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A I NTERVENÇÃO PENAL COMO REFLEXO DO MODELO DE ESTADO:A BUSCA POR UMA I NTERVENÇÃO PENAL LEGÍ TI MA NO ESTADO DEMOCRÁTI CO DE DI REI TO
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ANTONIO HENRIQUE GRACIANO SUXBERGER
A I NTERVENÇÃO PENAL COMO REFLEXO
DO MODELO DE ESTADO : A BUSCA POR UMA I NTERVENÇÃO PENAL LEGÍ TI MA NO
ESTADO DEMOCRÁTI CO DE D I REI TO
Dissertação submetida à Faculdade de
Direito da Universidade de Brasília para a
obtenção do título de Mestre em Direito, área
de concentração “Direito, Estado e
Constituição”.
Orientadora: Professora Doutora Ela Wiecko
Volkmer de Castilho
Brasília
2005
ii
ANTONIO HENRIQUE GRACIANO SUXBERGER
A I NTERVENÇÃO PENAL COMO REFLEXO
DO MODELO DE ESTADO : A BUSCA POR UMA I NTERVENÇÃO PENAL LEGÍ TI MA NO
ESTADO DEMOCRÁTI CO DE D I REI TO
Dissertação submetida à Faculdade de
Direito da Universidade de Brasília para a
obtenção do título de Mestre em Direito, área
de concentração “Direito, Estado e
Constituição”.
Orientadora: Professora Doutora Ela Wiecko
Volkmer de Castilho
Brasília
2005
iii
Antonio Henrique Graciano Suxberger
A INTERVENÇÃO PENAL COMO RE FLEXO DO MODELO DE ESTADO :
A BUSCA POR UMA INTERVENÇÃO PENAL LEGÍ TIMA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração “Direito, Estado e Constituição”, e aprovada em sua forma final pela Coordenação do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
Banca Examinadora:
Presidente: Professora Doutora Ela Wiecko Volkmer de Castilho — UnB
Membro: Professor Doutor Paulo de Souza Queiroz — UniCEUB
Membro: Professor Doutor Alexandre Bernardino Costa — UnB
Membro: Professor Doutor Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto – UnB (Suplente)
Coordenador de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília: Professor Doutor Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto — UnB
Brasília/DF, de de 2005.
iv
Agradecimentos
Nenhuma realização — por mais singela que seja — é fruto de um esforço
solitário. Este trabalho hoje existe porque pessoas acreditaram na pessoa que o realizou.
Agradeço aos meus pais, Heini e Maria, que me provam a cada dia que o amor
deles supera e me faz superar qualquer desafio. Um merecido e por demais protelado
agradecimento também dirige-se aos meus irmãos Maria Helena e Heini, que juntamente com
o Cadu e a Rose, meus cunhados, servem-me de modelo, suporte e alegria para enfrentar os
problemas que vez por outra insistem em aparecer pela vida. Meus sobrinhos Matheus,
Luciano, Vinícius e Bruno confirmam isso.
Agradeço ao amigo de todas as horas Raphael Borges Leal de Souza e à sua
família recém-formada com a Mariana, que se junta à já presente que eu gosto tanto. Meu
agradecimento também vai para o amigo Paulo Eduardo Pinto de Almeida, que, como se não
bastasse nossa amizade, furtou-se da companhia da minha querida Carol para se ocupar da
leitura criteriosa dos originais do trabalho.
Agradeço também aos colegas do Mestrado: meus companheiros “inocentes”
Ivaldo, Leonardo, Antônio Pádua, Gustavo, Emmanuela, Cláudia e Cristiano, pelas reflexões
desenvolvidas sob a batuta do professor Inocêncio Mártires Coelho, a quem também
agradeço; aos meus colegas José Robalinho Cavalcanti e Cristina Ossipe Martins Botelho,
cujas considerações tornaram-se pontos deste trabalho; aos colegas Thiago Ávila, Marina
Quezado Grosner, Ana Flauzina e Fabiana Costa, pelas relevantes discussões criminológicas.
Meu obrigado se estende aos professores da Faculdade de Direito pelo exemplo de
dedicação à Universidade. Não posso deixar de agradecer aos alunos da graduação que
v
conheci durante o Mestrado: fui premiado com amizades e com a troca desigual de
conhecimento (ganhei muito mais que ofereci). Obrigado à Universidade de Brasília: já se vão
dez anos desde a minha matrícula na graduação e parece que foi ontem.
Agradeço ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, instituição que
tenho orgulho de integrar e que me fomentou para realizar esta pesquisa, na pessoa de seu
Procurador-Geral de Justiça Rogério Schietti, exemplo de pessoa e profissional.
A gratidão é espelhada pelo coração. Por mais que as palavras tentem, elas jamais
tomarão o lugar de um olhar sincero e de um abraço verdadeiro. Obrigado.
vi
A aprovação da presente dissertação não implica o endosso da Professora Orientadora, da Banca Examinadora e da Universidade de Brasília às idéias que a fundamentam ou que nelas são expostas.
vii
SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................................1 CAPÍTULO 1 – A busca por uma legitimação da intervenção penal ....................6
1.1. O giro valorativo na orientação do direito penal .........................................6
1.1.1. A política criminal como suporte a um direito penal axiologicamente orientado às suas finalidades ..........................................................................6 1.1.2. A compreensão atual da política criminal como instrumento de legitimação da intervenção penal .....................................................................................12
1.2. A compreensão do direito penal na contemporaneidade como reflexo
teleológico da opção de Estado.........................................................................27
1.2.1. O direito penal no Estado democrático de Direito .............................27 1.2.2. A influência da rigidez constitucional na compreensão da intervenção penal contemporânea..............................................................................................32
CAPÍTULO 2 – As razões da intervenção penal .................................................36 2.1. O abolicionismo penal ...............................................................................36
2.1.1. O pensamento de Louk Hulsman .......................................................38 2.1.2. O pensamento de Thomas Mathiesen.................................................42
2.2 . Ferrajoli e as razões do direito penal: quando proibir?.............................50
CAPÍTULO 3 – Do abolicionismo ao minimalismo garantista: as críticas mais relevantes e o movimento de expansão do direito penal ......................................64
3.1. Abolicionismo versus garantismo..............................................................64
3.1.1. A intervenção penal dirigida à prevenção de vinganças privadas......69 3.1.2. A intervenção penal dirigida à prevenção de delitos..........................74
3.2. A tendência contemporânea: o risco de um direito penal simbólico.........79
CAPÍTULO 4 – A abordagem funcionalista do direito penal..............................92 4.1. O funcionalismo sociológico no direito penal ...........................................92
4.2. A abordagem funcionalista sistêmica: concepção e crítica .......................99
4.3. Crítica ao funcionalismo sistêmico: a necessária opção pelo funcionalismo
teleológico.......................................................................................................114
CAPÍTULO 5 — Os fins da intervenção penal: visão geral ..............................122 5.1. Teoria da retribuição................................................................................124
5.2. Teoria da prevenção especial...................................................................128
5.3. Teoria da prevenção geral........................................................................133
CAPÍTULO 6 – A missão do direito penal: os fins da pena segundo o funcionalismo teleológico ..........................................................................................................138
6.1. Primeiro momento de realização do direito penal: o âmbito de incidência142
6.1.1. Princípio da subsidiariedade.............................................................143 6.1.2. Princípio da lesividade .....................................................................144
viii
6.2. Segundo momento de realização do direito penal: aplicação e mensuração da
pena .................................................................................................................145
6.3. Terceiro momento de realização do direito penal: a execução da pena ..149
6.4. Críticas à teoria de Claus Roxin: acréscimos e superações .....................152
CAPÍTULO 7 – A missão do direito penal: a exclusiva proteção de bens jurídicos............................................................................................................................162
7.1. Os valores jurídico-penais na Constituição: a Carta Política como pauta
valorativa.........................................................................................................162
7.2. Uma aproximação do conceito de bem jurídico ......................................170
7.2.1. O bem jurídico extraído da Constituição..........................................170 7.2.2. A construção do bem jurídico com base em suas funções ...............173
CONCLUSÃO....................................................................................................189 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................198
ix
RESUMO
A presente dissertação pretende investigar a legitimidade da intervenção penal
contemporânea. O direito penal expressa uma opção político-criminal, que se orienta, por sua
vez, consoante o modelo de Estado a que se aspira. Assim, a intervenção penal — orientada
por valores extraídos de uma política criminal acolhida pelo modelo de Estado democrático de
Direito — volta-se às suas finalidades. O direito penal justificar-se-á por duas funções: (i)
limitada prevenção de delitos e (ii) exclusiva proteção de bens jurídicos. A Constituição, além
de prestar-se como pauta de valores a informar o sistema-político criminal, por meio de sua
rigidez, fixa um novo paradigma e atua como limite e vínculo ao poder do Estado,
especialmente o penal. A discussão acerca das razões da intervenção penal enfrenta desde
aqueles que negam qualquer legitimidade à intervenção penal (abolicionismo) até a posição
segundo a qual o direito penal atua na prevenção de novos delitos e de reações informais ao
delito (garantismo). No entanto, vê-se um movimento de expansão do direito penal segundo
uma visão simbólica que o coloca como instrumento no combate à criminalidade. A busca por
uma intervenção penal legítima passa, então, necessariamente pela abordagem funcionalista
teleológica, que se ocupa das teorias da pena, para justificar a existência do direito penal, e do
estudo do bem jurídico-penal, para limitar o poder punitivo estatal.
x
ABSTRACT
This dissertation is a study concerning the legitimacy of contemporary criminal
intervention. Criminal law is the result of criminal policy which, in turn, depends on the State
model that is pursued. Thus, criminal intervention is linked to criminal policy values, which
depend upon the model that the state adopts. Criminal law has two fundamental roles: 1) a
limited prevention of crimes; and 2) an exclusive protection of some values. In addition to
essentially being a guideline of values that limit the criminal policy system, by means of its
rigidity, the Constitution establishes a new paradigm, thus limiting and binding the power of
the State, especially when related to criminal intervention matters. Discussions concerning the
reasons for criminal intervention, through the state, range from positions that deny any
legitimacy to such criminal intervention (abolitionism) to those that consider criminal law as
an effective way to prevent crimes and punishment not forseen by a statute. However, there is
a contemporary trend that sees criminal law in a symbolic light and perceives it as an
instrument to fight crime. The search for a legitimate criminal intervention necessarily
involves the teleological functionalism approach, which analyses the theories of punishment,
in order to justify the existence of criminal law, and the study of criminal values, in order to
limit the punitive power of the State.
1
INTRODUÇÃO
A intervenção penal do Estado, por substanciar a mais grave forma de controle
social, traz consigo um permanente questionamento acerca de sua legitimidade. Discutir a
razão de se optar por essa resposta tão grave, com aptidão para atingir um dos bens mais caros
à pessoa — a sua liberdade —, é tarefa que se põe tanto ao meio acadêmico como para
aqueles que operam o sistema de justiça criminal.
No entanto, além de discutir o se da intervenção penal, uma vez que se a admita,
caberá ao intérprete seguidamente questionar as finalidades a serem por ela atingidas, bem
assim, por configurar resposta tão grave, os rigorosos limites a serem observados pelo Estado
na utilização desse instrumento que, afirme-se desde logo, prestar-se-á à salvaguarda dos
valores mais importantes ao seio social. Em última análise, discutir a legitimidade da
intervenção penal implica descortinar as missões que o Estado reserva ao direito penal.
Nessa linha de idéias, surge como tarefa inarredável a identificação do sistema
político-penal que melhor se coadune com o modelo de Estado a que o seio social aspira. Isso
porque, subjacente ao questionamento acerca da legitimidade da intervenção penal, está a
assertiva de que o modo pelo qual o Estado a opera reflete exatamente o modelo de Estado
cuja realização se pretende. Com isso, e tomando-se por pressuposto que se pretende
justamente observar o paradigma de um Estado democrático de Direito, parece inafastável que
a construção do direito penal deverá observar uma orientação dirigida a valores, os quais
serão extraídos de um programa político-criminal de nítida inspiração e vinculação
constitucional.
2
Uma intervenção penal que se pretenda legítima e que almeje um mínimo de êxito
(aptidão funcional) deve voltar-se ao cumprimento de uma política criminal valorativa e
teleologicamente orientada. A recepção de tendências político-criminais funcionalistas, bem
assim a abertura da dogmática penal a uma pauta de valores extraída da própria Carta Política
parecem traduzir o matiz de uma intervenção penal contemporânea, que revele
simultaneamente a preocupação normativa de segurança jurídica – em sua acepção de
segurança social – e o papel de garantia dos indivíduos submetidos a essa mesma intervenção.
O esboço de uma investigação dessa natureza não se mostra livre de percalços. É
que a recente produção legislativa brasileira e os discursos que a lastreiam parecem caminhar
em sentido contrário a todo delineamento de um direito penal orientado a valores de natureza
constitucional. Igualmente, na revisão bibliográfica, especialmente nos autores de língua
portuguesa, percebe-se uma falta de clareza conceitual acerca das distinções — tênues, porém
bastante importantes — entre os sistemas penais surgidos após o finalismo. Essa confusão
doutrinária, ao que parece, tem servido justamente de lastro a uma expansão do direito penal
pretensamente amparada em pressupostos funcionalistas.
A vertente de investigação a ser adotada é a jurídico-sociológica, que se propõe a
compreender as finalidades do direito penal num ambiente social mais amplo. O tipo genérico
de investigação ora pretendida é o jurídico-compreensivo ou jurídico-interpretativo1, que parte
da decomposição de um problema jurídico em seus diversos aspectos, relações e níveis.
No primeiro capítulo, intitulado “A busca por uma legitimação da intervenção
penal”, pretender-se-á demonstrar que o direito penal contemporâneo operou um verdadeiro
1 Cf. GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa; DIAS, Maria Tereza Fonseca. (Re)pensando a pesquisa jurídica: teoria e prática. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 55-60. Igualmente, servem de arrimo metodológico ao presente trabalho: PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úteis para o
3
giro em direção a uma orientação valorativa, afastando-se de uma tradição de abordagens
ônticas, a fim de orientar-se a soluções político-criminais inspiradas pelas próprias finalidades
do direito penal. Com isso, ver-se-á que a política criminal passa a assumir lugar de relevo na
construção da própria dogmática penal, porque a ela caberá sistematizar as constatações
advindas do empirismo criminológico e aglutiná-las com os reclamos axiológicos extraídos do
texto constitucional. Procurar-se-á demonstrar, então, que a compreensão do direito penal
contemporâneo será reflexo da missão constitucional relegada à intervenção penal segundo o
modelo de Estado a que se aspira, no caso, o do Estado democrático de Direito. Questionar-
se-á, assim, o papel da rigidez constitucional, própria do constitucionalismo desse modelo de
Estado, na elaboração das normas penais.
O segundo capítulo (“As razões da intervenção penal”) cuidará de, primeiramente,
enfrentar as propostas que negam por completo a própria intervenção penal pelo Estado. Em
seguida, passar-se-á a esboçar o sistema visualizado por Luigi Ferrajoli, corifeu do
pensamento garantista, de dúplice função atribuída ao direito penal.
O terceiro capítulo — “Do abolicionismo ao minimalismo garantista: as críticas
mais relevantes e o movimento de expansão do direito penal” —, tomando como ponto de
partida as perplexidades surgidas do enfrentamento entre os postulados abolicionistas e as
propostas do garantismo, ocupar-se-á de dimensionar uma síntese crítica das posições
abolicionistas e garantista. Só então, com o instrumental advindo desse enfrentamento,
analisar-se-á a tendência expansionista da intervenção penal contemporânea, a fim de se saber
se o direito penal, nesse contexto de crescimento de seus lindes, atinge suas funções ou se tão-
somente tem se prestado como instrumento simbólico.
pesquisador do Direito. 3. ed. atual. ampl. Florianópolis: OAB/SC Editora, 1999, 200 p., e MEZZAROBA, Orides; MONTEIRO, Cláudia Servilha. Manual de Metodologia da Pesquisa no Direito. [s. l.]: [s. ed.], 2002.
4
O quarto capítulo, intitulado “A abordagem funcionalista do direito penal”, deter-
se-á, inicialmente, sobre as próprias bases desse movimento sociológico lançado por Émile
Durkheim e capitaneado por Robert Merton. Em seguida, pretende-se, a partir das lições de
Niklas Luhmann, explorar as bases sobre as quais repousam as idéias advindas do
funcionalismo sistêmico defendido por Günther Jakobs, penalista alemão dos mais lidos nos
países latino-americanos, notadamente no Brasil, com considerável prestígio dirigido a tal
vertente de pensamento. Daí, cuidar-se-á de apresentar outra vertente do funcionalismo
representado pelo também alemão Claus Roxin.
O quinto capítulo – “Os fins da intervenção penal” – deparar-se-á com a assertiva
de que a pretensão de abordar as finalidades da intervenção penal implica debruçar-se sobre
as teorias da pena: absolutas, relativas e suas subespécies. As primeiras, como se verá, são de
evidente cariz retribucionista; ao passo que as segundas referem-se à prevenção de novos
delitos, ora pendem para uma prevenção especial de delitos em geral, ora pendem para uma
prevenção geral dos delitos futuros.
O sexto capítulo, por sua vez, chamado “A missão do direito penal: os fins da
pena segundo o funcionalismo teleológico”, reconhecerá a inclinação da investigação à
vertente do funcionalismo teleológico tal como asseverada por Claus Roxin. Perceber-se-á
que a intervenção penal deverá observar três momentos distintos: um de definição do âmbito
de incidência; um de aplicação e mensuração da reprimenda imposta; e o último, que diz
respeito à execução da sanção imposta. Nada obstante, a visão roxiniana também se
submeterá às críticas elaboradas por considerável número de doutrinadores.
O sétimo capítulo — “A missão do direito penal: a exclusiva proteção de bens
jurídicos” —, que guarda estreita relação com o capítulo anterior, servirá justamente como
5
pano de fundo ao desenvolvimento de uma teoria do direito penal que exerce uma dúplice
função. Para isso, valer-se-á de uma pauta hermenêutica, extraída da própria Carta Política,
para em seguida perquirir acerca de um conceito de bem jurídico extraído das funções por ele
exercidas.
Tratar de temas da dogmática do direito penal revela-se sempre tarefa muito
custosa. É difícil traçar um enfoque ou um recorte nos temas que acabem não tocando de um
modo ou de outro algo já desenvolvido. No entanto, pretende-se que a investigação ora levada
a efeito forneça, ao fim, os pressupostos sobre os quais deverá uma intervenção penal,
condizente com um Estado democrático de Direito, exercer sua missão constitucional de
prevenção de delitos e de exclusiva proteção de bens jurídicos.
6
CAPÍTULO 1 – A busca por uma legitimação da intervenção
penal
1.1. O GIRO VALORATIVO NA ORIENTAÇÃO DO DIREITO PENAL
1.1.1. A política criminal como supor te a um direito penal axiologicamente orientado às suas finalidades
A necessidade de uma orientação normativa axiologicamente voltada a valores
constitucionais surge como reclamo maior de um direito penal que hoje está em crise.
Verdadeiramente, ou o direito penal cumpre a exigência de dotar-se de uma melhor
compreensão axiológica e, por ela, de uma abordagem filosófico-política, ou corre o risco de
reduzir-se a uma pura técnica de controle social e policial.
Os desajustes sociais e a própria dinâmica das aglomerações urbanas produzem
conotações entre a criminalidade e a reação social frente a ela que não podem ser
compreendidas de um ponto de vista exclusivamente normativo, porque o direito penal não é
mais que uma forma de controle social, na lição de Muñoz Conde, “em que aquilo que não se
vê é talvez mais importante que aquilo que oficialmente se ensina”.2
Não há como escapar dessa percepção axiológica do direito penal. Questionar a
legitimidade da intervenção penal demanda do intérprete a utilização de critérios valorativos
externos à lei. Uma definição substancial do delito, que supere a assertiva tautológica de
concepção formal do delito — “é delito toda conduta proibida pela lei penal” —, exige uma
abordagem valorativa, sob pena de o intérprete satisfazer-se com uma legitimação
estritamente interna da intervenção penal, própria dos ordenamentos que incorporam e se
2 “La idea básica que preside este libro es precisamente esta: que no se puede compreender el Derecho penal más que como una forma de control social, en la que lo que no se ve es quizás más importante que lo que
7
valem apenas da retribuição como móvel da intervenção estatal e da legalidade formal a
qualquer custo.
O direito penal, até o fim do século XIX, mais que qualquer outro ramo do
conhecimento jurídico, apresentava-se como uma ciência jurídico-filosófica. Converteu-se, no
começo do século XX, em uma disciplina puramente técnica, carente de fundamentos e de
referenciais axiológicos externos.3
São diversos os fatores que conduziram a essa mudança do direito penal. Para
melhor compreensão, no entanto, pode-se sintetizá-los em três grupos de argumentos.
Em primeiro lugar, destaca-se a marca reacionária do pensamento liberal do final
do século XIX, que, uma vez construída e consolidada a idéia de Estado moderno, não mais se
preocupou em assegurá-la mediante limites e vínculos em garantia dos direitos dos cidadãos;
mas, ao contrário, voltou-se a defender o próprio Estado desses cidadãos e, em particular, das
novas “classes perigosas” e potencialmente subversivas.
Em segundo lugar, em razão de uma abordagem epistemológica positivista,
lastreada na aproximação acrítica de um direito de cunho meramente descritivo, e a ilusão
supostamente científica de uma ciência jurídica desprovida de carga valorativa, admitindo-se
o direito como uma ciência puramente técnica, de onde se poderia retirar todo e qualquer
juízo de valor.
oficialmente se enseña”. CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, Prólogo a la edición brasileña. 3 Nesse sentido, cf. FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 17-31.
8
Em terceiro lugar, em conseqüência da razão anterior, vislumbra-se uma evidente
tentativa de “naturalização” do direito penal como fenômeno externo e independente da obra
dos juristas, suscetível de conhecimento e, mais, de explicação, mas não de justificação ou
mesmo de deslegitimação. Com essa última razão, verificara-se uma redução da legitimação
externa (ou política) e da legitimação interna (ou jurídica) do direito penal, uma confusão
entre o seu conteúdo de justiça e a sua mera existência e concepção como técnica auto-
referencial de defesa e controle social, consoante propostas autoritárias de diversas índoles,
que ainda floreiam as discussões tacitamente filosóficas da cultura penal dominante, inclusive
a brasileira.
O crédito pela criação da política criminal como disciplina científica é de Franz
Von Liszt, que a concebeu como o conjunto de critérios determinantes de uma luta eficaz
contra o delito. Silva Sánchez4 chama a atenção para o profundo distanciamento entre o
pensamento do mesmo Liszt acerca da dogmática penal e da política criminal. A visão
dogmática do pensador alemão descreve e sistematiza o Código Penal alemão de 1871,
relegando à dogmática um papel — que ele próprio reputa inferior — de explicação
sistemática do código a estudantes de Direito.5 No entanto, o pensamento voltado à política
criminal, lastreada na ideologia terapêutica, propõe a substituição da pena e do direito penal
da culpabilidade pela medida de segurança e pelo direito penal da periculosidade.6
Inicialmente de caráter marcadamente terapêutico, voltada à realização de um
direito penal de caráter pretensamente “curativo”, a política criminal passou a assumir dois
4 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Reflexiones sobre las bases de la política criminal. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 227-228. 5 Essa postura é facilmente perceptível em seu Tratado de derecho penal. 3 volumes. Tradução de Quintiliano Saldaña. 3. ed. Madrid: [s.d.], passim. 6 O juízo é de Jesús-María Silva Sánchez (Reflexiones sobre las bases de la política criminal. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 228).
9
referenciais de racionalidade: um empírico, de eficácia, e outro valorativo, de garantias. Trata-
se justamente do surgimento de uma política criminal valorativa, presente nos últimos
quarenta anos do direito penal.7 Essa política criminal valorativa, por um lado, estriba-se
justamente em duas idéias fundamentais: a crença na ressocialização do delinqüente e a
convicção na manutenção das garantias penais. De outro lado, porém, percebe-se igualmente
um nítido viés de orientação prática e eficientista, de orientação intimidatória e
segregacionista, próprio de contextos generalizados presididos pela oportunidade e pelo
populismo. Este último, infelizmente, é o que tem caracterizado a inflação legislativa
brasileira nos últimos anos.
A valer, a recente produção legislativa do direito penal brasileiro parece carecer
de qualquer racionalidade. Tal constatação não se confunde com aquela propugnada pela
Escola de Kiel, de Schafstein e Dahm, na Alemanha nazista, que se voltava à negativa do
conceito de bem jurídico8, mas alcança um direito penal que se afasta das constatações
dogmáticas de um sistema aberto de Direito, criminológicas e de política criminal. O direito
penal brasileiro tem passado de ultima ratio a prima ratio, efetuando a construção de
verdadeiras ignomínias, motivadoras de grandes embates doutrinários e jurisprudenciais. É o
que se vê em legislações recentes como a Lei dos crimes hediondos e suas reformulações (Lei
8.072/1990), a Lei dos crimes ambientais (Lei 9.605/1998), entre outras. Afastado de uma
preocupação acerca da legitimação da intervenção penal, o Estado cada vez mais se vale de
uma legislação de cunho simbólico e estigmatizante.
7 Como se verá adiante, a melhor percepção desse giro na leitura (e na influência) da política criminal é a ofertada por Claus Roxin (Política Criminal e Sistema Jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, passim). 8 A propósito, cf. NAVARRETE, Miguel Polaino. El bien jurídico en el derecho penal. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1974, p. 164 et seq. Igualmente, cf. FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: un ensayo de fundamentación dogmática. Buenos Aires: Editorial B de F, 2004, p. 31 et seq.
10
O direito penal relaciona-se, outrossim, com importante categoria sociológica: a
violência. Muñoz Conde ressalta que a característica fundamental de todos os casos9 com que
lida o direito penal é a violência, pois são violentos todos os casos por ele tratados, como
também é violenta a forma pela qual ele os soluciona – a pena. “A violência é, desde logo, um
problema social, mas também um problema semântico, porque somente a partir de um
determinado contexto social, político e econômico pode ser valorada, explicada, condenada
ou defendida”.10 Por conseguinte, o conceito de violência não se constrói ou se extrai de modo
estático ou ahistórico; ao contrário, surge de ilação esboçada do problema social em que
evidenciada.11
O direito penal, portanto, seja nos casos em que prescreve sanções, seja na forma
com que essas sanções são prescritas, substancia violência, mas isso não significa que toda
violência substancie direito penal. Presta-se a violência como característica, reconheça-se, de
todas as instituições sociais voltadas à defesa ou à proteção de determinados interesses,
legítimos e ilegítimos. Trata-se, portanto, de mecanismo inerente à própria idéia de controle
social.
O direito penal está longe de ser o único meio de controle social de que dispõem a
sociedade e o Estado. Há outras formas que, inclusive, devem preceder ao direito penal, o
qual, pela gravidade de suas conseqüências, é a última ratio do sistema. Desse modo, são
formas de controle social extrajurídico que o antecedem: a família, a escola e a religião;
9 Vale-se o penalista espanhol da expressão “casos” na acepção delineada por Winfried Hassemer: “um caso (ou também: um fato) é um evento, um acontecimento real, o qual está sujeito a apreciação jurídica. Pode-se também dizer que: as leis são aplicadas aos casos; os casos são solucionados com a cooperação das normas legais”. HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 35. A missão do direito penal consiste, pois, em produzir, decidir e solucionar casos. 10 CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 4. 11 Zaffaroni, com a argúcia que lhe é peculiar, anota que o direito penal encerra um paradoxo em si mesmo, pois pretende tutelar a liberdade por meio da privação de liberdade, garantir bens jurídicos por meio da privação de
11
ultrapassados esses primeiros filtros, aparecem também os métodos jurídicos de controle, que
são os outros ramos do ordenamento jurídico, como o direito civil, administrativo ou
econômico. Pablo Milanese insere o direito penal contemporâneo como um subsistema do
sistema maior de controle social: o direito penal se vale dos mesmos instrumentos das outras
formas de controle social na definição e correção da conduta desviada, como a norma, a
sanção e o processo, além de perseguir os mesmos fins de resguardo da ordem social.
Segundo Milanese, “é possível concluir que o direito penal converteu-se mais em um
instrumento político de direção social que um mecanismo de proteção jurídica subsidiária de
outros ramos do ordenamento jurídico”.12
Nada obstante, o que distingue a violência do direito penal da violência acometida
pelas outras instituições de controle social é justamente a formalização do controle. A
juridicização da imposição da sanção ao comportamento não tolerado, previamente à sua
própria realização, é o que legitima o direito penal como resposta última e extrema do Estado.
O que diferencia o direito penal de outras instituições de controle social é, simplesmente, a formalização do controle, liberando-o, dentro do possível, da espontaneidade, da surpresa, do conjunturalismo e da subjetividade própria de outros sistemas de controle social. O controle social jurídico-penal é, além disso, um controle normativo, quer dizer, exerce-se através de um conjunto de normas criadas previamente ao efeito.13
O modo pelo qual a intervenção penal se legitima é informado por valores
extraídos de um programa de política criminal, que segue orientado, por sua vez, pelas
finalidades a serem buscadas pelo direito penal. As finalidades da intervenção penal refletem
justamente a opção estatal pela realização da formalização dessa instância de controle social.
bens jurídicos. Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Política criminal latinoamericana: perspectivas – disyuntivas. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 1982, p. 22. 12 “(…) es posible concluir que el Derecho penal se ha convertido más en un instrumento político de dirección social que un mecanismo de protección jurídica subsidiaria de otras ramas del ordenamiento jurídico”. MILANESE, Pablo. El moderno derecho penal y la quiebra del principio de intervención mínima. In: Revista electrónica de doctrina y jurisprudencia, ano IV, n. 2, fevereiro 2004. Disponível em: <http://www.derechopenalonline.com>. Acesso em: 11 fevereiro 2004.
12
A materialização do controle social jurídico-penal reproduz – ou deve reproduzir –
exatamente o modelo de Estado a que se aspira.
1.1.2. A compreensão atual da polít ica criminal como instrumento de legitimação da intervenção penal
Se a política criminal se presta justamente para informar uma intervenção penal –
e também para construir uma teoria penal (teoria do delito, teorias da pena etc.) — que se
pretenda legítima, é evidente que uma abordagem atenta a essa preocupação implicará
questionar as razões subjacentes a essa política.
Impende distinguir a política criminal na práxis da política criminal teórica. A
primeira constitui o conjunto de atividades – empíricas – organizadas e ordenadas à proteção
dos indivíduos e da sociedade, de modo a evitar a prática delituosa (conjunto de medidas
estatais para a prevenção e a repressão do delito). A segunda surge informada por um
conjunto de princípios teóricos hábeis a dotar de uma base racional a referida práxis de luta14
contra o delito, onde o matiz principal deita suas raízes na determinação do que substancia
solução “racional” e dos possíveis critérios de racionalidade e de legitimação.
Em todo caso, é certo que tais princípios da política criminal se efetivam por meio
da adoção de diversas formas voltadas a evitar o delito (estritamente preventivas umas,
repressivo-preventivas outras). Em boa medida, a política criminal manifesta-se em uma série
de instrumentos que devem associar-se nominal ou faticamente à produção presente ou futura
do delito, a fim de impedir que este se produza ou se reitere.
13 CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 6. 14 Melhor seria dizer “administração” do delito, porquanto o crime não se combate, haja vista a impossibilidade de erradicá-lo.
13
Assim, de um lado, ainda que a política criminal seja tomada em termos mais
amplos, permite-se a assertiva de que todo o direito penal se integra na política criminal.
Nesse contexto, para o penalista existe uma prática identificação entre a teoria dos princípios
da política criminal e a dos fins (e meios) do direito penal. Como afirma Silva Sánchez,
(…) o direito penal é expressão de uma política criminal. Assim, a discussão sobre os fins do direito penal e sobre os meios necessários para alcançar tais fins não pode ser mais que uma discussão político-criminal. E a vocação da discussão político-criminal é, em última análise, a reforma do direito penal.15
De um lado, nota-se que a própria existência do direito penal estatal expressa uma
opção político-criminal (precisamente a que passa pela definição de determinados fatos como
delitos e pela atribuição ao Estado do monopólio da repressão a esses delitos); e, de outro
lado, tem-se que um direito penal considerado em concreto (com sua regulação legal e
também com sua (re)construção dogmática e aplicação prática) veicula expressão de
determinada orientação político-criminal dentro da linha geral mencionada. E mais: ainda que
a discussão político-criminal cumpra também uma função muito importante no âmbito da lex
lata, presta-se ela a principalmente fomentar os temas penais em sede de lex ferenda.
Não basta, contudo, associar a dogmática à política criminal: a orientação será
dada precisamente pelo modelo de Estado a que se aspira. É precisa a advertência de Muñoz
Conde a respeito:
Está claro, pois, que a Dogmática não pode ser desvinculada da Política criminal e que as finalidades político-criminais devem ser consideradas em sua elaboração. O problema consiste em saber qual é o modelo político-criminal que se deve ter em conta quando se faz Dogmática. Política criminal, está bem; mas qual? E este é um problema que, desde logo, não pode ser resolvido se não se leva em consideração o modelo de Estado e de sociedade no qual se utiliza esta Dogmática. Por isso, se deve ser muito cauteloso também ao conceber a Dogmática jurídico-penal só como uma “gramática universal” que pode ser empregada em qualquer
15 “El derecho penal es expresión de una política criminal. Así, la discusión sobre los fines del derecho penal y sobre los medios precisos para alcanzar tales fines no puede ser más que una discusión político-criminal. Y la vocación de la discusión político-criminal es, en último término, la reforma del derecho penal” (SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Reflexiones sobre las bases de la política criminal. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 233-234).
14
tempo e lugar, ao mesmo tempo no Estado social e democrático de Direito e no Estado nacional-socialista, porque isso, a parte de ser bastante utópico, pode ser também muito perigoso e servir de legitimação de qualquer Direito Penal, incluído o do nacional-socialismo e o das ditaduras fascistas, a espanhola, as latino-americanas e as de qualquer outra parte do mundo onde se dêem tais modelos, que é, em definitivo, o que se desprende de uma proposta dogmática tão ascética e puramente sistemática como foi a que se cultivou na Dogmática jurídico-penal alemã dos anos 50 e 60.16
A preocupação com uma busca da legitimação do direito penal é inafastável e
contínua. Como lembra Enrique Gimbernat Ordeig, a imposição de uma pena, como, aliás,
toda a intervenção penal do Estado, “é algo que o Estado tem de justificar continuadamente
em seu se e em seu como, que tem de justificar demonstrando sua necessidade para alcançar
uma suportável convivência social”.17
A esta altura já se pode lançar a idéia basilar que permeará toda a investigação que
ora se pretende. A intervenção penal orienta-se à realização de valores extraídos da política
criminal: mas não de qualquer política criminal, e sim daquela acolhida pelo modelo de
Estado democrático de Direito.
A busca por uma legitimação da intervenção penal guarda relação com o relevante
debate hoje travado entre aqueles chamados principialistas e os ditos conseqüencialistas. Os
primeiros fixam um estrito vínculo entre as bases do direito penal – especialmente no que se
refere à dogmática do delito – e os fundamentos da ética de princípios lançada por Kant. A
ética clássica alemã afasta as considerações conseqüencialistas ou de utilidade para aquilatar o
valor moral das ações. Para o direito penal, essa abordagem filosófica revela-se de
fundamental importância na medida em que cuida essa espécie de controle social de valorar e,
como se abordará adiante, motivar condutas, respectivamente, contrárias ao e desejadas pelo
seio social. Segundo essa abordagem principialista, o sistema do direito penal teria uma
16 CONDE, Francisco Muñoz. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu tempo: estudos sobre o Direito Penal no Nacional-socialismo. Tradução de Paulo César Busado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 59.
15
configuração fechada e apriorística, livre de considerações axiológicas fornecidas pela política
criminal.18
Já o pensamento conseqüencialista reserva lugar substancial, justamente no
desenvolvimento da política criminal, às doutrinas de justificação do direito penal, inclusive
até mesmo os aportes trazidos pela vertente sistêmica de que é representante Günther
Jakobs.19 Um direito penal orientado às conseqüências afasta-se de uma simples análise
instrumental da intervenção penal, de sorte a também considerar as opções valorativas
veiculadas na escolha do âmbito de incidência e nos limites impostos ao direito penal.
A orientação das decisões jurídicas pelas conseqüências é uma característica do moderno sistema de Direito. Até aí ela caracteriza também o Direito Penal. (…) A orientação pelas conseqüências no sistema jurídico-penal e a execução penal não se vêem (apenas) diante da tarefa de perseguir o injusto criminal e compensar pela expiação do autor, mas que elas perseguem pelo menos o objetivo de corrigir o autor e conter por completo a criminalidade.
(…)
Não se pode responder de modo totalmente preciso à pergunta acerca de como a profunda orientação do sistema do Direito Penal pelas conseqüências pode alcançar a práxis do Direito Penal – em todo caso é evidente que o moderno Direito Penal orienta seu procedimento pelas conseqüências e esta tendência atualmente se intensifica.20
17 ORDEIG, Enrique Gimbernat. O futuro do direito penal: tem algum futuro a dogmática jurídico-penal? Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 32. 18 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Eficiência e direito penal. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 2. 19 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Eficiência e direito penal. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 3. 20 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 53-54. Hassemer assenta que, a partir da metade da década de 1960, a reflexão penal avançou de uma ênfase no input para o output: “de uma justificação do Direito Penal fundada em abstração e sistema para uma justificação pelos efeitos que possa produzir”. Em seguida, menciona cinco pontos que passaram a dirigir os chamados “jovens” penalistas responsáveis pelo alinhamento e orientação da comunidade acadêmica: fundamentações sistêmicas no discurso jurídico-penal não mais valiam como verdades inquestionáveis; sanções e execução penal converteram-se em objetos centrais da reflexão penal; uma consistente teoria da política criminal começou a desenvolver-se; a criminologia e outras ciências sociais penalmente relevantes estabeleceram-se na teoria e no ensino como objeto de crescente atenção; e o empirismo teve acesso às fundamentações jurídico-penais. HASSEMER, Winfried. História das Idéias Penais na Alemanha do Pós-Guerra. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, ano 29, n. 118, abril-junho 1993, p. 254. No mesmo sentido, cf. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 70.
16
O pensamento conseqüencialista mais difundido na atualidade, apesar de
encontrar opositores, no âmbito do direito penal, é o funcionalista porque, como se verá ao
longo da presente investigação, é justamente o pensamento funcionalista, por sua vertente
teleológica, que melhor responde às questões acerca da legitimação e dos limites da
intervenção penal.
O estudo elaborado por Claus Roxin, no início da década de 1970, nominado
Política criminal e sistema jurídico-penal21, marca o início de uma nova época na dogmática
jurídico-penal moderna marcada pelo sistema funcionalista, ou teleológico-funcional, da
teoria do delito. A proposição de um novo sistema funda-se justamente numa diferente
concepção – e de relação –entre direito e Estado, bem assim numa relação diversa até então
verificada entre direito penal e política criminal.
Roxin sugeriu, com sua proposta funcionalista, uma concepção normativa que
orientasse o sistema jurídico-penal em pontos de vista valorativos político-criminais. Nesse
sentido, opôs aos esforços naturalistas-causais e finalistas, marcados por uma fundamentação
ôntica, uma concepção normativa, por ele sugerida como orientadora de um sistema jurídico-
penal em pontos de vista valorativos político-criminais.
Superou ele, com isso, a relação de tensão então existente entre o direito penal e a
política criminal, que situa em extremos as preocupações fáticas e ontológicas do direito penal
em contraste com a orientação normativa e axiológica da política criminal. Propôs uma
abordagem mais ampla para a própria concepção do direito penal, de sorte a unir essas
tendências então tomadas como contrapostas.
21 A referência do exemplar utilizado no presente estudo é ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.
17
A idéia de fim no direito penal, segundo Roxin, substancia o escopo maior da
política criminal. Cumpre rejeitar os esforços sistemáticos que não se dirijam a uma
orientação político-criminal, que acabem por ocupar-se com a construção de uma teoria do
delito infensa a modificações do sistema jurídico. Roxin registra “a exigência de que a
pesquisa e a doutrina orientem seus esforços, isso sim, para questionamentos criminológicos e
político-criminais”22. A preocupação com a necessária “decisão adequada do caso
concreto”23, ainda que esta só seja alcançável com vulneração à preocupação ontológica de
integração do sistema jurídico, acaba por orientar o ingresso dos questionamentos político-
criminais, mesmo que em prejuízo de soluções claras e uniformes pretendidas por uma teoria
do delito orientada tão-somente ao sistema jurídico. Aliás, essa pretensão avassaladora de
respostas uníssonas e previamente determinadas, afastadas de qualquer aspecto valorativo,
pode conduzir a uma dogmática reduzida a fórmulas abstratas, voltada a uma aplicação
automática de conceitos teóricos que não atente, por conseguinte, às peculiaridades do caso
concreto.
Figueiredo Dias registra com precisão que a solução dos casos colocados à
apreciação do direito penal deverá ser
uma solução justa do caso concreto e simultaneamente adequada ao (ou comportável pelo) sistema jurídico-penal. O que supõe a “penetração axiológica” do problema jurídico-penal, a qual, no âmbito da dogmática, tem de ser feita por apelo ou com referência teleológica a finalidades valorativas e ordenadoras de natureza político-criminal, numa palavra, a valorações político-criminais co-naturais ao sistema.24
22 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 7. Nessa toada, aponta Vera Andrade que “a situação presente da Dogmática Penal pode ser sumariada como a de convivência entre a continuidade do pensamento sistemático, que representa a conexão com o passado, e a recepção de tendências político-criminais funcionalistas e criminológicas críticas, que representa a característica do presente”. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Florianópolis: Livraria do Advogado, 1997, p. 166. 23 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 7. 24 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 35.
18
Roxin verifica, portanto, a existência de uma crise no pensamento sistemático em
geral. Aliás, o excesso de relevância ao pensamento sistemático evidencia herança inegável
do positivismo. Nada obstante, quer parecer que as críticas às soluções dogmáticas isoladas
não implicam crítica ao pensamento sistemático em si, mas a premissas errôneas em seu
desenvolvimento dogmático. Também no direito penal, problemas político-criminais
constituem o conteúdo da teoria geral do delito. A valer, na solução de casos concretos, não
são raras as vezes em que o operador se depara com problemas de natureza puramente
político-criminal, cuja solução não pode ser alcançada adequadamente com o automatismo
dos conceitos teóricos.
A saída parece surgir da correção valorativa de soluções dogmático-conceituais
por meio de soluções político-criminais. A solução alcançada em cada caso – decisão
adequada do caso concreto – reclama um teste de considerações político-criminais, com
independência de construções conceituais e de respostas autônomas, com respostas obtidas a
partir da dedução lógico-dogmática para um controle complementar. A composição da
decisão adequada, portanto, agregaria perspectivas advindas da teoria do delito sistemática e
propostas axiológicas da política criminal.
Decerto que o ingresso de considerações próprias de construções conceituais
independentes e de respostas autônomas, como são as considerações político-criminais,
jamais deverá ser causa de um voluntarismo ou de arbitrariedades na orientação dessas
soluções. Com efeito, impende reconhecer que, “enquanto os fundamentos da valoração
provierem do sentimento jurídico ou de orientações isoladas, sem encontrar apoio na lei,
permanecerão eles turvos, causais e sem poder de convencimento científico”25. Com isso,
atribui-se à lei o papel de, além de assegurar os pressupostos e os limites legais de eventual
19
punição, orientar os valores26 em que se lastreie a intervenção da política criminal para a
solução do caso concreto. Assim esclarece Roxin:
(…) fica claro que o caminho correto só pode ser deixar as decisões valorativas político-criminais introduzirem-se no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação legal, a clareza e previsibilidade, as interações harmônicas e as conseqüências detalhadas deste sistema não fiquem a dever nada à versão formal-positivista de proveniência lisztiana. Submissão ao direito e adequação a fins político-criminais (kriminalpolitische Zweckmäβigkeit) não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese, da mesma forma que Estado de Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidade dialética: uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito.27
Deveras, essa unidade sistemática a que se refere Roxin, que agrega política
criminal e direito penal, deve orientar também a própria construção da teoria do delito, sendo
certo que esta representa tão-somente uma tarefa a ser observada em todas as esferas da
ordem jurídica.
Esta confissão a favor de um sistema teleológico-funcional e teleológico racional da dogmática jurídico-penal não significa porém a recusa da intervenção de considerações axiológicas, de pontos de vista de valor, de critérios de validade e de intencionalidades normativas na dogmática, nem, muito menos, o pronunciamento a favor de argumentos de pura “engenharia social”. Os desenvolvimentos mais recentes e significativos da dogmática jurídico-penal e dos seus pressupostos fundamentais revelam que tal oposição não é necessária e que, em vez dela, o que entre aquelas concepções deve interceder é uma relação dialética capaz de conduzir, no fim, a uma unidade axiológico-funcional.28
Nesse sentido, relativamente à teoria do delito, a teoria finalista da ação, com sua
volta para as estruturas ônticas e para a realidade social, obteve considerável êxito na
aproximação da dogmática penal à realidade, de modo a devolver à teoria da ação e do tipo a
plasticidade de verdadeiras descrições de acontecimentos. No entanto, em grande parte por ter
25 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 18. 26 É indisfarçável a influência do pensamento orientado a valores na presente investigação. Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 297 et seq. 27 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 20. 28 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 38. Ao longo da presente investigação, mas principalmente ao seu cabo, procurar-se-á
20
se valido de um método lógico-axiomático de dedução de soluções jurídicas de dados do ser,
acabou por conceber um sistema que não conferiu espaço autônomo a diretrizes político-
criminais na dogmática, em virtude da excessiva ênfase na construção lógico-conceitual de
suas categorias.
Sustenta, então, Roxin a necessidade de revisão de cada uma das categorias da
teoria do delito – tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade –, a fim de adequá-las aos
pressupostos de sua função político-criminal. De qualquer modo, “o desenvolvimento dos
princípios político-criminais não pode liberar-se dos parâmetros do legislador. Se isso for
feito, servirá à lex ferenda, deixando o âmbito da interpretação da lei”29. Nesse particular, vale
lembrar o papel delimitador da ação do intérprete que exerce a compreensão do “sentido
literal possível”, a que se refere Larenz30. Compreende-se como atividade interpretativa toda
aquela realizada nos limites do sentido literal possível da norma; caso o intérprete ultrapasse
esse limite, estará ele adentrando ao terreno da integração normativa, e não mais
interpretação.
Com isso, o direito penal passa a ostentar muito mais o papel de instrumento por
meio do qual as finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência
jurídica: a construção da teoria do delito, portanto, deve voltar-se teleologicamente aos
demonstrar que essa unidade sistemática é conferida justamente pela Constituição, pauta de valores mais relevantes a serem tutelados pela intervenção penal. 29 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 66. 30 “Por ‘sentido literal possível’ entendo tudo aquilo que nos termos do uso lingüístico que seja de considerar como determinante em caso concreto – mesmo que, porventura, em circunstâncias especiais -, pode ainda ser entendido como o que com esse termo se quer dizer. Pode certamente ser duvidoso em alguns casos, dado que os limites do sentido literal linguisticamente possível tão-pouco se encontram sempre traçados com exactidão, se se trata ainda de interpretação muito ‘ampla’ ou já de integração de lacunas por analogia. A impossibilidade de uma delimitação rigorosa não impede, no entanto, uma distinção, entendida esta não tanto conceptualmente, mas tipologicamente. Na grande maioria dos casos é em possível dizer-se que um evento a caracterizar de modo distinto se encontra de fora do campo de significação deste termo, do seu sentido literal possível”. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 454.
21
valores político-criminais, de sorte a afastar as críticas contra a dogmática abstrato-conceitual
própria dos tempos positivistas. Nas palavras de Roxin:
Um divórcio entre construção dogmática e acertos político-criminais é de plano impossível, e também o tão querido procedimento de jogar o trabalho dogmático-penal e o criminológico um contra o outro perde seu sentido: pois transformar conhecimentos criminológicos em exigências político-criminais, e estas em regras jurídicas, da lex lata ou ferenda, é um processo, em cada uma de suas etapas, necessário e importante para a obtenção do socialmente correto.31
O processo de obtenção de soluções adequadas ao caso concreto, que reflitam em
última análise a própria opção de Estado, parte da percepção do trabalho criminológico, que
posteriormente informa as exigências político-criminais laureadas pelo Estado que
sedimentarão a criação das regras jurídicas. Cuida-se justamente daquilo a que Figueiredo
Dias chamou de unidade funcional entre a política criminal e a dogmática jurídico-penal.
