansão dos cárceres implicaria uma reformulação política reflexiva e sistemática do

nível de castigo na sociedade.61 A essa altura, Mathiesen propõe-se a enumerar as razões

principais contra a construção de novos cárceres. Para ele, são oito os argumentos que

impulsionam uma política de imediata e permanente proibição internacional de construção de

novas prisões. São argumentos que funcionam – e, a seu ver, irrefutáveis – se considerados

conjuntamente, como componentes de uma fórmula voltada a estancar a expansão carcerária.

Primeiro: refere-se à prevenção especial e salienta que vários estudos empíricos

demonstram claramente que a prisão não melhora o preso.62 Aliás, o efeito destrutivo do

cárcere – a prisão conduziria a uma pobre reabilitação e a uma maciça reincidência, além de

inegavelmente ser danosa à personalidade — deveria ser justamente considerado para obstar a

expansão carcerária. Segundo: o argumento da prevenção geral ou de dissuasão da sociedade

é incerto e muito menos significativo quando comparados aos efeitos que têm os atos que

derivam de uma política econômica e social voltada à redução de desigualdades sociais.

Terceiro: à proibição de construção de novos cárceres deve seguir-se o surgimento de novas

61 MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 119. 62 Mathiesen afirma a resposta dirigida a um maior encarceramento carece de racionalidade, uma vez que o carceramento em si não resolve. Vale consginar o seguinte excerto: “Es decir, ya que los problemas no se han solucionado encarcelando a esta cantidad de personas, debemos encarcelar a más. En un clima político de derecha, es posible que, en base a este razonamiento irracional los sistemas ineficientes se expandan y perduren por mucho tiempo. Pero, como ya lo dije, este razonamiento es irracional” (MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 119-120). Embora conhecida a crítica às concepções próprias da prevenção especial, justamente por carecerem de um lastro empírico, não parece que a adoção, ou não, de tal concepção guarde relação que a justifique a depender da orientação de “direita” ou de “esquerda” do sistema político. Se é

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práticas voltadas ao desencarceramento (soluções como livramento condicional, períodos de

prova etc.).

Quarto: a construção de prisões possui um caráter irreversível. “Uma vez que se

levanta uma prisão, não podemos esperar que ela seja demolida com rapidez, pelo contrário,

seguirá ali e funcionária durante muito tempo”63. O caráter irreversível da construção de

prisões, o fato de que seja parte de um processo histórico e não uma medida pragmática

momentânea, afigura-se, em si mesmo, a razão principal para não se adotar hoje qualquer

programa de construção de novos cárceres. Quinto: verifica-se hoje um movimento

expansionista do sistema carcerário, que implica um impulso ou um mecanismo político que,

em lugar de esmaecer, apenas fomenta seu próprio crescimento, uma vez iniciada a

construção. Sexto: refere-se ao argumento humanitário. As prisões funcionam como

instituições desumanas, como formas sociais desumanas. A esse respeito, são muitas as

informações: os relatos dos detentos, as reportagens, as pesquisas científicas etc., que

testemunham o caráter degradante, humilhante e alienante do cárcere. O argumento

humanitário lastreia não apenas o impedimento de novas construções, mas também o

desmantelamento das instituições mais cruéis e desumanas hoje existentes. Nesse sentido, a

reabilitação das velhas instituições resulta, de imediato, em uma política mais sensível e

humanitária que aquela de construção de novas unidades.

Sétimo: assenta que o sistema carcerário é um sistema de valores culturais, pois é,

em última análise, um símbolo da maneira de pensar as próprias pessoas. Como forma de

pensamento, enfatiza a violência e a degradação como métodos para resolver os conflitos

que ainda é possível sustentar tal dicotomia (direita e esquerda), quer parecer que a assertiva de Mathiesen lastreia-se apenas numa visão maniqueísta acerca dessas orientações políticas. 63 “Una vez que se levanta una prisión, no podemos esperar que la demuelan con rapidez, por el contrario, seguirá allí y funcionará durante mucho tiempo”. MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 122.

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humanos. A construção de cárceres sedimenta a prisão como a solução para a sociedade.

Mathiesen salienta que, a seu ver, esse argumento surge como o mais relevante de todos.64

Oitavo: aborda uma perspectiva econômica. Salienta o alto custo da construção de

novas prisões e, à luz dos demais argumentos, robustece-se como solução menos hábil a ser

adotada pelo Estado.

Assim, em síntese, na visão de Mathiesen, argumentos de prevenção individual,

dissuasão geral, possibilidades de proibição, irreversibilidade da construção, do caráter

expansionista do sistema carcerário, humanitarismo, valores culturais e economia, todos

apontam contrariamente à construção de mais presídios. Os argumentos funcionam, segundo

ele, conjuntamente e respaldam firmemente uma imediata moratória de construção de novos

cárceres.

O tema, na sua visão, possui um viés essencialmente político. “A política é a

decisão sobre valores prioritários. Para tanto, a construção de cárceres é uma decisão sobre

valores prioritários. É essa a maneira com que queremos tratar nossos semelhantes? Essa é

uma questão de valor.”65

O abolicionismo de Mathiesen, portanto, apresenta-se de modo peculiar, pois não

trata de abolir, mas sim de estabelecer algo. Cuida de estabelecer o início e a manutenção de

um projeto substancialmente “inacabado” ou “inconcluso”, embora seja claro o objetivo de

64 Sob uma perspectiva diversa, mas que alcança a mesma conclusão, Rusche e Kirchheimer bem evidenciam que o caráter das penas está intimamente associado – e dependente – aos (dos) valores culturais do Estado que as emprega. É, portanto, bastante estreita a relação entre a pena e a cultura que a produz. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2004. 65 “La política es la decisión sobre valores prioritarios. Por lo tanto, la construcción de cárceles es una decisión sobre valores prioritarios. ¿Es ésta manera en que queremos tratar a nuestros semejantes? Esta es una cuestión de valor”. MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 124.

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abolição de um sistema social repressivo ou, ao menos, de parte desse sistema. A idéia de um

projeto inconcluso diz respeito à realização de uma abolição da ordem, ao menos por meio do

trabalho para se alcançar essa abolição. Essa concepção do projeto permanentemente

inacabado deriva do receio de que, ao eleger alternativas determinadas, todas as mudanças

estruturais culminem numa alteração marginal que na realidade não afete a ordem dominante.

Volta-se, então, Mathiesen à abolição dos sistemas sociais repressivos da última etapa do

capitalismo de estado.

O meio por ele apresentado para se alcançar a abolição é a ação radical, ou seja,

uma ação política que transcenda os limites. Sua idéia de implementação do projeto

abolicionista, como se vê, veicula essencialmente uma proposta de desenvolvimento de uma

teoria de ação política. A estratégia de estabelecer o inconcluso surge, pois, como única

possibilidade que o movimento político abolicionista tem para seguir a título de movimento

vital e em expansão. Em primeiro lugar, um movimento político vital deve guardar uma

relação de contradição com o sistema existente. Em segundo lugar, um movimento político

em expansão deve, para seguir expandindo-se, guardar relação de concorrência com o sistema

existente. A contradição perene e tendente à competição apresenta-se como a única arma

contra a absorvente formação social do capitalismo tardio.

A idéia de inconclusão reside na negativa de se fazer uma escolha acabada por um

sistema. A manutenção do abolicionismo requer que haja constantemente mais instâncias de

controle a se abolir, que sempre haja novos objetivos para serem abolidos num maior prazo,

que se mova constantemente em círculos cada vez mais amplos até novos campos para

abolição. De qualquer modo, releva a necessidade de se agregar objetivos de curto e longo

prazo como uma totalidade indissolúvel.

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Relativamente a uma fundamentação metodológica, percebe-se que Mathiesen não

atentou para o apoio metodológico ou filosófico de suas idéias. No entanto, ao delinear sua

perspectiva como patente ação política, permitiu entrever, na visão de Folter, uma

fundamentação metodológica materialista para suas idéias, por reificar as estruturas materiais

da sociedade capitalista como determinantes em última instância, para considerá-las

ontologicamente como a raiz de todo mal.66 O mesmo Folter aponta essa fundamentação

metodológica como ingênua, pouco convincente e nada frutífera, mesmo quando menciona

uma análise do poder, pois, ao seguir uma orientação marxista, Mathiesen observa a máxima

de enfrentar aqueles que detém o poder com aqueles que não o têm e acaba por seguir a

concepção ingênua de poder, que se opera pela negação e funciona por meio da distorção e da

produção de ideologia.67

O abolicionismo, numa acepção mais ampla, pode ser compreendido como uma

forma de captar todas as práticas discursivas e não discursivas do sistema de justiça penal e

atuar frente a elas. Funciona como um método e, como tal, nunca pode ser apreendido como

uma técnica que possa aplicar-se simplesmente a qualquer objeto de estudo. O verdadeiro

método não pode simplesmente aplicar-se a uma realidade jurídica predeterminada;

substancia, ele próprio, o elemento constitutivo do caráter da realidade jurídica que libera. O

significado de uma coisa não pode estar separado do acesso a essa mesma coisa. O acesso se

mostra como parte do significado. Entre o método e o objeto existe uma relação dialética que

na tradução hermenêutica se conhece como o problema da “aplicação”68. Compreender o

66 FOLTER, Rolf S. de. Sobre la fundamentacion metodológica del enfoque abolicionista del sistema de justicia penal. Una comparación de ideas de Hulsman, Mathiesen y Foucault. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 73. 67 FOLTER, Rolf S. de. Sobre la fundamentacion metodológica del enfoque abolicionista del sistema de justicia penal. Una comparación de ideas de Hulsman, Mathiesen y Foucault. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 74. 68 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. vol. II. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2002, passim.

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abolicionismo como método permite fazer com que ele conviva com as máximas que

pretendem justificar a intervenção penal.

Em última análise, tanto na acepção de Hulsman quanto na de Mathiesen, o

abolicionismo implica certa forma de radicalismo e se funda num princípio de solidariedade

com aqueles que estão à margem da sociedade. É por isso que se afirma que o abolicionismo

deriva de uma visão humanista. No entanto, essa pecha de humanista já permitiu que vários

movimentos dessem lugar a novas formas compulsivas de controle social e, como se

registrará adiante, é justamente esse o risco que o movimento abolicionista oferta.

O abolicionismo é uma abordagem que carece de essência. Para usar uma

metáfora de Folter69, o abolicionismo é a bandeira sob a qual navegam barcos de distintos

tamanhos transportando distintas quantidades de explosivos. No entanto, quanto ao modo pelo

qual devem atacar e explodir suas cargas, não há uma única orientação. A valer, uma teoria

abolicionista, que abarque todas as características dos distintos enfoques abolicionistas do

sistema de justiça penal, simplesmente não existe.

2.2 . FERRAJOLI E AS RAZÕES DO DIREITO PENAL : QUANDO PROIBIR ?

Norberto Bobbio registra no prefácio do mais importante trabalho de Luigi

Ferrajoli que a proposta de trabalho empreendida por este é bastante ambiciosa, na medida em

que pretende “a elaboração de um sistema geral do garantismo ou a construção das colunas

mestras do Estado de Direito, que tem por fundamento e fim a tutela das liberdades do

69 FOLTER, Rolf S. de. Sobre la fundamentacion metodológica del enfoque abolicionista del sistema de justicia penal. Una comparación de ideas de Hulsman, Mathiesen y Foucault. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 59.

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indivíduo frente às variadas formas de exercício arbitrário de poder, particularmente odioso

no direito penal”.70

Especificamente no que diz respeito ao objeto da presente investigação, Ferrajoli71

registra que o problema da justificação da pena, ou seja, do poder de uma comunidade

política, seja ela qual for, exercitar uma violência programada sobre um de seus membros,

representa justamente o problema clássico, por excelência, da filosofia do direito. Em que se

baseia a pretensão punitiva estatal ou o próprio direito de punir? As respostas a essa pergunta

amparam-se em duas vertentes ou grupos de teorias: teorias justificacionistas, que se ocupam

de compreender as bases que legitimam a intervenção penal do Estado, e teorias

abolicionistas, que não reconhecem justificação alguma ao direito penal e almejam a sua

eliminação72, quer porque contestam o seu fundamento ético-político, quer porque consideram

as suas vantagens inferiores aos custos da tríplice constrição que produz (limitação da

liberdade de ação daqueles que observam as normas penais, sujeição a um processo por

aqueles tidos como suspeitos de não observá-las e a punição daqueles julgados como

70 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio de Norberto Bobbio. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 7. 71 As idéias de Ferrajoli são desenvolvidas nos tópicos “Se e porque punir, proibir, julgar. As ideologias penais” e “O objetivo e os limites do direito penal. Um utililitarismo penal reformado” constantes de sua obra Direito e Razão (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, passim). São igualmente relevantes, para a compreensão de sua justificação da intervenção penal: FERRAJOLI, Luigi. Derecho penal mínimo y bienes jurídicos fundamentales. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 4, n. 5, março-junho 1992. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2005/ferraj05.htm>. Acesso em: 27 março 2005; FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 17-31; e FERRAJOLI, Luigi. El derecho penal mínimo. In: Poder y Control. n. 0. Barcelona: PPU, 1986, p. 45. 72 Tal acepção, segundo a distinção asseverada no Capítulo 2, item 2.1, do presente trabalho, amolda-se ao abolicionismo em sentido amplo. Para Ferrajoli, abolicionistas são somente aquelas doutrinas axiológicas que acusam o direito penal de ilegítimo. Para ele, não são abolicionistas as doutrinas criminológicas que, conquanto intencionalmente libertadoras e humanitárias, na prática convergem para o correicionilismo positivista, que propõe, na verdade, a substituição da forma penal de reação punitiva por tratamentos pedagógicos ou terapêuticos informais, que permanecem, contudo, institucionalizados e coercitivos (e não meramente sociais). Reputa tais doutrinas como substitutivas. Já em relação às doutrinas penais que preceituam a redução da esfera de intervenção penal, ou, ainda, a abolição da específica pena moderna que constitui a reclusão carcerária em favor de sanções penais menos aflitivas, Ferrajoli as denomina como reformadoras. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 200-201.

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infratores). Como se verá em momento posterior da presente investigação, a perspectiva de

Ferrajoli encontra espeque na visão de Claus Roxin, quando este afirma que a lei trará os

valores que permitirão a abertura das soluções dogmáticas à política criminal. As soluções

axiologicamente orientadas às finalidades (missão) da intervenção penal serão extraídas da

própria, e não apenas da atuação judicial, com observância, pois, de um critério de estrita

legalidade.

Ferrajoli propõe a necessidade de reduzir as penas privativas de liberdade,

porquanto as entende excessivas e inutilmente aflitivas, além de danosas em diversos

aspectos, e limitar as proibições penais ao restrito âmbito das existências tutelares que

definem o esquema do direito penal mínimo. No entanto, sustenta — em contrariedade ao

abolicionismo e de encontro às doutrinas que ele reputa como substitutivas – a forma jurídica

da pena, por entendê-la como técnica institucional de minimização da reação violenta ao

desvio socialmente não tolerado e como garantia do acusado contra os arbítrios, os excessos e

os erros conexos a sistemas não jurídicos de controle social.

Para Ferrajoli, as doutrinas abolicionistas traduzem um duplo efeito. Em primeiro

lugar, os modelos de sociedade por elas perseguidos traduzem arquétipos pouco desejáveis de

uma sociedade selvagem, sem qualquer ordem e abandonada à lei do mais forte, ou,

alternativamente, de uma sociedade disciplinar, pacificada e totalizante, onde os conflitos

sejam controlados e resolvidos, ou, ainda, prevenidos por meio de mecanismos ético-

pedagógicos de interiorização da ordem, ou de tratamentos médicos, ou de onisciência social

e, talvez, policial. Apesar do caráter antitético de tais posições, padecem elas, segundo o

pensador italiano, de vícios comuns de utopia e regressão.73 Além de desvalorizar toda e

73 Sob esse viés, pode-se até mesmo vislumbrar um caráter libertário para o direito penal, consistente na possibilidade efetiva que possui o particular de delinqüir, de cometer crimes, faculdade que seria suprimida na

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qualquer orientação garantista, tais vertentes veiculam uma esterilidade de projetos

realizáveis, fruto, no dizer de Ferrajoli, “da inconsistência lógica e axiológica de ambos os

projetos jusnaturalistas que se encontram na base das duas opostas versões do abolicionismo,

ou seja, aquela do ‘princípio amoral’ do egoísmo, que regularia a sociedade do bellum

omnium, e aquela do ‘princípio moral’ da auto-regulamentação social que marca a sociedade

pacificada e sem Estado”.74

De qualquer sorte, o mérito maior dessas vertentes abolicionistas é, ao menos em

relação às suas considerações sobre a sociedade, promover uma radical separação entre

instâncias éticas de justiça e de direito positivo vigente. Igualmente, coloca-se numa

abordagem programaticamente externa às instituições penais vigentes (põe-se ao lado de

quem paga o preço da pena, e não do poder punitivo), o que muito contribuiu para favorecer,

posteriormente, a autonomia do pensamento advindo da criminologia crítica. Registre-se

também como mérito a outorga às doutrinas justificacionistas do ônus de justificar a razão da

intervenção penal, de sorte que, também no que tange aos destinatários das penas — dado a

mencionada abordagem programaticamente externa do abolicionismo — as justificações da

pena devem se revelar moralmente satisfatórias e logicamente pertinentes.

Ferrajoli sustenta que os objetivos de prevenção da pena, ou ainda, somente o da

redução dos delitos, não são suficientes para ditar o limite máximo de intervenção penal, mas

somente um limite mínimo, abaixo do qual não se verifica adequada a incidência de uma

sanção. Abaixo da concepção de prevenção, portanto, a intervenção penal não substanciaria

pena, mas uma verdadeira taxa ou um simples preço a se pagar pela conduta sem qualquer

capacidade dissuasória.

visão de sociedade disciplinar e totalizante, por exemplo, alcançável segundo o modelo sugerido por Louk Hulsman como alternativa à intervenção penal.

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Para o pensador italiano, a prevenção, mais do que dos delitos, refere-se a um

outro tipo de mal, antitético ao delito, que normalmente é negligenciado tanto pelas doutrinas

de justificação quanto pelas abolicionistas. Trata-se de uma possível reação punitiva — mas

não penal – que se revela informal, selvagem, espontânea, arbitrária. Na ausência de penas,

essa resposta poderia advir do próprio ofendido ou de forças sociais ou institucionais

solidárias a ele. “É o impedimento deste mal, do qual seria vítima o réu, ou, pior ainda,

pessoas solidárias ao mesmo, que representa, eu acredito, o segundo e fundamental objetivo

justificante do direito penal. Quero dizer que a pena não serve apenas para prevenir os delitos

injustos, mas, igualmente, as injustas punições”.75 Com isso, a pena “mínima necessária” —

para se apropriar da expressão iluminista — não constituiria apenas um meio, mas um fim,

qual seja: o de minimização da reação violenta ao delito. Reafirma Ferrajoli a natureza do

direito penal, que em lugar de traduzir um aprimoramento da vingança, surge justamente para

negá-la, para conflitá-la e justificar-se no propósito justamente de impedi-la. A história do

direito penal, para ele, corresponde a uma longa luta contra a vingança.

A razão de ser das proibições penais, dirigidas que são para a tutela dos direitos

fundamentais dos cidadãos contra as agressões de outros associados, reside numa dupla

finalidade preventiva, tanto uma como a outra negativas: prevenção geral dos delitos e

prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite

mínimo da intervenção penal; a segunda, o limite máximo. A prevenção geral negativa reflete

o interesse da maioria que não delinqüe, ao passo que a prevenção de penas arbitrárias coloca-

se em prol do interesse do réu ou de quem é suspeito ou acusado de sê-lo. Os dois objetivos

são concomitantes e conflitantes entre si, convivem em situação dialética, trazidos pelas duas

partes do contraditório no processo penal, ou seja, a acusação, que atua movida pelo interesse

74 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 203.

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de defesa social e, portanto, pretende potencializar a prevenção e a punição dos delitos, e a

defesa, interessada na defesa individual e, portanto, na prevenção das penas arbitrárias.76

Conquanto a prevenção geral negativa seja também veiculada por outros sistemas de controle

social, é a prevenção de penas arbitrárias – finalidade muitas vezes negligenciada – que

merece ser mais evidenciada como caracterizadora da intervenção penal: a tutela do inocente

e a minimização da reação ao delito é justamente o que distingue o direito penal dos demais

meios de controle social.

Ferrajoli apresenta o direito penal como técnica de tutela dos direitos

fundamentais. Desenvolve ele a idéia de que o objetivo geral do direito penal reside

justamente no impedimento do exercício das próprias razões, ou, de modo mais amplo, com a

minimização da violência na sociedade. Mais do que a mera defesa social dos interesses

constituídos contra a ameaça que os delitos representam, objetivo do direito penal é a proteção

do fraco contra o forte, na medida em que a proibição e a ameaça penal protegem os possíveis

ofendidos contra os delitos, ao passo que o julgamento e a imposição da pena protegem os

réus (e os inocentes suspeitos de sê-lo) contra as vinganças e outras reações arbitrárias e,

também, mais severas.

Sob ambos os aspectos a lei penal se justifica enquanto lei do mais fraco, voltada para a tutela dos seus direitos contra a violência arbitrária do mais forte. É sob esta base que as duas finalidades preventivas – a prevenção dos delitos e aquela das penas arbitrárias – são, entre si, conexas, vez que legitimam, conjuntamente, a “necessidade política” do direito penal enquanto instrumento de “tutela dos direitos fundamentais”, os quais lhe definem normativamente, os âmbitos e os limites, enquanto bens que não se justifica ofender nem com os delitos nem com as punições.77

75 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 268. 76 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 269. 77 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 270.

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Afasta Ferrajoli a idéia de que tal legitimidade seria democrática, uma vez que

não provém do consenso da maioria; é, verdadeiramente, “garantista”78 e reside nos vínculos

impostos pela lei à função punitiva e à tutela dos direitos de todos. Frisa que um sistema penal

somente se justifica se a soma das violências que este é capaz de prevenir (delitos, vinganças

e punições arbitrárias) for superior àquela das violências constituídas pelos delitos não

prevenidos e pelas penas a estes cominadas. A pena justifica-se, pois, como mal menor –

menor, menos aflitivo e menos arbitrário – se comparada com outras reações não jurídicas que

se produziriam na sua ausência. O monopólio estatal do poder punitivo justifica-se, afinal,

quanto mais baixos forem os custos do direito penal em face dos custos da ausência de

punição estatal.

Ferrajoli apresenta cinco razões pelas quais entende que sua proposta satisfaz as

condições de adequação ética e de consistência lógica exigidas para uma justificação da

intervenção penal.79 1) O direito penal volta-se ao único objetivo de prevenção geral negativa

– das penas (informais) e dos delitos -, de sorte a afastar a confusão do direito penal com a

moral. 2) O direito penal, ao impor à criminalização de condutas e às penas duas finalidades

distintas e concorrentes – máximo bem-estar possível dos não delinqüentes e mínimo mal-

estar necessário dos delinqüentes num contexto que tem por objetivo a máxima tutela dos

direitos de uns e dos outros, da limitação dos arbítrios e da minimização da violência na

sociedade –, responde satisfatoriamente às perguntas “por que proibir?” e “por que punir?”. 3)

A finalidade dúplice compreendida na prevenção geral negativa por ele sustentada torna

78 A concepção de garantismo aqui mencionada, construída ao longo de toda a obra de Ferrajoli, “significa precisamente a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do direito penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado, e, conseqüentemente, a garantia da sua liberdade, inclusive por meio do respeito à sua vontade” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 271). 79 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 271-272.

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desnecessário o recurso a autojustificações apriorísticas de modelos de direito penal máximo,

para consentir somente com justificações a posteriori de modelos de direito mínimo. 4)

Responde à objeção de Kant — segundo a qual nenhuma pessoa pode ser tratada como uma

coisa, ou seja, como um meio para um fim que não lhe pertence -, uma vez que o mal das

punições excessivas ou arbitrárias é homogêneo àquele que as penas representam, de maneira

que é possível, em princípio, comparar este com aquele e, com isso, justificar, ou não, a

intervenção penal. 5) a proposta de Ferrajoli substancia uma réplica persuasiva aos

argumentos deduzidos pelas correntes abolicionistas, uma vez que, se o abolicionismo

evidencia os custos do direito penal, sua proposta aponta os custos (virtualmente mais

elevados) que podem advir não apenas para as pessoas em geral, mas inclusive para os

próprios delinqüentes, da anarquia punitiva resultante da ausência de intervenção penal.

Para Ferrajoli, o paradoxo das doutrinas abolicionistas reside justamente no fato

de se afirmarem como de aspiração progressista. O direito penal veicula o maior esforço

realizado para minimizar e disciplinar o arbítrio e a prepotência punitiva. Vale registrar o

seguinte excerto:

O abolicionismo penal – independentemente dos seus intentos liberatórios e humanitários – configura-se, portanto, como uma utopia regressiva que projeta, sobre pressupostos ilusórios de uma sociedade boa ou de um Estado bom, modelos concretamente desregulados ou auto-reguláveis de vigilância e/ou punição, em relação aos quais é exatamente o direito penal – com o seu complexo, difícil e precário sistema de garantias – que constitui, histórica e axiologicamente, uma alternativa progressista.80

Um sistema penal, portanto, só se justifica se, e somente se, minimiza a violência

arbitrária na sociedade. De qualquer sorte, Ferrajoli entende que a crise do direito penal, ou

seja, do conjunto de formas ou garantias que o distinguem de outras formas de controle social

mais ou menos selvagens e disciplinares, afigura-se como o verdadeiro problema da

80 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 275.

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contemporaneidade: os sistemas punitivos modernos caminham, por força de suas

contaminações policialescas e da quebra, ora mais ora menos excepcional, de suas formas

garantistas, para uma transformação em sistemas de controle sempre mais informais e sempre

menos penais.81

Nesse particular, as colocações de Ferrajoli assumem relevo fundamental à

presente investigação: um sistema penal atinge seu objetivo de minimizar a violência

arbitrária na sociedade à medida que satisfaz as garantias penais e processuais do direito penal

mínimo, de sorte que tais garantias passam a substanciar condições de justificação do direito

penal, no sentido de que somente a atuação destas vale para satisfazer-lhes os objetivos

justificantes. O progresso de um sistema político e, portanto, do modelo de Estado a que se

aspira se mede justamente pela sua capacidade de simplesmente tolerar o delito como sinal e

produto de tensões e disfunções sociais não resolvidas, e, por outro lado, também pela

capacidade de prevenir tais delitos, sem meios punitivos ou não liberais, demovendo-lhes suas

causas materiais.

O modelo de direito penal mínimo e garantista projetado por Ferrajoli presta-se

também – e sobretudo – como meio de deslegitimação dos concretos ordenamentos penais

(suas leis e, principalmente, suas praxes), ou seja, “(…) permite não apenas, e não tanto,

justificações globais, mas, sim, justificações de deslegitimações parciais e diferenciadas, tanto

para normas individualmente consideradas como para institutos ou praxes de cada um dos

ordenamentos”.82 Salienta Ferrajoli que é justamente a incorporação limitadora dos princípios

81 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 276. 82 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 278.

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inerentes às garantias penais e processuais83, como outras tantas prescrições sobre as

condições da pena, que distingue o moderno Estado de Direito em matéria penal.

Ferrajoli afasta de plano a possibilidade de alcançar critérios positivos e absolutos

de justificação externa e de legitimação interna dos conteúdos da proibição penal (quando

proibir?). No entanto, afirma ser possível formular critérios negativos ou limitadores,

realizáveis somente relativa e tendencialmente, com o valor de condições necessárias, embora

não suficientes de legitimidade. Tais critérios são visualizáveis justamente por meio dos

princípios da lesividade ou da ofensividade, da materialidade e da responsabilidade pessoal84,

que definem, respectivamente, os três elementos constitutivos do delito: o resultado, a ação e

a culpabilidade.85 Mais que isso, Ferrajoli advoga que o princípio de estrita legalidade, com as

garantias que comporta, tem a importância de deslocar o problema substancial do direito

penal relativo ao “quando punir” para a seara do “quando proibir”, ou seja, do juiz para a lei,

83 A referência aqui é aos princípios inerentes às garantias penais e processuais formalizados no sistema SG (Sistema Garantista) desenvolvido por Ferrajoli, que elabora um sistema normativo completo — eixo central de todo seu trabalho -, teoricamente apto a defender a liberdade do indivíduo contra as pretensões ofensivas do poder estatal. Cuida-se justamente do que denomina “modelo garantista”, evidentemente ideal, cujo valor está sobretudo em servir de parâmetro para indicar o “grau” de garantismo de cada sistema concreto. Para tanto, Ferrajoli enuncia dez axiomas garantistas, que representam as regras do jogo fundamentais do Direito Penal no Estado de Direito. São eles: A 1 — Nulla poena sine crimine (princípio de retributividade da pena em relação ao crime); A 2 — Nullum crimen sine lege (princípio de legalidade, em sentido lato ou em sentido estrito); A 3 — Nulla lex (poenalis) sine necessitate (princípio de necessidade ou de economia do Direito Penal); A 4 — Nulla necessitas sine iniuria (princípio de ofensividade ou da lesividade do evento); A 5 — Nulla iniuria sine actione (princípio de materialidade ou da exterioridade da ação); A 6 — Nulla actio sine culpa (princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal); A 7 — Nulla culpa sine iuidicio (princípio de jurisdicionalidade em sentido lato e em sentido estrito); A 8 — Nullum iudicium sine accusatione (princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusador); A 9 — Nulla accusatio sine probatione (princípio do ônus da prova ou de verificação); A 10 — Nulla probatio sine defensione (princípio do contraditório, ou da defesa, ou da falseabilidade). Desses dez axiomas, concatenados de forma que cada qual dos termos utilizados implique, por sua vez, o sucessivo, o autor faz derivar, valendo-se de simples silogismos, quarenta e cinco teoremas, uma vez que todos os termos implicados são enunciáveis como conseqüentes de outras tantas implicações que têm como antecedentes todos os termos que lhe precedem no sistema. São exemplos desses teoremas: nulla poena sine lege (T 11), nulla poena sine necessitate (T 12), nulla poena sine iniuria (T 13), etc., até nulla poena sine defensione (T 19); ou ainda nullum crimen sine necessitate (T 20), nullum crimen sine iniuria (T 21), e assim por diante. São, ao todo, cinqüenta e cinco teses (as dez originais e os teoremas que lhes são derivados), que configuram o referido modelo garantista. A função específica das garantias expressas nesses enunciados, adverte Ferrajoli, não é de consentir ou legitimar, mas antes de condicionar ou vincular — e portanto deslegitimar -, o exercício absoluto do poder punitivo. São barreiras, obstáculos à utilização indiscriminada da punição, cuja transgressão torna ilegítima a sanção penal. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, passim, especialmente p. 73-93. 84 Tais princípios são justamente os axiomas 4, 5 e 6 do sistema de garantias (SG) delineado por Ferrajoli.

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de sorte a incorporar às formas jurídicas princípios ético-políticos e critérios substanciais de

justiça, e transformando-os, assim, em princípios e critérios normativos de direito positivo.

No entanto, cumpre frisar desde logo que a teoria do bem jurídico, tal como

delineada por Ferrajoli, não informa com exatidão quando proibir, mas atua verdadeiramente

em sentido negativo: presta-se a apontar quando proibir é inviável. Aponta o autor italiano

que não se pode alcançar uma definição exclusiva e exaustiva de noção de bem jurídico. Uma

teoria do bem jurídico, para ele, pode

oferecer, unicamente, uma série de critérios negativos de deslegitimação – que não são somente a irrelevância ou o esvaziamento do bem tutelado, senão, também, a desproporção com as penas previstas, a possibilidade de uma melhor proteção por meio de medidas destituídas de caráter penal, a inidoneidade das penas na consecução de uma tutela eficaz, ou, inclusive, a ausência de lesão efetiva por ocasião da conduta proibida – para afirmar que uma determinada proibição penal ou a punição de uma concreta conduta proibida carecem de justificação, ou a tem escassamente.86

A categoria “bem jurídico”, portanto, presta-se a uma função de limite ou

garantia, precisamente porque a lesão de um bem configura condição necessária, embora não

suficiente, para justificar sua proibição e punição como delito.

Relativamente à questão ético-política, para se saber se as proibições penais

devem tutelar um bem jurídico para não ficar sem justificação moral e política, é de ver que a

justificação externa das proibições penais evidencia uma doutrina, não jurídica, mas política,

modelada em torno de critérios de política criminal. À medida que postula a correspondência

entre prevenção de delitos e tutela de bens jurídicos, substancia igualmente o complemento

necessário da doutrina sobre a justificação externa da pena. Nessa toada, são três os critérios

85 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 371. 86 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 377.

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para uma política penal orientada à tutela máxima de bens com o mínimo necessário de

proibições e castigos.

O primeiro critério diz respeito à justificação das proibições somente quando se

dirigirem a impedir ataques concretos a bens fundamentais de tipo individual ou social e, em

todo caso, externos ao mesmo direito: esse “ataque” compreende não apenas o dano causado,

mas também o perigo causado (verificáveis ou avaliáveis empiricamente), inerente à

finalidade preventiva do direito penal. Esse critério é conjugado com a afirmação de que

nenhum bem justifica uma tutela penal se o seu valor não for maior do que o dos bens

privados pela pena. Aqui, inegavelmente, cuida-se de um juízo de valor hábil a atuar sobre a

crise inflacionária que o direito penal hoje enfrenta: a esfera dos interesses tuteláveis será tão

mais ampla quanto menor for o custo da pena, o que implica afirmar que a diminuição das

penas revela-se condição necessária a justificar sua utilização como instrumento de proteção

dos bens jurídicos.87 O segundo critério, por sua vez, revela-se axiológico e corresponde a um

diferente perfil utilitarista, no sentido de que as proibições não só devem estar voltadas à

tutela de bens jurídicos como também devem ser idôneas a essa proteção, de sorte a não se

admitir que o direito penal se preste à mera afirmação simbólica de valores morais, em

oposição à sua nítida função protetora. O terceiro critério, por fim, assevera que uma política

criminal de tutela de bens guarda justificação e credibilidade na medida em que é subsidiária

de uma política extrapenal de proteção dos mesmos bens.88

87 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 378. 88 Esse último critério político-criminal, especialmente no Brasil, parece ser relegado a um plano inferior. A Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, instituiu o Código de Trânsito Brasileiro. Além de recrudescer o tratamento penal dos delitos, mesmo que culposos, praticados na condução de veículo automotor, o Estado brasileiro deveria voltar-se à implementação de medidas protetoras e educativas de natureza administrativa. O número de acidentes automobilísticos e de crimes de trânsito, certamente, se à política de recrudescimento do tratamento penal se seguisse uma série de medidas extrapenais eficazes e severas para prevenção, reduzir-se-ia drasticamente. Mais recente, a Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, popularmente conhecida como “Estatuto do Desarmamento”, além do tratamento penal robustamente mais severo, deveria ter provocado a atenção da máquina estatal para campanhas de conscientização acerca dos valores veiculados pelo diploma legal. Em última

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No que se refere ao questionamento acerca da existência, em um determinado

ordenamento, de uma garantia de lesividade, ou seja, se as proibições legais e as sanções

concretas são legítimas juridicamente quando produzem um ataque a um bem jurídico, o tema

assume perfil descritivo e adota uma perspectiva interna ao ordenamento jurídico, para tomar

assento em sede constitucional. Ferrajoli afirma que as questões envolvidas nesse ponto

assumem contornos estritamente jurídicos, de modo que não admitem como resposta juízos ou

opções valorativas, mas apenas “asserções baseadas na análise jurídico-positiva, e que, em

razão disto, variam de acordo com o ordenamento analisado”.89 Em termos mais simples,

trata-se de aferir o que o direito penal “deve ser” a partir da Constituição.

Já no que toca uma perspectiva interna ao ordenamento jurídico e relativa ao que

“é” o direito penal, a partir da análise de suas leis, cumpre perscrutar quais bens, ou não bens,

as leis penais normativamente tutelam. Quer dizer, se, e em que medida, um sistema jurídico

satisfaz normativamente o princípio de lesividade, em cumprimento, ou não, das ordens

constitucionais. Uma resposta negativa a tal formulação está a indicar uma verdadeira

“inflação” de bens penalmente protegidos, que tem como resultado inarredável a dissolução

do próprio conceito de “bem penal” como critério axiológico de orientação e delimitação das

opções penais.

Por derradeiro, impende questionar em que medida o direito penal protege

efetivamente os bens jurídicos legalmente tutelados. Essa última pergunta é de evidente

caráter fenomenológico e exige, para uma possível formulação de resposta, uma análise

empírica.

análise, e é comezinha a assertiva, a incidência da tutela penal, por si só, não se revela o meio adequado para a solução de problemas sociais, muito embora o Estado brasileiro venha se valendo do direito penal como solução meramente simbólica e mais barata para contenção (frustrada) de problemas sociais. 89 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 379.

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Ferrajoli registra uma inevitável divergência entre o princípio de política-criminal

da lesividade e a natureza da proteção normativa, ou, efetiva, dispensada pela lei penal e por

sua aplicação. A análise dessa divergência entre normatividade e efetividade (teoria versus

práxis) da proteção penal dos bens é que permite a percepção, nos diversos níveis em que se

manifesta, dos aspectos de ineficácia da primeira (normatividade) e de ilegitimidade da

segunda (efetividade). Tal verificação depende

(…) da desproporção entre o valor da liberdade pessoal afetada pela pena e o valor dos bens atacados pelo delito, assim como da distorcida escala de valores que se reflete na graduação das penas previstas para cada um deles; por conseguinte, conforme uma reelaboração da hierarquia dos bens estimados merecedores de tutela e, em relação a ela, das penas proporcionadas para tal fim.90

Daí deriva Ferrajoli a necessidade de elaboração de um programa de direito penal

que aponte no sentido de uma massiva deflação dos bens penais e das proibições legais, como

condição da sua legitimidade política e jurídica, sem prejuízo de, caso fique evidenciada a

respectiva oportunidade nessa reelaboração, maior penalização de condutas hoje não

adequadamente proibidas nem castigadas.

De qualquer sorte, o princípio da lesividade possui mesmo um mister

descriminalizador, sendo certo que a função restritiva e minimizadora desse programa atuaria

em aspectos quantitativos (delitos de bagatela), qualitativos (preponderância das condutas

lesivas a pessoas) e estruturais (crítica a delitos de atentado, de perigo abstrato ou presumido).