Se o aparelho conceitual da dogmática jurídico-penal deve ser determinado a partir de proposições político-criminais; e se desta forma, mas por outro lado, é à política criminal que pertence definir as fronteiras da punibilidade – então, sem por isso perder a sua intenção especificamente (e diria mais: autenticamente) jurídica, a política criminal surge como uma ciência transpositiva, transdogmática e trans-sistemática face a um qualquer direito penal positivo. A sua função última consiste em servir de padrão crítico tanto do direito constituído, como do direito a constituir, dos seus limites e da sua legitimação. Neste sentido se deverá compreender a minha afirmação de que a política criminal oferece o critério decisivo de determinação dos limites da punibilidade e constitui, deste modo, a pedra-angular de todo o discurso legal-social da criminalização/descriminalização.32
A adoção de uma dogmática penal voltada apenas a um pensamento abstrato,
restrito a categorias ônticas, acabará por desprezar as peculiaridades do caso concreto e, por
conseguinte, conduzir a draconianas soluções com vista a uma equivocada salvaguarda da
31 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 82. Nessa linha de pensamento, vale conferir as propostas apresentadas por Lolita Aniyar de Castro dirigidas a uma política criminal coerente com a contemporaneidade e com a realidade da América Latina. CASTRO, Lolita Anyiar de. La criminologia hoy: política criminal como síntesis de la criminología. Política criminal y relaciones con la teoría de la responsabilidad. Un control social alternativo o la criminología de los Derechos Humanos. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 8, n. 32, outubro-dezembro 2000, p. 262 et seq. 32 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 42.
22
segurança jurídica em detrimento do próprio sentido de Justiça. É sempre o fato global que
deve ser considerado sob a perspectiva das diferentes categorias do delito33.
Decerto que a crescente complexidade dos esforços político-criminais e a entrega
de determinadas tarefas a categorias sistemáticas individuais evidencia risco de ocasionar uma
grande imobilidade dos respectivos pontos de vista valorativos. Uma interpretação voltada à
proteção de bens jurídicos e informada por valores político-criminais pode servir como
mecanismo de segurança contra eventuais voluntarismos injustificados ou arbitrariedades. As
diretrizes político-criminais de sistematização e interpretação apontadas por Roxin devem ser
tomadas somente como motivos retores, ordenadores, com predominância na hierarquia dos
topoi a serem sopesados, sem prejuízo de outros pontos de vista a serem considerados no
processo de criação da decisão adequada ao caso concreto.
Entre os princípios da política criminal, ocupam um lugar primordial aqueles que
gerem a própria qualificação de um fato como delito – e não como fato anti-social
juridicamente proibido, ilícito civil ou ilícito administrativo. Em outras palavras, a própria
definição de quais são os delitos ou de quantas são as condutas a que cabe racionalmente
qualificar como delitivas constitui atribuição outorgada à política criminal. A criminalidade,
portanto, não constitui um a priori da política criminal; a individualização e a definição legal
da criminalidade, sim, são encargos da política criminal. Essa tarefa não diz respeito apenas a
que bens jurídicos merecem e demandam proteção penal, senão também em qual intensidade
essas classes de delitos veiculam riscos relevantes: tentativas, condutas culposas, atos
praticados por comissão ou omissão etc.
33 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, p. 86.
23
Nesse ponto percebe-se uma das características fundamentais da política criminal:
esta substancia um sistema que se autodefine. Tal traço determina a necessidade de abordar o
problema dos limites exteriores à autodefinição da política criminal: não apenas em face do
próprio legislador, mas também do próprio constituinte. É dizer, a decisão acerca de se saber
se qualquer conduta pode ser definida em um dado momento como delitiva.
Insere-se como atribuição da política criminal a determinação de como é o delito,
isto é, seus traços estruturais característicos. Assim, cuida a política criminal de definir se o
delito é um “modo de ser”, um sintoma, um estado ou, pelo contrário, um fato. E, a partir
dessa última constatação, define a política criminal os elementos integrantes desse fato. A
teoria do delito não deixa de ser, desse modo, um dos elos que integra a política criminal.
Releva saber, pois, até que ponto é certa a afirmação de que também a ciência do direito
penal, bem como a própria dogmática da teoria do delito realizam política criminal.
A compreensão da racionalidade própria à política criminal implica perquirir
acerca da existência de critérios materiais de correção que, de algum modo, vinculem o
legislador no momento de tomar uma decisão político-criminal concreta, ou se, pelo contrário,
a política criminal pertence ao âmbito do disponível, de sorte que se configura em termos
absolutamente relativistas.
Uma legitimação dotada de um mínimo de pretensão de permanência certamente
deverá orientar-se segundo os princípios da necessidade e da proporcionalidade. As decisões
político-criminais direcionadas à criminalização de uma conduta supõem um mal para
alguém, de sorte que tal imposição só cabe de modo subsidiário34 (isto é, se a finalidade
34 Afirmar que o direito penal é subsidiário “quer dizer que a sua intervenção no círculo jurídico dos cidadãos só tem sentido se se fizer como imperativo de necessidade, isto é, quando a pena se mostrar como único e último recurso para a proteção do bem jurídico. Precisamente por causa desse enfoque, que se confunde muitas vezes com o caráter fragmentário, é que se fala hoje, sentido amplo, de necessidade de pena como pressuposto da
24
perseguida não puder ser obtida por meio menos danoso) e proporcional (isto é, de maneira
que o dano causado seja adequado ao fim pretendido, não causando um dano maior que
aquele que visa evitar).
No entanto, é de ver que tais princípios revelam-se com certa vagueza, porquanto
ambos exigem uma comparação: no primeiro caso, entre a alternativa de proteção eleita e
outras alternativas possíveis, para valorar se aquela pela qual se opta revela-se efetivamente
menos lesiva que as demais; no segundo caso, entre o interesse protegido e o interesse
lesionado, para valorar se precisamente o protegido é ou não de maior valor que o lesionado.
Assim, dois sistemas que se socorrem de princípios estruturais fundamentadores de sua
política criminal (ou de outras intervenções estatais) podem alcançar conclusões
absolutamente díspares no momento de resolver – já no plano legislativo – determinados
problemas. O ponto crucial não reside na simples acolhida de tais princípios, mas nos critérios
de valoração dos interesses presentes, a partir dos quais se pode sustentar que uma
intervenção seja efetivamente subsidiária de outra e proporcional à consecução de
determinado objetivo.
Com isso, o problema se transfere ao método de determinação do valor relativo
dos bens em jogo no cenário social. Somente a partir daí cabe definir determinadas lesões
como delitivas — e legitimar, com isso, a intervenção penal, por razões de proporcionalidade
e necessidade: merecimento e necessidade da pena –, bem assim mensurar a sanção aplicável
recorrendo também a considerações de merecimento e necessidade. Logo, cabe adotar
métodos relativistas, de modo que o valor relativo dos bens que se manifesta na interação
social seja uma questão sobre a qual, sob um ponto de vista, decidirão os próprios integrantes
incidência e da elaboração da norma penal”. TAVARES, Juarez. Critérios de seleção de crimes e cominação de penas. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, número especial de lançamento, dezembro 1992. p. 82.
25
do grupo social com esteio em um critério procedimental comunicativo, que se entende de
modo diverso a depender da perspectiva adotada (teoria do consenso, ética do discurso etc.).
O produto dessa proposta substanciaria exatamente um relativismo individualista de base
liberal.
Sob outro ponto de vista, tal valor seria extraído da própria constituição social,
que não está conformada de modo essencial pelo dito consenso, senão principalmente por
determinada tradição cultural, a qual alguns agregam a idéia de que nessa configuração
prevalece o aspecto funcionalista relativo à autoconservação do grupo social. O produto dessa
proposta seria um relativismo comunitarista de base sócio-cultural, eventualmente
funcionalista.35
Não há dúvida de que o debate mais aprofundado acerca da política criminal
ocorre justamente entre os dois pontos de vista assinalados. No entanto, cumpre observar que
ambos se dirigem a um certo relativismo. A questão, portanto, reside na possibilidade, ou não,
de se estabelecer critérios de ponderação entre valores em36 jogo que gozem de validade
universal, de modo que se fixe um marco de indisponibilidade para as políticas criminais de
matiz relativista (consensualista ou culturalista). Em termos mais simples, impende
questionar: há condutas que necessariamente devem ser proibidas por meio da imposição de
pena (eventualmente por meio de uma pena determinada?)? Ou vice-versa: há condutas que
de nenhum modo podem ser proibidas por meio da imposição de pena?
35 Nesse sentido, cf. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Reflexiones sobre las bases de la política criminal. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 237. 36 Hassemer assenta que hoje se aconselha a ponderação de bens por sua flexibilidade e adaptabilidade à situação concreta, na medida em que, como método jurídico, pode legitimar decisões que se alteram caso a caso e simplificar situações complexas de decisão. É, demais disso, um método “moderno” de que tem se valido o direito penal com cada vez mais freqüência. Porém, adverte ele que o método de ponderação de bens legitima, em momentos de necessidade, a flexibilização de direitos e princípios fundamentais da própria cultura jurídica (princípio da culpabilidade, proporcionalidade da pena, in dubio pro reo, proteção da intimidade etc.). O sistema, com isso, eleva sua eficiência prescindindo em parte da sujeição a seus próprios princípios, para colocar-se,
26
Se for possível dar a essas perguntas uma resposta afirmativa (e não relativa, por
conseguinte), estar-se-á admitindo a existência de um âmbito, ainda que muito limitado,
indisponível da política criminal37, além dos diversos fatos relativos ou derivados do consenso
social vigente em um momento dado ou da influência de uma dada cultura38.
Com efeito, vislumbra-se um viés nitidamente universalista nessa proposta. No
entanto, isso não implica negar radicalmente toda possibilidade de particularismo ou
diversidade cultural (que, aliás, substancia justamente a nuança da pós-modernidade, frente às
pretensões uniformizadoras da modernidade). Trata-se, simplesmente, de salvar um conteúdo
mínimo, frente ao qual não caberia contrapor o consenso conjuntural de uma dada sociedade
tampouco o relativismo cultural. Sem olvidar a evidente “relatividade” ou “condicionalidade
sócio-cultural” do direito penal, cuida-se de demarcar a política criminal no contexto do
conceito de pessoa, sua dignidade e seus direitos fundamentais, de modo definitivo, segundo o
marco de uma fundamentação objetiva.
Assim, seguramente, a partir de tais premissas – que são indiscutivelmente
compatíveis com o reconhecimento da dificuldade presente em abordar de modo inequívoco o
objeto de conhecimento – é que se possibilitará a reconstrução de um modelo satisfatório, e
legitimador, de política criminal.
assim, como forte instrumento de intervenção. Cf. HASSEMER, Winfried. Crítica al derecho penal de hoy. Tradução de Patricia S. Ziffer. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1998, p. 58-59. 37 Como se houvesse uma gama de fatos ou condutas mallum/bonum in se ipsum, que remontam à teoria do delito natural de Garofalo, segundo o qual o delito seria mal por si mesmo. 38 A referência aqui, por sua vez, é aos chamados crimes mala quia prohibita, que decorrem de uma idéia de que o delito substancia uma criação política, que é mal porque o Estado o proíbe (em contrariedade à idéia de delito natural de Garofalo).
27
1.2. A COMPREENSÃO DO DIREITO PENAL NA CONTEMPORANEIDADE COMO
REFLEXO TELEOLÓGICO DA OPÇÃO DE ESTADO
1.2.1. O direito penal no Es tado democrático de Direito
O exame das teorias da pena, a valer, traduzem a própria justificativa de
intervenção penal do Estado. Como se verá mais adiante, a retribuição, a prevenção geral e a
prevenção especial — orientações que informaram e ainda informam a teoria da pena — não
substanciam opções afastadas de um contexto histórico, mas, ao contrário, refletem
justamente as distintas concepções que o Estado assumiu em diferentes momentos,
especialmente para o direito penal.
Questionar a legitimidade da intervenção penal, portanto, não significa perquirir
apenas acerca da função da pena em abstrato, mas, verdadeiramente, averiguar a que função
corresponde a pena no direito penal de um determinado modelo de Estado. A pena, portanto,
revela-se como instrumento que pode ser utilizado com fins muito diversos.
No Estado moderno, considera-se a pena como monopólio do Estado e a função a
ser exercida pela pena dependerá dos fins atribuídos a esse Estado. No Estado de base
teocrática, a pena (e a própria intervenção penal) justifica-se como exigência de justiça,
análoga ao castigo divino. No Estado absoluto, estabelecido como um fim em si mesmo, a
pena atua como um instrumento tendencialmente ilimitado para submissão dos súditos: foi
justamente sob esse paradigma de Estado que se alcançou um verdadeiro “terror penal”,
decorrente da atribuição à pena de uma função de prevenção geral sem restrições. O Estado
liberal clássico, preocupado com a submissão do poder ao direito – e justamente nessa atenção
é que se substancia a idéia de Estado de Direito -, buscou antes a limitação jurídica da
potestade punitiva que a prevenção de delitos. A limitação jurídica do Estado liberal se
amparou em boa parte em princípios abstratos e ideais, como o da igualdade perante a lei, que
28
por trás de si veiculava uma concepção ideal de homem, como “homem-razão”. A pena,
então, poderia ser elaborada com lastro em outro princípio ideal: a exigência de justiça, base
da retribuição. Constituía um limite ao poder punitivo do Estado, que somente poderia
castigar segundo uma idéia de merecimento, embora possuísse a mácula da rigidez, e
obrigava, também, a estender a pena àqueles casos em que ela não seria necessária.
A progressiva aparição do Estado social como Estado intervencionista — que
toma efetivo partido no jogo social — revigorou a missão de luta contra a delinqüência.
Voltou-se à função de prevenção especial, de improvável adoção sob o paradigma do Estado
liberal clássico, porque supunha admitir um tratamento penal distinto para autores de um
mesmo delito, o qual se chocava com a idéia de igualdade perante a lei, entendida como a
forma absoluta do liberalismo. No novo contexto do Estado social-intervencionista, surgiram
as medidas de segurança, instrumento de prevenção especial inadequados ao estrito legalismo
liberal clássico.
A tendência intervencionista do Estado social conduziu (ou fomentou), em alguns
países, a implantação sistemas políticos totalitários, o que culminou, no continente europeu,
com o período que mediou entre as duas grandes guerras mundiais. A experiência dos
horrores que isso provocou, primeiro na paz e logo com a guerra, tornou evidente a
necessidade de um Estado que, sem abandonar seus deveres com a sociedade, isto é, sem
deixar de ser social, reforçasse seus limites jurídicos em um sentido democrático. O direito
penal de tal Estado passa a assumir várias funções, correlatas aos distintos aspectos que nele
se combinam. Enquanto o direito penal de um Estado social legitima-se como sistema de
proteção efetiva dos cidadãos, ao qual se atribui a missão de prevenção na medida – e
somente na medida – do necessário para essa proteção; o direito penal de um Estado
democrático de Direito deverá submeter a prevenção penal a outra série de limites, em parte
29
decorrentes da tradição liberal do Estado de Direito e em parte reforçados pela necessidade de
satisfazer ao conteúdo democrático do direito penal.
Importará, portanto, não apenas a eficácia da prevenção (princípio da máxima
utilidade possível), mas também a máxima limitação dos custos (princípio do mínimo
sofrimento necessário), de sorte que a proteção que oferece o direito penal do Estado
democrático de Direito resulte menos gravosa que outros meios de controle social ilimitados
(como a vingança privada ou pública) ou desprovidos de garantias (como as atuações policiais
sem controle, as condenações sem a observância do devido processo legal, a imposição de
medidas abusivas de prevenção da criminalidade etc.) ou mesmo decorrentes de um direito
penal autoritário.39
O modelo de Estado democrático de Direito, portanto, recomenda a opção, dentre
as alternativas básicas de retribuição ou prevenção, em favor de uma prevenção limitada, que
permita combinar a necessidade de proteção da sociedade não apenas com as garantias que
oferecia a retribuição, senão também com as que oferecem outros princípios limitadores.
Somente uma prevenção assim limitada poderá provocar um efeito positivo de afirmação do
direito próprio de um Estado democrático de Direito, e, somente assim, podem ser conciliadas
as exigências antitéticas da retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial num
conceito superior de prevenção geral positiva. 40
39 Como se desenvolverá ao longo da presente investigação, Luigi Ferrajoli, por exemplo, justifica o direito penal a partir de uma finalidade preventiva dúplice: prevenção de delitos e prevenção de respostas informais ou abusivas que extrapolem a sanção penal estrita. Na esteira do posicionamento de Claus Roxin, vislumbra-se que a função do direito penal é tanto a prevenção de delitos como a redução ao mínimo da violência estatal, de sorte que a limitação da prevenção não configura apenas um limite à função do direito penal, senão parte essencial desta. 40 Nesse sentido, cf. PUIG Mir, Santiago. Revisión de la teoría del delito en un Estado social y democrático de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 127-158.
30
O Estado de Direito deve ser entendido como um “princípio diretivo” que requer
uma concreção de seus detalhes em cada situação dada. Caracteriza-se por, ao menos, garantir
a segurança dos cidadãos, mediante uma vinculação da atuação do Estado a normas e
princípios jurídicos de justiça conhecidos de tal maneira que resultem eles em todo caso
compreensíveis. O Estado de Direito, portanto, substancia uma “forma de racionalização da
vida estatal”. Embora o direito penal seja compreendido com um “direito constitucional
aplicado” – expressão de Jürgen Wolter -, nem todas as decisões político-criminais guardam
relevância constitucional direta. Por conseguinte, os princípios do direito penal que
constituem uma concreção da idéia do Estado de Direito são aqueles que se referem
basicamente à previsibilidade pelo cidadão da ação repressiva estatal e aos limites dessa
ação.41
Também a teoria do delito, e não somente a da pena, se deverá basear na função
de prevenção limitada que corresponde ao direito penal do Estado democrático de Direito. Se
o modelo de Estado deve determinar uma concepção do direito penal, esta há de informar o
suporte de seus componentes básicos, a pena e o delito. Estado, direito penal, pena e delito
guardam uma estrita relação de dependência. A teoria do delito traduz, com efeito, a
determinação das fronteiras mínimas do que pode ser proibido e apenado pelo direito penal,
bem como da resposta à pergunta acerca dos elementos que devem concorrer, como mínimo e
com caráter geral, para que algo seja jurídico-penalmente proibido e punível. A resposta a
essa pergunta dependerá, portanto, da função que se atribui ao direito penal e dos limites
impostos de modo geral ao seu exercício.
A função de prevenção a que corresponde o direito penal de um Estado, não
somente social, mas também democrático e de Direito, há de estar sujeita, portanto, a certos
41 Cf. BACIGALUPO, Enrique. Principios constitucionales de Derecho Penal. Buenos Aires, Editorial
31
limites. O princípio da legalidade, por exemplo, impõe de uma parte, que o delito seja
determinado com suficiente precisão — há de estar especificamente tipificado — e, de outra
parte, que constitua a infração de uma norma primária.42 Revela-se emergencial para a
estruturação de um Estado democrático de Direito – cuja marca reside no grau de liberdade
política que concede aos seus cidadãos – a fixação material do princípio da legalidade. Para a
consecução da segurança do cidadão perante e o Estado, com a conseqüente eliminação do
temor, impende reconhecer que “(…) as leis penais são essencialmente protetoras da liberdade
e da igualdade individual, representando o tipo penal uma garantia de permissão das condutas
contrárias ou diferentes de sua hipótese expressa”.43
O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, por sua vez, obriga a
conceber o delito como um ataque a um bem jurídico-penal, quando tal ataque não seja
justificado pela necessidade de salvaguarda de outro bem jurídico igualmente relevante ou
mesmo prevalente.
O princípio da culpabilidade (em sentido amplo) exige que esse ataque possa ser
imputado objetiva, subjetiva e pessoalmente a seu autor, em determinadas condições. Por
derradeiro, o caráter de ultima ratio do direito penal há de condicionar a punibilidade do fato
a que manifeste uma suficiente gravidade e necessidade de pena. São elementos, e acerca de
alguns deles a presente investigação se deterá mais adiante, que não apenas permitem articular
uma idéia de sistema à teoria do delito, mas também se prestam a atribuir um caráter
Hammurabi, 1999, p. 231-232. 42 A referência a expressão “norma primária” refere-se à classificação entre norma primária e norma secundária para construção da norma penal incriminadora. A norma primária cuida justamente de descrever a conduta tida por delituosa, ao passo que a norma secundária delineia a sanção cabível no caso de vulneração à norma de conduta contida na norma primária. Para fins didáticos, exemplifique-se com o tipo clássico do homicídio, descrito no art. 121 do Código Penal: a norma primária seria justamente a prescrição proibitiva de “matar alguém”, ao passo que a norma secundária seria a previsão de pena de reclusão “de 6 (seis) a 20 (vinte) anos”. 43 LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Princípio da legalidade penal: projeções contemporâneas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 58.
32
legitimador à intervenção penal, na medida em que resultam de uma evolução que tem
reconhecido as exigências que a concepção dominante de Estado impõe ao direito penal.
1.2.2. A influência da rigidez consti tucional na compreen são da intervenção penal contemporânea
A par da evolução histórica havida entre os modelos de Estado teocrático,
moderno, absoluto, liberal e social, pode-se afirmar que a segunda metade do século XX
permitiu uma mudança de paradigma44 relativamente ao modelo de Estado a que se aspira. Tal
mudança implicou também uma alteração na compreensão do direito positivo das
democracias avançadas, bem como uma verdadeira revolução epistemológica nas ciências
penais e, em geral, na ciência jurídica em seu conjunto. Tal mutação de paradigma na
estrutura de direito positivo, pode-se afirmar, produziu-se na Europa após a Segunda Guerra
Mundial e também no Brasil por meio das garantias de rigidez lançadas nas Constituições,
justamente por intermédio da introdução de previsão de procedimentos especiais
(qualificados) para revisão do texto dessas Constituições e do controle da legitimidade das leis
por parte de Cortes Constitucionais. O implemento dessas garantias de rigidez provocou uma
transformação radical no papel dessas mesmas Constituições.
Mesmo depois do reconhecimento de seu caráter jurídico-normativo, as
Constituições subsistiram durante muito tempo apenas como simples leis e, como tais, sujeitas
a modificações e – o mais importante — a violações por parte do legislador. Somente a
introdução de garantias à rigidez das Constituições modifica a estrutura dos sistemas, por
meio de processo que naturalmente não se deve apenas a fatores institucionais, mas,
44 A expressão paradigma é aqui compreendida como o modelo teórico de compreensão do mundo no contexto histórico. É a partir da construção desse conceito que a assertiva que lastreia a investigação – a intervenção penal reflete o modelo de Estado – ganha conteúdo. O modelo de Estado a que se aspira, a rigor, não decorre de um wishful thinking ou de uma imposição normativa advinda da Carta Política, mas sim da contextualização necessariamente imposta pelo paradigma do Estado democrático de Direito. Desse modo, “aspirar” a um modelo de Estado assume, na verdade, a veste obrigatória de inserção no paradigma contemporâneo.
33
sobretudo, a fatores culturais. Essa mudança acabou por provocar a descoberta do significado
e do valor da Constituição como limite e vínculo impostos a qualquer poder, inclusive aquele
majoritário. O resultado substancia uma estrutura do ordenamento jurídico muito mais
complexa.
Essa nova estrutura de ordenamento jurídico passa a se caracterizar por uma dupla
percepção: não apenas pelo caráter positivo das normas produzidas, que é a contribuição
específica do positivismo jurídico à teoria da Constituição, mas também por sua sujeição ao
direito, que veicula precisamente a característica mais robusta do Estado constitucional de
Direito, onde a produção jurídica mesma se faz consoante normas de direito positivo relativas
ao procedimento de elaboração e, o mais importante, ao conteúdo. Em virtude dessa segunda
contribuição (sujeição ao conteúdo constitucional na elaboração das leis), também o “dever
ser” do direito positivo, ou seja, suas condições de “validade”, resulta positivado por um
sistema de regras que disciplinam as próprias opções mediante as quais se pensa e se projeta o
direito, estabelecendo os valores ético-políticos que devem ser informadores dessas
escolhas.45 Assim, o direito programa seus conteúdos essenciais, vinculando-os
normativamente aos princípios, aos valores e aos direitos inscritos na Constituição, por meio
de técnicas de garantia que a cultura jurídica tem o dever e a responsabilidade de elaboração.
No direito penal, por exemplo, todas as respostas às clássicas questões relativas à
sua legitimação – quando e como punir, quando e como proibir, quando e como julgar –
resultam condicionadas aos princípios veiculados na Constituição, que deixam de ser apenas
reitores teóricos para converterem-se em normas jurídicas vinculantes para o legislador.
45 A concepção ora desenvolvida guarda estrita relação com o conceito de modelo ou sistema garantista desenvolvido por Ferrajoli em contraposição a uma idéia paleopositivista. FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 25. Mais que isso, essa idéia guarda compatibilidade com a proposta formulada por Claus Roxin de positivar programas de política criminal, a ser melhor abordada no Capítulo 6.
34
Essa mudança de paradigma possui conteúdo revolucionário e talvez represente a
maior conquista jurídica do século XX. No plano da teoria do Direito, essa mudança pode ser
expressa pela tese da subordinação da lei mesma ao direito, com a conseqüente dissociação
entre vigência (ou existência) e validade das normas. Significa, em outras palavras, completar
o próprio paradigma do Estado de Direito, ou seja, a sujeição de todos os Poderes à lei,
incluída a maioria, que se subordina, também ela, ao Direito, mais precisamente à
Constituição, não apenas em relação às formas e aos procedimentos de formação das leis,
senão precisamente em relação ao seu conteúdo. Por conseguinte, no Estado constitucional de
Direito, o legislador já não se apresenta como onipotente, no sentido de que as leis não são
válidas somente por terem sido produzidas segundo as formas e os procedimentos
normativamente estabelecidos: as leis somente serão válidas se resultarem também coerentes
com os princípios constitucionais.
Mesmo a relação da política com o direito se inverte: também a política,
juntamente com a legislação — que é seu produto — subordinam-se ao direito. Tal assertiva
assume especial relevância no que toca à intervenção penal, na medida em que é a política
criminal que informará a orientação axiológica da produção normativa penal e aquela,
portanto, atentará justamente à Constituição. Já não é mais o direito que é concebido como
instrumento da política, mas, ao contrário, é a Política que há de assumir-se como instrumento
para a atuação do direito e, precisamente, dos princípios e dos direitos fundamentais inscritos
nesse projeto, por sua vez, jurídico e político, que é a Constituição. É precisa a assertiva de
Ferrajoli:46
46 “Hay aquí un cambio en la propia naturaleza de la democracia: ésta ya no consiste simplemente en su dimensión política proveniente de la forma representativa y mayoritaria de la producción legislativa que condiciona la vigencia de las leyes, sino, además, en la dimensión sustancial que le viene impuesta por los principios constitucionales, que vinculan el contenido de las leyes, condicionando su validez sustancial a la garantía de los derechos fundamentales de todos” (FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de
35
Há aqui uma mudança na própria natureza da democracia: esta já não consiste na sua dimensão política proveniente da forma representativa e majoritária da produção legislativa que condiciona a vigência das leis, mas, ademais, na dimensão substancial que lhe é imposta pelos princípios constitucionais, que vinculam o conteúdo das leis, condicionando sua validade substancial à garantia dos direitos fundamentais de todos.
Além disso, registre-se que a interpretação da lei veicula sempre um juízo sobre a
própria lei, como aliás toda experiência com a verdade igualmente reclama um juízo
interpretativo. Verdadeiramente, o conflito entre o direito “como deve ser” e o direito “como
é”, próprio da dicotomia entre positivismo e realismo jurídico, passou, ao menos no que se
refere ao direito penal, ao próprio corpo do direito positivo, de modo a configurar uma
tendencial e permanente divergência entre os distintos níveis do ordenamento: entre o nível
constitucional, que incorpora normas e princípios de justiça sob a forma de direitos
fundamentais, e o nível legislativo, cujas normas apresentam-se sempre suscetíveis de censura
por ilegitimidade, seja pelo juiz no plano operativo, seja pelo jurista no plano doutrinário, ao
argumento de incoerência em face da Constituição. Esse conflito resolve-se justamente por
força da dupla dimensão – descritiva do “ser” do direito e prescritiva de seu “dever ser”
jurídico – imposta tanto à teoria como à análise dogmática pelo paradigma constitucional
responsável pelo delineamento dos sistemas jurídicos contemporâneos. Em outras palavras,
(…) o novo paradigma constitucional, ao passo em que comporta inevitavelmente antinomias e lacunas vinculadas aos diferentes níveis normativos nos quais se articula sua própria estrutura formal, leva, por assim dizer, inscrito em sua própria estrutura um duplo papel da ciência jurídica em geral e da pena em particular: antes de tudo, a crítica do direito existente, mediante a análise e a censura dos seus perfis de invalidade constitucional, e logo, o desenho do direito que deve ser, por meio da identificação de suas lacunas, ou seja, das garantias que ainda faltem e que devem ser introduzidas em apoio aos direitos sancionados nas Constituições.47
Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 27). 47 “(…) el nuevo paradigma constitucional, en cuanto comporta inevitablemente antinomias y lagunas vinculadas a los diferentes niveles normativos en los cuales se articula su propia estructura formal, lleva, por así decirlo, inscrito en su propia estructura un doble papel de la ciencia jurídica en general y de la penal en particular: ante todo, la crítica del derecho existente, mediante el análisis y la censura de sus perfiles de invalidez constitucional, y luego, el diseño del derecho que debe ser, por medio de la identificación de sus lagunas, o sea, de las garantías que aún faltan y que deben ser introducidas en apoyo de los derechos sancionados en las Constituciones”(FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 29).
36
A ciência jurídica, assim compreendida, toca a política do direito e com ela se
entrelaça, de sorte a promover uma luta pelo direito e pela efetividade de suas prescrições.
Especificamente no que se refere ao direito penal, vê-se que à sua crise não há outra resposta
que não o próprio direito. Uma intervenção penal consentânea com o modelo de Estado a que
se aspira, portanto, não apenas expressa um modelo de Direito e de Estado, mas também um
modelo de democracia.
CAPÍTULO 2 – As razões da intervenção penal
2.1. O ABOLICIONISMO PENAL
O desafio mais relevante à compreensão de uma justificação do direito penal
refere-se à posição abolicionista do sistema penal. Quando se menciona o abolicionismo,
cumpre distinguir uma compreensão desse termo num sentido estrito e num sentido mais
amplo. No primeiro, o abolicionismo refere-se à abolição de um aspecto específico do sistema
penal. Por exemplo, enquadram-se como vertentes abolicionistas as que sustentam a abolição
da pena de morte. Essa compreensão estrita do abolicionismo refere-se à descriminalização
entendida como o processo por meio do qual se retira atribuição do sistema penal para aplicar
sanções.48
Num sentido mais amplo, entende-se o abolicionismo quando o sistema de justiça
penal, em seu conjunto, é considerado um problema social em si mesmo e, portanto, a
abolição de todo o sistema aparece como a única solução adequada para a sociedade. É essa
espécie de abolicionismo de que se ocupará a presente investigação.
48 Nesse sentido, por exemplo, é que se diz que Beccaria filia-se ao abolicionismo, por defender a abolição da pena capital com amparo na teoria do contrato social, porquanto nada existe que possa outorgar a outro o direito de matar (Dos delitos e das penas. Tradução de Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 94-102).
37
O abolicionismo, portanto, surge como negação de qualquer justificação ou
legitimidade externa à intervenção punitiva do Estado sobre o desvio. As acepções mais
radicais cuidam de apontar a ausência de legitimação, incondicionalmente, de todo e qualquer
tipo de constrição ou coerção, penal ou social. Já as vertentes mais difundidas do
abolicionismo reivindicam a supressão da pena como medida jurídica aflitiva e coercitiva,
bem assim a própria abolição do direito penal, sem, no entanto, sustentar a abolição de toda e
qualquer forma de controle social. Tais vertentes evidenciam-se como marcadamente
moralistas e informadas por forte caráter de solidariedade, influenciadas que são por uma
referência de tipo jusnaturalista de uma moral superior que deveria regulamentar diretamente
a sociedade. Já o abolicionismo contemporâneo49 caracteriza-se por projetos de microcosmos
sociais fundados na solidariedade e na irmandade50, pela “reapropriação social” do conflito,
para devolvê-lo a ofensores e vítimas, e por métodos primitivos de composição patrimonial de
ofensas.51
Pretende-se, para uma visão panorâmica do abolicionismo do sistema de justiça
penal, abordar a visão de dois autores abolicionistas com abordagens diversas: o criminólogo
holandês Louk Hulsman e o sociólogo norueguês Thomas Mathiesen.52
49 São apontados como representantes desse pensamento Louk Hulsman, sobre quem esta investigação se deterá logo adiante, e Nils Christie. Para este, a pena – e por conseguinte o próprio direito penal – substancia um mal com a intenção de assim sê-lo. Além disso, as razões expostas para a pena (retórica oficial, teorias do direito penal) variam de lugar para lugar, ao argumento de que as teorias penais modernas são o reflexo dos interesses do Estado e da visão dele próprio. CHRISTIE, Nils. Los imagenes del hombre en el derecho penal moderno. In: Abolicionismo Penal. Traducción de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 127-142. Acerca dessa última assertiva – as teorias penais modernas são o reflexo dos interesses do Estado e da visão dele próprio -, vê-se com precisão que, a despeito de prestar-se ela para Christie a outra finalidade, ela reflete justamente aquilo que se sustentou no primeiro capítulo do presente trabalho. 50 Cf. DELMAS-MARTY, Meirelle. Os grandes sistemas de política criminal. Tradução de Denise Radanovic Vieira. Barueri: Manole, 2004, p. 308 et seq. 51 Alberto Bovino assinala que a proposta abolicionista não cuida de buscar uma política criminal alternativa, mas uma alternativa à política criminal. Cf. BOVINO, Alberto. La víctima como preocupación del abolicionismo penal. In: MAIER, Julio B (org.). De los delitos y de las víctimas. Buenos Aires: Ad hoc, 2001, p. 263. 52 A escolha desses dois autores, além de se justificar pela relevância que possuem entre as vertentes abolicionistas, deve-se ao fato de serem eles fundadores de grupos de ação ou de pressão contra o sistema de justiça penal. Hulsman é um dos principais responsáveis pela Liga Coornhert; Mathiesen encabeça o KROM – Norsk forening for kriminalreform. São autores, portanto, responsáveis não apenas pela produção acadêmica
38
2.1.1. O pensamento de Louk Hulsman
O pensamento abolicionista de Hulsman partiu, inicialmente, de uma busca pelo
desenvolvimento de critérios racionais de criminalização de condutas até que, ao longo do
tempo, em razão da idéia de que haveria uma relação contraproducente entre o sistema penal e
seus objetivos, firmou-se no sentido de que seria melhor abolir o sistema penal em sua
totalidade, afastando, portanto, toda intervenção penal do Estado. Sua visão abolicionista
nasce da dúvida cada vez maior que repousa, ao seu entender, na justiça e na conveniência do
sistema de justiça penal.
Entende ele que o sistema penal não se presta como sistema de controle social por
três razões: (i) causa um sofrimento desnecessário que, ademais, é partilhado de modo
desigual; (ii) subtrai o conflito, uma vez que apenas atinge aqueles que se vêem diretamente
envolvidos com esse sistema; (iii) parece difícil de controlar, de se lhe impor limites. A
abolição do sistema penal, para Hulsman53, inclui os distintos campos do direito penal e
caminha a uma crescente radicalização. A abolição de todo o sistema penal, para ele, não
veicula uma utopia, mas uma necessidade lógica, uma gestão realista e uma demanda de
justiça.
Relativamente ao modo pelo qual se pode alcançar a abolição do sistema penal,
Hulsman sustenta que a administração estatal centralizada da justiça penal deveria ser
substituída por formas descentralizadas de regulação autônoma de conflitos. Não é sua
intenção abolir a estrutura das sanções penais e substituí-las por estruturas de tratamento
médico ou pedagógico ou simplesmente por uma estrutura menor de justiça penal. O que
sobre o tema, mas que exercem papel de nítida relevância para aqueles voltados a uma efetiva prática abolicionista. 53 O pensamento do criminólogo holandês encontra-se sinteticamente veiculado em língua portuguesa: HULSMAN, Louk. Alternativas à justiça criminal. In: Curso livre de abolicionismo penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, passim.
39
importa é a abolição do nível estatal de regulação de conflitos em favor de um nível direto ou
mais autônomo, como ocorre nas sociedades tribais, em que a regulação dos conflitos se dá
por intergrupos e relações diretas entre indivíduos com a ajuda de instituições ou
procedimentos que estão muito mais vinculados com a experiência direta das pessoas
envolvidas no conflito.
A organização central burocrática do sistema penal subtrai o conflito daqueles
diretamente envolvidos com o delito. A abolição do sistema penal centralizado ocasionaria
dois importantes efeitos. Em primeiro lugar, implicaria a eliminação dos problemas sociais
causados pelo sistema, como a fabricação de pessoas culpáveis, a estigmatização dos
prisioneiros, a marginalização de determinados grupos, a dramatização dos conflitos por parte
dos meios de comunicação etc. Em segundo lugar, seria responsável pela revitalização do
tecido social; a ausência do sistema com seus esquemas de interpretação reducionistas e suas
soluções estereotipadas permitiria em todos os níveis da vida social outros tipos de solução de
conflitos muito mais vinculados com a experiência imediata dos que estão diretamente
envolvidos com o delito. A idéia de solidariedade – surgida de um sentimento agudo de
igualdade entre as pessoas e que se opõe à acepção tradicional, variada e excludente -,
portanto, está intimamente vinculada à perspectiva de Hulsman.
Com efeito, a abolição do sistema penal sustentada por Hulsman requer de seu
adepto uma verdadeira conversão, aqui compreendida, em sentido metafórico, por meio de um
salto significativo no nível de compreensão acerca da ação no mundo. De fato, trata-se de uma
conversão coletiva, uma vez que a abolição radical do sistema penal implicaria a abolição do
conceito de delito, ou seja, dos conceitos tradicionais e dos próprios acordos semânticos já
sedimentados no sistema penal.
40
Para Hulsman, constitui um erro fundamental considerar o delito e a criminalidade
como categorias básicas para a compreensão e definição dos fatos e para a organização da
reação a esses fatos. Essa abolição traria, pois, uma outra grama de definições e reações ante
os fatos então tidos por delituosos, tais como um sistema mais informal de resolução de
conflitos por meios compensatórios, conciliatórios, terapêuticos ou educativos de reação.
Verdadeiramente, a abolição do conceito de delito obriga uma revisão completa do próprio
vocabulário do sistema de justiça penal (não mais haveria categorias como “gravidade do
delito”, “periculosidade”, “culpabilidade” etc.).
A preocupação do tradicional sistema de justiça penal reside no atendimento aos
interesses da sociedade (prevenção geral, prevenção especial e ressocialização); a proposta de
Hulsman é voltar essa lógica para as necessidades e os interesses das pessoas que se sentem
vítimas da prática dos fatos então compreendidos como delitos. Aos perigos decorrentes da
abolição do sistema penal – a vingança privada, a autodefesa exacerbada, a violência, a
insegurança social – Hulsman responde que a abolição da máquina penal não resultaria na
exclusão de toda coerção.
Embora não delineie um plano minudenciado acerca da realização concreta dessa
abolição do sistema penal, Hulsman traça uma estratégia global para levar a cabo sua política
penal abolicionista. Em primeiro lugar, registra a necessidade de observância de critérios
racionais para controlar as decisões de criminalização de condutas ainda não criminalizadas.
Sugere, então, a fiel observância do princípio da subsidiariedade do direito penal, de critérios
sobre o caráter pragmático das situações que eventualmente legitimem a criminalização, de
critérios atinentes aos custos e aos benefícios das ações penais e de critérios relacionais com a
capacidade do sistema penal. Em outras palavras, a atenção deve voltar-se ao problema da
redução e da minimalização da criminalização.
41
Em segundo lugar, Hulsman refere-se a uma estratégia para reduzir a atual
aplicação do sistema penal, ou seja, aponta estratégias para a descriminalização – de fato e de
direito — de condutas. Finalmente, registra que é necessário criar alternativas ao enfoque da
justiça penal perante situações problemáticas. Nesse particular, aponta que uma alternativa
seria uma mudança do enfoque hoje adotado, segundo o qual o direito penal possui carga
nitidamente simbólica, para uma avaliação do que não se deseja ou do que se tolera. Outra
alternativa, segundo ele, reside na mudança operada pela intervenção física de meios técnicos
em situações, para que estas resultem menos danosas. Refere-se, por exemplo, ao uso de
dispositivos eletrônicos, restrição de acesso a determinados produtos para diminuir os furtos
em supermercados etc. Aponta também a necessidade de mudanças na forma de organização
da vida social e de incremento de outras formas de controle social (medidas compensatórias,
terapêuticas ou conciliatórias).
O enfoque abolicionista de Hulsman deita suas raízes metodológicas numa atitude
anti-reducionista frente às situações problemas. Para ele, não se percebe que o enfoque
criminalizador é somente uma dentre várias opções para compreender uma situação
problemática e atuar sobre ela. Percebe-se em Hulsman uma crítica contra o processo de
“reificação” do delito, segundo o qual uma interpretação da realidade, uma construção
humana, é transformada numa realidade em si mesma, independentemente da realidade
constitutiva da atividade humana. Rolf S. de Folter reconhece na abordagem de Hulsman,
especificamente por se deter este na destruição fenomenológica do sistema de justiça penal,
traços da fenomenologia de Edmund Husserl. É que Hulsman efetivamente prega a incidência
do antigo adágio fenomenológico de “retorno às coisas”.54 O ponto inicial de qualquer análise,
segundo Hulsman, não deveria ser as categorias totalizadoras, objetivadas e abstratas do
42
sistema de justiça penal, mas aquelas situações concretas que são vividas como problemas
pelas pessoas diretamente envolvidas e que precedem ao mundo abstrato do direito penal.
2.1.2. O pensamento de Thomas Mathiesen
Thomas Mathiesen, reconhecido pensador abolicionista escandinavo, elabora, no
início da década de 1970, um trabalho intitulado “The politics of abolition”.
Aproximadamente 15 anos depois, ele próprio retornou às idéias que então havia lançado
para, além revisitá-las, a elas somar outras.55
Na sua concepção, as razões do abolicionismo penal, se limitadas a uma
perspectiva político-criminal, podem ser resumidas em três pontos. Em primeiro lugar, a
abolição dos cárceres aparecia como meta de uma política criminal radical. Em segundo lugar,
sustentar a abolição dos cárceres, para no lugar deles desenvolver soluções ditas
“alternativas”, constituía um perigo relevante que poderia acabar por transformar facilmente
as novas estruturas carcerárias em instituições com funções similares as dos próprios cárceres.
A mudança quedaria por ser apenas nominal. A única e verdadeira alternativa seria um estado
de mudança, de revolução permanente. Em terceiro lugar, para se chegar à abolição, revelava-
se necessária uma estratégia cuidadosamente trabalhada e uma análise da relação entre as
reformas a curto prazo e a abolição pretendida a longo prazo. De modo efetivo, para não
obstar o objetivo abolicionista a longo prazo, as reformas, a curto prazo, deveriam ser do tipo
“negativo”, ou seja, tendentes a obstar a expansão das prisões e a não mais utilizar penas
privativas de liberdade.
54 FOLTER, Rolf S. de. Sobre la fundamentacion metodológica del enfoque abolicionista del sistema de justicia penal. Una comparación de ideas de Hulsman, Mathiesen y Foucault. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 67-68. 55 O resultado foi justamente um trabalho lançado com o mesmo título “The politics of abolition”. O texto possui versão em espanhol. MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 109-126.
43
No entanto, quais eram, à época do trabalho original, as verdadeiras intenções do
autor e do movimento que representava? Uma reforma do sistema vigente ou uma verdadeira
revolução para afastar o modelo encarcerador? Segundo o próprio Mathiesen, eram
exatamente as duas intenções delineadas por ele e pelo movimento de que faz parte. No
entanto, essa “ubiqüidade” de propósitos converteu-se justamente na mais robusta das críticas
a eles dirigidas. Ainda assim, Mathiesen entendeu por bem em sustentar a totalidade de sua
concepção, tomada justamente sob um viés de luta política.56 Passados mais de quinze anos
do trabalho original, percebe-se, ao menos nos ordenamentos ocidentais, uma prática dirigida
justamente em sentido oposto: tem-se a opção política de carcerização como pseudo-solução
aos problemas econômico-sociais.57
A expansão do cárcere é realmente notável. Em parte, revela-se como
conseqüência do aumento do período de execução das penas, em outra parte, parece
conseqüência do aumento do número de detentos. A expansão parece se originar nos
profundos conflitos de classe e políticos próprios das sociedades ocidentais. Para Mathiesen, o
cárcere converte-se numa importante arma repressiva nas mãos de um Estado poderoso.58 De
qualquer sorte, registra esse pensador que a prática orientada em sentido oposto ao
movimento abolicionista não significa que os princípios básicos desse movimento tenham se
tornado irrelevantes ou infundados.
56 MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 111. 57 Nesse sentido, “(…) mais do que o detalhe dos números, é a lógica profunda dessa guinada do social para o penal que é preciso apreender. Longe de contradizer o projeto neoliberal de desregulamentação e falência do setor público, a irresistível ascensão do Estado penal americano é como se fora o negativo disso – no sentido de avesso mas também de revelador –, na medida em que traduz a implementação de uma política de criminalização da miséria que é complemento indispensável da imposição do trabalho assalariado precário e sub-remunerado como obrigação cívica, assim como o desdobramento dos programas sociais num sentido restritivo e punitivo que lhe é concomitante”. WACQUANT, Loïc J. D. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. Embora as assertivas se refiram aos Estados Unidos da América, quer parecer que são elas extensíveis à realidade brasileira e aos países europeu-continentais. 58 MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 112.
44
Os princípios do pensamento abolicionista de Mathiesen podem ser reunidos em
três grupos de idéias. O primeiro deles diz respeito à idéia de que a importância da abolição
do cárcere repousa na concepção de que a intervenção penal substancia forma de resolver
conflitos humanos. A seu ver, os cárceres são parte do aparato estatal para a repressão
política, razão pela qual se integra justamente no sistema político a que serve, por isso,
veicula estratégias e táticas que conduzem à desilusão e à desesperança. Nessa toada,
vislumbra nas organizações e nos movimentos sociais, como alternativas à esfera pública, os
meios para a consolidação de uma estratégia dirigida à abolição do cárcere. Frisa, igualmente,
a premente necessidade de afastar uma dependência cada vez mais presente em relação aos
novos meios de comunicação.59
O segundo grupo de idéias refere-se à constatação de que, se o objetivo é diminuir
a confiança na política de encarceramento, pode ser igualmente perigoso o delineamento de
alternativas ao cárcere, no sentido de que as soluções que possam surgir podem acabar sendo
mais cruéis e graves que o próprio cárcere em si. Mathiesen chama a atenção para a
necessidade de a sociedade reestruturar-se em meios alternativos. Vislumbra a contribuição da
sociologia como norte aos movimentos políticos, com a finalidade de organizar
alternativamente as relações humanas de tal modo que os conflitos se resolvam em novas
formas que sejam socialmente aceitáveis. Reclama, pois, uma imagem da sociedade ou de
estruturas dentro da sociedade, formuladas como ideologias60 sobre as quais trabalhar.
O terceiro grupo de idéias, por fim, refere-se à concepção de que o trabalho contra
a solução carcerária deve ser realizado com amparo em reformas “negativas”. Em outras
59 É como se as ações por si só não bastassem: releva notar sim a disseminação e o atingimento dessas informações para a coletividade. Essa importância acaba por configurar uma incômoda dependência em face dos meios de comunicação. 60 Ideologia aqui é compreendida como conjunto de idéias, pensamentos, doutrinas e visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo, orientado para suas ações sociais e, principalmente, políticas.