O princípio da lesividade, portanto, assume valor de critério polivalente de minimização das

proibições penais, para equivaler a um princípio de tolerância tendencial do delito, idôneo a

reduzir a intervenção penal ao mínimo necessário, de sorte a reforçar sua legitimidade e

credibilidade.91

90 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 381. 91 Afirma o autor italiano: “Se o direito penal é um remédio extremo, devem ficar privados de toda relevância jurídica os delitos de mera desobediência, degradados à categoria de dano civil os prejuízos reparáveis e à de

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CAPÍTULO 3 – Do abolicionismo ao minimalismo

garantista: as críticas mais relevantes e o movimento de

expansão do direito penal

3.1. ABOLICIONISMO VERSUS GARANTISMO

O contraste entre a proposta do minimalismo garantista, propugnado por Luigi

Ferrajoli, e as idéias abolicionistas, aqui colhidas de Mathiesen e Hulsman, parece evidente.

Uma das críticas mais relevantes do garantismo de Ferrajoli às vertentes abolicionistas refere-

se ao desaparecimento, a partir da abolição do direito penal (e não somente do cárcere), dos

limites da intervenção punitiva do Estado. Elena Larrauri, contudo, entende que a discussão

entre abolicionismo e garantismo tende a esmaecer-se.92

Em primeiro lugar, porque a falta de garantias sempre poderá ser apontada como

óbice a qualquer proposta descriminalizadora (e não apenas abolicionista), na medida em que,

por exemplo, quando se optar por sanções administrativas em lugar de sanções penais,

verificar-se-á em concreto a perda de diversas garantias além do próprio ganho eficientista

decorrente da maior celeridade e da maior severidade que tais sanções poderão veicular. Para

ela, frente a qualquer proposta alternativa à intervenção do direito penal, não basta fazer uma

referência abstrata à ausência ou à perda de garantias, senão que se deveria mostrar — em

concreto — as garantias a que se renuncia e as vantagens trazidas pelas soluções alternativas

em lugar dessa diminuição de garantias.

ilícitos administrativos todas as violações de normas administrativas, os fatos que lesionam bens não essenciais ou os que são, só em abstrato, presumidamente perigosos, evitando, assim, a ‘fraude das etiquetas’, consistente em qualificar como ‘administrativas’ sanções restritivas da liberdade pessoal que são substancialmente penais” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 384). 92 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005.

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Em segundo lugar, a confusão existente na discussão entre garantistas e

abolicionistas reside na ambigüidade e dificuldade presente em ambos os discursos. À falta de

precisão da máxima “abolição do sistema penal” – afinal, o que se pretende abolir

exatamente? – segue-se a dificuldade de se compreender exatamente aquilo que procura

Ferrajoli justificar em sua teoria – o direito, a pena ou a prisão?93 Custa compreender, por

exemplo, exatamente o motivo da controvérsia quando Ferrajoli mostra-se partidário da

abolição da pena de prisão.94 Ou, então, o motivo da divergência com aqueles autores

partidários do abolicionismo que sustentam soluções alternativas ao direito penal que, em

lugar de negar, incorporam determinadas garantias processuais como a presunção de

inocência, princípio do contraditório ou o princípio da proporcionalidade.

Embora sejam numerosos os pontos de convergência entre as abordagens de

Ferrajoli e as teorias abolicionistas, impende apontar também as inegáveis divergências entre

tais marcos. Fixam os abolicionistas a necessidade de um novo sistema alternativo de controle

do delito que não se baseie em um modelo punitivo, senão em outros princípios legais e

éticos, de sorte que a prisão ou qualquer outra forma de repressão física do delinqüente torne-

se paulatinamente desnecessária. Por conseqüência, parece claro que, aos autores

abolicionistas, a proposta de abolição da prisão é insuficiente, uma vez que não contraria a

idéia de que o castigo seja uma forma idônea de reação frente a muitos fenômenos que são

tidos como delituosos e, no entanto, apenas decorrem de problemas sociais. Daí os autores

abolicionistas se dedicarem à solução de problemas sociais, para indicar que, ao se aproximar

93 A crítica é de Elena Larrauri. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005. 94 FERRAJOLI, Luigi. El derecho penal mínimo. In: Poder y Control. n. 0. Barcelona: PPU, 1986, p. 45. É de ver, porém, que em sua principal obra – Direito e Razão – Ferrajoli, defensor do minimalismo penal, reserva a pena de prisão àqueles delitos que efetivamente justifiquem a incidência do direito penal garantista.

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dos eventos criminalizados e tratá-los como problemas sociais, tal postura permite-lhes

ampliar o leque de possíveis respostas, não se limitando à resposta punitiva.95

De qualquer forma, a mesma Larrauri registra que o discurso abolicionista deveria

se ocupar de demonstrar ou justificar o discurso acerca do que repulsar (frente a quais

comportamentos se deve mostrar uma repulsa clara?) e como mostrar repulsa (não basta a

referência genérica ao direito civil ou a sistemas de justiça informal).96

No que se refere ao enfrentamento da proposta de Ferrajoli, de início, cumpre

lembrar que o autor italiano parte do pressuposto de deslegitimação do sistema penal atual,

traço em comum que guarda com as tendências abolicionistas por ele tão criticadas.

Uma crítica dirigida à abordagem de Ferrajoli diz respeito ao objeto de

justificação de sua teoria. Quer parecer, em várias passagens, que Ferrajoli ocupa-se de

justificar o que denomina “forma jurídica” da pena. Sob outro viés, trata-se justamente do

critério de distinção – a formalização do controle ou, no caso, da forma jurídica da pena —

entre a violência do direito penal e a violência realizada pelas outras instituições de controle

social, tal como desenvolvido no Capítulo 1, item 1.1, do presente trabalho.

95 Ainda assim, Elena Larrauri sustenta que, ainda que se adote o abolicionismo, o castigo ainda teria espaço como instrumento de controle social. Entende que a admissão do espaço para o castigo não se evidencia incompatível com a abordagem abolicionista, “porque frente a un comportamiento respecto del cual queremos mostrar repulsa también podemos argüir que esta ‘repulsa’ ha de adoptar una forma fundamentalmente reparadora, por ejemplo, ha de vetar determinados castigos por inhumanos como la prisión, y ha de constituirse en una justicia más democrática y participativa para con los afectados” (LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005). Em seqüência a essa assertiva, a própria Larrauri reconhece que tal construção revela-se imprecisa, razão pela qual se esforça em seguida a atribuir maior concreção a sua proposta. 96 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005.

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Se a ênfase reside tão-somente em respeitar uma regulação jurídica, somente isso

não basta para declarar justificado o direito penal. Eugenio Raúl Zaffaroni assevera que as

críticas de Ferrajoli ao abolicionismo, por exemplo, parecem centrar-se em certas

simplificações, tais como as pretensões de supressão do sistema penal, para deixar todos os

conflitos sem solução e sem cobertura ideológica de uma solução aparente que vigora hoje no

sistema penal; ou, ainda, de supressão do direito penal – como discurso jurídico –, para deixar

intacto todo o exercício do poder pelos órgãos do sistema penal.97

Além disso, parece dúbio se Ferrajoli justifica a figura da pena ou da pena de

prisão. A resposta possível é que se ocupa de justificar as duas, pois assume um conceito de

pena que não exclui a pena de prisão. Por conseqüência, ainda que esteja disposto a abolir a

pena de prisão, não está propenso a elaborar um conceito de pena em que não ingresse em seu

catálogo a pena de prisão.

Ferrajoli rechaça com veemência a obrigação de reparar o dano, uma vez que

repele a pena como reparação do devido, por entender que ela só pode constituir uma privação

de direitos, mas não uma obrigação de ressarcir.98

Uma terceira crítica diz respeito à compreensão de Ferrajoli para quem a pena se

justifica se capaz de cumprir as finalidades a ela atribuídas, quais sejam, prevenção de delitos

e de vinganças. Larrauri, num exemplo bastante provocativo, afirma que a pena de morte teria

um efeito preventivo e ainda serviria para evitar vinganças informais e linchamentos e registra

que Ferrajoli descarta tal pena ao argumento de que implicaria ela, a pena de morte,

97 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Tradução de Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 105. 98 Larrauri entende que, nesse particular, Ferrajoli encontra-se preso a uma concepção ancilar ocupada verdadeiramente em estabelecer uma distinção ontológica entre direito civil e direito penal (Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n.

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vulneração de direitos humanos. Porém, por que razão Ferrajoli também não considera a pena

de prisão como uma vulneração aos direitos humanos?99

Ferrajoli demanda a demonstração empírica de que a pena cumpra suas

finalidades de prevenção de delitos e vinganças a um custo menor que outro meio punitivo.

No entanto, tal demonstração parece impossível e, ao revés, reclama a transposição de uma

demonstração fática para uma opção valorativa de adoção da pena (especificamente a de

prisão). Larrauri, ainda criticando o garantismo de Ferrajoli, sustenta que este deveria ter

voltado sua atenção mais à justificação da pena de prisão como meio legítimo de punição. Em

síntese, como já apontado, são dois os motivos pelos quais a discussão entre garantismo e

abolicionismo parece esvaziar-se: (i) a crítica à ausência de garantias, mas sem indicar quais

ou em troca de quais vantagens ou quais transformações, sempre pode ser apontada contra

qualquer proposta descriminalizadora, e não apenas contra o abolicionismo; (ii) a ausência de

concreção dos termos utilizados acaba por implicar um estado de grave confusão.100 Além

disso, em favor dos abolicionistas, registre-se que a proposta inicial dirigia-se à abolição da

pena de prisão e, se os abolicionistas tendem a extremar sua abordagem para a salvaguarda

das garantias das pessoas em face de qualquer alternativa à pena ou ao sistema penal, o

garantismo não deveria ignorar que essas garantias deveriam conduzir à aplicação de uma

pena distinta da pena de prisão.

As críticas dirigidas ao garantismo de Ferrajoli dizem respeito precipuamente à

sua oposição em relação às teorias abolicionistas e podem ser reunidas em dois grupos a partir

17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005). 99 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005. 100 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005.

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da dupla finalidade que justifica, sob sua ótica, a intervenção penal: a prevenção de vinganças

privadas ou informais e a prevenção de delitos.

3.1.1. A intervenção pe nal dirigida à prevenção de vinganças privadas

O cerne das críticas tecidas por Ferrajoli ao abolicionismo diz respeito aos perigos

decorrentes da abolição do direito penal. Na sua opinião, o desaparecimento do direito penal

implicaria ou a existência de uma anarquia punitiva (em que a toda prática delituosa se

seguisse uma resposta estatal ou social selvagem) ou a existência de uma sociedade

disciplinar (em que a prática de delitos seria faticamente impossível em razão da existência de

uma vigilância social ou estatal onipresente e sufocante). Diante dessas possibilidades,

denominadas por Ferrajoli como “utopias regressivas”101, o pensador italiano contrapõe-se e

apresenta sua proposta de direito penal mínimo como alternativa progressista.

Elena Larrauri sustenta que as críticas de Ferrajoli às teorias abolicionistas

amparam-se mais que em outra coisa na força das “imagens” transmitidas por essas teorias.102

Uma primeira imagem provém do passado e contrapõe o estado da natureza, em que

presumidamente prevalece a lei do mais forte, à existência de um Estado de Direito, no qual o

poder se exerce de acordo com regras pré-definidas. A tradução dessa visão resume-se na

contraposição entre vingança privada e pena, como correspondentes, cada um, a uma época

determinada. A segunda imagem de Ferrajoli se ampara em uma determinada visão de futuro,

lastreada em Foucault103, que por sua vez anteveu o caminho para um arquipélago carcerário.

O prognóstico de Ferrajoli aponta que, na ausência do direito penal, surgiria uma sociedade

101 Confira-se, a propósito, a transcrição mencionada na nota 79 do presente trabalho. Ainda, para uma crítica do abolicionismo amparada em casos-limites, escorada por vezes, reconheça-se, numa concepção retribucionista de intervenção penal, cf. ALMEIDA, Gevan. Modernos movimentos de política criminal e seus reflexos na legislação brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 16 et seq. 102 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005. 103 Vigiar e punir : nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 1998, 262 p.

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disciplinar, cuja regulação impediria a possibilidade de delinqüir ao custo de uma vigilância

onipresente. Tal assertiva escora-se na idéia de que todos os castigos alternativos à pena de

prisão representam um aumento do controle social.

Assim, a crítica ao discurso abolicionista baseia-se na convicção de que, na

ausência de uma reação estatal (pena pública), produzir-se-ia uma resposta privada (vingança

de sangue), substancialmente mais violenta que a primeira. Ao relacionar a idéia de uma

vingança privada, mais violenta, a uma época pré-moderna, denominada arcaica ou

jusprivatista, Ferrajoli constrói um conceito de vingança privada que representa a entrega do

delinqüente à vítima. Porém, é de ver que o direito penal só era “privado” na medida em que

reconhecia um poder de disposição da vítima para iniciar o processo ou para finalizá-lo (por

exemplo, por meio do perdão). O direito penal era também “privado” pelo caráter de algumas

penas, como por exemplo, a composição ou a indenização em favor da vítima, incluído o

cárcere privado.

Nada obstante, quer parecer que a idéia de uma sanção mais bruta não advenha da

circunstância de ela surgir como privada, mas sim da imprecisão entre o que se denomina

hoje, e o que se denominava à época, como “público” e “privado”.104 Some-se a isso a

imprecisão histórica acerca do período em que Ferrajoli entende presente a “vingança

privada”. Não parece adequado mencionar “vingança privada” para descrever a época prévia à

formação do Estado moderno, porquanto a característica maior do poder punitivo na Idade

Média residia justamente na multiplicidade e na dispersão em um conjunto de poderes,

repartidos entre senhores feudais, igreja, comunidades locais, o patriarca ou os exércitos.

Reduzir todos esses poderes penais dispersos a um só título – vingança privada – não permite

104 Acerca da discussão sobre “público” e “privado”, cf. ARAÚJO PINTO, Cristiano Otávio Paixão. Arqueologia de uma distinção: o público e o privado na experiência histórica do direito. In: PEREIRA, Claudia F. O. (org). O novo direito administrativo brasileiro: Estado, agências e Terceiro Setor. Belo Horizonte: Forum, 2003.

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compreender o funcionamento dos poderes punitivos numa época prévia à aparição do Estado

moderno.

Cumpre questionar, igualmente, o que se compreende sob a acepção de vingança.

O termo parece ser utilizado por Ferrajoli como sinônimo de respostas sangrentas, represálias,

duelos, linchamentos, execuções sumárias ou ajustes de conta. No entanto, não parece exato

equiparar penas privadas com vingança de sangue. Ferrajoli tende a atribuir um caráter

“sangrento” a qualquer tipo de reação privada e, por conseguinte, ignorar que a resposta

privada reconhece um poder de disposição da sanção pela vítima, nem sempre de modo a

alcançar um caráter letal a que o pensador italiano parece sempre atribuir.

Nessa mesma linha, Ferrajoli permite inferir, de sua exposição, que ao trânsito da

“vingança privada” à pena pública seguiu-se uma diminuição da violência. A valer, quer

parecer, de um lado, que a resposta privada vincula-se a uma vingança de sangue e, de outro

lado, que a resposta estatal (pena) não possua uma natureza brutal. No entanto, vislumbra-se

que mais correto seria destacar que, em ambos os casos, percebem-se respostas que são mais

ou menos brutais em atenção à época histórica e não em atenção a quem a exerce.

Não se evidencia inabalável a assertiva, como quer fazer crer Ferrajoli, de que o

processo de expropriação do poder punitivo, nos países de tradição européia-continental,

representa um processo orientado pelo objetivo de pacificação da sociedade. A rigor, numa

perspectiva puramente histórica, esse processo parece muito mais guiado pela idéia de

robustecimento do poder e dos interesses da monarquia frente à nobreza local ou mesmo

frente ao poder eclesiástico. Não há como afirmar, outrossim, que tal processo se deu

pacificamente; ao contrário, para que o direito penal pudesse se impor, foi necessário o uso da

violência para desprover os poderes periféricos da titularidade do jus puniendi.

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Em última análise, como afirma uma vez mais Elena Larrauri, a compreensão

acerca do trânsito progressivo de um direito penal “privado” disperso a um direito penal

“público” concentrado deveria destacar que esse processo foi violento e que comportou a

expropriação pelo Estado do poder de castigar do ofendido, que se evidenciava em seu poder

de denunciar, em seu poder de castigar ou de perdoar e em seu poder de orientar a pena à

satisfação de seus interesses.105

Outro argumento que se poderia opor ao garantismo de Ferrajoli diz respeito à

segunda função atribuída a pena que igualmente a justificaria: a prevenção de penas

informais. É possível questionar se é suficiente para justificar a pena a possibilidade de, na

falta desta, efetivamente se produzir uma resposta informal. Na verdade, Ferrajoli pressupõe a

existência de uma vingança privada que tomaria o lugar da pena estatal, caso esta não mais

existisse. No entanto, tal assertiva ou hipótese não está arrimada em qualquer evidência

faticamente comprovável. Em verdade, a simples existência de violências arbitrárias não basta

como argumento único a justificar a pena.

O discurso penalista tende a partir da idéia de que há um espírito de vingança que

o direito penal deve limitar. Porém, assumir de modo absoluto a existência de ânsias punitivas

preexistentes e invariáveis implica desconhecer numerosos aspectos que ainda estão sendo

mais investigados: que grupos sociais são mais suscetíveis de manifestar pretensões

punitivas? como serão implementadas essas sanções? A negativa do direito penal, própria do

abolicionismo, não implica a adoção de uma lógica equivalente à inércia estatal.

Registre-se, no entanto, que Ferrajoli afirma que o objetivo justificador da pena é

a prevenção da punição “abritrária e informal”, como a vingança por exemplo. E que tal

105 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-

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escopo dirige-se, ou diz respeito, tanto às vinganças privadas quanto às próprias reações

excessivas por parte do Estado (arbitrariedades, abuso de poder, improbidade etc.). Parece

demasiado, porém, presumir o direito penal como instrumento, de per si, adequado e

suficiente para evitar essas violências arbitrárias.

Uma estratégia alternativa, segundo Elena Larrauri, à necessidade de regular, com

observância de limites, poderia orientar-se no sentido da redução do poder punitivo do Estado.

Para ela, a realização dessa possibilidade poderia se dar por meio de um modelo de justiça

restaurativa, que vetasse determinados tipos de penas como a prisão, dado o seu caráter

exclusivamente punitivo, e concedesse maior atenção à vítima, para também julgar e

determinar a resposta ao delito.106 A essa redução do poder punitivo se seguiriam,

obviamente, o aumento das garantias processuais. Para Larrauri, uma justiça restaurativa está

em condições de evitar também o risco de “vinganças privadas” na medida em que cumpre

dois requisitos que entende essenciais: submeter o poder a uma regulação jurídica e outorgar

uma resposta que, ao tempo de orientar-se à resolução do conflito, permita denunciar o dano

social verificado e atribuir responsabilidades.107

judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005. 106 Conquanto não relacionada à proposta abolicionista de Larrauri, vale colacionar, pela clareza da exposição, o seguinte conceito: “A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime. Trata-se de um processo voluntário, relativamente informal, a ter lugar preferencialmente em espaços comunitários, sem o peso e o ritual solene da arquitetura do cenário judiciário, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores, e podendo ser utilizadas técnicas de mediação, conciliação e transação para se alcançar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator.” PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, C.; VITTO, Renato Campos Pinto de; SÓCRATES, Renato Gomes Pinto (orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005, p. 20. 107 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005.

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3.1.2. A intervenção penal di rigida à prevenção de delitos

Como já visto, Ferrajoli justifica a intervenção penal como meio de obstar as

vinganças privadas. No entanto, além dessa, existiria alguma outra justificativa para a

intervenção penal? A resposta, para o pensador italiano, é afirmativa e se dirige exatamente à

prevenção de novos delitos.

Há situações em que ora não se verifica com robusta intensidade uma reprovação

social ao delito (basta pensar nos chamados crimes de colarinho branco, como, por exemplo, a

sonegação fiscal) e ora as vítimas não apresentam um grau de consciência do dano por elas

sofrido pela prática criminosa (imaginem-se as vítimas de crimes contra as relações de

consumo ou mesmo de crimes ambientais). Nesses casos, não parece evidente que ao delito se

seguiria uma reação privada. O garantismo admite que em bastantes hipóteses não existiria

reação privada, mas, então, seria o caso de se recorrer à prevenção de delitos como meio de

justificar a existência da intervenção penal: quando falhar uma razão justificadora, ressurgirá

a outra como critério exclusivo de justificação.

No entanto, vê-se que o recurso à prevenção de delitos esbarra em dois

argumentos robustos: (i) as investigações criminológicas não têm logrado êxito em apontar

que a pena efetivamente previne (ou não) a prática de novos delitos; (ii) por conseqüência, a

prova empírica que Ferrajoli requer para declarar a pena justificada parece de impossível

realização.

Na verdade, qualquer intento de extrair uma conclusão inquestionável esbarra em

diversas dificuldades: erros nos medidores das taxas de delitos, confusão entre os efeitos

incapacitadores e preventivos e a impossibilidade de se isolar os diversos fatores que

concorrem de forma simultânea à prática delituosa. Isso torna tanto mais dificultosa a

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exigência de Ferrajoli de prova empírica do cumprimento da finalidade da pena – prevenção

de delitos – para justificar a intervenção penal.

Ainda, há algumas constatações de caráter criminológico que dificultam a

constatação da finalidade de prevenção de delitos. De saída, cumpre registrar que, para que o

direito penal previna delitos, ele deve ser conhecido. Os delitos mais utilizados para justificar

a incidência da intervenção penal – homicídio, roubo, crimes contra a liberdade sexual — são

precisamente aqueles que menos ameaça de pena requerem, porquanto já são previamente

censurados por normas religiosas, sociais ou culturais (instâncias informais de controle). As

infrações penais que se amparam em violações de normas de nítido caráter técnico – crimes

contra a fé pública, a ordem tributária, o sistema financeiro etc. – não parecem lastrear-se

nesse intuito intimidador da pena. Aliás, para tais crimes, há aqueles que sustentam a

descriminalização, ao argumento de que um adequado controle administrativo seria suficiente.

Demais disso, para aqueles crimes que adentram as chamadas cifras escuras, a

capacidade preventiva do direito penal se vê anulada. Por fim, que eficácia tem o

conhecimento e a existência do direito penal naqueles delitos em que as normas penais

coincidem com as normas sociais? Em casos assim, em que os valores resguardados pela

norma penal não são cultuados por diversos grupos sociais – bastar pensar nos exemplos das

subculturas delinqüentes –, o direito penal não parece justificar-se como meio de prevenção

de delitos.

A imagem de que o castigo previne futuras práticas delituosas parece dirigir-se à

figura do homo oeconomicus. A intervenção penal não parece intimidar aqueles que não

obtêm recompensas suficientes ao agir em conformidade com a lei penal, aqueles que

praticam um comportamento delituoso tantas vezes sem serem apreendidos que passam a

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assumir a pena como um “risco do ofício”, aqueles que já passaram tanto tempo no cárcere

que simplesmente passaram a encará-lo como situação “normal” e aqueles inseridos num

grupo social em que ser encarcerado não representa um demérito ou descrédito.

É de ver que a crítica amparada na idéia de consideração do homo oeconomicus

também se choca com três idéias singelas. Uma, a idéia do homem econômico jamais

pretendeu afirmar que no comportamento delitivo só incidiriam cálculos de custo-benefício,

mas também admite, obviamente, a existência de outros fatores na prática de delitos. Duas,

mesmo os autores contrários à tese da delinqüência racional (ou do homem econômico) não

deixam de reconhecer que os aumentos ou diminuições do grau de probabilidade de ser

apreendido e sancionado de fato incidem sobre o indivíduo. Três, da teoria do comportamento

racional extrai-se uma relevante conseqüência para o quadro geral de uma política criminal

humana: se o que move o indivíduo a praticar um delito diz respeito muito mais aos

benefícios do que a um comportamento legal alternativo, parece evidente que a criminalidade

não apenas se afeta por variáveis de dissuasão, que introduzem maiores custos sobre a ação

delitiva, como também por variáveis nas alternativas legais, que se mostram como mais

vantajosas. Com efeito, relativamente à análise empírica, do lado dos autores que sustentam a

análise econômica do Direito há um arsenal de dados a favor de suas teses que não se

encontra suficientemente desmentido pelos que sustentam idéias contrárias.108

108 Cf. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Eficiência e direito penal. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 18 et seq. O próprio Silva Sánchez adverte que a perspectiva de análise econômica merece críticas por sua redução da racionalidade humana a uma racionalidade utilitária, instrumental, negando toda a importância da racionalidade valorativa. Isso é muito claro ao se observar que as decisões humanas nem sempre relevam considerações de pura utilidade. Porém, ao se aceitar formas de prevenção geral complementares à estritamente intimidatória, como a que tem lugar pela via da comunicação da relevância social do valor protegido pela norma, parece viável admitir tal eficácia preventiva. Enfim, a crítica mais direta que se dirige à análise econômica do Direito tem sido, precisamente, a sua relativa incapacidade de integrar valores.

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A própria figura de Beccaria, segundo o qual a eficácia preventiva da pena

depende mais da certeza de sua aplicação que de sua severidade109, merece considerações.

Uma análise mais detida parece apontar que a “certeza” mencionada requer ainda mais

intervenção do direito penal, que cada vez que se realize um delito o sistema penal ofereça

resposta pronta e formalizada. Esse reclamo que acaba por redundar num recrudescimento –

ao menos quantitativo – da incidência de intervenção penal não parece desejável. De qualquer

sorte, mesmo a perspectiva da certeza de incidência da resposta penal sofre as mesmas críticas

relacionadas à impossibilidade de constatação empírica de seu potencial intimidatório.

De qualquer sorte, apesar dessa ausência de apoio empírico, impende reconhecer

que o fato de o comportamento humano orientar-se e modificar-se mediante incentivos milita

em favor da idéia de prevenção geral. Questionável, porém, é a concepção que disso derivaria

no sentido de que o castigo penal seja o meio mais eficaz frente a todos os comportamentos

sociais que se pretendam evitar.

A negativa do castigo, defendida por algumas vertentes abolicionistas, não

implica negar todas as medidas coercitivas. O abolicionismo não implica pregar o

desaparecimento da polícia, por exemplo. O cerne das críticas dirige-se às medidas coercitivas

orientadas ao castigo em vez da reparação. O próprio Ferrajoli reconhece a inidoneidade do

direito penal, por si só, satisfazer a prevenção dos delitos. No entanto, entre as alternativas por

ele vislumbradas para reação à conduta socialmente lesiva, ainda é a intervenção penal a

solução mais civilizada.

109 “Um dos maiores freios aos delitos não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade e, em conseqüência, a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável, a qual, para ser uma virtude útil, deve vir acompanhada de uma legislação suave. A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre a impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade; pois os males, mesmo os menores, se são inevitáveis, sempre espantam o espírito humano, enquanto a esperança, dom celestial que freqüentemente tudo supre em nós, afasta a idéia de males piores, principalmente quando a impunidade, concedida amiúde pela venalidade e pela fraqueza, fortalece a esperança.” BECCARIA, Cesare. Dos delitos e

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Ainda que se compreenda a justificação da intervenção penal a título de

prevenção, não como um critério orientador à incidência do direito penal, mas como limite à

atuação do poder estatal (para frear ou mesmo deslegitimar algumas intervenções penais e,

com isso, provocar o debate sobre a descriminalização de condutas), é de ver que subsiste a

necessidade de especificar sob que condições a prevenção surge como meio hábil e possível a

justificar a intervenção penal. E mais, que tal finalidade não seja atingida por qualquer outro

meio menos gravoso que o direito penal, dada a necessidade de respeito ao seu caráter

fragmentário.

Em suma, as discrepâncias entre as vertentes abolicionistas e a abordagem

garantista não dizem respeito ao reconhecimento da necessidade de submeter o poder punitivo

a estritos controles jurídicos. A diferença reside na compreensão de que tal objetivo comporta

necessariamente a legitimação do atual modelo punitivo, de suas justificações e de suas penas.

Nada obstante, em que pese a relevância da discussão travada entre as propostas

de um minimalismo penal, como apregoa Ferrajoli, e aquelas de supressão e superação da

própria intervenção penal pelo Estado, como sustentam os abolicionistas, é de ver que os

ordenamentos jurídicos contemporâneos caminham na contramão desses dois movimentos.

Em outras palavras, conquanto seja relevante perquirir acerca da superação das propostas

abolicionistas, hodiernamente, não se pode afastar da discussão acerca das razões da

intervenção penal o evidente movimento de expansão do direito penal como instrumento de

combate à criminalidade.

das penas. Tradução de Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 91-92.

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3.2. A TENDÊNCIA CONTEMPORÂNEA : O RISCO DE UM DIREITO PENAL SIMBÓLICO

Dentro das reflexões político-criminais dos últimos anos, merece destaque a

evolução na legislação penal nominada “expansão do direito penal”, na acepção desenvolvida

por Jesús-María Silva Sánchez.110 O estádio atual da política criminal registra um inegável

diagnóstico de expansão da intervenção penal.

A atividade legislativa em matéria penal desenvolvida ao longo, especialmente,

das duas últimas décadas em países como o Brasil tem sido marcada por três características:

produção de tipos penais cuja legitimação guarda referência a bens jurídicos vagos,

criminalização de estados prévios às lesões efetivas de bens jurídicos e recrudescimento na

imposição de sanções, que muitas vezes revelam-se deproporcionalmente altas. Por meio de

uma cada vez mais densa gama de delitos de manifestação e de organização, o direito penal se

converte em um “direito penal de inimigos”.

A característica do “inimigo”, em contraposição ao “cidadão”, é o abandono

duradouro do Direito e ausência da mínimia segurança cognitiva em sua conduta. A transição

do “cidadão” ao “inimigo” produzir-se-ia mediante a reincidência, a habitualidade, a

delinqüência profissional e, finalmente, a integração em organizações delitivas estruturadas.

Mais que o significado de cada fato delitivo, a marca dessa transição manifestar-se-ia na

dimensão fática de periculosidade, que teria de ser enfrentada pelo direito penal de modo

prontamente eficaz.111 Esse “direito penal de inimigos”, ou de terceira velocidade, como

identifica Silva Sánchez, admitiria inclusive o recurso ao recrudescimento das penas de prisão

110 A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 111 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, 149-150.

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e, concomitantemente, da relativização das garantias substantivas e processuais. Todavia,

trata-se de espécie de intervenção penal que não pode

(…) manifestar-se senão como o instrumento de abordagem de fatos “de emergência”, uma vez que expressão de uma espécie de “Direito de guerra” com o qual a sociedade, diante da gravidade da situação excepcional de conflito, renuncia de modo qualificado a suportar os custos da liberdade de ação.112

Nada obstante, como bem salienta Cornelius Prittwitz, “direito penal como

instrumento de dominação, o que existia e ainda existe, é direito penal do inimigo na sua

forma mais pura e rude. Não necessita para isto do atalho pelo direito penal do risco, que lhe

prepara o caminho, e já existia antes de o conceito de risco nos submeter ao seu domínio e

com isto também ao nosso direito penal”.113

Cumpre enfrentar, ainda que de modo abreviado, algumas características do

fenômeno de expansão do direito penal da atualidade. Nas manifestações da expansão do

ordenamento jurídico-penal, parece que o ponto essencial reside na compreensão de dois

fenômenos: o chamado “direito penal simbólico” e o ressurgimento de um “punitivismo”. Em

todo caso, são fenômenos cuja abordagem destacada e estanque só se justifica para fins

didáticos, uma vez que a evolução legislativa não raro mescla esses dois aspectos.

O direito penal simbólico surge justamente na produção legislativa unicamente

dirigida à produção na opinião pública de uma impressão tranquilizadora de um legislador

atento e decidido. A crescente prioridade assumida pela questão criminal na agenda político-

eleitoral tem produzido um discurso bélico contra o crime, com palavras de ordem como “lei

112 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 150. No mesmo sentido, salientando a necessidade de verificação de um contexto de emergência, cf. JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 142-143. A própria expressão “direito penal de inimigos” é cunhada por Jakobs. 113 PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre o direito penal do risco e direito penal do inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 12, n. 47, março-abril 2004, p. 44.

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e ordem” ou “tolerância zero”, que permeia os canais de comunicação social e a forma como

as instituições, não somente penais, identificam e confrontam os seus conflitos de integração

social. É o que afirma com precisão Theodomiro Dias Neto:

Na retórica e na prática, observa-se com nitidez a construção de um conceito deturpado de eficiência do sistema de justiça criminal – o discurso do “eficientismo penal” – fundado em falsa contraposição de dois interesses igualmente legítimos e necessários: a aplicação da lei penal e a proteção das garantias individuais. O objetivo de assegurar a “eficiência da justiça penal”, que no Estado de Direito deve ser ponderado com outros interesses, converte-se em argumento legitimador de reformas legislativas e administrativas, voltadas ao esvaziamento das garantias processuais do suspeito e do acusado e ao recrudescimento dos poderes investigatórios e punitivos do Estado.

O Direito Penal se afasta de sua função precípua de controle do emprego da força pelo Estado, de “infranqueável barreira da política criminal” (v. Liszt), para converter-se em instrumento de combate à criminalidade.114

O fenômeno dos tempos atuais é justamente a inflação penal.115 A norma penal

não reflete um meio de constituição da identidade da sociedade – é dizer, para marcar o

mínimo de convivência – ou para resolver um determinado problema social em termos de

prevenção (instrumental) do delito, senão que a aprovação da norma em si e sua publicização

são a solução – evidentemente, apenas aparente – para o enfrentamento da criminalidade.116

De qualquer forma, o recurso ao direito penal não apenas aparece como

instrumento para produzir tranqüilidade mediante o mero ato de promulgação de normas

evidententemente destinadas a não serem aplicadas, mas também é possível vislumbrar

processos de criminalização incidente sobre os “antigos costumes”, como sustenta Cancio

Meliá, isto é, a introdução de novas normas penais com a intenção de promover sua efetiva

aplicação. Em outras palavras, cuida-se de fomentar processos que conduzem a normais

114 DIAS NETO, Theodomiro. Segurança urbana: o modelo da nova prevenção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 94-95. 115 Cf. CRESPO, Eduardo Demetrio. Do “direito penal liberal” ao “direito penal do inimigo”. In: Ciências penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, a. 1, n. 1, julho-dezembro 2004, p. 28 et seq. 116 MELIÁ, Manuel Cancio. Dogmática y política criminal en una teoría funcional del delito. In: JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Sobre la génesis de la obligación jurídica. Teoría y praxis de la

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penais novas que são aplicadas tão-somente para o recrudescimento das penas previstas em

normas já existentes anteriormente.

Parece evidente, portanto, a tendência atual do legislador de reagir com firmeza,

recrudescendo penas previstas em determinados setores do direito penal, para vincar o direito

penal como marco na luta contra a criminalidade.117 Hassemer igualmente vislumbra essa

tendência do legislador, em termos de política criminal moderna, em utilizar-se dessa reação

simbólica, em adotar um direito penal simbólico. Todavia, é certo que aqueles que contam

com um mínimo de trato com o sistema de Justiça criminal sabem que os instrumentos

utilizados numa intervenção dessa natureza não são aptos para tratar efetiva e eficientemente

da criminalidade real. Em outras palavras, os instrumentos utilizados pelo direito penal são

reconhecidamente ineptos para combater a realidade criminal. Por exemplo: aumentar penas,

apenas, não tem nenhum sentido empiricamente.

O legislador – que sabe que a política adotada é ineficaz – faz de conta que está inquieto, preocupado e que reage imediatamente ao grande problema da criminalidade. É a isso que eu chamo de “reação simbólica” que, em razão de sua ineficiência, com o tempo a população percebe que se trata de uma política desonesta, de uma “reação puramente simbólica”, que acaba se refletindo no próprio Direito como meio de controle social.118

Manuel Cancio Meliá igualmente registra com precisão:

injerencia. El ocaso del dominio del hecho. Dogmática y política criminal en una teoría funcional del delito. Buenos Aires: Rubinzal Culzoni Editores, Universidad Nacional del Litoral, [s. d.], p. 126 et seq. 117 Elena Larrauri, com esteio em Cohen, chega a vislumbrar na função simbólica do direito penal, especialmente a partir da década de 1980 e em superação ao paradigma então fixado pela criminologia cítica, um novo paradigma, nominado por ela como “nova criminalização”. Cf. LARRAURI, Elena. La herencia de la criminología crítica. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 1991, p. 218. 118 HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna política criminal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 2, n. 8, outubro-dezembro 1994, p. 43. Hassemer chama a atenção para a preocupação atual da política criminal com a eficiência, com o êxito, enfim, em ter respostas contra a criminalidade. No entanto, afirma ele que essa preocupação revela apenas parte do problema. Isso porque a política criminal e o próprio direito penal possuem um aspecto normativo – o aspecto da Justiça – que tem por escopo o equilíbrio entre o combate da criminalidade e a proteção jurídica dos atingidos pelo processo penal. A tendência ao esquecimento desse aspecto normativo é evidente quando os ordenamentos atuais se voltam apenas a uma luta contra a criminalidade, valendo-se do direito penal como instrumento dessa “guerra”. Adverte o pensador alemão que o direito penal também guarda uma tradição normativa de proteção jurídica e não apenas de eficiência e de luta (p. 43).

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O que acontece é que, na realidade, a denominação “direito penal simbólico” não faz referência a um grupo bem definido de infrações penais caracterizadas por sua inaplicabilidade, por falta de incidência real à “solução” em termos instrumentais. Tão-somente identifica a especial importância outorgada pelo legislador aos aspectos de comunicação política a curto prazo na aprovação das correspondentes normas. E esses efeitos podem chegar a estar integrados em estratégias mercado-técnicas de conservação do poder político, chegando até a gênesis consciente na população de determinadas atitudes em relação a fenômenos penais que depois são “satisfeitos” por forças políticas.119

A criminalização de determinadas condutas como mecanismo de repressão para a

manutenção do sistema político-econômico de dominação se configura uma das causas desse

movimento de expansão do direito penal. Além disso, o fenômeno da globalização igualmente

veicula (pretensa) justificativa para esse aumento da intervenção penal.