45
palavras, mais que concentrados na proposta de alternativas ao cárcere — ao menos numa
perspectiva mais iminente -, os esforços abolicionistas devem dirigir-se a uma imediata
redução do sistema carcerário. Mathiesen chega mesmo a propor uma imediata moratória na
construção de cárceres, ao argumento de que metade do caminho rumo ao abolicionismo
estará cumprido caso se consiga, a curto prazo, deter a expansão dos cárceres. A paralisação
da expansão dos cárceres implicaria uma reformulação política reflexiva e sistemática do
nível de castigo na sociedade.61 A essa altura, Mathiesen propõe-se a enumerar as razões
principais contra a construção de novos cárceres. Para ele, são oito os argumentos que
impulsionam uma política de imediata e permanente proibição internacional de construção de
novas prisões. São argumentos que funcionam – e, a seu ver, irrefutáveis – se considerados
conjuntamente, como componentes de uma fórmula voltada a estancar a expansão carcerária.
Primeiro: refere-se à prevenção especial e salienta que vários estudos empíricos
demonstram claramente que a prisão não melhora o preso.62 Aliás, o efeito destrutivo do
cárcere – a prisão conduziria a uma pobre reabilitação e a uma maciça reincidência, além de
inegavelmente ser danosa à personalidade — deveria ser justamente considerado para obstar a
expansão carcerária. Segundo: o argumento da prevenção geral ou de dissuasão da sociedade
é incerto e muito menos significativo quando comparados aos efeitos que têm os atos que
derivam de uma política econômica e social voltada à redução de desigualdades sociais.
Terceiro: à proibição de construção de novos cárceres deve seguir-se o surgimento de novas
61 MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 119. 62 Mathiesen afirma a resposta dirigida a um maior encarceramento carece de racionalidade, uma vez que o carceramento em si não resolve. Vale consginar o seguinte excerto: “Es decir, ya que los problemas no se han solucionado encarcelando a esta cantidad de personas, debemos encarcelar a más. En un clima político de derecha, es posible que, en base a este razonamiento irracional los sistemas ineficientes se expandan y perduren por mucho tiempo. Pero, como ya lo dije, este razonamiento es irracional” (MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 119-120). Embora conhecida a crítica às concepções próprias da prevenção especial, justamente por carecerem de um lastro empírico, não parece que a adoção, ou não, de tal concepção guarde relação que a justifique a depender da orientação de “direita” ou de “esquerda” do sistema político. Se é
46
práticas voltadas ao desencarceramento (soluções como livramento condicional, períodos de
prova etc.).
Quarto: a construção de prisões possui um caráter irreversível. “Uma vez que se
levanta uma prisão, não podemos esperar que ela seja demolida com rapidez, pelo contrário,
seguirá ali e funcionária durante muito tempo”63. O caráter irreversível da construção de
prisões, o fato de que seja parte de um processo histórico e não uma medida pragmática
momentânea, afigura-se, em si mesmo, a razão principal para não se adotar hoje qualquer
programa de construção de novos cárceres. Quinto: verifica-se hoje um movimento
expansionista do sistema carcerário, que implica um impulso ou um mecanismo político que,
em lugar de esmaecer, apenas fomenta seu próprio crescimento, uma vez iniciada a
construção. Sexto: refere-se ao argumento humanitário. As prisões funcionam como
instituições desumanas, como formas sociais desumanas. A esse respeito, são muitas as
informações: os relatos dos detentos, as reportagens, as pesquisas científicas etc., que
testemunham o caráter degradante, humilhante e alienante do cárcere. O argumento
humanitário lastreia não apenas o impedimento de novas construções, mas também o
desmantelamento das instituições mais cruéis e desumanas hoje existentes. Nesse sentido, a
reabilitação das velhas instituições resulta, de imediato, em uma política mais sensível e
humanitária que aquela de construção de novas unidades.
Sétimo: assenta que o sistema carcerário é um sistema de valores culturais, pois é,
em última análise, um símbolo da maneira de pensar as próprias pessoas. Como forma de
pensamento, enfatiza a violência e a degradação como métodos para resolver os conflitos
que ainda é possível sustentar tal dicotomia (direita e esquerda), quer parecer que a assertiva de Mathiesen lastreia-se apenas numa visão maniqueísta acerca dessas orientações políticas. 63 “Una vez que se levanta una prisión, no podemos esperar que la demuelan con rapidez, por el contrario, seguirá allí y funcionará durante mucho tiempo”. MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 122.
47
humanos. A construção de cárceres sedimenta a prisão como a solução para a sociedade.
Mathiesen salienta que, a seu ver, esse argumento surge como o mais relevante de todos.64
Oitavo: aborda uma perspectiva econômica. Salienta o alto custo da construção de
novas prisões e, à luz dos demais argumentos, robustece-se como solução menos hábil a ser
adotada pelo Estado.
Assim, em síntese, na visão de Mathiesen, argumentos de prevenção individual,
dissuasão geral, possibilidades de proibição, irreversibilidade da construção, do caráter
expansionista do sistema carcerário, humanitarismo, valores culturais e economia, todos
apontam contrariamente à construção de mais presídios. Os argumentos funcionam, segundo
ele, conjuntamente e respaldam firmemente uma imediata moratória de construção de novos
cárceres.
O tema, na sua visão, possui um viés essencialmente político. “A política é a
decisão sobre valores prioritários. Para tanto, a construção de cárceres é uma decisão sobre
valores prioritários. É essa a maneira com que queremos tratar nossos semelhantes? Essa é
uma questão de valor.”65
O abolicionismo de Mathiesen, portanto, apresenta-se de modo peculiar, pois não
trata de abolir, mas sim de estabelecer algo. Cuida de estabelecer o início e a manutenção de
um projeto substancialmente “inacabado” ou “inconcluso”, embora seja claro o objetivo de
64 Sob uma perspectiva diversa, mas que alcança a mesma conclusão, Rusche e Kirchheimer bem evidenciam que o caráter das penas está intimamente associado – e dependente – aos (dos) valores culturais do Estado que as emprega. É, portanto, bastante estreita a relação entre a pena e a cultura que a produz. RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2004. 65 “La política es la decisión sobre valores prioritarios. Por lo tanto, la construcción de cárceles es una decisión sobre valores prioritarios. ¿Es ésta manera en que queremos tratar a nuestros semejantes? Esta es una cuestión de valor”. MATHIESEN, Thomas. La política del abolicionismo. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 124.
48
abolição de um sistema social repressivo ou, ao menos, de parte desse sistema. A idéia de um
projeto inconcluso diz respeito à realização de uma abolição da ordem, ao menos por meio do
trabalho para se alcançar essa abolição. Essa concepção do projeto permanentemente
inacabado deriva do receio de que, ao eleger alternativas determinadas, todas as mudanças
estruturais culminem numa alteração marginal que na realidade não afete a ordem dominante.
Volta-se, então, Mathiesen à abolição dos sistemas sociais repressivos da última etapa do
capitalismo de estado.
O meio por ele apresentado para se alcançar a abolição é a ação radical, ou seja,
uma ação política que transcenda os limites. Sua idéia de implementação do projeto
abolicionista, como se vê, veicula essencialmente uma proposta de desenvolvimento de uma
teoria de ação política. A estratégia de estabelecer o inconcluso surge, pois, como única
possibilidade que o movimento político abolicionista tem para seguir a título de movimento
vital e em expansão. Em primeiro lugar, um movimento político vital deve guardar uma
relação de contradição com o sistema existente. Em segundo lugar, um movimento político
em expansão deve, para seguir expandindo-se, guardar relação de concorrência com o sistema
existente. A contradição perene e tendente à competição apresenta-se como a única arma
contra a absorvente formação social do capitalismo tardio.
A idéia de inconclusão reside na negativa de se fazer uma escolha acabada por um
sistema. A manutenção do abolicionismo requer que haja constantemente mais instâncias de
controle a se abolir, que sempre haja novos objetivos para serem abolidos num maior prazo,
que se mova constantemente em círculos cada vez mais amplos até novos campos para
abolição. De qualquer modo, releva a necessidade de se agregar objetivos de curto e longo
prazo como uma totalidade indissolúvel.
49
Relativamente a uma fundamentação metodológica, percebe-se que Mathiesen não
atentou para o apoio metodológico ou filosófico de suas idéias. No entanto, ao delinear sua
perspectiva como patente ação política, permitiu entrever, na visão de Folter, uma
fundamentação metodológica materialista para suas idéias, por reificar as estruturas materiais
da sociedade capitalista como determinantes em última instância, para considerá-las
ontologicamente como a raiz de todo mal.66 O mesmo Folter aponta essa fundamentação
metodológica como ingênua, pouco convincente e nada frutífera, mesmo quando menciona
uma análise do poder, pois, ao seguir uma orientação marxista, Mathiesen observa a máxima
de enfrentar aqueles que detém o poder com aqueles que não o têm e acaba por seguir a
concepção ingênua de poder, que se opera pela negação e funciona por meio da distorção e da
produção de ideologia.67
O abolicionismo, numa acepção mais ampla, pode ser compreendido como uma
forma de captar todas as práticas discursivas e não discursivas do sistema de justiça penal e
atuar frente a elas. Funciona como um método e, como tal, nunca pode ser apreendido como
uma técnica que possa aplicar-se simplesmente a qualquer objeto de estudo. O verdadeiro
método não pode simplesmente aplicar-se a uma realidade jurídica predeterminada;
substancia, ele próprio, o elemento constitutivo do caráter da realidade jurídica que libera. O
significado de uma coisa não pode estar separado do acesso a essa mesma coisa. O acesso se
mostra como parte do significado. Entre o método e o objeto existe uma relação dialética que
na tradução hermenêutica se conhece como o problema da “aplicação”68. Compreender o
66 FOLTER, Rolf S. de. Sobre la fundamentacion metodológica del enfoque abolicionista del sistema de justicia penal. Una comparación de ideas de Hulsman, Mathiesen y Foucault. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 73. 67 FOLTER, Rolf S. de. Sobre la fundamentacion metodológica del enfoque abolicionista del sistema de justicia penal. Una comparación de ideas de Hulsman, Mathiesen y Foucault. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 74. 68 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. vol. II. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2002, passim.
50
abolicionismo como método permite fazer com que ele conviva com as máximas que
pretendem justificar a intervenção penal.
Em última análise, tanto na acepção de Hulsman quanto na de Mathiesen, o
abolicionismo implica certa forma de radicalismo e se funda num princípio de solidariedade
com aqueles que estão à margem da sociedade. É por isso que se afirma que o abolicionismo
deriva de uma visão humanista. No entanto, essa pecha de humanista já permitiu que vários
movimentos dessem lugar a novas formas compulsivas de controle social e, como se
registrará adiante, é justamente esse o risco que o movimento abolicionista oferta.
O abolicionismo é uma abordagem que carece de essência. Para usar uma
metáfora de Folter69, o abolicionismo é a bandeira sob a qual navegam barcos de distintos
tamanhos transportando distintas quantidades de explosivos. No entanto, quanto ao modo pelo
qual devem atacar e explodir suas cargas, não há uma única orientação. A valer, uma teoria
abolicionista, que abarque todas as características dos distintos enfoques abolicionistas do
sistema de justiça penal, simplesmente não existe.
2.2 . FERRAJOLI E AS RAZÕES DO DIREITO PENAL : QUANDO PROIBIR ?
Norberto Bobbio registra no prefácio do mais importante trabalho de Luigi
Ferrajoli que a proposta de trabalho empreendida por este é bastante ambiciosa, na medida em
que pretende “a elaboração de um sistema geral do garantismo ou a construção das colunas
mestras do Estado de Direito, que tem por fundamento e fim a tutela das liberdades do
69 FOLTER, Rolf S. de. Sobre la fundamentacion metodológica del enfoque abolicionista del sistema de justicia penal. Una comparación de ideas de Hulsman, Mathiesen y Foucault. In: Abolicionismo Penal. Tradução de Mariano Alberto Ciafardini; Mirta Lilián Bondanza. Buenos Aires: Ediar, 1989. p. 59.
51
indivíduo frente às variadas formas de exercício arbitrário de poder, particularmente odioso
no direito penal”.70
Especificamente no que diz respeito ao objeto da presente investigação, Ferrajoli71
registra que o problema da justificação da pena, ou seja, do poder de uma comunidade
política, seja ela qual for, exercitar uma violência programada sobre um de seus membros,
representa justamente o problema clássico, por excelência, da filosofia do direito. Em que se
baseia a pretensão punitiva estatal ou o próprio direito de punir? As respostas a essa pergunta
amparam-se em duas vertentes ou grupos de teorias: teorias justificacionistas, que se ocupam
de compreender as bases que legitimam a intervenção penal do Estado, e teorias
abolicionistas, que não reconhecem justificação alguma ao direito penal e almejam a sua
eliminação72, quer porque contestam o seu fundamento ético-político, quer porque consideram
as suas vantagens inferiores aos custos da tríplice constrição que produz (limitação da
liberdade de ação daqueles que observam as normas penais, sujeição a um processo por
aqueles tidos como suspeitos de não observá-las e a punição daqueles julgados como
70 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Prefácio de Norberto Bobbio. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 7. 71 As idéias de Ferrajoli são desenvolvidas nos tópicos “Se e porque punir, proibir, julgar. As ideologias penais” e “O objetivo e os limites do direito penal. Um utililitarismo penal reformado” constantes de sua obra Direito e Razão (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, passim). São igualmente relevantes, para a compreensão de sua justificação da intervenção penal: FERRAJOLI, Luigi. Derecho penal mínimo y bienes jurídicos fundamentales. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 4, n. 5, março-junho 1992. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2005/ferraj05.htm>. Acesso em: 27 março 2005; FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 17-31; e FERRAJOLI, Luigi. El derecho penal mínimo. In: Poder y Control. n. 0. Barcelona: PPU, 1986, p. 45. 72 Tal acepção, segundo a distinção asseverada no Capítulo 2, item 2.1, do presente trabalho, amolda-se ao abolicionismo em sentido amplo. Para Ferrajoli, abolicionistas são somente aquelas doutrinas axiológicas que acusam o direito penal de ilegítimo. Para ele, não são abolicionistas as doutrinas criminológicas que, conquanto intencionalmente libertadoras e humanitárias, na prática convergem para o correicionilismo positivista, que propõe, na verdade, a substituição da forma penal de reação punitiva por tratamentos pedagógicos ou terapêuticos informais, que permanecem, contudo, institucionalizados e coercitivos (e não meramente sociais). Reputa tais doutrinas como substitutivas. Já em relação às doutrinas penais que preceituam a redução da esfera de intervenção penal, ou, ainda, a abolição da específica pena moderna que constitui a reclusão carcerária em favor de sanções penais menos aflitivas, Ferrajoli as denomina como reformadoras. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 200-201.
52
infratores). Como se verá em momento posterior da presente investigação, a perspectiva de
Ferrajoli encontra espeque na visão de Claus Roxin, quando este afirma que a lei trará os
valores que permitirão a abertura das soluções dogmáticas à política criminal. As soluções
axiologicamente orientadas às finalidades (missão) da intervenção penal serão extraídas da
própria, e não apenas da atuação judicial, com observância, pois, de um critério de estrita
legalidade.
Ferrajoli propõe a necessidade de reduzir as penas privativas de liberdade,
porquanto as entende excessivas e inutilmente aflitivas, além de danosas em diversos
aspectos, e limitar as proibições penais ao restrito âmbito das existências tutelares que
definem o esquema do direito penal mínimo. No entanto, sustenta — em contrariedade ao
abolicionismo e de encontro às doutrinas que ele reputa como substitutivas – a forma jurídica
da pena, por entendê-la como técnica institucional de minimização da reação violenta ao
desvio socialmente não tolerado e como garantia do acusado contra os arbítrios, os excessos e
os erros conexos a sistemas não jurídicos de controle social.
Para Ferrajoli, as doutrinas abolicionistas traduzem um duplo efeito. Em primeiro
lugar, os modelos de sociedade por elas perseguidos traduzem arquétipos pouco desejáveis de
uma sociedade selvagem, sem qualquer ordem e abandonada à lei do mais forte, ou,
alternativamente, de uma sociedade disciplinar, pacificada e totalizante, onde os conflitos
sejam controlados e resolvidos, ou, ainda, prevenidos por meio de mecanismos ético-
pedagógicos de interiorização da ordem, ou de tratamentos médicos, ou de onisciência social
e, talvez, policial. Apesar do caráter antitético de tais posições, padecem elas, segundo o
pensador italiano, de vícios comuns de utopia e regressão.73 Além de desvalorizar toda e
73 Sob esse viés, pode-se até mesmo vislumbrar um caráter libertário para o direito penal, consistente na possibilidade efetiva que possui o particular de delinqüir, de cometer crimes, faculdade que seria suprimida na
53
qualquer orientação garantista, tais vertentes veiculam uma esterilidade de projetos
realizáveis, fruto, no dizer de Ferrajoli, “da inconsistência lógica e axiológica de ambos os
projetos jusnaturalistas que se encontram na base das duas opostas versões do abolicionismo,
ou seja, aquela do ‘princípio amoral’ do egoísmo, que regularia a sociedade do bellum
omnium, e aquela do ‘princípio moral’ da auto-regulamentação social que marca a sociedade
pacificada e sem Estado”.74
De qualquer sorte, o mérito maior dessas vertentes abolicionistas é, ao menos em
relação às suas considerações sobre a sociedade, promover uma radical separação entre
instâncias éticas de justiça e de direito positivo vigente. Igualmente, coloca-se numa
abordagem programaticamente externa às instituições penais vigentes (põe-se ao lado de
quem paga o preço da pena, e não do poder punitivo), o que muito contribuiu para favorecer,
posteriormente, a autonomia do pensamento advindo da criminologia crítica. Registre-se
também como mérito a outorga às doutrinas justificacionistas do ônus de justificar a razão da
intervenção penal, de sorte que, também no que tange aos destinatários das penas — dado a
mencionada abordagem programaticamente externa do abolicionismo — as justificações da
pena devem se revelar moralmente satisfatórias e logicamente pertinentes.
Ferrajoli sustenta que os objetivos de prevenção da pena, ou ainda, somente o da
redução dos delitos, não são suficientes para ditar o limite máximo de intervenção penal, mas
somente um limite mínimo, abaixo do qual não se verifica adequada a incidência de uma
sanção. Abaixo da concepção de prevenção, portanto, a intervenção penal não substanciaria
pena, mas uma verdadeira taxa ou um simples preço a se pagar pela conduta sem qualquer
capacidade dissuasória.
visão de sociedade disciplinar e totalizante, por exemplo, alcançável segundo o modelo sugerido por Louk Hulsman como alternativa à intervenção penal.
54
Para o pensador italiano, a prevenção, mais do que dos delitos, refere-se a um
outro tipo de mal, antitético ao delito, que normalmente é negligenciado tanto pelas doutrinas
de justificação quanto pelas abolicionistas. Trata-se de uma possível reação punitiva — mas
não penal – que se revela informal, selvagem, espontânea, arbitrária. Na ausência de penas,
essa resposta poderia advir do próprio ofendido ou de forças sociais ou institucionais
solidárias a ele. “É o impedimento deste mal, do qual seria vítima o réu, ou, pior ainda,
pessoas solidárias ao mesmo, que representa, eu acredito, o segundo e fundamental objetivo
justificante do direito penal. Quero dizer que a pena não serve apenas para prevenir os delitos
injustos, mas, igualmente, as injustas punições”.75 Com isso, a pena “mínima necessária” —
para se apropriar da expressão iluminista — não constituiria apenas um meio, mas um fim,
qual seja: o de minimização da reação violenta ao delito. Reafirma Ferrajoli a natureza do
direito penal, que em lugar de traduzir um aprimoramento da vingança, surge justamente para
negá-la, para conflitá-la e justificar-se no propósito justamente de impedi-la. A história do
direito penal, para ele, corresponde a uma longa luta contra a vingança.
A razão de ser das proibições penais, dirigidas que são para a tutela dos direitos
fundamentais dos cidadãos contra as agressões de outros associados, reside numa dupla
finalidade preventiva, tanto uma como a outra negativas: prevenção geral dos delitos e
prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite
mínimo da intervenção penal; a segunda, o limite máximo. A prevenção geral negativa reflete
o interesse da maioria que não delinqüe, ao passo que a prevenção de penas arbitrárias coloca-
se em prol do interesse do réu ou de quem é suspeito ou acusado de sê-lo. Os dois objetivos
são concomitantes e conflitantes entre si, convivem em situação dialética, trazidos pelas duas
partes do contraditório no processo penal, ou seja, a acusação, que atua movida pelo interesse
74 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 203.
55
de defesa social e, portanto, pretende potencializar a prevenção e a punição dos delitos, e a
defesa, interessada na defesa individual e, portanto, na prevenção das penas arbitrárias.76
Conquanto a prevenção geral negativa seja também veiculada por outros sistemas de controle
social, é a prevenção de penas arbitrárias – finalidade muitas vezes negligenciada – que
merece ser mais evidenciada como caracterizadora da intervenção penal: a tutela do inocente
e a minimização da reação ao delito é justamente o que distingue o direito penal dos demais
meios de controle social.
Ferrajoli apresenta o direito penal como técnica de tutela dos direitos
fundamentais. Desenvolve ele a idéia de que o objetivo geral do direito penal reside
justamente no impedimento do exercício das próprias razões, ou, de modo mais amplo, com a
minimização da violência na sociedade. Mais do que a mera defesa social dos interesses
constituídos contra a ameaça que os delitos representam, objetivo do direito penal é a proteção
do fraco contra o forte, na medida em que a proibição e a ameaça penal protegem os possíveis
ofendidos contra os delitos, ao passo que o julgamento e a imposição da pena protegem os
réus (e os inocentes suspeitos de sê-lo) contra as vinganças e outras reações arbitrárias e,
também, mais severas.
Sob ambos os aspectos a lei penal se justifica enquanto lei do mais fraco, voltada para a tutela dos seus direitos contra a violência arbitrária do mais forte. É sob esta base que as duas finalidades preventivas – a prevenção dos delitos e aquela das penas arbitrárias – são, entre si, conexas, vez que legitimam, conjuntamente, a “necessidade política” do direito penal enquanto instrumento de “tutela dos direitos fundamentais”, os quais lhe definem normativamente, os âmbitos e os limites, enquanto bens que não se justifica ofender nem com os delitos nem com as punições.77
75 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 268. 76 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 269. 77 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 270.
56
Afasta Ferrajoli a idéia de que tal legitimidade seria democrática, uma vez que
não provém do consenso da maioria; é, verdadeiramente, “garantista”78 e reside nos vínculos
impostos pela lei à função punitiva e à tutela dos direitos de todos. Frisa que um sistema penal
somente se justifica se a soma das violências que este é capaz de prevenir (delitos, vinganças
e punições arbitrárias) for superior àquela das violências constituídas pelos delitos não
prevenidos e pelas penas a estes cominadas. A pena justifica-se, pois, como mal menor –
menor, menos aflitivo e menos arbitrário – se comparada com outras reações não jurídicas que
se produziriam na sua ausência. O monopólio estatal do poder punitivo justifica-se, afinal,
quanto mais baixos forem os custos do direito penal em face dos custos da ausência de
punição estatal.
Ferrajoli apresenta cinco razões pelas quais entende que sua proposta satisfaz as
condições de adequação ética e de consistência lógica exigidas para uma justificação da
intervenção penal.79 1) O direito penal volta-se ao único objetivo de prevenção geral negativa
– das penas (informais) e dos delitos -, de sorte a afastar a confusão do direito penal com a
moral. 2) O direito penal, ao impor à criminalização de condutas e às penas duas finalidades
distintas e concorrentes – máximo bem-estar possível dos não delinqüentes e mínimo mal-
estar necessário dos delinqüentes num contexto que tem por objetivo a máxima tutela dos
direitos de uns e dos outros, da limitação dos arbítrios e da minimização da violência na
sociedade –, responde satisfatoriamente às perguntas “por que proibir?” e “por que punir?”. 3)
A finalidade dúplice compreendida na prevenção geral negativa por ele sustentada torna
78 A concepção de garantismo aqui mencionada, construída ao longo de toda a obra de Ferrajoli, “significa precisamente a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do direito penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado, e, conseqüentemente, a garantia da sua liberdade, inclusive por meio do respeito à sua vontade” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 271). 79 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 271-272.
57
desnecessário o recurso a autojustificações apriorísticas de modelos de direito penal máximo,
para consentir somente com justificações a posteriori de modelos de direito mínimo. 4)
Responde à objeção de Kant — segundo a qual nenhuma pessoa pode ser tratada como uma
coisa, ou seja, como um meio para um fim que não lhe pertence -, uma vez que o mal das
punições excessivas ou arbitrárias é homogêneo àquele que as penas representam, de maneira
que é possível, em princípio, comparar este com aquele e, com isso, justificar, ou não, a
intervenção penal. 5) a proposta de Ferrajoli substancia uma réplica persuasiva aos
argumentos deduzidos pelas correntes abolicionistas, uma vez que, se o abolicionismo
evidencia os custos do direito penal, sua proposta aponta os custos (virtualmente mais
elevados) que podem advir não apenas para as pessoas em geral, mas inclusive para os
próprios delinqüentes, da anarquia punitiva resultante da ausência de intervenção penal.
Para Ferrajoli, o paradoxo das doutrinas abolicionistas reside justamente no fato
de se afirmarem como de aspiração progressista. O direito penal veicula o maior esforço
realizado para minimizar e disciplinar o arbítrio e a prepotência punitiva. Vale registrar o
seguinte excerto:
O abolicionismo penal – independentemente dos seus intentos liberatórios e humanitários – configura-se, portanto, como uma utopia regressiva que projeta, sobre pressupostos ilusórios de uma sociedade boa ou de um Estado bom, modelos concretamente desregulados ou auto-reguláveis de vigilância e/ou punição, em relação aos quais é exatamente o direito penal – com o seu complexo, difícil e precário sistema de garantias – que constitui, histórica e axiologicamente, uma alternativa progressista.80
Um sistema penal, portanto, só se justifica se, e somente se, minimiza a violência
arbitrária na sociedade. De qualquer sorte, Ferrajoli entende que a crise do direito penal, ou
seja, do conjunto de formas ou garantias que o distinguem de outras formas de controle social
mais ou menos selvagens e disciplinares, afigura-se como o verdadeiro problema da
80 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 275.
58
contemporaneidade: os sistemas punitivos modernos caminham, por força de suas
contaminações policialescas e da quebra, ora mais ora menos excepcional, de suas formas
garantistas, para uma transformação em sistemas de controle sempre mais informais e sempre
menos penais.81
Nesse particular, as colocações de Ferrajoli assumem relevo fundamental à
presente investigação: um sistema penal atinge seu objetivo de minimizar a violência
arbitrária na sociedade à medida que satisfaz as garantias penais e processuais do direito penal
mínimo, de sorte que tais garantias passam a substanciar condições de justificação do direito
penal, no sentido de que somente a atuação destas vale para satisfazer-lhes os objetivos
justificantes. O progresso de um sistema político e, portanto, do modelo de Estado a que se
aspira se mede justamente pela sua capacidade de simplesmente tolerar o delito como sinal e
produto de tensões e disfunções sociais não resolvidas, e, por outro lado, também pela
capacidade de prevenir tais delitos, sem meios punitivos ou não liberais, demovendo-lhes suas
causas materiais.
O modelo de direito penal mínimo e garantista projetado por Ferrajoli presta-se
também – e sobretudo – como meio de deslegitimação dos concretos ordenamentos penais
(suas leis e, principalmente, suas praxes), ou seja, “(…) permite não apenas, e não tanto,
justificações globais, mas, sim, justificações de deslegitimações parciais e diferenciadas, tanto
para normas individualmente consideradas como para institutos ou praxes de cada um dos
ordenamentos”.82 Salienta Ferrajoli que é justamente a incorporação limitadora dos princípios
81 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 276. 82 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 278.
59
inerentes às garantias penais e processuais83, como outras tantas prescrições sobre as
condições da pena, que distingue o moderno Estado de Direito em matéria penal.
Ferrajoli afasta de plano a possibilidade de alcançar critérios positivos e absolutos
de justificação externa e de legitimação interna dos conteúdos da proibição penal (quando
proibir?). No entanto, afirma ser possível formular critérios negativos ou limitadores,
realizáveis somente relativa e tendencialmente, com o valor de condições necessárias, embora
não suficientes de legitimidade. Tais critérios são visualizáveis justamente por meio dos
princípios da lesividade ou da ofensividade, da materialidade e da responsabilidade pessoal84,
que definem, respectivamente, os três elementos constitutivos do delito: o resultado, a ação e
a culpabilidade.85 Mais que isso, Ferrajoli advoga que o princípio de estrita legalidade, com as
garantias que comporta, tem a importância de deslocar o problema substancial do direito
penal relativo ao “quando punir” para a seara do “quando proibir”, ou seja, do juiz para a lei,
83 A referência aqui é aos princípios inerentes às garantias penais e processuais formalizados no sistema SG (Sistema Garantista) desenvolvido por Ferrajoli, que elabora um sistema normativo completo — eixo central de todo seu trabalho -, teoricamente apto a defender a liberdade do indivíduo contra as pretensões ofensivas do poder estatal. Cuida-se justamente do que denomina “modelo garantista”, evidentemente ideal, cujo valor está sobretudo em servir de parâmetro para indicar o “grau” de garantismo de cada sistema concreto. Para tanto, Ferrajoli enuncia dez axiomas garantistas, que representam as regras do jogo fundamentais do Direito Penal no Estado de Direito. São eles: A 1 — Nulla poena sine crimine (princípio de retributividade da pena em relação ao crime); A 2 — Nullum crimen sine lege (princípio de legalidade, em sentido lato ou em sentido estrito); A 3 — Nulla lex (poenalis) sine necessitate (princípio de necessidade ou de economia do Direito Penal); A 4 — Nulla necessitas sine iniuria (princípio de ofensividade ou da lesividade do evento); A 5 — Nulla iniuria sine actione (princípio de materialidade ou da exterioridade da ação); A 6 — Nulla actio sine culpa (princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal); A 7 — Nulla culpa sine iuidicio (princípio de jurisdicionalidade em sentido lato e em sentido estrito); A 8 — Nullum iudicium sine accusatione (princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusador); A 9 — Nulla accusatio sine probatione (princípio do ônus da prova ou de verificação); A 10 — Nulla probatio sine defensione (princípio do contraditório, ou da defesa, ou da falseabilidade). Desses dez axiomas, concatenados de forma que cada qual dos termos utilizados implique, por sua vez, o sucessivo, o autor faz derivar, valendo-se de simples silogismos, quarenta e cinco teoremas, uma vez que todos os termos implicados são enunciáveis como conseqüentes de outras tantas implicações que têm como antecedentes todos os termos que lhe precedem no sistema. São exemplos desses teoremas: nulla poena sine lege (T 11), nulla poena sine necessitate (T 12), nulla poena sine iniuria (T 13), etc., até nulla poena sine defensione (T 19); ou ainda nullum crimen sine necessitate (T 20), nullum crimen sine iniuria (T 21), e assim por diante. São, ao todo, cinqüenta e cinco teses (as dez originais e os teoremas que lhes são derivados), que configuram o referido modelo garantista. A função específica das garantias expressas nesses enunciados, adverte Ferrajoli, não é de consentir ou legitimar, mas antes de condicionar ou vincular — e portanto deslegitimar -, o exercício absoluto do poder punitivo. São barreiras, obstáculos à utilização indiscriminada da punição, cuja transgressão torna ilegítima a sanção penal. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, passim, especialmente p. 73-93. 84 Tais princípios são justamente os axiomas 4, 5 e 6 do sistema de garantias (SG) delineado por Ferrajoli.
60
de sorte a incorporar às formas jurídicas princípios ético-políticos e critérios substanciais de
justiça, e transformando-os, assim, em princípios e critérios normativos de direito positivo.
No entanto, cumpre frisar desde logo que a teoria do bem jurídico, tal como
delineada por Ferrajoli, não informa com exatidão quando proibir, mas atua verdadeiramente
em sentido negativo: presta-se a apontar quando proibir é inviável. Aponta o autor italiano
que não se pode alcançar uma definição exclusiva e exaustiva de noção de bem jurídico. Uma
teoria do bem jurídico, para ele, pode
oferecer, unicamente, uma série de critérios negativos de deslegitimação – que não são somente a irrelevância ou o esvaziamento do bem tutelado, senão, também, a desproporção com as penas previstas, a possibilidade de uma melhor proteção por meio de medidas destituídas de caráter penal, a inidoneidade das penas na consecução de uma tutela eficaz, ou, inclusive, a ausência de lesão efetiva por ocasião da conduta proibida – para afirmar que uma determinada proibição penal ou a punição de uma concreta conduta proibida carecem de justificação, ou a tem escassamente.86
A categoria “bem jurídico”, portanto, presta-se a uma função de limite ou
garantia, precisamente porque a lesão de um bem configura condição necessária, embora não
suficiente, para justificar sua proibição e punição como delito.
Relativamente à questão ético-política, para se saber se as proibições penais
devem tutelar um bem jurídico para não ficar sem justificação moral e política, é de ver que a
justificação externa das proibições penais evidencia uma doutrina, não jurídica, mas política,
modelada em torno de critérios de política criminal. À medida que postula a correspondência
entre prevenção de delitos e tutela de bens jurídicos, substancia igualmente o complemento
necessário da doutrina sobre a justificação externa da pena. Nessa toada, são três os critérios
85 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 371. 86 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 377.
61
para uma política penal orientada à tutela máxima de bens com o mínimo necessário de
proibições e castigos.
O primeiro critério diz respeito à justificação das proibições somente quando se
dirigirem a impedir ataques concretos a bens fundamentais de tipo individual ou social e, em
todo caso, externos ao mesmo direito: esse “ataque” compreende não apenas o dano causado,
mas também o perigo causado (verificáveis ou avaliáveis empiricamente), inerente à
finalidade preventiva do direito penal. Esse critério é conjugado com a afirmação de que
nenhum bem justifica uma tutela penal se o seu valor não for maior do que o dos bens
privados pela pena. Aqui, inegavelmente, cuida-se de um juízo de valor hábil a atuar sobre a
crise inflacionária que o direito penal hoje enfrenta: a esfera dos interesses tuteláveis será tão
mais ampla quanto menor for o custo da pena, o que implica afirmar que a diminuição das
penas revela-se condição necessária a justificar sua utilização como instrumento de proteção
dos bens jurídicos.87 O segundo critério, por sua vez, revela-se axiológico e corresponde a um
diferente perfil utilitarista, no sentido de que as proibições não só devem estar voltadas à
tutela de bens jurídicos como também devem ser idôneas a essa proteção, de sorte a não se
admitir que o direito penal se preste à mera afirmação simbólica de valores morais, em
oposição à sua nítida função protetora. O terceiro critério, por fim, assevera que uma política
criminal de tutela de bens guarda justificação e credibilidade na medida em que é subsidiária
de uma política extrapenal de proteção dos mesmos bens.88
87 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 378. 88 Esse último critério político-criminal, especialmente no Brasil, parece ser relegado a um plano inferior. A Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, instituiu o Código de Trânsito Brasileiro. Além de recrudescer o tratamento penal dos delitos, mesmo que culposos, praticados na condução de veículo automotor, o Estado brasileiro deveria voltar-se à implementação de medidas protetoras e educativas de natureza administrativa. O número de acidentes automobilísticos e de crimes de trânsito, certamente, se à política de recrudescimento do tratamento penal se seguisse uma série de medidas extrapenais eficazes e severas para prevenção, reduzir-se-ia drasticamente. Mais recente, a Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, popularmente conhecida como “Estatuto do Desarmamento”, além do tratamento penal robustamente mais severo, deveria ter provocado a atenção da máquina estatal para campanhas de conscientização acerca dos valores veiculados pelo diploma legal. Em última
62
No que se refere ao questionamento acerca da existência, em um determinado
ordenamento, de uma garantia de lesividade, ou seja, se as proibições legais e as sanções
concretas são legítimas juridicamente quando produzem um ataque a um bem jurídico, o tema
assume perfil descritivo e adota uma perspectiva interna ao ordenamento jurídico, para tomar
assento em sede constitucional. Ferrajoli afirma que as questões envolvidas nesse ponto
assumem contornos estritamente jurídicos, de modo que não admitem como resposta juízos ou
opções valorativas, mas apenas “asserções baseadas na análise jurídico-positiva, e que, em
razão disto, variam de acordo com o ordenamento analisado”.89 Em termos mais simples,
trata-se de aferir o que o direito penal “deve ser” a partir da Constituição.
Já no que toca uma perspectiva interna ao ordenamento jurídico e relativa ao que
“é” o direito penal, a partir da análise de suas leis, cumpre perscrutar quais bens, ou não bens,
as leis penais normativamente tutelam. Quer dizer, se, e em que medida, um sistema jurídico
satisfaz normativamente o princípio de lesividade, em cumprimento, ou não, das ordens
constitucionais. Uma resposta negativa a tal formulação está a indicar uma verdadeira
“inflação” de bens penalmente protegidos, que tem como resultado inarredável a dissolução
do próprio conceito de “bem penal” como critério axiológico de orientação e delimitação das
opções penais.
Por derradeiro, impende questionar em que medida o direito penal protege
efetivamente os bens jurídicos legalmente tutelados. Essa última pergunta é de evidente
caráter fenomenológico e exige, para uma possível formulação de resposta, uma análise
empírica.
análise, e é comezinha a assertiva, a incidência da tutela penal, por si só, não se revela o meio adequado para a solução de problemas sociais, muito embora o Estado brasileiro venha se valendo do direito penal como solução meramente simbólica e mais barata para contenção (frustrada) de problemas sociais. 89 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 379.
63
Ferrajoli registra uma inevitável divergência entre o princípio de política-criminal
da lesividade e a natureza da proteção normativa, ou, efetiva, dispensada pela lei penal e por
sua aplicação. A análise dessa divergência entre normatividade e efetividade (teoria versus
práxis) da proteção penal dos bens é que permite a percepção, nos diversos níveis em que se
manifesta, dos aspectos de ineficácia da primeira (normatividade) e de ilegitimidade da
segunda (efetividade). Tal verificação depende
(…) da desproporção entre o valor da liberdade pessoal afetada pela pena e o valor dos bens atacados pelo delito, assim como da distorcida escala de valores que se reflete na graduação das penas previstas para cada um deles; por conseguinte, conforme uma reelaboração da hierarquia dos bens estimados merecedores de tutela e, em relação a ela, das penas proporcionadas para tal fim.90
Daí deriva Ferrajoli a necessidade de elaboração de um programa de direito penal
que aponte no sentido de uma massiva deflação dos bens penais e das proibições legais, como
condição da sua legitimidade política e jurídica, sem prejuízo de, caso fique evidenciada a
respectiva oportunidade nessa reelaboração, maior penalização de condutas hoje não
adequadamente proibidas nem castigadas.
De qualquer sorte, o princípio da lesividade possui mesmo um mister
descriminalizador, sendo certo que a função restritiva e minimizadora desse programa atuaria
em aspectos quantitativos (delitos de bagatela), qualitativos (preponderância das condutas
lesivas a pessoas) e estruturais (crítica a delitos de atentado, de perigo abstrato ou presumido).
O princípio da lesividade, portanto, assume valor de critério polivalente de minimização das
proibições penais, para equivaler a um princípio de tolerância tendencial do delito, idôneo a
reduzir a intervenção penal ao mínimo necessário, de sorte a reforçar sua legitimidade e
credibilidade.91
90 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 381. 91 Afirma o autor italiano: “Se o direito penal é um remédio extremo, devem ficar privados de toda relevância jurídica os delitos de mera desobediência, degradados à categoria de dano civil os prejuízos reparáveis e à de
64
CAPÍTULO 3 – Do abolicionismo ao minimalismo
garantista: as críticas mais relevantes e o movimento de
expansão do direito penal
3.1. ABOLICIONISMO VERSUS GARANTISMO
O contraste entre a proposta do minimalismo garantista, propugnado por Luigi
Ferrajoli, e as idéias abolicionistas, aqui colhidas de Mathiesen e Hulsman, parece evidente.
Uma das críticas mais relevantes do garantismo de Ferrajoli às vertentes abolicionistas refere-
se ao desaparecimento, a partir da abolição do direito penal (e não somente do cárcere), dos
limites da intervenção punitiva do Estado. Elena Larrauri, contudo, entende que a discussão
entre abolicionismo e garantismo tende a esmaecer-se.92
Em primeiro lugar, porque a falta de garantias sempre poderá ser apontada como
óbice a qualquer proposta descriminalizadora (e não apenas abolicionista), na medida em que,
por exemplo, quando se optar por sanções administrativas em lugar de sanções penais,
verificar-se-á em concreto a perda de diversas garantias além do próprio ganho eficientista
decorrente da maior celeridade e da maior severidade que tais sanções poderão veicular. Para
ela, frente a qualquer proposta alternativa à intervenção do direito penal, não basta fazer uma
referência abstrata à ausência ou à perda de garantias, senão que se deveria mostrar — em
concreto — as garantias a que se renuncia e as vantagens trazidas pelas soluções alternativas
em lugar dessa diminuição de garantias.
ilícitos administrativos todas as violações de normas administrativas, os fatos que lesionam bens não essenciais ou os que são, só em abstrato, presumidamente perigosos, evitando, assim, a ‘fraude das etiquetas’, consistente em qualificar como ‘administrativas’ sanções restritivas da liberdade pessoal que são substancialmente penais” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 384). 92 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005.
65
Em segundo lugar, a confusão existente na discussão entre garantistas e
abolicionistas reside na ambigüidade e dificuldade presente em ambos os discursos. À falta de
precisão da máxima “abolição do sistema penal” – afinal, o que se pretende abolir
exatamente? – segue-se a dificuldade de se compreender exatamente aquilo que procura
Ferrajoli justificar em sua teoria – o direito, a pena ou a prisão?93 Custa compreender, por
exemplo, exatamente o motivo da controvérsia quando Ferrajoli mostra-se partidário da
abolição da pena de prisão.94 Ou, então, o motivo da divergência com aqueles autores
partidários do abolicionismo que sustentam soluções alternativas ao direito penal que, em
lugar de negar, incorporam determinadas garantias processuais como a presunção de
inocência, princípio do contraditório ou o princípio da proporcionalidade.
Embora sejam numerosos os pontos de convergência entre as abordagens de
Ferrajoli e as teorias abolicionistas, impende apontar também as inegáveis divergências entre
tais marcos. Fixam os abolicionistas a necessidade de um novo sistema alternativo de controle
do delito que não se baseie em um modelo punitivo, senão em outros princípios legais e
éticos, de sorte que a prisão ou qualquer outra forma de repressão física do delinqüente torne-
se paulatinamente desnecessária. Por conseqüência, parece claro que, aos autores
abolicionistas, a proposta de abolição da prisão é insuficiente, uma vez que não contraria a
idéia de que o castigo seja uma forma idônea de reação frente a muitos fenômenos que são
tidos como delituosos e, no entanto, apenas decorrem de problemas sociais. Daí os autores
abolicionistas se dedicarem à solução de problemas sociais, para indicar que, ao se aproximar
93 A crítica é de Elena Larrauri. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005. 94 FERRAJOLI, Luigi. El derecho penal mínimo. In: Poder y Control. n. 0. Barcelona: PPU, 1986, p. 45. É de ver, porém, que em sua principal obra – Direito e Razão – Ferrajoli, defensor do minimalismo penal, reserva a pena de prisão àqueles delitos que efetivamente justifiquem a incidência do direito penal garantista.
66
dos eventos criminalizados e tratá-los como problemas sociais, tal postura permite-lhes
ampliar o leque de possíveis respostas, não se limitando à resposta punitiva.95
De qualquer forma, a mesma Larrauri registra que o discurso abolicionista deveria
se ocupar de demonstrar ou justificar o discurso acerca do que repulsar (frente a quais
comportamentos se deve mostrar uma repulsa clara?) e como mostrar repulsa (não basta a
referência genérica ao direito civil ou a sistemas de justiça informal).96
No que se refere ao enfrentamento da proposta de Ferrajoli, de início, cumpre
lembrar que o autor italiano parte do pressuposto de deslegitimação do sistema penal atual,
traço em comum que guarda com as tendências abolicionistas por ele tão criticadas.
Uma crítica dirigida à abordagem de Ferrajoli diz respeito ao objeto de
justificação de sua teoria. Quer parecer, em várias passagens, que Ferrajoli ocupa-se de
justificar o que denomina “forma jurídica” da pena. Sob outro viés, trata-se justamente do
critério de distinção – a formalização do controle ou, no caso, da forma jurídica da pena —
entre a violência do direito penal e a violência realizada pelas outras instituições de controle
social, tal como desenvolvido no Capítulo 1, item 1.1, do presente trabalho.
95 Ainda assim, Elena Larrauri sustenta que, ainda que se adote o abolicionismo, o castigo ainda teria espaço como instrumento de controle social. Entende que a admissão do espaço para o castigo não se evidencia incompatível com a abordagem abolicionista, “porque frente a un comportamiento respecto del cual queremos mostrar repulsa también podemos argüir que esta ‘repulsa’ ha de adoptar una forma fundamentalmente reparadora, por ejemplo, ha de vetar determinados castigos por inhumanos como la prisión, y ha de constituirse en una justicia más democrática y participativa para con los afectados” (LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005). Em seqüência a essa assertiva, a própria Larrauri reconhece que tal construção revela-se imprecisa, razão pela qual se esforça em seguida a atribuir maior concreção a sua proposta. 96 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005.
67
Se a ênfase reside tão-somente em respeitar uma regulação jurídica, somente isso
não basta para declarar justificado o direito penal. Eugenio Raúl Zaffaroni assevera que as
críticas de Ferrajoli ao abolicionismo, por exemplo, parecem centrar-se em certas
simplificações, tais como as pretensões de supressão do sistema penal, para deixar todos os
conflitos sem solução e sem cobertura ideológica de uma solução aparente que vigora hoje no
sistema penal; ou, ainda, de supressão do direito penal – como discurso jurídico –, para deixar
intacto todo o exercício do poder pelos órgãos do sistema penal.97
Além disso, parece dúbio se Ferrajoli justifica a figura da pena ou da pena de
prisão. A resposta possível é que se ocupa de justificar as duas, pois assume um conceito de
pena que não exclui a pena de prisão. Por conseqüência, ainda que esteja disposto a abolir a
pena de prisão, não está propenso a elaborar um conceito de pena em que não ingresse em seu
catálogo a pena de prisão.
Ferrajoli rechaça com veemência a obrigação de reparar o dano, uma vez que
repele a pena como reparação do devido, por entender que ela só pode constituir uma privação
de direitos, mas não uma obrigação de ressarcir.98
Uma terceira crítica diz respeito à compreensão de Ferrajoli para quem a pena se
justifica se capaz de cumprir as finalidades a ela atribuídas, quais sejam, prevenção de delitos
e de vinganças. Larrauri, num exemplo bastante provocativo, afirma que a pena de morte teria
um efeito preventivo e ainda serviria para evitar vinganças informais e linchamentos e registra
que Ferrajoli descarta tal pena ao argumento de que implicaria ela, a pena de morte,
97 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Tradução de Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 105. 98 Larrauri entende que, nesse particular, Ferrajoli encontra-se preso a uma concepção ancilar ocupada verdadeiramente em estabelecer uma distinção ontológica entre direito civil e direito penal (Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n.
68
vulneração de direitos humanos. Porém, por que razão Ferrajoli também não considera a pena
de prisão como uma vulneração aos direitos humanos?99
Ferrajoli demanda a demonstração empírica de que a pena cumpra suas
finalidades de prevenção de delitos e vinganças a um custo menor que outro meio punitivo.
No entanto, tal demonstração parece impossível e, ao revés, reclama a transposição de uma
demonstração fática para uma opção valorativa de adoção da pena (especificamente a de
prisão). Larrauri, ainda criticando o garantismo de Ferrajoli, sustenta que este deveria ter
voltado sua atenção mais à justificação da pena de prisão como meio legítimo de punição. Em
síntese, como já apontado, são dois os motivos pelos quais a discussão entre garantismo e
abolicionismo parece esvaziar-se: (i) a crítica à ausência de garantias, mas sem indicar quais
ou em troca de quais vantagens ou quais transformações, sempre pode ser apontada contra
qualquer proposta descriminalizadora, e não apenas contra o abolicionismo; (ii) a ausência de
concreção dos termos utilizados acaba por implicar um estado de grave confusão.100 Além
disso, em favor dos abolicionistas, registre-se que a proposta inicial dirigia-se à abolição da
pena de prisão e, se os abolicionistas tendem a extremar sua abordagem para a salvaguarda
das garantias das pessoas em face de qualquer alternativa à pena ou ao sistema penal, o
garantismo não deveria ignorar que essas garantias deveriam conduzir à aplicação de uma
pena distinta da pena de prisão.