A globalização – fenômeno de natureza econômica, verificado a partir da década

de 70 do século XX com as duas quedas do petróleo e a transformação radical do sistema

financeiro delas advinda, que acabou por alterar o próprio modelo econômico do capitalismo

– apresenta duas grandes notas distintivas: a aceleração do processo tecnológico e o vultoso

aumento da circulação das mercadorias e capitais. Por conseqüência, observa-se a pronta

necessidade de maior rapidez dos processos decisórios. É nesse quadro que surge o

distanciamento entre o chamado tempo do Direito (por natureza, diferido) e o tempo real

(marcado pela necessária simultaneidade). O campo decisório, portanto, desloca-se do campo

político para o campo econômico; de uma visão da economia nacional para uma abordagem

das relações internacionais; dos poderes públicos para os poderes privados internacionais. A

produção legislativa, como não poderia deixar de ser, caminha para um processo decisório

que reflete as necessidades econômicas, as quais, nas mais das vezes, assumirão perfis

antijurídicos, antipolíticos e antidemocráticos.120

119 MELIÁ, Manuel Cancio. Dogmática y política criminal en una teoría funcional del delito. In: JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Sobre la génesis de la obligación jurídica. Teoría y praxis de la injerencia. El ocaso del dominio del hecho. Dogmática y política criminal en una teoría funcional del delito. Buenos Aires: Rubinzal Culzoni Editores, Universidad Nacional del Litoral, [s. d.], p. 134. 120 FARIA, José Eduardo (org.). Direito e globalização econômica: implicações e perspectivas. São Paulo: Malheiros, 1998, passim. Cf., igualmente, em trabalho anterior: SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. O

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Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini apontam algumas tendências político-

criminais e transformações sofridas pelo direito penal na era da globalização. São tendências:

a descriminalização dos crimes anti-globalização; a globalização da política criminal, da

cooperação policial e judicial e da Justiça criminal. Seguidamente, são transformações

sofridas pelo direito penal em decorrência do processo de globalização: a globalização dos

crimes e dos criminosos, dos bens jurídicos, das vítimas, da explosão carcerária, da

desformalização da justiça penal e o agravamento incessante da hipertrofia do direito penal.121

Ao direito penal o processo de globalização acresce uma característica

fundamental: quanto mais a economia cresce, mais ela automatiza a produção e recrudesce os

problemas sociais (desemprego, desalento da comunidade etc.). Em última análise, o

crescimento da economia implica um gravame dos problemas sociais. É certo que a atualidade

também oferece respostas para esse problema (terceiro setor, desenvolvimento do serviço

informal, incremento do setor de serviços etc.), mas não uma solução hábil a realmente afastá-

lo. Evidencia-se, não há como negar, uma crise do próprio projeto do constitucionalismo,

marcadamente monocêntrico, que se vê diante do inarredável processo globalizante, de nítido

caráter policêntrico.

Vive-se hoje um contexto de pós-modernidade político-jurídica, entendido como a

imposição de regras de controle social internacional pelos países centrais aos países

periféricos. Estes são obrigados a passar da pré-modernidade em que vivem à pós-

modernidade do controle legal e, de fato, extraterritorial.122 A especificidade dos grupos

sociais nessa conjuntura pós-moderna dificulta a imposição de normas de conduta

papel do Ministério Público na investigação do crime organizado. In: Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, v. 11, n. 22, julho-dezembro 2003, p. 35-54. 121 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. O direito penal na era da globalização. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 19 et seq.

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sedimentadas, cristalizadas, genéricas, abstratas. Em outras palavras, vislumbra-se um

contexto de regras simples demais para grupos heterogêneos demais.123

A sociedade pós-industrial não abre mão de um complexo aparato tecnológico. Há

um verdadeiro incremento dos riscos, especialmente de procedência humana. Daí se falar que

a sociedade pós-industrial é uma sociedade de risco. A questão que se coloca à discussão é a

seguinte: o paradigma do direito penal do iluminismo ainda se presta a essa sociedade de

risco?124 Ou, de outra forma, um sistema de orientação funcionalista, mas orientado a valores

extraídos de um programa de política criminal esculpido no texto constitucional, não se presta

a servir de lastro à legitimação da intervenção penal?

Na esteira do que já foi sublinhado acerca do descompasso entre o tempo do

Direito e o tempo real, permite-se observar também um hiato entre a velocidade das mudanças

verificadas no seio social e a velocidade do discurso jurídico contemporâneo. A dogmática

penal está diante de um grave dilema: ou abraça essa expansão de seus domínios e desenvolve

122 O conceito é extraído de VIDAURRI, Alicia González. Globalización, post-modernidad y política criminal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, outubro-dezembro 2001, p. 15-16. 123 As organizações criminosas seriam decorrentes desse contexto globalizado, embora a valer o combate a tal criminalidade revele um discurso de poder contra inimigos internos. Juarez Cirino dos Santos registra que “a experiência mostra que a resposta penal contra o crime organizado se situa no plano ‘simbólico’, como espécie de satisfação retórica à opinião pública mediante estigmatização oficial do crime organizado – na verdade, um discurso político de evidente utilidade: exclui ou reduz discussões sobre o modelo econômico neoliberal dominante nas sociedades contemporâneas e oculta a responsabilidade do capital financeiro internacional e das elites conservadoras dos países do Terceiro Mundo na criação de condições adequadas à expansão da criminalidade em geral e, eventualmente, de organizações locais de tipo mafioso.” SANTOS, Juarez Cirino dos. Crime Organizado. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 11, n. 42, janeiro-março 2003, p. 222-223. 124 Segundo Silva Sánchez, “o paradigma do Direito penal da globalização é o delito econômico organizado (ainda que haja outros muito relevantes como terrorismo, narcotráfico ou criminalidade organizada – de armas, drogas ou crianças). A delinqüência da globalização é a delinqüência econômica, para a qual se tende a fixar menos garantias pela menor gravidade de suas sanções, ou é a criminalidade (da classicamente denominada legislação) excepcional, para a qual se tende a estabelecer menos garantias pelo enorme potencial de risco que contém.” SÁNCHEZ, Jesús-María. El derecho penal ante la globalización y la integración supranacional. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 6, n. 24, outubro-dezembro 1998, p. 77. No original: “El paradigma del Derecho penal de la globalización es el delito económico organizado (aunque haya otros muy relevantes con el terrorismo, narcotráfico o criminalidad organizada – armas, blancas, niños). La delincuencia de la globalización es delincuencia económica, a la que se tiende a asignar menos garantías por la menor gravedad de las sanciones, o es criminalidad (de la clásicamente

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soluções dogmáticas flexíveis e apropriadas para esse novo tipo de criminalidade ou critica

essa utilização invasiva da ultima ratio estatal e impõe os conceitos tradicionais do direito

penal como barreiras infranqueáveis a essas novas tendências.

Merece destaque a abordagem alvitrada por Jesús-María Silva Sánchez. Com

efeito, a resposta mais adequada ao problema da intervenção estatal nas sociedades pós-

industriais guarda relação com diferentes regras de imputação a partir do concreto modelo

sancionatório, de sorte a observar adequadamente garantias e direitos. Para ele, então, o

direito penal passaria a ter uma configuração dual, atuando em duas velocidades.125

De um lado, haveria um direito penal nuclear, de velocidade reduzida, mais

próximo do amplo sistema de direitos e garantias, voltado à imposição de penas privativas de

liberdade e próprio da criminalidade tradicional que se conhece. De outro lado, um direito

penal mais distante desse sistema de garantias (periférico), cujas sanções seriam quase que de

caráter administrativo, e que absorvesse soluções dogmáticas que favorecessem a incidência

do direito penal, ainda que se afastando desse rígido sistema de garantias. Conquanto não se

olvide a crítica acerca do evidente risco de que essa configuração dual culmine no

esmagamento do direito penal nuclear pelo referido direito penal periférico, a abordagem

dualista de Silva Sánchez responde, ao menos como proposta dogmática, à conformação do

direito penal das sociedades pós-industriais ou sociedades de risco.126

denominada legislación) excepcional, a la que se tiende a asignar menos garantías por el enorme potencial peligroso que contiene.” 125 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 150. No mesmo sentido, salientando a necessidade de verificação de um contexto de emergência, cf. JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 144 et seq. 126 A respeito dessa resposta mais rápida, com imposição de sanções diversas da privação de liberdade, registre-se o posicionamento de Winfried Hassemer, partidário do desenvolvimento de um “direito de intervenção”, com sanções que mesclem conseqüências do direito tributário, civil, administrativo etc., a fim de que o Estado conte com uma resposta estatal rápida, eficiente e que, ao mesmo tempo, não vulenre garantias mínimas a uma intervenção do Estado por seu instrumento de controle social mais grave. Cf. HASSEMER, Winfried. História

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É de ver que esse direito penal periférico guarda, como se verá, sua justificativa

num assento funcionalista-sistêmico, tal como delineado por Günther Jakobs. Embora as

críticas a tal abordagem tenham merecido ponto específico na presente investigação, como se

verá no capítulo seguinte, é possível adiantar desde logo a seguinte assertiva que guarda

referência com o movimento de expansão do direito penal:

A teoria funcionalista do direito penal de Jakobs (…) tem propiciado o esvaziamento do pensamento garantístico e do direito penal mínimo, balaústres do direito penal do Estado Democrático de Direito, e, neste contexto, tem propiciado a expansão regulatória do Estado, permitindo, com isso, a contensão dos excluídos da economia globalizada.127

Zaffaroni, então, com a clareza que lhe é peculiar, sistematiza e enumera as

características (e algumas conseqüências) dessa tendência expansiva e simbólica da legislação

penal, registrando como evidente e inevitável, em curto prazo, uma deterioração dos direitos

humanos historicamente conquistados: a) renúncia ao princípio da lesividade; b) a legitimação

de provas ilícitas introduzidas em processos excepcionais (que tendem a se ordinarizar); c) o

desenvolvimento de um direito penal de velocidades: um com maiores garantias para os

débeis e outro com menores garantias para os poderosos, ignorando que o último (o de

menores garantias) acabará por alcançar os menos poderosos, os não poderosos que aspiram

ao poder ou aqueles que o perderam e que, ademais, terminarão por também se tornarem

comuns; d) reconhece-se que o direito penal para os poderosos será de aplicação mais

excepcional, razão pela qual se propõe compensar a impunidade com mais pena para os

poucos casos em que se lhe aplique: tal regra, carente de qualquer lógica, acabará por

culminar na aplicação de penas mais graves aos menos poderosos para que creiam eles na sua

das Idéias Penais na Alemanha do Pós-Guerra. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, ano 29, n. 118, abril-junho 1993, p. 237-282. Igualmente, cf. HASSEMER, Winfried. Segurança Pública no Estado de Direito. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 2, n. 5, janeiro-março 1994, p. 55-69. O tema objeto do presente ponto é abordado de forma profunda e bastante esclarecedora por Eduardo Medeiros Cavalcanti. Crime e sociedade complexa. Campinas: LZN, 2005, passim, especialmente p. 183 et seq. 127 BICUDO, Tatiana Viggiani. A globalização e as transformações no direito penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 6, n. 23, julho-setembro 1998, p. 106.

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(falsa) eficácia; e) quanto menos grave for a pena, menores serão as garantias a serem

observadas para sua imposição; f) o resultado de uma abordagem que pretende diminuir as

garantias para a imposição de penas aos poderosos, “menos poderosos” ou não poderosos,

bem assim das penas leves acabará por culminar na redução das garantias para todas as

penas.128

O problema de uma resposta penal açodada e puramente simbólica reside

justamente na utilização de instrumentos despóticos, distantes – para não dizer contrastantes –

dos postulados de um Estado democrático de Direito. Ao lado dessa manifestação simbólica

da intervenção penal percebe-se um direcionamento a uma criminalização irrefreada e a um

maciço encarceramento da miséria.129 É precisa a crítica de Alice Bianchini, quando, após

registrar, com apoio em Heleno Fragoso, que o aumento da criminalidade guarda vinculação

estreita com a estrutura social profundamente injusta e desigual, assevera o seguinte:

As produções legislativas requerem o incremento da repressão, os atos administrativos premiam projetos que a contemplem, as decisões judiciais não exercitam a imaginação de alternativas. A opinião pública, rancorosa e equivocada, pede e obtém mais formas de vingança e retaliação, modos de talionato, sem se dar conta de que contraria o discurso que ela mesma faz sobre direitos humanos, o qual, por sua vez, pressupõe a aplicação de princípios democráticos de direito penal, seja no momento em que se elabora a lei, seja quando se a aplica e executa.130

Uma das características da legislação moderna, pois, é o crescente recurso a

instrumentos jurídico-penais. De um lado, o direito penal é, quando comparado com a

implantação de mecanismos jurídico-administrativos alternativos, numa perspectiva

128 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La globalización y las actuales orientaciones de la política criminal. In: COPETTI, André (org.). Criminalidade moderna e reformas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 157-158. 129 A referência aqui à idéia de cárcere da pobreza é ao pensamento de Loïc J. D. Wacquant (Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2003, 168 p.). Sobre os exorbitantes custos dessa “luta contra a pobreza”, cf. Wacquant, Loïc J. D. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 89, et seq. 130 BIANCHINI, Alice. Considerações críticas ao modelo de política criminal paleorrepressiva. In: Revista dos Tribunais . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 89, vol. 772, fevereiro de 2000, p. 455-462.

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econômica, muito mais barato.131 De outro lado, seus efeitos sociais sobre a opinião pública

podem ser, ao menos a curto ou médio prazo, superiores aos demais mecanismos alternativos,

por parecer um instrumento especialmente apto a lograr a confiança e a aprovação no

funcionamento do ordenamento jurídico (prevenção geral de integração).

Entretanto, essa eficiência do “direito penal moderno” é apenas aparente,

incidindo tão-somente no âmbito psicológico-social dos sentimentos de insegurança. Em

outras palavras, converte-se, frise-se uma vez mais, num mecanismo puramente simbólico e

distante do terreno instrumental. É certo que um direito penal eficiente será seguramente

funcional, mas não está claro que um direito penal funcional precise ser realmente eficiente

(bastaria a aparência de eficiência).132 Se um direito penal de prevenção geral positiva reduz-

se a um direito meramente simbólico, de pura aparência de eficiência, a médio ou a longo

prazo, certamente não cumprirá sua função de prevenção de integração. Constituir-se-á, de

fato, num dos mais claros exemplos de direito ineficiente, pois, com custos supostamente

baixos, de fato, não haverá conseguido benefício real algum.

Sob uma abordagem conseqüencialista em sua vertente econômica133, o delito, na

qualidade de ato ineficiente, deve ser neutralizado pela sociedade, que busca alcançar

precisamente a eficiência. Para tanto, dispõe, em princípio, de várias linhas de atuação. Sob

um viés, vê-se a prevenção fática, que trata de impedir pela via fática a realização de tais atos

ineficientes. Tal modelo se mostra enormemente custoso, além de culminar, em última

medida — e na linha das críticas já dirigidas às propostas abolicionistas -, na perda global da

liberdade.

131 Essa constatação já foi lançada de modo singelo em opúsculo anterior. Cf. SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. Excessiva produção legislativa de matéria penal. In: Jus Navigandi. Teresina, a. 2, n. 26, set. 1998. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=935>. Acesso em: 20 junho 2005. 132 Cf. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Eficiência e direito penal. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 53-54.

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Sob outro viés, o modelo estabelecido de modo central (sem prejuízo de sua

conjunção com outros) é essencialmente distinto: o modelo de prevenção geral por normas.

Por este, a neutralização ou redução dos atos ineficientes se faz por uma via muito menos

custosa. Parte-se da constatação de que os destinatários da norma são sujeitos que, em sua

atuação, seguem cálculos de “custo-benefício”. A norma incide sobre todos os cidadãos,

inclusive os potenciais delinqüentes, introduzindo-lhes custos adicionais a serem sopesados

quando da eventual prática de um delito. O direito penal, para ser eficaz em sua pretensão de

alcançar a eficiência social, deve, em definitivo, configurar suas normas partindo da idéia de

que os sujeitos destinatários vão realizar um “cálculo de eficiência”. Tal apreciação conduz a

um direito preventivo, aliás, preventivo-geral, e, enfim, baseado de modo central na

dissuasão: prevenção geral intimidatória.

Os custos da prática do delito devem superar os benefícios que o agente espera

obter e que, em última análise, não compensem a empreitada criminosa (crime does not pay).

A modalidade de prevenção geral por normas é a menos custosa e, nessa medida, mais

eficiente. Entretanto, e aqui reside o maior equívoco dos recentes diplomas legislativos

editados sob uma ótica paleorrepressiva, essa prevenção geral não deve se consubstanciar

numa prevenção por normas penais. Com efeito, dever-se-ia primeiramente tratar de

neutralizar a prática de atos ineficientes por meio de mecanismos indenizatórios (por

exemplo, responsabilidade civil). A indenização deveria ser mesmo superior ao valor legal

estimado de perda da vítima. Além disso, deve-se considerar de modo essencial o problema

da probabilidade de imposição e cumprimento efetivos da indenização. Nos casos em que a

indenização resulta acima das possibilidades de pagamento do indivíduo, recorrer-se-ia ao

direito penal. De fato, só se deverá fazer uso do direito penal, segundo os princípios da

133 Cf. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Eficiência e direito penal. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 25 et seq.

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necessidade e da subsidiariedade, quando o efeito perseguido não puder ser alcançado por

meio do mecanismo jurídico-civil.

Reclamos de criminalização que não se mostrem vinculados a uma pauta

constitucional de valores, como se verá mais adiante, e que acabem por evidenciar uma

utilização simbólica da intervenção penal pelo Estado implicam, entre outras conseqüências, a

simplificação de problemas sociais não tão facilmente redutíveis e, ademais, a radicalização

de conflitos sociais. Este último ponto enraíza-se na tendência que tem o direito penal

simbólico de atuar segundo uma lógica “amigo-inimigo”, para a qual necessita produzir um

clima de indignação moral.134

Verifica-se, ademais, a ausência de um conceito material de bem jurídico. Perde o

bem jurídico seu caráter de critério negativo – segundo a acepção levada a efeito pelo

iluminismo clássico – e converte-se um critério positivo para justificar decisões

criminalizadoras.135 Diante desse panorama de expansão impensada do direito penal, sem a

preocupação de uma intervenção penal que se pretenda legítima, revela-se imperioso que o

intérprete volte seus olhos à reestruturação de uma intervenção penal que implique verdadeira

síntese entre a abordagem ôntica e a consideração valorativa, sem descurar de uma

preocupação de aptidão funcional a caracterizar o direito penal. É o que se verá a seguir.

134 Cf. ZORILLA, Carlos González. Para qué sirve la criminología? Nuevas aportaciones al debate sobre sus funciones. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 2, n. 6, abril-junho 1994, p. 21. A simplificação do processo de delimitação do âmbito de intervenção penal acarreta, ainda, uma supressão de todo o trabalho de definição dos elementos constitutivos da infração, na contramão de um sem número de princípios jurídicos, com destaque para o princípio da legalidade, bem como um nítido enfraquecimento da especificidade penal, uma vez que a infração passa a ser de difícil identificação, em virtude de um processo de “parcelização do direito penal”. Para mais detalhes, cf. DELMAS-MARTY, Meirelle. Os grandes sistemas de política criminal. Tradução de Denise Radanovic Vieira. Barueri: Manole, 2004, p. 8. 135 Cf. FARIA, Denise de Amorim. As deformações do Direito penal tradicional e a ausência de paradigma. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 21 outubro 2003. A mesma observação é desenvolvida em SÁNCHEZ, Alfredo Cirino. La crisis del derecho penal y el diseño de la política criminal en Latinoamérica. In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, n. 8, 2001. p. 71-72.

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CAPÍTULO 4 – A abordagem funcionalista do direito penal

4.1. O FUNCIONALISMO SOCIOLÓGICO NO DIREITO PENAL

O educador e sociólogo norte-americano Robert Merton, um dos nomes mais

relevantes da teoria estrutural-funcionalista do desvio e da anomia, foi o responsável pela

conversão da teoria da anomia de Émile Durkheim em teoria da criminalidade, imbuído da

intenção de delinear um modelo de explicação do comportamento desviante. É a teoria

estrutural-funcionalista, originalmente esboçada por Durkheim136, que representa, segundo

Alessandro Baratta, “a virada em direção sociológica efetuada pela criminologia

contemporânea”137. Tal teoria insere-se no seio do movimento funcionalista, corrente

criminológica de inegável influência tanto em seu surgimento quanto no momento atual, e

constitui referência obrigatória na compreensão do importante processo de revisão crítica da

criminologia antes voltada para a linha biológica e caracterológica. O funcionalismo

desenvolvido por Merton pressupõe uma abordagem, ainda que superficial, das idéias

lançadas por Émile Durkheim.

Durkheim parte da constatação de que é constante o volume da criminalidade, ou

seja, de que é inevitável a existência, independentemente do lugar ou mesmo do momento

histórico, de uma taxa incessante de criminalidade. Para ele, o crime é um comportamento

“normal”, porquanto não possui caráter patológico; “ubíquo”, dado que é praticado por

pessoas, indiferentemente da camada social a que pertençam ou do modelo de sociedade em

que vivam; e derivado não de anomalias do indivíduo nem da própria “desorganização

136 A referência aqui é justamente às obras clássicas: DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999; DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. Trad. Eduardo Brandão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999; DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo de sociologia. Trad. Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 137 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, Instituto Carioca de Criminologia, 1999, p. 59.

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social”, mas das estruturas e fenômenos cotidianos inerentes a uma ordem social intacta.138

Segundo Durkheim, “o que é normal é simplesmente que haja uma criminalidade, contanto

que esta atinja e não ultrapasse, para cada tipo social, certo nível que talvez não seja

impossível fixar de acordo com as regras precedentes”139. O anormal, portanto, não é a

inexistência do delito, mas um repentino incremento ou descenso dos números médios ou das

taxas de criminalidade.

Chega ele a afirmar que o crime é necessário, porquanto decorre logicamente das

condições fundamentais da organização social. Nessa linha de pensamento, assevera

Durkheim que, “se é normal que haja crimes, é normal que sejam punidos. A penalidade e o

crime são os dois termos de um par inseparável. Um não pode faltar mais que o outro.

Qualquer afrouxamento anormal do sistema repressivo tem por efeito estimular a

criminalidade e lhe conferir um grau de intensidade anormal”.140 O crime, portanto, embora

não seja o objeto central de seu estudo, exerce, segundo Durkheim, uma função integradora e

inovadora. Segundo ele, “o crime é, portanto, necessário, ele está ligado às condições

fundamentais de toda vida social e, por isso mesmo, é útil pois as condições de que ele é

solidário são elas mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e do direito”141. Ao

afirmar que o crime pode inclusive representar uma antecipação da moral por vir, sustenta que

o criminoso pode atuar como um agente regular da vida social, afastando-se da idéia de que o

criminoso é um ser radicalmente insociável.

138 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 27. 139 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 67. 140 DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo de sociologia. Trad. Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 473. 141 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 71.

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Durkheim entende que, uma vez que a conduta delituosa fere os sentimentos

coletivos, a pena constitui a reação social necessária, atualizando sentimentos coletivos

atingidos e reforçando a vigência de determinados valores e a convicção coletiva sobre o

significado destes. Nessa toada, ganha relevo o conceito de anomia, vocábulo de procedência

grega que tem origem na expressão anomos: a representa ausência, inexistência, privação de;

e nomos, lei, norma. Numa acepção estritamente etimológica, anomia significa falta de lei, ou

falta de norma de conduta.

Para Durkheim, que primeiro vale-se dessa expressão em seu sentido etimológico,

ligado a uma tentativa de explicação de certos fenômenos sociais, a anomia traduz-se pela

crise, pela perda de efetividade ou pelo desmoronamento das normas e dos valores vigentes

em uma sociedade, precisamente como conseqüência do rápido e acelerado desenvolvimento

econômico dessa mesma sociedade e de suas profundas alterações sociais que debilitam a

consciência coletiva142. Preocupado em pôr termo à anomia, Durkheim propõe que sejam

atenuadas as desigualdades externas. Sugere, então, que é necessário “encontrar os meios para

fazer esses órgãos que ainda se chocam em movimentos discordantes concorrerem

harmoniosamente (…) introduzir em suas relações mais justiça, atenuando cada vez mais

essas desigualdades externas que são a fonte do mal”143. Preocupado com essa aptidão

funcional do sistema, assevera ele:

Não se trata mais de perseguir desesperadamente um fim que se afasta à medida que avançamos, mas de trabalhar com uma regular perseverança para manter o estado normal, para restabelecê-lo se for perturbado, para redescobrir suas condições se elas vierem a mudar. O dever do homem de Estado não é mais impelir violentamente as sociedades para um ideal que lhe parece sedutor, mas seu papel é o do médico: ele previne a eclosão das doenças mediante uma boa higiene e, quando estas se manifestam, procura curá-las.144

142 MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 350-351. 143 DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. Trad. Eduardo Brandão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 432. 144 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 76.

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Robert Merton, na esteira de Durkheim, combate a noção patológica do desvio,

para assentá-lo como um produto da estrutura social.145 O fenômeno do crime decorreria das

relações existentes entre a estrutura cultural e a estrutura social e do modo como os indivíduos

reagem à tensão que habita entre as duas.146 A má interação entre a estrutura cultural e a

estrutura social produz uma tensão que pode acarretar o rompimento das normas ou o seu total

desprezo. Um quadro de defasagens é que possibilita o surgimento da anomia e gera o

comportamento desviante. Essas tensões colocam os membros da sociedade em situação de

conflito ou pelo menos de desequilíbrio, só podendo prosseguir objetivos sacrificando as

normas ou vice-versa.147

Merton observou que a sociedade norte-americana, ao estabelecer como alvo geral

para todos os componentes da sociedade a meta de sucesso pessoal que envolve riqueza e

prestígio e ao deixar de proporcionar, com a mesma generalidade, os instrumentos prescritos

ou admitidos para atingir aquelas metas, criou condições específicas para estimular o

abandono ou a burla das normas socialmente fixadas para se atingir as metas culturalmente

estabelecidas. A conduta divergente substancia, pois, no pensamento mertoniano, uma reação

145 Merton, ao desenvolver a teoria estrutural-funcionalista do desvio e da norma, inicialmente esboçada por Durkheim, fixa os seguintes postulados: 1) as causas do desvio não devem ser atribuídas a fatores bioantropológicos e naturais, tampouco a uma situação patológica da estrutura social; 2) o desvio representa um fenômeno normal de toda estrutura social; 3) o comportamento desviante, por conseqüência, dentro de seus limites funcionais, constitui um fator necessário e útil para o equilíbrio e o desenvolvimento sociocultural, o que não ocorre quando são rompidas essas amarras e transpostos esses limites, estágio em que o fenômeno do desvio se torna negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutura social, donde resulta um estado de desorganização, no qual todo o sistema de normas de conduta perde valor, enquanto um novo sistema ainda não se impôs, o que corresponde à situação de “anomia”. Nesse sentido, FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 35; BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora; Instituto Carioca de Criminologia, 1999, p. 59-60. Acerca desse ponto, García-Pablos Molina chega a afirmar que “o delito seria funcional no sentido de que tampouco seria um fato necessariamente noviço, prejudicial para a sociedade, senão todo o contrário, é dizer, funcional, para a estabilidade e a mudança social” (MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 349). 146 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 36. 147 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia : o homem delinqüente e a sociedade criminógena. 2. reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 325.

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normal a uma situação social definida e determinada.148 Diante disso, delineia uma tipologia

dos modos, abstratos e típicos, de adaptação individual às demandas do binômio composto

pelos valores culturais (objetivos ou fins culturais) e penas normais sociais (meios

institucionais): a) conformidade ou conformismo; b) inovação; c) ritualismo; d) evasão,

retraimento, apatia ou fuga do mundo; e e) rebelião.149

Cumpre registrar, no entanto, que o conceito de anomia desenvolvido por Merton

não se confunde com aquele construído por Durkheim. Para Merton, que converte a idéia de

anomia numa teoria da criminalidade, a anomia não traduz apenas desmoronamento ou crise

de alguns valores ou normas em razão de determinas circunstâncias sociais, senão, antes de

tudo, o sintoma ou expressão do vazio que se produz quando os meios socioestruturais

existentes não servem para satisfazer as expectativas culturais de uma sociedade.150

Figueiredo Dias e Costa Andrade esclarecem a distinção entre as duas construções teóricas:

Em primeiro lugar, MERTON louva-se no caráter sistemático da sua teoria: por ter a medida das variáveis estruturais do próprio sistema e por oferecer uma explicação de todo o comportamento desviante em geral, superando o carácter avulso da explicação durkheimiana. Em segundo lugar, MERTON abandona completamente a idéia durkheimiana das necessidades humanas naturalmente ilimitadas e insaciáveis. Para Merton, todos os estímulos potenciadores da acção humana (designadamente os objetivos ou goals que, grosso modo, desempenham um papel homólogo ao das necessidades de DURKHEIM) são socialmente induzidos.151

A estrutura sociocultural, consoante Merton, exerce uma pressão sobre os

membros da sociedade, que pode levar à anomia e ao comportamento desviante, entre os

quais aquele considerado criminoso. De qualquer sorte, nem sempre esse sistema competitivo

resulta em anomia: esta só se verifica quando a ênfase cultural se transfere das satisfações

148 Já dizia Beccaria que “a maneira mais segura de prender os cidadãos à pátria é aumentar o bem-estar relativo de cada um” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 114). 149 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 41 et seq. 150 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 79; MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 351.

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derivadas da competição em si para a preocupação quase exclusiva com a conseqüência.

Merton, outrossim, distingue três graus de anomia: 1) o “simples”, estado de confusão em um

grupo ou sociedade suscetível ao conflito entre sistemas de valores, daí resultando um certo

nível de inquietação e uma sensação de separação em relação ao grupo; 2) o “agudo”, quando

se verifica a deterioração dos sistemas de valores; e 3) o “agudo extremo”, mais grave, em

que há a desintegração dos sistemas aludidos, que produz notáveis ansiedades.152

É certo que os postulados do funcionalismo não apresentam respostas definitivas

para a explicação do fenômeno da criminalidade, mas fornecem importantes subsídios para a

sua melhor compreensão, especialmente de algumas de suas feições, além de representar a

guinada da criminologia contemporânea ao rumo sociológico. De qualquer forma, impende

registrar que as teorias da anomia são macrossociológicas e, por isso mesmo, revelam

elevados níveis de abstração, ou seja, “algumas de suas formulações pecam, inclusive, por um

notável déficit empírico encoberto por uma desmedida carga especulativa”153.

Alessandro Baratta entende que o pensamento funcionalista restringe a sua

análise, nos moldes da sociologia tradicional, ao fenômeno da distribuição de recursos, de

modo a deixar de lado o nexo funcional objetivo que reconduz a criminalidade de colarinho

branco (white collar crime) e a grande criminalidade organizada à estrutura de produção e ao

processo de circulação do capital154. Além disso, o penalista italiano igualmente aponta a

índole conservadora do pensamento funcionalista, por vislumbrar nas teorias funcionalistas

uma função ideológica estabilizadora, “no sentido que possuem, sobretudo, o efeito de

151 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia : o homem delinqüente e a sociedade criminógena. 2. reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 322-323. 152 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 81. 153 MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p 354.

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legitimar cientificamente e, dessa maneira, de consolidar a imagem tradicional da

criminalidade, como própria do comportamento e do status típico das classes pobres na nossa

sociedade, e o correspondente recrutamento efetivo da ‘população criminosa’ destas

classes”155.

Releva notar, ainda, a crítica de García-Pablos Molina, quando aponta o seguinte

sobre o estrutural-funcionalismo:

Mas ele [entendimento estrutural-funcionalista], sem embargo, tende a confundir o fático com o normativo, o ser com o dever ser, concedendo primazia às pretensões funcionais, pragmáticas, em comparação com as axiológicas e valorativas, como sucede com todo modelo tecnocrático sensível à crítica vinda de fora do sistema. Tudo isso repercute no diagnóstico funcionalista do problema criminal e tem importantes implicações de índole política criminal. O estrutural-fucionalismo revisa e questiona as categorias fundamentais da dogmática liberal tradicional (bem jurídico, culpabilidade etc.). Propugna por uma concepção meramente simbólica do delito e da pena, terminando por negar a natureza ‘subsidiária’ assinalada ao Direito Penal. Centra todo seu interesse no exame do crime convencional das baixas classes sociais, sustentando um enfoque mais sintomatológico que etiológico, isto é, contempla o delito onde se manifesta e quando se exterioriza o conflito, não quando e onde ele é gerado, razão pela qual manifesta uma vocação conservadora inclinada a legitimar sistematicamente o status quo.156

Nessa mesma linha de idéias, Howard Becker, um dos principais nomes do

interacionismo simbólico, entende que a perspectiva funcional oferece uma visão limitada do

fenômeno do desvio, por ignorar o aspecto político do fenômeno e, por isso, limitar o

entendimento.157

154 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora; Instituto Carioca de Criminologia, 1999, p. 67. 155 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora; Instituto Carioca de Criminologia, 1999, p. 67. 156 MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 354-355. 157 No dizer de Becker, a abordagem sociológica, própria do funcionalismo, tem a grande virtude de assinalar as áreas de possíveis perturbações em uma sociedade. “Pero resulta mucho más difícil en la práctica de lo que parece ser en la teoría, especificar qué es funcional y qué es disfuncional para una sociedad o grupo social. La cuestión de cuál es el propósito o meta (la función) de un grupo y, en consecuencia, qué cosas ayudarán o impedirán el logro de este propósito, es muy a menudo de naturaleza política. (…) Al ignorar el aspecto político del fenómeno, la concepción funcional de la desviación limita nuestra comprensión del mismo” (BECKER, Howard S.. Los extraños: Sociología de la desviación. Trad. Juan Tubert. Buenos Aires: Editorial Tiempo Contemporáneo, 1971, p. 18).

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Dentre as vertentes do funcionalismo, ao menos para os fins do presente trabalho,

cumpre analisar ao menos duas: o funcionalismo sistêmico de Günther Jakobs, lastreada na

abordagem de Niklas Luhmann, e o funcionalismo teleológico, sustentado por Claus Roxin.158

4.2. A ABORDAGEM FUNCIONALISTA SISTÊMICA : CONCEPÇÃO E CRÍTICA

Os estudos de sociologia do direito refletem, também, a partir dos anos de 1970

(na Europa), a influência de Niklas Luhmann, muito especialmente devido à força dissertativa

da obra “Sociologia do Direito”159. Os estudos de Luhmann não se enquadram na sistemática

metodológica de origem européia. Aproximam-se muito mais das modernas teorias de sistema

desenvolvidas nos Estados Unidos, com destaque para Talcott Parsons, muito embora em

muito contribua para os estudos de interconexão entre sociedade e Direito.

A abordagem de Luhmann esboça um panorama crítico sobre as limitações do

ensino da Sociologia do Direito nas universidades, mas, muito especialmente, aponta que,

porque fundamentalmente ensinada por juristas, e não por sociólogos, a disciplina não

absorveu as recentes teorias sociológicas. Esse “isolamento” acabou por prejudicar-lhe o

desenvolvimento e o seu moderno papel na sociedade. Por isso, ele propõe uma verdadeira

revolução metodológica na sua retomada epistemológica, preliminarmente, reconhecendo que,

esvaziada do conhecimento específico da conceitualística jurídica terminológica, a

epistemologia jurídica evoluiria para identificar o seu verdadeiro objeto como a própria

sociedade, não a dogmática.

158 É de ver, contudo, que as vertentes funcionalistas não se esgotam nas visões desses autores. Sobre outras visões funcionalistas, cf. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 73-75. 159 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, 256 p., e LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito II. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985, 214 p.

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Para Luhmann, sua abordagem não apresenta novidade, embora este não fosse o

enfoque dos juristas-sociólogos, por entender que o direito sempre apresentou-se como dado,

na essência das associações humanas. O direito, para ele, sempre guardou e veiculou traços

característicos da sociedade e das relações de hierarquia (dominação). O convívio na

sociedade humana e as instituições políticas não seriam apenas expressivas da liberdade

abstrata e indeterminada, de uma normatividade expressiva do dever ser de conteúdos

indiscriminadamente engendráveis, mas, além disso, seriam a expressão de normas

determináveis em sua substância, que surgiram, também, como verdades naturais, permitindo

afirmar que a sociedade seria uma relação de direito.160

Por estas razões, Luhmann compreende que o direito está implícito no próprio fato

social e com ele se confunde, exatamente porque é o fato social que resguarda e garante a

durabilidade das instituições sociais. Esta justaposição entre o Direito e a sociedade, na

opinião de Luhmann, diferentemente do positivismo kelseniano, que admite e propaga a sua

autonomia epistemológica, impede que se lhe reconheça como um fenômeno científico

autônomo empiricamente isolável. O direito, portanto, só pode ser compreendido como

fenômeno social. A assertiva guarda especial importância para a compreensão da intervenção

penal.

Verdadeiramente, Luhmann volta-se ao estudo do direito como ação social,

identificando as suas relações funcionais de sentido, não apenas como o legalmente permitido,

mas também como as ações legalmente proibidas. Para ele, pouco importa o conceito de

legalidade como resultante do conceito de lei escrita, na contramão da visão juspositivista.

160 BASTOS, Aurélio Wander. O conceito de direito e as teorias jurídicas da modernidade. In: Jus Poiesis: Revista Eletrônica do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Disponível na internet: <http://www.estacio.br/graduacao/direito/revista/revista1/artigo2.htm>. Acesso em 12 maio 2005.

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Ocupa-se ele efetivamente da prática da legalidade (ou ilegalidade) como ação social, o que se

poderia denominar, aliás, como ele próprio o faz, de positividade sociológica.161

O sociólogo alemão procura estudar o direito, não propriamente como uma ordem

hierárquica, mas como um sistema de regras funcionais instalado num ambiente de relações,

também sistêmicas, simples e complexas. As regras de funcionamento sistêmico que

prescrevem práticas ou a pragmática das ações sociais humanas caracterizariam o sistema

jurídico como um especial sistema no sistema social global, onde exerce significativas

influências de controle e comportamento.

No quadro geral desse diagnóstico para a sociologia do direito de Luhmann, os

estudos do Direito devem partir da questão do direito como estrutura de um sistema social

cuja função essencial é regular os sistemas complexos e os sistemas simples. A assertiva

também seria plenamente válida ao direito penal, por evidente. A simplicidade e a

complexidade dos sistemas são absolutamente contingenciais (dependem de suas

circunstâncias de tempo e espaço) do ambiente em que se instalam e movimentam, o que

significa que os sistemas simples têm necessidades de estruturas jurídicas diferentes dos

sistemas complexos. Sociedades simples, por exemplo, possuem um direito tradicionalmente

determinado. A medida, todavia, que se verifica um aumento de sua complexidade, as

estruturas jurídicas (o direito) têm que adquirir uma elasticidade conceitual – interpretativa

para abranger situações heterogêneas — modificável através de decisões. Nesse sentido,

formas jurídicas estruturais e graus de complexidade da sociedade condicionam-se,

reciprocamente, numa relação de interdependência.

161 Cf. LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985, passim.

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Luhmann procurou demonstrar que estas suas linhas conclusivas já teriam se

manifestado nos estudo da sociologia clássica, sem que tivessem, todavia, obtido a

importância e o significado de suas formulações. Em geral eles trataram destas questões, mas

mantiveram-na em regime de irrelevância. Durkheim, já referido, abordou a matéria em seus

estudos sobre a modificação dos padrões de solidariedade, embora constate que há uma

realidade social e autônoma do dever ser normativo. Karl Marx, da mesma forma, quando

admite que o direito na economia capitalista tem que ser reconstituído, agasalha a tese de que

é preciso, para mudar, abandonar padrões referenciais anteriores. Max Weber, que está

apresentado na obra de Luhmann com significativas colaborações à sociologia do direito,

apesar da sua contribuição ao conceito ou à teoria da ação, na verdade manteve a distinção

entre o conceito do direito em termos empírico-sociológicos e o conceito do direito em termos

jurídico-normativos.162 É Talcott Parsons que, na opinião de Luhmann, está mais próximo de

suas conclusões, já que procura determinar os sistemas sociais a partir da imprescindibilidade

de suas estruturas normativas.

Este posicionamento de Luhmann, incipientemente identificado nos sociólogos

clássicos, procura demonstrar que o aumento da complexidade social exige modificações no

arcabouço jurídico. Caso não ocorram essas modificações, o sistema social, a se concluir das

opiniões do sociólogo alemão, dessintoniza-se do Direito e pode provocar crises sociais

agudas, desde que o movimento ultrapasse a complexidade estruturalmente permissível.

Luhmann critica a dedução lógica como instrumento de limitação da

jurisprudência conceitual dos tribunais, porque os recursos exegéticos não são suficientes para

absorver a complexidade das mudanças sociais. Nessa mesma linha conceptiva, articulando o

162 As referências a Marx e a Weber são desenvolvidas em BASTOS, Aurélio Wander. O conceito de direito e as teorias jurídicas da modernidade. In: Jus Poiesis: Revista Eletrônica do Curso de Direito da Universidade

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posicionamento geral dos autores citados, é possível afirmar que Durkheim e Weber, como o

próprio Luhmann, entendem que o direito e a sociedade são variáveis interconexas, o que

significa que o direito não goza de autonomia absoluta, por um lado, e está determinado pelos

padrões gerais de evolução da complexidade social. Essa especial postura desconhece o seu

caráter jusnaturalista e, até mesmo racionalista, para admitir a sua natureza contingencial.

Assim, para Luhmann, o direito delineado por seus operadores, em conceitos e

preceitos, e o próprio direito estatuído pelo Estado substanciam um fenômeno secundário,

derivado e deficientemente verbalizado. Em termos mais estritos, porém, a questão do caráter

estatuído do Direito possui significados secundários, os quais devem ser relegados a segundo

plano, a fim de que se alcance um conceito propriamente sociológico da positividade. No

entendimento jurídico, a positividade do Direito é dogmatizada, isto é, estatuída por força

própria. Isso, a toda evidência, não pode satisfazer à sociologia, que sempre procura outras

alternativas.

Tal assertiva, hábil a pôr em confronto juristas e sociólogos, muito embora

facilmente reconhecida pelos últimos, impressiona e “desmistifica” a dogmática,

principalmente sua autonomia e especificidade, a dinâmica própria da linguagem técnica

jurídica e a sua pretensa suficiência na solução dos casos. O direito, sob o viés desenvolvido

por Luhmann, não se determina por si próprio ou a partir de normas ou princípios superiores,

mas por sua referência à sociedade. Essa referência é compreendida como uma correlação

sujeita a modificações evolutivas, suscetível de verificação empírica como uma relação de

causa e efeito. A evolução é sempre concebida como a elevação da complexidade social, de

sorte que o direito surgiria, então, como elemento co-determinante e co-determinado desse

processo de desenvolvimento.

Estácio de Sá. Disponível na internet: <http://www.estacio.br/graduacao/direito/revista/revista1/artigo2.htm>.

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Assim, também por essas razões, o fenômeno jurídico contemporâneo não pode

ser estudado como um puro fenômeno dogmático, mas como uma positividade imersa no

próprio processo de modificação do fenômeno social. O direito, com o advento das sociedades

complexas, passa a ser visto como um fenômeno modificável, não apenas de perspectiva

legislativa (como pensaram sociólogos e juristas), mas do ponto de vista dos próprios sistemas

sociais que predefinem o sentido das estruturas de dever ser à função do direito. Estas

estruturas de dever ser implícitas no sistema social, ou transmudadas em norma ou

jurisprudência, é que caracterizam, no sentido dado por Luhmann, a nova positividade ou o

direito positivo.

Esta concepção de direito positivo está muito longe da concepção clássica de

direito positivo ou mesmo de positivismo. Para se alcançar a pretensão conceitual de

Luhmann, por conseguinte, parece fundamental abstrair a concepção rotineira do direito

positivo para entendê-lo como uma expressão dinâmica do processo de mudanças das

estruturas sociais. O direito positivo não é o direito posto (estatuído), como classicamente

concebido, mas a decisão que absorve e apreende as situações contingenciais que

caracterizam o aumento da complexidade dos sistemas sociais. Na visão de Luhmann, a

positividade jurídica não expressa exclusivamente o direito do legislador ou dos juízes, haja

vista que estas autoridades podem decidir seletivamente no confronto geral das alternativas

ideológicas ou morais que influem nas situações conflitivas. Na verdade, o Direito pode

mudar a sua qualidade jurídica, apesar da constância normativa instituída.

Nesse sentido, a seletividade entre as alternativas permite que a ordem instituída

se transmude em nova ordem. Essa transmutação estrutural, essa capacidade da ordem de

absorver o ambiente, torna-se o princípio básico do direito; não a decisão em si, mas a decisão

Acesso em 12 maio 2005.

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como capacidade de absorção do sistema externo. O direito positivo é a capacidade de se

absorver as situações emergentes no contexto das contingências e da complexidade do

sistema. Para Luhmann, a positividade do Direito não resulta da Constituição, nem muito

menos dos vínculos de validez que resguardam determinadas decisões, mas do

desenvolvimento social, e está correlacionada com as alternativas decisórias resultantes do

quadro contingencial. Assim, no contexto desta concepção sociológica e negativista da

dogmática, de visível resistência à concepção do direito como direito estatuído pela própria

força da dogmática, o direito positivo (positivável, que deve ser reconhecido, mesmo na

vigência de outra norma) resulta de estruturas sistêmicas que permitem o desenvolvimento de

possibilidades e sua redução a uma decisão que se torna vigente por força da própria decisão.

A esta altura é evidente o ponto de divergência entre a abordagem de Luhmann e

as opções apresentadas na presente investigação. Apesar da coincidência na negação do

caráter de auto-suficiência das estruturas dogmáticas para solução dos casos penais, não se

vislumbra acerto na opção de se afastar a Constituição e sua função de vínculo, ou limite, para

algumas decisões de positivação de fatos porque, como se apontará mais adiante, é a Carta

Política que orientará a pauta de valores e materializará o diálogo político-social necessário à

seleção e consagração de condutas puníveis.

A concepção de direito positivo como direito que se positiva num contexto

circunstancial complexo amplia o conceito de direito, não propriamente como conjunto

axiomático, mas como procedimento: o significativo não é o valor posto, mas a capacidade do

sistema de processar (por meio de procedimentos) a sua própria mudança. Luhmann

denominará este processo de auto-produção do direito, de produzir-se a si mesmo, como

autopoiese, para diferenciá-lo das situações em que a produção da norma (de um axioma)

depende de outro axioma. A concepção da ordem jurídica como um sistema autopoiético não

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se conforma à realidade dos setores pré-modernos ou tradicionais das sociedades ou grupos

sociais, mas, poderá representar, segundo Aurélio Wander Bastos,163 a proposta prospectiva

do conceito de direito.

Logo, Luhmann não oferece uma concepção de ordem jurídica baseada nos

modelos clássicos, em que os efeitos legitimadores mais se apóiam na sua capacidade de

expressar os padrões de justiça (jusnaturalismo) ou nas conexões de validade entre as normas

(legalidade) positivistas, mas nos sistemas de procedimento. Para ele, a legitimação pelo

procedimento e pela igualdade das probabilidades de obter decisões satisfatórias substitui os

antigos fundamentos jusnaturalistas ou os métodos variáveis de estabelecimento do

consenso.164 Os valores legitimadores dos sistemas não estão propriamente no conteúdo de

suas normas, mas sim nos procedimentos, que fundamentam algum de seus possíveis

conteúdos.

A abordagem delineada por Luhmann tem por conseqüência a ampliação da

discussão do fenômeno jurídico como fenômeno social e a introdução das bases para uma

teoria sociológica do direito infensa ao criticismo, por exemplo, marxista. Não foge ele da

formulação clássica da implicitude fática do Direito, mas amplia esse processo compreensivo

na medida em que vincula o conceito de direito à ação social vivida, e não à lei escrita, como

procedimento de regulamentação social. É nesse ponto que o sociólogo alemão abre-se a duas

questões centrais: o conceito de direito positivo e a capacidade de auto-produção do sistema

jurídico.

163 O conceito de direito e as teorias jurídicas da modernidade. In: Jus Poiesis: Revista Eletrônica do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Disponível na internet: <http://www.estacio.br/graduacao/direito/revista/revista1/artigo2.htm>. Acesso em 12 maio 2005. 164 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Corte-Real. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 31.

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Na primeira questão, aborda o conceito de direito positivo, não propriamente

como a norma positivada, mas como a funcionalidade estrutural regular de um sistema, a

imprescindibilidade das estruturas normativas. Na segunda questão, e esta parece ser sua

contribuição decisiva, Luhmann demonstra que o sistema jurídico precisa ter capacidade

interna para absorver, sem que pereça, o processo de ampliação da complexidade social. O

direito, portanto, teria uma natureza, não propriamente jusnaturalista ou racionalista, mas

contingencial, na qual a sobrevivência da própria ordem jurídica, como padrão referencial,

residiria no papel do juiz e do operador do Direito em geral, em suas capacidades

compreensivas. Com isso se realiza o processo de auto-produção do direito, ou seja, a

autopoiese.

Assim, a abordagem funcionalista-sistêmica fixa que a regulação da convivência

social supõe um processo de comunicação ou interação dos membros de uma comunidade que

se consuma por meio de uma relação estrutural nominada expectativa.165 A norma significa

toda regulação de condutas humanas em relação à convivência. Ao tomar por base exatamente

a conduta humana que pretende regular, a norma tem por escopo viabilizar a convivência

entre as distintas pessoas que compõem a sociedade166. A convivência social só é assegurada,

165 “Todo delito, seja um delito de comissão ou de omissão, frustra uma expectativa juridicamente garantida”. JAKOBS, Günther. Teoria e prática da intervenção. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, p. 1. Acerca de uma tentativa de conciliação das concepções da norma como diretiva de conduta e como expectativa institucionalizada, merece destaque o conciso e esclarecedor posicionamento de Jesús-María Silva Sánchez. Cf. ¿Directivas de conducta o expectativas institucionalizadas? Aspectos de la discusión actual sobre la teoría de las normas. In: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 201 et seq. 166 A expressão sociedade é aqui tomada na acepção desenvolvida por Talcott Parsons, pilar da compreensão funcionalista-sistêmica, quando afirma que uma sociedade é um topo de sistema social, em qualquer universo de sistemas sociais, que atinge o mais elevado nível de auto-suficiência, como um sistema, com relação aos seus ambientes. Segundo ele, “essa definição refere-se a um sistema separado, do qual os outros subsistemas de ação, igualmente separados, são os ambientes fundamentais. Esta interpretação contrasta nitidamente com nossa noção de senso comum de que a sociedade é composta de indivíduos humanos concretos. Portanto, os organismos e as personalidades de membros da sociedade seriam internos à sociedade, e não parte de seu ambiente” (PARSONS, Talcott. Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1969, p. 21-22). O núcleo de uma sociedade, como um sistema, é justamente a ordem normativa padronizada por meio da qual a vida de uma população organiza-se coletivamente. Como ordem, contém valores, normas e regras diferenciadas e particularizadas; como coletividade, apresenta uma concepção padronizada de participação que distingue entre os indivíduos que pertencem e os que não pertencem a ela.

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portanto, por meio de normas vinculantes, cuja observância se espera pelas pessoas que

pertençam a uma comunidade. E é a expectativa que exerce essa função de regulação do

convívio social.

Diante do risco de não serem cumpridas essas expectativas, que, por diversas

razões, se frustram, o sistema adotado para solucionar essas frustrações ou, se inevitáveis,

canalizá-las para assegurar a convivência é a sanção: a declaração de que se frustrou uma

expectativa e a conseguinte reação frente a essa frustração. A sanção, portanto, veicula um

conteúdo contrafático, uma vez que a sua vigência como norma não se modifica pelo fato de

não ser cumprida, ao revés, seu cumprimento e a seguinte sanção é que confirmam sua

necessidade e vigência.167

A imposição da sanção é efetivada primeiramente em nível social, por meio de

regras sociais que sancionam de algum modo – segregação, isolamento, perda do prestígio

social, entre outros – os ataques da convivência. Essas regras – normas – formam a ordem

social. Diante da insuficiência histórica dessas regras sociais para garantir a convivência,

tornou-se necessário um maior grau de sofisticação, organização e regulação de condutas

humanas, com vistas a um sistema de imposição de sanções mais preciso e rigoroso. Surge,

desse modo, subsidiariamente, a norma jurídica, destinada, em plano específico, a dirigir,

desenvolver ou modificar a ordem social. O conjunto dessas normas jurídicas substancia a

ordem jurídica e o titular dessa ordem jurídica é justamente o Estado, ao passo que, por

derradeiro, a titularidade da ordem social repousa na sociedade. Arremata Muñoz Conde:

167 Albert Cohen registra com precisão que a expressão controle social é empregada para indicar os processos e estruturas sociais que servem para impedir ou reduzir a transgressão. “A expressão é usada também para indicar qualquer coisa que as pessoas façam e que seja socialmente definida como ‘fazer alguma coisa a respeito da transgressão’, qualquer que seja essa ‘alguma coisa’: prevenção, repressão, reforma, vingança, justiça, reparação, compensação e elevação moral da vítima”. As suposições culturais, para ele, não definiriam apenas o comportamento de transgressão, mas também as reações adequadas ao comportamento transgressor. COHEN, Albert. Transgressão e controle. Tradução de Miriam L. Moreira Leite. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1968, p. 89-90.

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A ordem jurídica e o Estado não são, por conseguinte, mais que um reflexo ou superestrutura de uma determinada ordem social incapaz, por si mesma, de regular a convivência de um modo organizado e pacífico. Na medida que a ordem social seja auto-suficiente, poderemos prescindir da ordem jurídica e do Estado. Atualmente, devemos aceitar, sem embargo, o fato de que existe uma ordem jurídica garantida pelo Estado, porque somente aceitando-a como objeto a interpretar, aplicar e também a criticar, podemos superá-lo algum dia.168

Aquelas condutas que mais gravemente atacam a convivência humana são

reguladas pela ordem jurídica por normas jurídicas sancionadas com o meio mais duro e

(pretensamente) eficaz de que dispõe o aparato repressivo estatal. Cuida-se aqui exatamente

da pena. A análise sistêmica, inserida na abordagem funcionalista, permite fixar um novo

marco teórico à idéia de legitimação do castigo.

A pena deixa de ser examinada sob o enfoque valorativo (seus fins ideais) e passa

a sublinhar uma abordagem funcional, dinâmica, como qualquer outra instituição social

(funções reais que a pena desempenha para o bom funcionamento do sistema). A pena,

portanto, segundo a teoria sistêmica, cumpre uma função de prevenção integradora, distinta

dos objetivos retribucionistas, de prevenção geral e especial que lhe foram atribuídos pela

dogmática tradicional. Na medida em que o delito lesiona sentimentos coletivos da

comunidade, tomados como “bons e corretos”, a pena “simboliza” a necessária reação social

clara e atualiza a vigência efetiva dos valores violados pelo delinqüente, impedindo que se

enfraqueçam; reforça a convicção coletiva em relação à transcendência desses valores;

fomenta e dissemina os mecanismos de integração e de solidariedade social frente ao infrator

e devolve ao cidadão sua confiança no sistema.169

168 CONDE, Franciso Muñoz. Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 11. 169 MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 353. Salienta Molina que a idéia de prevenção integradora substitui o ideal utópico e emancipador da ressocialização do delinqüente. “A indiscutível crise desse ideal não fez com que a teoria sistêmica sugerisse reflexão alguma sobre possíveis alternativas ao atual modelo sancionatório e penitenciário – nem, muito menos, ao atual modelo de sociedade –, senão, pelo contrário, o reforço eficaz do sistema penal, de acordo com o modelo ‘tecnocrático’ que propugna a propósito das relações entre ciências sociais e ciências jurídicas” (idem, p. 354).

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A norma jurídico-penal constitui assim também um sistema de expectativas.

Espera-se que não se realize a conduta proibida pela norma penal e espera-se também que,

caso se realize, haja a reação com a imposição da pena prevista. O fenômeno punitivo,

portanto, nada mais seria que uma estabilização contrafática das expectativas normativas. A

realização da conduta proibida pelo direito penal tem por pressuposto a frustração de uma

expectativa e a conseqüente aplicação da pena, de sorte que configura-se a intervenção penal

como reação frente a frustração. Em sua estrutura, portanto, a norma penal em nada difere de

qualquer outra norma social ou jurídica. Seu conteúdo, no entanto, diferencia-se das demais

normas, na medida em que a frustração da expectativa deve ser um delito e a reação a essa

frustração, uma pena.

Todavia, a adoção incondicional de uma política funcionalista veicula relevantes

perigos à compatibilização do sistema penal ao modelo de Estado a que se aspira. É de ver

que a funcionalização do direito penal exalta a necessidade de proteção aos bens jurídicos

transindividuais, que garantem estabilidade ao sistema social, e fomenta a idéia do perigo

abstrato, hábil a possibilitar a figura típica como mera realização da conduta considerada

perigosa pelo legislador. O pensamento funcional, atento aos complexos sistemas de

causalidade da vida moderna, tende a relegar à obsolescência o princípio da responsabilidade

individual, para substituí-lo por critério de responsabilização objetiva. Mesmo as categorias

conceituais, usualmente ricas e delimitadoras da intervenção penal, tornam-se incômodas aos

fins pragmáticos que se espera alcançar com a utilização do sistema repressivo.

De qualquer sorte, cumpre registrar que nenhuma corrente criminológica

apresenta-se auto-suficiente ou mesmo com a aspiração de oferecer explicações para todo e

qualquer fenômeno da criminalidade. O próprio Merton, na melhor tradição da sociologia

norte-americana, jamais pretendeu elaborar uma teoria geral da delinqüência. Como se verá a

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seguir, a teoria mertoniana da anomia e da criminalidade e a doutrina estrutural-funcionalista

em geral, mesmo que não neguem seu traço conservador, influenciaram e ainda influenciam

diversas correntes criminológicas, a exemplo de um conjunto de teorias nascidas nos

domínios da Sociologia alemã contemporânea, como a teoria sistêmica da prevenção

integradora. No dizer de Ana Luiza de Almeida Ferro, “Luhmann, Amelung, Otto, Jakobs e

outros tantos muito devem a pioneiros como Durkheim e Merton”170.

A norma jurídico-penal, numa acepção funcionalista-sistêmica, só pode ser

compreendida se colocada em relação a um determinado sistema social.171 No entanto, não

pode ela ser compreendida como mera expressão simbólica de fundamento do sistema social.

Nesse ponto reside o maior equívoco da abordagem funcionalista-sistêmica da intervenção

penal: para a teoria sistêmica aplicada ao direito penal, o delito não é mais que a expressão

simbólica de uma falta de fidelidade ao sistema social; a pena ou a medida de segurança, a

expressão simbólica do contrário, da superioridade do sistema. A pena, nesse contexto,

constitui uma reação frente a uma infração normativa. É essa reação que demonstraria a

necessidade de manutenção da norma infringida. A reação demonstrativa produz-se sempre à

custa do responsável pela infração normativa.

O delito substanciaria um ato comunicativo que defrauda as expectativas dos

cidadãos acerca da vigência da norma. Para o bom desenvolvimento das relações sociais, o

delito deve ser contradito para que a norma restabeleça a sua vigência. Neste aspecto, a pena

reafirma a vigência da norma alterada pela comissão do delito.

170 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 94. 171 “No aspecto normativo, podemos distinguir entre normas e valores. Os valores – no sentido de padrão – são vistos como o elemento primário de ligação entre os sistemas cultural e social. No entanto, as normas são fundamentalmente sociais. Têm significação reguladora para relações e processos sociais, mas não corporificam ‘princípios’ aplicáveis além da organização social ou, freqüentemente, sequer além de determinado sistema social. Em sociedades mais adiantadas, o foco estrutural das normas é o sistema legal” (PARSONS, Talcott.

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Para Günther Jakobs, provavelmente o mais destacado representante dessa

abordagem funcionalista-sistêmica, o mundo conceitual jurídico-penal tem de organizar-se

com arreio à missão social do Direito, e não conforme dados prévios, naturais ou de qualquer

ordem alheios à sociedade.172

Para Jakobs, a sociedade é constituída por pessoas e normas e se desenvolve

segundo o agir comunicativo.173 Assim, o sujeito que infringe uma norma comunica algo que

deve ser valorado negativamente. De outro lado, contrafaticamente a pena comunica a

vigência normativa.174

A prestação que realiza o Direito Penal consiste em contradizer por sua vez a contradição das normas determinantes da sociedade. O Direito Penal confirma, portanto, a identidade social. (…) Nessa concepção, a pena não é tão-somente um meio para manter a identidade social, mas já constitui essa própria manutenção.

(…) o Direito Penal restabelece no plano da comunicação a vigência perturbada da norma cada vez que se leva a cabo seriamente um procedimento como conseqüência de uma infração da norma.175

Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1969, p. 36). 172 Luís Greco adverte que, “recentemente, parece que Jakobs vem libertando-se do ponto de partida sociólogico, em favor de uma filosofia do direito por ele próprio desenvolvida”. Realmente, em trabalhos mais recentes, tais como JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003; JAKOBS, Günther. Teoria da pena e suicídio e homicídio a pedido. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, Jakobs deixa transparecer uma maior aproximação do pensamento de cariz kantiano. No entanto, como também assevera o mesmo Luís Greco, como essa mudança ainda não passa de um esboço, melhor que se desenvolva a abordagem do pensamento de Jakobs com lastro em Luhmann. Cf. GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito (em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico-penal”, de Roxin). In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (Org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. n. 7. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, 2000. p. 307-362. Também disponível em: <http://www.direitosfundamentais.com.br/downloads/colaborador_introducao.doc >. Acesso em: 27 maio 2005, nota 77. 173 JAKOBS, Günther. Derecho Penal — Parte General — Fundamentos y Teoría de la Imputación. Tradução de Joaquin Cuello Contreras e José Luís Serrano Gonzales de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1995, p. 13; JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, p. 45 et seq. 174 Cf. RAMOS, Enrique Peñaranda; GONZÁLES, Carlos Suárez; MELIÁ, Manuel Cancio. Um novo sistema de direito penal: considerações sobre a teoria de Günther Jakobs. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri: Manole, 2003, p. 7 et seq. 175 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, p. 4-5. No mesmo sentido, com o acréscimo de criticar o discurso relativo aos fins da pena, ao argumento de que “a sanção não tem um fim, mas constitui em si mesma a obtenção de um fim, scil, a constatação da realidade sem trocas”, cf. JAKOBS, Teoria da pena e suicídio e homicídio a pedido. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, p. 18-19.

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Jakobs funcionaliza não apenas os conceitos, dentro do sistema jurídico-penal,

como também o próprio sistema. As possibilidades de agir, como já sublinhou Luhmann, são

incontáveis e aumentam conforme o grau de complexidade que assume a sociedade. O

processo de interação e de tomada de consciência entre a pessoa e os outros (sociedade)

implica um elemento de perturbação. O direito penal, como sistema social que é, cuidaria de

estabilizar expectativas objetivas e válidas, pelas quais ele próprio se orientaria também. As

expectativas e as expectativas das expectativas, como já mencionado, orientariam o agir e o

interagir das pessoas em sociedade, a fim de reduzir a complexidade e tornar a vida mais

previsível e menos insegura. O direito penal, como os sistemas sociais em geral, se ocuparia

de assegurar essas expectativas, a despeito de elas não serem sempre satisfeitas (caráter

contrafático).

Dados ontológicos, como causalidade e finalidade, são substituídos pelo conceito

normativo de competência. A vida em sociedade torna cada pessoa portadora de um

determinado papel que comporta, assim, um feixe de expectativas.176 Cada qual, e não só o

autor de crimes omissivos impróprios, como na doutrina tradicional, é garante dessas

expectativas.177

Portanto, para Jakobs, o direito penal não tem de partir do bem jurídico lesado ou

posto em perigo, senão do descumprimento da norma que regula as relações sociais, de modo

176 “Os seres humanos encontram-se num mundo social na condição de portadores de um papel, isto é, como pessoas que devem administrar um determinado segmento do acontecer social conforme um determinado padrão. (…) já não se deveria fazer a tentativa de construir o delito tão-somente com base em dados naturalistas – causalidade, dolo; pelo contrário, o essencial é que concorra a violação de um papel. Por conseguinte, já não resulta mais suficiente a mera equiparação entre delito e lesão de um bem jurídico”. JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 22-23. 177 Para Jakobs, “o conceito de ação não se busca antes da sociedade, e sim dentro da sociedade (…) Portanto, um conceito jurídico-penal de ação deve combinar sociedade e direito penal. (…) O conceito de ação, enquanto conceito jurídico penal, deve garantir que a definição dos comportamentos jurídico-penais imputáveis não seja uma mistura de elementos heterogêneos agrupados de qualquer maneira, e sim uma unidade conceitual.” JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 45-46.

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que à dogmática caberá caracterizar apenas quem não é fiel ao Direito, e este será o autor do

delito. Com isso,

(…) atuar, significa, portanto, o seguinte: converter-se, de maneira individualmente evitável, na razão determinante de um resultado, regendo-se a qualificação de “determinante” por um esquema social de interpretação. Uma vez que se percebe que se trata de realizar uma atribuição e não algo que pertence à natureza, também se resolve o problema da omissão. Também na omissão tem lugar a atribuição de um ato a um ser humano: no âmbito da omissão de pleno peso, equivalente à comissão, esta atribuição não se faz a qualquer pessoa que pudesse ter evitado o resultado, e sim exclusivamente a uma pessoa essencialmente envolvida. Essas pessoas essencialmente envolvidas se chamam garantes, e essa denominação não é mais do que outro nome com o qual se faz referência a um segmento daquele âmbito que esbocei para o delito de comissão sob o rótulo de “imputação objetiva”: quem omite a salvação ante um perigo somente responde se sua abstenção é determinante. Que se denomine essa “abstenção determinante” por sua vez “ação” (então também o omitente atua, já que seu comportamento é relevante para o resultado), ou que se escolha o termo mais específico “omissão”, unificando depois ação e omissão sob o conceito de “comportamento”, é indiferente: em todos os casos se trata da vinculação de um ser humano com um curso que conduz a um resultado.178

Como pensamento lógico, de aspecto sociológico, o funcionalismo sistêmico

apresenta-se irreprochável. No entanto, como se verá a seguir, sua abordagem peca justamente

por não se vincular a uma preocupação com a legitimidade – a ser sempre questionada – da

intervenção penal e sua preocupação de orientação dirigida aos fins do direito penal.

4.3. CRÍTICA AO FUNCIONALISMO SISTÊMICO : A NECESSÁRIA OPÇÃO PELO

FUNCIONALISMO TELEOLÓGICO

A valer, a teoria sistêmica veicula uma abordagem asséptica e tecnocrática do

modo de funcionamento do sistema, que se pretende infensa a uma valoração e muito menos a

uma crítica desse mesmo sistema.179 Conduz ela a uma concepção preventiva integradora do

direito penal, em que o foco principal da gravidade da norma jurídico-penal (é a resposta mais

178 JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 59-60. 179 “Indubitavelmente, trata-se de resposta relegitimadora do exercício de poder do sistema penal por excelência, mas, às custas do desconhecimento do discurso jurídico-penal tradicional, opera um conceito de ‘direito’ privado de qualquer referência ética e antropológica (que mal pode ser chamado de direito), coloca em cheque, em larga perspectiva, praticamente todo o direito penal de garantias e retroage a um direito penal ultrapassado diante de um paradigma fictício, característico do discurso jurídico-penal autoritário.” YAROCHWSKY, Leonardo Isaac. A influência da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann na teoria da pena. In:

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drástica de que dispõe o Estado) desloca-se da subjetividade do indivíduo para a subjetividade

do sistema. Volta-se a um exacerbado fortalecimento do sistema existente e de suas

expectativas institucionais sem se ocupar das necessárias modificações ou mesmo sujeição a

críticas. Na linha das críticas ora desenvolvidas, Muñoz Conde é contundente:

O caráter conflituoso da convivência social e o coativo da norma jurídico-penal desaparecem em um modelo tecnocrático em que o comportamento social desviado e o delito, qualificado de “complexidade”, ficam integrados em um sistema, sem qualquer modificação, por mínima que seja. A norma penal soluciona o conflito (delito), reduzindo sua complexidade, atacando-o onde se manifesta, não onde se produz, legitimando e reproduzindo um sistema que, em nenhum caso, é questionado.180

Adversa a críticas, livre de necessárias revisões e modificações, a abordagem

funcionalista-sistêmica satisfaz-se com muito pouco – ou quase nada – para afirmar a

legitimidade da intervenção penal. Encerrada num sistema que se pretende inserido num

mundo pleno de sentido e escudada numa concepção auto-referente de justificações para a sua

existência, a visão funcionalista-sistêmica do direito penal afasta-se de uma necessária

abordagem multidisciplinar e, o mais importante, prescinde de uma necessária aproximação

dos valores assegurados, constitucional ou legalmente, como próprios de uma política

criminal que oriente soluções axiologicamente voltadas a refletir a opção por um Estado

democrático de Direito.

Quando essa visão funcionalista-sistêmica refere-se à funcionalidade da norma

jurídico-penal, nada menciona sobre a forma específica de seu funcionamento, tampouco

sobre o sistema social para o qual a norma apresenta-se como funcional. O conceito de

Ciências penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, a. 1, n. 0, 2004, p. 297. 180 CONDE, Franciso Muñoz. Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 14.

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função181, em si mesmo, é demasiadamente neutro e não se presta a compreender a essência

do fenômeno jurídico-punitivo.182

Deveras, por implicar verdadeira substituição do conceito de bem jurídico pelo de

“funcionalidade do sistema social”, a abordagem sistêmica acaba por afastar-se do último

ponto de que dispõe o direito penal para uma crítica do direito positivo. É precisa a crítica de

Luís Greco ao pensamento de Günther Jakobs:

JAKOBS se mostra plenamente ciente de quanto seu sistema tem de chocante, e de fato há muito de criticável em sua teoria. Não tanto o normativismo, porque apesar da funcionalização total dos conceitos, o embasamento sociológico garante o contato com a realidade, mas especialmente por tratar-se de um sistema obcecado pela eficiência, um sistema que se preocupa sobremaneira com os fins, e acaba por esquecer se os meios de que se vale são verdadeiramente legítimos. Ainda assim, é inegável que os esforços de JAKOBS abriram novos horizontes para a resolução de inúmeros problemas, demonstrando a necessidade e a produtividade de permear antigas categorias sistemáticas com considerações sobre os fins da pena.183

Numa perspectiva constitucional, segundo a qual o direito penal tem por missão a

proteção de bens jurídico-penais constitucionalmente tutelados, a teoria sistêmica acaba por

provocar a perda das dimensões reinvidicativa, emancipatória e legitimadora inerentes aos

direitos fundamentais. A função dos direitos fundamentais ficaria relegada a um papel menor,

de subsistema social, que se interpreta como garantia da diferenciação existente no próprio

sistema.184 A advertência é de Antonio Enríque Pérez Luño, para quem a definição dos

181 Winfried Hassemer elabora crítica substancial à utilização da expressão “função”. Segundo ele, os problemas da teoria dos sistemas como uma teoria funcional, ao menos para os juristas, são mais difíceis de discutir do que as questões de outros âmbitos das ciências sociais. Isso se deve exatamente ao próprio conceito de “função”. “Os cientistas sociais aplicam o conceito em contraposição ao de ‘fim’ ou de ‘objetivo’, portanto desligado de um indivíduo agente: a ‘função’ é a soma das conseqüências objetivas de alguma coisa”. Para os juristas, a idéia de “função” é freqüentemente relacionada aos “fins”: as funções se afiguram conseqüências pretendidas de alguma coisa. HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 148. 182 A crítica é compartilhada por Muñoz Conde (Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 14). 183 GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito (em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico-penal”, de Roxin). In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (Org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. n. 7. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, 2000. p. 307-362. Também disponível em: <http://www.direitosfundamentais.com.br/downloads/colaborador_introducao.doc >. Acesso em: 27 maio 2005. 184 LUÑO, Antonio Enríque Pérez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1986, p. 61.

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direitos fundamentais atende a três idéias fundamentais: (i) os direitos fundamentais baseiam-

se no jusnaturalismo, na medida em que vincam sua raiz ética conjugadamente com sua

vocação jurídica, (ii) formalizam-se no historicismo, pois se sedimentam e se amoldam,

contextualizadamente, a partir da evolução histórica dos Estados e seus respectivos modelos

e, no que aqui interessa, (iii) evidenciam axiologismo em seu conteúdo. Logo, também o

reclamo constitucional impõe a adoção de uma abordagem funcionalista orientada a valores e,

por conseguinte, que rejeite a abordagem puramente sistêmica da intervenção penal.

Em uma colocação um tanto simplista, seria possível comparar o modelo

doutrinário funcionalista-sistêmico, tal como delineado por Günther Jakobs, como sendo um

protótipo, uma máquina perfeita, porém inábil frente a atual realidade do direito penal. Já a

concepção funcionalista-axiológica ou funcionalista-teleológica, delineada principalmente por

Claus Roxin, veicula claramente a idéia de um direito penal orientado à humanização por

meio da política criminal.

Diferentemente das abordagens do direito penal fornecidas pelos sistemas

naturalista, neokantiano (causalista) ou mesmo finalista,185 o funcionalismo reconhece que a

realidade não é unívoca: são várias as interpretações possíveis da realidade, de sorte que o

problema jurídico só pode ser resolvido por intermédio de considerações axiológicas, que

digam respeito à eficácia e à legitimidade da atuação do direito penal. O trabalho do

dogmático, sob essa vertente (funcionalismo teleológico) reside na identificação e

desenvolvimento da valoração político-criminal que lastreia cada conceito da teoria do delito,

185 A abordagem do funcionalismo teleológico escapa da crítica – ácida e certeira — de Ordeig ao finalismo de Welzel e suas estruturas lógico-reais. “O método que segue Welzel – colocando de uma maneira um tanto exagerada e polêmica – é o seguinte. Previamente, e antes de tomar contato com a realidade jurídico-penal, examina a estrutura ontológica da ação, afirma que o dolo pertence ao tipo… e, numa supervaloração espantosa do pensamento sistemático, decide que já está tudo solucionado. Não vai dos problemas ao sistema, e sim deste àqueles.” ORDEIG. Enrique Gimbernat. Conceito e método da ciência do direito penal. Tradução de José Carlos Gobbis Pagliuca. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 90.

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a fim de funcionalizá-lo, construí-lo e desenvolvê-lo de modo a que atenda essa função da

melhor maneira possível.

De um lado, isso não significa que essa vertente funcionalista caia no relativismo

valorativo. As valorações político-criminais não são relativas, mas advêm diretamente da

ordem constitucional do Estado democrático de direito, que respeita e promove a dignidade

humana e os direitos fundamentais. O direito penal, na dicção de Wolter, é “direito

constitucional aplicado” e aponta como fundamento do sistema do delito a dignidade da

pessoa.186

De outro lado, a opção teleológica afasta o risco do dualismo metodológico que

marcou o sistema neokantiano. A abordagem neokantiana parte do pressuposto de que o

mundo da realidade e o mundo dos valores formam compartimentos incomunicáveis, não

havendo a menor relação entre eles. Já o funcionalismo teleológico, ao contrário, salienta que

a valoração político criminal substancia, num primeiro momento, o fundamento dedutivo do

sistema e que essa dedução deve ser complementada, num segundo momento, pela indução,187

caracterizada por um exame minucioso da realidade e dos problemas com os quais se

defrontará o valor, que deverá ser concretizado nesses diferentes grupos de casos. Com isso, o

pensamento funcionalista-teleológico traduz uma inegável síntese do ontológico com o

valorativo, de sorte que o intérprete deverá, em seu proceder hermenêutico, atuar dedutiva e

186 Menschenrechte und Rechtsgüterschutz in einem europäischen Strafrechtssystem. Apud: GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito (em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico-penal”, de Roxin). In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (Org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. n. 7. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, 2000. p. 307-362. Também disponível em: <http://www.direitosfundamentais.com.br/downloads/colaborador_introducao.doc >. Acesso em: 27 maio 2005, nota 63. 187 O procedimento indutivo, nesse particular, é influenciado pelo pensamento tópico de Theodor Viehweg, para quem a tópica reflete uma técnica de pensamento problemático. Ao problema, por meio de uma formulação adequada, introduz-se uma série de deduções mais ou menos explícitas e mais ou menos extensas, através da qual se obtém uma contestação. Se esta série de deduções for chamada de sistema, então é possível dizer que, para encontrar uma solução, o problema se opera dentro de um sistema. O estabelecimento de um sistema realiza, portanto, uma seleção de problemas. O problema, assim, assume uma posição de “pré-dado”e é tomado

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indutivamente simultaneamente.188 Essa síntese entre pensamento dedutivo – valorações

político-criminais – e indutivo – composição de grupos de casos – surge como contribuição

extremamente fecunda, porque espelha um esforço por atender tanto às exigências de

segurança quanto às de justiça, ambas tendências por vezes contraditórias, mas inerentes à

idéia de Direito.