As críticas dirigidas ao garantismo de Ferrajoli dizem respeito precipuamente à
sua oposição em relação às teorias abolicionistas e podem ser reunidas em dois grupos a partir
17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005). 99 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005. 100 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005.
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da dupla finalidade que justifica, sob sua ótica, a intervenção penal: a prevenção de vinganças
privadas ou informais e a prevenção de delitos.
3.1.1. A intervenção pe nal dirigida à prevenção de vinganças privadas
O cerne das críticas tecidas por Ferrajoli ao abolicionismo diz respeito aos perigos
decorrentes da abolição do direito penal. Na sua opinião, o desaparecimento do direito penal
implicaria ou a existência de uma anarquia punitiva (em que a toda prática delituosa se
seguisse uma resposta estatal ou social selvagem) ou a existência de uma sociedade
disciplinar (em que a prática de delitos seria faticamente impossível em razão da existência de
uma vigilância social ou estatal onipresente e sufocante). Diante dessas possibilidades,
denominadas por Ferrajoli como “utopias regressivas”101, o pensador italiano contrapõe-se e
apresenta sua proposta de direito penal mínimo como alternativa progressista.
Elena Larrauri sustenta que as críticas de Ferrajoli às teorias abolicionistas
amparam-se mais que em outra coisa na força das “imagens” transmitidas por essas teorias.102
Uma primeira imagem provém do passado e contrapõe o estado da natureza, em que
presumidamente prevalece a lei do mais forte, à existência de um Estado de Direito, no qual o
poder se exerce de acordo com regras pré-definidas. A tradução dessa visão resume-se na
contraposição entre vingança privada e pena, como correspondentes, cada um, a uma época
determinada. A segunda imagem de Ferrajoli se ampara em uma determinada visão de futuro,
lastreada em Foucault103, que por sua vez anteveu o caminho para um arquipélago carcerário.
O prognóstico de Ferrajoli aponta que, na ausência do direito penal, surgiria uma sociedade
101 Confira-se, a propósito, a transcrição mencionada na nota 79 do presente trabalho. Ainda, para uma crítica do abolicionismo amparada em casos-limites, escorada por vezes, reconheça-se, numa concepção retribucionista de intervenção penal, cf. ALMEIDA, Gevan. Modernos movimentos de política criminal e seus reflexos na legislação brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 16 et seq. 102 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005. 103 Vigiar e punir : nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 1998, 262 p.
70
disciplinar, cuja regulação impediria a possibilidade de delinqüir ao custo de uma vigilância
onipresente. Tal assertiva escora-se na idéia de que todos os castigos alternativos à pena de
prisão representam um aumento do controle social.
Assim, a crítica ao discurso abolicionista baseia-se na convicção de que, na
ausência de uma reação estatal (pena pública), produzir-se-ia uma resposta privada (vingança
de sangue), substancialmente mais violenta que a primeira. Ao relacionar a idéia de uma
vingança privada, mais violenta, a uma época pré-moderna, denominada arcaica ou
jusprivatista, Ferrajoli constrói um conceito de vingança privada que representa a entrega do
delinqüente à vítima. Porém, é de ver que o direito penal só era “privado” na medida em que
reconhecia um poder de disposição da vítima para iniciar o processo ou para finalizá-lo (por
exemplo, por meio do perdão). O direito penal era também “privado” pelo caráter de algumas
penas, como por exemplo, a composição ou a indenização em favor da vítima, incluído o
cárcere privado.
Nada obstante, quer parecer que a idéia de uma sanção mais bruta não advenha da
circunstância de ela surgir como privada, mas sim da imprecisão entre o que se denomina
hoje, e o que se denominava à época, como “público” e “privado”.104 Some-se a isso a
imprecisão histórica acerca do período em que Ferrajoli entende presente a “vingança
privada”. Não parece adequado mencionar “vingança privada” para descrever a época prévia à
formação do Estado moderno, porquanto a característica maior do poder punitivo na Idade
Média residia justamente na multiplicidade e na dispersão em um conjunto de poderes,
repartidos entre senhores feudais, igreja, comunidades locais, o patriarca ou os exércitos.
Reduzir todos esses poderes penais dispersos a um só título – vingança privada – não permite
104 Acerca da discussão sobre “público” e “privado”, cf. ARAÚJO PINTO, Cristiano Otávio Paixão. Arqueologia de uma distinção: o público e o privado na experiência histórica do direito. In: PEREIRA, Claudia F. O. (org). O novo direito administrativo brasileiro: Estado, agências e Terceiro Setor. Belo Horizonte: Forum, 2003.
71
compreender o funcionamento dos poderes punitivos numa época prévia à aparição do Estado
moderno.
Cumpre questionar, igualmente, o que se compreende sob a acepção de vingança.
O termo parece ser utilizado por Ferrajoli como sinônimo de respostas sangrentas, represálias,
duelos, linchamentos, execuções sumárias ou ajustes de conta. No entanto, não parece exato
equiparar penas privadas com vingança de sangue. Ferrajoli tende a atribuir um caráter
“sangrento” a qualquer tipo de reação privada e, por conseguinte, ignorar que a resposta
privada reconhece um poder de disposição da sanção pela vítima, nem sempre de modo a
alcançar um caráter letal a que o pensador italiano parece sempre atribuir.
Nessa mesma linha, Ferrajoli permite inferir, de sua exposição, que ao trânsito da
“vingança privada” à pena pública seguiu-se uma diminuição da violência. A valer, quer
parecer, de um lado, que a resposta privada vincula-se a uma vingança de sangue e, de outro
lado, que a resposta estatal (pena) não possua uma natureza brutal. No entanto, vislumbra-se
que mais correto seria destacar que, em ambos os casos, percebem-se respostas que são mais
ou menos brutais em atenção à época histórica e não em atenção a quem a exerce.
Não se evidencia inabalável a assertiva, como quer fazer crer Ferrajoli, de que o
processo de expropriação do poder punitivo, nos países de tradição européia-continental,
representa um processo orientado pelo objetivo de pacificação da sociedade. A rigor, numa
perspectiva puramente histórica, esse processo parece muito mais guiado pela idéia de
robustecimento do poder e dos interesses da monarquia frente à nobreza local ou mesmo
frente ao poder eclesiástico. Não há como afirmar, outrossim, que tal processo se deu
pacificamente; ao contrário, para que o direito penal pudesse se impor, foi necessário o uso da
violência para desprover os poderes periféricos da titularidade do jus puniendi.
72
Em última análise, como afirma uma vez mais Elena Larrauri, a compreensão
acerca do trânsito progressivo de um direito penal “privado” disperso a um direito penal
“público” concentrado deveria destacar que esse processo foi violento e que comportou a
expropriação pelo Estado do poder de castigar do ofendido, que se evidenciava em seu poder
de denunciar, em seu poder de castigar ou de perdoar e em seu poder de orientar a pena à
satisfação de seus interesses.105
Outro argumento que se poderia opor ao garantismo de Ferrajoli diz respeito à
segunda função atribuída a pena que igualmente a justificaria: a prevenção de penas
informais. É possível questionar se é suficiente para justificar a pena a possibilidade de, na
falta desta, efetivamente se produzir uma resposta informal. Na verdade, Ferrajoli pressupõe a
existência de uma vingança privada que tomaria o lugar da pena estatal, caso esta não mais
existisse. No entanto, tal assertiva ou hipótese não está arrimada em qualquer evidência
faticamente comprovável. Em verdade, a simples existência de violências arbitrárias não basta
como argumento único a justificar a pena.
O discurso penalista tende a partir da idéia de que há um espírito de vingança que
o direito penal deve limitar. Porém, assumir de modo absoluto a existência de ânsias punitivas
preexistentes e invariáveis implica desconhecer numerosos aspectos que ainda estão sendo
mais investigados: que grupos sociais são mais suscetíveis de manifestar pretensões
punitivas? como serão implementadas essas sanções? A negativa do direito penal, própria do
abolicionismo, não implica a adoção de uma lógica equivalente à inércia estatal.
Registre-se, no entanto, que Ferrajoli afirma que o objetivo justificador da pena é
a prevenção da punição “abritrária e informal”, como a vingança por exemplo. E que tal
105 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-
73
escopo dirige-se, ou diz respeito, tanto às vinganças privadas quanto às próprias reações
excessivas por parte do Estado (arbitrariedades, abuso de poder, improbidade etc.). Parece
demasiado, porém, presumir o direito penal como instrumento, de per si, adequado e
suficiente para evitar essas violências arbitrárias.
Uma estratégia alternativa, segundo Elena Larrauri, à necessidade de regular, com
observância de limites, poderia orientar-se no sentido da redução do poder punitivo do Estado.
Para ela, a realização dessa possibilidade poderia se dar por meio de um modelo de justiça
restaurativa, que vetasse determinados tipos de penas como a prisão, dado o seu caráter
exclusivamente punitivo, e concedesse maior atenção à vítima, para também julgar e
determinar a resposta ao delito.106 A essa redução do poder punitivo se seguiriam,
obviamente, o aumento das garantias processuais. Para Larrauri, uma justiça restaurativa está
em condições de evitar também o risco de “vinganças privadas” na medida em que cumpre
dois requisitos que entende essenciais: submeter o poder a uma regulação jurídica e outorgar
uma resposta que, ao tempo de orientar-se à resolução do conflito, permita denunciar o dano
social verificado e atribuir responsabilidades.107
judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005. 106 Conquanto não relacionada à proposta abolicionista de Larrauri, vale colacionar, pela clareza da exposição, o seguinte conceito: “A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime. Trata-se de um processo voluntário, relativamente informal, a ter lugar preferencialmente em espaços comunitários, sem o peso e o ritual solene da arquitetura do cenário judiciário, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores, e podendo ser utilizadas técnicas de mediação, conciliação e transação para se alcançar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator.” PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, C.; VITTO, Renato Campos Pinto de; SÓCRATES, Renato Gomes Pinto (orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005, p. 20. 107 LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 12, n. 17, março 2000. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2017/larrauri17.htm>. Acesso em: 27 março 2005.
74
3.1.2. A intervenção penal di rigida à prevenção de delitos
Como já visto, Ferrajoli justifica a intervenção penal como meio de obstar as
vinganças privadas. No entanto, além dessa, existiria alguma outra justificativa para a
intervenção penal? A resposta, para o pensador italiano, é afirmativa e se dirige exatamente à
prevenção de novos delitos.
Há situações em que ora não se verifica com robusta intensidade uma reprovação
social ao delito (basta pensar nos chamados crimes de colarinho branco, como, por exemplo, a
sonegação fiscal) e ora as vítimas não apresentam um grau de consciência do dano por elas
sofrido pela prática criminosa (imaginem-se as vítimas de crimes contra as relações de
consumo ou mesmo de crimes ambientais). Nesses casos, não parece evidente que ao delito se
seguiria uma reação privada. O garantismo admite que em bastantes hipóteses não existiria
reação privada, mas, então, seria o caso de se recorrer à prevenção de delitos como meio de
justificar a existência da intervenção penal: quando falhar uma razão justificadora, ressurgirá
a outra como critério exclusivo de justificação.
No entanto, vê-se que o recurso à prevenção de delitos esbarra em dois
argumentos robustos: (i) as investigações criminológicas não têm logrado êxito em apontar
que a pena efetivamente previne (ou não) a prática de novos delitos; (ii) por conseqüência, a
prova empírica que Ferrajoli requer para declarar a pena justificada parece de impossível
realização.
Na verdade, qualquer intento de extrair uma conclusão inquestionável esbarra em
diversas dificuldades: erros nos medidores das taxas de delitos, confusão entre os efeitos
incapacitadores e preventivos e a impossibilidade de se isolar os diversos fatores que
concorrem de forma simultânea à prática delituosa. Isso torna tanto mais dificultosa a
75
exigência de Ferrajoli de prova empírica do cumprimento da finalidade da pena – prevenção
de delitos – para justificar a intervenção penal.
Ainda, há algumas constatações de caráter criminológico que dificultam a
constatação da finalidade de prevenção de delitos. De saída, cumpre registrar que, para que o
direito penal previna delitos, ele deve ser conhecido. Os delitos mais utilizados para justificar
a incidência da intervenção penal – homicídio, roubo, crimes contra a liberdade sexual — são
precisamente aqueles que menos ameaça de pena requerem, porquanto já são previamente
censurados por normas religiosas, sociais ou culturais (instâncias informais de controle). As
infrações penais que se amparam em violações de normas de nítido caráter técnico – crimes
contra a fé pública, a ordem tributária, o sistema financeiro etc. – não parecem lastrear-se
nesse intuito intimidador da pena. Aliás, para tais crimes, há aqueles que sustentam a
descriminalização, ao argumento de que um adequado controle administrativo seria suficiente.
Demais disso, para aqueles crimes que adentram as chamadas cifras escuras, a
capacidade preventiva do direito penal se vê anulada. Por fim, que eficácia tem o
conhecimento e a existência do direito penal naqueles delitos em que as normas penais
coincidem com as normas sociais? Em casos assim, em que os valores resguardados pela
norma penal não são cultuados por diversos grupos sociais – bastar pensar nos exemplos das
subculturas delinqüentes –, o direito penal não parece justificar-se como meio de prevenção
de delitos.
A imagem de que o castigo previne futuras práticas delituosas parece dirigir-se à
figura do homo oeconomicus. A intervenção penal não parece intimidar aqueles que não
obtêm recompensas suficientes ao agir em conformidade com a lei penal, aqueles que
praticam um comportamento delituoso tantas vezes sem serem apreendidos que passam a
76
assumir a pena como um “risco do ofício”, aqueles que já passaram tanto tempo no cárcere
que simplesmente passaram a encará-lo como situação “normal” e aqueles inseridos num
grupo social em que ser encarcerado não representa um demérito ou descrédito.
É de ver que a crítica amparada na idéia de consideração do homo oeconomicus
também se choca com três idéias singelas. Uma, a idéia do homem econômico jamais
pretendeu afirmar que no comportamento delitivo só incidiriam cálculos de custo-benefício,
mas também admite, obviamente, a existência de outros fatores na prática de delitos. Duas,
mesmo os autores contrários à tese da delinqüência racional (ou do homem econômico) não
deixam de reconhecer que os aumentos ou diminuições do grau de probabilidade de ser
apreendido e sancionado de fato incidem sobre o indivíduo. Três, da teoria do comportamento
racional extrai-se uma relevante conseqüência para o quadro geral de uma política criminal
humana: se o que move o indivíduo a praticar um delito diz respeito muito mais aos
benefícios do que a um comportamento legal alternativo, parece evidente que a criminalidade
não apenas se afeta por variáveis de dissuasão, que introduzem maiores custos sobre a ação
delitiva, como também por variáveis nas alternativas legais, que se mostram como mais
vantajosas. Com efeito, relativamente à análise empírica, do lado dos autores que sustentam a
análise econômica do Direito há um arsenal de dados a favor de suas teses que não se
encontra suficientemente desmentido pelos que sustentam idéias contrárias.108
108 Cf. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Eficiência e direito penal. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 18 et seq. O próprio Silva Sánchez adverte que a perspectiva de análise econômica merece críticas por sua redução da racionalidade humana a uma racionalidade utilitária, instrumental, negando toda a importância da racionalidade valorativa. Isso é muito claro ao se observar que as decisões humanas nem sempre relevam considerações de pura utilidade. Porém, ao se aceitar formas de prevenção geral complementares à estritamente intimidatória, como a que tem lugar pela via da comunicação da relevância social do valor protegido pela norma, parece viável admitir tal eficácia preventiva. Enfim, a crítica mais direta que se dirige à análise econômica do Direito tem sido, precisamente, a sua relativa incapacidade de integrar valores.
77
A própria figura de Beccaria, segundo o qual a eficácia preventiva da pena
depende mais da certeza de sua aplicação que de sua severidade109, merece considerações.
Uma análise mais detida parece apontar que a “certeza” mencionada requer ainda mais
intervenção do direito penal, que cada vez que se realize um delito o sistema penal ofereça
resposta pronta e formalizada. Esse reclamo que acaba por redundar num recrudescimento –
ao menos quantitativo – da incidência de intervenção penal não parece desejável. De qualquer
sorte, mesmo a perspectiva da certeza de incidência da resposta penal sofre as mesmas críticas
relacionadas à impossibilidade de constatação empírica de seu potencial intimidatório.
De qualquer sorte, apesar dessa ausência de apoio empírico, impende reconhecer
que o fato de o comportamento humano orientar-se e modificar-se mediante incentivos milita
em favor da idéia de prevenção geral. Questionável, porém, é a concepção que disso derivaria
no sentido de que o castigo penal seja o meio mais eficaz frente a todos os comportamentos
sociais que se pretendam evitar.
A negativa do castigo, defendida por algumas vertentes abolicionistas, não
implica negar todas as medidas coercitivas. O abolicionismo não implica pregar o
desaparecimento da polícia, por exemplo. O cerne das críticas dirige-se às medidas coercitivas
orientadas ao castigo em vez da reparação. O próprio Ferrajoli reconhece a inidoneidade do
direito penal, por si só, satisfazer a prevenção dos delitos. No entanto, entre as alternativas por
ele vislumbradas para reação à conduta socialmente lesiva, ainda é a intervenção penal a
solução mais civilizada.
109 “Um dos maiores freios aos delitos não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade e, em conseqüência, a vigilância dos magistrados e a severidade de um juiz inexorável, a qual, para ser uma virtude útil, deve vir acompanhada de uma legislação suave. A certeza de um castigo, mesmo moderado, causará sempre a impressão mais intensa que o temor de outro mais severo, aliado à esperança de impunidade; pois os males, mesmo os menores, se são inevitáveis, sempre espantam o espírito humano, enquanto a esperança, dom celestial que freqüentemente tudo supre em nós, afasta a idéia de males piores, principalmente quando a impunidade, concedida amiúde pela venalidade e pela fraqueza, fortalece a esperança.” BECCARIA, Cesare. Dos delitos e
78
Ainda que se compreenda a justificação da intervenção penal a título de
prevenção, não como um critério orientador à incidência do direito penal, mas como limite à
atuação do poder estatal (para frear ou mesmo deslegitimar algumas intervenções penais e,
com isso, provocar o debate sobre a descriminalização de condutas), é de ver que subsiste a
necessidade de especificar sob que condições a prevenção surge como meio hábil e possível a
justificar a intervenção penal. E mais, que tal finalidade não seja atingida por qualquer outro
meio menos gravoso que o direito penal, dada a necessidade de respeito ao seu caráter
fragmentário.
Em suma, as discrepâncias entre as vertentes abolicionistas e a abordagem
garantista não dizem respeito ao reconhecimento da necessidade de submeter o poder punitivo
a estritos controles jurídicos. A diferença reside na compreensão de que tal objetivo comporta
necessariamente a legitimação do atual modelo punitivo, de suas justificações e de suas penas.
Nada obstante, em que pese a relevância da discussão travada entre as propostas
de um minimalismo penal, como apregoa Ferrajoli, e aquelas de supressão e superação da
própria intervenção penal pelo Estado, como sustentam os abolicionistas, é de ver que os
ordenamentos jurídicos contemporâneos caminham na contramão desses dois movimentos.
Em outras palavras, conquanto seja relevante perquirir acerca da superação das propostas
abolicionistas, hodiernamente, não se pode afastar da discussão acerca das razões da
intervenção penal o evidente movimento de expansão do direito penal como instrumento de
combate à criminalidade.
das penas. Tradução de Lucia Guidicini, Alessandro Berti Contessa. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 91-92.
79
3.2. A TENDÊNCIA CONTEMPORÂNEA : O RISCO DE UM DIREITO PENAL SIMBÓLICO
Dentro das reflexões político-criminais dos últimos anos, merece destaque a
evolução na legislação penal nominada “expansão do direito penal”, na acepção desenvolvida
por Jesús-María Silva Sánchez.110 O estádio atual da política criminal registra um inegável
diagnóstico de expansão da intervenção penal.
A atividade legislativa em matéria penal desenvolvida ao longo, especialmente,
das duas últimas décadas em países como o Brasil tem sido marcada por três características:
produção de tipos penais cuja legitimação guarda referência a bens jurídicos vagos,
criminalização de estados prévios às lesões efetivas de bens jurídicos e recrudescimento na
imposição de sanções, que muitas vezes revelam-se deproporcionalmente altas. Por meio de
uma cada vez mais densa gama de delitos de manifestação e de organização, o direito penal se
converte em um “direito penal de inimigos”.
A característica do “inimigo”, em contraposição ao “cidadão”, é o abandono
duradouro do Direito e ausência da mínimia segurança cognitiva em sua conduta. A transição
do “cidadão” ao “inimigo” produzir-se-ia mediante a reincidência, a habitualidade, a
delinqüência profissional e, finalmente, a integração em organizações delitivas estruturadas.
Mais que o significado de cada fato delitivo, a marca dessa transição manifestar-se-ia na
dimensão fática de periculosidade, que teria de ser enfrentada pelo direito penal de modo
prontamente eficaz.111 Esse “direito penal de inimigos”, ou de terceira velocidade, como
identifica Silva Sánchez, admitiria inclusive o recurso ao recrudescimento das penas de prisão
110 A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 111 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, 149-150.
80
e, concomitantemente, da relativização das garantias substantivas e processuais. Todavia,
trata-se de espécie de intervenção penal que não pode
(…) manifestar-se senão como o instrumento de abordagem de fatos “de emergência”, uma vez que expressão de uma espécie de “Direito de guerra” com o qual a sociedade, diante da gravidade da situação excepcional de conflito, renuncia de modo qualificado a suportar os custos da liberdade de ação.112
Nada obstante, como bem salienta Cornelius Prittwitz, “direito penal como
instrumento de dominação, o que existia e ainda existe, é direito penal do inimigo na sua
forma mais pura e rude. Não necessita para isto do atalho pelo direito penal do risco, que lhe
prepara o caminho, e já existia antes de o conceito de risco nos submeter ao seu domínio e
com isto também ao nosso direito penal”.113
Cumpre enfrentar, ainda que de modo abreviado, algumas características do
fenômeno de expansão do direito penal da atualidade. Nas manifestações da expansão do
ordenamento jurídico-penal, parece que o ponto essencial reside na compreensão de dois
fenômenos: o chamado “direito penal simbólico” e o ressurgimento de um “punitivismo”. Em
todo caso, são fenômenos cuja abordagem destacada e estanque só se justifica para fins
didáticos, uma vez que a evolução legislativa não raro mescla esses dois aspectos.
O direito penal simbólico surge justamente na produção legislativa unicamente
dirigida à produção na opinião pública de uma impressão tranquilizadora de um legislador
atento e decidido. A crescente prioridade assumida pela questão criminal na agenda político-
eleitoral tem produzido um discurso bélico contra o crime, com palavras de ordem como “lei
112 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 150. No mesmo sentido, salientando a necessidade de verificação de um contexto de emergência, cf. JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 142-143. A própria expressão “direito penal de inimigos” é cunhada por Jakobs. 113 PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre o direito penal do risco e direito penal do inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 12, n. 47, março-abril 2004, p. 44.
81
e ordem” ou “tolerância zero”, que permeia os canais de comunicação social e a forma como
as instituições, não somente penais, identificam e confrontam os seus conflitos de integração
social. É o que afirma com precisão Theodomiro Dias Neto:
Na retórica e na prática, observa-se com nitidez a construção de um conceito deturpado de eficiência do sistema de justiça criminal – o discurso do “eficientismo penal” – fundado em falsa contraposição de dois interesses igualmente legítimos e necessários: a aplicação da lei penal e a proteção das garantias individuais. O objetivo de assegurar a “eficiência da justiça penal”, que no Estado de Direito deve ser ponderado com outros interesses, converte-se em argumento legitimador de reformas legislativas e administrativas, voltadas ao esvaziamento das garantias processuais do suspeito e do acusado e ao recrudescimento dos poderes investigatórios e punitivos do Estado.
O Direito Penal se afasta de sua função precípua de controle do emprego da força pelo Estado, de “infranqueável barreira da política criminal” (v. Liszt), para converter-se em instrumento de combate à criminalidade.114
O fenômeno dos tempos atuais é justamente a inflação penal.115 A norma penal
não reflete um meio de constituição da identidade da sociedade – é dizer, para marcar o
mínimo de convivência – ou para resolver um determinado problema social em termos de
prevenção (instrumental) do delito, senão que a aprovação da norma em si e sua publicização
são a solução – evidentemente, apenas aparente – para o enfrentamento da criminalidade.116
De qualquer forma, o recurso ao direito penal não apenas aparece como
instrumento para produzir tranqüilidade mediante o mero ato de promulgação de normas
evidententemente destinadas a não serem aplicadas, mas também é possível vislumbrar
processos de criminalização incidente sobre os “antigos costumes”, como sustenta Cancio
Meliá, isto é, a introdução de novas normas penais com a intenção de promover sua efetiva
aplicação. Em outras palavras, cuida-se de fomentar processos que conduzem a normais
114 DIAS NETO, Theodomiro. Segurança urbana: o modelo da nova prevenção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 94-95. 115 Cf. CRESPO, Eduardo Demetrio. Do “direito penal liberal” ao “direito penal do inimigo”. In: Ciências penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, a. 1, n. 1, julho-dezembro 2004, p. 28 et seq. 116 MELIÁ, Manuel Cancio. Dogmática y política criminal en una teoría funcional del delito. In: JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Sobre la génesis de la obligación jurídica. Teoría y praxis de la
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penais novas que são aplicadas tão-somente para o recrudescimento das penas previstas em
normas já existentes anteriormente.
Parece evidente, portanto, a tendência atual do legislador de reagir com firmeza,
recrudescendo penas previstas em determinados setores do direito penal, para vincar o direito
penal como marco na luta contra a criminalidade.117 Hassemer igualmente vislumbra essa
tendência do legislador, em termos de política criminal moderna, em utilizar-se dessa reação
simbólica, em adotar um direito penal simbólico. Todavia, é certo que aqueles que contam
com um mínimo de trato com o sistema de Justiça criminal sabem que os instrumentos
utilizados numa intervenção dessa natureza não são aptos para tratar efetiva e eficientemente
da criminalidade real. Em outras palavras, os instrumentos utilizados pelo direito penal são
reconhecidamente ineptos para combater a realidade criminal. Por exemplo: aumentar penas,
apenas, não tem nenhum sentido empiricamente.
O legislador – que sabe que a política adotada é ineficaz – faz de conta que está inquieto, preocupado e que reage imediatamente ao grande problema da criminalidade. É a isso que eu chamo de “reação simbólica” que, em razão de sua ineficiência, com o tempo a população percebe que se trata de uma política desonesta, de uma “reação puramente simbólica”, que acaba se refletindo no próprio Direito como meio de controle social.118
Manuel Cancio Meliá igualmente registra com precisão:
injerencia. El ocaso del dominio del hecho. Dogmática y política criminal en una teoría funcional del delito. Buenos Aires: Rubinzal Culzoni Editores, Universidad Nacional del Litoral, [s. d.], p. 126 et seq. 117 Elena Larrauri, com esteio em Cohen, chega a vislumbrar na função simbólica do direito penal, especialmente a partir da década de 1980 e em superação ao paradigma então fixado pela criminologia cítica, um novo paradigma, nominado por ela como “nova criminalização”. Cf. LARRAURI, Elena. La herencia de la criminología crítica. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 1991, p. 218. 118 HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna política criminal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 2, n. 8, outubro-dezembro 1994, p. 43. Hassemer chama a atenção para a preocupação atual da política criminal com a eficiência, com o êxito, enfim, em ter respostas contra a criminalidade. No entanto, afirma ele que essa preocupação revela apenas parte do problema. Isso porque a política criminal e o próprio direito penal possuem um aspecto normativo – o aspecto da Justiça – que tem por escopo o equilíbrio entre o combate da criminalidade e a proteção jurídica dos atingidos pelo processo penal. A tendência ao esquecimento desse aspecto normativo é evidente quando os ordenamentos atuais se voltam apenas a uma luta contra a criminalidade, valendo-se do direito penal como instrumento dessa “guerra”. Adverte o pensador alemão que o direito penal também guarda uma tradição normativa de proteção jurídica e não apenas de eficiência e de luta (p. 43).
83
O que acontece é que, na realidade, a denominação “direito penal simbólico” não faz referência a um grupo bem definido de infrações penais caracterizadas por sua inaplicabilidade, por falta de incidência real à “solução” em termos instrumentais. Tão-somente identifica a especial importância outorgada pelo legislador aos aspectos de comunicação política a curto prazo na aprovação das correspondentes normas. E esses efeitos podem chegar a estar integrados em estratégias mercado-técnicas de conservação do poder político, chegando até a gênesis consciente na população de determinadas atitudes em relação a fenômenos penais que depois são “satisfeitos” por forças políticas.119
A criminalização de determinadas condutas como mecanismo de repressão para a
manutenção do sistema político-econômico de dominação se configura uma das causas desse
movimento de expansão do direito penal. Além disso, o fenômeno da globalização igualmente
veicula (pretensa) justificativa para esse aumento da intervenção penal.
A globalização – fenômeno de natureza econômica, verificado a partir da década
de 70 do século XX com as duas quedas do petróleo e a transformação radical do sistema
financeiro delas advinda, que acabou por alterar o próprio modelo econômico do capitalismo
– apresenta duas grandes notas distintivas: a aceleração do processo tecnológico e o vultoso
aumento da circulação das mercadorias e capitais. Por conseqüência, observa-se a pronta
necessidade de maior rapidez dos processos decisórios. É nesse quadro que surge o
distanciamento entre o chamado tempo do Direito (por natureza, diferido) e o tempo real
(marcado pela necessária simultaneidade). O campo decisório, portanto, desloca-se do campo
político para o campo econômico; de uma visão da economia nacional para uma abordagem
das relações internacionais; dos poderes públicos para os poderes privados internacionais. A
produção legislativa, como não poderia deixar de ser, caminha para um processo decisório
que reflete as necessidades econômicas, as quais, nas mais das vezes, assumirão perfis
antijurídicos, antipolíticos e antidemocráticos.120
119 MELIÁ, Manuel Cancio. Dogmática y política criminal en una teoría funcional del delito. In: JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Sobre la génesis de la obligación jurídica. Teoría y praxis de la injerencia. El ocaso del dominio del hecho. Dogmática y política criminal en una teoría funcional del delito. Buenos Aires: Rubinzal Culzoni Editores, Universidad Nacional del Litoral, [s. d.], p. 134. 120 FARIA, José Eduardo (org.). Direito e globalização econômica: implicações e perspectivas. São Paulo: Malheiros, 1998, passim. Cf., igualmente, em trabalho anterior: SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. O
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Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini apontam algumas tendências político-
criminais e transformações sofridas pelo direito penal na era da globalização. São tendências:
a descriminalização dos crimes anti-globalização; a globalização da política criminal, da
cooperação policial e judicial e da Justiça criminal. Seguidamente, são transformações
sofridas pelo direito penal em decorrência do processo de globalização: a globalização dos
crimes e dos criminosos, dos bens jurídicos, das vítimas, da explosão carcerária, da
desformalização da justiça penal e o agravamento incessante da hipertrofia do direito penal.121
Ao direito penal o processo de globalização acresce uma característica
fundamental: quanto mais a economia cresce, mais ela automatiza a produção e recrudesce os
problemas sociais (desemprego, desalento da comunidade etc.). Em última análise, o
crescimento da economia implica um gravame dos problemas sociais. É certo que a atualidade
também oferece respostas para esse problema (terceiro setor, desenvolvimento do serviço
informal, incremento do setor de serviços etc.), mas não uma solução hábil a realmente afastá-
lo. Evidencia-se, não há como negar, uma crise do próprio projeto do constitucionalismo,
marcadamente monocêntrico, que se vê diante do inarredável processo globalizante, de nítido
caráter policêntrico.
Vive-se hoje um contexto de pós-modernidade político-jurídica, entendido como a
imposição de regras de controle social internacional pelos países centrais aos países
periféricos. Estes são obrigados a passar da pré-modernidade em que vivem à pós-
modernidade do controle legal e, de fato, extraterritorial.122 A especificidade dos grupos
sociais nessa conjuntura pós-moderna dificulta a imposição de normas de conduta
papel do Ministério Público na investigação do crime organizado. In: Revista da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, v. 11, n. 22, julho-dezembro 2003, p. 35-54. 121 GOMES, Luiz Flávio; BIANCHINI, Alice. O direito penal na era da globalização. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 19 et seq.
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sedimentadas, cristalizadas, genéricas, abstratas. Em outras palavras, vislumbra-se um
contexto de regras simples demais para grupos heterogêneos demais.123
A sociedade pós-industrial não abre mão de um complexo aparato tecnológico. Há
um verdadeiro incremento dos riscos, especialmente de procedência humana. Daí se falar que
a sociedade pós-industrial é uma sociedade de risco. A questão que se coloca à discussão é a
seguinte: o paradigma do direito penal do iluminismo ainda se presta a essa sociedade de
risco?124 Ou, de outra forma, um sistema de orientação funcionalista, mas orientado a valores
extraídos de um programa de política criminal esculpido no texto constitucional, não se presta
a servir de lastro à legitimação da intervenção penal?
Na esteira do que já foi sublinhado acerca do descompasso entre o tempo do
Direito e o tempo real, permite-se observar também um hiato entre a velocidade das mudanças
verificadas no seio social e a velocidade do discurso jurídico contemporâneo. A dogmática
penal está diante de um grave dilema: ou abraça essa expansão de seus domínios e desenvolve
122 O conceito é extraído de VIDAURRI, Alicia González. Globalización, post-modernidad y política criminal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 9, n. 36, outubro-dezembro 2001, p. 15-16. 123 As organizações criminosas seriam decorrentes desse contexto globalizado, embora a valer o combate a tal criminalidade revele um discurso de poder contra inimigos internos. Juarez Cirino dos Santos registra que “a experiência mostra que a resposta penal contra o crime organizado se situa no plano ‘simbólico’, como espécie de satisfação retórica à opinião pública mediante estigmatização oficial do crime organizado – na verdade, um discurso político de evidente utilidade: exclui ou reduz discussões sobre o modelo econômico neoliberal dominante nas sociedades contemporâneas e oculta a responsabilidade do capital financeiro internacional e das elites conservadoras dos países do Terceiro Mundo na criação de condições adequadas à expansão da criminalidade em geral e, eventualmente, de organizações locais de tipo mafioso.” SANTOS, Juarez Cirino dos. Crime Organizado. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 11, n. 42, janeiro-março 2003, p. 222-223. 124 Segundo Silva Sánchez, “o paradigma do Direito penal da globalização é o delito econômico organizado (ainda que haja outros muito relevantes como terrorismo, narcotráfico ou criminalidade organizada – de armas, drogas ou crianças). A delinqüência da globalização é a delinqüência econômica, para a qual se tende a fixar menos garantias pela menor gravidade de suas sanções, ou é a criminalidade (da classicamente denominada legislação) excepcional, para a qual se tende a estabelecer menos garantias pelo enorme potencial de risco que contém.” SÁNCHEZ, Jesús-María. El derecho penal ante la globalización y la integración supranacional. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 6, n. 24, outubro-dezembro 1998, p. 77. No original: “El paradigma del Derecho penal de la globalización es el delito económico organizado (aunque haya otros muy relevantes con el terrorismo, narcotráfico o criminalidad organizada – armas, blancas, niños). La delincuencia de la globalización es delincuencia económica, a la que se tiende a asignar menos garantías por la menor gravedad de las sanciones, o es criminalidad (de la clásicamente
86
soluções dogmáticas flexíveis e apropriadas para esse novo tipo de criminalidade ou critica
essa utilização invasiva da ultima ratio estatal e impõe os conceitos tradicionais do direito
penal como barreiras infranqueáveis a essas novas tendências.
Merece destaque a abordagem alvitrada por Jesús-María Silva Sánchez. Com
efeito, a resposta mais adequada ao problema da intervenção estatal nas sociedades pós-
industriais guarda relação com diferentes regras de imputação a partir do concreto modelo
sancionatório, de sorte a observar adequadamente garantias e direitos. Para ele, então, o
direito penal passaria a ter uma configuração dual, atuando em duas velocidades.125
De um lado, haveria um direito penal nuclear, de velocidade reduzida, mais
próximo do amplo sistema de direitos e garantias, voltado à imposição de penas privativas de
liberdade e próprio da criminalidade tradicional que se conhece. De outro lado, um direito
penal mais distante desse sistema de garantias (periférico), cujas sanções seriam quase que de
caráter administrativo, e que absorvesse soluções dogmáticas que favorecessem a incidência
do direito penal, ainda que se afastando desse rígido sistema de garantias. Conquanto não se
olvide a crítica acerca do evidente risco de que essa configuração dual culmine no
esmagamento do direito penal nuclear pelo referido direito penal periférico, a abordagem
dualista de Silva Sánchez responde, ao menos como proposta dogmática, à conformação do
direito penal das sociedades pós-industriais ou sociedades de risco.126
denominada legislación) excepcional, a la que se tiende a asignar menos garantías por el enorme potencial peligroso que contiene.” 125 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 150. No mesmo sentido, salientando a necessidade de verificação de um contexto de emergência, cf. JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 144 et seq. 126 A respeito dessa resposta mais rápida, com imposição de sanções diversas da privação de liberdade, registre-se o posicionamento de Winfried Hassemer, partidário do desenvolvimento de um “direito de intervenção”, com sanções que mesclem conseqüências do direito tributário, civil, administrativo etc., a fim de que o Estado conte com uma resposta estatal rápida, eficiente e que, ao mesmo tempo, não vulenre garantias mínimas a uma intervenção do Estado por seu instrumento de controle social mais grave. Cf. HASSEMER, Winfried. História
87
É de ver que esse direito penal periférico guarda, como se verá, sua justificativa
num assento funcionalista-sistêmico, tal como delineado por Günther Jakobs. Embora as
críticas a tal abordagem tenham merecido ponto específico na presente investigação, como se
verá no capítulo seguinte, é possível adiantar desde logo a seguinte assertiva que guarda
referência com o movimento de expansão do direito penal:
A teoria funcionalista do direito penal de Jakobs (…) tem propiciado o esvaziamento do pensamento garantístico e do direito penal mínimo, balaústres do direito penal do Estado Democrático de Direito, e, neste contexto, tem propiciado a expansão regulatória do Estado, permitindo, com isso, a contensão dos excluídos da economia globalizada.127
Zaffaroni, então, com a clareza que lhe é peculiar, sistematiza e enumera as
características (e algumas conseqüências) dessa tendência expansiva e simbólica da legislação
penal, registrando como evidente e inevitável, em curto prazo, uma deterioração dos direitos
humanos historicamente conquistados: a) renúncia ao princípio da lesividade; b) a legitimação
de provas ilícitas introduzidas em processos excepcionais (que tendem a se ordinarizar); c) o
desenvolvimento de um direito penal de velocidades: um com maiores garantias para os
débeis e outro com menores garantias para os poderosos, ignorando que o último (o de
menores garantias) acabará por alcançar os menos poderosos, os não poderosos que aspiram
ao poder ou aqueles que o perderam e que, ademais, terminarão por também se tornarem
comuns; d) reconhece-se que o direito penal para os poderosos será de aplicação mais
excepcional, razão pela qual se propõe compensar a impunidade com mais pena para os
poucos casos em que se lhe aplique: tal regra, carente de qualquer lógica, acabará por
culminar na aplicação de penas mais graves aos menos poderosos para que creiam eles na sua
das Idéias Penais na Alemanha do Pós-Guerra. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, ano 29, n. 118, abril-junho 1993, p. 237-282. Igualmente, cf. HASSEMER, Winfried. Segurança Pública no Estado de Direito. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 2, n. 5, janeiro-março 1994, p. 55-69. O tema objeto do presente ponto é abordado de forma profunda e bastante esclarecedora por Eduardo Medeiros Cavalcanti. Crime e sociedade complexa. Campinas: LZN, 2005, passim, especialmente p. 183 et seq. 127 BICUDO, Tatiana Viggiani. A globalização e as transformações no direito penal. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 6, n. 23, julho-setembro 1998, p. 106.
88
(falsa) eficácia; e) quanto menos grave for a pena, menores serão as garantias a serem
observadas para sua imposição; f) o resultado de uma abordagem que pretende diminuir as
garantias para a imposição de penas aos poderosos, “menos poderosos” ou não poderosos,
bem assim das penas leves acabará por culminar na redução das garantias para todas as
penas.128
O problema de uma resposta penal açodada e puramente simbólica reside
justamente na utilização de instrumentos despóticos, distantes – para não dizer contrastantes –
dos postulados de um Estado democrático de Direito. Ao lado dessa manifestação simbólica
da intervenção penal percebe-se um direcionamento a uma criminalização irrefreada e a um
maciço encarceramento da miséria.129 É precisa a crítica de Alice Bianchini, quando, após
registrar, com apoio em Heleno Fragoso, que o aumento da criminalidade guarda vinculação
estreita com a estrutura social profundamente injusta e desigual, assevera o seguinte:
As produções legislativas requerem o incremento da repressão, os atos administrativos premiam projetos que a contemplem, as decisões judiciais não exercitam a imaginação de alternativas. A opinião pública, rancorosa e equivocada, pede e obtém mais formas de vingança e retaliação, modos de talionato, sem se dar conta de que contraria o discurso que ela mesma faz sobre direitos humanos, o qual, por sua vez, pressupõe a aplicação de princípios democráticos de direito penal, seja no momento em que se elabora a lei, seja quando se a aplica e executa.130
Uma das características da legislação moderna, pois, é o crescente recurso a
instrumentos jurídico-penais. De um lado, o direito penal é, quando comparado com a
implantação de mecanismos jurídico-administrativos alternativos, numa perspectiva
128 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La globalización y las actuales orientaciones de la política criminal. In: COPETTI, André (org.). Criminalidade moderna e reformas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 157-158. 129 A referência aqui à idéia de cárcere da pobreza é ao pensamento de Loïc J. D. Wacquant (Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2003, 168 p.). Sobre os exorbitantes custos dessa “luta contra a pobreza”, cf. Wacquant, Loïc J. D. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 89, et seq. 130 BIANCHINI, Alice. Considerações críticas ao modelo de política criminal paleorrepressiva. In: Revista dos Tribunais . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 89, vol. 772, fevereiro de 2000, p. 455-462.
89
econômica, muito mais barato.131 De outro lado, seus efeitos sociais sobre a opinião pública
podem ser, ao menos a curto ou médio prazo, superiores aos demais mecanismos alternativos,
por parecer um instrumento especialmente apto a lograr a confiança e a aprovação no
funcionamento do ordenamento jurídico (prevenção geral de integração).
Entretanto, essa eficiência do “direito penal moderno” é apenas aparente,
incidindo tão-somente no âmbito psicológico-social dos sentimentos de insegurança. Em
outras palavras, converte-se, frise-se uma vez mais, num mecanismo puramente simbólico e
distante do terreno instrumental. É certo que um direito penal eficiente será seguramente
funcional, mas não está claro que um direito penal funcional precise ser realmente eficiente
(bastaria a aparência de eficiência).132 Se um direito penal de prevenção geral positiva reduz-
se a um direito meramente simbólico, de pura aparência de eficiência, a médio ou a longo
prazo, certamente não cumprirá sua função de prevenção de integração. Constituir-se-á, de
fato, num dos mais claros exemplos de direito ineficiente, pois, com custos supostamente
baixos, de fato, não haverá conseguido benefício real algum.
Sob uma abordagem conseqüencialista em sua vertente econômica133, o delito, na
qualidade de ato ineficiente, deve ser neutralizado pela sociedade, que busca alcançar
precisamente a eficiência. Para tanto, dispõe, em princípio, de várias linhas de atuação. Sob
um viés, vê-se a prevenção fática, que trata de impedir pela via fática a realização de tais atos
ineficientes. Tal modelo se mostra enormemente custoso, além de culminar, em última
medida — e na linha das críticas já dirigidas às propostas abolicionistas -, na perda global da
liberdade.
131 Essa constatação já foi lançada de modo singelo em opúsculo anterior. Cf. SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano. Excessiva produção legislativa de matéria penal. In: Jus Navigandi. Teresina, a. 2, n. 26, set. 1998. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=935>. Acesso em: 20 junho 2005. 132 Cf. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Eficiência e direito penal. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 53-54.
90
Sob outro viés, o modelo estabelecido de modo central (sem prejuízo de sua
conjunção com outros) é essencialmente distinto: o modelo de prevenção geral por normas.
Por este, a neutralização ou redução dos atos ineficientes se faz por uma via muito menos
custosa. Parte-se da constatação de que os destinatários da norma são sujeitos que, em sua
atuação, seguem cálculos de “custo-benefício”. A norma incide sobre todos os cidadãos,
inclusive os potenciais delinqüentes, introduzindo-lhes custos adicionais a serem sopesados
quando da eventual prática de um delito. O direito penal, para ser eficaz em sua pretensão de
alcançar a eficiência social, deve, em definitivo, configurar suas normas partindo da idéia de
que os sujeitos destinatários vão realizar um “cálculo de eficiência”. Tal apreciação conduz a
um direito preventivo, aliás, preventivo-geral, e, enfim, baseado de modo central na
dissuasão: prevenção geral intimidatória.
Os custos da prática do delito devem superar os benefícios que o agente espera
obter e que, em última análise, não compensem a empreitada criminosa (crime does not pay).
A modalidade de prevenção geral por normas é a menos custosa e, nessa medida, mais
eficiente. Entretanto, e aqui reside o maior equívoco dos recentes diplomas legislativos
editados sob uma ótica paleorrepressiva, essa prevenção geral não deve se consubstanciar
numa prevenção por normas penais. Com efeito, dever-se-ia primeiramente tratar de
neutralizar a prática de atos ineficientes por meio de mecanismos indenizatórios (por
exemplo, responsabilidade civil). A indenização deveria ser mesmo superior ao valor legal
estimado de perda da vítima. Além disso, deve-se considerar de modo essencial o problema
da probabilidade de imposição e cumprimento efetivos da indenização. Nos casos em que a
indenização resulta acima das possibilidades de pagamento do indivíduo, recorrer-se-ia ao
direito penal. De fato, só se deverá fazer uso do direito penal, segundo os princípios da
133 Cf. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. Eficiência e direito penal. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2004, p. 25 et seq.
91
necessidade e da subsidiariedade, quando o efeito perseguido não puder ser alcançado por
meio do mecanismo jurídico-civil.
Reclamos de criminalização que não se mostrem vinculados a uma pauta
constitucional de valores, como se verá mais adiante, e que acabem por evidenciar uma
utilização simbólica da intervenção penal pelo Estado implicam, entre outras conseqüências, a
simplificação de problemas sociais não tão facilmente redutíveis e, ademais, a radicalização
de conflitos sociais. Este último ponto enraíza-se na tendência que tem o direito penal
simbólico de atuar segundo uma lógica “amigo-inimigo”, para a qual necessita produzir um
clima de indignação moral.134
Verifica-se, ademais, a ausência de um conceito material de bem jurídico. Perde o
bem jurídico seu caráter de critério negativo – segundo a acepção levada a efeito pelo
iluminismo clássico – e converte-se um critério positivo para justificar decisões
criminalizadoras.135 Diante desse panorama de expansão impensada do direito penal, sem a
preocupação de uma intervenção penal que se pretenda legítima, revela-se imperioso que o
intérprete volte seus olhos à reestruturação de uma intervenção penal que implique verdadeira
síntese entre a abordagem ôntica e a consideração valorativa, sem descurar de uma
preocupação de aptidão funcional a caracterizar o direito penal. É o que se verá a seguir.
134 Cf. ZORILLA, Carlos González. Para qué sirve la criminología? Nuevas aportaciones al debate sobre sus funciones. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 2, n. 6, abril-junho 1994, p. 21. A simplificação do processo de delimitação do âmbito de intervenção penal acarreta, ainda, uma supressão de todo o trabalho de definição dos elementos constitutivos da infração, na contramão de um sem número de princípios jurídicos, com destaque para o princípio da legalidade, bem como um nítido enfraquecimento da especificidade penal, uma vez que a infração passa a ser de difícil identificação, em virtude de um processo de “parcelização do direito penal”. Para mais detalhes, cf. DELMAS-MARTY, Meirelle. Os grandes sistemas de política criminal. Tradução de Denise Radanovic Vieira. Barueri: Manole, 2004, p. 8. 135 Cf. FARIA, Denise de Amorim. As deformações do Direito penal tradicional e a ausência de paradigma. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 21 outubro 2003. A mesma observação é desenvolvida em SÁNCHEZ, Alfredo Cirino. La crisis del derecho penal y el diseño de la política criminal en Latinoamérica. In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, n. 8, 2001. p. 71-72.