Não se pode olvidar, porém, as críticas desenvolvidas por Hirsch, fiel discípulo do

finalismo welzeniano, para quem as teses funcionalistas, lastreadas em necessidades de

prevenção, pecam pelo excessivo normativismo, razão pela qual prega o retorno à abordagem

dirigida tão-somente a “sólidos” dados da realidade ôntica, em lugar de aportes valorativos.189

Para Hirsch, os esforços funcionalistas seriam motivados tão-somente por um sentimento tolo

de criar novidades.

sempre como dominante. Cf. VIEHWEG, Theodor. Tópica y jurisprudencia. Tradução de Luis Diez-Picazo Ponce de Leon. Madrid: Taurus, 1964, p. 50 et seq. 188 Convém relembrar a idéia do círculo hermenêutico, tão bem explorada nas lições do Professor Inocêncio Mártires Coelho, para quem o intérprete jamais deve separar uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque o sentido da parte e o sentido do todo são interdependentes. Larenz assevera que o “círculo hermenêutico” pode expressar-se assim: “(…) uma vez que o significado das palavras em cada caso só pode inferir-se da conexão de sentido do texto e este, por sua vez, em última análise, apenas do significado – que aqui seja pertinente – das palavras que o formam e da combinação de palavras, então terá o intérprete – e, em geral, todo aquele que queira compreender um texto coerente ou um discurso – de, em relação a cada palavra, tomar um perspectiva previamente o sentido da frase por ele esperado e o sentido do texto no seu conjunto; e a partir daí, sempre que surjam dúvidas, retrocceder ao significado da palavra primeiramente aceite e, conforme o caso, rectificar este ou a sua ulterior compreensão do texto, tanto quanto seja preciso, de modo a resultar uma concordância sem falhas. Para isso, terá que lançar mão, como controle e auxiliares interpretativos, das mencionadas ‘circunstâncias hermeneuticamente relevantes’. A imagem do ‘círculo’ não será adequada senão na medida em que não se trata de que o movimento circular do compreender retorne pura e simplesmente ao seu ponto de partida – então tratar-se-ia de uma tautologia –, mas de que eleva a um novo estádio a compreensão do texto. (…) A conjectura de sentido tem o caráter de uma hipótese, que vem a ser confirmada mediante uma interpretação conseguida. O processo de compreender tem o seu curso, deste modo, não apenas em uma direcção, ‘linearmente’, como uma demonstração matemática ou uma cadeia lógica de conclusões, mas em passos alternados, que têm por objectivo o esclarecimento recíproco de um mediante o outro (e, por este meio, uma abordagem com o objectivo de uma ampla segurança). Este modo de pensamento (…) não só se manifesta a propósito da intepretação de textos, de acordo com a conexão de significado e da ratio legis – que é pelo menos em parte indagada com a ajuda do texto –, mas também no processo de aplicação da norma a uma determinada situação fática”. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 286-287. Em sua nota 54, Larenz registra sua preferência à expressão consagrada “círculo hermenêutico”, embora mencione que autores como Hassemer, Kaufmann e Achterberg, ao mencionarem tal proceder hermenêutico, vejam-no como uma espiral. 189 Cf. HIRSCH, Hans Joachim. El desarrollo de la dogmática penal después de Welzel. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 11, n. 43, abril-junho 2003, p. 11-30.

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Todavia, a rigor, ao contrário do que apregoa o penalista tedesco, o finalismo não

mais se mostra hábil a fornecer respostas a complexos problemas normativos. Sua insistência

em lastrear-se em estruturas ônticas e pretensamente absolutas de investigação dogmática

apenas indica o mesmo equívoco em que incorreram os sistemas naturalistas e neokantianos.

Demais disso, à crítica dirigida a um possível normativismo responde-se justamente com o

extrato constitucional que informa a pauta de valores a serem observados pela política

criminal que orientará as soluções dos casos levados à dogmática penal.190

Com efeito, Roxin sublinha que os defensores do funcionalismo, em sua vertente

teleológica, estão de acordo em que “a construção do sistema jurídico-penal não deve

vincular-se a dados ontológicos (ação, causalidade, estruturas lógico-reais, entre outros), mas

sim orientar-se exclusivamente pelos fins do direito penal”.191

Os conceitos do direito penal são submetidos, portanto, a uma funcionalização,

para que deles se exija que sejam capazes de desempenhar um papel acertado no sistema,

alcançando conseqüências justas e adequadas.

190 Zaffaroni registra com precisão que Welzel e sua concepção finalista não levou sua abordagem de estruturas lógico-reais para a teoria da pena. Para o penalista argentino, caso se tentasse enfrentar a construção de uma teoria da pena de acordo com as estruturas lógico-reais simplesmente produzir-se-ia uma “deslegitimação total das penas e das ‘medidas de segurança’ tal como Welzel as apresentava e como continua apresentando o discurso jurídico-penal legitimante e, com isso, seria evidenciada a falsidade de todo o discurso jurídico-penal legitimante. Em nossa opinião, a teoria das estruturas lógico-reais não foi arquivada por ser infecunda, mas porque, ao ser aplicada à teoria da pena, teria deslegitimado o sistema penal e desmistificado o discurso jurídico-penal”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Tradução de Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 193. Diante de tal constatação, Zaffaroni procura, a partir da estrutura lógico-real não da ação humana, mas da pena, com toda a sua carga aflitiva, discriminatória, seletiva, reconstruir a teoria do crime e o direito penal em termos apenas de limitação e redução do poder punitivo do Estado, que, para ele, nada tem de legítimo (cf. p. 245 et seq.). 191 Strafrecht — Allgemeiner Teil. Vol. I. 3. ed. C. H. Beck´sche Verlagsbuchhandlung München, 1997, § 7/24. Apud: GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito (em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico-penal”, de Roxin). In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (Org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. n. 7. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, 2000. p. 307-362. Também disponível em: <http://www.direitosfundamentais.com.br/downloads/colaborador_introducao.doc >. Acesso em: 27 maio 2005.

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A dogmática jurídico-penal e a política criminal passam a unir-se e, com apoio

nos princípios constitucionais, destinam-se a cumprir os objetivos de reafirmação dos valores

vigentes, não só para a escolha dos instrumentos capazes de obstaculizar a criminalidade, nos

limites das garantias constitucionais, mas para também colaborar na construção da norma

futura. A superação do sistema fechado, do positivismo neokantiano, foi, com efeito, a

conseqüência mais marcante para a dogmática jurídico-penal e a política criminal. Na lição

precisa de Antonio Luís Chaves Camargo:

Os requisitos de um sistema frutífero – claridade e ordenação conceitual, referência à realidade e orientação em finalidades político-criminais – determinou a revisão dos estudos em Direito Penal, que buscou novos fundamentos, agora com visão político-criminal, para o sistema de normas penais e fundamentação das penas.192

A meta do funcionalismo reside, pois, na proteção dos bens jurídicos, fim mesmo

da intervenção penal do Estado como instrumento último de controle social. A idéia fundante

é de que o direito penal deve ser orientado a satisfazer as necessidades de uma nova

sociedade, consistindo, pois, em um sistema aberto a novas políticas criminais. A missão

constitucional do direito penal – proteção de bens jurídicos por meio da prevenção geral ou

especial – dirige a construção teleológica de conceitos, a materialização das categorias do

delito, enfim, todo pensamento dogmático do direito penal.193 Com isso, a teoria dos fins da

pena adquire valor basilar no sistema funcionalista e, justamente por isso, será este o tema

sobre o qual se debruçará o capítulo seguinte.

192 CAMARGO, Antonio Luís Chaves. Sistema de penas, dogmática jurídico-penal e política criminal. São Paulo: Cultural Paulista, 2002, p. 168-169. 193 Zaffaroni e Pierangeli registram que hoje a maioria da doutrina partilha a opinião de que o direito penal deve tutelar bens jurídicos e valores ético-sociais conjuntamente. A finalidade de promoção da segurança por meio da tutela de bens jurídicos é justamente o que marca um limite racional à aspiração ética – referida ao comportamento social, às normas de conduta constituídas pela sociedade – do direito penal. Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 97 et seq.

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CAPÍTULO 5 — Os fins da intervenção penal: visão geral

A função de um direito penal moderno consiste na realização de uma síntese entre

o Estado de Direito e uma prevenção especial ressocializante, por um lado, e as exigências

imprescindíveis da prevenção geral, por outro. A política criminal, concebida a partir de uma

doutrina dos fins das penas, dirige-se igualmente à determinação também do tratamento da

dogmática jurídico-penal. É justamente o rumo em direção a uma dogmática funcional-

normativa a grande contribuição do pensamento de Claus Roxin para o direito penal e, por

conseguinte, à própria legitimação da intervenção penal no Estado democrático de Direito.

A teoria da pena, porque tem como conteúdo a conseqüência jurídico-normativa

da efetivação da intervenção penal, reflete a própria concepção de Estado. No dizer de

Santiago Mir Puig, a teoria da pena há de elaborar-se teleologicamente, ou seja, tomando por

arrimo o significado funcional da pena no Estado (finalidade preventiva) e a necessidade de

um delineamento funcionalista à teoria do delito194. Disso resulta que, quando se fala em

sentido e função do direito penal, está-se a perquirir acerca do sentido e da função da pena.

Surge, pois, a exigência de se abordar as teorias que tratam da pena.

O direito penal evidencia-se como o setor do ordenamento jurídico no qual as

questões acerca da possibilidade de intervenção e da razão que a fundamenta colocam-se de

forma mais problemática. Não se tem notícia de doutrinas que negam outros setores do

ordenamento jurídico, como o direito constitucional, civil, comercial, administrativo etc.,

como as doutrinas abolicionistas negam o sistema e o próprio direito penal. As justificações

filosóficas acerca desses outros ramos do direito dizem mais respeito ao modo e à

oportunidade de intervenção do que à possibilidade de fazê-lo e mesmo sob qual razão

194 PUIG, Santiago Mir. Función de la pena y teoría del delito en el Estado social y democrático de derecho. Barcelona: Bosch, 1979, p. 26 et seq.

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justificá-lo. Afirma Ferrajoli que “tal fato revela que o problema da legitimidade política e

moral do direito penal como técnica de controle social mediante constrições à liberdade dos

cidadãos é, em boa parte, o problema da legitimidade do próprio Estado enquanto monopólio

organizado da força”.195

Ferrajoli196 registra que o problema da justificação da pena, ou seja, do poder de

uma comunidade política, seja ela qual for, exercitar uma violência programada sobre um de

seus membros, configura justamente o problema clássico, por excelência, da filosofia do

direito. Em que se baseia a pretensão punitiva estatal ou o próprio direito de punir? As

respostas a essa pergunta amparam-se em duas vertentes ou grupos de teorias: teorias

justificacionistas, que se ocupam de compreender as bases que legitimam a intervenção penal

do Estado, e teorias abolicionistas, que não reconhecem justificação alguma ao direito penal e

almejam a sua eliminação197, quer porque contestam o seu fundamento ético-político, quer

porque consideram as suas vantagens inferiores aos custos da tríplice constrição que produz

(limitação da liberdade de ação daqueles que observam as normas penais, sujeição a um

processo por aqueles tidos como suspeitos de não observá-las e a punição daqueles julgados

como infratores).

Como o próprio Roxin salienta, questionar o sentido da pena estatal significa

perguntar “com base em que pressupostos se justifica que o grupo de homens associados no

195 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 200. 196 As idéias de Ferrajoli são desenvolvidas nos tópicos “Se e porque punir, proibir, julgar. As ideologias penais” e “O objetivo e os limites do direito penal. Um utililitarismo penal reformado” constantes de sua obra Direito e Razão (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002). São igualmente relevantes, para a compreensão de sua justificação da intervenção penal: FERRAJOLI, Luigi. Derecho penal mínimo y bienes jurídicos fundamentales. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 4, n. 5, março-junho 1992. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2005/ferraj05.htm>. Acesso em: 27 março 2005, e FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 17-31.

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Estado prive de liberdade algum dos seus membros ou intervenha de outro modo,

conformando a sua vida”198. Para ele, essa é uma pergunta acerca da legitimação e dos limites

do poder estatal, razão pela qual o debate acerca desses pressupostos revela-se sempre atual e

relevante.

Historicamente, são três as posições fundamentais que respondem a essas

perguntas acerca da justificação da intervenção penal: as teorias absolutas ou retributivas, as

teorias relativas ou prevencionais e as teorias mistas.

5.1. TEORIA DA RETRIBUIÇÃO

Para a teoria da retribuição, o sentido da pena assenta em que a culpabilidade do

autor seja compensada mediante a imposição de um mal penal.199 A pena, então, exerceria

uma função de retribuição.

A pena justificar-se-ia não pela finalidade a que se presta, mas sim pela realização

de um ideal de justiça.200 Roxin registra o pensamento retribucionista de Kant, já mencionado,

que chega a formular uma concepção segundo a qual, ainda que a sociedade civil toda se

dissolvesse, ela teria necessariamente que executar o último assassino que estivesse no

cárcere, para que cada um sofra aquilo que fez por merecer pelos seus atos e que as culpas do

sangue não recaiam sobre o povo que não haja insistido no seu castigo.201 Na mesma linha,

197 Tal acepção, segundo a distinção asseverada no item 2.1 do presente trabalho, amolda-se ao abolicionismo em sentido amplo. 198 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 15 199 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 16. 200 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 91 et seq. 201 Niederschriften über die sitzungen der Grossen Strafreschtskommission. Vol. I, 1956, p. 29. Apud: ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 16.

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Georg Wilhelm Friedrich Hegel desenvolve conhecida fórmula dialética segundo a qual a

essência da pena seria “a negação da negação do direito”202.

O crime, pois, seria aniquilado, negado, expiado pelo sofrimento da pena que,

desse modo, restabeleceria o direito lesado. A pena substanciaria a negação da negação do

direito, segundo a referida fórmula clássica de Hegel, razão pela qual cumpriria um papel

restaurador ou retributivo. Quanto mais intensa a negação do direito, mais intensa será a pena,

sendo certo que, para essa abordagem, nenhum outro fator influi em sua mensuração.

A pena consubstancia retribuição da culpabilidade do sujeito, considerada a

culpabilidade como decorrente da idéia kantiana de livre arbítrio. Esse é seu único

fundamento e, com amparo nesse argumento, é que se diz que, se o Estado não mais se ocupa

em retribuir, materializar numa pena a censurabilidade social de uma conduta, o próprio povo

que o justifica também se tornaria cúmplice ou conivente com tal prática e a censura também

sobre o povo recairia.

Para Francesco Carrara203, a pena só tem um fim em si mesma: o restabelecimento

da ordem externa da sociedade. Para ele, a pena nem mesmo poderia pretender outros fins.

Binding formula que a pena é a retribuição “do mal com mal”, representa a confirmação do

poder do direito204. Mezger aponta que a pena vale-se de um mal que se amolda à gravidade

de um fato praticado contra o ordenamento jurídico; a pena revela, portanto, retribuição e

202 Gundlimien der Philosophie des Rechts. § 104. Apud: ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 16. 203 CARRARA, Francesco. Programa do curso de direito criminal. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2002, vol. II, Capítulo “Finalidade da pena”. 204 Grundriss des Deutschen Strafrechts. Apud: RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 153.

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necessária privação de bens jurídicos.205 Para Welzel, a pena parece reger-se pelo postulado

da justa retribuição (que cada um sofra o que seus fatos valem).206

As teorias absolutas, portanto, consideram somente a expressão retribucionista da

pena: a pena traduz um mal que recai sobre um sujeito que cometeu um mal do ponto de vista

do Direito. Essa concepção de pena parece ligada intimamente a uma determinada concepção

de Estado, a um Estado de Direito que não seja intervencionista, mas guardião.

A única função do Estado é evitar a luta de todos contra todos, garantir o contrato

social, resguardar a ordem social ou, em outros termos, assegurar sua própria existência.

Reinhart Maurach, na esteira da concepção kantiana de pena, sustenta que uma sociedade que

renuncia ao poder penal estaria renunciando a sua própria existência.207 É de ver, contudo, que

certamente há de se salvar de uma concepção retributiva a idéia de garantia na mensuração da

pena, mas essa garantia ainda assim não é suficiente para justificar a pena entendida num

sentido absoluto, retributivo ou expiatório.

Sem grande esforço percebe-se que a teoria retribucionista não se presta a

justificar cabalmente a pena estatal. É que ela pressupõe a necessidade da pena em lugar de

fundamentá-la. Deixa de resolver, igualmente, a questão decisiva de saber sob que

pressupostos a culpa humana autoriza o Estado a castigar. A teoria da retribuição, segundo

Roxin, “fracassa perante a tarefa de estabelecer um limite, quanto ao conteúdo, ao poder

205 Strafrecht. 3. ed. 1949, p. 483. Apud: RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 153. 206 WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. 2. ed. Tradução de Juan Bustos Ramírez e Sergio Yáñez. Santiago: Editorial Jurídica Chile, 1976, p. 326. 207 MAURACH, Reinhart. Derecho penal. Atualizado por Heinz Zipf. Tradução de Jorge Bofill Genzsch e Enrique Aimone Gibson. 2 v. Buenos Aires: Astrea, [s.d.], passim.

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punitivo do Estado”, limitando-se a conceder uma autorização indiscutível ao legislador para

criminalizar condutas.208

Além disso, é de ver que a liberdade humana pressupõe a liberdade da vontade –

livre arbítrio – e a existência desta revela-se empiricamente indemonstrável. A valer, o

legislador justifica a imposição de um preceito sancionador apenas como uma hipótese

subjacente ao mandamento proibitivo legal, que, mesmo não sendo refutada, não parece

comprovável.

Ainda, a própria idéia de retribuição compensadora da prática criminosa só parece

plausível mediante um ato de fé209, porque, com a assunção de uma concepção

exclusivamente retribucionista da pena, o Estado assume um ar de Justiça maior, hábil a

impor pena, porque titular exclusivo do direito de punir, sem que para isso lastreie esse

gravame num controle maior ou mesmo melhor que aquele realizado pelos próprios homens.

É preciso o seguinte excerto de Roxin a respeito:

(…) a própria idéia de retribuição compensadora só pode ser plausível mediante um acto de fé. Pois, considerando-o racionalmente, não se compreende como se pode pagar um mal cometido, acrescentando-lhe um segundo mal, sofrer a pena. É claro que tal procedimento corresponde ao arreigado impulso de vingança humana, do qual surgiu historicamente a pena; mas considerar que a assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto da vingança humana, e que a retribuição tome a seu cargo a ‘culpa de sangue do povo’, expie o delinqüente, etc., tudo isto só é concebível apenas por um acto de fé que, segundo a nossa Constituição, não pode ser imposto a ninguém, e não é válido para uma fundamentação, vinculante para todos, da pena estatal.210

Registre-se que, sob o mesmo argumento, não se admite a idéia de que a

imposição da pena pelo Estado amparar-se-ia num mandato divino: numa época em que se

208 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 17-18. 209 É precisa a observação de Paulo Queiroz quando se vale dessa expressão – “ato de fé” – utilizada por Roxin: “(…) explicar o sentido da pena por meio da retribuição é pretender emprestar foros de absolutidade a uma entre muitas interpretações possíveis e igualmente plausíveis dos desígnios e mistérios de Deus (Kant), que não é, inclusive, necessariamente a melhor” (Funções do direito penal: legitimação e deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 27).

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assume como acordo a ser observado (e perseguido) que todo poder estatal deriva do povo,

não se revela admissível a legitimação de medidas estatais fundamentadas em supostos

poderes transcendentes. Em síntese, “a teoria da retribuição não nos serve, porque deixa na

obscuridade os pressupostos da punibilidade, porque não estão comprovados os seus

fundamentos e porque, como profissão de fé irracional e além do mais contestável, não é

vinculante”.211

5.2. TEORIA DA PREVENÇÃO ESPECIAL

As teorias relativas, ou prevencionais, voltam-se ao fundamento da pena: “para

que serve a pena?”. As correntes principais são a da prevenção geral e a da prevenção

especial.212

A prevenção espelha abordagem posterior às teorias da retribuição e da prevenção

geral. Destacam-se Franz Von Liszt na Alemanha e Marc Ancel na França. Desenvolve-se

durante o século XIX, que apontou uma necessidade de maior intervenção do Estado em todos

os processos sociais, inclusive os criminais.

Os defensores da abordagem preventivo-especial preferem a idéia de “medidas”,

em lugar de penas. A pena pressupõe a liberdade ou a capacidade racional do delinqüente, de

modo a considerar um critério de igualdade geral; já a medida, ao contrário, parte da idéia de

que o criminoso é um sujeito perigoso, diferente do normal, e que há de ser tratado consoante

suas peculiares características perigosas. O castigo e a intimidação perdem, assim, sentido,

210 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 19. 211 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 19. 212 Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 97 et seq.

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porquanto a incidência da sanção penal volta-se a corrigir ou reabilitar o delinqüente, sempre

que seja possível, ou então a afastá-lo para torná-lo inofensivo.

A sanção não tem que infligir um castigo proporcionado por força de uma censura

moral, mas sim prover a mais eficaz defesa social frente a delinqüentes perigosos, de sorte a

afastar toda idéia de retribuição moral.213

A teoria da prevenção especial assenta a justificação da pena na prevenção de

novos delitos do autor. Tal prevenção pode ocorrer de três formas: a) pela correção daquilo

que é corrigível, ou seja, por meio da ressocialização; b) pela intimidação do que é pelo

menos intimidável; e c) pela privação da liberdade, por meio da pena, daqueles que não são

corrigíveis nem intimidáveis. Embora tenha sido formulada na época do Iluminismo, a teoria

da prevenção especial – que cedeu perante o relevo dado à teoria retribucionista – volta à

lume no final do século XIX graças ao pensamento de Franz Von Liszt e à crescente

importância do movimento internacional da “defesa social”, capitaneado pelas idéias de

Ancel.214

213 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 166. 214 Cf. ANCEL, Marc. Vinte e cinco anos de defesa social. In: Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, vol. 2, n. 3, maio-agosto 1976, p. 433-450. Para uma abordagem mais completa do pensamento de Ancel: A nova defesa social: um movimento de política criminal humanista. Tradução de Osvaldo Melo. Rio de Janeiro: Forense, 1979, 466 p. Ancel representa um movimento político-criminal que considera admissíveis e adequados vários caminhos para alcançar objetivos comuns. O movimento da nova defesa social, segundo ele, não se apresenta como uma teoria unitária e dogmática, mas como uma atitude intelectual. Adere ele ao princípio da responsabilidade pessoal na convivência social, bem como rechaça uma mera prevenção “sócio-medicinal”. Relativamente ao problema básico de toda convivência humana, isto é, o equilíbrio entre o desenvolvimento individual e a inserção social, adota uma posição conciliadora, para acentuar o direito de desenvolvimento individual de cada pessoa. Também na relação entre penas e medidas mantém um critério de equilíbrio. São, portanto, três as bases fundamentais sobre as quais se assenta o pensamento de Ancel: a) manutenção das figuras delitivas como ponto de partida da intervenção estatal; b) referência, em todas as formas de reação estatais, à responsabilidade social do cidadão; e c) substituição da mera pena retributiva pela sanção que se refere à responsabilidade individual e dirigida à reinserção social, com caráter punitivo ou orientada à correção ou segurança. Cf. ZIPF, Heinz. Introducción a la política criminal. Tradução de Miguel Izquierdo Macías-Picavea. Jaén: Editorial Revista de Derecho Privado, 1979, p. 61-62.

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A idéia de um direito penal preventivo de segurança e correção seduz pela sua

sobriedade e por uma característica tendência construtiva e social. No entanto, não fornece ela

também uma justificação das medidas estatais necessárias para a sua prossecução.

As críticas dirigidas à idéia de prevenção especial apontam a falta de uma ética

social fundamental na medida em que instrumentaliza o homem para os fins do Estado: o ser

humano é tomado como coisa e o que se verifica é a conseqüente perda de respeito à sua

dignidade, um dos pilares do Estado de Direito. De modo mais sistemático, as críticas mais

robustas à teoria da prevenção especial podem ser reunidas em três grupos.

Em primeiro lugar, a teoria da prevenção especial não possibilita uma delimitação

do poder punitivo do Estado quanto ao seu conteúdo. A delimitação diz respeito ao “quando”

e ao “quanto” de incidência do direito penal. É certo que todas as pessoas necessitam, num

menor ou maior grau, de algum nível de correção. Com isso, o ponto de partida para a

incidência do direito penal continua a representar um perigo relativamente à submissão do

particular ao Estado, porque, na medida em que o direito penal dirige-se àqueles que

contrariam os chamados “valores” da sociedade, a depender do modelo de Estado a que se

aspira ou mesmo verificado na realidade, entrarão, na esfera do direito penal, grupos de

pessoas cujo tratamento como criminosos dificilmente se pode fundamentar com base numa

ordem jurídico-penal como a hoje preponderante, dirigida ao fato isolado (direito penal do

fato). O caráter seletivo do direito penal passa a assumir perigoso lastro de justificação (falso)

na teoria da prevenção especial da pena.

Além disso, tal teoria não chega a verdadeiramente possibilitar a delimitação

temporal da intervenção estatal mediante penas fixas, na medida em que, para ser

conseqüente, deveria prosseguir um tratamento até que se desse a definitiva “correção” do

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delinqüente, mesmo que a sua duração fosse indefinida. Com isso, a teoria da prevenção

especial tende, mais que o próprio direito penal da culpa retributivo, a submeter o particular

ilimitadamente à intervenção estatal. Em última análise, a teoria da prevenção especial padece

do mesmo pecado que fulmina a teoria da retribuição: toma por pressupostos a extensão e os

limites do poder punitivo estatal, os quais precisamente deveria ocupar-se de fundamentar.

Em segundo lugar, há uma robusta objeção à teoria da prevenção especial: nos

crimes mais graves, não teria de impor-se uma pena caso não existisse uma repetição, porque,

se a pena volta-se à ressocialização do indivíduo, o que fazer com aqueles crimes que

freqüentemente se devem a motivos e situações que não voltaram a se repetir? Não há como

negar nesses casos as conseqüências da impunidade; porém, será que todos os que praticam

delitos estão a reclamar uma ressocialização? A valer, a teoria da prevenção especial não é

capaz de fornecer a necessária fundamentação da necessidade da pena para todas as situações.

Em terceiro lugar, por fim, se a pena se ampara por uma finalidade de correção, o

que legitima uma maioria da população a obrigar uma minoria a adaptar-se aos modos de vida

que lhe são gratos? Será que se presta a intervenção estatal – especialmente a da natureza

penal – a impor, numa perspectiva hegemônica, um padrão de comportamento de determinado

estrato social? O que pode legitimar uma maioria a subjugar uma minoria conforme suas

formas de vida, de onde surge um direito de educar contra a vontade de pessoas adultas, por

que certos cidadãos não podem viver como bem queiram?

A maioria das pessoas considera como algo evidente o fato de se reprimir

violentamente aquilo que é diferente, anômalo. No entanto, perquirir em que medida um

Estado de Direito goza de competência para tal é o verdadeiro problema que a abordagem

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preventivo-especial não parece responder, até mesmo porque lhe escapa de seu campo de

análise.

O ponto mais crítico, de qualquer forma, reside no questionamento de para quê e

para qual sociedade presta-se a pena. Não é justamente a disfuncionalidade do Estado de

Direito atual que provoca os conflitos de socialização? Demais disso, aquele a quem se

pretende ressocializar submeter-se-á na verdade a uma socialização cultural ou subcultural, o

que é diverso da justificação da pena em si. Cuida-se, pois, de verdadeira manipulação do

indivíduo pelo Estado.

Roxin, com precisão, sintetiza as críticas à teoria da prevenção especial do

seguinte modo:

(…) a teoria da prevenção especial não é idônea para fundamentar o direito penal, porque não pode delimitar os seus pressupostos e conseqüências, porque não explica a punibilidade de crimes sem perigo de repetição e porque a idéia de adaptação social coativa, mediante a pena, não se legitima por si própria, necessitando de uma legitimação jurídica que se baseia noutro tipo de considerações.215

Com isso, os aspectos positivos da prevenção especial são os seguintes. Em

primeiro lugar, marca-se pela preponderância do indivíduo considerado como tal em suas

particularidades, em lugar de referir-se somente a um ser abstrato e indefinível como no caso

da teoria retributiva ou da prevenção geral. Sob essa perspectiva, a concepção da prevenção

especial reveste-se de um acentuado caráter humanista. Em segundo lugar, retira da pena seu

caráter mítico moralizante, uma vez que se cuida de simplesmente adequar a pena a essas

particularidades do sujeito para torná-lo novamente útil à sociedade ou, ao menos, para que

não a prejudique. Trata-se de uma abordagem que se ocupa muito mais dos indivíduos que

compõem o Estado do que com o Estado em si, pretende transformar as estruturas sociais e as

relações sociais, de sorte a lograr uma sociedade melhor e eliminar (ou reduzir) suas

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disfuncionalidades. Tanto para um Estado de Direito simplesmente intervencionista quanto

para um Estado social de Direito, a prevenção especial apresenta-se como uma linha de

pensamento mais adequada que a retribuição ou a prevenção geral.

Já os aspectos negativos são assim visualizáveis. Conquanto de caráter

marcadamente humanista, porque se dirige ao homem real, a abordagem da prevenção

especial peca no que diz respeito à dignidade da pessoa, pois justamente empreende maior

violação à sua personalidade, dada a pretensão de transformar seu íntimo, sua própria

consciência. Ainda, tende a acentuar a chamada ideologia da divergência, fixando os valores

como absolutos consoante uma distinção entre normais e anormais, sãos e enfermos: aqueles

que demandam tratamento são aqueles que têm perturbações para compreender o valor, o

bem. A ressocialização ou o tratamento — como critério de validez geral ou fundamento da

pena — parece questionável na sua própria legitimidade e somente poderia, sob determinadas

condições, em especial com o consentimento do sujeito, justificar-se frente a certos casos

particulares e, em todo caso, prescindindo da ideologia da diferenciação que a informa.

5.3. TEORIA DA PREVENÇÃO GERAL

A teoria da prevenção geral vê o sentido e fim da pena nos efeitos intimidatórios

sobre a generalidade das pessoas.

Sustentadas por Jeremy Bentham, Arthur Schopenhauer e Ludwig Feuerbach, as

teorias de prevenção geral da pena estabelecem que a pena cuida de prevenir de forma geral

os delitos, isto é, mediante uma intimidação ou coação psicológica, pretende a pena obter o

respeito de todos os cidadãos. Essa teoria preventivo-geral agita-se entre duas idéias: a

utilização do medo e a valorização da racionalidade do homem.

215 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís

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De um lado, procura afastar-se do receio de cair num totalitarismo, no terror pelo

próprio Estado, fundado na consideração do homem como animal que responde somente a

pressões negativas. Roxin, como se verá mais adiante, menciona essa tendência ao terror

estatal, amparado na assertiva de que quem pretende intimidar por meio da pena tenderá a

reforçar essa finalidade por meio do castigo mais duro possível. De outro lado, ao fixar-se na

capacidade racional absolutamente livre do homem, acaba por amparar-se numa ficção

semelhante à concepção de livre arbítrio ou, num outro extremo, na idéia de um Estado

absolutamente racional em seus objetivos, o que também em si é uma ficção.

A crítica acerca dessa racionalidade é que ela diz respeito exatamente ao Estado,

de modo que tende a absolutizar uma racionalidade determinada e uma vez mais, com isso,

chegar-se-ia ao terror estatal. A teoria da prevenção geral marca o esforço de seus defensores

em passar de uma concepção de Estado absoluto para uma de Estado de Direito. Numa

primeira época do Estado capitalista, as teorias de prevenção geral poderiam até surgir como

suficientes. O desenvolvimento posterior do Estado capitalista exigiu uma reconsideração da

concepção da pena. A prevenção geral é um instrumento de controle social e, como tal, neutro

valorativamente. De qualquer forma, não responde à crítica, que também se faz às teorias da

retribuição e da correção, de que não esclarecem o âmbito do que seja punível.

A teoria da prevenção geral ou cai na utilização do medo como forma de controle

social, com o qual se chega num Estado de terror e na transformação dos indivíduos em

animais, ou na suposição de uma racionalidade absoluta do homem no juízo de ponderação

entre as condutas que poderá eleger, na sua capacidade de motivação, tão ficcional como a

idéia de livre arbítrio, ou, por último, cai na teoria do bem social ou da utilidade pública, que

Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 22.

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tão-somente acoberta os interesses em jogo: uma determinada socialização das contradições e

dos conflitos de uma democracia imperfeita.

É de ver, todavia, que a base do pensamento preventivo geral não está apenas no

argumento de racionalidade, mas também no de utilidade: a pena deve ser útil para a

sociedade. A insistência na eficácia preventiva geral leva, no entanto, inevitavelmente a

aumentá-la, fomentando uma transformação do Estado democrático num Estado puramente

policial. Vale-se Bustos Ramírez, a esta altura, do exemplo dos supermercados, onde seria

necessário almejar um equilíbrio entre a vigilância dos alimentos à disposição e a necessidade

de deixá-los efetivamente à disposição para escolha pelos clientes.216 Nessa acepção,

Hassemer realiza uma revisão crítica dos próprios critérios preventivos gerais da pena,

amparado principalmente nos insolúveis problemas de caráter empírico-metodológico, para

demonstrar o alcance dessa finalidade preventiva geral quando se pune determinada

conduta.217

A prevenção geral apresenta inegável relevância para justificar a intervenção

penal do Estado de Direito, baseando-a não em razões ético-metafísicas, mas em razões

sociais e político-jurídicas. Trata-se de sistema que tende a conservar um determinado âmbito

de liberdade do indivíduo, de sorte a bem manter-se em consonância com os ideais de um

Estado liberal mínimo, especialmente o respeito ao sujeito individualmente considerado.

Nada obstante, são questionáveis os métodos utilizados — o medo (coação

sociológica) e a instrumentalização da pessoa -, que evidentemente vão de encontro à idéia de

dignidade da pessoa, base de um Estado de Direito. Além disso, a preocupação com a

mensuração da pena não de acordo com a censurabilidade do fato realizado, mas sim com

216 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 163.

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base nos fins sócio-políticos do Estado vulnera igualmente outro postulado do Estado de

Direito, o que permite a aproximação da teoria da prevenção geral com a arbitrariedade dos

regimes absolutistas.

De um ponto de vista exclusivamente utilitarista, não parece possível comprovar o

efeito da pena de prevenção geral intimidatória, o que torna a discussão muito mais filosófica

ou mesmo uma questão de fé, em franca contrariedade com o postulado de utilidade social.

Para um Estado que acentua sua intervenção nos processos sociais como única forma de

aplacar sua própria disfuncionalidade, a prevenção geral apresenta-se inadequada justamente

por sua generalidade, por deixar de diferenciar os processos sociais e controlá-los segundo

suas especificidades.

Embora tenha sido lançada por Feuerbach ainda no início do século XIX, a

concepção da prevenção geral não perdeu sua importância, porque até hoje está arraigada a

idéia de que, com a ajuda da legislação penal, é possível motivar a generalidade da população

a comportar-se de acordo com as leis, ou seja, uma consideração de natureza claramente

preventivo-geral escorada no papel motivador que exerce o tipo penal. Nada obstante, tal

teoria não é isenta de críticas.

Em primeiro lugar, permanece em aberto – do mesmo modo que nas teorias da

retribuição e da prevenção especial – a questão de saber face a que comportamentos possui o

Estado a faculdade de intimidar. Em outras palavras, permanece carente de explicação o

âmbito do criminalmente punível.

217 Generalprävention und Strafzumessung. Apud: RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 163.

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É de ver, outrossim, que o ponto de partida da prevenção geral, diante do concreto

perigo de a pena ultrapassar a medida do defensável numa ordem jurídico-liberal, possui

normalmente uma tendência ao terror estatal, porque quem pretender intimidar por meio da

pena tenderá a reforçar esse efeito justamente se valendo do castigo mais duro possível. As

penas, então, tenderão a ser exponencialmente mais graves. A prevenção geral demanda, pois,

uma delimitação que não se extrai do seu ponto de partida teórico.

Em segundo lugar, impende registrar que, em muitos grupos de crimes e de

delinqüentes, não se conseguiu provar até agora o efeito de prevenção geral da pena, seja

quando se trata do criminoso profissional, seja quando se trata do delinqüente impulsivo

ocasional. A teoria da prevenção geral, portanto, relativamente ao atingimento de suas

finalidades (intimidação geral) carece de um substrato empírico demonstrável. As penas mais

cruéis, historicamente, não conseguiram fazer diminuir a criminalidade. Aliás, cada crime, de

per si, constitui uma demonstração inequívoca da ineficácia da prevenção geral.

Em terceiro lugar, e aqui reside a crítica mais robusta à prevenção geral, não há

como justificar, num Estado que prime pela dignidade da pessoa, que se castigue um

indivíduo não em razão de fato dele próprio, mas em consideração a outros. Em outros

termos, como se pode conceber a justiça em se admitir a imposição de um mal a alguém para

que outros se abstenham de cometer um mal? O indivíduo passa de sujeito a objeto à mercê

do poder estatal, material humano a ser utilizado. Deixa ele, segundo a concepção de

prevenção geral extremada, de ser titular de um valor como pessoa, equiparado a todos os

outros, sendo certo que tal valor é prévio ao próprio Estado e deve ser protegido por este, que

inadmitirá essa verdadeira “instrumentalização” do homem.