92
CAPÍTULO 4 – A abordagem funcionalista do direito penal
4.1. O FUNCIONALISMO SOCIOLÓGICO NO DIREITO PENAL
O educador e sociólogo norte-americano Robert Merton, um dos nomes mais
relevantes da teoria estrutural-funcionalista do desvio e da anomia, foi o responsável pela
conversão da teoria da anomia de Émile Durkheim em teoria da criminalidade, imbuído da
intenção de delinear um modelo de explicação do comportamento desviante. É a teoria
estrutural-funcionalista, originalmente esboçada por Durkheim136, que representa, segundo
Alessandro Baratta, “a virada em direção sociológica efetuada pela criminologia
contemporânea”137. Tal teoria insere-se no seio do movimento funcionalista, corrente
criminológica de inegável influência tanto em seu surgimento quanto no momento atual, e
constitui referência obrigatória na compreensão do importante processo de revisão crítica da
criminologia antes voltada para a linha biológica e caracterológica. O funcionalismo
desenvolvido por Merton pressupõe uma abordagem, ainda que superficial, das idéias
lançadas por Émile Durkheim.
Durkheim parte da constatação de que é constante o volume da criminalidade, ou
seja, de que é inevitável a existência, independentemente do lugar ou mesmo do momento
histórico, de uma taxa incessante de criminalidade. Para ele, o crime é um comportamento
“normal”, porquanto não possui caráter patológico; “ubíquo”, dado que é praticado por
pessoas, indiferentemente da camada social a que pertençam ou do modelo de sociedade em
que vivam; e derivado não de anomalias do indivíduo nem da própria “desorganização
136 A referência aqui é justamente às obras clássicas: DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999; DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. Trad. Eduardo Brandão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999; DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo de sociologia. Trad. Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 137 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, Instituto Carioca de Criminologia, 1999, p. 59.
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social”, mas das estruturas e fenômenos cotidianos inerentes a uma ordem social intacta.138
Segundo Durkheim, “o que é normal é simplesmente que haja uma criminalidade, contanto
que esta atinja e não ultrapasse, para cada tipo social, certo nível que talvez não seja
impossível fixar de acordo com as regras precedentes”139. O anormal, portanto, não é a
inexistência do delito, mas um repentino incremento ou descenso dos números médios ou das
taxas de criminalidade.
Chega ele a afirmar que o crime é necessário, porquanto decorre logicamente das
condições fundamentais da organização social. Nessa linha de pensamento, assevera
Durkheim que, “se é normal que haja crimes, é normal que sejam punidos. A penalidade e o
crime são os dois termos de um par inseparável. Um não pode faltar mais que o outro.
Qualquer afrouxamento anormal do sistema repressivo tem por efeito estimular a
criminalidade e lhe conferir um grau de intensidade anormal”.140 O crime, portanto, embora
não seja o objeto central de seu estudo, exerce, segundo Durkheim, uma função integradora e
inovadora. Segundo ele, “o crime é, portanto, necessário, ele está ligado às condições
fundamentais de toda vida social e, por isso mesmo, é útil pois as condições de que ele é
solidário são elas mesmas indispensáveis à evolução normal da moral e do direito”141. Ao
afirmar que o crime pode inclusive representar uma antecipação da moral por vir, sustenta que
o criminoso pode atuar como um agente regular da vida social, afastando-se da idéia de que o
criminoso é um ser radicalmente insociável.
138 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 27. 139 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 67. 140 DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo de sociologia. Trad. Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 473. 141 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 71.
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Durkheim entende que, uma vez que a conduta delituosa fere os sentimentos
coletivos, a pena constitui a reação social necessária, atualizando sentimentos coletivos
atingidos e reforçando a vigência de determinados valores e a convicção coletiva sobre o
significado destes. Nessa toada, ganha relevo o conceito de anomia, vocábulo de procedência
grega que tem origem na expressão anomos: a representa ausência, inexistência, privação de;
e nomos, lei, norma. Numa acepção estritamente etimológica, anomia significa falta de lei, ou
falta de norma de conduta.
Para Durkheim, que primeiro vale-se dessa expressão em seu sentido etimológico,
ligado a uma tentativa de explicação de certos fenômenos sociais, a anomia traduz-se pela
crise, pela perda de efetividade ou pelo desmoronamento das normas e dos valores vigentes
em uma sociedade, precisamente como conseqüência do rápido e acelerado desenvolvimento
econômico dessa mesma sociedade e de suas profundas alterações sociais que debilitam a
consciência coletiva142. Preocupado em pôr termo à anomia, Durkheim propõe que sejam
atenuadas as desigualdades externas. Sugere, então, que é necessário “encontrar os meios para
fazer esses órgãos que ainda se chocam em movimentos discordantes concorrerem
harmoniosamente (…) introduzir em suas relações mais justiça, atenuando cada vez mais
essas desigualdades externas que são a fonte do mal”143. Preocupado com essa aptidão
funcional do sistema, assevera ele:
Não se trata mais de perseguir desesperadamente um fim que se afasta à medida que avançamos, mas de trabalhar com uma regular perseverança para manter o estado normal, para restabelecê-lo se for perturbado, para redescobrir suas condições se elas vierem a mudar. O dever do homem de Estado não é mais impelir violentamente as sociedades para um ideal que lhe parece sedutor, mas seu papel é o do médico: ele previne a eclosão das doenças mediante uma boa higiene e, quando estas se manifestam, procura curá-las.144
142 MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 350-351. 143 DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. Trad. Eduardo Brandão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 432. 144 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Trad. Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 76.
95
Robert Merton, na esteira de Durkheim, combate a noção patológica do desvio,
para assentá-lo como um produto da estrutura social.145 O fenômeno do crime decorreria das
relações existentes entre a estrutura cultural e a estrutura social e do modo como os indivíduos
reagem à tensão que habita entre as duas.146 A má interação entre a estrutura cultural e a
estrutura social produz uma tensão que pode acarretar o rompimento das normas ou o seu total
desprezo. Um quadro de defasagens é que possibilita o surgimento da anomia e gera o
comportamento desviante. Essas tensões colocam os membros da sociedade em situação de
conflito ou pelo menos de desequilíbrio, só podendo prosseguir objetivos sacrificando as
normas ou vice-versa.147
Merton observou que a sociedade norte-americana, ao estabelecer como alvo geral
para todos os componentes da sociedade a meta de sucesso pessoal que envolve riqueza e
prestígio e ao deixar de proporcionar, com a mesma generalidade, os instrumentos prescritos
ou admitidos para atingir aquelas metas, criou condições específicas para estimular o
abandono ou a burla das normas socialmente fixadas para se atingir as metas culturalmente
estabelecidas. A conduta divergente substancia, pois, no pensamento mertoniano, uma reação
145 Merton, ao desenvolver a teoria estrutural-funcionalista do desvio e da norma, inicialmente esboçada por Durkheim, fixa os seguintes postulados: 1) as causas do desvio não devem ser atribuídas a fatores bioantropológicos e naturais, tampouco a uma situação patológica da estrutura social; 2) o desvio representa um fenômeno normal de toda estrutura social; 3) o comportamento desviante, por conseqüência, dentro de seus limites funcionais, constitui um fator necessário e útil para o equilíbrio e o desenvolvimento sociocultural, o que não ocorre quando são rompidas essas amarras e transpostos esses limites, estágio em que o fenômeno do desvio se torna negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutura social, donde resulta um estado de desorganização, no qual todo o sistema de normas de conduta perde valor, enquanto um novo sistema ainda não se impôs, o que corresponde à situação de “anomia”. Nesse sentido, FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 35; BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora; Instituto Carioca de Criminologia, 1999, p. 59-60. Acerca desse ponto, García-Pablos Molina chega a afirmar que “o delito seria funcional no sentido de que tampouco seria um fato necessariamente noviço, prejudicial para a sociedade, senão todo o contrário, é dizer, funcional, para a estabilidade e a mudança social” (MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 349). 146 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 36. 147 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia : o homem delinqüente e a sociedade criminógena. 2. reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 325.
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normal a uma situação social definida e determinada.148 Diante disso, delineia uma tipologia
dos modos, abstratos e típicos, de adaptação individual às demandas do binômio composto
pelos valores culturais (objetivos ou fins culturais) e penas normais sociais (meios
institucionais): a) conformidade ou conformismo; b) inovação; c) ritualismo; d) evasão,
retraimento, apatia ou fuga do mundo; e e) rebelião.149
Cumpre registrar, no entanto, que o conceito de anomia desenvolvido por Merton
não se confunde com aquele construído por Durkheim. Para Merton, que converte a idéia de
anomia numa teoria da criminalidade, a anomia não traduz apenas desmoronamento ou crise
de alguns valores ou normas em razão de determinas circunstâncias sociais, senão, antes de
tudo, o sintoma ou expressão do vazio que se produz quando os meios socioestruturais
existentes não servem para satisfazer as expectativas culturais de uma sociedade.150
Figueiredo Dias e Costa Andrade esclarecem a distinção entre as duas construções teóricas:
Em primeiro lugar, MERTON louva-se no caráter sistemático da sua teoria: por ter a medida das variáveis estruturais do próprio sistema e por oferecer uma explicação de todo o comportamento desviante em geral, superando o carácter avulso da explicação durkheimiana. Em segundo lugar, MERTON abandona completamente a idéia durkheimiana das necessidades humanas naturalmente ilimitadas e insaciáveis. Para Merton, todos os estímulos potenciadores da acção humana (designadamente os objetivos ou goals que, grosso modo, desempenham um papel homólogo ao das necessidades de DURKHEIM) são socialmente induzidos.151
A estrutura sociocultural, consoante Merton, exerce uma pressão sobre os
membros da sociedade, que pode levar à anomia e ao comportamento desviante, entre os
quais aquele considerado criminoso. De qualquer sorte, nem sempre esse sistema competitivo
resulta em anomia: esta só se verifica quando a ênfase cultural se transfere das satisfações
148 Já dizia Beccaria que “a maneira mais segura de prender os cidadãos à pátria é aumentar o bem-estar relativo de cada um” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 114). 149 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 41 et seq. 150 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 79; MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 351.
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derivadas da competição em si para a preocupação quase exclusiva com a conseqüência.
Merton, outrossim, distingue três graus de anomia: 1) o “simples”, estado de confusão em um
grupo ou sociedade suscetível ao conflito entre sistemas de valores, daí resultando um certo
nível de inquietação e uma sensação de separação em relação ao grupo; 2) o “agudo”, quando
se verifica a deterioração dos sistemas de valores; e 3) o “agudo extremo”, mais grave, em
que há a desintegração dos sistemas aludidos, que produz notáveis ansiedades.152
É certo que os postulados do funcionalismo não apresentam respostas definitivas
para a explicação do fenômeno da criminalidade, mas fornecem importantes subsídios para a
sua melhor compreensão, especialmente de algumas de suas feições, além de representar a
guinada da criminologia contemporânea ao rumo sociológico. De qualquer forma, impende
registrar que as teorias da anomia são macrossociológicas e, por isso mesmo, revelam
elevados níveis de abstração, ou seja, “algumas de suas formulações pecam, inclusive, por um
notável déficit empírico encoberto por uma desmedida carga especulativa”153.
Alessandro Baratta entende que o pensamento funcionalista restringe a sua
análise, nos moldes da sociologia tradicional, ao fenômeno da distribuição de recursos, de
modo a deixar de lado o nexo funcional objetivo que reconduz a criminalidade de colarinho
branco (white collar crime) e a grande criminalidade organizada à estrutura de produção e ao
processo de circulação do capital154. Além disso, o penalista italiano igualmente aponta a
índole conservadora do pensamento funcionalista, por vislumbrar nas teorias funcionalistas
uma função ideológica estabilizadora, “no sentido que possuem, sobretudo, o efeito de
151 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia : o homem delinqüente e a sociedade criminógena. 2. reimp. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 322-323. 152 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 81. 153 MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p 354.
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legitimar cientificamente e, dessa maneira, de consolidar a imagem tradicional da
criminalidade, como própria do comportamento e do status típico das classes pobres na nossa
sociedade, e o correspondente recrutamento efetivo da ‘população criminosa’ destas
classes”155.
Releva notar, ainda, a crítica de García-Pablos Molina, quando aponta o seguinte
sobre o estrutural-funcionalismo:
Mas ele [entendimento estrutural-funcionalista], sem embargo, tende a confundir o fático com o normativo, o ser com o dever ser, concedendo primazia às pretensões funcionais, pragmáticas, em comparação com as axiológicas e valorativas, como sucede com todo modelo tecnocrático sensível à crítica vinda de fora do sistema. Tudo isso repercute no diagnóstico funcionalista do problema criminal e tem importantes implicações de índole política criminal. O estrutural-fucionalismo revisa e questiona as categorias fundamentais da dogmática liberal tradicional (bem jurídico, culpabilidade etc.). Propugna por uma concepção meramente simbólica do delito e da pena, terminando por negar a natureza ‘subsidiária’ assinalada ao Direito Penal. Centra todo seu interesse no exame do crime convencional das baixas classes sociais, sustentando um enfoque mais sintomatológico que etiológico, isto é, contempla o delito onde se manifesta e quando se exterioriza o conflito, não quando e onde ele é gerado, razão pela qual manifesta uma vocação conservadora inclinada a legitimar sistematicamente o status quo.156
Nessa mesma linha de idéias, Howard Becker, um dos principais nomes do
interacionismo simbólico, entende que a perspectiva funcional oferece uma visão limitada do
fenômeno do desvio, por ignorar o aspecto político do fenômeno e, por isso, limitar o
entendimento.157
154 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora; Instituto Carioca de Criminologia, 1999, p. 67. 155 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora; Instituto Carioca de Criminologia, 1999, p. 67. 156 MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 354-355. 157 No dizer de Becker, a abordagem sociológica, própria do funcionalismo, tem a grande virtude de assinalar as áreas de possíveis perturbações em uma sociedade. “Pero resulta mucho más difícil en la práctica de lo que parece ser en la teoría, especificar qué es funcional y qué es disfuncional para una sociedad o grupo social. La cuestión de cuál es el propósito o meta (la función) de un grupo y, en consecuencia, qué cosas ayudarán o impedirán el logro de este propósito, es muy a menudo de naturaleza política. (…) Al ignorar el aspecto político del fenómeno, la concepción funcional de la desviación limita nuestra comprensión del mismo” (BECKER, Howard S.. Los extraños: Sociología de la desviación. Trad. Juan Tubert. Buenos Aires: Editorial Tiempo Contemporáneo, 1971, p. 18).
99
Dentre as vertentes do funcionalismo, ao menos para os fins do presente trabalho,
cumpre analisar ao menos duas: o funcionalismo sistêmico de Günther Jakobs, lastreada na
abordagem de Niklas Luhmann, e o funcionalismo teleológico, sustentado por Claus Roxin.158
4.2. A ABORDAGEM FUNCIONALISTA SISTÊMICA : CONCEPÇÃO E CRÍTICA
Os estudos de sociologia do direito refletem, também, a partir dos anos de 1970
(na Europa), a influência de Niklas Luhmann, muito especialmente devido à força dissertativa
da obra “Sociologia do Direito”159. Os estudos de Luhmann não se enquadram na sistemática
metodológica de origem européia. Aproximam-se muito mais das modernas teorias de sistema
desenvolvidas nos Estados Unidos, com destaque para Talcott Parsons, muito embora em
muito contribua para os estudos de interconexão entre sociedade e Direito.
A abordagem de Luhmann esboça um panorama crítico sobre as limitações do
ensino da Sociologia do Direito nas universidades, mas, muito especialmente, aponta que,
porque fundamentalmente ensinada por juristas, e não por sociólogos, a disciplina não
absorveu as recentes teorias sociológicas. Esse “isolamento” acabou por prejudicar-lhe o
desenvolvimento e o seu moderno papel na sociedade. Por isso, ele propõe uma verdadeira
revolução metodológica na sua retomada epistemológica, preliminarmente, reconhecendo que,
esvaziada do conhecimento específico da conceitualística jurídica terminológica, a
epistemologia jurídica evoluiria para identificar o seu verdadeiro objeto como a própria
sociedade, não a dogmática.
158 É de ver, contudo, que as vertentes funcionalistas não se esgotam nas visões desses autores. Sobre outras visões funcionalistas, cf. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 73-75. 159 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, 256 p., e LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito II. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985, 214 p.
100
Para Luhmann, sua abordagem não apresenta novidade, embora este não fosse o
enfoque dos juristas-sociólogos, por entender que o direito sempre apresentou-se como dado,
na essência das associações humanas. O direito, para ele, sempre guardou e veiculou traços
característicos da sociedade e das relações de hierarquia (dominação). O convívio na
sociedade humana e as instituições políticas não seriam apenas expressivas da liberdade
abstrata e indeterminada, de uma normatividade expressiva do dever ser de conteúdos
indiscriminadamente engendráveis, mas, além disso, seriam a expressão de normas
determináveis em sua substância, que surgiram, também, como verdades naturais, permitindo
afirmar que a sociedade seria uma relação de direito.160
Por estas razões, Luhmann compreende que o direito está implícito no próprio fato
social e com ele se confunde, exatamente porque é o fato social que resguarda e garante a
durabilidade das instituições sociais. Esta justaposição entre o Direito e a sociedade, na
opinião de Luhmann, diferentemente do positivismo kelseniano, que admite e propaga a sua
autonomia epistemológica, impede que se lhe reconheça como um fenômeno científico
autônomo empiricamente isolável. O direito, portanto, só pode ser compreendido como
fenômeno social. A assertiva guarda especial importância para a compreensão da intervenção
penal.
Verdadeiramente, Luhmann volta-se ao estudo do direito como ação social,
identificando as suas relações funcionais de sentido, não apenas como o legalmente permitido,
mas também como as ações legalmente proibidas. Para ele, pouco importa o conceito de
legalidade como resultante do conceito de lei escrita, na contramão da visão juspositivista.
160 BASTOS, Aurélio Wander. O conceito de direito e as teorias jurídicas da modernidade. In: Jus Poiesis: Revista Eletrônica do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Disponível na internet: <http://www.estacio.br/graduacao/direito/revista/revista1/artigo2.htm>. Acesso em 12 maio 2005.
101
Ocupa-se ele efetivamente da prática da legalidade (ou ilegalidade) como ação social, o que se
poderia denominar, aliás, como ele próprio o faz, de positividade sociológica.161
O sociólogo alemão procura estudar o direito, não propriamente como uma ordem
hierárquica, mas como um sistema de regras funcionais instalado num ambiente de relações,
também sistêmicas, simples e complexas. As regras de funcionamento sistêmico que
prescrevem práticas ou a pragmática das ações sociais humanas caracterizariam o sistema
jurídico como um especial sistema no sistema social global, onde exerce significativas
influências de controle e comportamento.
No quadro geral desse diagnóstico para a sociologia do direito de Luhmann, os
estudos do Direito devem partir da questão do direito como estrutura de um sistema social
cuja função essencial é regular os sistemas complexos e os sistemas simples. A assertiva
também seria plenamente válida ao direito penal, por evidente. A simplicidade e a
complexidade dos sistemas são absolutamente contingenciais (dependem de suas
circunstâncias de tempo e espaço) do ambiente em que se instalam e movimentam, o que
significa que os sistemas simples têm necessidades de estruturas jurídicas diferentes dos
sistemas complexos. Sociedades simples, por exemplo, possuem um direito tradicionalmente
determinado. A medida, todavia, que se verifica um aumento de sua complexidade, as
estruturas jurídicas (o direito) têm que adquirir uma elasticidade conceitual – interpretativa
para abranger situações heterogêneas — modificável através de decisões. Nesse sentido,
formas jurídicas estruturais e graus de complexidade da sociedade condicionam-se,
reciprocamente, numa relação de interdependência.
161 Cf. LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985, passim.
102
Luhmann procurou demonstrar que estas suas linhas conclusivas já teriam se
manifestado nos estudo da sociologia clássica, sem que tivessem, todavia, obtido a
importância e o significado de suas formulações. Em geral eles trataram destas questões, mas
mantiveram-na em regime de irrelevância. Durkheim, já referido, abordou a matéria em seus
estudos sobre a modificação dos padrões de solidariedade, embora constate que há uma
realidade social e autônoma do dever ser normativo. Karl Marx, da mesma forma, quando
admite que o direito na economia capitalista tem que ser reconstituído, agasalha a tese de que
é preciso, para mudar, abandonar padrões referenciais anteriores. Max Weber, que está
apresentado na obra de Luhmann com significativas colaborações à sociologia do direito,
apesar da sua contribuição ao conceito ou à teoria da ação, na verdade manteve a distinção
entre o conceito do direito em termos empírico-sociológicos e o conceito do direito em termos
jurídico-normativos.162 É Talcott Parsons que, na opinião de Luhmann, está mais próximo de
suas conclusões, já que procura determinar os sistemas sociais a partir da imprescindibilidade
de suas estruturas normativas.
Este posicionamento de Luhmann, incipientemente identificado nos sociólogos
clássicos, procura demonstrar que o aumento da complexidade social exige modificações no
arcabouço jurídico. Caso não ocorram essas modificações, o sistema social, a se concluir das
opiniões do sociólogo alemão, dessintoniza-se do Direito e pode provocar crises sociais
agudas, desde que o movimento ultrapasse a complexidade estruturalmente permissível.
Luhmann critica a dedução lógica como instrumento de limitação da
jurisprudência conceitual dos tribunais, porque os recursos exegéticos não são suficientes para
absorver a complexidade das mudanças sociais. Nessa mesma linha conceptiva, articulando o
162 As referências a Marx e a Weber são desenvolvidas em BASTOS, Aurélio Wander. O conceito de direito e as teorias jurídicas da modernidade. In: Jus Poiesis: Revista Eletrônica do Curso de Direito da Universidade
103
posicionamento geral dos autores citados, é possível afirmar que Durkheim e Weber, como o
próprio Luhmann, entendem que o direito e a sociedade são variáveis interconexas, o que
significa que o direito não goza de autonomia absoluta, por um lado, e está determinado pelos
padrões gerais de evolução da complexidade social. Essa especial postura desconhece o seu
caráter jusnaturalista e, até mesmo racionalista, para admitir a sua natureza contingencial.
Assim, para Luhmann, o direito delineado por seus operadores, em conceitos e
preceitos, e o próprio direito estatuído pelo Estado substanciam um fenômeno secundário,
derivado e deficientemente verbalizado. Em termos mais estritos, porém, a questão do caráter
estatuído do Direito possui significados secundários, os quais devem ser relegados a segundo
plano, a fim de que se alcance um conceito propriamente sociológico da positividade. No
entendimento jurídico, a positividade do Direito é dogmatizada, isto é, estatuída por força
própria. Isso, a toda evidência, não pode satisfazer à sociologia, que sempre procura outras
alternativas.
Tal assertiva, hábil a pôr em confronto juristas e sociólogos, muito embora
facilmente reconhecida pelos últimos, impressiona e “desmistifica” a dogmática,
principalmente sua autonomia e especificidade, a dinâmica própria da linguagem técnica
jurídica e a sua pretensa suficiência na solução dos casos. O direito, sob o viés desenvolvido
por Luhmann, não se determina por si próprio ou a partir de normas ou princípios superiores,
mas por sua referência à sociedade. Essa referência é compreendida como uma correlação
sujeita a modificações evolutivas, suscetível de verificação empírica como uma relação de
causa e efeito. A evolução é sempre concebida como a elevação da complexidade social, de
sorte que o direito surgiria, então, como elemento co-determinante e co-determinado desse
processo de desenvolvimento.
Estácio de Sá. Disponível na internet: <http://www.estacio.br/graduacao/direito/revista/revista1/artigo2.htm>.
104
Assim, também por essas razões, o fenômeno jurídico contemporâneo não pode
ser estudado como um puro fenômeno dogmático, mas como uma positividade imersa no
próprio processo de modificação do fenômeno social. O direito, com o advento das sociedades
complexas, passa a ser visto como um fenômeno modificável, não apenas de perspectiva
legislativa (como pensaram sociólogos e juristas), mas do ponto de vista dos próprios sistemas
sociais que predefinem o sentido das estruturas de dever ser à função do direito. Estas
estruturas de dever ser implícitas no sistema social, ou transmudadas em norma ou
jurisprudência, é que caracterizam, no sentido dado por Luhmann, a nova positividade ou o
direito positivo.
Esta concepção de direito positivo está muito longe da concepção clássica de
direito positivo ou mesmo de positivismo. Para se alcançar a pretensão conceitual de
Luhmann, por conseguinte, parece fundamental abstrair a concepção rotineira do direito
positivo para entendê-lo como uma expressão dinâmica do processo de mudanças das
estruturas sociais. O direito positivo não é o direito posto (estatuído), como classicamente
concebido, mas a decisão que absorve e apreende as situações contingenciais que
caracterizam o aumento da complexidade dos sistemas sociais. Na visão de Luhmann, a
positividade jurídica não expressa exclusivamente o direito do legislador ou dos juízes, haja
vista que estas autoridades podem decidir seletivamente no confronto geral das alternativas
ideológicas ou morais que influem nas situações conflitivas. Na verdade, o Direito pode
mudar a sua qualidade jurídica, apesar da constância normativa instituída.
Nesse sentido, a seletividade entre as alternativas permite que a ordem instituída
se transmude em nova ordem. Essa transmutação estrutural, essa capacidade da ordem de
absorver o ambiente, torna-se o princípio básico do direito; não a decisão em si, mas a decisão
Acesso em 12 maio 2005.
105
como capacidade de absorção do sistema externo. O direito positivo é a capacidade de se
absorver as situações emergentes no contexto das contingências e da complexidade do
sistema. Para Luhmann, a positividade do Direito não resulta da Constituição, nem muito
menos dos vínculos de validez que resguardam determinadas decisões, mas do
desenvolvimento social, e está correlacionada com as alternativas decisórias resultantes do
quadro contingencial. Assim, no contexto desta concepção sociológica e negativista da
dogmática, de visível resistência à concepção do direito como direito estatuído pela própria
força da dogmática, o direito positivo (positivável, que deve ser reconhecido, mesmo na
vigência de outra norma) resulta de estruturas sistêmicas que permitem o desenvolvimento de
possibilidades e sua redução a uma decisão que se torna vigente por força da própria decisão.
A esta altura é evidente o ponto de divergência entre a abordagem de Luhmann e
as opções apresentadas na presente investigação. Apesar da coincidência na negação do
caráter de auto-suficiência das estruturas dogmáticas para solução dos casos penais, não se
vislumbra acerto na opção de se afastar a Constituição e sua função de vínculo, ou limite, para
algumas decisões de positivação de fatos porque, como se apontará mais adiante, é a Carta
Política que orientará a pauta de valores e materializará o diálogo político-social necessário à
seleção e consagração de condutas puníveis.
A concepção de direito positivo como direito que se positiva num contexto
circunstancial complexo amplia o conceito de direito, não propriamente como conjunto
axiomático, mas como procedimento: o significativo não é o valor posto, mas a capacidade do
sistema de processar (por meio de procedimentos) a sua própria mudança. Luhmann
denominará este processo de auto-produção do direito, de produzir-se a si mesmo, como
autopoiese, para diferenciá-lo das situações em que a produção da norma (de um axioma)
depende de outro axioma. A concepção da ordem jurídica como um sistema autopoiético não
106
se conforma à realidade dos setores pré-modernos ou tradicionais das sociedades ou grupos
sociais, mas, poderá representar, segundo Aurélio Wander Bastos,163 a proposta prospectiva
do conceito de direito.
Logo, Luhmann não oferece uma concepção de ordem jurídica baseada nos
modelos clássicos, em que os efeitos legitimadores mais se apóiam na sua capacidade de
expressar os padrões de justiça (jusnaturalismo) ou nas conexões de validade entre as normas
(legalidade) positivistas, mas nos sistemas de procedimento. Para ele, a legitimação pelo
procedimento e pela igualdade das probabilidades de obter decisões satisfatórias substitui os
antigos fundamentos jusnaturalistas ou os métodos variáveis de estabelecimento do
consenso.164 Os valores legitimadores dos sistemas não estão propriamente no conteúdo de
suas normas, mas sim nos procedimentos, que fundamentam algum de seus possíveis
conteúdos.
A abordagem delineada por Luhmann tem por conseqüência a ampliação da
discussão do fenômeno jurídico como fenômeno social e a introdução das bases para uma
teoria sociológica do direito infensa ao criticismo, por exemplo, marxista. Não foge ele da
formulação clássica da implicitude fática do Direito, mas amplia esse processo compreensivo
na medida em que vincula o conceito de direito à ação social vivida, e não à lei escrita, como
procedimento de regulamentação social. É nesse ponto que o sociólogo alemão abre-se a duas
questões centrais: o conceito de direito positivo e a capacidade de auto-produção do sistema
jurídico.
163 O conceito de direito e as teorias jurídicas da modernidade. In: Jus Poiesis: Revista Eletrônica do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Disponível na internet: <http://www.estacio.br/graduacao/direito/revista/revista1/artigo2.htm>. Acesso em 12 maio 2005. 164 LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Corte-Real. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 31.
107
Na primeira questão, aborda o conceito de direito positivo, não propriamente
como a norma positivada, mas como a funcionalidade estrutural regular de um sistema, a
imprescindibilidade das estruturas normativas. Na segunda questão, e esta parece ser sua
contribuição decisiva, Luhmann demonstra que o sistema jurídico precisa ter capacidade
interna para absorver, sem que pereça, o processo de ampliação da complexidade social. O
direito, portanto, teria uma natureza, não propriamente jusnaturalista ou racionalista, mas
contingencial, na qual a sobrevivência da própria ordem jurídica, como padrão referencial,
residiria no papel do juiz e do operador do Direito em geral, em suas capacidades
compreensivas. Com isso se realiza o processo de auto-produção do direito, ou seja, a
autopoiese.
Assim, a abordagem funcionalista-sistêmica fixa que a regulação da convivência
social supõe um processo de comunicação ou interação dos membros de uma comunidade que
se consuma por meio de uma relação estrutural nominada expectativa.165 A norma significa
toda regulação de condutas humanas em relação à convivência. Ao tomar por base exatamente
a conduta humana que pretende regular, a norma tem por escopo viabilizar a convivência
entre as distintas pessoas que compõem a sociedade166. A convivência social só é assegurada,
165 “Todo delito, seja um delito de comissão ou de omissão, frustra uma expectativa juridicamente garantida”. JAKOBS, Günther. Teoria e prática da intervenção. Tradução de Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, p. 1. Acerca de uma tentativa de conciliação das concepções da norma como diretiva de conduta e como expectativa institucionalizada, merece destaque o conciso e esclarecedor posicionamento de Jesús-María Silva Sánchez. Cf. ¿Directivas de conducta o expectativas institucionalizadas? Aspectos de la discusión actual sobre la teoría de las normas. In: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 201 et seq. 166 A expressão sociedade é aqui tomada na acepção desenvolvida por Talcott Parsons, pilar da compreensão funcionalista-sistêmica, quando afirma que uma sociedade é um topo de sistema social, em qualquer universo de sistemas sociais, que atinge o mais elevado nível de auto-suficiência, como um sistema, com relação aos seus ambientes. Segundo ele, “essa definição refere-se a um sistema separado, do qual os outros subsistemas de ação, igualmente separados, são os ambientes fundamentais. Esta interpretação contrasta nitidamente com nossa noção de senso comum de que a sociedade é composta de indivíduos humanos concretos. Portanto, os organismos e as personalidades de membros da sociedade seriam internos à sociedade, e não parte de seu ambiente” (PARSONS, Talcott. Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1969, p. 21-22). O núcleo de uma sociedade, como um sistema, é justamente a ordem normativa padronizada por meio da qual a vida de uma população organiza-se coletivamente. Como ordem, contém valores, normas e regras diferenciadas e particularizadas; como coletividade, apresenta uma concepção padronizada de participação que distingue entre os indivíduos que pertencem e os que não pertencem a ela.
108
portanto, por meio de normas vinculantes, cuja observância se espera pelas pessoas que
pertençam a uma comunidade. E é a expectativa que exerce essa função de regulação do
convívio social.
Diante do risco de não serem cumpridas essas expectativas, que, por diversas
razões, se frustram, o sistema adotado para solucionar essas frustrações ou, se inevitáveis,
canalizá-las para assegurar a convivência é a sanção: a declaração de que se frustrou uma
expectativa e a conseguinte reação frente a essa frustração. A sanção, portanto, veicula um
conteúdo contrafático, uma vez que a sua vigência como norma não se modifica pelo fato de
não ser cumprida, ao revés, seu cumprimento e a seguinte sanção é que confirmam sua
necessidade e vigência.167
A imposição da sanção é efetivada primeiramente em nível social, por meio de
regras sociais que sancionam de algum modo – segregação, isolamento, perda do prestígio
social, entre outros – os ataques da convivência. Essas regras – normas – formam a ordem
social. Diante da insuficiência histórica dessas regras sociais para garantir a convivência,
tornou-se necessário um maior grau de sofisticação, organização e regulação de condutas
humanas, com vistas a um sistema de imposição de sanções mais preciso e rigoroso. Surge,
desse modo, subsidiariamente, a norma jurídica, destinada, em plano específico, a dirigir,
desenvolver ou modificar a ordem social. O conjunto dessas normas jurídicas substancia a
ordem jurídica e o titular dessa ordem jurídica é justamente o Estado, ao passo que, por
derradeiro, a titularidade da ordem social repousa na sociedade. Arremata Muñoz Conde:
167 Albert Cohen registra com precisão que a expressão controle social é empregada para indicar os processos e estruturas sociais que servem para impedir ou reduzir a transgressão. “A expressão é usada também para indicar qualquer coisa que as pessoas façam e que seja socialmente definida como ‘fazer alguma coisa a respeito da transgressão’, qualquer que seja essa ‘alguma coisa’: prevenção, repressão, reforma, vingança, justiça, reparação, compensação e elevação moral da vítima”. As suposições culturais, para ele, não definiriam apenas o comportamento de transgressão, mas também as reações adequadas ao comportamento transgressor. COHEN, Albert. Transgressão e controle. Tradução de Miriam L. Moreira Leite. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1968, p. 89-90.
109
A ordem jurídica e o Estado não são, por conseguinte, mais que um reflexo ou superestrutura de uma determinada ordem social incapaz, por si mesma, de regular a convivência de um modo organizado e pacífico. Na medida que a ordem social seja auto-suficiente, poderemos prescindir da ordem jurídica e do Estado. Atualmente, devemos aceitar, sem embargo, o fato de que existe uma ordem jurídica garantida pelo Estado, porque somente aceitando-a como objeto a interpretar, aplicar e também a criticar, podemos superá-lo algum dia.168
Aquelas condutas que mais gravemente atacam a convivência humana são
reguladas pela ordem jurídica por normas jurídicas sancionadas com o meio mais duro e
(pretensamente) eficaz de que dispõe o aparato repressivo estatal. Cuida-se aqui exatamente
da pena. A análise sistêmica, inserida na abordagem funcionalista, permite fixar um novo
marco teórico à idéia de legitimação do castigo.
A pena deixa de ser examinada sob o enfoque valorativo (seus fins ideais) e passa
a sublinhar uma abordagem funcional, dinâmica, como qualquer outra instituição social
(funções reais que a pena desempenha para o bom funcionamento do sistema). A pena,
portanto, segundo a teoria sistêmica, cumpre uma função de prevenção integradora, distinta
dos objetivos retribucionistas, de prevenção geral e especial que lhe foram atribuídos pela
dogmática tradicional. Na medida em que o delito lesiona sentimentos coletivos da
comunidade, tomados como “bons e corretos”, a pena “simboliza” a necessária reação social
clara e atualiza a vigência efetiva dos valores violados pelo delinqüente, impedindo que se
enfraqueçam; reforça a convicção coletiva em relação à transcendência desses valores;
fomenta e dissemina os mecanismos de integração e de solidariedade social frente ao infrator
e devolve ao cidadão sua confiança no sistema.169
168 CONDE, Franciso Muñoz. Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 11. 169 MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia : introdução a seus fundamentos teóricos. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 353. Salienta Molina que a idéia de prevenção integradora substitui o ideal utópico e emancipador da ressocialização do delinqüente. “A indiscutível crise desse ideal não fez com que a teoria sistêmica sugerisse reflexão alguma sobre possíveis alternativas ao atual modelo sancionatório e penitenciário – nem, muito menos, ao atual modelo de sociedade –, senão, pelo contrário, o reforço eficaz do sistema penal, de acordo com o modelo ‘tecnocrático’ que propugna a propósito das relações entre ciências sociais e ciências jurídicas” (idem, p. 354).
110
A norma jurídico-penal constitui assim também um sistema de expectativas.
Espera-se que não se realize a conduta proibida pela norma penal e espera-se também que,
caso se realize, haja a reação com a imposição da pena prevista. O fenômeno punitivo,
portanto, nada mais seria que uma estabilização contrafática das expectativas normativas. A
realização da conduta proibida pelo direito penal tem por pressuposto a frustração de uma
expectativa e a conseqüente aplicação da pena, de sorte que configura-se a intervenção penal
como reação frente a frustração. Em sua estrutura, portanto, a norma penal em nada difere de
qualquer outra norma social ou jurídica. Seu conteúdo, no entanto, diferencia-se das demais
normas, na medida em que a frustração da expectativa deve ser um delito e a reação a essa
frustração, uma pena.
Todavia, a adoção incondicional de uma política funcionalista veicula relevantes
perigos à compatibilização do sistema penal ao modelo de Estado a que se aspira. É de ver
que a funcionalização do direito penal exalta a necessidade de proteção aos bens jurídicos
transindividuais, que garantem estabilidade ao sistema social, e fomenta a idéia do perigo
abstrato, hábil a possibilitar a figura típica como mera realização da conduta considerada
perigosa pelo legislador. O pensamento funcional, atento aos complexos sistemas de
causalidade da vida moderna, tende a relegar à obsolescência o princípio da responsabilidade
individual, para substituí-lo por critério de responsabilização objetiva. Mesmo as categorias
conceituais, usualmente ricas e delimitadoras da intervenção penal, tornam-se incômodas aos
fins pragmáticos que se espera alcançar com a utilização do sistema repressivo.
De qualquer sorte, cumpre registrar que nenhuma corrente criminológica
apresenta-se auto-suficiente ou mesmo com a aspiração de oferecer explicações para todo e
qualquer fenômeno da criminalidade. O próprio Merton, na melhor tradição da sociologia
norte-americana, jamais pretendeu elaborar uma teoria geral da delinqüência. Como se verá a
111
seguir, a teoria mertoniana da anomia e da criminalidade e a doutrina estrutural-funcionalista
em geral, mesmo que não neguem seu traço conservador, influenciaram e ainda influenciam
diversas correntes criminológicas, a exemplo de um conjunto de teorias nascidas nos
domínios da Sociologia alemã contemporânea, como a teoria sistêmica da prevenção
integradora. No dizer de Ana Luiza de Almeida Ferro, “Luhmann, Amelung, Otto, Jakobs e
outros tantos muito devem a pioneiros como Durkheim e Merton”170.
A norma jurídico-penal, numa acepção funcionalista-sistêmica, só pode ser
compreendida se colocada em relação a um determinado sistema social.171 No entanto, não
pode ela ser compreendida como mera expressão simbólica de fundamento do sistema social.
Nesse ponto reside o maior equívoco da abordagem funcionalista-sistêmica da intervenção
penal: para a teoria sistêmica aplicada ao direito penal, o delito não é mais que a expressão
simbólica de uma falta de fidelidade ao sistema social; a pena ou a medida de segurança, a
expressão simbólica do contrário, da superioridade do sistema. A pena, nesse contexto,
constitui uma reação frente a uma infração normativa. É essa reação que demonstraria a
necessidade de manutenção da norma infringida. A reação demonstrativa produz-se sempre à
custa do responsável pela infração normativa.
O delito substanciaria um ato comunicativo que defrauda as expectativas dos
cidadãos acerca da vigência da norma. Para o bom desenvolvimento das relações sociais, o
delito deve ser contradito para que a norma restabeleça a sua vigência. Neste aspecto, a pena
reafirma a vigência da norma alterada pela comissão do delito.
170 FERRO, Ana Luiza Almeida. Robert Merton e o Funcionalismo. Belo Horizonte: Mandamentos Editora, 2004, p. 94. 171 “No aspecto normativo, podemos distinguir entre normas e valores. Os valores – no sentido de padrão – são vistos como o elemento primário de ligação entre os sistemas cultural e social. No entanto, as normas são fundamentalmente sociais. Têm significação reguladora para relações e processos sociais, mas não corporificam ‘princípios’ aplicáveis além da organização social ou, freqüentemente, sequer além de determinado sistema social. Em sociedades mais adiantadas, o foco estrutural das normas é o sistema legal” (PARSONS, Talcott.
112
Para Günther Jakobs, provavelmente o mais destacado representante dessa
abordagem funcionalista-sistêmica, o mundo conceitual jurídico-penal tem de organizar-se
com arreio à missão social do Direito, e não conforme dados prévios, naturais ou de qualquer
ordem alheios à sociedade.172
Para Jakobs, a sociedade é constituída por pessoas e normas e se desenvolve
segundo o agir comunicativo.173 Assim, o sujeito que infringe uma norma comunica algo que
deve ser valorado negativamente. De outro lado, contrafaticamente a pena comunica a
vigência normativa.174
A prestação que realiza o Direito Penal consiste em contradizer por sua vez a contradição das normas determinantes da sociedade. O Direito Penal confirma, portanto, a identidade social. (…) Nessa concepção, a pena não é tão-somente um meio para manter a identidade social, mas já constitui essa própria manutenção.
(…) o Direito Penal restabelece no plano da comunicação a vigência perturbada da norma cada vez que se leva a cabo seriamente um procedimento como conseqüência de uma infração da norma.175
Sociedades: perspectivas evolutivas e comparativas. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1969, p. 36). 172 Luís Greco adverte que, “recentemente, parece que Jakobs vem libertando-se do ponto de partida sociólogico, em favor de uma filosofia do direito por ele próprio desenvolvida”. Realmente, em trabalhos mais recentes, tais como JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003; JAKOBS, Günther. Teoria da pena e suicídio e homicídio a pedido. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, Jakobs deixa transparecer uma maior aproximação do pensamento de cariz kantiano. No entanto, como também assevera o mesmo Luís Greco, como essa mudança ainda não passa de um esboço, melhor que se desenvolva a abordagem do pensamento de Jakobs com lastro em Luhmann. Cf. GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito (em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico-penal”, de Roxin). In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (Org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. n. 7. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, 2000. p. 307-362. Também disponível em: <http://www.direitosfundamentais.com.br/downloads/colaborador_introducao.doc >. Acesso em: 27 maio 2005, nota 77. 173 JAKOBS, Günther. Derecho Penal — Parte General — Fundamentos y Teoría de la Imputación. Tradução de Joaquin Cuello Contreras e José Luís Serrano Gonzales de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1995, p. 13; JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, p. 45 et seq. 174 Cf. RAMOS, Enrique Peñaranda; GONZÁLES, Carlos Suárez; MELIÁ, Manuel Cancio. Um novo sistema de direito penal: considerações sobre a teoria de Günther Jakobs. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Barueri: Manole, 2003, p. 7 et seq. 175 JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, p. 4-5. No mesmo sentido, com o acréscimo de criticar o discurso relativo aos fins da pena, ao argumento de que “a sanção não tem um fim, mas constitui em si mesma a obtenção de um fim, scil, a constatação da realidade sem trocas”, cf. JAKOBS, Teoria da pena e suicídio e homicídio a pedido. Tradução de Maurício Antônio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003, p. 18-19.
113
Jakobs funcionaliza não apenas os conceitos, dentro do sistema jurídico-penal,
como também o próprio sistema. As possibilidades de agir, como já sublinhou Luhmann, são
incontáveis e aumentam conforme o grau de complexidade que assume a sociedade. O
processo de interação e de tomada de consciência entre a pessoa e os outros (sociedade)
implica um elemento de perturbação. O direito penal, como sistema social que é, cuidaria de
estabilizar expectativas objetivas e válidas, pelas quais ele próprio se orientaria também. As
expectativas e as expectativas das expectativas, como já mencionado, orientariam o agir e o
interagir das pessoas em sociedade, a fim de reduzir a complexidade e tornar a vida mais
previsível e menos insegura. O direito penal, como os sistemas sociais em geral, se ocuparia
de assegurar essas expectativas, a despeito de elas não serem sempre satisfeitas (caráter
contrafático).
Dados ontológicos, como causalidade e finalidade, são substituídos pelo conceito
normativo de competência. A vida em sociedade torna cada pessoa portadora de um
determinado papel que comporta, assim, um feixe de expectativas.176 Cada qual, e não só o
autor de crimes omissivos impróprios, como na doutrina tradicional, é garante dessas
expectativas.177
Portanto, para Jakobs, o direito penal não tem de partir do bem jurídico lesado ou
posto em perigo, senão do descumprimento da norma que regula as relações sociais, de modo
176 “Os seres humanos encontram-se num mundo social na condição de portadores de um papel, isto é, como pessoas que devem administrar um determinado segmento do acontecer social conforme um determinado padrão. (…) já não se deveria fazer a tentativa de construir o delito tão-somente com base em dados naturalistas – causalidade, dolo; pelo contrário, o essencial é que concorra a violação de um papel. Por conseguinte, já não resulta mais suficiente a mera equiparação entre delito e lesão de um bem jurídico”. JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 22-23. 177 Para Jakobs, “o conceito de ação não se busca antes da sociedade, e sim dentro da sociedade (…) Portanto, um conceito jurídico-penal de ação deve combinar sociedade e direito penal. (…) O conceito de ação, enquanto conceito jurídico penal, deve garantir que a definição dos comportamentos jurídico-penais imputáveis não seja uma mistura de elementos heterogêneos agrupados de qualquer maneira, e sim uma unidade conceitual.” JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 45-46.
114
que à dogmática caberá caracterizar apenas quem não é fiel ao Direito, e este será o autor do
delito. Com isso,
(…) atuar, significa, portanto, o seguinte: converter-se, de maneira individualmente evitável, na razão determinante de um resultado, regendo-se a qualificação de “determinante” por um esquema social de interpretação. Uma vez que se percebe que se trata de realizar uma atribuição e não algo que pertence à natureza, também se resolve o problema da omissão. Também na omissão tem lugar a atribuição de um ato a um ser humano: no âmbito da omissão de pleno peso, equivalente à comissão, esta atribuição não se faz a qualquer pessoa que pudesse ter evitado o resultado, e sim exclusivamente a uma pessoa essencialmente envolvida. Essas pessoas essencialmente envolvidas se chamam garantes, e essa denominação não é mais do que outro nome com o qual se faz referência a um segmento daquele âmbito que esbocei para o delito de comissão sob o rótulo de “imputação objetiva”: quem omite a salvação ante um perigo somente responde se sua abstenção é determinante. Que se denomine essa “abstenção determinante” por sua vez “ação” (então também o omitente atua, já que seu comportamento é relevante para o resultado), ou que se escolha o termo mais específico “omissão”, unificando depois ação e omissão sob o conceito de “comportamento”, é indiferente: em todos os casos se trata da vinculação de um ser humano com um curso que conduz a um resultado.178
Como pensamento lógico, de aspecto sociológico, o funcionalismo sistêmico
apresenta-se irreprochável. No entanto, como se verá a seguir, sua abordagem peca justamente
por não se vincular a uma preocupação com a legitimidade – a ser sempre questionada – da
intervenção penal e sua preocupação de orientação dirigida aos fins do direito penal.
4.3. CRÍTICA AO FUNCIONALISMO SISTÊMICO : A NECESSÁRIA OPÇÃO PELO
FUNCIONALISMO TELEOLÓGICO
A valer, a teoria sistêmica veicula uma abordagem asséptica e tecnocrática do
modo de funcionamento do sistema, que se pretende infensa a uma valoração e muito menos a
uma crítica desse mesmo sistema.179 Conduz ela a uma concepção preventiva integradora do
direito penal, em que o foco principal da gravidade da norma jurídico-penal (é a resposta mais
178 JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. Tradução de André Luís Callegari. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 59-60. 179 “Indubitavelmente, trata-se de resposta relegitimadora do exercício de poder do sistema penal por excelência, mas, às custas do desconhecimento do discurso jurídico-penal tradicional, opera um conceito de ‘direito’ privado de qualquer referência ética e antropológica (que mal pode ser chamado de direito), coloca em cheque, em larga perspectiva, praticamente todo o direito penal de garantias e retroage a um direito penal ultrapassado diante de um paradigma fictício, característico do discurso jurídico-penal autoritário.” YAROCHWSKY, Leonardo Isaac. A influência da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann na teoria da pena. In:
115
drástica de que dispõe o Estado) desloca-se da subjetividade do indivíduo para a subjetividade
do sistema. Volta-se a um exacerbado fortalecimento do sistema existente e de suas
expectativas institucionais sem se ocupar das necessárias modificações ou mesmo sujeição a
críticas. Na linha das críticas ora desenvolvidas, Muñoz Conde é contundente:
O caráter conflituoso da convivência social e o coativo da norma jurídico-penal desaparecem em um modelo tecnocrático em que o comportamento social desviado e o delito, qualificado de “complexidade”, ficam integrados em um sistema, sem qualquer modificação, por mínima que seja. A norma penal soluciona o conflito (delito), reduzindo sua complexidade, atacando-o onde se manifesta, não onde se produz, legitimando e reproduzindo um sistema que, em nenhum caso, é questionado.180
Adversa a críticas, livre de necessárias revisões e modificações, a abordagem
funcionalista-sistêmica satisfaz-se com muito pouco – ou quase nada – para afirmar a
legitimidade da intervenção penal. Encerrada num sistema que se pretende inserido num
mundo pleno de sentido e escudada numa concepção auto-referente de justificações para a sua
existência, a visão funcionalista-sistêmica do direito penal afasta-se de uma necessária
abordagem multidisciplinar e, o mais importante, prescinde de uma necessária aproximação
dos valores assegurados, constitucional ou legalmente, como próprios de uma política
criminal que oriente soluções axiologicamente voltadas a refletir a opção por um Estado
democrático de Direito.
Quando essa visão funcionalista-sistêmica refere-se à funcionalidade da norma
jurídico-penal, nada menciona sobre a forma específica de seu funcionamento, tampouco
sobre o sistema social para o qual a norma apresenta-se como funcional. O conceito de
Ciências penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, a. 1, n. 0, 2004, p. 297. 180 CONDE, Franciso Muñoz. Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 14.
116
função181, em si mesmo, é demasiadamente neutro e não se presta a compreender a essência
do fenômeno jurídico-punitivo.182
Deveras, por implicar verdadeira substituição do conceito de bem jurídico pelo de
“funcionalidade do sistema social”, a abordagem sistêmica acaba por afastar-se do último
ponto de que dispõe o direito penal para uma crítica do direito positivo. É precisa a crítica de
Luís Greco ao pensamento de Günther Jakobs:
JAKOBS se mostra plenamente ciente de quanto seu sistema tem de chocante, e de fato há muito de criticável em sua teoria. Não tanto o normativismo, porque apesar da funcionalização total dos conceitos, o embasamento sociológico garante o contato com a realidade, mas especialmente por tratar-se de um sistema obcecado pela eficiência, um sistema que se preocupa sobremaneira com os fins, e acaba por esquecer se os meios de que se vale são verdadeiramente legítimos. Ainda assim, é inegável que os esforços de JAKOBS abriram novos horizontes para a resolução de inúmeros problemas, demonstrando a necessidade e a produtividade de permear antigas categorias sistemáticas com considerações sobre os fins da pena.183
Numa perspectiva constitucional, segundo a qual o direito penal tem por missão a
proteção de bens jurídico-penais constitucionalmente tutelados, a teoria sistêmica acaba por
provocar a perda das dimensões reinvidicativa, emancipatória e legitimadora inerentes aos
direitos fundamentais. A função dos direitos fundamentais ficaria relegada a um papel menor,
de subsistema social, que se interpreta como garantia da diferenciação existente no próprio
sistema.184 A advertência é de Antonio Enríque Pérez Luño, para quem a definição dos
181 Winfried Hassemer elabora crítica substancial à utilização da expressão “função”. Segundo ele, os problemas da teoria dos sistemas como uma teoria funcional, ao menos para os juristas, são mais difíceis de discutir do que as questões de outros âmbitos das ciências sociais. Isso se deve exatamente ao próprio conceito de “função”. “Os cientistas sociais aplicam o conceito em contraposição ao de ‘fim’ ou de ‘objetivo’, portanto desligado de um indivíduo agente: a ‘função’ é a soma das conseqüências objetivas de alguma coisa”. Para os juristas, a idéia de “função” é freqüentemente relacionada aos “fins”: as funções se afiguram conseqüências pretendidas de alguma coisa. HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 148. 182 A crítica é compartilhada por Muñoz Conde (Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 14). 183 GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito (em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico-penal”, de Roxin). In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (Org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. n. 7. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, 2000. p. 307-362. Também disponível em: <http://www.direitosfundamentais.com.br/downloads/colaborador_introducao.doc >. Acesso em: 27 maio 2005. 184 LUÑO, Antonio Enríque Pérez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1986, p. 61.
117
direitos fundamentais atende a três idéias fundamentais: (i) os direitos fundamentais baseiam-
se no jusnaturalismo, na medida em que vincam sua raiz ética conjugadamente com sua
vocação jurídica, (ii) formalizam-se no historicismo, pois se sedimentam e se amoldam,
contextualizadamente, a partir da evolução histórica dos Estados e seus respectivos modelos
e, no que aqui interessa, (iii) evidenciam axiologismo em seu conteúdo. Logo, também o
reclamo constitucional impõe a adoção de uma abordagem funcionalista orientada a valores e,
por conseguinte, que rejeite a abordagem puramente sistêmica da intervenção penal.
Em uma colocação um tanto simplista, seria possível comparar o modelo
doutrinário funcionalista-sistêmico, tal como delineado por Günther Jakobs, como sendo um
protótipo, uma máquina perfeita, porém inábil frente a atual realidade do direito penal. Já a
concepção funcionalista-axiológica ou funcionalista-teleológica, delineada principalmente por
Claus Roxin, veicula claramente a idéia de um direito penal orientado à humanização por
meio da política criminal.
Diferentemente das abordagens do direito penal fornecidas pelos sistemas
naturalista, neokantiano (causalista) ou mesmo finalista,185 o funcionalismo reconhece que a
realidade não é unívoca: são várias as interpretações possíveis da realidade, de sorte que o
problema jurídico só pode ser resolvido por intermédio de considerações axiológicas, que
digam respeito à eficácia e à legitimidade da atuação do direito penal. O trabalho do
dogmático, sob essa vertente (funcionalismo teleológico) reside na identificação e
desenvolvimento da valoração político-criminal que lastreia cada conceito da teoria do delito,
185 A abordagem do funcionalismo teleológico escapa da crítica – ácida e certeira — de Ordeig ao finalismo de Welzel e suas estruturas lógico-reais. “O método que segue Welzel – colocando de uma maneira um tanto exagerada e polêmica – é o seguinte. Previamente, e antes de tomar contato com a realidade jurídico-penal, examina a estrutura ontológica da ação, afirma que o dolo pertence ao tipo… e, numa supervaloração espantosa do pensamento sistemático, decide que já está tudo solucionado. Não vai dos problemas ao sistema, e sim deste àqueles.” ORDEIG. Enrique Gimbernat. Conceito e método da ciência do direito penal. Tradução de José Carlos Gobbis Pagliuca. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 90.
118
a fim de funcionalizá-lo, construí-lo e desenvolvê-lo de modo a que atenda essa função da
melhor maneira possível.
De um lado, isso não significa que essa vertente funcionalista caia no relativismo
valorativo. As valorações político-criminais não são relativas, mas advêm diretamente da
ordem constitucional do Estado democrático de direito, que respeita e promove a dignidade
humana e os direitos fundamentais. O direito penal, na dicção de Wolter, é “direito
constitucional aplicado” e aponta como fundamento do sistema do delito a dignidade da
pessoa.186
De outro lado, a opção teleológica afasta o risco do dualismo metodológico que
marcou o sistema neokantiano. A abordagem neokantiana parte do pressuposto de que o
mundo da realidade e o mundo dos valores formam compartimentos incomunicáveis, não
havendo a menor relação entre eles. Já o funcionalismo teleológico, ao contrário, salienta que
a valoração político criminal substancia, num primeiro momento, o fundamento dedutivo do
sistema e que essa dedução deve ser complementada, num segundo momento, pela indução,187
caracterizada por um exame minucioso da realidade e dos problemas com os quais se
defrontará o valor, que deverá ser concretizado nesses diferentes grupos de casos. Com isso, o
pensamento funcionalista-teleológico traduz uma inegável síntese do ontológico com o
valorativo, de sorte que o intérprete deverá, em seu proceder hermenêutico, atuar dedutiva e
186 Menschenrechte und Rechtsgüterschutz in einem europäischen Strafrechtssystem. Apud: GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito (em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico-penal”, de Roxin). In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (Org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. n. 7. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, 2000. p. 307-362. Também disponível em: <http://www.direitosfundamentais.com.br/downloads/colaborador_introducao.doc >. Acesso em: 27 maio 2005, nota 63. 187 O procedimento indutivo, nesse particular, é influenciado pelo pensamento tópico de Theodor Viehweg, para quem a tópica reflete uma técnica de pensamento problemático. Ao problema, por meio de uma formulação adequada, introduz-se uma série de deduções mais ou menos explícitas e mais ou menos extensas, através da qual se obtém uma contestação. Se esta série de deduções for chamada de sistema, então é possível dizer que, para encontrar uma solução, o problema se opera dentro de um sistema. O estabelecimento de um sistema realiza, portanto, uma seleção de problemas. O problema, assim, assume uma posição de “pré-dado”e é tomado
119
indutivamente simultaneamente.188 Essa síntese entre pensamento dedutivo – valorações
político-criminais – e indutivo – composição de grupos de casos – surge como contribuição
extremamente fecunda, porque espelha um esforço por atender tanto às exigências de
segurança quanto às de justiça, ambas tendências por vezes contraditórias, mas inerentes à
idéia de Direito.
Não se pode olvidar, porém, as críticas desenvolvidas por Hirsch, fiel discípulo do
finalismo welzeniano, para quem as teses funcionalistas, lastreadas em necessidades de
prevenção, pecam pelo excessivo normativismo, razão pela qual prega o retorno à abordagem
dirigida tão-somente a “sólidos” dados da realidade ôntica, em lugar de aportes valorativos.189
Para Hirsch, os esforços funcionalistas seriam motivados tão-somente por um sentimento tolo
de criar novidades.
sempre como dominante. Cf. VIEHWEG, Theodor. Tópica y jurisprudencia. Tradução de Luis Diez-Picazo Ponce de Leon. Madrid: Taurus, 1964, p. 50 et seq. 188 Convém relembrar a idéia do círculo hermenêutico, tão bem explorada nas lições do Professor Inocêncio Mártires Coelho, para quem o intérprete jamais deve separar uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque o sentido da parte e o sentido do todo são interdependentes. Larenz assevera que o “círculo hermenêutico” pode expressar-se assim: “(…) uma vez que o significado das palavras em cada caso só pode inferir-se da conexão de sentido do texto e este, por sua vez, em última análise, apenas do significado – que aqui seja pertinente – das palavras que o formam e da combinação de palavras, então terá o intérprete – e, em geral, todo aquele que queira compreender um texto coerente ou um discurso – de, em relação a cada palavra, tomar um perspectiva previamente o sentido da frase por ele esperado e o sentido do texto no seu conjunto; e a partir daí, sempre que surjam dúvidas, retrocceder ao significado da palavra primeiramente aceite e, conforme o caso, rectificar este ou a sua ulterior compreensão do texto, tanto quanto seja preciso, de modo a resultar uma concordância sem falhas. Para isso, terá que lançar mão, como controle e auxiliares interpretativos, das mencionadas ‘circunstâncias hermeneuticamente relevantes’. A imagem do ‘círculo’ não será adequada senão na medida em que não se trata de que o movimento circular do compreender retorne pura e simplesmente ao seu ponto de partida – então tratar-se-ia de uma tautologia –, mas de que eleva a um novo estádio a compreensão do texto. (…) A conjectura de sentido tem o caráter de uma hipótese, que vem a ser confirmada mediante uma interpretação conseguida. O processo de compreender tem o seu curso, deste modo, não apenas em uma direcção, ‘linearmente’, como uma demonstração matemática ou uma cadeia lógica de conclusões, mas em passos alternados, que têm por objectivo o esclarecimento recíproco de um mediante o outro (e, por este meio, uma abordagem com o objectivo de uma ampla segurança). Este modo de pensamento (…) não só se manifesta a propósito da intepretação de textos, de acordo com a conexão de significado e da ratio legis – que é pelo menos em parte indagada com a ajuda do texto –, mas também no processo de aplicação da norma a uma determinada situação fática”. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 286-287. Em sua nota 54, Larenz registra sua preferência à expressão consagrada “círculo hermenêutico”, embora mencione que autores como Hassemer, Kaufmann e Achterberg, ao mencionarem tal proceder hermenêutico, vejam-no como uma espiral. 189 Cf. HIRSCH, Hans Joachim. El desarrollo de la dogmática penal después de Welzel. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 11, n. 43, abril-junho 2003, p. 11-30.
120
Todavia, a rigor, ao contrário do que apregoa o penalista tedesco, o finalismo não
mais se mostra hábil a fornecer respostas a complexos problemas normativos. Sua insistência
em lastrear-se em estruturas ônticas e pretensamente absolutas de investigação dogmática
apenas indica o mesmo equívoco em que incorreram os sistemas naturalistas e neokantianos.
Demais disso, à crítica dirigida a um possível normativismo responde-se justamente com o
extrato constitucional que informa a pauta de valores a serem observados pela política
criminal que orientará as soluções dos casos levados à dogmática penal.190
Com efeito, Roxin sublinha que os defensores do funcionalismo, em sua vertente
teleológica, estão de acordo em que “a construção do sistema jurídico-penal não deve
vincular-se a dados ontológicos (ação, causalidade, estruturas lógico-reais, entre outros), mas
sim orientar-se exclusivamente pelos fins do direito penal”.191
Os conceitos do direito penal são submetidos, portanto, a uma funcionalização,
para que deles se exija que sejam capazes de desempenhar um papel acertado no sistema,
alcançando conseqüências justas e adequadas.
190 Zaffaroni registra com precisão que Welzel e sua concepção finalista não levou sua abordagem de estruturas lógico-reais para a teoria da pena. Para o penalista argentino, caso se tentasse enfrentar a construção de uma teoria da pena de acordo com as estruturas lógico-reais simplesmente produzir-se-ia uma “deslegitimação total das penas e das ‘medidas de segurança’ tal como Welzel as apresentava e como continua apresentando o discurso jurídico-penal legitimante e, com isso, seria evidenciada a falsidade de todo o discurso jurídico-penal legitimante. Em nossa opinião, a teoria das estruturas lógico-reais não foi arquivada por ser infecunda, mas porque, ao ser aplicada à teoria da pena, teria deslegitimado o sistema penal e desmistificado o discurso jurídico-penal”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Tradução de Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 193. Diante de tal constatação, Zaffaroni procura, a partir da estrutura lógico-real não da ação humana, mas da pena, com toda a sua carga aflitiva, discriminatória, seletiva, reconstruir a teoria do crime e o direito penal em termos apenas de limitação e redução do poder punitivo do Estado, que, para ele, nada tem de legítimo (cf. p. 245 et seq.). 191 Strafrecht — Allgemeiner Teil. Vol. I. 3. ed. C. H. Beck´sche Verlagsbuchhandlung München, 1997, § 7/24. Apud: GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito (em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico-penal”, de Roxin). In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (Org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. n. 7. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, 2000. p. 307-362. Também disponível em: <http://www.direitosfundamentais.com.br/downloads/colaborador_introducao.doc >. Acesso em: 27 maio 2005.
121
A dogmática jurídico-penal e a política criminal passam a unir-se e, com apoio
nos princípios constitucionais, destinam-se a cumprir os objetivos de reafirmação dos valores
vigentes, não só para a escolha dos instrumentos capazes de obstaculizar a criminalidade, nos
limites das garantias constitucionais, mas para também colaborar na construção da norma
futura. A superação do sistema fechado, do positivismo neokantiano, foi, com efeito, a
conseqüência mais marcante para a dogmática jurídico-penal e a política criminal. Na lição
precisa de Antonio Luís Chaves Camargo:
Os requisitos de um sistema frutífero – claridade e ordenação conceitual, referência à realidade e orientação em finalidades político-criminais – determinou a revisão dos estudos em Direito Penal, que buscou novos fundamentos, agora com visão político-criminal, para o sistema de normas penais e fundamentação das penas.192
A meta do funcionalismo reside, pois, na proteção dos bens jurídicos, fim mesmo
da intervenção penal do Estado como instrumento último de controle social. A idéia fundante
é de que o direito penal deve ser orientado a satisfazer as necessidades de uma nova
sociedade, consistindo, pois, em um sistema aberto a novas políticas criminais. A missão
constitucional do direito penal – proteção de bens jurídicos por meio da prevenção geral ou
especial – dirige a construção teleológica de conceitos, a materialização das categorias do
delito, enfim, todo pensamento dogmático do direito penal.193 Com isso, a teoria dos fins da
pena adquire valor basilar no sistema funcionalista e, justamente por isso, será este o tema
sobre o qual se debruçará o capítulo seguinte.
192 CAMARGO, Antonio Luís Chaves. Sistema de penas, dogmática jurídico-penal e política criminal. São Paulo: Cultural Paulista, 2002, p. 168-169. 193 Zaffaroni e Pierangeli registram que hoje a maioria da doutrina partilha a opinião de que o direito penal deve tutelar bens jurídicos e valores ético-sociais conjuntamente. A finalidade de promoção da segurança por meio da tutela de bens jurídicos é justamente o que marca um limite racional à aspiração ética – referida ao comportamento social, às normas de conduta constituídas pela sociedade – do direito penal. Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 97 et seq.
122
CAPÍTULO 5 — Os fins da intervenção penal: visão geral
A função de um direito penal moderno consiste na realização de uma síntese entre
o Estado de Direito e uma prevenção especial ressocializante, por um lado, e as exigências
imprescindíveis da prevenção geral, por outro. A política criminal, concebida a partir de uma
doutrina dos fins das penas, dirige-se igualmente à determinação também do tratamento da
dogmática jurídico-penal. É justamente o rumo em direção a uma dogmática funcional-
normativa a grande contribuição do pensamento de Claus Roxin para o direito penal e, por
conseguinte, à própria legitimação da intervenção penal no Estado democrático de Direito.
A teoria da pena, porque tem como conteúdo a conseqüência jurídico-normativa
da efetivação da intervenção penal, reflete a própria concepção de Estado. No dizer de
Santiago Mir Puig, a teoria da pena há de elaborar-se teleologicamente, ou seja, tomando por
arrimo o significado funcional da pena no Estado (finalidade preventiva) e a necessidade de
um delineamento funcionalista à teoria do delito194. Disso resulta que, quando se fala em
sentido e função do direito penal, está-se a perquirir acerca do sentido e da função da pena.
Surge, pois, a exigência de se abordar as teorias que tratam da pena.
O direito penal evidencia-se como o setor do ordenamento jurídico no qual as
questões acerca da possibilidade de intervenção e da razão que a fundamenta colocam-se de
forma mais problemática. Não se tem notícia de doutrinas que negam outros setores do
ordenamento jurídico, como o direito constitucional, civil, comercial, administrativo etc.,
como as doutrinas abolicionistas negam o sistema e o próprio direito penal. As justificações
filosóficas acerca desses outros ramos do direito dizem mais respeito ao modo e à
oportunidade de intervenção do que à possibilidade de fazê-lo e mesmo sob qual razão
194 PUIG, Santiago Mir. Función de la pena y teoría del delito en el Estado social y democrático de derecho. Barcelona: Bosch, 1979, p. 26 et seq.
123
justificá-lo. Afirma Ferrajoli que “tal fato revela que o problema da legitimidade política e
moral do direito penal como técnica de controle social mediante constrições à liberdade dos
cidadãos é, em boa parte, o problema da legitimidade do próprio Estado enquanto monopólio
organizado da força”.195
Ferrajoli196 registra que o problema da justificação da pena, ou seja, do poder de
uma comunidade política, seja ela qual for, exercitar uma violência programada sobre um de
seus membros, configura justamente o problema clássico, por excelência, da filosofia do
direito. Em que se baseia a pretensão punitiva estatal ou o próprio direito de punir? As
respostas a essa pergunta amparam-se em duas vertentes ou grupos de teorias: teorias
justificacionistas, que se ocupam de compreender as bases que legitimam a intervenção penal
do Estado, e teorias abolicionistas, que não reconhecem justificação alguma ao direito penal e
almejam a sua eliminação197, quer porque contestam o seu fundamento ético-político, quer
porque consideram as suas vantagens inferiores aos custos da tríplice constrição que produz
(limitação da liberdade de ação daqueles que observam as normas penais, sujeição a um
processo por aqueles tidos como suspeitos de não observá-las e a punição daqueles julgados
como infratores).
Como o próprio Roxin salienta, questionar o sentido da pena estatal significa
perguntar “com base em que pressupostos se justifica que o grupo de homens associados no
195 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 200. 196 As idéias de Ferrajoli são desenvolvidas nos tópicos “Se e porque punir, proibir, julgar. As ideologias penais” e “O objetivo e os limites do direito penal. Um utililitarismo penal reformado” constantes de sua obra Direito e Razão (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002). São igualmente relevantes, para a compreensão de sua justificação da intervenção penal: FERRAJOLI, Luigi. Derecho penal mínimo y bienes jurídicos fundamentales. In: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica. [s.l.], ano 4, n. 5, março-junho 1992. Disponível em: <http://www.poder-judicial.go.cr/salatercera/revista/REVISTA%2005/ferraj05.htm>. Acesso em: 27 março 2005, e FERRAJOLI, Luigi. Sobre el papel cívico y político de la ciencia penal en el Estado constitucional de derecho. In: Crimen y Castigo. Cuaderno del Departamento de Derecho Penal y Criminología de la Facultad de Derecho U.B.A. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 1, n. 1, agosto 2001, p. 17-31.
124
Estado prive de liberdade algum dos seus membros ou intervenha de outro modo,
conformando a sua vida”198. Para ele, essa é uma pergunta acerca da legitimação e dos limites
do poder estatal, razão pela qual o debate acerca desses pressupostos revela-se sempre atual e
relevante.
Historicamente, são três as posições fundamentais que respondem a essas
perguntas acerca da justificação da intervenção penal: as teorias absolutas ou retributivas, as
teorias relativas ou prevencionais e as teorias mistas.
5.1. TEORIA DA RETRIBUIÇÃO
Para a teoria da retribuição, o sentido da pena assenta em que a culpabilidade do
autor seja compensada mediante a imposição de um mal penal.199 A pena, então, exerceria
uma função de retribuição.
A pena justificar-se-ia não pela finalidade a que se presta, mas sim pela realização
de um ideal de justiça.200 Roxin registra o pensamento retribucionista de Kant, já mencionado,
que chega a formular uma concepção segundo a qual, ainda que a sociedade civil toda se
dissolvesse, ela teria necessariamente que executar o último assassino que estivesse no
cárcere, para que cada um sofra aquilo que fez por merecer pelos seus atos e que as culpas do
sangue não recaiam sobre o povo que não haja insistido no seu castigo.201 Na mesma linha,
197 Tal acepção, segundo a distinção asseverada no item 2.1 do presente trabalho, amolda-se ao abolicionismo em sentido amplo. 198 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 15 199 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 16. 200 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 91 et seq. 201 Niederschriften über die sitzungen der Grossen Strafreschtskommission. Vol. I, 1956, p. 29. Apud: ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 16.
125
Georg Wilhelm Friedrich Hegel desenvolve conhecida fórmula dialética segundo a qual a
essência da pena seria “a negação da negação do direito”202.
O crime, pois, seria aniquilado, negado, expiado pelo sofrimento da pena que,
desse modo, restabeleceria o direito lesado. A pena substanciaria a negação da negação do
direito, segundo a referida fórmula clássica de Hegel, razão pela qual cumpriria um papel
restaurador ou retributivo. Quanto mais intensa a negação do direito, mais intensa será a pena,
sendo certo que, para essa abordagem, nenhum outro fator influi em sua mensuração.
A pena consubstancia retribuição da culpabilidade do sujeito, considerada a
culpabilidade como decorrente da idéia kantiana de livre arbítrio. Esse é seu único
fundamento e, com amparo nesse argumento, é que se diz que, se o Estado não mais se ocupa
em retribuir, materializar numa pena a censurabilidade social de uma conduta, o próprio povo
que o justifica também se tornaria cúmplice ou conivente com tal prática e a censura também
sobre o povo recairia.
Para Francesco Carrara203, a pena só tem um fim em si mesma: o restabelecimento
da ordem externa da sociedade. Para ele, a pena nem mesmo poderia pretender outros fins.
Binding formula que a pena é a retribuição “do mal com mal”, representa a confirmação do
poder do direito204. Mezger aponta que a pena vale-se de um mal que se amolda à gravidade
de um fato praticado contra o ordenamento jurídico; a pena revela, portanto, retribuição e
202 Gundlimien der Philosophie des Rechts. § 104. Apud: ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 16. 203 CARRARA, Francesco. Programa do curso de direito criminal. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2002, vol. II, Capítulo “Finalidade da pena”. 204 Grundriss des Deutschen Strafrechts. Apud: RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 153.
126
necessária privação de bens jurídicos.205 Para Welzel, a pena parece reger-se pelo postulado
da justa retribuição (que cada um sofra o que seus fatos valem).206
As teorias absolutas, portanto, consideram somente a expressão retribucionista da
pena: a pena traduz um mal que recai sobre um sujeito que cometeu um mal do ponto de vista
do Direito. Essa concepção de pena parece ligada intimamente a uma determinada concepção
de Estado, a um Estado de Direito que não seja intervencionista, mas guardião.
A única função do Estado é evitar a luta de todos contra todos, garantir o contrato
social, resguardar a ordem social ou, em outros termos, assegurar sua própria existência.
Reinhart Maurach, na esteira da concepção kantiana de pena, sustenta que uma sociedade que
renuncia ao poder penal estaria renunciando a sua própria existência.207 É de ver, contudo, que
certamente há de se salvar de uma concepção retributiva a idéia de garantia na mensuração da
pena, mas essa garantia ainda assim não é suficiente para justificar a pena entendida num
sentido absoluto, retributivo ou expiatório.
Sem grande esforço percebe-se que a teoria retribucionista não se presta a
justificar cabalmente a pena estatal. É que ela pressupõe a necessidade da pena em lugar de
fundamentá-la. Deixa de resolver, igualmente, a questão decisiva de saber sob que
pressupostos a culpa humana autoriza o Estado a castigar. A teoria da retribuição, segundo
Roxin, “fracassa perante a tarefa de estabelecer um limite, quanto ao conteúdo, ao poder
205 Strafrecht. 3. ed. 1949, p. 483. Apud: RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 153. 206 WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. 2. ed. Tradução de Juan Bustos Ramírez e Sergio Yáñez. Santiago: Editorial Jurídica Chile, 1976, p. 326. 207 MAURACH, Reinhart. Derecho penal. Atualizado por Heinz Zipf. Tradução de Jorge Bofill Genzsch e Enrique Aimone Gibson. 2 v. Buenos Aires: Astrea, [s.d.], passim.
127
punitivo do Estado”, limitando-se a conceder uma autorização indiscutível ao legislador para
criminalizar condutas.208
Além disso, é de ver que a liberdade humana pressupõe a liberdade da vontade –
livre arbítrio – e a existência desta revela-se empiricamente indemonstrável. A valer, o
legislador justifica a imposição de um preceito sancionador apenas como uma hipótese
subjacente ao mandamento proibitivo legal, que, mesmo não sendo refutada, não parece
comprovável.
Ainda, a própria idéia de retribuição compensadora da prática criminosa só parece
plausível mediante um ato de fé209, porque, com a assunção de uma concepção
exclusivamente retribucionista da pena, o Estado assume um ar de Justiça maior, hábil a
impor pena, porque titular exclusivo do direito de punir, sem que para isso lastreie esse
gravame num controle maior ou mesmo melhor que aquele realizado pelos próprios homens.
É preciso o seguinte excerto de Roxin a respeito:
(…) a própria idéia de retribuição compensadora só pode ser plausível mediante um acto de fé. Pois, considerando-o racionalmente, não se compreende como se pode pagar um mal cometido, acrescentando-lhe um segundo mal, sofrer a pena. É claro que tal procedimento corresponde ao arreigado impulso de vingança humana, do qual surgiu historicamente a pena; mas considerar que a assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto da vingança humana, e que a retribuição tome a seu cargo a ‘culpa de sangue do povo’, expie o delinqüente, etc., tudo isto só é concebível apenas por um acto de fé que, segundo a nossa Constituição, não pode ser imposto a ninguém, e não é válido para uma fundamentação, vinculante para todos, da pena estatal.210
Registre-se que, sob o mesmo argumento, não se admite a idéia de que a
imposição da pena pelo Estado amparar-se-ia num mandato divino: numa época em que se
208 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 17-18. 209 É precisa a observação de Paulo Queiroz quando se vale dessa expressão – “ato de fé” – utilizada por Roxin: “(…) explicar o sentido da pena por meio da retribuição é pretender emprestar foros de absolutidade a uma entre muitas interpretações possíveis e igualmente plausíveis dos desígnios e mistérios de Deus (Kant), que não é, inclusive, necessariamente a melhor” (Funções do direito penal: legitimação e deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 27).
128
assume como acordo a ser observado (e perseguido) que todo poder estatal deriva do povo,
não se revela admissível a legitimação de medidas estatais fundamentadas em supostos
poderes transcendentes. Em síntese, “a teoria da retribuição não nos serve, porque deixa na
obscuridade os pressupostos da punibilidade, porque não estão comprovados os seus
fundamentos e porque, como profissão de fé irracional e além do mais contestável, não é
vinculante”.211
5.2. TEORIA DA PREVENÇÃO ESPECIAL
As teorias relativas, ou prevencionais, voltam-se ao fundamento da pena: “para
que serve a pena?”. As correntes principais são a da prevenção geral e a da prevenção
especial.212
A prevenção espelha abordagem posterior às teorias da retribuição e da prevenção
geral. Destacam-se Franz Von Liszt na Alemanha e Marc Ancel na França. Desenvolve-se
durante o século XIX, que apontou uma necessidade de maior intervenção do Estado em todos
os processos sociais, inclusive os criminais.
Os defensores da abordagem preventivo-especial preferem a idéia de “medidas”,
em lugar de penas. A pena pressupõe a liberdade ou a capacidade racional do delinqüente, de
modo a considerar um critério de igualdade geral; já a medida, ao contrário, parte da idéia de
que o criminoso é um sujeito perigoso, diferente do normal, e que há de ser tratado consoante
suas peculiares características perigosas. O castigo e a intimidação perdem, assim, sentido,
210 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 19. 211 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 19. 212 Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 97 et seq.
129
porquanto a incidência da sanção penal volta-se a corrigir ou reabilitar o delinqüente, sempre
que seja possível, ou então a afastá-lo para torná-lo inofensivo.
A sanção não tem que infligir um castigo proporcionado por força de uma censura
moral, mas sim prover a mais eficaz defesa social frente a delinqüentes perigosos, de sorte a
afastar toda idéia de retribuição moral.213
A teoria da prevenção especial assenta a justificação da pena na prevenção de
novos delitos do autor. Tal prevenção pode ocorrer de três formas: a) pela correção daquilo
que é corrigível, ou seja, por meio da ressocialização; b) pela intimidação do que é pelo
menos intimidável; e c) pela privação da liberdade, por meio da pena, daqueles que não são
corrigíveis nem intimidáveis. Embora tenha sido formulada na época do Iluminismo, a teoria
da prevenção especial – que cedeu perante o relevo dado à teoria retribucionista – volta à
lume no final do século XIX graças ao pensamento de Franz Von Liszt e à crescente
importância do movimento internacional da “defesa social”, capitaneado pelas idéias de
Ancel.214
213 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 166. 214 Cf. ANCEL, Marc. Vinte e cinco anos de defesa social. In: Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, vol. 2, n. 3, maio-agosto 1976, p. 433-450. Para uma abordagem mais completa do pensamento de Ancel: A nova defesa social: um movimento de política criminal humanista. Tradução de Osvaldo Melo. Rio de Janeiro: Forense, 1979, 466 p. Ancel representa um movimento político-criminal que considera admissíveis e adequados vários caminhos para alcançar objetivos comuns. O movimento da nova defesa social, segundo ele, não se apresenta como uma teoria unitária e dogmática, mas como uma atitude intelectual. Adere ele ao princípio da responsabilidade pessoal na convivência social, bem como rechaça uma mera prevenção “sócio-medicinal”. Relativamente ao problema básico de toda convivência humana, isto é, o equilíbrio entre o desenvolvimento individual e a inserção social, adota uma posição conciliadora, para acentuar o direito de desenvolvimento individual de cada pessoa. Também na relação entre penas e medidas mantém um critério de equilíbrio. São, portanto, três as bases fundamentais sobre as quais se assenta o pensamento de Ancel: a) manutenção das figuras delitivas como ponto de partida da intervenção estatal; b) referência, em todas as formas de reação estatais, à responsabilidade social do cidadão; e c) substituição da mera pena retributiva pela sanção que se refere à responsabilidade individual e dirigida à reinserção social, com caráter punitivo ou orientada à correção ou segurança. Cf. ZIPF, Heinz. Introducción a la política criminal. Tradução de Miguel Izquierdo Macías-Picavea. Jaén: Editorial Revista de Derecho Privado, 1979, p. 61-62.
130
A idéia de um direito penal preventivo de segurança e correção seduz pela sua
sobriedade e por uma característica tendência construtiva e social. No entanto, não fornece ela
também uma justificação das medidas estatais necessárias para a sua prossecução.
As críticas dirigidas à idéia de prevenção especial apontam a falta de uma ética
social fundamental na medida em que instrumentaliza o homem para os fins do Estado: o ser
humano é tomado como coisa e o que se verifica é a conseqüente perda de respeito à sua
dignidade, um dos pilares do Estado de Direito. De modo mais sistemático, as críticas mais
robustas à teoria da prevenção especial podem ser reunidas em três grupos.
Em primeiro lugar, a teoria da prevenção especial não possibilita uma delimitação
do poder punitivo do Estado quanto ao seu conteúdo. A delimitação diz respeito ao “quando”
e ao “quanto” de incidência do direito penal. É certo que todas as pessoas necessitam, num
menor ou maior grau, de algum nível de correção. Com isso, o ponto de partida para a
incidência do direito penal continua a representar um perigo relativamente à submissão do
particular ao Estado, porque, na medida em que o direito penal dirige-se àqueles que
contrariam os chamados “valores” da sociedade, a depender do modelo de Estado a que se
aspira ou mesmo verificado na realidade, entrarão, na esfera do direito penal, grupos de
pessoas cujo tratamento como criminosos dificilmente se pode fundamentar com base numa
ordem jurídico-penal como a hoje preponderante, dirigida ao fato isolado (direito penal do
fato). O caráter seletivo do direito penal passa a assumir perigoso lastro de justificação (falso)
na teoria da prevenção especial da pena.
Além disso, tal teoria não chega a verdadeiramente possibilitar a delimitação
temporal da intervenção estatal mediante penas fixas, na medida em que, para ser
conseqüente, deveria prosseguir um tratamento até que se desse a definitiva “correção” do
131
delinqüente, mesmo que a sua duração fosse indefinida. Com isso, a teoria da prevenção
especial tende, mais que o próprio direito penal da culpa retributivo, a submeter o particular
ilimitadamente à intervenção estatal. Em última análise, a teoria da prevenção especial padece
do mesmo pecado que fulmina a teoria da retribuição: toma por pressupostos a extensão e os
limites do poder punitivo estatal, os quais precisamente deveria ocupar-se de fundamentar.
Em segundo lugar, há uma robusta objeção à teoria da prevenção especial: nos
crimes mais graves, não teria de impor-se uma pena caso não existisse uma repetição, porque,
se a pena volta-se à ressocialização do indivíduo, o que fazer com aqueles crimes que
freqüentemente se devem a motivos e situações que não voltaram a se repetir? Não há como
negar nesses casos as conseqüências da impunidade; porém, será que todos os que praticam
delitos estão a reclamar uma ressocialização? A valer, a teoria da prevenção especial não é
capaz de fornecer a necessária fundamentação da necessidade da pena para todas as situações.
Em terceiro lugar, por fim, se a pena se ampara por uma finalidade de correção, o
que legitima uma maioria da população a obrigar uma minoria a adaptar-se aos modos de vida
que lhe são gratos? Será que se presta a intervenção estatal – especialmente a da natureza
penal – a impor, numa perspectiva hegemônica, um padrão de comportamento de determinado
estrato social? O que pode legitimar uma maioria a subjugar uma minoria conforme suas
formas de vida, de onde surge um direito de educar contra a vontade de pessoas adultas, por
que certos cidadãos não podem viver como bem queiram?
A maioria das pessoas considera como algo evidente o fato de se reprimir
violentamente aquilo que é diferente, anômalo. No entanto, perquirir em que medida um
Estado de Direito goza de competência para tal é o verdadeiro problema que a abordagem
132
preventivo-especial não parece responder, até mesmo porque lhe escapa de seu campo de
análise.
O ponto mais crítico, de qualquer forma, reside no questionamento de para quê e
para qual sociedade presta-se a pena. Não é justamente a disfuncionalidade do Estado de
Direito atual que provoca os conflitos de socialização? Demais disso, aquele a quem se
pretende ressocializar submeter-se-á na verdade a uma socialização cultural ou subcultural, o
que é diverso da justificação da pena em si. Cuida-se, pois, de verdadeira manipulação do
indivíduo pelo Estado.
Roxin, com precisão, sintetiza as críticas à teoria da prevenção especial do
seguinte modo:
(…) a teoria da prevenção especial não é idônea para fundamentar o direito penal, porque não pode delimitar os seus pressupostos e conseqüências, porque não explica a punibilidade de crimes sem perigo de repetição e porque a idéia de adaptação social coativa, mediante a pena, não se legitima por si própria, necessitando de uma legitimação jurídica que se baseia noutro tipo de considerações.215
Com isso, os aspectos positivos da prevenção especial são os seguintes. Em
primeiro lugar, marca-se pela preponderância do indivíduo considerado como tal em suas
particularidades, em lugar de referir-se somente a um ser abstrato e indefinível como no caso
da teoria retributiva ou da prevenção geral. Sob essa perspectiva, a concepção da prevenção
especial reveste-se de um acentuado caráter humanista. Em segundo lugar, retira da pena seu
caráter mítico moralizante, uma vez que se cuida de simplesmente adequar a pena a essas
particularidades do sujeito para torná-lo novamente útil à sociedade ou, ao menos, para que
não a prejudique. Trata-se de uma abordagem que se ocupa muito mais dos indivíduos que
compõem o Estado do que com o Estado em si, pretende transformar as estruturas sociais e as
relações sociais, de sorte a lograr uma sociedade melhor e eliminar (ou reduzir) suas
133
disfuncionalidades. Tanto para um Estado de Direito simplesmente intervencionista quanto
para um Estado social de Direito, a prevenção especial apresenta-se como uma linha de
pensamento mais adequada que a retribuição ou a prevenção geral.
Já os aspectos negativos são assim visualizáveis. Conquanto de caráter
marcadamente humanista, porque se dirige ao homem real, a abordagem da prevenção
especial peca no que diz respeito à dignidade da pessoa, pois justamente empreende maior
violação à sua personalidade, dada a pretensão de transformar seu íntimo, sua própria
consciência. Ainda, tende a acentuar a chamada ideologia da divergência, fixando os valores
como absolutos consoante uma distinção entre normais e anormais, sãos e enfermos: aqueles
que demandam tratamento são aqueles que têm perturbações para compreender o valor, o
bem. A ressocialização ou o tratamento — como critério de validez geral ou fundamento da
pena — parece questionável na sua própria legitimidade e somente poderia, sob determinadas
condições, em especial com o consentimento do sujeito, justificar-se frente a certos casos
particulares e, em todo caso, prescindindo da ideologia da diferenciação que a informa.
5.3. TEORIA DA PREVENÇÃO GERAL
A teoria da prevenção geral vê o sentido e fim da pena nos efeitos intimidatórios
sobre a generalidade das pessoas.
Sustentadas por Jeremy Bentham, Arthur Schopenhauer e Ludwig Feuerbach, as
teorias de prevenção geral da pena estabelecem que a pena cuida de prevenir de forma geral
os delitos, isto é, mediante uma intimidação ou coação psicológica, pretende a pena obter o
respeito de todos os cidadãos. Essa teoria preventivo-geral agita-se entre duas idéias: a
utilização do medo e a valorização da racionalidade do homem.
215 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís
134
De um lado, procura afastar-se do receio de cair num totalitarismo, no terror pelo
próprio Estado, fundado na consideração do homem como animal que responde somente a
pressões negativas. Roxin, como se verá mais adiante, menciona essa tendência ao terror
estatal, amparado na assertiva de que quem pretende intimidar por meio da pena tenderá a
reforçar essa finalidade por meio do castigo mais duro possível. De outro lado, ao fixar-se na
capacidade racional absolutamente livre do homem, acaba por amparar-se numa ficção
semelhante à concepção de livre arbítrio ou, num outro extremo, na idéia de um Estado
absolutamente racional em seus objetivos, o que também em si é uma ficção.
A crítica acerca dessa racionalidade é que ela diz respeito exatamente ao Estado,
de modo que tende a absolutizar uma racionalidade determinada e uma vez mais, com isso,
chegar-se-ia ao terror estatal. A teoria da prevenção geral marca o esforço de seus defensores
em passar de uma concepção de Estado absoluto para uma de Estado de Direito. Numa
primeira época do Estado capitalista, as teorias de prevenção geral poderiam até surgir como
suficientes. O desenvolvimento posterior do Estado capitalista exigiu uma reconsideração da
concepção da pena. A prevenção geral é um instrumento de controle social e, como tal, neutro
valorativamente. De qualquer forma, não responde à crítica, que também se faz às teorias da
retribuição e da correção, de que não esclarecem o âmbito do que seja punível.
A teoria da prevenção geral ou cai na utilização do medo como forma de controle
social, com o qual se chega num Estado de terror e na transformação dos indivíduos em
animais, ou na suposição de uma racionalidade absoluta do homem no juízo de ponderação
entre as condutas que poderá eleger, na sua capacidade de motivação, tão ficcional como a
idéia de livre arbítrio, ou, por último, cai na teoria do bem social ou da utilidade pública, que
Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 22.
135
tão-somente acoberta os interesses em jogo: uma determinada socialização das contradições e
dos conflitos de uma democracia imperfeita.
É de ver, todavia, que a base do pensamento preventivo geral não está apenas no
argumento de racionalidade, mas também no de utilidade: a pena deve ser útil para a
sociedade. A insistência na eficácia preventiva geral leva, no entanto, inevitavelmente a
aumentá-la, fomentando uma transformação do Estado democrático num Estado puramente
policial. Vale-se Bustos Ramírez, a esta altura, do exemplo dos supermercados, onde seria
necessário almejar um equilíbrio entre a vigilância dos alimentos à disposição e a necessidade
de deixá-los efetivamente à disposição para escolha pelos clientes.216 Nessa acepção,
Hassemer realiza uma revisão crítica dos próprios critérios preventivos gerais da pena,
amparado principalmente nos insolúveis problemas de caráter empírico-metodológico, para
demonstrar o alcance dessa finalidade preventiva geral quando se pune determinada
conduta.217
A prevenção geral apresenta inegável relevância para justificar a intervenção
penal do Estado de Direito, baseando-a não em razões ético-metafísicas, mas em razões
sociais e político-jurídicas. Trata-se de sistema que tende a conservar um determinado âmbito
de liberdade do indivíduo, de sorte a bem manter-se em consonância com os ideais de um
Estado liberal mínimo, especialmente o respeito ao sujeito individualmente considerado.
Nada obstante, são questionáveis os métodos utilizados — o medo (coação
sociológica) e a instrumentalização da pessoa -, que evidentemente vão de encontro à idéia de
dignidade da pessoa, base de um Estado de Direito. Além disso, a preocupação com a
mensuração da pena não de acordo com a censurabilidade do fato realizado, mas sim com
216 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 163.
136
base nos fins sócio-políticos do Estado vulnera igualmente outro postulado do Estado de
Direito, o que permite a aproximação da teoria da prevenção geral com a arbitrariedade dos
regimes absolutistas.
De um ponto de vista exclusivamente utilitarista, não parece possível comprovar o
efeito da pena de prevenção geral intimidatória, o que torna a discussão muito mais filosófica
ou mesmo uma questão de fé, em franca contrariedade com o postulado de utilidade social.
Para um Estado que acentua sua intervenção nos processos sociais como única forma de
aplacar sua própria disfuncionalidade, a prevenção geral apresenta-se inadequada justamente
por sua generalidade, por deixar de diferenciar os processos sociais e controlá-los segundo
suas especificidades.
Embora tenha sido lançada por Feuerbach ainda no início do século XIX, a
concepção da prevenção geral não perdeu sua importância, porque até hoje está arraigada a
idéia de que, com a ajuda da legislação penal, é possível motivar a generalidade da população
a comportar-se de acordo com as leis, ou seja, uma consideração de natureza claramente
preventivo-geral escorada no papel motivador que exerce o tipo penal. Nada obstante, tal
teoria não é isenta de críticas.
Em primeiro lugar, permanece em aberto – do mesmo modo que nas teorias da
retribuição e da prevenção especial – a questão de saber face a que comportamentos possui o
Estado a faculdade de intimidar. Em outras palavras, permanece carente de explicação o
âmbito do criminalmente punível.
217 Generalprävention und Strafzumessung. Apud: RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 163.
137
É de ver, outrossim, que o ponto de partida da prevenção geral, diante do concreto
perigo de a pena ultrapassar a medida do defensável numa ordem jurídico-liberal, possui
normalmente uma tendência ao terror estatal, porque quem pretender intimidar por meio da
pena tenderá a reforçar esse efeito justamente se valendo do castigo mais duro possível. As
penas, então, tenderão a ser exponencialmente mais graves. A prevenção geral demanda, pois,
uma delimitação que não se extrai do seu ponto de partida teórico.
Em segundo lugar, impende registrar que, em muitos grupos de crimes e de
delinqüentes, não se conseguiu provar até agora o efeito de prevenção geral da pena, seja
quando se trata do criminoso profissional, seja quando se trata do delinqüente impulsivo
ocasional. A teoria da prevenção geral, portanto, relativamente ao atingimento de suas
finalidades (intimidação geral) carece de um substrato empírico demonstrável. As penas mais
cruéis, historicamente, não conseguiram fazer diminuir a criminalidade. Aliás, cada crime, de
per si, constitui uma demonstração inequívoca da ineficácia da prevenção geral.
Em terceiro lugar, e aqui reside a crítica mais robusta à prevenção geral, não há
como justificar, num Estado que prime pela dignidade da pessoa, que se castigue um
indivíduo não em razão de fato dele próprio, mas em consideração a outros. Em outros
termos, como se pode conceber a justiça em se admitir a imposição de um mal a alguém para
que outros se abstenham de cometer um mal? O indivíduo passa de sujeito a objeto à mercê
do poder estatal, material humano a ser utilizado. Deixa ele, segundo a concepção de
prevenção geral extremada, de ser titular de um valor como pessoa, equiparado a todos os
outros, sendo certo que tal valor é prévio ao próprio Estado e deve ser protegido por este, que
inadmitirá essa verdadeira “instrumentalização” do homem.
138
De modo conciso, a teoria da prevenção geral “não pode fundamentar o poder
punitivo do Estado nos seus pressupostos, nem limitá-lo nas suas conseqüências; é político-
criminalmente discutível e carece de legitimação que esteja em consonância com os
fundamentos do ordenamento jurídico”.218
CAPÍTULO 6 – A missão do direito penal: os fins da pena
segundo o funcionalismo teleológico
As abordagens mistas, ou ecléticas, de concepção mais simples são todas aquelas
que a partir de Liszt trataram de combinar junto ao critério fundamental retributivo a
aplicação de medidas, isto é, a abordagem da via dupla no direito penal, para reconhecer uma
natureza retributiva, mas que no caso de certos delinqüentes é necessário proceder com
critérios preventivos especiais, ou seja, por meio de medidas.219 De qualquer forma, parece
difícil conceber uma conciliação entre a idéia de retribuição e a de tratamento, entre a idéia de
castigo e a de ressocialização: em ambos os casos se cuidam de sentidos completamente
diferentes de direito penal e, por conseqüência, do conteúdo da teoria do delito.