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De modo conciso, a teoria da prevenção geral “não pode fundamentar o poder

punitivo do Estado nos seus pressupostos, nem limitá-lo nas suas conseqüências; é político-

criminalmente discutível e carece de legitimação que esteja em consonância com os

fundamentos do ordenamento jurídico”.218

CAPÍTULO 6 – A missão do direito penal: os fins da pena

segundo o funcionalismo teleológico

As abordagens mistas, ou ecléticas, de concepção mais simples são todas aquelas

que a partir de Liszt trataram de combinar junto ao critério fundamental retributivo a

aplicação de medidas, isto é, a abordagem da via dupla no direito penal, para reconhecer uma

natureza retributiva, mas que no caso de certos delinqüentes é necessário proceder com

critérios preventivos especiais, ou seja, por meio de medidas.219 De qualquer forma, parece

difícil conceber uma conciliação entre a idéia de retribuição e a de tratamento, entre a idéia de

castigo e a de ressocialização: em ambos os casos se cuidam de sentidos completamente

diferentes de direito penal e, por conseqüência, do conteúdo da teoria do delito.

Outra fórmula mista mais própria a uma concepção de Estado de Direito

garantidor é aquela que combina a retribuição com a prevenção geral.220 A pena, tomada

como um mal e uma resposta à ação realizada, tem a finalidade de fortalecer os preceitos e as

obrigações violadas por meio da ação delituosa. Não é outra a concepção sustentada por Adolf

Merkel no século XIX.221 Já Günther Jakobs, que compreende a culpabilidade com apoio em

218 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 25. 219 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 171. 220 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 108 et seq. 221 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 172.

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sua própria finalidade, como já visto, sustenta que o fundamento da pena não é outro que não

a prevenção geral, não no sentido intimidatório, mas como exercício de fidelidade ao direito.

Uma terceira fórmula visualiza na pena um caráter marcadamente preventivo e

tenciona unir prevenção geral com especial, dando maior preponderância ao critério

preventivo geral. Nessa esteira, vale lembrar que o Projeto Alternativo alemão de 1966

estabelecia expressamente que as penas e as medidas teriam por finalidade a proteção de bens

jurídicos e a reinserção do autor na comunidade jurídica.

Em relação a todas essas fórmulas mistas, pode-se fazer a objeção de Roxin,

segundo a qual os efeitos de cada teoria não se suprimem em absoluto entre si, mas se

multiplicam. As últimas abordagens tendem a uma superação das diferentes teorias, ou ao

menos de uma em concreto. Com efeito, vários autores procuram superar as críticas dirigidas

à prevenção geral. Hassemer afasta-se de uma idéia de prevenção geral intimidatória para se

inclinar por uma prevenção geral ampla, que somente persiga a estabilização da consciência

do Direito, com que pretende converter o direito penal num controle social como tantos

outros, mas que se diferencia deles porque ligado à proteção dos direitos fundamentais

daquele atingido por suas normas (semelhante a Merkel, Jakobs e Carrara).222

Também em relação à prevenção especial, autores como Enrique Bacigalupo se

esforçam para superar as críticas então existentes. Para ele, com a pena se pode obter a

reintegração social do autor, o que justamente a legitima como meio de política social. Para

sua aplicação, há de se distinguir entre os autores segundo sua forma de reagir frente a pena,

222 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 403 et seq.

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de sorte a afastar a distinção entre penas e medidas e entre imputáveis e inimputáveis. Tratar-

se-ia de um sistema de prevenção especial democraticamente orientado.223

Embora essas orientações procurem reduzir as falhas então apontadas, não se

revela possível eliminá-las por completo. O próprio Hassemer reconhece que a afirmação no

sentido de que a medição da pena (como critério preventivo geral) constitui e apóia as normas

sociais na direção correta é algo que não se pode provar e somente deriva de uma esperança

depositada no próprio direito penal.224 Bacigalupo assinala que a idéia de ressocialização

expressa antes de tudo uma exigência de derrogação do direito penal de retribuição, em favor

de um projeto de cunho alternativo.225

Juntamente aos modelos superadores do paradigma tradicional, há outros de

caráter mais complexo, pois pretendem uma integração maior ou uma visão mais ampla do

direito penal.226 É justamente onde se insere a proposta de Claus Roxin.227

A teoria unificadora de Roxin combina as três versões entre si: teoria da

retribuição, teoria da prevenção específica e teoria da prevenção geral. Vê o sentido da pena

não apenas na compensação da culpa do delinqüente, mas também no sentido geral de fazer

223 Significación y perspectiva de la oposición “derecho penal-política criminal”. Apud: RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 174. 224 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 174. 225 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 174. 226 É certo que, independentemente do ponto de vista a ser adotado, “(…) a justificação da pena envolve a prevenção geral e especial, bem como a reafirmação da ordem jurídica, sem exclusivismos. Não importa exatamente a ordem de sucessão ou de importância. O que deve ficar patente é que a pena é uma necessidade social – ultima ratio legis, mas também indispensável para a real proteção de bens jurídicos, missão primordial do direito penal. De igual modo, deve ser a pena, sobretudo em um Estado constitucional e democrático, sempre justa e necessária, inarredavelmente adstrita à culpabilidade (princípio e categoria dogmática) do autor do fato punível)”. PRADO, Luiz Regis. Teoria dos fins da pena: breves reflexões. In: Ciências penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, a. 1, n. 0, 2004, p. 158. De qualquer forma, vale a advertência de Zaffaroni, para quem “as combinações teóricas, em matéria de pena, são muito mais autoritárias do que qualquer uma das teorias puras, pois somam as objeções de todas as que pretendem combinar e permitem escolher a pior decisão em cada caso. Não se trata de uma solução jurídico-penal, mas de uma entrega do direito penal à arbitrariedade e da conseqüente renúncia à sua função mais importante”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do Direito Penal. v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 141.

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prevalecer a ordem jurídica e também determinados fins político-criminais, com o fim de

prevenir futuros crimes. É de ver, contudo, que a simples adição dessas teorias destrói a lógica

imanente à concepção que aqui informa a discussão da legitimação da intervenção penal, uma

vez que, em lugar de justificar uma limitação da intervenção do Estado na esfera particular do

indivíduo, acabaria por aumentar o âmbito de aplicação da pena, a qual se converteria assim

num meio de reação apto para qualquer realização.

Os efeitos da teoria não se suprimem em absoluto entre si; ao contrário,

multiplicam-se, o que é gravíssimo à concepção de Estado democrático de Direito. Aliás, se a

pena possui todas essas finalidades (retribuição, prevenção prevenção específica e prevenção

geral), só não tem numa maior medida corroborado para uma ruptura do próprio sistema penal

porque as decisões valorativas constitucionais e as exigências de razão sócio-política têm

pragmaticamente orientado aqueles que operam o sistema de justiça criminal.

Roxin, diante desse quadro, procura enfrentar e lastrear sua teoria unificadora

segundo a concepção de que o atual direito penal enfrente o indivíduo de três maneiras:

ameaçando-o com penas, impondo essas penas e executando-as. No entanto, assevera que

essas três esferas de atividade estatal demandam justificação cada uma em separado. Os

distintos momentos de realização do direito penal estruturam-se uns sobre os outros e,

portanto, cada etapa seguinte deve acolher em si os princípios da etapa precedente. O seguinte

excerto bem esclarece essa compreensão:

Cada uma das teorias da pena dirige a sua visão unilateralmente para determinados aspectos do direito penal – a teoria da prevenção especial para a execução, a idéia da retribuição para a sentença e a concepção da prevenção geral para o fim das cominações penais – e descura as restantes formas de aparecimento do poder penal,

227 Cf. HIRECHE, Gamil Föppel El. A função da pena na visão de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, passim.

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embora cada uma delas implique intervenções específicas na liberdade do indivíduo.228

6.1. PRIMEIRO MOMENTO DE REAL IZAÇÃO DO DIREITO PENAL : O ÂMBITO DE

INCIDÊNCIA

Impõe-se, então, questionar o conteúdo do mandamento penal proibitivo. A

resposta a isso depende do campo de atuação que é atribuído ao Estado moderno.229 O direito

penal, frise-se, não se presta a corrigir, por meio de sua autoridade advinda do Estado,

moralmente os particulares. Sua função limita-se, antes, a criar e garantir a um grupo reunido,

interior e exteriormente, no Estado, as condições de uma existência que satisfaça as suas

necessidades vitais. Para o direito penal, tal assertiva significa que seu fim somente pode

derivar do Estado e, como tal, apenas pode consistir em garantir a todos os cidadãos uma vida

comum livre de perigos. A justificação desse mister atribuído ao direito penal – justificação

dessa tarefa, mas não de todos os meios aplicáveis para a sua consecução – resulta

diretamente do dever que incumbe ao Estado de garantir a segurança dos seus membros.230

Em outras palavras, dentro de um contexto histórico e social, os pressupostos

imprescindíveis para uma existência em comum concretizam-se numa série de condições

valiosas, como a vida, a integridade física, a liberdade de atuação, a propriedade etc., ou seja,

concretizam-se justamente em bens jurídicos. O direito penal tem que assegurar esses bens

jurídicos e o faz por meio da punição da violação desses bens em determinadas condições.

Além dessa proteção aos bens jurídicos, no Estado contemporâneo, surge a necessidade de

assegurar, se necessário até mesmo por intermédio do direito penal, o cumprimento das

228 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 26-27. 229 Como já afirmado, o direito penal reflete justamente o modelo de Estado a que se aspira. 230 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 27.

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prestações de caráter público de que depende o indivíduo no quadro da assistência social por

parte do Estado.

Com esta dupla função, o direito penal realiza uma das mais importantes das numerosas tarefas do Estado, na medida em que apenas a proteção dos bens jurídicos constitutivos da sociedade e a garantia das prestações públicas necessárias para a existência possibilitam ao cidadão o livre desenvolvimento da sua personalidade, que a nossa Constituição considera como pressuposto de uma condição digna.231

Dessa dupla função do direito penal, extraem-se duas importantes conseqüências.

6.1.1. Princípio da subsidiariedade

O direito penal é de natureza subsidiária. Somente se ocupa de lesões a bens

jurídicos e delitos contra fins de assistência social, desde que tal intervenção seja

indispensável a uma vida em comum ordenada. Onde os demais meios do direito, que não o

penal, bastem, o direito penal deve retirar-se. Por mais veemente que seja a reação até mesmo

da sociedade, só se pode recorrer ao direito penal em último lugar. Ao valer-se do direito

penal em situações para as quais bastem outros procedimentos mais suaves para preservar ou

reinstaurar a ordem jurídica, a intervenção estatal carecerá da legitimidade que lhe advém da

necessidade social.

Desse modo, o bem jurídico recebe uma dupla proteção: por intermédio do direito

penal e ante o direito penal, cuja utilização exacerbada provoca precisamente as situações que

pretende combater.232 Essa idéia de subsidiariedade, donde se extrai o caráter fragmentário da

intervenção penal, compreende indubitavelmente todo um programa de política criminal. São

evidentes os sinais de adoção desse programa: (i) não pertencem ao direito penal meros

regulamentos de ordenação (nesses casos, bastaria a mera sanção administrativa); (ii) a

231 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 28. 232 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 28.

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assistência social possui prioridade em importância (o direito penal não se presta a integrar

aquelas pessoas que estão à margem do estrato social – mendigos, prostitutas etc. –; ao

contrário, a incidência das sanções penais faria perder em definitivo tais pessoais sobre as

quais pairava perigo de desagregação).

Sob essa ótica de intervenção fragmentária, subsidiária, revela-se imperioso todo

um reexame da ordem jurídica, a fim se utilizar o direito penal para proteger bens jurídicos

essenciais e assegurar os objetivos das prestações necessárias para a existência, apenas onde

não bastem para a sua prossecução meios menos gravosos.233 A valer, a penalização da

bagatela só possui o efeito de favorecer tanto a criminalidade, seja a sua prática, seja a figura

de seu praticante.

6.1.2. Princípio da lesividade

O legislador não possui competência para, em absoluto, castigar pela sua

imoralidade condutas não lesivas a bens jurídicos. Não se presta o direito penal a punir

condutas amorais ou contrárias à moral vigente de um determinado estrato social. As

cominações penais só estão justificadas se tiverem em conta a dupla restrição contida no

princípio da proteção subsidiária de prestações e bens jurídicos. Nessa linha de idéias, atento

às finalidades por ele mesmo esboçadas do direito penal, entende Roxin que as críticas

dirigidas às teorias tratadas sobre a pena de prevenção geral esmaecem-se se o direito penal

cultivar esse papel duplo por ele propugnado.

Tudo que se pode deduzir contra uma graduação da pena baseada em pontos de vista de prevenção geral – que conduz a penas excessivamente graves e que não se pode justificar quanto à pessoa do delinqüente – não afeta de modo algum as disposições penais enquanto tais. Em contrapartida, a objeção de que o fim de prevenção geral não é adequado para limitar o poder penal do Estado, é em si convincente mesmo no que diz respeito às cominações penais, eliminando-se, todavia, com a nossa restrição dessa finalidade à proteção de bens jurídicos e prestações, assim como à

233 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 29.

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subsidiariedade do direito penal no cumprimento de tais tarefas. E, por último, no que diz respeito aos argumentos contra a eficácia político-criminal das proibições jurídico-penais, há que ter em conta que as cominações penais representam apenas a primeira das três etapas da eficácia do direito penal, as quais em conjunto e apenas em conjunto, esgotam o sentido e a missão do direito penal.234

Em última análise, as cominações penais justificam-se — apenas e sempre — pela

necessidade de proteção preventivo-geral e subsidiária de bens jurídicos e prestações.235

6.2. SEGUNDO MOMENTO DE REALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL : APLICAÇÃO E

MENSURAÇÃO DA PENA

Relativamente à fase de aplicação e de graduação da pena, Roxin sustenta a

necessidade de introdução do princípio da prevenção geral na própria atividade judicial, ao

argumento, já utilizado por Feuerbach, de que o fim último da aplicação de uma pena desnuda

a intimidação dos cidadãos por meio da lei.236

De um lado, ao deparar-se com a recusa à teoria da prevenção geral, bem assim às

críticas dirigidas à prevenção geral, Roxin aponta que a exigência de punição conforme o

direito ao delinqüente veicula uma proteção que não se confere consoante dadas

circunstâncias, mas que se traduz numa garantia jurídica contra o exercício de arbitrariedades

por parte do Estado. A decantada concepção de inviolabilidade do ordenamento jurídico

traduz idéia própria da prevenção geral, “embora certamente não se possa entender aqui este

conceito no sentido de mera intimidação, devendo acrescentar-se-lhe a significação mais

234 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 31-32. 235 Acerca do princípio da lesividade, Luiz Flávio Gomes, que prefere a nomenclatura “princípio da ofensividade”, em trabalho completo acerca do tema, salienta que tal princípio possui função dogmática (interpretativa). Entende que o princípio da ofensividade, além de desenvolver-se no plano político-criminal e ter a pretensão de limitar o legislador no momento de suas decisões criminalizadoras, está predestinado a desempenhar função no plano interpretativo e aplicativo da lei penal. Com isso, presta-se a constatar, após o cometimento do fato criminoso, a concreta presença de uma lesão ou de um perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido. Cf. GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, passim, especialmente p. 99 et seq. 236 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 32.

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ampla de salvaguarda da ordem jurídica na consciência da comunidade”.237 Nesse particular, é

de ver que a concordância com a impunidade, ainda que em casos especiais numa constelação

de casos, implicaria, no futuro, a alegação a favor de qualquer delinqüente de que ele poderia

cometer, sem qualquer castigo, pelo menos uma vez, um fato: com isso, a ordem jurídica

perderia, a prazo, a sua eficácia. Vale lembrar que, sob uma perspectiva hegeliana, a pena “é

supressão do crime que de contrário se imporia e é o estabelecimento do direito”.238

De outro lado, entende ele que, na maioria dos casos de aplicação de uma pena,

inclui-se igualmente um elemento de prevenção especial que intimidará o delinqüente face a

uma possível reincidência e manterá a sociedade segura deste, pelo menos durante o

cumprimento da pena privativa de liberdade. No entanto, mesmo a prevenção especial da

sentença penal também veicula um fim de prevenção geral na medida em que traduz a pena

uma salvaguarda da própria ordem da comunidade. A restrição da liberdade do delinqüente,

pois, não se faz em seu próprio favor; o fim da pena traduz-se na salvaguarda da ordem da

comunidade, de modo que serve ela a outros e não ao próprio delinqüente. A discussão

relevante por trás dessa assertiva diz respeito à conformidade do meio ao direito. Roxin, na

esteira do que já apontava Kant, registra que “um ordenamento jurídico para o qual o

particular não é objeto, mas o titular do poder estatal, não o pode desvirtuar convertendo-o em

meio de intimidação”, para em seguida pontificar que “a aplicação da pena estará justificada

se se conseguir harmonizar a sua necessidade para a comunidade jurídica com a autonomia da

personalidade do delinqüente, que o direito tem de garantir”.239

237 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 33. 238 Rechtsphilosophie. Apud: ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 33. 239 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 34.

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Dessas concepções, é possível extrair conseqüências não apenas à aplicação da

pena, mas também ao próprio instrumental de realização do direito penal (processo penal).

Não há como admitir, em primeiro lugar, qualquer submissão do particular a trato que o prive

da livre determinação de suas declarações. Numa teoria da pena, tal pressuposto de

justificação limita com robustez a idéia de prevenção geral.

Além disso, a pena não pode, segundo Roxin, ultrapassar a medida da culpa.

Embora não se preste a fundamentar o poder penal do Estado, a culpa serve para limitar a

intervenção estatal. Não há como negar que as idéias de dignidade humana e autonomia da

pessoa orientam e presidem a elaboração da Carta Política, que toma o homem como ser

capaz de culpa e responsabilidade. Embora seja inviável a demonstração empírica da

consciência e liberdade de que goza o homem para orientar sua existência segundo um

sentido, essa autonomia de vontade evidencia-se como legítima à decisão da sociedade de

criar uma ordem livre e conforme ao Estado de Direito.

Assim, “o conceito de culpa – que enquanto realidade experimental não se pode

discutir – tem a função de assegurar ao particular que o Estado não estenda o seu poder penal,

no interesse da prevenção geral ou especial, para além do correspondente à responsabilidade

de um homem concebido como livre e suscetível de culpa”.240 O conceito de culpa, portanto,

utilizado para restringir o poder da autoridade, atua exclusivamente em favor do particular e

das suas possibilidades de desenvolvimento, deixando em suspenso a questão do livre arbítrio,

que até hoje carece de resposta.

A questão de saber se a culpa concede um direito de retribuição ao Estado, ou se ela constitui um meio de manter dentro de limites aceitáveis os interesses da coletividade face à liberdade individual, parece-me mais importante para o direito penal do que a existência de culpa em geral. A resposta só pode apontar no sentido da segunda alternativa; não apenas devido, como se expôs anteriormente, à duvidosa

240 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 36.

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idéia de retribuição, mas sobretudo porque a dignidade do homem proclamada pela Lei Fundamental é um direito de proteção frente ao Estado e não pode ser transformada numa faculdade de ingerência.241

Roxin, portanto, considera justa e legítima a imposição de pena ao delinqüente,

que estará obrigado a suportá-la em atenção à comunidade, porque, como membro dela, terá o

delinqüente de responder pelos seus atos na medida de sua culpa, para a salvaguarda da ordem

dessa comunidade. Não se cuida de utilizar o particular como meio para os fins dos outros,

mas de atribuir a ele também a responsabilidade pelo destino, confirmando a sua posição de

cidadão com igualdade de direitos e obrigações. A não aceitação da justificação da pena, sob

esse argumento, implicaria, para o penalista alemão, a negativa de existência de valores

públicos e, com eles, o sentido e missão do Estado.242

Logo, o fim da prevenção geral da punição apenas é alcançável na culpa

individual: ir além disso implica inarredavelmente vulneração da dignidade humana. E o

princípio da culpabilidade, se for separado da teoria da retribuição — à qual se considera

equivocadamente ligado de modo indissolúvel -, revela-se como um meio imprescindível para

limitar o poder penal estatal num Estado de Direito. Nesse particular, seria aceitável até

mesmo que uma pena fosse aplicada inferiormente à culpa do delinqüente (o que seria

impensável numa perspectiva eminentemente retribucionista).

No entanto, essa aplicação de uma pena inferior à culpa seria permitida e até

mesmo necessária, consoante o princípio da solidariedade utilizado para justificar as

cominações penais, se, no caso concreto, se restaurar a paz jurídica com sanções menos

graves: trata-se do postulado da necessidade da pena, que deve informar justamente esse

momento de aplicação e graduação da pena.

241 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 37.

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Assim, em apertada síntese sobre esse segundo momento de realização do direito

penal (aplicação e mensuração da intervenção penal), a aplicação da pena serve para a

proteção subsidiária e preventiva, tanto geral como individual, de bens jurídicos e de

prestações estatais, por meio de um processo que assegure a autonomia da personalidade e

que, ao impor a pena, esteja limitado pela medida da culpa. Conserva-se, pois, o princípio da

prevenção geral, reduzido às exigências do Estado de Direito e completado com as

componentes de prevenção especial da sentença; mas, simultaneamente, por intermédio de

uma função limitadora dos conceitos de liberdade e de culpa, sob uma perspectiva que se

coadune com os ditames da Carta Política, desvanecem-se as críticas então dirigidas à

concepção que gradue a pena segundo esse mesmo postulado de prevenção geral.243

6.3. TERCEIRO MOMENTO DE REALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL : A EXECUÇÃO DA

PENA

A execução da pena somente se justifica se prosseguir a meta de servir

exclusivamente a fins racionais e de possibilitar a vida humana em comum e sem perigos. Em

outras palavras, a execução da pena deve ter como conteúdo a reintegração do delinqüente à

comunidade, mirar como escopo justamente uma execução ressocializadora, em que

coincidam prévia e amplamente os direitos e deveres da coletividade e do particular.

A idéia de execução ressocializadora, no entanto, não se presta por si só a

justificar o direito penal. Roxin salienta a importância de se contextualizar sua concepção de

execução ressocializadora face às etapas precedentes de realização do direito penal. Os

esforços de ressocialização apenas são legítimos e bem sucedidos no sentido descrito se

verificados dentro dos limites delineados para a intervenção penal estatal. A garantia

242 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 37.

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constitucional da autonomia da pessoa impõe o respeito, na execução da pena, à estrutura da

personalidade do delinqüente, ou seja, ainda que possua uma eficácia ressocializadora, será

inadmissível a utilização de qualquer tratamento coativo que interfira nessa estrutura de

personalidade.244

De qualquer forma, “tanto quanto a autonomia da personalidade do condenado e

as exigências iniludíveis da prevenção geral o permitam, os únicos fins legítimos de execução

são os ressocializadores”.245 E mais: o próprio conceito de ressocialização deve atentar para

uma acepção mais ampla, que permita, por exemplo, maior realce à idéia de reparação dos

danos causados pela conduta delitiva. A execução da pena deve despertar a consciência da

responsabilidade e ativar e desenvolver todas as forças do delinqüente e muito em particular

as suas especiais aptidões pessoais, sempre de modo a desenvolver sua personalidade, e não

ofendê-la, denegri-la ou humilhá-la. Para tanto, deve a execução da pena abrir-se a uma

abordagem multidisciplinar, que abarque considerações oriundas da Medicina, Psicologia,

Pedagogia etc.

É justamente a execução da pena que constitui a parte mais débil da práxis do

direito penal contemporâneo. Qualquer esforço ressocializador, é certo, fracassa quando o

delinqüente não está disposto a fomentá-lo, até mesmo porque jamais será possível acabar

com a criminalidade (que, como já visto, evidencia um componente normal da estrutura

social); no entanto, tal constatação não desvincula a sociedade de sua obrigação face ao

delinqüente. Assim como este é co-responsável pelo bem-estar da comunidade que integra,

também essa comunidade não pode ilidir a responsabilidade pela sua sorte. Essa

243 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 40. 244 É essa assertiva que retira qualquer fundamento de validade, por exemplo, à concepção de pena de castração para crimes sexuais. 245 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 41.

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compenetração ou conjugação de esforços – oriunda da concepção de co-responsabilidade —

é que se revela hábil a provar a eficácia na execução da pena e na posterior reintegração do

delinqüente na comunidade.

Com isso, o sentido e os limites da pena estatal justificam-se na missão que tem a

intervenção penal de proteção subsidiária de bens jurídicos e prestações de serviços estatais,

mediante prevenção geral e especial, de salvaguarda da personalidade no quadro traçado pela

medida da culpa individual.246

Em apertada síntese do exposto acerca da teoria eclética, pode-se afirmar que

Roxin trata de superar as simples teorias mistas, que apenas justapõem critérios, por meio de

uma teoria que diferencia os seguintes momentos: (i) cominação penal – em que surge em

primeiro plano a prevenção geral, entendida de forma ampla no sentido sustentado por

Hassemer -; (ii) imposição e medição da pena, que seria o momento da realização da Justiça –

a valer, reflete a abordagem retributivo-preventiva geral, semelhante a Merkel e Jakobs -; e,

por último, (iii) execução da pena, que é o momento da prevenção especial, da reinserção ou

ressocialização do delinqüente. Roxin sustenta, portanto, a existência de um processo

dialético, em que o momento de retribuição não aparece de modo abstrato, para cumprir um

ideal absoluto de Justiça, mas limitado e condicionado à realidade imposta pelos momentos de

prevenção geral e especial. De qualquer forma, Roxin aponta que um momento deve ser

preponderante: o da prevenção especial (como asseverado no Projeto alemão Alternativo de

1966). Para uma concepção moderna a ressocialização deve ser considerada como o fim

principal da pena, pois serve tanto ao delinqüente como à sociedade e é a que mais se

aproxima da meta de uma coexistência de todos os cidadãos em paz e liberdade.

246 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 43.

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São essas as bases da teoria unificadora dialética propugnada por Claus Roxin,

claramente distinta das teorias monistas (teoria da retribuição, teoria da prevenção geral,

teoria da prevenção especial) e das teorias unificadoras por adição das concepções monistas.

As teorias monistas caem por terra porque a realização estrita de um só princípio

ordenador tem forçosamente como conseqüência a arbitrariedade e a falta de verdade247, ao

passo que as teorias unificadoras aditivas, que meramente acumulam diversos pontos de vista

particulares, sofrem do mesmo destino, além de, se tomadas de modo supérfluo, nada dizerem

ou, se tomadas literalmente, serem muito perigosas. A teoria unificadora dialética, segundo

Roxin, pretende evitar os exageros unilaterais e dirigir os diversos fins da pena para vias

socialmente construtivas, de sorte a obter o equilíbrio de todos os princípios mediante

restrições recíprocas. Valendo-se de uma concepção de Estado que reúne os princípios do

Estado social e do Estado liberal, assevera que

(…) a idéia de prevenção geral vê-se reduzida à sua justa medida pelos princípios da subsidiariedade e da culpa, assim como pela exigência de prevenção especial que atende e desenvolve a personalidade. A culpa não justifica a pena por si só, podendo unicamente permitir sanções no domínio do imprescindível por motivos de prevenção geral e enquanto não impeça que a execução da pena se conforme ao aspecto da prevenção especial. (…) a totalidade dos restantes princípios preservam a idéia de correção dos perigos de uma adaptação forçada que violasse a personalidade do sujeito.248

6.4. CRÍTICAS À TEORIA DE CLAUS ROXIN : ACRÉSCIMOS E SUPERAÇÕES

O direito penal somente se presta a fortalecer a consciência jurídica da

coletividade no sentido da prevenção geral se preservar ao mesmo tempo a individualidade de

quem a ele está sujeito. Aquilo que a sociedade faz em favor do delinqüente será, ao cabo,

mais proveitoso para ela própria, uma vez que só se pode ajudar o criminoso a superar a sua

inidoneidade social de uma forma igualmente frutífera para ele e para a comunidade se, a par

247 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 43.

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da consideração de sua debilidade e da sua necessidade de tratamento, não se perder de

consideração a imagem da personalidade responsável para a qual ele aponta.

No entanto, é possível vislumbrar críticas. O critério desenvolvido por Roxin pode

também ceder à arbitrariedade, o que somente seria impedido pelo condicionamento que lhe

impõem outros momentos e porque a pena não pode superar a gravidade do fato e o grau de

censurabilidade que recai sobre o delinqüente (função limitadora do princípio da

culpabilidade). A abordagem de Roxin é essencialmente preventiva, uma vez que o momento

retributivo resta totalmente esvaziado de seu conteúdo clássico e somente se evidencia como

manifestação de Justiça no sentido de limite imposto pela culpabilidade e pela prevenção,

dentro desta, com preponderância à idéia de ressocialização.

Registre-se que também Figueiredo Dias assinala uma natureza exclusivamente

preventiva das finalidades da pena.

O direito penal e o seu exercício pelo Estado fundamentam-se na necessidade estatal de subtrair à disponibilidade (e à “autonomia”) de cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensáveis ao funcionamento, tanto quanto possível sem entraves, da sociedade, à preservação dos seus bens jurídicos essenciais; e a permitir por aqui, em último termo, a realização mais livre possível da personalidade de cada um enquanto pessoa e enquanto membro da comunidade. Se assim é, então também a pena – na sua ameaça, na sua aplicação concreta e na sua execução efetiva – só pode perseguir a realização daquela finalidade, prevenindo a prática de futuros crimes.249

Na visão do penalista lusitano, prevenção geral (positiva ou negativa) e prevenção

específica (positiva ou negativa) devem coexistir e combinar-se do melhor modo e até o limite

possível, porque todas se voltam ao propósito comum de prevenir a prática de futuros crimes.

Para ele, o problema reside no modelo de medida da pena, uma vez que releva sim questionar

248 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 44. 249 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 129-130.

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como se devem comportar mutuamente as duas espécies de finalidades no momento decisivo

de determinação do quantum exato da pena concretamente pelo juiz.

É possível assinalar, contudo, uma aparente contradição na abordagem roxiniana:

primeiro se concebe a culpabilidade como conceito fictício de raízes metafísicas, incapaz de

por si só servir de fundamento à imposição de uma pena; logo em seguida, atribui-se a esse

conceito fictício nada menos que uma função limitadora do poder de intervenção estatal. A

concepção de Roxin tampouco consegue superar os obstáculos postos à elaboração de uma

concepção alternativa que não se ampare somente numa crítica justa ao retribucionismo, mas

que ao mesmo tempo ofereça um sistema adequado de garantias ao indivíduo.250

Demais disso, uma abordagem vincada no interacionismo simbólico tenderia a um

sistema penal de caráter dialogal, de sorte a deixar ao sistema normativo a função de regular

essa interação. Ao regular essa interação, o que se protegeria efetivamente seria a

possibilidade de participação social, a confiança no sistema, apesar da infração, e ao mesmo

tempo a criação de possibilidades de participação, que substancia exatamente o próprio

sentido da ressocialização. Com isso se superaria um sistema puro de penas, concebido de

modo retributivo como pura garantia, e um sistema de medidas, concebido em forma de

prevenção especial como puro tratamento: um totalmente abstrato e o outro completamente

utilitário, ambos essencialmente metapenais, seja num sentido metafísico seja num sentido

metassocial.

É de ver, contudo, que tal abordagem resulta, quando cotejada com as opções

levadas a efeito por Roxin, demasiadamente formal e mais como uma aspiração que como um

sistema claro de garantias e efeitos concretos claramente delimitados. Nesse sentido, essa

250 As críticas são desenvolvidas por Bustos Ramírez (Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p.176).

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abordagem própria do interacionismo simbólico, representada pelo alemão Rolf-Peter Callies,

padece de uma maior vagueza e imprecisão que o sistema proposto por Roxin.251

De qualquer modo, essas duas últimas posturas teóricas oferecem uma melhor

compreensão da pena, permitem uma maior individualização de suas funções e, com isso,

possibilitam a configuração de maior controle acerca dos riscos que cada critério preventivo

representa.

Mir Puig,252 por seu turno, sustenta uma abordagem que revisita as teorias

anteriores. Para ele, o modelo de Estado democrático de Direito (na Espanha) exige que a

pena cumpra uma missão (política) de regulação ativa da vida social que assegure seu

funcionamento satisfatório, mediante a proteção dos bens dos cidadãos. Essa missão só pode

se concretizar por meio de uma função de prevenção a ser atingida pela pena. Diante do risco

de todo direito penal que pretenda ser eficaz aproximar-se do terror estatal, Mir Puig assevera

que a função de prevenção deve manter-se estritamente limitada pelos princípios que regem

justamente um Estado democrático de Direito: proteção de bens jurídicos e

proporcionalidade;253 princípio da legalidade; servir à maioria com respeito à minoria.

Convém sublinhar que a estrita limitação das finalidades a serem exercidas pelo direito penal

251 Theorie der Strafe im demokratischen und sozialen Rechtsstaat, 1974, p. 176 et seq. Apud: RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p.177. 252 PUIG, Santiago Mir. Introducción a las bases del derecho penal: concepto y método. Barcelona: Bosch, 1976, p. 60 et seq. 253 A respeito da proporcionalidade, Häberle salienta que o princípio da ponderação de bens atua como parâmetro que determina o modo e a medida dos limites admissíveis aos direitos fundamentais. Adquire, portanto, relevância na medida em que serve de parâmetro à função do legislador de delimitar o direito fundamental frente a bens jurídicos de igual ou superior valor. O legislador tem, por um lado, esse encargo de proteger os bens jurídicos e, por outro, de atuar em prol dos próprios direitos fundamentais, em favor, em suma, da totalidade da Constituição. O direito penal não cuida apenas de limitações a direitos fundamentais. O legislador intervém tanto para assegurar quanto para limitar direitos fundamentais, a depender da perspectiva adotada. HÄBERLE, Peter. La garantia del contenido esencial de los derechos fundamentales. Tradução de Joaquín Brage Camazano. Madrid: Dykinson, 2003, p. 175 et seq. Os direitos fundamentais atuariam, então, como verdadeiro complexo de limites. Ao legislador penal caberia também, assim, uma função criativa tomando como marco a Constituição, para encontrar diferentes regulações, novas figuras jurídicas e institutos, tudo de sorte a assegurar o caráter subsidiário da intervenção penal.

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vincula-se ao modelo de Estado pretendido, justamente como se assevera no transcurso de

toda a investigação ora desenvolvida.

Desse modo, Mir Puig supera as concepções anteriores na medida em que, por

uma parte, delimita de forma clara e precisa a função da pena e, por outra, escapa de qualquer

tipo de formalismo, haja vista que assinala concretamente a função de prevenção. Afasta-se de

Roxin e do Projeto Alternativo alemão de 1966, reconheça-se, porque registra dentro da

prevenção a preponderância da prevenção geral. A prevenção especial só poderá ser atingida

desde que dentro do marco da prevenção geral. A prevenção, para o autor catalão, supõe que a

pena tenha eficácia motivadora e, por conseqüência, que o hoje seja suscetível de motivação.

Assim, Mir Puig alcança o delineamento de um sistema acabado em relação à pena e à sua

colocação na teoria do delito.254

De qualquer forma, ainda assim é possível vislumbrar alguns pontos de

controvérsia ou mesmo de críticas na abordagem de Mir Puig. O primeiro deles refere-se à

eficácia dos controles garantidores do respeito à idéia de prevenção da pena, problema

comum, na verdade, a todas as teorias. O segundo diz respeito ao problema da motivação, isto

é, se realmente se pode partir do pressuposto certo de que a norma penal motiva, o que requer

uma investigação empírica que até o momento não alcançou qualquer conclusão segura a

respeito. De qualquer modo, quer parecer que Mir Puig se refira a uma motivação no sentido

concreto, e não abstrato. O terceiro, e último, guarda relação com a proeminência da

prevenção geral sobre a especial, de modo a fazer prevalecer ma razão social sobre a razão do

254 Benítez registra que, segundo Callies e Mir Puig, o bem jurídico possui sempre um conteúdo social, a proteção de bens jurídicos é – em todo caso – proteção do sistema social, ao passo que a tese de Roxin reserva um âmbito de estrita referência individual, valorativa, aos bens jurídicos, em que a proteção destes significa diretamente proteção de valores individuais, ou estados naturais. De qualquer sorte, ambas as concepções são muito próximas e guardam raízes no sistema de garantias liberais, de modo que seguem também esboçando um direito penal afeito ao princípio da culpabilidade. Cf. BENÍTEZ, José Manuel Gómez. Sobre la teoría del “bien jurídico” (aproximación al ilítico penal). In: Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad

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indivíduo, o que poderia implicar perigo às bases de um Estado democrático de Direito, cujo

pilar fundamental é o reconhecimento da dignidade da pessoa e sua precedência em face do

Estado.

Hassemer assevera que a capacidade de motivação pela ameaça de pena e pela

execução da pena encontra restrições que derivam da rigidez jurídico-racional da idéia de

prevenção geral, que, segundo ele, menospreza amiúde a “insensatez” dos homens.

A teoria da prevenção geral espera por um homo oeconomicus, que não se orienta pelas regras gerais. Ela pressupõe que o autor punível em potencial pondere, uma em relação à outra, as vantagens e desvantagens do ato ruim e dessa forma se desinteresse por ele, porque o sistema jurídico-penal, com a ameaça de pena e a execução da pena, cuidou para que não valesse a pena. Esta construção não se dá conta de uma série de acontecimentos empíricos que a contrariam de maneira obstinada.255

O mesmo Hassemer assevera que o mecanismo de intimidação mostra-se

extremamente improvável empiricamente e, além disso, também seria notoriamente

insuportável. “A idéia do efeito da pena da teoria da prevenção geral é em sua racionalidade

mecanicista uma idéia de desprezo ao homem. A ameaça de pena e a execução da pena não

são também os instrumentos que poderiam conservar o indivíduo parte no contrato social com

uma boa conduta”.256 Assim, idéia da intimidação provocada pela pena seriam empírica e

normativamente duvidosa.

De qualquer modo, a abordagem de Mir Puig reveste-se de fundamental

importância por propor um sistema claramente alternativo, em seu conjunto, em relação à

teoria retributivista, sobre bases — modelo de Estado democrático de Direito e a pena como

Complutense. Nueva Epoca. Madrid: Universidad Complutense, Facultad de Derecho, outono, 1983, p. 109-110. 255 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 408. 256 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 412.

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uma missão política de regulação ativa da vida social – que surgem inafastáveis para qualquer

sistema que se proponha como razoável e consentâneo com ideais humanistas.

A abordagem de Juan Bustos Ramírez257, por sua vez, toma por base inicial a

concepção de Mir Puig. Distingue a abordagem da pena em dois aspectos: um, o que é a pena,

o outro, a imposição da pena. Em outras palavras, diferencia a razão em si da pena e a razão

prática da pena.