Outra fórmula mista mais própria a uma concepção de Estado de Direito
garantidor é aquela que combina a retribuição com a prevenção geral.220 A pena, tomada
como um mal e uma resposta à ação realizada, tem a finalidade de fortalecer os preceitos e as
obrigações violadas por meio da ação delituosa. Não é outra a concepção sustentada por Adolf
Merkel no século XIX.221 Já Günther Jakobs, que compreende a culpabilidade com apoio em
218 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 25. 219 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 171. 220 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 108 et seq. 221 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 172.
139
sua própria finalidade, como já visto, sustenta que o fundamento da pena não é outro que não
a prevenção geral, não no sentido intimidatório, mas como exercício de fidelidade ao direito.
Uma terceira fórmula visualiza na pena um caráter marcadamente preventivo e
tenciona unir prevenção geral com especial, dando maior preponderância ao critério
preventivo geral. Nessa esteira, vale lembrar que o Projeto Alternativo alemão de 1966
estabelecia expressamente que as penas e as medidas teriam por finalidade a proteção de bens
jurídicos e a reinserção do autor na comunidade jurídica.
Em relação a todas essas fórmulas mistas, pode-se fazer a objeção de Roxin,
segundo a qual os efeitos de cada teoria não se suprimem em absoluto entre si, mas se
multiplicam. As últimas abordagens tendem a uma superação das diferentes teorias, ou ao
menos de uma em concreto. Com efeito, vários autores procuram superar as críticas dirigidas
à prevenção geral. Hassemer afasta-se de uma idéia de prevenção geral intimidatória para se
inclinar por uma prevenção geral ampla, que somente persiga a estabilização da consciência
do Direito, com que pretende converter o direito penal num controle social como tantos
outros, mas que se diferencia deles porque ligado à proteção dos direitos fundamentais
daquele atingido por suas normas (semelhante a Merkel, Jakobs e Carrara).222
Também em relação à prevenção especial, autores como Enrique Bacigalupo se
esforçam para superar as críticas então existentes. Para ele, com a pena se pode obter a
reintegração social do autor, o que justamente a legitima como meio de política social. Para
sua aplicação, há de se distinguir entre os autores segundo sua forma de reagir frente a pena,
222 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 403 et seq.
140
de sorte a afastar a distinção entre penas e medidas e entre imputáveis e inimputáveis. Tratar-
se-ia de um sistema de prevenção especial democraticamente orientado.223
Embora essas orientações procurem reduzir as falhas então apontadas, não se
revela possível eliminá-las por completo. O próprio Hassemer reconhece que a afirmação no
sentido de que a medição da pena (como critério preventivo geral) constitui e apóia as normas
sociais na direção correta é algo que não se pode provar e somente deriva de uma esperança
depositada no próprio direito penal.224 Bacigalupo assinala que a idéia de ressocialização
expressa antes de tudo uma exigência de derrogação do direito penal de retribuição, em favor
de um projeto de cunho alternativo.225
Juntamente aos modelos superadores do paradigma tradicional, há outros de
caráter mais complexo, pois pretendem uma integração maior ou uma visão mais ampla do
direito penal.226 É justamente onde se insere a proposta de Claus Roxin.227
A teoria unificadora de Roxin combina as três versões entre si: teoria da
retribuição, teoria da prevenção específica e teoria da prevenção geral. Vê o sentido da pena
não apenas na compensação da culpa do delinqüente, mas também no sentido geral de fazer
223 Significación y perspectiva de la oposición “derecho penal-política criminal”. Apud: RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 174. 224 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 174. 225 RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p. 174. 226 É certo que, independentemente do ponto de vista a ser adotado, “(…) a justificação da pena envolve a prevenção geral e especial, bem como a reafirmação da ordem jurídica, sem exclusivismos. Não importa exatamente a ordem de sucessão ou de importância. O que deve ficar patente é que a pena é uma necessidade social – ultima ratio legis, mas também indispensável para a real proteção de bens jurídicos, missão primordial do direito penal. De igual modo, deve ser a pena, sobretudo em um Estado constitucional e democrático, sempre justa e necessária, inarredavelmente adstrita à culpabilidade (princípio e categoria dogmática) do autor do fato punível)”. PRADO, Luiz Regis. Teoria dos fins da pena: breves reflexões. In: Ciências penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, a. 1, n. 0, 2004, p. 158. De qualquer forma, vale a advertência de Zaffaroni, para quem “as combinações teóricas, em matéria de pena, são muito mais autoritárias do que qualquer uma das teorias puras, pois somam as objeções de todas as que pretendem combinar e permitem escolher a pior decisão em cada caso. Não se trata de uma solução jurídico-penal, mas de uma entrega do direito penal à arbitrariedade e da conseqüente renúncia à sua função mais importante”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do Direito Penal. v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 141.
141
prevalecer a ordem jurídica e também determinados fins político-criminais, com o fim de
prevenir futuros crimes. É de ver, contudo, que a simples adição dessas teorias destrói a lógica
imanente à concepção que aqui informa a discussão da legitimação da intervenção penal, uma
vez que, em lugar de justificar uma limitação da intervenção do Estado na esfera particular do
indivíduo, acabaria por aumentar o âmbito de aplicação da pena, a qual se converteria assim
num meio de reação apto para qualquer realização.
Os efeitos da teoria não se suprimem em absoluto entre si; ao contrário,
multiplicam-se, o que é gravíssimo à concepção de Estado democrático de Direito. Aliás, se a
pena possui todas essas finalidades (retribuição, prevenção prevenção específica e prevenção
geral), só não tem numa maior medida corroborado para uma ruptura do próprio sistema penal
porque as decisões valorativas constitucionais e as exigências de razão sócio-política têm
pragmaticamente orientado aqueles que operam o sistema de justiça criminal.
Roxin, diante desse quadro, procura enfrentar e lastrear sua teoria unificadora
segundo a concepção de que o atual direito penal enfrente o indivíduo de três maneiras:
ameaçando-o com penas, impondo essas penas e executando-as. No entanto, assevera que
essas três esferas de atividade estatal demandam justificação cada uma em separado. Os
distintos momentos de realização do direito penal estruturam-se uns sobre os outros e,
portanto, cada etapa seguinte deve acolher em si os princípios da etapa precedente. O seguinte
excerto bem esclarece essa compreensão:
Cada uma das teorias da pena dirige a sua visão unilateralmente para determinados aspectos do direito penal – a teoria da prevenção especial para a execução, a idéia da retribuição para a sentença e a concepção da prevenção geral para o fim das cominações penais – e descura as restantes formas de aparecimento do poder penal,
227 Cf. HIRECHE, Gamil Föppel El. A função da pena na visão de Claus Roxin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, passim.
142
embora cada uma delas implique intervenções específicas na liberdade do indivíduo.228
6.1. PRIMEIRO MOMENTO DE REAL IZAÇÃO DO DIREITO PENAL : O ÂMBITO DE
INCIDÊNCIA
Impõe-se, então, questionar o conteúdo do mandamento penal proibitivo. A
resposta a isso depende do campo de atuação que é atribuído ao Estado moderno.229 O direito
penal, frise-se, não se presta a corrigir, por meio de sua autoridade advinda do Estado,
moralmente os particulares. Sua função limita-se, antes, a criar e garantir a um grupo reunido,
interior e exteriormente, no Estado, as condições de uma existência que satisfaça as suas
necessidades vitais. Para o direito penal, tal assertiva significa que seu fim somente pode
derivar do Estado e, como tal, apenas pode consistir em garantir a todos os cidadãos uma vida
comum livre de perigos. A justificação desse mister atribuído ao direito penal – justificação
dessa tarefa, mas não de todos os meios aplicáveis para a sua consecução – resulta
diretamente do dever que incumbe ao Estado de garantir a segurança dos seus membros.230
Em outras palavras, dentro de um contexto histórico e social, os pressupostos
imprescindíveis para uma existência em comum concretizam-se numa série de condições
valiosas, como a vida, a integridade física, a liberdade de atuação, a propriedade etc., ou seja,
concretizam-se justamente em bens jurídicos. O direito penal tem que assegurar esses bens
jurídicos e o faz por meio da punição da violação desses bens em determinadas condições.
Além dessa proteção aos bens jurídicos, no Estado contemporâneo, surge a necessidade de
assegurar, se necessário até mesmo por intermédio do direito penal, o cumprimento das
228 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 26-27. 229 Como já afirmado, o direito penal reflete justamente o modelo de Estado a que se aspira. 230 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 27.
143
prestações de caráter público de que depende o indivíduo no quadro da assistência social por
parte do Estado.
Com esta dupla função, o direito penal realiza uma das mais importantes das numerosas tarefas do Estado, na medida em que apenas a proteção dos bens jurídicos constitutivos da sociedade e a garantia das prestações públicas necessárias para a existência possibilitam ao cidadão o livre desenvolvimento da sua personalidade, que a nossa Constituição considera como pressuposto de uma condição digna.231
Dessa dupla função do direito penal, extraem-se duas importantes conseqüências.
6.1.1. Princípio da subsidiariedade
O direito penal é de natureza subsidiária. Somente se ocupa de lesões a bens
jurídicos e delitos contra fins de assistência social, desde que tal intervenção seja
indispensável a uma vida em comum ordenada. Onde os demais meios do direito, que não o
penal, bastem, o direito penal deve retirar-se. Por mais veemente que seja a reação até mesmo
da sociedade, só se pode recorrer ao direito penal em último lugar. Ao valer-se do direito
penal em situações para as quais bastem outros procedimentos mais suaves para preservar ou
reinstaurar a ordem jurídica, a intervenção estatal carecerá da legitimidade que lhe advém da
necessidade social.
Desse modo, o bem jurídico recebe uma dupla proteção: por intermédio do direito
penal e ante o direito penal, cuja utilização exacerbada provoca precisamente as situações que
pretende combater.232 Essa idéia de subsidiariedade, donde se extrai o caráter fragmentário da
intervenção penal, compreende indubitavelmente todo um programa de política criminal. São
evidentes os sinais de adoção desse programa: (i) não pertencem ao direito penal meros
regulamentos de ordenação (nesses casos, bastaria a mera sanção administrativa); (ii) a
231 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 28. 232 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 28.
144
assistência social possui prioridade em importância (o direito penal não se presta a integrar
aquelas pessoas que estão à margem do estrato social – mendigos, prostitutas etc. –; ao
contrário, a incidência das sanções penais faria perder em definitivo tais pessoais sobre as
quais pairava perigo de desagregação).
Sob essa ótica de intervenção fragmentária, subsidiária, revela-se imperioso todo
um reexame da ordem jurídica, a fim se utilizar o direito penal para proteger bens jurídicos
essenciais e assegurar os objetivos das prestações necessárias para a existência, apenas onde
não bastem para a sua prossecução meios menos gravosos.233 A valer, a penalização da
bagatela só possui o efeito de favorecer tanto a criminalidade, seja a sua prática, seja a figura
de seu praticante.
6.1.2. Princípio da lesividade
O legislador não possui competência para, em absoluto, castigar pela sua
imoralidade condutas não lesivas a bens jurídicos. Não se presta o direito penal a punir
condutas amorais ou contrárias à moral vigente de um determinado estrato social. As
cominações penais só estão justificadas se tiverem em conta a dupla restrição contida no
princípio da proteção subsidiária de prestações e bens jurídicos. Nessa linha de idéias, atento
às finalidades por ele mesmo esboçadas do direito penal, entende Roxin que as críticas
dirigidas às teorias tratadas sobre a pena de prevenção geral esmaecem-se se o direito penal
cultivar esse papel duplo por ele propugnado.
Tudo que se pode deduzir contra uma graduação da pena baseada em pontos de vista de prevenção geral – que conduz a penas excessivamente graves e que não se pode justificar quanto à pessoa do delinqüente – não afeta de modo algum as disposições penais enquanto tais. Em contrapartida, a objeção de que o fim de prevenção geral não é adequado para limitar o poder penal do Estado, é em si convincente mesmo no que diz respeito às cominações penais, eliminando-se, todavia, com a nossa restrição dessa finalidade à proteção de bens jurídicos e prestações, assim como à
233 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 29.
145
subsidiariedade do direito penal no cumprimento de tais tarefas. E, por último, no que diz respeito aos argumentos contra a eficácia político-criminal das proibições jurídico-penais, há que ter em conta que as cominações penais representam apenas a primeira das três etapas da eficácia do direito penal, as quais em conjunto e apenas em conjunto, esgotam o sentido e a missão do direito penal.234
Em última análise, as cominações penais justificam-se — apenas e sempre — pela
necessidade de proteção preventivo-geral e subsidiária de bens jurídicos e prestações.235
6.2. SEGUNDO MOMENTO DE REALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL : APLICAÇÃO E
MENSURAÇÃO DA PENA
Relativamente à fase de aplicação e de graduação da pena, Roxin sustenta a
necessidade de introdução do princípio da prevenção geral na própria atividade judicial, ao
argumento, já utilizado por Feuerbach, de que o fim último da aplicação de uma pena desnuda
a intimidação dos cidadãos por meio da lei.236
De um lado, ao deparar-se com a recusa à teoria da prevenção geral, bem assim às
críticas dirigidas à prevenção geral, Roxin aponta que a exigência de punição conforme o
direito ao delinqüente veicula uma proteção que não se confere consoante dadas
circunstâncias, mas que se traduz numa garantia jurídica contra o exercício de arbitrariedades
por parte do Estado. A decantada concepção de inviolabilidade do ordenamento jurídico
traduz idéia própria da prevenção geral, “embora certamente não se possa entender aqui este
conceito no sentido de mera intimidação, devendo acrescentar-se-lhe a significação mais
234 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 31-32. 235 Acerca do princípio da lesividade, Luiz Flávio Gomes, que prefere a nomenclatura “princípio da ofensividade”, em trabalho completo acerca do tema, salienta que tal princípio possui função dogmática (interpretativa). Entende que o princípio da ofensividade, além de desenvolver-se no plano político-criminal e ter a pretensão de limitar o legislador no momento de suas decisões criminalizadoras, está predestinado a desempenhar função no plano interpretativo e aplicativo da lei penal. Com isso, presta-se a constatar, após o cometimento do fato criminoso, a concreta presença de uma lesão ou de um perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido. Cf. GOMES, Luiz Flávio. Princípio da ofensividade no direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, passim, especialmente p. 99 et seq. 236 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 32.
146
ampla de salvaguarda da ordem jurídica na consciência da comunidade”.237 Nesse particular, é
de ver que a concordância com a impunidade, ainda que em casos especiais numa constelação
de casos, implicaria, no futuro, a alegação a favor de qualquer delinqüente de que ele poderia
cometer, sem qualquer castigo, pelo menos uma vez, um fato: com isso, a ordem jurídica
perderia, a prazo, a sua eficácia. Vale lembrar que, sob uma perspectiva hegeliana, a pena “é
supressão do crime que de contrário se imporia e é o estabelecimento do direito”.238
De outro lado, entende ele que, na maioria dos casos de aplicação de uma pena,
inclui-se igualmente um elemento de prevenção especial que intimidará o delinqüente face a
uma possível reincidência e manterá a sociedade segura deste, pelo menos durante o
cumprimento da pena privativa de liberdade. No entanto, mesmo a prevenção especial da
sentença penal também veicula um fim de prevenção geral na medida em que traduz a pena
uma salvaguarda da própria ordem da comunidade. A restrição da liberdade do delinqüente,
pois, não se faz em seu próprio favor; o fim da pena traduz-se na salvaguarda da ordem da
comunidade, de modo que serve ela a outros e não ao próprio delinqüente. A discussão
relevante por trás dessa assertiva diz respeito à conformidade do meio ao direito. Roxin, na
esteira do que já apontava Kant, registra que “um ordenamento jurídico para o qual o
particular não é objeto, mas o titular do poder estatal, não o pode desvirtuar convertendo-o em
meio de intimidação”, para em seguida pontificar que “a aplicação da pena estará justificada
se se conseguir harmonizar a sua necessidade para a comunidade jurídica com a autonomia da
personalidade do delinqüente, que o direito tem de garantir”.239
237 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 33. 238 Rechtsphilosophie. Apud: ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 33. 239 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 34.
147
Dessas concepções, é possível extrair conseqüências não apenas à aplicação da
pena, mas também ao próprio instrumental de realização do direito penal (processo penal).
Não há como admitir, em primeiro lugar, qualquer submissão do particular a trato que o prive
da livre determinação de suas declarações. Numa teoria da pena, tal pressuposto de
justificação limita com robustez a idéia de prevenção geral.
Além disso, a pena não pode, segundo Roxin, ultrapassar a medida da culpa.
Embora não se preste a fundamentar o poder penal do Estado, a culpa serve para limitar a
intervenção estatal. Não há como negar que as idéias de dignidade humana e autonomia da
pessoa orientam e presidem a elaboração da Carta Política, que toma o homem como ser
capaz de culpa e responsabilidade. Embora seja inviável a demonstração empírica da
consciência e liberdade de que goza o homem para orientar sua existência segundo um
sentido, essa autonomia de vontade evidencia-se como legítima à decisão da sociedade de
criar uma ordem livre e conforme ao Estado de Direito.
Assim, “o conceito de culpa – que enquanto realidade experimental não se pode
discutir – tem a função de assegurar ao particular que o Estado não estenda o seu poder penal,
no interesse da prevenção geral ou especial, para além do correspondente à responsabilidade
de um homem concebido como livre e suscetível de culpa”.240 O conceito de culpa, portanto,
utilizado para restringir o poder da autoridade, atua exclusivamente em favor do particular e
das suas possibilidades de desenvolvimento, deixando em suspenso a questão do livre arbítrio,
que até hoje carece de resposta.
A questão de saber se a culpa concede um direito de retribuição ao Estado, ou se ela constitui um meio de manter dentro de limites aceitáveis os interesses da coletividade face à liberdade individual, parece-me mais importante para o direito penal do que a existência de culpa em geral. A resposta só pode apontar no sentido da segunda alternativa; não apenas devido, como se expôs anteriormente, à duvidosa
240 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 36.
148
idéia de retribuição, mas sobretudo porque a dignidade do homem proclamada pela Lei Fundamental é um direito de proteção frente ao Estado e não pode ser transformada numa faculdade de ingerência.241
Roxin, portanto, considera justa e legítima a imposição de pena ao delinqüente,
que estará obrigado a suportá-la em atenção à comunidade, porque, como membro dela, terá o
delinqüente de responder pelos seus atos na medida de sua culpa, para a salvaguarda da ordem
dessa comunidade. Não se cuida de utilizar o particular como meio para os fins dos outros,
mas de atribuir a ele também a responsabilidade pelo destino, confirmando a sua posição de
cidadão com igualdade de direitos e obrigações. A não aceitação da justificação da pena, sob
esse argumento, implicaria, para o penalista alemão, a negativa de existência de valores
públicos e, com eles, o sentido e missão do Estado.242
Logo, o fim da prevenção geral da punição apenas é alcançável na culpa
individual: ir além disso implica inarredavelmente vulneração da dignidade humana. E o
princípio da culpabilidade, se for separado da teoria da retribuição — à qual se considera
equivocadamente ligado de modo indissolúvel -, revela-se como um meio imprescindível para
limitar o poder penal estatal num Estado de Direito. Nesse particular, seria aceitável até
mesmo que uma pena fosse aplicada inferiormente à culpa do delinqüente (o que seria
impensável numa perspectiva eminentemente retribucionista).
No entanto, essa aplicação de uma pena inferior à culpa seria permitida e até
mesmo necessária, consoante o princípio da solidariedade utilizado para justificar as
cominações penais, se, no caso concreto, se restaurar a paz jurídica com sanções menos
graves: trata-se do postulado da necessidade da pena, que deve informar justamente esse
momento de aplicação e graduação da pena.
241 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 37.
149
Assim, em apertada síntese sobre esse segundo momento de realização do direito
penal (aplicação e mensuração da intervenção penal), a aplicação da pena serve para a
proteção subsidiária e preventiva, tanto geral como individual, de bens jurídicos e de
prestações estatais, por meio de um processo que assegure a autonomia da personalidade e
que, ao impor a pena, esteja limitado pela medida da culpa. Conserva-se, pois, o princípio da
prevenção geral, reduzido às exigências do Estado de Direito e completado com as
componentes de prevenção especial da sentença; mas, simultaneamente, por intermédio de
uma função limitadora dos conceitos de liberdade e de culpa, sob uma perspectiva que se
coadune com os ditames da Carta Política, desvanecem-se as críticas então dirigidas à
concepção que gradue a pena segundo esse mesmo postulado de prevenção geral.243
6.3. TERCEIRO MOMENTO DE REALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL : A EXECUÇÃO DA
PENA
A execução da pena somente se justifica se prosseguir a meta de servir
exclusivamente a fins racionais e de possibilitar a vida humana em comum e sem perigos. Em
outras palavras, a execução da pena deve ter como conteúdo a reintegração do delinqüente à
comunidade, mirar como escopo justamente uma execução ressocializadora, em que
coincidam prévia e amplamente os direitos e deveres da coletividade e do particular.
A idéia de execução ressocializadora, no entanto, não se presta por si só a
justificar o direito penal. Roxin salienta a importância de se contextualizar sua concepção de
execução ressocializadora face às etapas precedentes de realização do direito penal. Os
esforços de ressocialização apenas são legítimos e bem sucedidos no sentido descrito se
verificados dentro dos limites delineados para a intervenção penal estatal. A garantia
242 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 37.
150
constitucional da autonomia da pessoa impõe o respeito, na execução da pena, à estrutura da
personalidade do delinqüente, ou seja, ainda que possua uma eficácia ressocializadora, será
inadmissível a utilização de qualquer tratamento coativo que interfira nessa estrutura de
personalidade.244
De qualquer forma, “tanto quanto a autonomia da personalidade do condenado e
as exigências iniludíveis da prevenção geral o permitam, os únicos fins legítimos de execução
são os ressocializadores”.245 E mais: o próprio conceito de ressocialização deve atentar para
uma acepção mais ampla, que permita, por exemplo, maior realce à idéia de reparação dos
danos causados pela conduta delitiva. A execução da pena deve despertar a consciência da
responsabilidade e ativar e desenvolver todas as forças do delinqüente e muito em particular
as suas especiais aptidões pessoais, sempre de modo a desenvolver sua personalidade, e não
ofendê-la, denegri-la ou humilhá-la. Para tanto, deve a execução da pena abrir-se a uma
abordagem multidisciplinar, que abarque considerações oriundas da Medicina, Psicologia,
Pedagogia etc.
É justamente a execução da pena que constitui a parte mais débil da práxis do
direito penal contemporâneo. Qualquer esforço ressocializador, é certo, fracassa quando o
delinqüente não está disposto a fomentá-lo, até mesmo porque jamais será possível acabar
com a criminalidade (que, como já visto, evidencia um componente normal da estrutura
social); no entanto, tal constatação não desvincula a sociedade de sua obrigação face ao
delinqüente. Assim como este é co-responsável pelo bem-estar da comunidade que integra,
também essa comunidade não pode ilidir a responsabilidade pela sua sorte. Essa
243 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 40. 244 É essa assertiva que retira qualquer fundamento de validade, por exemplo, à concepção de pena de castração para crimes sexuais. 245 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 41.
151
compenetração ou conjugação de esforços – oriunda da concepção de co-responsabilidade —
é que se revela hábil a provar a eficácia na execução da pena e na posterior reintegração do
delinqüente na comunidade.
Com isso, o sentido e os limites da pena estatal justificam-se na missão que tem a
intervenção penal de proteção subsidiária de bens jurídicos e prestações de serviços estatais,
mediante prevenção geral e especial, de salvaguarda da personalidade no quadro traçado pela
medida da culpa individual.246
Em apertada síntese do exposto acerca da teoria eclética, pode-se afirmar que
Roxin trata de superar as simples teorias mistas, que apenas justapõem critérios, por meio de
uma teoria que diferencia os seguintes momentos: (i) cominação penal – em que surge em
primeiro plano a prevenção geral, entendida de forma ampla no sentido sustentado por
Hassemer -; (ii) imposição e medição da pena, que seria o momento da realização da Justiça –
a valer, reflete a abordagem retributivo-preventiva geral, semelhante a Merkel e Jakobs -; e,
por último, (iii) execução da pena, que é o momento da prevenção especial, da reinserção ou
ressocialização do delinqüente. Roxin sustenta, portanto, a existência de um processo
dialético, em que o momento de retribuição não aparece de modo abstrato, para cumprir um
ideal absoluto de Justiça, mas limitado e condicionado à realidade imposta pelos momentos de
prevenção geral e especial. De qualquer forma, Roxin aponta que um momento deve ser
preponderante: o da prevenção especial (como asseverado no Projeto alemão Alternativo de
1966). Para uma concepção moderna a ressocialização deve ser considerada como o fim
principal da pena, pois serve tanto ao delinqüente como à sociedade e é a que mais se
aproxima da meta de uma coexistência de todos os cidadãos em paz e liberdade.
246 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 43.
152
São essas as bases da teoria unificadora dialética propugnada por Claus Roxin,
claramente distinta das teorias monistas (teoria da retribuição, teoria da prevenção geral,
teoria da prevenção especial) e das teorias unificadoras por adição das concepções monistas.
As teorias monistas caem por terra porque a realização estrita de um só princípio
ordenador tem forçosamente como conseqüência a arbitrariedade e a falta de verdade247, ao
passo que as teorias unificadoras aditivas, que meramente acumulam diversos pontos de vista
particulares, sofrem do mesmo destino, além de, se tomadas de modo supérfluo, nada dizerem
ou, se tomadas literalmente, serem muito perigosas. A teoria unificadora dialética, segundo
Roxin, pretende evitar os exageros unilaterais e dirigir os diversos fins da pena para vias
socialmente construtivas, de sorte a obter o equilíbrio de todos os princípios mediante
restrições recíprocas. Valendo-se de uma concepção de Estado que reúne os princípios do
Estado social e do Estado liberal, assevera que
(…) a idéia de prevenção geral vê-se reduzida à sua justa medida pelos princípios da subsidiariedade e da culpa, assim como pela exigência de prevenção especial que atende e desenvolve a personalidade. A culpa não justifica a pena por si só, podendo unicamente permitir sanções no domínio do imprescindível por motivos de prevenção geral e enquanto não impeça que a execução da pena se conforme ao aspecto da prevenção especial. (…) a totalidade dos restantes princípios preservam a idéia de correção dos perigos de uma adaptação forçada que violasse a personalidade do sujeito.248
6.4. CRÍTICAS À TEORIA DE CLAUS ROXIN : ACRÉSCIMOS E SUPERAÇÕES
O direito penal somente se presta a fortalecer a consciência jurídica da
coletividade no sentido da prevenção geral se preservar ao mesmo tempo a individualidade de
quem a ele está sujeito. Aquilo que a sociedade faz em favor do delinqüente será, ao cabo,
mais proveitoso para ela própria, uma vez que só se pode ajudar o criminoso a superar a sua
inidoneidade social de uma forma igualmente frutífera para ele e para a comunidade se, a par
247 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 43.
153
da consideração de sua debilidade e da sua necessidade de tratamento, não se perder de
consideração a imagem da personalidade responsável para a qual ele aponta.
No entanto, é possível vislumbrar críticas. O critério desenvolvido por Roxin pode
também ceder à arbitrariedade, o que somente seria impedido pelo condicionamento que lhe
impõem outros momentos e porque a pena não pode superar a gravidade do fato e o grau de
censurabilidade que recai sobre o delinqüente (função limitadora do princípio da
culpabilidade). A abordagem de Roxin é essencialmente preventiva, uma vez que o momento
retributivo resta totalmente esvaziado de seu conteúdo clássico e somente se evidencia como
manifestação de Justiça no sentido de limite imposto pela culpabilidade e pela prevenção,
dentro desta, com preponderância à idéia de ressocialização.
Registre-se que também Figueiredo Dias assinala uma natureza exclusivamente
preventiva das finalidades da pena.
O direito penal e o seu exercício pelo Estado fundamentam-se na necessidade estatal de subtrair à disponibilidade (e à “autonomia”) de cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensáveis ao funcionamento, tanto quanto possível sem entraves, da sociedade, à preservação dos seus bens jurídicos essenciais; e a permitir por aqui, em último termo, a realização mais livre possível da personalidade de cada um enquanto pessoa e enquanto membro da comunidade. Se assim é, então também a pena – na sua ameaça, na sua aplicação concreta e na sua execução efetiva – só pode perseguir a realização daquela finalidade, prevenindo a prática de futuros crimes.249
Na visão do penalista lusitano, prevenção geral (positiva ou negativa) e prevenção
específica (positiva ou negativa) devem coexistir e combinar-se do melhor modo e até o limite
possível, porque todas se voltam ao propósito comum de prevenir a prática de futuros crimes.
Para ele, o problema reside no modelo de medida da pena, uma vez que releva sim questionar
248 ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 44. 249 DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 129-130.
154
como se devem comportar mutuamente as duas espécies de finalidades no momento decisivo
de determinação do quantum exato da pena concretamente pelo juiz.
É possível assinalar, contudo, uma aparente contradição na abordagem roxiniana:
primeiro se concebe a culpabilidade como conceito fictício de raízes metafísicas, incapaz de
por si só servir de fundamento à imposição de uma pena; logo em seguida, atribui-se a esse
conceito fictício nada menos que uma função limitadora do poder de intervenção estatal. A
concepção de Roxin tampouco consegue superar os obstáculos postos à elaboração de uma
concepção alternativa que não se ampare somente numa crítica justa ao retribucionismo, mas
que ao mesmo tempo ofereça um sistema adequado de garantias ao indivíduo.250
Demais disso, uma abordagem vincada no interacionismo simbólico tenderia a um
sistema penal de caráter dialogal, de sorte a deixar ao sistema normativo a função de regular
essa interação. Ao regular essa interação, o que se protegeria efetivamente seria a
possibilidade de participação social, a confiança no sistema, apesar da infração, e ao mesmo
tempo a criação de possibilidades de participação, que substancia exatamente o próprio
sentido da ressocialização. Com isso se superaria um sistema puro de penas, concebido de
modo retributivo como pura garantia, e um sistema de medidas, concebido em forma de
prevenção especial como puro tratamento: um totalmente abstrato e o outro completamente
utilitário, ambos essencialmente metapenais, seja num sentido metafísico seja num sentido
metassocial.
É de ver, contudo, que tal abordagem resulta, quando cotejada com as opções
levadas a efeito por Roxin, demasiadamente formal e mais como uma aspiração que como um
sistema claro de garantias e efeitos concretos claramente delimitados. Nesse sentido, essa
250 As críticas são desenvolvidas por Bustos Ramírez (Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p.176).
155
abordagem própria do interacionismo simbólico, representada pelo alemão Rolf-Peter Callies,
padece de uma maior vagueza e imprecisão que o sistema proposto por Roxin.251
De qualquer modo, essas duas últimas posturas teóricas oferecem uma melhor
compreensão da pena, permitem uma maior individualização de suas funções e, com isso,
possibilitam a configuração de maior controle acerca dos riscos que cada critério preventivo
representa.
Mir Puig,252 por seu turno, sustenta uma abordagem que revisita as teorias
anteriores. Para ele, o modelo de Estado democrático de Direito (na Espanha) exige que a
pena cumpra uma missão (política) de regulação ativa da vida social que assegure seu
funcionamento satisfatório, mediante a proteção dos bens dos cidadãos. Essa missão só pode
se concretizar por meio de uma função de prevenção a ser atingida pela pena. Diante do risco
de todo direito penal que pretenda ser eficaz aproximar-se do terror estatal, Mir Puig assevera
que a função de prevenção deve manter-se estritamente limitada pelos princípios que regem
justamente um Estado democrático de Direito: proteção de bens jurídicos e
proporcionalidade;253 princípio da legalidade; servir à maioria com respeito à minoria.
Convém sublinhar que a estrita limitação das finalidades a serem exercidas pelo direito penal
251 Theorie der Strafe im demokratischen und sozialen Rechtsstaat, 1974, p. 176 et seq. Apud: RAMÍREZ, Juan Bustos. Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p.177. 252 PUIG, Santiago Mir. Introducción a las bases del derecho penal: concepto y método. Barcelona: Bosch, 1976, p. 60 et seq. 253 A respeito da proporcionalidade, Häberle salienta que o princípio da ponderação de bens atua como parâmetro que determina o modo e a medida dos limites admissíveis aos direitos fundamentais. Adquire, portanto, relevância na medida em que serve de parâmetro à função do legislador de delimitar o direito fundamental frente a bens jurídicos de igual ou superior valor. O legislador tem, por um lado, esse encargo de proteger os bens jurídicos e, por outro, de atuar em prol dos próprios direitos fundamentais, em favor, em suma, da totalidade da Constituição. O direito penal não cuida apenas de limitações a direitos fundamentais. O legislador intervém tanto para assegurar quanto para limitar direitos fundamentais, a depender da perspectiva adotada. HÄBERLE, Peter. La garantia del contenido esencial de los derechos fundamentales. Tradução de Joaquín Brage Camazano. Madrid: Dykinson, 2003, p. 175 et seq. Os direitos fundamentais atuariam, então, como verdadeiro complexo de limites. Ao legislador penal caberia também, assim, uma função criativa tomando como marco a Constituição, para encontrar diferentes regulações, novas figuras jurídicas e institutos, tudo de sorte a assegurar o caráter subsidiário da intervenção penal.
156
vincula-se ao modelo de Estado pretendido, justamente como se assevera no transcurso de
toda a investigação ora desenvolvida.
Desse modo, Mir Puig supera as concepções anteriores na medida em que, por
uma parte, delimita de forma clara e precisa a função da pena e, por outra, escapa de qualquer
tipo de formalismo, haja vista que assinala concretamente a função de prevenção. Afasta-se de
Roxin e do Projeto Alternativo alemão de 1966, reconheça-se, porque registra dentro da
prevenção a preponderância da prevenção geral. A prevenção especial só poderá ser atingida
desde que dentro do marco da prevenção geral. A prevenção, para o autor catalão, supõe que a
pena tenha eficácia motivadora e, por conseqüência, que o hoje seja suscetível de motivação.
Assim, Mir Puig alcança o delineamento de um sistema acabado em relação à pena e à sua
colocação na teoria do delito.254
De qualquer forma, ainda assim é possível vislumbrar alguns pontos de
controvérsia ou mesmo de críticas na abordagem de Mir Puig. O primeiro deles refere-se à
eficácia dos controles garantidores do respeito à idéia de prevenção da pena, problema
comum, na verdade, a todas as teorias. O segundo diz respeito ao problema da motivação, isto
é, se realmente se pode partir do pressuposto certo de que a norma penal motiva, o que requer
uma investigação empírica que até o momento não alcançou qualquer conclusão segura a
respeito. De qualquer modo, quer parecer que Mir Puig se refira a uma motivação no sentido
concreto, e não abstrato. O terceiro, e último, guarda relação com a proeminência da
prevenção geral sobre a especial, de modo a fazer prevalecer ma razão social sobre a razão do
254 Benítez registra que, segundo Callies e Mir Puig, o bem jurídico possui sempre um conteúdo social, a proteção de bens jurídicos é – em todo caso – proteção do sistema social, ao passo que a tese de Roxin reserva um âmbito de estrita referência individual, valorativa, aos bens jurídicos, em que a proteção destes significa diretamente proteção de valores individuais, ou estados naturais. De qualquer sorte, ambas as concepções são muito próximas e guardam raízes no sistema de garantias liberais, de modo que seguem também esboçando um direito penal afeito ao princípio da culpabilidade. Cf. BENÍTEZ, José Manuel Gómez. Sobre la teoría del “bien jurídico” (aproximación al ilítico penal). In: Revista de la Facultad de Derecho de la Universidad
157
indivíduo, o que poderia implicar perigo às bases de um Estado democrático de Direito, cujo
pilar fundamental é o reconhecimento da dignidade da pessoa e sua precedência em face do
Estado.
Hassemer assevera que a capacidade de motivação pela ameaça de pena e pela
execução da pena encontra restrições que derivam da rigidez jurídico-racional da idéia de
prevenção geral, que, segundo ele, menospreza amiúde a “insensatez” dos homens.
A teoria da prevenção geral espera por um homo oeconomicus, que não se orienta pelas regras gerais. Ela pressupõe que o autor punível em potencial pondere, uma em relação à outra, as vantagens e desvantagens do ato ruim e dessa forma se desinteresse por ele, porque o sistema jurídico-penal, com a ameaça de pena e a execução da pena, cuidou para que não valesse a pena. Esta construção não se dá conta de uma série de acontecimentos empíricos que a contrariam de maneira obstinada.255
O mesmo Hassemer assevera que o mecanismo de intimidação mostra-se
extremamente improvável empiricamente e, além disso, também seria notoriamente
insuportável. “A idéia do efeito da pena da teoria da prevenção geral é em sua racionalidade
mecanicista uma idéia de desprezo ao homem. A ameaça de pena e a execução da pena não
são também os instrumentos que poderiam conservar o indivíduo parte no contrato social com
uma boa conduta”.256 Assim, idéia da intimidação provocada pela pena seriam empírica e
normativamente duvidosa.
De qualquer modo, a abordagem de Mir Puig reveste-se de fundamental
importância por propor um sistema claramente alternativo, em seu conjunto, em relação à
teoria retributivista, sobre bases — modelo de Estado democrático de Direito e a pena como
Complutense. Nueva Epoca. Madrid: Universidad Complutense, Facultad de Derecho, outono, 1983, p. 109-110. 255 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 408. 256 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 412.
158
uma missão política de regulação ativa da vida social – que surgem inafastáveis para qualquer
sistema que se proponha como razoável e consentâneo com ideais humanistas.
A abordagem de Juan Bustos Ramírez257, por sua vez, toma por base inicial a
concepção de Mir Puig. Distingue a abordagem da pena em dois aspectos: um, o que é a pena,
o outro, a imposição da pena. Em outras palavras, diferencia a razão em si da pena e a razão
prática da pena.
No primeiro aspecto, a pena é uma autoconstatação ideológica do próprio Estado,
não é neutra porque o próprio Estado não é neutro. Por meio da pena o Estado demonstra sua
existência frente a todos os cidadãos, registra que o sistema por ele regido segue vigente. A
principal tarefa de um Estado democrático, no que se diferencia em relação a outras formas de
Estado, é justamente a constante revisão de sua própria autoconstatação e conseqüentemente
dos bens jurídicos por ele protegidos.
Assinalar uma função maior da pena dirigida à prevenção implicaria reconhecer,
de um lado, uma função empiricamente não demonstrável, embora por definição seu efeito
seja verificável apenas na realidade concreta, e, de outro lado, implicaria conceder a um
Estado, imperfeito no seu desenvolvimento democrático e sujeito a uma série de interesses,
um direito de intervenção demasiadamente robusto por meio da violência na vida dos
cidadãos. Certamente que poderão produzir-se, como efeito da autoconstatação do Estado, a
intimidação ou o fortalecimento da consciência jurídica. No entanto, tais efeitos em nada
acrescem a essa autoconstatação: ainda que a pena não atinja esses efeitos, ela prosseguirá
sendo o que é.
257 Bases críticas de um nuevo Derecho Penal. Bogotá: Editoral Temis, 1982, p.179 et seq.
159
Além disso, para que se produza um efeito preventivo, que supõe a motivação do
ser humano pela norma penal, seria necessária a existência de um consenso sobre as normas
penais. Nada obstante, as investigações empíricas têm demonstrado exatamente o contrário: é
o dissenso que lastreia a própria existência das normas jurídicas, do ponto de vista de sua
legitimidade, uma vez que provêm exatamente de uma ideologia hegemônica dominante na
sociedade.
Ao preocupar-se tão somente com os efeitos, reclamos de eficácia acabariam por
levar o Estado de Direito democrático a interessar-se apenas por estabelecer mecanismos de
obediência, e não de legitimação, com o que desaparece ou se põe em risco o próprio Estado
de Direito que se vê transformado em autoritário ou absolutista. Se os demais controles do
Estado fracassaram (educação, família, escola, meios de informação etc.), mais aptos,
justamente porque não são violentos, como conceder à pena, que é sempre violenta e coativa,
uma função motivadora de acordo com a dignidade do ser humano?
Atribuir à pena uma função motivadora nesses moldes implica ignorar os demais
controles, o que pode provocar o perigoso argumento de que, se as penas não são
suficientemente graves para alcançar uma motivação, seria necessário aumentá-las ou torná-
las mais graves. A pena é sempre coação e a coação “força” atemoriza, mas não motiva, no
sentido de obrigação ética ou bem da decisão pessoal autêntica e não alienada. No fundo,
salienta Bustos Ramírez, tanto as teorias absolutas como as relativas partem do critério da
motivação e justamente por isso são concepções unilaterais. Tanto pena como delito são um
produto do Estado, é ele quem os define e quem os impõe. É certo que o delito é realizado
pelo sujeito, mas isso não significa que o delito seja produto desse mesmo sujeito.
160
A pena e o delito como seu pressuposto são parte, portanto, da autoconstatação
ideológica do Estado. Um Estado democrático de Direito tem que reconhecer, para ser assim,
a pessoa como uma entidade ética diferente do Estado, autônoma e superior, pois constitui sua
finalidade. Com efeito, a entidade ética do Estado só se entende e se legitima a serviço da
entidade ética do homem. A pena reflete apenas a autoconstatação ideológica do Estado, de
seu sistema de valores. É por ela que o Estado tende a não se preocupar com a efetividade das
normas (recorde-se nesse particular sua característica contrafática).
Nesse passo, a missão crítica do operador do direito, especialmente do direito
penal, deve estar dirigida à autoconstatação ideológica do Estado e conseqüentemente aos
objetos tomados como dignos de proteção. Daí a necessária revisão dessa autoconstatação e
das definições do que venha a ser protegido pela norma penal, a fim de se levar a cabo tanto
uma política de descriminalização como também de criminalização por outra perspectiva.
A imposição da pena, com isso, só pode ter um aspecto individual, isto é, dirigido
à pessoa em concreto: tal medida tem como base fundamental a consideração da dignidade da
pessoa, que implica que o homem seja um fim em si mesmo e, portanto, não possa ser
instrumento do Estado para os seus fins. Em última análise, cuida-se de reavivar os postulados
lançados por Beccaria, no sentido que é preferível evitar os delitos que castigá-los, de modo a
conduzir os homens ao maior ponto de felicidade possível ou ao menor de infelicidade.258
Reconhecer a dignidade da pessoa supõe, primeiro, evitar a própria imposição da
pena por meio da oferta, pelo Estado, dos meios mais amplos em todos sentidos para que não
se cometam delitos e que ao mesmo tempo as penas estejam limitadas ao vínculo necessário
para ter unidos os interesses particulares, isto é, nada além dos estritos limites da necessidade
258 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. ed. Tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 130.
161
de autoconstatação indispensáveis do Estado. Cumpre reconhecer o Estado, em seu conjunto,
como co-responsável pelo delito, uma vez que é ele próprio que o fixa e, portanto, tem que se
preocupar também com o estabelecimento de condições mais favoráveis para que o indivíduo
não venha a delinqüir.
O delito é um problema de definição, como já se observou à exaustão, razão pela
qual se refuta a concepção de ressocialização, que parte da chamada ideologia da
diferenciação, de que há pessoas boas e más, normais e anormais ou perigosos, de que há uma
ordem absoluta verdadeira e outras ordens falsas, de que há pessoas sãs e outras necessitadas
de tratamento, enfermas. Certo é que algumas pessoas, por diferentes razões,
fundamentalmente sociais, entram em conflito com a ordem fixada pelo Estado, de modo que
o problema, portanto, assume um viés inegavelmente político, cabendo ao Estado superá-lo.
Isso demanda, em primeiro lugar, toda uma atividade dirigida a prever e evitar
esses conflitos; em segundo lugar, a remediar os problemas particulares que os próprios
indivíduos voluntariamente demonstram. Tudo vai depender fundamentalmente da tarefa
político-jurídica geral do Estado que é prever e evitar conflitos futuros, o que implica uma
progressiva e maior democratização do Estado. Por certo, enquanto existir o Estado, o que é a
função da pena, proteção de bens jurídicos – o que está ligado ao que é a pena mesmo:
autoconstatação do Estado –, predominará, nos casos limites, sobre o fim da pena (remover
obstáculos à participação livre e crítica do sujeito), e este, o fim da pena, prestar-se-á como
princípio garantidor passivo, para que não se anule a participação livre e crítica, mas não para
promovê-la.
162
CAPÍTULO 7 – A missão do direito penal: a exclusiva
proteção de bens jurídicos
7.1. OS VALORES JURÍDICO -PENAIS NA CONSTITUIÇÃO : A CARTA POLÍTICA COMO
PAUTA VALORATIVA
Na esteira do raciocínio desenvolvido até esta altura, a intervenção penal veicula
justamente a opção de Estado que uma sociedade assume. Não é por outra razão que o direito
penal, como instância última de controle social, só se justifica na medida em que se permite
permear-se de soluções axiologicamente voltadas aos ideais do modelo de Estado a que se
aspira. No caso do Estado democrático de Direito, uma intervenção penal que se pretenda
legitimada somente se justifica com base na dupla compreensão da missão do direito penal. Se
o presente trabalho se ocupou das razões que justificam a intervenção penal (teorias da pena)
no ponto anterior, é chegado o momento de enfrentar o tema relativo aos pressupostos
materiais de criminalização de condutas ou, em termos mais claros, à função de exclusiva
proteção de bens jurídicos.
Como já mencionado, a opção por uma abordagem conseqüencialista do direito
penal, de acepção funcionalista teleológica ou valorativa, implica a necessária consideração
da idéia de valor jurídico e, mais especificamente, de valores constitucionais. São esses
tomados como moldura fundante do modelo de sistema penal por meio de um refinado
processo de seleção dos bens jurídicos que serão considerados penalmente relevantes por
força de critérios constitucionais aptos a fazer essa indicação.
Decerto que a observância de valores poderia criar um justo receio de que tais
valores sejam aqueles impostos pela autoridade ou mesmo por setores da sociedade, de sorte a
solapar aqueles que evidenciassem em seu agir contrariedade aos interesse de uma parcela
163
dominante. O receio, diante disso, de que o assoberbamento do Estado em face do indivíduo
não encontre limites é plausível. No entanto, é de ver que, a partir do lastro construído na
parte inicial do trabalho, e justamente porque a norma penal que reflita tão-somente uma
ditadura da “moral” dominante carece absolutamente de legitimidade, tal receio encontra
acolhida segura na concepção de que o texto constitucional orienta-se pelo princípio da
dignidade da pessoa.
Já se disse que uma visão constitucional do direito penal positivo representa limite
e vínculo impostos a qualquer poder, inclusive aquele majoritário. Por meio dessa barreira
infranqueável assegura-se o caráter positivo das normas penais e a inarredável sujeição ao
Direito, dúplice vetor que cunha o Estado constitucional de Direito. É, portanto, de um
sistema constitucional que se extraem os valores ético-políticos informadores das escolhas de
determinação do âmbito de incidência da intervenção penal.259
Segundo Hessen, pode-se definir valor “como sendo um certo quid que satisfaz
uma necessidade. Será valor tudo aquilo que for apropriado a satisfazer determinadas
necessidades humanas”.260 Modernamente, a Constituição cumpre a relevante função de
publicização, expressa ou implícita, dos valores estabelecidos por meio do consenso, sem
desconsiderar a contextualização histórica e todo o iter realizado para consolidá-los. A Carta
259 Retome-se, portanto, as idéias desenvolvidas no ponto 1.2.2 (A influência da rigidez constitucional na compreensão da intervenção penal contemporânea). Quando aborda os valores constitucionais e sua influência no conceito de delito para a democracia atual, Márcia Dometila Lima de Carvalho salienta: “Das exigências fundamentais inseridas na Constituição, inferem-se os limites traçados, por ela, para o Direito Penal. Não se pode olvidar que este, mormente em um Estado promocional, é, por natureza, um dos seus instrumentos mais eficazes. Constituindo, o delito, o mais grave ataque desfechado contra os bens jurídicos que o Estado quis proteger, a sanção social, como reação estatal, representa a sua pronta e forte intervenção no domínio da individualidade do infrator. Existe, todavia, nisto, todo um perigo de tentação de abuso político, de autoritarismo além do necessário, a ser evitado pelos próprios limites constitucionais, traçados para o Direito Penal, e pela sua própria exigência de eticidade. A dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, é o valor expresso no princípio da humanidade do Direito Penal, que não pode deixar de ser considerado quando da criminalização de qualquer fato, etiquetado como socialmente agressivo, ou quando da cogitação de qualquer sanção criminal”. CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação constitucional do direito penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1992, p. 44-45.