No primeiro aspecto, a pena é uma autoconstatação ideológica do próprio Estado,

não é neutra porque o próprio Estado não é neutro. Por meio da pena o Estado demonstra sua

existência frente a todos os cidadãos, registra que o sistema por ele regido segue vigente. A

principal tarefa de um Estado democrático, no que se diferencia em relação a outras formas de

Estado, é justamente a constante revisão de sua própria autoconstatação e conseqüentemente

dos bens jurídicos por ele protegidos.

Assinalar uma função maior da pena dirigida à prevenção implicaria reconhecer,

de um lado, uma função empiricamente não demonstrável, embora por definição seu efeito

seja verificável apenas na realidade concreta, e, de outro lado, implicaria conceder a um

Estado, imperfeito no seu desenvolvimento democrático e sujeito a uma série de interesses,

um direito de intervenção demasiadamente robusto por meio da violência na vida dos

cidadãos. Certamente que poderão produzir-se, como efeito da autoconstatação do Estado, a

intimidação ou o fortalecimento da consciência jurídica. No entanto, tais efeitos em nada

acrescem a essa autoconstatação: ainda que a pena não atinja esses efeitos, ela prosseguirá

sendo o que é.

257 Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p.179 et seq.

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Além disso, para que se produza um efeito preventivo, que supõe a motivação do

ser humano pela norma penal, seria necessária a existência de um consenso sobre as normas

penais. Nada obstante, as investigações empíricas têm demonstrado exatamente o contrário: é

o dissenso que lastreia a própria existência das normas jurídicas, do ponto de vista de sua

legitimidade, uma vez que provêm exatamente de uma ideologia hegemônica dominante na

sociedade.

Ao preocupar-se tão somente com os efeitos, reclamos de eficácia acabariam por

levar o Estado de Direito democrático a interessar-se apenas por estabelecer mecanismos de

obediência, e não de legitimação, com o que desaparece ou se põe em risco o próprio Estado

de Direito que se vê transformado em autoritário ou absolutista. Se os demais controles do

Estado fracassaram (educação, família, escola, meios de informação etc.), mais aptos,

justamente porque não são violentos, como conceder à pena, que é sempre violenta e coativa,

uma função motivadora de acordo com a dignidade do ser humano?

Atribuir à pena uma função motivadora nesses moldes implica ignorar os demais

controles, o que pode provocar o perigoso argumento de que, se as penas não são

suficientemente graves para alcançar uma motivação, seria necessário aumentá-las ou torná-

las mais graves. A pena é sempre coação e a coação “força” atemoriza, mas não motiva, no

sentido de obrigação ética ou bem da decisão pessoal autêntica e não alienada. No fundo,

salienta Bustos Ramírez, tanto as teorias absolutas como as relativas partem do critério da

motivação e justamente por isso são concepções unilaterais. Tanto pena como delito são um

produto do Estado, é ele quem os define e quem os impõe. É certo que o delito é realizado

pelo sujeito, mas isso não significa que o delito seja produto desse mesmo sujeito.

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A pena e o delito como seu pressuposto são parte, portanto, da autoconstatação

ideológica do Estado. Um Estado democrático de Direito tem que reconhecer, para ser assim,

a pessoa como uma entidade ética diferente do Estado, autônoma e superior, pois constitui sua

finalidade. Com efeito, a entidade ética do Estado só se entende e se legitima a serviço da

entidade ética do homem. A pena reflete apenas a autoconstatação ideológica do Estado, de

seu sistema de valores. É por ela que o Estado tende a não se preocupar com a efetividade das

normas (recorde-se nesse particular sua característica contrafática).

Nesse passo, a missão crítica do operador do direito, especialmente do direito

penal, deve estar dirigida à autoconstatação ideológica do Estado e conseqüentemente aos

objetos tomados como dignos de proteção. Daí a necessária revisão dessa autoconstatação e

das definições do que venha a ser protegido pela norma penal, a fim de se levar a cabo tanto

uma política de descriminalização como também de criminalização por outra perspectiva.

A imposição da pena, com isso, só pode ter um aspecto individual, isto é, dirigido

à pessoa em concreto: tal medida tem como base fundamental a consideração da dignidade da

pessoa, que implica que o homem seja um fim em si mesmo e, portanto, não possa ser

instrumento do Estado para os seus fins. Em última análise, cuida-se de reavivar os postulados

lançados por Beccaria, no sentido que é preferível evitar os delitos que castigá-los, de modo a

conduzir os homens ao maior ponto de felicidade possível ou ao menor de infelicidade.258

Reconhecer a dignidade da pessoa supõe, primeiro, evitar a própria imposição da

pena por meio da oferta, pelo Estado, dos meios mais amplos em todos sentidos para que não

se cometam delitos e que ao mesmo tempo as penas estejam limitadas ao vínculo necessário

para ter unidos os interesses particulares, isto é, nada além dos estritos limites da necessidade

258 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. Tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 130.

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de autoconstatação indispensáveis do Estado. Cumpre reconhecer o Estado, em seu conjunto,

como co-responsável pelo delito, uma vez que é ele próprio que o fixa e, portanto, tem que se

preocupar também com o estabelecimento de condições mais favoráveis para que o indivíduo

não venha a delinqüir.

O delito é um problema de definição, como já se observou à exaustão, razão pela

qual se refuta a concepção de ressocialização, que parte da chamada ideologia da

diferenciação, de que há pessoas boas e más, normais e anormais ou perigosos, de que há uma

ordem absoluta verdadeira e outras ordens falsas, de que há pessoas sãs e outras necessitadas

de tratamento, enfermas. Certo é que algumas pessoas, por diferentes razões,

fundamentalmente sociais, entram em conflito com a ordem fixada pelo Estado, de modo que

o problema, portanto, assume um viés inegavelmente político, cabendo ao Estado superá-lo.

Isso demanda, em primeiro lugar, toda uma atividade dirigida a prever e evitar

esses conflitos; em segundo lugar, a remediar os problemas particulares que os próprios

indivíduos voluntariamente demonstram. Tudo vai depender fundamentalmente da tarefa

político-jurídica geral do Estado que é prever e evitar conflitos futuros, o que implica uma

progressiva e maior democratização do Estado. Por certo, enquanto existir o Estado, o que é a

função da pena, proteção de bens jurídicos – o que está ligado ao que é a pena mesmo:

autoconstatação do Estado –, predominará, nos casos limites, sobre o fim da pena (remover

obstáculos à participação livre e crítica do sujeito), e este, o fim da pena, prestar-se-á como

princípio garantidor passivo, para que não se anule a participação livre e crítica, mas não para

promovê-la.

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CAPÍTULO 7 – A missão do direito penal: a exclusiva

proteção de bens jurídicos

7.1. OS VALORES JURÍDICO -PENAIS NA CONSTITUIÇÃO : A CARTA POLÍTICA COMO

PAUTA VALORATIVA

Na esteira do raciocínio desenvolvido até esta altura, a intervenção penal veicula

justamente a opção de Estado que uma sociedade assume. Não é por outra razão que o direito

penal, como instância última de controle social, só se justifica na medida em que se permite

permear-se de soluções axiologicamente voltadas aos ideais do modelo de Estado a que se

aspira. No caso do Estado democrático de Direito, uma intervenção penal que se pretenda

legitimada somente se justifica com base na dupla compreensão da missão do direito penal. Se

o presente trabalho se ocupou das razões que justificam a intervenção penal (teorias da pena)

no ponto anterior, é chegado o momento de enfrentar o tema relativo aos pressupostos

materiais de criminalização de condutas ou, em termos mais claros, à função de exclusiva

proteção de bens jurídicos.

Como já mencionado, a opção por uma abordagem conseqüencialista do direito

penal, de acepção funcionalista teleológica ou valorativa, implica a necessária consideração

da idéia de valor jurídico e, mais especificamente, de valores constitucionais. São esses

tomados como moldura fundante do modelo de sistema penal por meio de um refinado

processo de seleção dos bens jurídicos que serão considerados penalmente relevantes por

força de critérios constitucionais aptos a fazer essa indicação.

Decerto que a observância de valores poderia criar um justo receio de que tais

valores sejam aqueles impostos pela autoridade ou mesmo por setores da sociedade, de sorte a

solapar aqueles que evidenciassem em seu agir contrariedade aos interesse de uma parcela

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dominante. O receio, diante disso, de que o assoberbamento do Estado em face do indivíduo

não encontre limites é plausível. No entanto, é de ver que, a partir do lastro construído na

parte inicial do trabalho, e justamente porque a norma penal que reflita tão-somente uma

ditadura da “moral” dominante carece absolutamente de legitimidade, tal receio encontra

acolhida segura na concepção de que o texto constitucional orienta-se pelo princípio da

dignidade da pessoa.

Já se disse que uma visão constitucional do direito penal positivo representa limite

e vínculo impostos a qualquer poder, inclusive aquele majoritário. Por meio dessa barreira

infranqueável assegura-se o caráter positivo das normas penais e a inarredável sujeição ao

Direito, dúplice vetor que cunha o Estado constitucional de Direito. É, portanto, de um

sistema constitucional que se extraem os valores ético-políticos informadores das escolhas de

determinação do âmbito de incidência da intervenção penal.259

Segundo Hessen, pode-se definir valor “como sendo um certo quid que satisfaz

uma necessidade. Será valor tudo aquilo que for apropriado a satisfazer determinadas

necessidades humanas”.260 Modernamente, a Constituição cumpre a relevante função de

publicização, expressa ou implícita, dos valores estabelecidos por meio do consenso, sem

desconsiderar a contextualização histórica e todo o iter realizado para consolidá-los. A Carta

259 Retome-se, portanto, as idéias desenvolvidas no ponto 1.2.2 (A influência da rigidez constitucional na compreensão da intervenção penal contemporânea). Quando aborda os valores constitucionais e sua influência no conceito de delito para a democracia atual, Márcia Dometila Lima de Carvalho salienta: “Das exigências fundamentais inseridas na Constituição, inferem-se os limites traçados, por ela, para o Direito Penal. Não se pode olvidar que este, mormente em um Estado promocional, é, por natureza, um dos seus instrumentos mais eficazes. Constituindo, o delito, o mais grave ataque desfechado contra os bens jurídicos que o Estado quis proteger, a sanção social, como reação estatal, representa a sua pronta e forte intervenção no domínio da individualidade do infrator. Existe, todavia, nisto, todo um perigo de tentação de abuso político, de autoritarismo além do necessário, a ser evitado pelos próprios limites constitucionais, traçados para o Direito Penal, e pela sua própria exigência de eticidade. A dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, é o valor expresso no princípio da humanidade do Direito Penal, que não pode deixar de ser considerado quando da criminalização de qualquer fato, etiquetado como socialmente agressivo, ou quando da cogitação de qualquer sanção criminal”. CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação constitucional do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 44-45.

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Política, portanto, representa verdadeira tomada de posição valorativa, que se reflete tanto em

suas disposições concretas quando em sua conformação como sistema aberto.

Logo, o Estado que se constitui, e a intervenção penal dele advinda, com arrimo

na ordem constitucional, é um Estado valorativo, isto é, que atua sempre valorativamente. Sua

atuação será sempre suscetível de ser avaliada numa perspectiva valorativa. Porque se cuida

de um Estado de Direito, a valoração a ser tratada será precisamente a jurídica. O valor

jurídico, portanto, apresenta-se como atributo próprio dessa espécie de Estado e que se

oferece por meio da Constituição como tal. A Constituição, portanto, surge como um conjunto

de preceitos e essa coerência e sistematicidade derivam de que seus preceitos respondam a

critérios ordenadores comuns.261 Traduz ela, então, uma norma portadora de determinados

valores materiais, que conduzem a uma totalidade do ordenamento jurídico: uma unidade de

sentido material.

Esse núcleo material da Constituição compõe-se dos valores culturais, jurídico-

políticos, princípios regulativos, opções e mesmo intenções jurídico-constitucionais

fundamentais. São esses os valores que informam as dimensões normativo-materiais

fundamentais da Constituição, de onde se projeta o próprio projeto constitucional. A

Constituição, com isso, responde a uma concepção valorativa da vida social e instaura um

marco básico de princípios que conformam a convivência em sociedade e, por traduzir uma

pauta de valores, determina diretrizes que devem ser respeitadas por todo o ordenamento

jurídico do Estado, em que se inclui também o direito penal.

260 HESSEN, Johannes. Filosofia dos valores. 5. ed. Tradução de L. Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado, 1980, p. 41-42. 261 Trata-se do caráter fundamental da Constituição tal como desenvolvido em: ENTERRÍA, Eduardo García de. La constitución como norma y el tribunal constitucional. 2. ed. Madrid: Civitas, 1982, passim.

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A Constituição, norma fundamental do Estado, acolhe e consagra em suas

disposições normativas o conjunto daqueles valores de transcendência jurídica e sociopolítica,

para que esses valores fundamentais de uma determinada comunidade histórico-política

alcancem uma constitucionalidade hábil a fornecê-la uma expressão jurídica normativa.262 Vê-

se, pois, que esses valores constitucionais delineariam o sistema de preferências expressadas

no processo como prioritárias e fundantes face ao convívio social: os princípios. Esses

valores, ao se converterem em normas-princípios, passam a constituir preceitos básicos da

organização constitucional. Nada obstante, do mesmo modo que a interpretação das normas

pauta-se pelo referencial necessário dos princípios, é de ver que a interpretação dos princípios

deve tomar como referência os valores.263

Pérez Luño264 assinala que os valores constitucionais assumem as seguintes

dimensões: (i) dimensão fundamentadora do ordenamento jurídico em seu conjunto: converte

os valores superiores ou fundamentais no contexto axiológico básico para a interpretação de

todo o ordenamento jurídico, para sua maior compreensão e determinação de sentido; (ii)

dimensão orientadora da finalidade da ordem jurídico-política: torna ilegítima qualquer norma

262 Ferrajoli chega a fixar o constitucionalismo como novo paradigma do direito, ao afirmar o valor da Constituição como conjunto de normas substanciais dirigidas a garantir a divisão de poderes e os direitos fundamentais de todos. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías. La ley del más débil. 2. ed. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez e Andréa Greppi. Madrid: Editorial Trotta, 2001, p. 67. No mesmo sentido, cf. MAHIQUES, Carlos Alberto. Derechos fundamentales y constitucionalismo penal. In: Prudentia Iuris : Revista de la Facultad de Derecho y Ciencias Políticas de la Pontificia Universidad Católica Argentina Santa María de los Buenos Aires, n. 57, junho 2003, p. 182-183. 263 Entre princípios e valores constitucionais dá-se uma relação de meios e fins. Os princípios seriam os meios constitucionais utilizados com aptidão à realização das finalidades contidas nos valores socialmente estabelecidos pela mesma Constituição. Os princípios são manifestações dos valores que a sociedade atribui às normas expressa ou implicitamente. Daí afirmar que a interpretação das normas toma por referencial necessário os princípios, ao passo que a interpretação dos princípios guarda lastro nos valores, de sorte a determinar as funções dos princípios no ordenamento quanto à aplicação preferencial de uns sobre outros. Cf. CALLEJÓN, Maria Luisa Balaguer. Interpretación de la Constitución y ordenamiento jurídico. Madrid: Tecnos, 1997, p. 134. São os valores que informarão, portanto, na hipótese de eventual conflito entre princípios, a relação de precedência condicionada a ser operada para solução da tensão entre postulados fundamentais. No dizer de Alexy, os princípios e os valores, portanto, se diferenciam somente em virtude de seu caráter deontológico e axiológico, respectivamente. Cf. ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 147. 264 LUÑO, Antonio Enríque Pérez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1986, p. 288.

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que persiga finalidade distinta ou que impeça a consecução daquelas enunciadas no sistema

axiológico constitucional (aqui reside o aspecto teleológico dos valores constitucionais); (iii)

dimensão de critério ou parâmetro de valoração de condutas e fatos para atribuir

conseqüências jurídicas: é essa função crítica que viabiliza um controle jurisdicional do

restante das disposições normativas do ordenamento, de sorte a mensurar a legitimidade das

diversas manifestações do sistema de legalidade.265

Vê-se, portanto, que a Constituição não admite – aliás, veda – qualquer resultado

legislativo em matéria penal que simplesmente observe o princípio da legalidade em sua

acepção formal ou mesmo outros princípios básicos ainda que de índole constitucional. A

Carta Política assume papel ativo na construção da tipologia penal, na medida em que

seleciona mediante critérios e parâmetros os bens jurídicos relevantes na esteira dos valores

esculpidos pelo constituinte, delineando um determinado modelo de sistema penal e, com

isso, lançando as bases de uma política criminal extraída da própria norma fundante do

sistema jurídico. O sistema penal, portanto, há de expressar positivamente, reproduzindo e

conformando, os valores constitucionalmente definidos.266

Essa função crítica dos valores constitucionais viabiliza um controle jurisdicional

do restante das disposições normativas do ordenamento no que puderam veicular de valor ou

desvalor por sua conformidade ou infração dos valores constitucionais. Assim, os valores

jurídicos fundamentais do ordenamento jurídico estatal – em particular, o penal –, por meio de

sua norma básica, prestar-se-ão como critérios para medir a legitimidade das diversas

265 Uma vez mais, retome-se a idéia desenvolvida no Capítulo 1 da rigidez constitucional como fator paradigmático da intervenção penal contemporânea. 266 Salienta Paulo Queiroz com precisão: “Nas sociedades contemporâneas, em que, como regra, o papel do Estado e de suas instituições estão previamente definidos pelas Constituições promulgadas, as quais, por sua vez, estabelecem os pressupostos de criação, vigência e execução do resto do ordenamento jurídico, convertendo-se, assim, em elemento de unidade, e em cujos textos já se acham constitucionalizados os direitos e garantias fundamentais (entre nós, CF, art. 5.º), o papel do direito, e em particular, do direito penal, está, por conseqüência,

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manifestações do sistema de legalidade.267 A idéia, portanto, guarda absoluta convergência

com o desenvolvido no Capítulo 1, onde se fixou a rigidez constitucional como paradigma

valorativo na construção do sistema político-criminal.

A construção de um sistema de valores, sob o paradigma do Estado democrático

de Direito, tem sua gênese na vontade popular proclamada expressamente na norma

fundamental do ordenamento jurídico. As opções ético-sociais da comunidade jurídico-

política, espelhadas nesses valores, integram-se na realidade social por meio do processo

sociopolítico de integração e unidade ordenada na Constituição e por essa mesma

Constituição. Tais valores, portanto, possuem inegável viés político em sua origem e, ao se

objetivarem em normas, assumem cunho jurídico, com as propriedades de validez e eficácia

próprias desse processo de juridicização. É justamente aqui onde se trava o diálogo entre a

política criminal e o direito penal: aquela, a espelhar os valores esculpidos pelo modelo

pretendido de Estado na Constituição e orientar o intérprete na adoção de soluções

axiologicamente orientadas às finalidades de uma intervenção penal que se pretenda legítima.

A importância de se fixar os valores jurídico-penais na Constituição reside na

importância que tem esta como limite: a norma constitucional opera como norma de seleção

do sistema jurídico-penal. Como limite do poder estatal ou mesmo como garantia de

liberdade, a Constituição representa o poder de fixação dos limites em que há de se situar

qualquer expectativa que pretenda converter-se em direito. Atua, pois, como paradigma de

adequação das realidades políticas, torna o Estado operador das decisões políticas levadas a

efeito pela decisão constitucional. E a Constituição, por portar determinados valores

e em linhas gerais, já constitucionalmente definido” (Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 121). 267 Cf. LUÑO, Antonio Enríque Pérez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1986, p. 290.

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materiais, traduz unidade para a totalidade do ordenamento jurídico. O Estado que dela

deriva, portanto, é um Estado valorativo e que atua sempre de modo valorativo.

Os bens jurídico-penais, como particularização de um segmento axiológico dos

direitos fundamentais de maior relevância, substanciam também bens jurídico-constitucionais.

Aliás, impende registrar que os valores jurídicos mais relevantes do direito penal – ou aqueles

que se pretendem tutelar com o direito sancionador de máxima relevância – devem

corresponder a ofensas significativas a bens jurídicos de maior envergadura ou hierarquia

dentro da própria Constituição e com exclusividade.268

A realização de um direito penal, sob a égide de um Estado democrático de

Direito, corresponde a uma intervenção mínima de preocupação garantidora de grau

máximo.269 O direito penal, portanto, acondiciona-se no âmbito da Constituição não apenas no

que se refere à observância de princípios gerais e especiais, mas também para realizar um

conteúdo que funda raízes nessa mesma Constituição.

Uma vez que a Lei Fundamental contém as decisões de fundo mais relevantes

para uma ordem jurídica, tanto em nível organizacional quanto em nível material, e as opções

valorativas mais fundamentais, ela reflete, ao cabo, o ambiente social-valorativo de uma

comunidade, impondo-se a toda a ordem jurídica. A Constituição sintetiza, portanto, o

estatuto fundamental da ordem jurídica geral.

268 Cf. PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 63 et seq. No mesmo sentido, COELHO, Yuri Carneiro. Bem-jurídico penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 105 et seq. 269 Nilo Batista, ao enunciar o princípio da intervenção mínima, afirma que o direito penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes, e as perturbações mais leves da ordem jurídica são objeto de outros ramos do direito. Entende que o princípio da intervenção mínima, conquanto não expresso no texto constitucional, mostra-se como um daqueles princípios imanentes, por sua compatibilidade e conexões lógicas com outros princípios jurídico-penais, dotados de positividade, e com pressupostos políticos do Estado de Direito democrático. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 84-85.

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Como iterativamente asseverado no transcurso dessa investigação, a intervenção

penal reflete o modelo de Estado a que se aspira. Se o modelo a que se aspira é justamente o

do Estado democrático de Direito, e este aponta uma concepção sintética do Estado, resultante

da união dos princípios próprios do Estado liberal e do Estado social e que culmina numa

imagem que supera seus componentes básicos isoladamente considerados para permitir-se

somar-se a uma terceira característica em sua fórmula constitucional – a democracia -, o

direito penal não pode intervir de modo desenfreado, arbitrário, sem limites. O controle dessa

intervenção penal submete-se, no plano formal e no plano substancial, ao princípio da

legalidade. É ele a garantia estrutural que marca a distinção entre uma intervenção penal

legítima e o autoritarismo penal próprio de um terror legislativo. Num Estado democrático de

Direito, ao direito penal cabe a função de exclusiva proteção dos bens fundamentais do seio

social, das condições sociais básicas necessárias à livre realização da personalidade de cada

homem.

De qualquer sorte, vale a seguinte advertência de Baratta:

O direito penal da Constituição vive hoje a mesma condição que o direito penal do iluminismo viveu em seu tempo: ele deve limitar e regular a pena, mas para que o direito penal da Constituição não tenha a mesma sorte do direito penal liberal, permanecendo em grande parte na mente de seus ideólogos, é necessário que reencontre sua dimensão política forte e autêntica. Isso somente será possível se a ele se incorporar uma política integral de proteção dos direitos fundamentais.270

O princípio da legalidade, no que aqui interessa em sua acepção substancial, além

de traduzir a proibição de excesso dirigida ao legislador, é o que permite ao direito penal o

cumprimento de sua missão. O sentido teleológico da norma penal traz como conseqüência,

270 “El derecho penal de la Constitución vive hoy la misma condición que el derecho penal del Iluminismo vivió en su tiempo: él debe limitar y regular la pena, pero para que el derecho penal de la Constitución no tenga la misma suerte del derecho penal liberal, permaneciendo en gran parte en la mente de sus ideólogos, es necesario que se reencuentre una dimensión política fuerte y auténtica. Esto sólo será posible si se incorpora en una política integral de protección de los derechos fundamentales.” BARATTA, Alessandro. La política criminal y el derecho penal de la Constitución: nuevas relexiones sobre el modelo integrado de las ciencias penales. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 8, n. 29, janeiro-março 2000, p. 47.

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como já asseverado, seu reconhecimento como expressão de uma vontade geral destinada à

preservação de direitos e interesses. A identificação desses direitos e interesses realiza-se

justamente por meio de um processo axiológico no qual os preceitos e as sanções

caracterizam-se por um permanente retorno às fontes substanciais que geram e orientam os

comandos jurídico-penais. Cabe à política criminal a promoção dessa obra e a avaliação dos

resultados dessa atuação com vistas à elaboração da norma.

De um lado, é certo que a política criminal não se esgota na legislação. Ao

contrário, ela será sempre um passo prévio, crítico e decisivo para determinação do âmbito de

incidência da intervenção penal. Por substanciar aspecto da política global do Estado, ela

dirige o direito penal para seu fim adequado, cumprindo sua tarefa de proteção social. A

política criminal, portanto, cumpre função crítica tanto dos valores jurídicos como da

realização social desses valores. Sua finalidade última consiste justamente na busca da justiça

penal frente às possibilidades abertas num Estado democrático de Direito.

7.2. UMA APROXIMAÇÃO DO CONCEITO DE BEM JURÍDICO

7.2.1. O bem jurídico ext raído da Constituição

A construção, ainda que sintética, de um conceito de bem jurídico assume

relevância em razão de um viés duplo de abordagem. De um lado, sob uma perspectiva

político-criminal, o bem jurídico-penal presta-se a determinar os rumos do direito penal,

esboçando e – sobretudo – limitando o âmbito de incidência da intervenção penal. De outro

lado, sob uma perspectiva estritamente dogmática, presta-se o bem jurídico-penal a apreender

e identificar os objetos concretos da tutela penal, o que se conhece por conteúdo material do

crime, ou seja, o valor que se busca proteger por meio da intervenção penal.

Sob a perspectiva da Política Criminal, a noção de bem jurídico-penal é de capital relevância para a definição dos rumos do Direito Penal, principalmente em tempos

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de construção oportunista das normas repressivas que levam o sistema penal a representar cada vez mais fortemente o papel de instrumento de terror posto pelo Estado para exercício do controle e poder social, arruinando o tão bem e demoradamente arquitetado sistema de direitos e garantias individuais e coletivos ao longo dos séculos.271

Sob uma perspectiva estritamente histórica, a evolução da idéia de bem jurídico-

penal não demonstrou ser ele, por si só, capaz de fornecer o núcleo material do delito e, por

conseguinte, limitar a intervenção penal do Estado àquelas hipóteses em que a resposta última

de sua instância mais rígida de controle social se mostrasse legítima e consentânea com o

modelo de Estado almejado.272 No entanto, no início do século XX, vem a lume a chamada

concepção metodológica ou teleológico-metodológica do bem jurídico, que nele identifica um

valor abstrato, de cunho ético-social, tutelado pela norma penal, ou um valor social

juridicamente protegido.

O ressurgimento dos ideais iluministas na República de Weimar, após a Primeira

Grande Guerra, com os acréscimos de um programa econômico-social voltado ao incremento

econômico e à reconstrução do país por meio da superação das desigualdades geradas pelo

processo de industrialização, esboçou cenário fértil à influência de orientações espiritualistas

de matriz neokantiana.273 É nesse contexto que se desenvolve a concepção sobre o bem

jurídico que o toma como representação espiritualizada, no sentido de que passa ele a ser

271 LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 287. 272 Sobre a evolução histórica do conceito de bem jurídico, cf. LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 289 et seq. e KIST, Dario José. Bem jurídico-penal: Evolução histórica, conceituação e função. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 7 março 2005. 273 Registra Muñoz Conde que “(…) a elaboração de conceitos dogmáticos transcendentes, plenos de conteúdo filosófico, para além das margens que permitam as normas legais positivas, poderia ser entendida como um abandono do positivismo jurídico, característico do período imediatamente anterior à República de Weimar; porém, curiosamente, este abandono do positivismo poderia também ter também uma leitura estritamente política.” Seguidamente, salienta que tais teorias foram utilizadas pela ascendente direita alemã “para limitar a vigência das leis aprovadas pelo parlamento e para, desse modo, livrar tanto quanto possível o poder executivo do controle democrático.” (Política criminal y dogmática jurídico-penal en la Republica de Weimar. In: Revista da Procuradoria-Geral da República, n. 9, jul./dez. 1996, p. 74. No original: “la elaboración de conceptos dogmáticos transcendentes, plenos de contenido filosófico, más allá de los márgenes que permitían las normas legales positivas, podría entenderse como un abandono del positivismo jurídico, característico del período inmediatamente anterior a la República de Weimar; pero, curiosamente, este abandono del positivismo podía

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considerado um valor cultural abstrato e sua violação, um comportamento imoral. O bem

jurídico passou a ser visto, portanto, como um valor cultural, fazendo com que o delito seja

uma valoração. Em conseqüência, exige-se a busca do sentido teleológico de cada tipo penal,

fazendo com que o bem jurídico seja captado da descrição legal do tipo. A proteção volta-se

aos conteúdos espirituais comuns da consciência de um grupo ou de uma maioria. Assim

concebido, o bem jurídico é convertido em simples método interpretativo, perdendo a básica

função de restringir a atividade criminalizadora.274 Acerca dessa tendência de consideração do

bem jurídico-penal tão-somente como método interpretativo, Luiz Regis Prado afirma:

Os bens jurídicos têm como fundamento valores culturais que se baseiam em necessidades individuais. Essas se convertem em valores culturais quando são socialmente dominantes, e os valores culturais transformam-se em bens jurídicos quando a confiança em sua existência surge necessitada de proteção jurídica.275

Em outras palavras, o bem jurídico configura um valor da ordem social

juridicamente protegido. Buscando na cultura o bem jurídico a proteger através do direito

penal, o delito será valorativo. Procura-se vinculá-lo à ratio legis da norma jurídica, o que o

converte em simples método interpretativo. A essência da noção de bem jurídico tutelado

deriva da descrição legal e não reside na natureza dos bens e valores que a determinam. O

objeto de proteção é um produto dos conceitos jurídicos; ele não existe como tal, a não ser

que, nos valores da comunidade, existam os objetos que constituem o objetivo das prescrições

penais.

O conceito de bem jurídico, com isso, acabou se despojando de todo conteúdo

material, tornando-se apto a receber qualquer conteúdo e, com essa transformação, passou a

ter valor somente para a interpretação dos tipos penais. Como conceito puramente formal, era

tener también una lectura estrictamente política. (…) para limitar la vigencia de las leyes aprobadas por el parlamento y para, de este modo, librar en lo posible al poder ejecutivo del control democrático”). 274 LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 289.

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inidôneo para descrever o núcleo material do injusto, além de perder a essencial função de

crítica, disciplina e contenção da atividade criminalizadora. Como abstração vazia de todo

conteúdo, constitui um princípio metodológico para a interpretação dos tipos penais, mas já

não brinda uma explicação do que a espécie do injusto de cada delito é ou deve ser.

Impende notar que, apesar da carga teleológica, a orientação dirigida às

finalidades não se confunde com a proposta desenvolvida ao longo da presente investigação,

na medida em que se afasta do instrumento hábil a permitir tanto a legitimação da intervenção

penal quanto a limitação dessa mesma incidência do direito penal em consonância com os

pressupostos de Estado: o diálogo entre o direito penal (dogmática), a política criminal e a

criminologia por meio de uma unidade funcional.276

7.2.2. A construção do bem jurídico com base em suas funções

Quadra vincar, a esta altura, o problema da definição dos comportamentos

legitimamente sujeitos à sanção penal sob o enfoque funcionalista. Merece destaque o

pensamento exposto por Knut Amelung, que se filiou com precisão à vertente funcionalista-

sistêmica277. Contando com o lastro fornecido pelas modernas teorias de cunho sociológico,

especialmente as formuladas por Talcott Parsons e Niklas Luhmann, Amelung propôs a

doutrina da danosidade social: com apoio no modelo teórico que concebe a sociedade como

um sistema de interações, entende ele como danoso socialmente o fenômeno que causa

275 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 41. 276 Essa visão unificadora reflete uma das mais importantes e fecundas contribuições do funcionalismo teleológico. A contribuição de Roxin, nesse sentido, permitiria até mesmo a elaboração de um sistema de direito penal de caráter supranacional, caso se tome como ponto central de referência a comunidade cultural e de valores que subjazem às constituições ocidentais atuais. É o que sustenta Jesús-María Silva Sánchez. Cf. Bases de una dogmática jurídico-penal supranacional. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 3, n. 12, outubro-dezembro 1995, p. 35. 277 FIANDACA, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal. In: Revista dos Tribunais, vol. 776, junho 2000, p. 41.

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disfunções, impede ou interpõe obstáculos para que o sistema social resolva os problemas de

sua conservação.

Imbuído de uma visão sistêmica, Amelung vê a sociedade como um sistema

global de interações, sendo o Direito um dos seus subsistemas, cuja missão fundamental é

garantir a existência do sistema como um todo.278 O direito penal, por sua vez, afigura-se

como o instrumento mais importante no subsistema jurídico, pois por meio da pena assegura a

conservação do sistema contra fatos de alta nocividade social. Portanto, o direito penal integra

o subsistema jurídico, qualificando-se como instrumento apto para dominar e sujeitar fatos

gravemente nocivos, que põem em perigo a funcionalidade do sistema e a sua própria

existência e conservação. Nesta perspectiva, portanto, os bens jurídicos são as funções

necessárias para a conservação do sistema social.279

Logo, para Amelung, a nocividade ou danosidade social é o critério de definição

do crime, que é centrado na idéia de disfunção do sistema. Os bens jurídicos protegidos pelas

normas penais nascem da vida social, têm caráter funcional em relação ao sistema e são

importantes para sua subsistência, consoante a valoração feita pelos sujeitos sociais. Isso

revela a necessidade de buscar nas ciências sociais o caráter de danosidade, para definir o

objeto da proteção penal.

Analisando esta postura, Giovanni Fiandaca assevera que definir o delito como

fenômeno que obstaculiza o funcionamento do sistema social não é o bastante para indicar ao

legislador as condutas que devem ser criminalizadas, ou seja, uma análise de cunho

278 Isso porque, diferentemente da postura de Parsons e da sociologia jurídica tradicional (desenvolvida no item anterior), que trabalha com métodos empíricos e os traslada ao direito, o funcionalismo sistêmico esteado em Niklas Luhmann entende o sistema jurídico como um subsistema do sistema global social.Cf. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 68 et seq.

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meramente sociológico não está apta a sugerir parâmetros de criminalização vinculantes em

sede legislativa. É que, nessa perspectiva, qualquer coisa pode adquirir o caráter de bem

jurídico, o que evidencia o risco de o conceito perder todo o seu significado, por não

encontrar limite algum.

Winfried Hassemer280 também se ocupa da elaboração de uma teoria do bem

jurídico de cunho sociológico. O postulado de que parte é o seguinte: o fato de que certos

comportamentos sejam considerados em uma determinada sociedade tão intoleráveis, a ponto

de deverem ser reprimidos com os instrumentos mais drásticos da organização estatal,

depende da valoração que a sociedade faz dos objetos que esses comportamentos lesam ou

põem em perigo. Além disso, três fatores são levados em consideração: a freqüência da

conduta criminosa, a intensidade da necessidade de preservação do objeto tutelado e a

intensidade da ameaça dirigida contra ele. Estes, por representarem posturas axiológicas

correspondentes aos acordos sócio-normativos dominantes na sociedade, são os fatores sociais

da criminalização, onde o arbítrio do legislador se depararia com barreiras.

Portanto, de acordo com Hassemer, qualquer sociedade tem certos

comportamentos como intoleráveis, ensejando a repressão penal que, assim, se vincula às

valorações que a sociedade faz dos objetos que os referidos comportamentos lesam ou põem

em perigo. Desta forma, para a individualização do bem jurídico não é fundamental a posição

objetiva do bem, mas a valoração subjetiva, com as variantes dos contextos sociais nos quais

ele aparece.

279 LUISI, Luiz. Bens constitucionais e criminalização. In: Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, ano II, abril 1998. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero4/artigo13.htm>. Acesso em: 5 março 2004. 280 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, passim. Cf. também LUISI, Luiz. Bens constitucionais e criminalização. In: Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, ano II, abril 1998. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero4/artigo13.htm>. Acesso em: 5 março 2004.

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Diante disso, a tarefa do direito penal, de acordo com as teorias sistêmicas

consiste em proteger as funções sociais e os mecanismos eficazes requeridos para a

manutenção da sociedade frente aos danos e perturbações que possam ameaçá-los. Em

conseqüência, os comportamentos inidôneos para perturbar as funções sociais e que não

provocam nenhum efeito nocivo à sociedade devem ser excluídos da tutela penal.

Manuel da Costa Andrade compreende a expressão bem jurídico, para a política

criminal contemporânea – aliás, para a política criminal perspectivada no horizonte de um

Estado de Direito e de uma sociedade aberta e plural -, como um axioma, na medida em que

fixa a afirmação segundo a qual é a tutela de bens jurídicos que simultaneamente define a

função do direito penal e marca os limites da legitimidade da sua intervenção.281

A evolução conceitual de bem jurídico evidencia que ele, desde que surgiu, tem a

primacial função de revelar os valores que podem ser objeto da tutela penal, funcionando

como um limite à atuação legiferante na seara criminal e como determinante aos lindes do

âmbito de intervenção penal, embora o conceito de bem jurídico não tenha evitado a inflação

legislativa penal nem tenha ditado os rumos do direito penal.

O problema posto pelas várias tendências teóricas e em torno do qual se avultam

as divergências diz respeito ao lugar em que devem ser captados estes bens jurídicos. A

perspectiva iluminista centra nos direitos inatos do indivíduo, que preexistem ao Direito, a

necessidade da proteção penal; já as teorias sociológicas buscam a matriz destes bens

diretamente na realidade social.

281 Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia (Dec.-lei n.º 26/84 de 20 de janeiro) à luz do conceito de “bem jurídico”. In: Ciclo de estudos de Direito Penal Económico. 1. ed. Coimbra: Centro de Estudos Judiciários, 1985. p. 73-74.

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Tais critérios, contudo, não satisfazem à saciedade a busca por uma intervenção

penal legítima e consentânea com o modelo de Estado pretendido. Hans Joachim Rudolphi282,

ao confrontar o conceito liberal de bem jurídico, de matiz iluminista, e o conceito de bem

jurídico sob a vertente metodológica, de cariz neokantiano, assevera que, além de

contraditórios, ambos são insuficientes. O primeiro, embora tenha conteúdo material,

apresenta-se como prévio ao direito positivo, o que evidencia seu caráter pré-jurídico. Já o

conceito metodológico mostra-se vazio e puramente formal. Por esta razão, ambos carecem de

capacidade para a solução dos problemas da teoria material do injusto penal. Luiz Luisi

igualmente descortina a carência intrínseca desses conceitos:

(…) todos esses enfoques, sejam os que encaram o bem jurídico enquanto preexistente à própria ordem jurídica, como os que acentuam a sua natureza funcional ou sistêmica, primam pela carência de concretude, posto que não definem conteúdos, ou seja, não dizem, por exemplo: quais a unidades sociais de função ou quais das disfunções afetam a conservação do sistema, e o ‘quantum’ de nocividade social das mesmas.283

Diante dessas deficiências, modernamente, outra perspectiva viceja e tende a

prevalecer: a teoria constitucional do bem jurídico, que procura formular critérios aptos a

orientar e limitar o legislador penal quando da criação de tipos penais com apoio na

Constituição vigente. Em outros termos, é na Constituição que o legislador deve buscar os

bens jurídicos aptos a receber a proteção penal. Cuida-se de modelo que visualiza o crime

como ofensa a bens jurídicos insertos, como já asseverado, na Constituição. Nas palavras de

Lopes,

(…) os mais consagrados autores de Direito Penal da atualidade (…) vão buscar na Constituição os fundamentos de validade e limites de intervenção do Direito Penal, na medida em que é esta que exprime o tipo de Estado e seus fins e, conseqüentemente, limita também os fins da tutela penal. Não fazem derivar de um conceito abstrato de bem jurídico o âmbito da tutela penal, mas, pelo contrário,

282 RUDOLPHI, Hans Joachim. Los Diferentes Aspectos del Concepto de Bien Jurídico. In: Nuevo Pensamiento Penal. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 4, n. 7, julio-septiembre 1975, p. 333 et seq. 283 LUISI, Luiz. Bens constitucionais e criminalização. In: Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, ano II, abril 1998. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero4/artigo13.htm>. Acesso em: 5 março 2004.

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chegam ao bem jurídico através da indagação sobre os fins da pena, de acordo com o tipo de Estado constitucionalmente consagrado em seus princípios fundamentais.284

É de ver, no entanto, que a reunião das duas perspectivas mencionadas, de sorte a

obter um conceito de bem jurídico pleno de conteúdo e, ao mesmo tempo, juridicamente

obrigatório, seria hábil a permitir a construção de um conceito apto para a interpretação das

normas penais positivas e obrigatório para a criação de novos tipos penais. Um conceito assim

delineado seria possível se fosse deduzido das prescrições jurídicas positivas, que são prévias

à legislação penal, mas obrigatórias para estas. Forneceria ao legislador um critério material

obrigatório, como também uma diretriz obrigatória para a interpretação e crítica das normas

penais existentes. Tais decisões valorativas prévias e obrigatórias para a legislação penal não

podem deduzir-se de uma norma de um direito natural suprapositivo, como na época do

Iluminismo, nem tampouco das relações sociais preexistentes, como quis Von Liszt. Tais

decisões valorativas somente podem estar contidas na Constituição.285

Verifica-se, com isso, uma verdadeira revisão doutrinária da definição do âmbito

de intervenção penal, para limitá-lo por meio de um processo de constitucionalização dos

bens jurídicos penais. É nas constituições que o direito penal deve encontrar os bens que lhe

cabe proteger com suas sanções. O operador do direito penal assim deve orientar-se, uma vez

que nas constituições já estão feitas as valorações criadoras dos bens jurídicos, cabendo a ele,

intérprete, em função da relevância social desses bens, tê-los obrigatoriamente presentes,

inclusive a eles se limitando, no processo de formação da tipologia criminal.286

284 LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 349. 285 RUDOLPHI, Hans Joachim. Los Diferentes Aspectos del Concepto de Bien Jurídico. In: Nuevo Pensamiento Penal. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 4, n. 7, julio-septiembre 1975, p. 338. 286 LUISI, Luiz. Bens constitucionais e criminalização. In: Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, ano II, abril 1998. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero4/artigo13.htm>. Acesso em: 5 março 2004.

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Essa constitucionalização do bem jurídico tem apresentado diversas nuanças, que

podem ser agrupadas em duas correntes: a primeira, de caráter geral, vincula a criação dos

tipos penais aos princípios fundamentais presentes na organização do Estado. Outras,

denominadas teorias constitucionais estritas, afirmam que o legislador penal encontra nas

Constituições prescrições específicas e explícitas nas quais estão presentes os bens jurídicos

que merecem tutela penal.

Efetivamente, as Constituições contêm as valorações fundamentais de uma

sociedade, podendo-se captar nelas o fundamento para a elaboração de um conceito de bem

jurídico prévio à legislação penal, mas ao mesmo tempo obrigatório para ela. Esta idéia,

portanto, revela a preocupação quanto à formulação de critérios capazes de limitar a atuação

do legislador penal no momento da criação de leis penais. Em conseqüência, este não é livre

para consagrar como bem jurídico qualquer juízo de valor, pois está vinculado às funções que

a Constituição reserva ao direito penal num Estado democrático de Direito.

Num Estado de Direito baseado na liberdade dos indivíduos, um conceito político-

criminal de bem jurídico vinculante só pode resultar das tarefas positivadas na

Constituição.287 Os bens jurídicos surgem, pois, como pressupostos imprescindíveis para a

existência comum, que se caracterizam numa série de situações valiosas, como a vida, a

integridade física, a liberdade de atuação, a propriedade, que o Estado deve proteger, também

penalmente (com base numa abordagem subsidiária, por óbvio), através da imposição de

sanções aos que as violam.

A função do poder estatal limita-se, então, a criar e garantir a um grupo de pessoas

reunidas no Estado as condições de existência que satisfaçam suas necessidades vitais, e ao

287 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 349.

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sistema penal não resta finalidade diversa, ou seja, a ele é incumbida a segurança dos

membros da sociedade. É no cumprimento dessa função que reside a legitimação material da

lei penal, ao ser ela indispensável para a manutenção da sociedade e do Estado. Portanto, cabe

ao direito penal tutelar certas situações de valor cuja integridade constitui a premissa para

uma convivência pacífica.

O escopo do direito penal no âmbito de um Estado de Direito, democrático e

social, só pode voltar-se à oferta ao indivíduo de uma vida de paz em sociedade,

transformando alguns interesses em condições sociais valiosas. O interesse em torno destas é

geral, razão pela qual podem ser tidas como bens jurídicos, cuja tarefa de proteção se defere

ao direito penal por meio da punição da sua violação.

Como já salientado ao longo do capítulo anterior, surge a necessidade de o Estado

proteger algumas prestações de caráter público que, pela grande relevância que têm para a

criação de condições de vida dignas, também são protegidas através do direito penal. É o

caso, por exemplo, da tutela penal à administração da justiça. O mesmo se pode dizer a

respeito da administração pública, da segurança da moeda, da fidelidade dos documentos, do

meio ambiente equilibrado, da arrecadação de tributos etc. Trata-se de entes ou valores que,

pela essencial função que exercem no âmbito de um Estado de cunho social, responsável pela

consecução de inúmeras prestações, demandam a tutela penal.288

É possível extrair, outrossim, proibições de incriminação também do texto

constitucional. A consagração dos direitos de liberdade, tais como a de manifestação, de

fixação de domicílio, de circulação e permanência no território do Estado, de profissão

religiosa, de pensamento, de organização sindical, de associação em partidos etc. traduz, em

288 Cf. PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 51-52.

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realidade, proibições de incriminação: o legislador não pode transformar em delito o exercício

desses direitos.

Também na Constituição é possível visualizar princípios penais fundamentais,

como são o da legalidade, da personalidade e da individualização da pena, da humanidade, da

culpabilidade, da fragmentariedade, da intervenção mínima, entre outros, de sorte que – na

esteira do que se disse acerca do paradigma instaurado com apoio na idéia de rigidez

constitucional – as normas penais que os afrontem ou não os observem carecerão de

legitimidade, de validade mesmo, porque contrárias à norma maior em que se fundam

(Constituição).

Portanto, a discricionariedade do legislador penal ordinário na escolha dos bens a

tutelar encontra um limite intransponível: não podem ser reprimidos comportamentos que

sejam expressão de direitos de liberdade ou de princípios garantidos na Constituição. É na

Constituição, portanto, que o Estado há de captar os bens que lhe cabe tutelar, acerca dos

quais incidirá a intervenção penal, pois é a Constituição que contém os princípios últimos que,

passados pela filtragem valorativa do legislador constitucional, representam a base e estrutura

jurídica da comunidade.

O legislador ordinário deve sempre ter em conta as diretrizes contidas na Constituição e os valores nela consagrados para definir os bens jurídicos, em razão do caráter limitativo da tutela penal. Aliás, o próprio conteúdo liberal do conceito de bem jurídico exige que sua proteção seja feita tanto pelo direito penal, como ante o direito penal. Encontram-se, portanto, na norma constitucional, as linhas substanciais prioritárias para a incriminação ou não de condutas. O fundamento primeiro da ilicitude material deita, pois, suas raízes no texto magno. Só assim a noção de bem jurídico pode desempenhar uma função verdadeiramente restritiva. A conceituação material de bem jurídico implica o reconhecimento de que o legislador eleva à categoria de bem jurídico o que já na realidade social se mostra como um valor. Esta circunstância intrínseca à norma constitucional cuja virtude não é outra que a de retratar o que constitui os fundamentos e os valores de uma determinada época. Não cria os valores a que se refere, mas se limita a proclamá-los e dar-lhes um especial tratamento jurídico.289

289 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 76. No mesmo sentido, cf. ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de

Coloquial.
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A premente relevância de construção adequada de um conceito de bem jurídico

decorre da transcendência política do direito penal, haja vista que os bens jurídicos revelam

em última análise uma opção político-criminal. Demais disso, é na construção “bem jurídico”

que se vislumbra concretamente o caráter subsidiário do direito penal: o conceito permite

definir a existência de delitos nos quais inexiste um bem jurídico relevante a ponto de

dispensar-lhe proteção penal, sendo suficiente aquela prevista por outros ramos do

ordenamento jurídico.

Mauricio Antonio Ribeiro Lopes290 e Luiz Regis Prado291 pontificam substancial

levantamento dos principais conceitos de bem jurídico esboçados pela doutrina. Welzel e Von

Liszt vêem no bem jurídico um bem vital da comunidade ou do indivíduo que, por sua

importância, é protegido juridicamente. Muñoz Conde conceitua o bem jurídico como os

pressupostos de que a pessoa precisa para sua auto-realização na vida social, aderindo à idéia

dos interesses vitais, entre os quais a vida, a liberdade, a saúde, a propriedade etc. Wessels

também afirma serem os bens jurídicos os bens vitais, os valores sociais e os interesses

juridicamente reconhecidos do indivíduo ou da coletividade que, em virtude da especial

importância para a comunidade, requerem proteção jurídica. Para Polaino Navarrete, trata-se

do bem ou valor merecedor da máxima proteção jurídica, cuja outorga é reservada às

prescrições do direito penal. São os bens e valores mais sólidos para a convivência humana

em condições de dignidade e progresso.

Jeschek ensina que os bens jurídicos são aqueles indispensáveis para a

convivência humana na comunidade e que devem ser protegidos pelo poder coativo do Estado

Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 27 et seq. 290 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 326 et seq. 291 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 41 et seq.

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através da pena pública, como é o caso da vida, a integridade corporal, a liberdade, a

propriedade, o patrimônio, a integridade moral dos funcionários, a ordem constitucional, a paz

pública, entre outros. Ranieri diz ser o bem jurídico o bem ou interesse protegido por uma

norma de direito penal e que resulta lesionado pelo delito ao ser violada a norma que o

protege. Claus Roxin entende que os bens jurídicos são pressupostos imprescindíveis para a

existência em comum, caracterizadas por situações valiosas, como a vida, a integridade física,

a liberdade de atuação, a propriedade etc. Mas, além disso, deve o Estado social proteger,

através do direito penal se necessário, o cumprimento das prestações públicas de que depende

o indivíduo no âmbito da assistência social por parte do Estado. Bettiol afirma que o bem

jurídico é a posse ou a vida, isto é, o valor que a norma jurídica tutela, valor que não é

material, embora encontre na matéria o seu ponto de referência. Trata-se de posição ético-

valorativa, pois, falar de bem jurídico é falar de valores e não de interesses – valor é forma

mais apropriada de exprimir a natureza ética das normas penais.

Jäger refere-se ao bem jurídico como situações valiosas que podem ser alteradas

pela ação humana e que, por isso, podem ser protegidas através de normas penais. Battaglini

separa objeto jurídico formal e substancial; o primeiro é a norma penal contrariada pelo crime

e o segundo é constituído pelo interesse que a norma protege. Zaffaroni afirma que o bem

jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de uma pessoa com um objeto,

protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante normas que proíbem determinadas

condutas que as afetam, aquelas que são expressas com a tipificação dessas condutas.

Figueiredo Dias entende que num Estado de Direito material deve caber ao direito penal uma

função exclusiva de proteção dos bens fundamentais da comunidade, das condições sociais

básicas necessárias à livre realização da personalidade de cada homem e cuja violação

constitui o crime. Taipa de Carvalho define como bens, interesses ou valores apreendidos pela

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consciência ético-social como fundamentais à convivência comunitária, na qual se realiza a

pessoa humana.

No direito brasileiro, merecem destaque algumas construções.292 Os bens jurídicos

são valores de vida individual ou coletiva, valores da cultura, segundo a visão de Aníbal

Bruno. Francisco de Assis Toledo leciona que “bens jurídicos são valores ético-sociais que o

direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que

não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”293. Afirma que ele teve lenta

elaboração teórica, no objetivo de fixar um conteúdo material para o injusto típico,

assinalando que, inicialmente, procurou-se esse conteúdo material na lesão ou exposição a

perigo de direitos subjetivos (Fauerbach); depois, na lesão ou exposição a perigo de interesses

vitais (final do séc. XIX); por fim, a conclusão de que o conteúdo material do injusto típico

reside na lesão ou a exposição a perigo de um bem jurídico. Cláudio Heleno Fragoso

conceitua que o bem jurídico é o bem humano ou da vida social que se procura preservar, cuja

natureza e qualidade dependem do sentido que a norma tem ou que a ela é atribuído,

constituindo, em qualquer caso, uma realidade contemplada pelo direito. Assim bem jurídico

é um bem protegido pelo Direito, um valor da vida humana que o Direito reconhece e a cuja

preservação é disposta a norma.

Pela clareza de sua exposição, bem assim precisão conceitual, o conceito de bem

jurídico que melhor se amolda à presente investigação é fornecido por Juarez Tavarez:

(…) Bem jurídico é um elemento da própria condição do sujeito e de sua projeção social e nesse sentido pode ser entendido, assim, como um valor que se incorpora à norma como seu objeto de referência real e constitui, portanto, o elemento primário da estrutura do tipo, ao qual se devem referir a ação típica e todos os seus demais componentes. Por objeto de referência real se deve entender aqui o pressuposto de lesão ou de perigo de lesão, pelo qual se orienta a formulação do injusto. Não há

292 Aqui também a referência é ao levantamento realizado por Luiz Regis Prado e Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. 293 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 16.

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injusto sem a demonstração de efetiva lesão ou perigo de lesão a um determinado bem jurídico.294

A função de tutelar bens jurídicos outorgada ao direito penal constitui verdadeiro

truísmo contemporâneo. Em que pese a posição – minoritária entre os funcionalistas, frise-se

— de Günther Jakobs, que rechaça a idéia do bem jurídico295, tal idéia tornou-se essencial

para a compreensão dos fins deste ramo jurídico, e isso sob várias perspectivas, de onde

nascem as várias funções do bem jurídico. Embora não haja unanimidade doutrinária

relativamente a estas funções, algumas constantes podem ser verificadas.

Uma das primordiais funções do bem jurídico é a denominada função de garantia,

por meio da qual intenta limitar a intervenção penal do Estado. Trata-se do compromisso do

legislador penal, assumido num Estado de Direito material, de não tipificar senão as condutas

graves que lesem ou coloquem em perigo autênticos bens jurídicos. A função de garantia

guarda especial relevância no âmbito do Estado democrático e social, para garantir uma

dimensão material para a norma penal. Somente as condutas que afrontem bens jurídicos

podem ser criminalizadas, o que é revelado pelo adágio nullum crimen sine injuria. Tal

função, de caráter político-criminal, limita o legislador em sua atividade no momento de

produzir normas penais. É o sentido informador do bem jurídico na construção dos tipos

294 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 179. 295 Para Jakobs, a missão do direito penal consiste em proteger a validade das normas. “Um ato penalmente relevante – de forma paralela ao que já se disse – não se pode definir como lesão de bens, mas somente como lesão de juridicidade. A lesão da norma é o elemento decisivo do ato penalmente relevante, como nos ensina a punibilidade da tentativa, e não a lesão de um bem”. JAKOBS, Günther. Ciência do direito e Ciência do direito penal: dois estudos de Günther Jakobs. Barueri: Manole, 2003, p. 51. Jakobs tenta demonstrar que o conceito de bem jurídico nada tem de liberal, posição que, como assinala com precisão Luís Greco, não convence, se confrontada com a época em que se descartou tal conceito. Cf. GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito (em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico-penal”, de Roxin). In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (Org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. n. 7. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, 2000. p. 307-362. Disponível em: <http://www.direitosfundamentais.com.br/downloads/colaborador_introducao.doc >. Acesso em: 27 maio 2005, especialmente a nota 47. Para Jakobs, portanto, o discurso sobre o bem jurídico é, na verdade, um discurso metafórico sobre a vigência da norma, razão pela qual apresenta escassa utilidade prática. Para ele, o bem jurídico não possui suficiente potencial crítico para limitar eventuais excessos do legislador, tampouco a pena é hábil a recompor um bem jurídico lesado. Cf. FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: un ensayo de fundamentación dogmática. Buenos Aires: Editorial B de F, 2004, p. 65 et seq.

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penais.296 É, assim, um papel que o bem jurídico exerce na individualização legislativa, no

momento da cominação penal.

A perspectiva limitadora quanto ao uso do direito penal faz com que este se

legitime somente quando for indispensável para a proteção do bem jurídico. Sendo a pena

criminal representativa da reação mais forte da comunidade, a ela deve recorrer o legislador

em último lugar, não podendo ser utilizada quando outros meios, mais suaves e menos

drásticos, bastem para alcançar a inibição da conduta indesejada. Essa limitação da forma

penal de punir condutas indesejadas apreende o direito penal como última ratio.297

Veicula, ainda, o bem jurídico uma função teleológica, interpretativa ou

exegética. O bem jurídico se revela como um critério de interpretação dos tipos penais,

condicionando o sentido e o alcance da sua proteção. Revelando o núcleo do tipo penal, o

bem jurídico se converte no leitor que permite descobrir a natureza do tipo, dando-lhe sentido

e fundamento.298 Como todo delito deve lesar ou ameaçar um bem jurídico, não é possível

interpretar ou conhecer a lei penal, sem lançar mão da idéia de bem jurídico. Portanto, o bem

jurídico é o conceito central do tipo, em torno do qual giram os elementos objetivos e

subjetivos, cabendo ao intérprete, na aplicação da lei penal, fazê-lo tendo em conta o valor

teleologicamente consagrado pelo bem jurídico.299

Nesta perspectiva, o bem jurídico atua como instrumento da individualização

judicial. De qualquer sorte, a função exegética não pode afastar-se das demais funções do bem

296 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 48. 297 Maurício Antonio Ribeiro Lopes, com lastro em Roxin, refere-se a uma função humanizadora que exerce o bem jurídico no sistema penal, ao delimitar que só se podem punir as lesões a bens jurídicos se isso for indispensável para uma vida comum ordenada. Cf. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 340-341. 298 LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 342.

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jurídico, especialmente da função limitadora da atuação penal do Estado, pois somente assim

cumprirá a função de proteger a sociedade. De fato, a interpretação teleológica do bem

jurídico protegido poderá excluir do tipo condutas que não lesem ou não ponham em perigo

esse bem jurídico por falta de antijuridicidade material.300

O bem jurídico exerce ainda uma dita função sistemática, na medida em que atua

como elemento classificatório na formação dos grupos de tipos da parte especial do Código

Penal, servindo de guia para a estruturação dos títulos e capítulos de acordo com o bem

jurídico protegido. Portanto, é no exercício da função sistemática que o bem jurídico preside a

ordenação dos delitos na parte especial das legislações penais, que são catalogados de acordo

com o bem jurídico protegido.301

Por derradeiro, é de ver que o direito penal, tendo em conta a drasticidade da sua

sanção — que atinge um dos valores fundamentais dos indivíduos, a liberdade -, deve incidir

com a parcimônia recomendada pelo princípio da sua mínima intervenção, bem como sem se

distanciar dos lindes legitimadores dessa intervenção sob a égide do modelo de Estatal que se

pretende. Nessa toada, para realizar este desiderato, revela-se decisiva a definição acerca dos

bens passíveis de tutela penal.

299 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 48-49. 300 Maurício Antonio Ribeiro Lopes vislumbra, acerca disso, uma função dogmática atribuída ao bem jurídico. Cf. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 342. 301 A nomenclatura “função sistemática” é tomada por Mauricio Antonio Ribeiro Lopes em outra acepção, isto é, toma-a como critério finalista de justiça: “A organização sistemática, contudo, não é propriamente uma função, senão uma técnica destinada a uma finalidade superior (…). A teoria do bem jurídico põe em estreito contato a determinação da missão do Direito Penal como critério de Justiça que utiliza a Política Criminal no momento de determinar quais fatos são dignos de uma pena criminal, pois vincula dita missão a uma qualidade visível de comportamento merecedor de pena. (…) Implica dizer que o processo de seleção e organização em categorias dos bens jurídicos-penais permite a identificação do critério de justiça empregado na estruturação do sistema punitivo, isso porque, sobretudo, facilita a penetração do princípio da proporcionalidade da intervenção penal estatal sobre os fatos ofensivamente relevantes ao interesse social” (Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 341).

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Mostra-se, portanto, plenamente satisfatório o critério que vê nos bens jurídicos os

valores a serem protegidos pelas normas penais. Além disso, é também certeiro situar e

identificar estes bens na Constituição da República, na medida em que ela representa o básico

pacto de convivência formulado entre os integrantes da sociedade e por nela constarem os

princípios e valores estruturais da comunidade.

Tal opção, veiculada com veemência pela dogmática penal, surge como iter

inarredável para alcançar um Estado efetivamente liberal e democrático, que privilegie as

iniciativas individuais e tome por pressuposto a vontade geral dos cidadãos, além de servir de

modelo para superar a tendência, infelizmente corrente, de preferência, por econômico e

facilitado, ao recurso indiscriminado de criminalização de condutas.

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CONCLUSÃO

Uma intervenção penal que se pretenda legítima não poderá se afastar de uma

percepção axiológica para a construção de soluções dogmáticas e da própria definição

substancial do delito. O direito penal experimentou uma mudança de disciplina jurídica

puramente técnica e de negação valorativa para uma orientação segundo uma política criminal

valorativa. A ausência dessa referência tem ensejado uma utilização da intervenção penal que

não observa seu caráter de ultima ratio, convertendo-se em instrumento político de direção

social, com evidente prejuízo ao seu papel de proteção jurídica subsidiária a outros ramos do

ordenamento e ao seu substrato legitimador. O modo pelo qual a intervenção penal se legitima

é informado por valores extraídos de um programa de Política Criminal, que segue orientado,

por sua vez, pelas finalidades a serem buscadas pelo direito penal.

Todo o direito penal se integra na política criminal diante da identificação entre a

teoria dos princípios da política criminal e a dos fins (e meios) do direito penal. O direito

penal estatal, portanto, expressa uma opção político-criminal, de forma dúplice, tanto em lex

lata quanto em lex ferenda. A orientação da política criminal será fornecida justamente pelo

modelo de Estado a que se aspira. Assim, a intervenção penal orienta-se à realização de

valores extraídos da política criminal: não de qualquer política criminal, mas daquela acolhida

pelo modelo de Estado democrático de Direito. Um direito penal orientado às conseqüências

afasta-se de uma simples análise instrumental da intervenção penal, de sorte a também

considerar as opções valorativas veiculadas na escolha do âmbito de incidência e nos limites

impostos ao direito penal.

Entre as vertentes do pensamento conseqüencialista, é o funcionalismo teleológico

que melhor responde às questões acerca da legitimação e dos limites da intervenção penal.

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Para afastar o risco de valorações isoladas e sem lastro comum, atribui-se à lei o papel de,

além de assegurar os pressupostos e os limites legais de eventual punição, orientar os valores

em que se fundamente a intervenção da política criminal para solução do caso concreto. O

direito penal, assim, passa a ostentar muito mais o papel de instrumento por meio do qual as

finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica: a

construção da teoria do delito, portanto, deve voltar-se teleologicamente aos valores político-

criminais, de sorte a afastar as críticas contra a dogmática abstrata-conceitual própria dos

tempos positivistas. Essa pauta extraída de uma norma maior demarcará a intervenção penal –

sem olvidar-se da evidente “relatividade” ou “condicionalidade sócio-cultural” do direito

penal no contexto do conceito de pessoa, sua dignidade e seus direitos fundamentais, de modo

definitivo, segundo o marco de uma fundamentação objetiva.

Enquanto o direito penal de um Estado social legitima-se como sistema de

proteção efetiva dos cidadãos, ao qual se atribui a missão de prevenção na medida – e

somente na medida – do necessário para essa proteção; o direito penal de um Estado

democrático de Direito deverá submeter a prevenção penal a outra série de limites, em parte

decorrentes da tradição liberal do Estado de Direito e em parte reforçados pela necessidade de

satisfazer ao conteúdo democrático do direito penal. Se o modelo de Estado deve determinar

uma concepção do direito penal, esta há de informar o suporte de seus componentes básicos, a

pena e o delito, sempre dirigidos a uma finalidade preventiva.

O implemento das garantias de rigidez nas Constituições provocou uma

transformação radical no papel delas. Essa mudança culminou na descoberta do significado e

do valor da Constituição como limite e vínculo impostos a qualquer poder, especialmente ao

direito penal. Com isso, todas as respostas às clássicas questões relativas à sua legitimação –

quando e como punir, quando e como proibir, quando e como julgar – resultam condicionadas

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aos princípios veiculados na Constituição, que deixam de ser apenas reitores teóricos para

converterem-se em normas jurídicas vinculantes para o legislador. Não é apenas o direito

penal, mas também a política criminal que o informa que se submeterão à Constituição: o

paradigma constitucional será responsável pelo delineamento do sistema jurídico-penal,

impondo-se tanto à teoria como à análise dogmática do delito.

O movimento abolicionista nega qualquer justificação ou legitimidade externa à

intervenção punitiva do Estado e pode ser compreendido como uma forma de captar todas as

práticas discursivas e não discursivas do sistema de justiça penal e atuar frente a elas. Para

Louk Hulsman, a abolição de todo o sistema penal traduz uma necessidade lógica, uma vez

que o sistema penal causa sofrimento desnecessário, subtrai o conflito dos envolvidos e resiste

à imposição de limites. Para ele, a solução seria suprimir a regulação estatal de conflitos e

adotar formas descentralizadas de regulação autônoma desses conflitos. Já Thomas Mathiesen

ocupa-se de uma imediata abolição do cárcere como política criminal radical e vislumbra nas

organizações e nos movimentos sociais, como alternativas à esfera pública, os meios para

consolidação dessa política. O abolicionismo, inserido num viés que se pretende humanista,

implica certa forma de radicalismo e funda-se num princípio de solidariedade com aqueles

que se encontram à margem da sociedade.

Ferrajoli, que na construção de seu sistema garantista volta-se a uma justificação

do direito penal, situa-a no plano da filosofia do direito. Sustenta a necessidade de redução da

intervenção penal de um modo geral, num nítido projeto minimalista de direito penal, e

aponta a forma jurídica da pena como técnica institucional de minimização da reação violenta

ao desvio socialmente não tolerado e como garantia do acusado contra os arbítrios. Para ele,

os objetivos de prevenção da pena, ou ainda, somente o da redução dos delitos, não são

suficientes para ditar o limite máximo de intervenção penal, mas somente um limite mínimo,

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abaixo do qual não se verifica adequada a incidência de uma sanção. A prevenção, não apenas

em relação aos futuros delitos, refere-se à possível reação punitiva — mas não penal – que se

revela informal, selvagem, espontânea, arbitrária. Na ausência de penas, e nisso reside sua

contundente crítica ao abolicionismo, essa resposta poderia advir do próprio ofendido ou de

forças sociais ou institucionais solidárias a ele. A pena, então, não serve apenas para prevenir

os delitos injustos, mas, igualmente, as injustas punições. Esses dois objetivos convivem em

situação dialética, trazidos pelas duas partes do contraditório no processo penal, ou seja, a

acusação, que atua movida pelo interesse de defesa social e, portanto, pretende potencializar a

prevenção e a punição dos delitos, e a defesa, interessada na promoção individual e, portanto,

na prevenção das penas arbitrárias. O direito penal, portanto, atuaria como técnica de tutela

dos direitos fundamentais.

As discrepâncias entre as vertentes abolicionistas e a abordagem garantista não

dizem respeito ao reconhecimento da necessidade de submeter o poder punitivo a estritos

controles jurídicos, mas radicam na compreensão de que tal objetivo comporta a legitimação

do atual modelo punitivo, de suas justificações e de suas penas.

Nada obstante, na contramão dessas discussões, verifica-se um movimento de

expansão do direito penal, consubstanciado na franca utilização de um “direito penal do

inimigo”, que, mesmo para aqueles que o aceitam, justificar-se-ia apenas em contexto

excepcional. O direito penal em expansão da contemporaneidade rege-se por finalidades

puramente simbólicas, afastadas da preocupação de realização de uma missão

constitucionalmente estabelecida, deixa de atuar como instrumento de controle do emprego da

força estatal e converte-se em instrumento de combate à criminalidade. O fenômeno da

globalização igualmente implica e fomenta essa expansão da intervenção penal.

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O funcionalismo sociológico, que lastreará a opção legitimadora da intervenção

penal, guarda suas raízes na concepção de Durkheim, para quem o crime exercia uma função

integradora e inovadora na sociedade. A pena, segundo essa vertente, constituiria a reação

social necessária, atualizando sentimentos coletivos atingidos e reforçando a vigência de

determinados valores. O desvio, como gênero da espécie crime, decorre das relações

existentes entre a estrutura cultural e a estrutura social e do modo como os indivíduos reagem

à tensão que habita entre as duas.

Segundo o pensamento de Niklas Luhmann, que parte do funcionalismo

sociológico, o direito só pode ser compreendido como fenômeno social, de modo a se ocupar

da prática da legalidade (ou ilegalidade) como ação social, num processo de positividade

sociológica. Ao abordar o direito como estrutura de um sistema social cuja função essencial é

regular os sistemas complexos e os sistemas simples, o direito positivo — decisão que

absorve e apreende as situações contingenciais que caracterizam o aumento da complexidade

dos sistemas sociais — passa a ser expressão dinâmica do processo de mudanças das

estruturas sociais. A legitimação pelo procedimento e pela igualdade das probabilidades de

obter decisões satisfatórias substitui os antigos fundamentos jusnaturalistas ou os métodos

variáveis de estabelecimento do consenso.

A abordagem funcionalista-sistêmica fixa que a regulação da convivência social

supõe um processo de comunicação ou interação dos membros de uma comunidade que se

consuma por meio de uma relação estrutural nominada como expectativa. A sanção, segundo

essa compreensão, veicula um conteúdo contrafático, uma vez que a sua vigência como

norma não se modifica pelo fato de não ser cumprida; ao revés, seu cumprimento e a seguinte

sanção é que confirmam sua necessidade e vigência. Com isso, a análise sistêmica permite

fixar um novo marco teórico à idéia de legitimação do castigo, pois a pena tem uma função de

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prevenção integradora, distinta daquelas que lhe foram atribuídas pela dogmática tradicional,

ou seja, reafirma a vigência da norma alterada pela prática delituosa. Assim, o direito penal

não tem de partir do bem jurídico lesado ou posto em perigo, senão do descumprimento da

norma que regula as relações sociais, de modo que à dogmática caberá caracterizar apenas

quem não é fiel ao Direito, e este será o autor do delito.

No entanto, a visão funcionalista-sistêmica do direito penal afasta-se de uma

necessária abordagem multidisciplinar e, o mais importante, prescinde de uma imperiosa

aproximação dos valores assegurados, constitucional ou legalmente, como próprios de uma

política criminal que oriente soluções axiologicamente voltadas a refletir a opção por um

Estado democrático de Direito. Por implicar verdadeira substituição do conceito de bem

jurídico pelo de “funcionalidade do sistema social”, a abordagem sistêmica acaba por afastar-

se do último ponto de que dispõe o direito penal para uma crítica do direito positivo. Já a

concepção funcionalista-axiológica ou funcionalista-teleológica veicula claramente a idéia de

um direito penal orientado à humanização por meio da política criminal. Para afastar o risco

de um relativismo valorativo, o funcionalismo teleológico extrai suas valorações político-

criminais diretamente da ordem constitucional do Estado democrático de Direito, que respeita

e promove a dignidade humana e os direitos fundamentais. Traduz ele uma síntese do

ontológico (em pensamento indutivo que compõe grupos de casos) com o valorativo (em

pensamento dedutivo vincado em valorações político-criminais), de sorte que o intérprete

deverá, em seu proceder interpretativo, atuar dedutiva e indutivamente de forma simultânea,

em postura que rememora a idéia do círculo hermenêutico. A dogmática jurídico-penal e a

política criminal passam a unir-se e, com apoio nos princípios constitucionais, destinam-se a

cumprir os objetivos de reafirmação dos valores vigentes, não só para a escolha dos

instrumentos capazes de obstaculizar a criminalidade, nos limites das garantias

constitucionais, mas também colaborar para a construção da norma futura. A missão

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constitucional do direito penal – proteção de bens jurídicos por meio da prevenção geral ou

especial – dirige a construção teleológica de conceitos, a materialização das categorias do

delito, enfim, todo pensamento dogmático do direito penal.

Com isso, as teorias da pena assumem relevo fundamental à justificação do direito

penal. São três, historicamente, as teorias que respondem ao questionamento da legitimação

da intervenção penal. Nas teorias absolutas, de retribuição, o sentido da pena assenta em que a

culpabilidade do autor seja compensada mediante a imposição de um mal penal. As teorias

relativas, ou de prevenção, são visualizadas em dois aspectos. Segundo a prevenção especial,

a incidência da sanção penal volta-se a corrigir ou reabilitar o delinqüente, sempre que seja

possível, ou então a afastá-lo para torná-lo inofensivo. Já a prevenção geral fixa o sentido e o

fim da pena nos efeitos intimidatórios sobre a generalidade das pessoas.

Diante de teorias ecléticas ou mistas, Roxin enuncia uma chamada “teoria

unificadora dialética” com arrimo na concepção de que o atual direito penal enfrente o

indivíduo de três maneiras: ameaçando-o com penas e com isso delimitando o âmbito de

incidência da intervenção penal segundo os princípios da subsidiariedade e lesividade;

mensurando e impondo as penas; e, por fim, executando-as. Os distintos momentos de

realização do direito penal estruturam-se uns sobre os outros e, portanto, cada etapa seguinte

deve acolher em si os princípios da etapa precedente. Relativamente ao segundo momento de

realização do direito penal, a determinação do âmbito de incidência do direito penal orientar-

se-á pela prevenção geral. Uma preocupação retributivo-preventiva geral deve orientar a

mensuração da pena: a culpa, embora não se preste a fundamentar o poder penal do Estado,

serve para limitar essa intervenção estatal, ou seja, atua em favor do indivíduo. A prevenção

especial, voltada à reinserção ou ressocialização do indivíduo em abordagem multidisciplinar,

deverá informar a execução da pena em conjugação com os momentos anteriores. Assim, o

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sentido e os limites da pena estatal justificam-se na missão que tem a intervenção penal de

proteção subsidiária de bens jurídicos e prestações de serviços estatais, mediante prevenção

geral e especial, de salvaguarda da personalidade no quadro traçado pela medida da culpa

individual.

Por derradeiro, acerca da missão do direito penal de exclusiva proteção de bens

jurídicos, vê-se que a Constituição traduz uma norma portadora de determinados valores

materiais, que conduzem a uma totalidade do ordenamento jurídico: uma unidade de sentido

material. A Carta Política, portanto, responde a uma concepção valorativa da vida social e

instaura um marco básico de princípios que conformam a convivência em sociedade. Veicula

uma pauta de valores e determina diretrizes que devem ser respeitadas por todo o

ordenamento jurídico do Estado, onde se inclui também o direito penal. A Constituição

assume papel ativo na construção da tipologia penal, na medida em que seleciona mediante

critérios e parâmetros os bens jurídicos relevantes na esteira dos valores esculpidos pelo

constituinte, delineando um determinado modelo de sistema penal e, com isso, lançando as

bases de uma política criminal extraída da própria norma fundante do sistema jurídico. O

sistema penal, portanto, há de expressar positivamente, reproduzindo e conformando, os

valores constitucionalmente definidos. Esses valores jurídicos fundamentais do ordenamento

jurídico estatal – em particular, o penal –, por meio de sua norma básica, prestar-se-ão como

critérios para medir a legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade.

Assim, como limite do poder estatal ou mesmo como garantia de liberdade, a Constituição

representa o poder de fixação dos limites em que há de se situar qualquer expectativa que

pretenda converter-se em direito. Num Estado democrático de Direito, ao direito penal cabe a

função de exclusiva proteção dos bens fundamentais do seio social, das condições sociais

básicas necessárias à livre realização da personalidade de cada indivíduo.

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É na Constituição, portanto, que o legislador deve buscar os bens jurídicos aptos a

receber a proteção penal. De um lado, sob uma perspectiva político-criminal, o bem jurídico-

penal presta-se a determinar os rumos do direito penal, esboçando e – sobretudo – limitando o

âmbito de incidência da intervenção penal. De outro lado, sob uma perspectiva estritamente

dogmática, presta-se o bem jurídico-penal a apreender e identificar os objetos concretos da

tutela penal, o que se conhece por conteúdo material do crime, ou seja, o valor que se busca

proteger por meio da intervenção penal. Assim, radicado na concepção de que a intervenção

penal reflete o modelo de Estado a que se aspira, consentânea com o sistema político-criminal

vicejado pelo funcionalismo teleológico, impõe-se a adoção de uma teoria constitucional do

bem jurídico, que procure formular critérios aptos a orientar e limitar o legislador penal

quando da criação de tipos penais com lastro na Constituição vigente.

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