164
Política, portanto, representa verdadeira tomada de posição valorativa, que se reflete tanto em
suas disposições concretas quando em sua conformação como sistema aberto.
Logo, o Estado que se constitui, e a intervenção penal dele advinda, com arrimo
na ordem constitucional, é um Estado valorativo, isto é, que atua sempre valorativamente. Sua
atuação será sempre suscetível de ser avaliada numa perspectiva valorativa. Porque se cuida
de um Estado de Direito, a valoração a ser tratada será precisamente a jurídica. O valor
jurídico, portanto, apresenta-se como atributo próprio dessa espécie de Estado e que se
oferece por meio da Constituição como tal. A Constituição, portanto, surge como um conjunto
de preceitos e essa coerência e sistematicidade derivam de que seus preceitos respondam a
critérios ordenadores comuns.261 Traduz ela, então, uma norma portadora de determinados
valores materiais, que conduzem a uma totalidade do ordenamento jurídico: uma unidade de
sentido material.
Esse núcleo material da Constituição compõe-se dos valores culturais, jurídico-
políticos, princípios regulativos, opções e mesmo intenções jurídico-constitucionais
fundamentais. São esses os valores que informam as dimensões normativo-materiais
fundamentais da Constituição, de onde se projeta o próprio projeto constitucional. A
Constituição, com isso, responde a uma concepção valorativa da vida social e instaura um
marco básico de princípios que conformam a convivência em sociedade e, por traduzir uma
pauta de valores, determina diretrizes que devem ser respeitadas por todo o ordenamento
jurídico do Estado, em que se inclui também o direito penal.
260 HESSEN, Johannes. Filosofia dos valores. 5. ed. Tradução de L. Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado, 1980, p. 41-42. 261 Trata-se do caráter fundamental da Constituição tal como desenvolvido em: ENTERRÍA, Eduardo García de. La constitución como norma y el tribunal constitucional. 2. ed. Madrid: Civitas, 1982, passim.
165
A Constituição, norma fundamental do Estado, acolhe e consagra em suas
disposições normativas o conjunto daqueles valores de transcendência jurídica e sociopolítica,
para que esses valores fundamentais de uma determinada comunidade histórico-política
alcancem uma constitucionalidade hábil a fornecê-la uma expressão jurídica normativa.262 Vê-
se, pois, que esses valores constitucionais delineariam o sistema de preferências expressadas
no processo como prioritárias e fundantes face ao convívio social: os princípios. Esses
valores, ao se converterem em normas-princípios, passam a constituir preceitos básicos da
organização constitucional. Nada obstante, do mesmo modo que a interpretação das normas
pauta-se pelo referencial necessário dos princípios, é de ver que a interpretação dos princípios
deve tomar como referência os valores.263
Pérez Luño264 assinala que os valores constitucionais assumem as seguintes
dimensões: (i) dimensão fundamentadora do ordenamento jurídico em seu conjunto: converte
os valores superiores ou fundamentais no contexto axiológico básico para a interpretação de
todo o ordenamento jurídico, para sua maior compreensão e determinação de sentido; (ii)
dimensão orientadora da finalidade da ordem jurídico-política: torna ilegítima qualquer norma
262 Ferrajoli chega a fixar o constitucionalismo como novo paradigma do direito, ao afirmar o valor da Constituição como conjunto de normas substanciais dirigidas a garantir a divisão de poderes e os direitos fundamentais de todos. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías. La ley del más débil. 2. ed. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez e Andréa Greppi. Madrid: Editorial Trotta, 2001, p. 67. No mesmo sentido, cf. MAHIQUES, Carlos Alberto. Derechos fundamentales y constitucionalismo penal. In: Prudentia Iuris : Revista de la Facultad de Derecho y Ciencias Políticas de la Pontificia Universidad Católica Argentina Santa María de los Buenos Aires, n. 57, junho 2003, p. 182-183. 263 Entre princípios e valores constitucionais dá-se uma relação de meios e fins. Os princípios seriam os meios constitucionais utilizados com aptidão à realização das finalidades contidas nos valores socialmente estabelecidos pela mesma Constituição. Os princípios são manifestações dos valores que a sociedade atribui às normas expressa ou implicitamente. Daí afirmar que a interpretação das normas toma por referencial necessário os princípios, ao passo que a interpretação dos princípios guarda lastro nos valores, de sorte a determinar as funções dos princípios no ordenamento quanto à aplicação preferencial de uns sobre outros. Cf. CALLEJÓN, Maria Luisa Balaguer. Interpretación de la Constitución y ordenamiento jurídico. Madrid: Tecnos, 1997, p. 134. São os valores que informarão, portanto, na hipótese de eventual conflito entre princípios, a relação de precedência condicionada a ser operada para solução da tensão entre postulados fundamentais. No dizer de Alexy, os princípios e os valores, portanto, se diferenciam somente em virtude de seu caráter deontológico e axiológico, respectivamente. Cf. ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 147. 264 LUÑO, Antonio Enríque Pérez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1986, p. 288.
166
que persiga finalidade distinta ou que impeça a consecução daquelas enunciadas no sistema
axiológico constitucional (aqui reside o aspecto teleológico dos valores constitucionais); (iii)
dimensão de critério ou parâmetro de valoração de condutas e fatos para atribuir
conseqüências jurídicas: é essa função crítica que viabiliza um controle jurisdicional do
restante das disposições normativas do ordenamento, de sorte a mensurar a legitimidade das
diversas manifestações do sistema de legalidade.265
Vê-se, portanto, que a Constituição não admite – aliás, veda – qualquer resultado
legislativo em matéria penal que simplesmente observe o princípio da legalidade em sua
acepção formal ou mesmo outros princípios básicos ainda que de índole constitucional. A
Carta Política assume papel ativo na construção da tipologia penal, na medida em que
seleciona mediante critérios e parâmetros os bens jurídicos relevantes na esteira dos valores
esculpidos pelo constituinte, delineando um determinado modelo de sistema penal e, com
isso, lançando as bases de uma política criminal extraída da própria norma fundante do
sistema jurídico. O sistema penal, portanto, há de expressar positivamente, reproduzindo e
conformando, os valores constitucionalmente definidos.266
Essa função crítica dos valores constitucionais viabiliza um controle jurisdicional
do restante das disposições normativas do ordenamento no que puderam veicular de valor ou
desvalor por sua conformidade ou infração dos valores constitucionais. Assim, os valores
jurídicos fundamentais do ordenamento jurídico estatal – em particular, o penal –, por meio de
sua norma básica, prestar-se-ão como critérios para medir a legitimidade das diversas
265 Uma vez mais, retome-se a idéia desenvolvida no Capítulo 1 da rigidez constitucional como fator paradigmático da intervenção penal contemporânea. 266 Salienta Paulo Queiroz com precisão: “Nas sociedades contemporâneas, em que, como regra, o papel do Estado e de suas instituições estão previamente definidos pelas Constituições promulgadas, as quais, por sua vez, estabelecem os pressupostos de criação, vigência e execução do resto do ordenamento jurídico, convertendo-se, assim, em elemento de unidade, e em cujos textos já se acham constitucionalizados os direitos e garantias fundamentais (entre nós, CF, art. 5.º), o papel do direito, e em particular, do direito penal, está, por conseqüência,
167
manifestações do sistema de legalidade.267 A idéia, portanto, guarda absoluta convergência
com o desenvolvido no Capítulo 1, onde se fixou a rigidez constitucional como paradigma
valorativo na construção do sistema político-criminal.
A construção de um sistema de valores, sob o paradigma do Estado democrático
de Direito, tem sua gênese na vontade popular proclamada expressamente na norma
fundamental do ordenamento jurídico. As opções ético-sociais da comunidade jurídico-
política, espelhadas nesses valores, integram-se na realidade social por meio do processo
sociopolítico de integração e unidade ordenada na Constituição e por essa mesma
Constituição. Tais valores, portanto, possuem inegável viés político em sua origem e, ao se
objetivarem em normas, assumem cunho jurídico, com as propriedades de validez e eficácia
próprias desse processo de juridicização. É justamente aqui onde se trava o diálogo entre a
política criminal e o direito penal: aquela, a espelhar os valores esculpidos pelo modelo
pretendido de Estado na Constituição e orientar o intérprete na adoção de soluções
axiologicamente orientadas às finalidades de uma intervenção penal que se pretenda legítima.
A importância de se fixar os valores jurídico-penais na Constituição reside na
importância que tem esta como limite: a norma constitucional opera como norma de seleção
do sistema jurídico-penal. Como limite do poder estatal ou mesmo como garantia de
liberdade, a Constituição representa o poder de fixação dos limites em que há de se situar
qualquer expectativa que pretenda converter-se em direito. Atua, pois, como paradigma de
adequação das realidades políticas, torna o Estado operador das decisões políticas levadas a
efeito pela decisão constitucional. E a Constituição, por portar determinados valores
e em linhas gerais, já constitucionalmente definido” (Funções do direito penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 121). 267 Cf. LUÑO, Antonio Enríque Pérez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1986, p. 290.
168
materiais, traduz unidade para a totalidade do ordenamento jurídico. O Estado que dela
deriva, portanto, é um Estado valorativo e que atua sempre de modo valorativo.
Os bens jurídico-penais, como particularização de um segmento axiológico dos
direitos fundamentais de maior relevância, substanciam também bens jurídico-constitucionais.
Aliás, impende registrar que os valores jurídicos mais relevantes do direito penal – ou aqueles
que se pretendem tutelar com o direito sancionador de máxima relevância – devem
corresponder a ofensas significativas a bens jurídicos de maior envergadura ou hierarquia
dentro da própria Constituição e com exclusividade.268
A realização de um direito penal, sob a égide de um Estado democrático de
Direito, corresponde a uma intervenção mínima de preocupação garantidora de grau
máximo.269 O direito penal, portanto, acondiciona-se no âmbito da Constituição não apenas no
que se refere à observância de princípios gerais e especiais, mas também para realizar um
conteúdo que funda raízes nessa mesma Constituição.
Uma vez que a Lei Fundamental contém as decisões de fundo mais relevantes
para uma ordem jurídica, tanto em nível organizacional quanto em nível material, e as opções
valorativas mais fundamentais, ela reflete, ao cabo, o ambiente social-valorativo de uma
comunidade, impondo-se a toda a ordem jurídica. A Constituição sintetiza, portanto, o
estatuto fundamental da ordem jurídica geral.
268 Cf. PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 63 et seq. No mesmo sentido, COELHO, Yuri Carneiro. Bem-jurídico penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 105 et seq. 269 Nilo Batista, ao enunciar o princípio da intervenção mínima, afirma que o direito penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes, e as perturbações mais leves da ordem jurídica são objeto de outros ramos do direito. Entende que o princípio da intervenção mínima, conquanto não expresso no texto constitucional, mostra-se como um daqueles princípios imanentes, por sua compatibilidade e conexões lógicas com outros princípios jurídico-penais, dotados de positividade, e com pressupostos políticos do Estado de Direito democrático. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 84-85.
169
Como iterativamente asseverado no transcurso dessa investigação, a intervenção
penal reflete o modelo de Estado a que se aspira. Se o modelo a que se aspira é justamente o
do Estado democrático de Direito, e este aponta uma concepção sintética do Estado, resultante
da união dos princípios próprios do Estado liberal e do Estado social e que culmina numa
imagem que supera seus componentes básicos isoladamente considerados para permitir-se
somar-se a uma terceira característica em sua fórmula constitucional – a democracia -, o
direito penal não pode intervir de modo desenfreado, arbitrário, sem limites. O controle dessa
intervenção penal submete-se, no plano formal e no plano substancial, ao princípio da
legalidade. É ele a garantia estrutural que marca a distinção entre uma intervenção penal
legítima e o autoritarismo penal próprio de um terror legislativo. Num Estado democrático de
Direito, ao direito penal cabe a função de exclusiva proteção dos bens fundamentais do seio
social, das condições sociais básicas necessárias à livre realização da personalidade de cada
homem.
De qualquer sorte, vale a seguinte advertência de Baratta:
O direito penal da Constituição vive hoje a mesma condição que o direito penal do iluminismo viveu em seu tempo: ele deve limitar e regular a pena, mas para que o direito penal da Constituição não tenha a mesma sorte do direito penal liberal, permanecendo em grande parte na mente de seus ideólogos, é necessário que reencontre sua dimensão política forte e autêntica. Isso somente será possível se a ele se incorporar uma política integral de proteção dos direitos fundamentais.270
O princípio da legalidade, no que aqui interessa em sua acepção substancial, além
de traduzir a proibição de excesso dirigida ao legislador, é o que permite ao direito penal o
cumprimento de sua missão. O sentido teleológico da norma penal traz como conseqüência,
270 “El derecho penal de la Constitución vive hoy la misma condición que el derecho penal del Iluminismo vivió en su tiempo: él debe limitar y regular la pena, pero para que el derecho penal de la Constitución no tenga la misma suerte del derecho penal liberal, permaneciendo en gran parte en la mente de sus ideólogos, es necesario que se reencuentre una dimensión política fuerte y auténtica. Esto sólo será posible si se incorpora en una política integral de protección de los derechos fundamentales.” BARATTA, Alessandro. La política criminal y el derecho penal de la Constitución: nuevas relexiones sobre el modelo integrado de las ciencias penales. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 8, n. 29, janeiro-março 2000, p. 47.
170
como já asseverado, seu reconhecimento como expressão de uma vontade geral destinada à
preservação de direitos e interesses. A identificação desses direitos e interesses realiza-se
justamente por meio de um processo axiológico no qual os preceitos e as sanções
caracterizam-se por um permanente retorno às fontes substanciais que geram e orientam os
comandos jurídico-penais. Cabe à política criminal a promoção dessa obra e a avaliação dos
resultados dessa atuação com vistas à elaboração da norma.
De um lado, é certo que a política criminal não se esgota na legislação. Ao
contrário, ela será sempre um passo prévio, crítico e decisivo para determinação do âmbito de
incidência da intervenção penal. Por substanciar aspecto da política global do Estado, ela
dirige o direito penal para seu fim adequado, cumprindo sua tarefa de proteção social. A
política criminal, portanto, cumpre função crítica tanto dos valores jurídicos como da
realização social desses valores. Sua finalidade última consiste justamente na busca da justiça
penal frente às possibilidades abertas num Estado democrático de Direito.
7.2. UMA APROXIMAÇÃO DO CONCEITO DE BEM JURÍDICO
7.2.1. O bem jurídico ext raído da Constituição
A construção, ainda que sintética, de um conceito de bem jurídico assume
relevância em razão de um viés duplo de abordagem. De um lado, sob uma perspectiva
político-criminal, o bem jurídico-penal presta-se a determinar os rumos do direito penal,
esboçando e – sobretudo – limitando o âmbito de incidência da intervenção penal. De outro
lado, sob uma perspectiva estritamente dogmática, presta-se o bem jurídico-penal a apreender
e identificar os objetos concretos da tutela penal, o que se conhece por conteúdo material do
crime, ou seja, o valor que se busca proteger por meio da intervenção penal.
Sob a perspectiva da Política Criminal, a noção de bem jurídico-penal é de capital relevância para a definição dos rumos do Direito Penal, principalmente em tempos
171
de construção oportunista das normas repressivas que levam o sistema penal a representar cada vez mais fortemente o papel de instrumento de terror posto pelo Estado para exercício do controle e poder social, arruinando o tão bem e demoradamente arquitetado sistema de direitos e garantias individuais e coletivos ao longo dos séculos.271
Sob uma perspectiva estritamente histórica, a evolução da idéia de bem jurídico-
penal não demonstrou ser ele, por si só, capaz de fornecer o núcleo material do delito e, por
conseguinte, limitar a intervenção penal do Estado àquelas hipóteses em que a resposta última
de sua instância mais rígida de controle social se mostrasse legítima e consentânea com o
modelo de Estado almejado.272 No entanto, no início do século XX, vem a lume a chamada
concepção metodológica ou teleológico-metodológica do bem jurídico, que nele identifica um
valor abstrato, de cunho ético-social, tutelado pela norma penal, ou um valor social
juridicamente protegido.
O ressurgimento dos ideais iluministas na República de Weimar, após a Primeira
Grande Guerra, com os acréscimos de um programa econômico-social voltado ao incremento
econômico e à reconstrução do país por meio da superação das desigualdades geradas pelo
processo de industrialização, esboçou cenário fértil à influência de orientações espiritualistas
de matriz neokantiana.273 É nesse contexto que se desenvolve a concepção sobre o bem
jurídico que o toma como representação espiritualizada, no sentido de que passa ele a ser
271 LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 287. 272 Sobre a evolução histórica do conceito de bem jurídico, cf. LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 289 et seq. e KIST, Dario José. Bem jurídico-penal: Evolução histórica, conceituação e função. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 7 março 2005. 273 Registra Muñoz Conde que “(…) a elaboração de conceitos dogmáticos transcendentes, plenos de conteúdo filosófico, para além das margens que permitam as normas legais positivas, poderia ser entendida como um abandono do positivismo jurídico, característico do período imediatamente anterior à República de Weimar; porém, curiosamente, este abandono do positivismo poderia também ter também uma leitura estritamente política.” Seguidamente, salienta que tais teorias foram utilizadas pela ascendente direita alemã “para limitar a vigência das leis aprovadas pelo parlamento e para, desse modo, livrar tanto quanto possível o poder executivo do controle democrático.” (Política criminal y dogmática jurídico-penal en la Republica de Weimar. In: Revista da Procuradoria-Geral da República, n. 9, jul./dez. 1996, p. 74. No original: “la elaboración de conceptos dogmáticos transcendentes, plenos de contenido filosófico, más allá de los márgenes que permitían las normas legales positivas, podría entenderse como un abandono del positivismo jurídico, característico del período inmediatamente anterior a la República de Weimar; pero, curiosamente, este abandono del positivismo podía
172
considerado um valor cultural abstrato e sua violação, um comportamento imoral. O bem
jurídico passou a ser visto, portanto, como um valor cultural, fazendo com que o delito seja
uma valoração. Em conseqüência, exige-se a busca do sentido teleológico de cada tipo penal,
fazendo com que o bem jurídico seja captado da descrição legal do tipo. A proteção volta-se
aos conteúdos espirituais comuns da consciência de um grupo ou de uma maioria. Assim
concebido, o bem jurídico é convertido em simples método interpretativo, perdendo a básica
função de restringir a atividade criminalizadora.274 Acerca dessa tendência de consideração do
bem jurídico-penal tão-somente como método interpretativo, Luiz Regis Prado afirma:
Os bens jurídicos têm como fundamento valores culturais que se baseiam em necessidades individuais. Essas se convertem em valores culturais quando são socialmente dominantes, e os valores culturais transformam-se em bens jurídicos quando a confiança em sua existência surge necessitada de proteção jurídica.275
Em outras palavras, o bem jurídico configura um valor da ordem social
juridicamente protegido. Buscando na cultura o bem jurídico a proteger através do direito
penal, o delito será valorativo. Procura-se vinculá-lo à ratio legis da norma jurídica, o que o
converte em simples método interpretativo. A essência da noção de bem jurídico tutelado
deriva da descrição legal e não reside na natureza dos bens e valores que a determinam. O
objeto de proteção é um produto dos conceitos jurídicos; ele não existe como tal, a não ser
que, nos valores da comunidade, existam os objetos que constituem o objetivo das prescrições
penais.
O conceito de bem jurídico, com isso, acabou se despojando de todo conteúdo
material, tornando-se apto a receber qualquer conteúdo e, com essa transformação, passou a
ter valor somente para a interpretação dos tipos penais. Como conceito puramente formal, era
tener también una lectura estrictamente política. (…) para limitar la vigencia de las leyes aprobadas por el parlamento y para, de este modo, librar en lo posible al poder ejecutivo del control democrático”). 274 LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 289.
173
inidôneo para descrever o núcleo material do injusto, além de perder a essencial função de
crítica, disciplina e contenção da atividade criminalizadora. Como abstração vazia de todo
conteúdo, constitui um princípio metodológico para a interpretação dos tipos penais, mas já
não brinda uma explicação do que a espécie do injusto de cada delito é ou deve ser.
Impende notar que, apesar da carga teleológica, a orientação dirigida às
finalidades não se confunde com a proposta desenvolvida ao longo da presente investigação,
na medida em que se afasta do instrumento hábil a permitir tanto a legitimação da intervenção
penal quanto a limitação dessa mesma incidência do direito penal em consonância com os
pressupostos de Estado: o diálogo entre o direito penal (dogmática), a política criminal e a
criminologia por meio de uma unidade funcional.276
7.2.2. A construção do bem jurídico com base em suas funções
Quadra vincar, a esta altura, o problema da definição dos comportamentos
legitimamente sujeitos à sanção penal sob o enfoque funcionalista. Merece destaque o
pensamento exposto por Knut Amelung, que se filiou com precisão à vertente funcionalista-
sistêmica277. Contando com o lastro fornecido pelas modernas teorias de cunho sociológico,
especialmente as formuladas por Talcott Parsons e Niklas Luhmann, Amelung propôs a
doutrina da danosidade social: com apoio no modelo teórico que concebe a sociedade como
um sistema de interações, entende ele como danoso socialmente o fenômeno que causa
275 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 41. 276 Essa visão unificadora reflete uma das mais importantes e fecundas contribuições do funcionalismo teleológico. A contribuição de Roxin, nesse sentido, permitiria até mesmo a elaboração de um sistema de direito penal de caráter supranacional, caso se tome como ponto central de referência a comunidade cultural e de valores que subjazem às constituições ocidentais atuais. É o que sustenta Jesús-María Silva Sánchez. Cf. Bases de una dogmática jurídico-penal supranacional. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 3, n. 12, outubro-dezembro 1995, p. 35. 277 FIANDACA, Giovanni. O “bem jurídico” como problema teórico e como critério de política criminal. In: Revista dos Tribunais, vol. 776, junho 2000, p. 41.
174
disfunções, impede ou interpõe obstáculos para que o sistema social resolva os problemas de
sua conservação.
Imbuído de uma visão sistêmica, Amelung vê a sociedade como um sistema
global de interações, sendo o Direito um dos seus subsistemas, cuja missão fundamental é
garantir a existência do sistema como um todo.278 O direito penal, por sua vez, afigura-se
como o instrumento mais importante no subsistema jurídico, pois por meio da pena assegura a
conservação do sistema contra fatos de alta nocividade social. Portanto, o direito penal integra
o subsistema jurídico, qualificando-se como instrumento apto para dominar e sujeitar fatos
gravemente nocivos, que põem em perigo a funcionalidade do sistema e a sua própria
existência e conservação. Nesta perspectiva, portanto, os bens jurídicos são as funções
necessárias para a conservação do sistema social.279
Logo, para Amelung, a nocividade ou danosidade social é o critério de definição
do crime, que é centrado na idéia de disfunção do sistema. Os bens jurídicos protegidos pelas
normas penais nascem da vida social, têm caráter funcional em relação ao sistema e são
importantes para sua subsistência, consoante a valoração feita pelos sujeitos sociais. Isso
revela a necessidade de buscar nas ciências sociais o caráter de danosidade, para definir o
objeto da proteção penal.
Analisando esta postura, Giovanni Fiandaca assevera que definir o delito como
fenômeno que obstaculiza o funcionamento do sistema social não é o bastante para indicar ao
legislador as condutas que devem ser criminalizadas, ou seja, uma análise de cunho
278 Isso porque, diferentemente da postura de Parsons e da sociologia jurídica tradicional (desenvolvida no item anterior), que trabalha com métodos empíricos e os traslada ao direito, o funcionalismo sistêmico esteado em Niklas Luhmann entende o sistema jurídico como um subsistema do sistema global social.Cf. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 68 et seq.
175
meramente sociológico não está apta a sugerir parâmetros de criminalização vinculantes em
sede legislativa. É que, nessa perspectiva, qualquer coisa pode adquirir o caráter de bem
jurídico, o que evidencia o risco de o conceito perder todo o seu significado, por não
encontrar limite algum.
Winfried Hassemer280 também se ocupa da elaboração de uma teoria do bem
jurídico de cunho sociológico. O postulado de que parte é o seguinte: o fato de que certos
comportamentos sejam considerados em uma determinada sociedade tão intoleráveis, a ponto
de deverem ser reprimidos com os instrumentos mais drásticos da organização estatal,
depende da valoração que a sociedade faz dos objetos que esses comportamentos lesam ou
põem em perigo. Além disso, três fatores são levados em consideração: a freqüência da
conduta criminosa, a intensidade da necessidade de preservação do objeto tutelado e a
intensidade da ameaça dirigida contra ele. Estes, por representarem posturas axiológicas
correspondentes aos acordos sócio-normativos dominantes na sociedade, são os fatores sociais
da criminalização, onde o arbítrio do legislador se depararia com barreiras.
Portanto, de acordo com Hassemer, qualquer sociedade tem certos
comportamentos como intoleráveis, ensejando a repressão penal que, assim, se vincula às
valorações que a sociedade faz dos objetos que os referidos comportamentos lesam ou põem
em perigo. Desta forma, para a individualização do bem jurídico não é fundamental a posição
objetiva do bem, mas a valoração subjetiva, com as variantes dos contextos sociais nos quais
ele aparece.
279 LUISI, Luiz. Bens constitucionais e criminalização. In: Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, ano II, abril 1998. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero4/artigo13.htm>. Acesso em: 5 março 2004. 280 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução de Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, passim. Cf. também LUISI, Luiz. Bens constitucionais e criminalização. In: Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, ano II, abril 1998. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero4/artigo13.htm>. Acesso em: 5 março 2004.
176
Diante disso, a tarefa do direito penal, de acordo com as teorias sistêmicas
consiste em proteger as funções sociais e os mecanismos eficazes requeridos para a
manutenção da sociedade frente aos danos e perturbações que possam ameaçá-los. Em
conseqüência, os comportamentos inidôneos para perturbar as funções sociais e que não
provocam nenhum efeito nocivo à sociedade devem ser excluídos da tutela penal.
Manuel da Costa Andrade compreende a expressão bem jurídico, para a política
criminal contemporânea – aliás, para a política criminal perspectivada no horizonte de um
Estado de Direito e de uma sociedade aberta e plural -, como um axioma, na medida em que
fixa a afirmação segundo a qual é a tutela de bens jurídicos que simultaneamente define a
função do direito penal e marca os limites da legitimidade da sua intervenção.281
A evolução conceitual de bem jurídico evidencia que ele, desde que surgiu, tem a
primacial função de revelar os valores que podem ser objeto da tutela penal, funcionando
como um limite à atuação legiferante na seara criminal e como determinante aos lindes do
âmbito de intervenção penal, embora o conceito de bem jurídico não tenha evitado a inflação
legislativa penal nem tenha ditado os rumos do direito penal.
O problema posto pelas várias tendências teóricas e em torno do qual se avultam
as divergências diz respeito ao lugar em que devem ser captados estes bens jurídicos. A
perspectiva iluminista centra nos direitos inatos do indivíduo, que preexistem ao Direito, a
necessidade da proteção penal; já as teorias sociológicas buscam a matriz destes bens
diretamente na realidade social.
281 Cf. ANDRADE, Manuel da Costa. A nova lei dos crimes contra a economia (Dec.-lei n.º 26/84 de 20 de janeiro) à luz do conceito de “bem jurídico”. In: Ciclo de estudos de Direito Penal Económico. 1. ed. Coimbra: Centro de Estudos Judiciários, 1985. p. 73-74.
177
Tais critérios, contudo, não satisfazem à saciedade a busca por uma intervenção
penal legítima e consentânea com o modelo de Estado pretendido. Hans Joachim Rudolphi282,
ao confrontar o conceito liberal de bem jurídico, de matiz iluminista, e o conceito de bem
jurídico sob a vertente metodológica, de cariz neokantiano, assevera que, além de
contraditórios, ambos são insuficientes. O primeiro, embora tenha conteúdo material,
apresenta-se como prévio ao direito positivo, o que evidencia seu caráter pré-jurídico. Já o
conceito metodológico mostra-se vazio e puramente formal. Por esta razão, ambos carecem de
capacidade para a solução dos problemas da teoria material do injusto penal. Luiz Luisi
igualmente descortina a carência intrínseca desses conceitos:
(…) todos esses enfoques, sejam os que encaram o bem jurídico enquanto preexistente à própria ordem jurídica, como os que acentuam a sua natureza funcional ou sistêmica, primam pela carência de concretude, posto que não definem conteúdos, ou seja, não dizem, por exemplo: quais a unidades sociais de função ou quais das disfunções afetam a conservação do sistema, e o ‘quantum’ de nocividade social das mesmas.283
Diante dessas deficiências, modernamente, outra perspectiva viceja e tende a
prevalecer: a teoria constitucional do bem jurídico, que procura formular critérios aptos a
orientar e limitar o legislador penal quando da criação de tipos penais com apoio na
Constituição vigente. Em outros termos, é na Constituição que o legislador deve buscar os
bens jurídicos aptos a receber a proteção penal. Cuida-se de modelo que visualiza o crime
como ofensa a bens jurídicos insertos, como já asseverado, na Constituição. Nas palavras de
Lopes,
(…) os mais consagrados autores de Direito Penal da atualidade (…) vão buscar na Constituição os fundamentos de validade e limites de intervenção do Direito Penal, na medida em que é esta que exprime o tipo de Estado e seus fins e, conseqüentemente, limita também os fins da tutela penal. Não fazem derivar de um conceito abstrato de bem jurídico o âmbito da tutela penal, mas, pelo contrário,
282 RUDOLPHI, Hans Joachim. Los Diferentes Aspectos del Concepto de Bien Jurídico. In: Nuevo Pensamiento Penal. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 4, n. 7, julio-septiembre 1975, p. 333 et seq. 283 LUISI, Luiz. Bens constitucionais e criminalização. In: Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, ano II, abril 1998. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero4/artigo13.htm>. Acesso em: 5 março 2004.
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chegam ao bem jurídico através da indagação sobre os fins da pena, de acordo com o tipo de Estado constitucionalmente consagrado em seus princípios fundamentais.284
É de ver, no entanto, que a reunião das duas perspectivas mencionadas, de sorte a
obter um conceito de bem jurídico pleno de conteúdo e, ao mesmo tempo, juridicamente
obrigatório, seria hábil a permitir a construção de um conceito apto para a interpretação das
normas penais positivas e obrigatório para a criação de novos tipos penais. Um conceito assim
delineado seria possível se fosse deduzido das prescrições jurídicas positivas, que são prévias
à legislação penal, mas obrigatórias para estas. Forneceria ao legislador um critério material
obrigatório, como também uma diretriz obrigatória para a interpretação e crítica das normas
penais existentes. Tais decisões valorativas prévias e obrigatórias para a legislação penal não
podem deduzir-se de uma norma de um direito natural suprapositivo, como na época do
Iluminismo, nem tampouco das relações sociais preexistentes, como quis Von Liszt. Tais
decisões valorativas somente podem estar contidas na Constituição.285
Verifica-se, com isso, uma verdadeira revisão doutrinária da definição do âmbito
de intervenção penal, para limitá-lo por meio de um processo de constitucionalização dos
bens jurídicos penais. É nas constituições que o direito penal deve encontrar os bens que lhe
cabe proteger com suas sanções. O operador do direito penal assim deve orientar-se, uma vez
que nas constituições já estão feitas as valorações criadoras dos bens jurídicos, cabendo a ele,
intérprete, em função da relevância social desses bens, tê-los obrigatoriamente presentes,
inclusive a eles se limitando, no processo de formação da tipologia criminal.286
284 LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 349. 285 RUDOLPHI, Hans Joachim. Los Diferentes Aspectos del Concepto de Bien Jurídico. In: Nuevo Pensamiento Penal. Buenos Aires: Ediciones Depalma, ano 4, n. 7, julio-septiembre 1975, p. 338. 286 LUISI, Luiz. Bens constitucionais e criminalização. In: Revista do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, ano II, abril 1998. Disponível em: <http://www.cjf.gov.br/revista/numero4/artigo13.htm>. Acesso em: 5 março 2004.
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Essa constitucionalização do bem jurídico tem apresentado diversas nuanças, que
podem ser agrupadas em duas correntes: a primeira, de caráter geral, vincula a criação dos
tipos penais aos princípios fundamentais presentes na organização do Estado. Outras,
denominadas teorias constitucionais estritas, afirmam que o legislador penal encontra nas
Constituições prescrições específicas e explícitas nas quais estão presentes os bens jurídicos
que merecem tutela penal.
Efetivamente, as Constituições contêm as valorações fundamentais de uma
sociedade, podendo-se captar nelas o fundamento para a elaboração de um conceito de bem
jurídico prévio à legislação penal, mas ao mesmo tempo obrigatório para ela. Esta idéia,
portanto, revela a preocupação quanto à formulação de critérios capazes de limitar a atuação
do legislador penal no momento da criação de leis penais. Em conseqüência, este não é livre
para consagrar como bem jurídico qualquer juízo de valor, pois está vinculado às funções que
a Constituição reserva ao direito penal num Estado democrático de Direito.
Num Estado de Direito baseado na liberdade dos indivíduos, um conceito político-
criminal de bem jurídico vinculante só pode resultar das tarefas positivadas na
Constituição.287 Os bens jurídicos surgem, pois, como pressupostos imprescindíveis para a
existência comum, que se caracterizam numa série de situações valiosas, como a vida, a
integridade física, a liberdade de atuação, a propriedade, que o Estado deve proteger, também
penalmente (com base numa abordagem subsidiária, por óbvio), através da imposição de
sanções aos que as violam.
A função do poder estatal limita-se, então, a criar e garantir a um grupo de pessoas
reunidas no Estado as condições de existência que satisfaçam suas necessidades vitais, e ao
287 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 349.
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sistema penal não resta finalidade diversa, ou seja, a ele é incumbida a segurança dos
membros da sociedade. É no cumprimento dessa função que reside a legitimação material da
lei penal, ao ser ela indispensável para a manutenção da sociedade e do Estado. Portanto, cabe
ao direito penal tutelar certas situações de valor cuja integridade constitui a premissa para
uma convivência pacífica.
O escopo do direito penal no âmbito de um Estado de Direito, democrático e
social, só pode voltar-se à oferta ao indivíduo de uma vida de paz em sociedade,
transformando alguns interesses em condições sociais valiosas. O interesse em torno destas é
geral, razão pela qual podem ser tidas como bens jurídicos, cuja tarefa de proteção se defere
ao direito penal por meio da punição da sua violação.
Como já salientado ao longo do capítulo anterior, surge a necessidade de o Estado
proteger algumas prestações de caráter público que, pela grande relevância que têm para a
criação de condições de vida dignas, também são protegidas através do direito penal. É o
caso, por exemplo, da tutela penal à administração da justiça. O mesmo se pode dizer a
respeito da administração pública, da segurança da moeda, da fidelidade dos documentos, do
meio ambiente equilibrado, da arrecadação de tributos etc. Trata-se de entes ou valores que,
pela essencial função que exercem no âmbito de um Estado de cunho social, responsável pela
consecução de inúmeras prestações, demandam a tutela penal.288
É possível extrair, outrossim, proibições de incriminação também do texto
constitucional. A consagração dos direitos de liberdade, tais como a de manifestação, de
fixação de domicílio, de circulação e permanência no território do Estado, de profissão
religiosa, de pensamento, de organização sindical, de associação em partidos etc. traduz, em
288 Cf. PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 51-52.
181
realidade, proibições de incriminação: o legislador não pode transformar em delito o exercício
desses direitos.
Também na Constituição é possível visualizar princípios penais fundamentais,
como são o da legalidade, da personalidade e da individualização da pena, da humanidade, da
culpabilidade, da fragmentariedade, da intervenção mínima, entre outros, de sorte que – na
esteira do que se disse acerca do paradigma instaurado com apoio na idéia de rigidez
constitucional – as normas penais que os afrontem ou não os observem carecerão de
legitimidade, de validade mesmo, porque contrárias à norma maior em que se fundam
(Constituição).
Portanto, a discricionariedade do legislador penal ordinário na escolha dos bens a
tutelar encontra um limite intransponível: não podem ser reprimidos comportamentos que
sejam expressão de direitos de liberdade ou de princípios garantidos na Constituição. É na
Constituição, portanto, que o Estado há de captar os bens que lhe cabe tutelar, acerca dos
quais incidirá a intervenção penal, pois é a Constituição que contém os princípios últimos que,
passados pela filtragem valorativa do legislador constitucional, representam a base e estrutura
jurídica da comunidade.
O legislador ordinário deve sempre ter em conta as diretrizes contidas na Constituição e os valores nela consagrados para definir os bens jurídicos, em razão do caráter limitativo da tutela penal. Aliás, o próprio conteúdo liberal do conceito de bem jurídico exige que sua proteção seja feita tanto pelo direito penal, como ante o direito penal. Encontram-se, portanto, na norma constitucional, as linhas substanciais prioritárias para a incriminação ou não de condutas. O fundamento primeiro da ilicitude material deita, pois, suas raízes no texto magno. Só assim a noção de bem jurídico pode desempenhar uma função verdadeiramente restritiva. A conceituação material de bem jurídico implica o reconhecimento de que o legislador eleva à categoria de bem jurídico o que já na realidade social se mostra como um valor. Esta circunstância intrínseca à norma constitucional cuja virtude não é outra que a de retratar o que constitui os fundamentos e os valores de uma determinada época. Não cria os valores a que se refere, mas se limita a proclamá-los e dar-lhes um especial tratamento jurídico.289
289 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 76. No mesmo sentido, cf. ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. Tradução de
182
A premente relevância de construção adequada de um conceito de bem jurídico
decorre da transcendência política do direito penal, haja vista que os bens jurídicos revelam
em última análise uma opção político-criminal. Demais disso, é na construção “bem jurídico”
que se vislumbra concretamente o caráter subsidiário do direito penal: o conceito permite
definir a existência de delitos nos quais inexiste um bem jurídico relevante a ponto de
dispensar-lhe proteção penal, sendo suficiente aquela prevista por outros ramos do
ordenamento jurídico.
Mauricio Antonio Ribeiro Lopes290 e Luiz Regis Prado291 pontificam substancial
levantamento dos principais conceitos de bem jurídico esboçados pela doutrina. Welzel e Von
Liszt vêem no bem jurídico um bem vital da comunidade ou do indivíduo que, por sua
importância, é protegido juridicamente. Muñoz Conde conceitua o bem jurídico como os
pressupostos de que a pessoa precisa para sua auto-realização na vida social, aderindo à idéia
dos interesses vitais, entre os quais a vida, a liberdade, a saúde, a propriedade etc. Wessels
também afirma serem os bens jurídicos os bens vitais, os valores sociais e os interesses
juridicamente reconhecidos do indivíduo ou da coletividade que, em virtude da especial
importância para a comunidade, requerem proteção jurídica. Para Polaino Navarrete, trata-se
do bem ou valor merecedor da máxima proteção jurídica, cuja outorga é reservada às
prescrições do direito penal. São os bens e valores mais sólidos para a convivência humana
em condições de dignidade e progresso.
Jeschek ensina que os bens jurídicos são aqueles indispensáveis para a
convivência humana na comunidade e que devem ser protegidos pelo poder coativo do Estado
Ana Paula dos Santos Luís Natscheradet, Maria Fernanda Palma, Ana Isabel de Figueiredo. 3. ed. Lisboa: Vega, 1998, p. 27 et seq. 290 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 326 et seq. 291 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 41 et seq.
183
através da pena pública, como é o caso da vida, a integridade corporal, a liberdade, a
propriedade, o patrimônio, a integridade moral dos funcionários, a ordem constitucional, a paz
pública, entre outros. Ranieri diz ser o bem jurídico o bem ou interesse protegido por uma
norma de direito penal e que resulta lesionado pelo delito ao ser violada a norma que o
protege. Claus Roxin entende que os bens jurídicos são pressupostos imprescindíveis para a
existência em comum, caracterizadas por situações valiosas, como a vida, a integridade física,
a liberdade de atuação, a propriedade etc. Mas, além disso, deve o Estado social proteger,
através do direito penal se necessário, o cumprimento das prestações públicas de que depende
o indivíduo no âmbito da assistência social por parte do Estado. Bettiol afirma que o bem
jurídico é a posse ou a vida, isto é, o valor que a norma jurídica tutela, valor que não é
material, embora encontre na matéria o seu ponto de referência. Trata-se de posição ético-
valorativa, pois, falar de bem jurídico é falar de valores e não de interesses – valor é forma
mais apropriada de exprimir a natureza ética das normas penais.
Jäger refere-se ao bem jurídico como situações valiosas que podem ser alteradas
pela ação humana e que, por isso, podem ser protegidas através de normas penais. Battaglini
separa objeto jurídico formal e substancial; o primeiro é a norma penal contrariada pelo crime
e o segundo é constituído pelo interesse que a norma protege. Zaffaroni afirma que o bem
jurídico penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de uma pessoa com um objeto,
protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante normas que proíbem determinadas
condutas que as afetam, aquelas que são expressas com a tipificação dessas condutas.
Figueiredo Dias entende que num Estado de Direito material deve caber ao direito penal uma
função exclusiva de proteção dos bens fundamentais da comunidade, das condições sociais
básicas necessárias à livre realização da personalidade de cada homem e cuja violação
constitui o crime. Taipa de Carvalho define como bens, interesses ou valores apreendidos pela
184
consciência ético-social como fundamentais à convivência comunitária, na qual se realiza a
pessoa humana.
No direito brasileiro, merecem destaque algumas construções.292 Os bens jurídicos
são valores de vida individual ou coletiva, valores da cultura, segundo a visão de Aníbal
Bruno. Francisco de Assis Toledo leciona que “bens jurídicos são valores ético-sociais que o
direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que
não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”293. Afirma que ele teve lenta
elaboração teórica, no objetivo de fixar um conteúdo material para o injusto típico,
assinalando que, inicialmente, procurou-se esse conteúdo material na lesão ou exposição a
perigo de direitos subjetivos (Fauerbach); depois, na lesão ou exposição a perigo de interesses
vitais (final do séc. XIX); por fim, a conclusão de que o conteúdo material do injusto típico
reside na lesão ou a exposição a perigo de um bem jurídico. Cláudio Heleno Fragoso
conceitua que o bem jurídico é o bem humano ou da vida social que se procura preservar, cuja
natureza e qualidade dependem do sentido que a norma tem ou que a ela é atribuído,
constituindo, em qualquer caso, uma realidade contemplada pelo direito. Assim bem jurídico
é um bem protegido pelo Direito, um valor da vida humana que o Direito reconhece e a cuja
preservação é disposta a norma.
Pela clareza de sua exposição, bem assim precisão conceitual, o conceito de bem
jurídico que melhor se amolda à presente investigação é fornecido por Juarez Tavarez:
(…) Bem jurídico é um elemento da própria condição do sujeito e de sua projeção social e nesse sentido pode ser entendido, assim, como um valor que se incorpora à norma como seu objeto de referência real e constitui, portanto, o elemento primário da estrutura do tipo, ao qual se devem referir a ação típica e todos os seus demais componentes. Por objeto de referência real se deve entender aqui o pressuposto de lesão ou de perigo de lesão, pelo qual se orienta a formulação do injusto. Não há
292 Aqui também a referência é ao levantamento realizado por Luiz Regis Prado e Mauricio Antonio Ribeiro Lopes. 293 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 16.
185
injusto sem a demonstração de efetiva lesão ou perigo de lesão a um determinado bem jurídico.294
A função de tutelar bens jurídicos outorgada ao direito penal constitui verdadeiro
truísmo contemporâneo. Em que pese a posição – minoritária entre os funcionalistas, frise-se
— de Günther Jakobs, que rechaça a idéia do bem jurídico295, tal idéia tornou-se essencial
para a compreensão dos fins deste ramo jurídico, e isso sob várias perspectivas, de onde
nascem as várias funções do bem jurídico. Embora não haja unanimidade doutrinária
relativamente a estas funções, algumas constantes podem ser verificadas.
Uma das primordiais funções do bem jurídico é a denominada função de garantia,
por meio da qual intenta limitar a intervenção penal do Estado. Trata-se do compromisso do
legislador penal, assumido num Estado de Direito material, de não tipificar senão as condutas
graves que lesem ou coloquem em perigo autênticos bens jurídicos. A função de garantia
guarda especial relevância no âmbito do Estado democrático e social, para garantir uma
dimensão material para a norma penal. Somente as condutas que afrontem bens jurídicos
podem ser criminalizadas, o que é revelado pelo adágio nullum crimen sine injuria. Tal
função, de caráter político-criminal, limita o legislador em sua atividade no momento de
produzir normas penais. É o sentido informador do bem jurídico na construção dos tipos
294 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 179. 295 Para Jakobs, a missão do direito penal consiste em proteger a validade das normas. “Um ato penalmente relevante – de forma paralela ao que já se disse – não se pode definir como lesão de bens, mas somente como lesão de juridicidade. A lesão da norma é o elemento decisivo do ato penalmente relevante, como nos ensina a punibilidade da tentativa, e não a lesão de um bem”. JAKOBS, Günther. Ciência do direito e Ciência do direito penal: dois estudos de Günther Jakobs. Barueri: Manole, 2003, p. 51. Jakobs tenta demonstrar que o conceito de bem jurídico nada tem de liberal, posição que, como assinala com precisão Luís Greco, não convence, se confrontada com a época em que se descartou tal conceito. Cf. GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito (em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico-penal”, de Roxin). In: POLETTI, Ronaldo Rebello de Britto (Org.). Revista Notícia do Direito brasileiro. Nova série. n. 7. Brasília: UnB, Faculdade de Direito, 2000. p. 307-362. Disponível em: <http://www.direitosfundamentais.com.br/downloads/colaborador_introducao.doc >. Acesso em: 27 maio 2005, especialmente a nota 47. Para Jakobs, portanto, o discurso sobre o bem jurídico é, na verdade, um discurso metafórico sobre a vigência da norma, razão pela qual apresenta escassa utilidade prática. Para ele, o bem jurídico não possui suficiente potencial crítico para limitar eventuais excessos do legislador, tampouco a pena é hábil a recompor um bem jurídico lesado. Cf. FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Bien jurídico y sistema del delito: un ensayo de fundamentación dogmática. Buenos Aires: Editorial B de F, 2004, p. 65 et seq.
186
penais.296 É, assim, um papel que o bem jurídico exerce na individualização legislativa, no
momento da cominação penal.
A perspectiva limitadora quanto ao uso do direito penal faz com que este se
legitime somente quando for indispensável para a proteção do bem jurídico. Sendo a pena
criminal representativa da reação mais forte da comunidade, a ela deve recorrer o legislador
em último lugar, não podendo ser utilizada quando outros meios, mais suaves e menos
drásticos, bastem para alcançar a inibição da conduta indesejada. Essa limitação da forma
penal de punir condutas indesejadas apreende o direito penal como última ratio.297
Veicula, ainda, o bem jurídico uma função teleológica, interpretativa ou
exegética. O bem jurídico se revela como um critério de interpretação dos tipos penais,
condicionando o sentido e o alcance da sua proteção. Revelando o núcleo do tipo penal, o
bem jurídico se converte no leitor que permite descobrir a natureza do tipo, dando-lhe sentido
e fundamento.298 Como todo delito deve lesar ou ameaçar um bem jurídico, não é possível
interpretar ou conhecer a lei penal, sem lançar mão da idéia de bem jurídico. Portanto, o bem
jurídico é o conceito central do tipo, em torno do qual giram os elementos objetivos e
subjetivos, cabendo ao intérprete, na aplicação da lei penal, fazê-lo tendo em conta o valor
teleologicamente consagrado pelo bem jurídico.299
Nesta perspectiva, o bem jurídico atua como instrumento da individualização
judicial. De qualquer sorte, a função exegética não pode afastar-se das demais funções do bem
296 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 48. 297 Maurício Antonio Ribeiro Lopes, com lastro em Roxin, refere-se a uma função humanizadora que exerce o bem jurídico no sistema penal, ao delimitar que só se podem punir as lesões a bens jurídicos se isso for indispensável para uma vida comum ordenada. Cf. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 340-341. 298 LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 342.
187
jurídico, especialmente da função limitadora da atuação penal do Estado, pois somente assim
cumprirá a função de proteger a sociedade. De fato, a interpretação teleológica do bem
jurídico protegido poderá excluir do tipo condutas que não lesem ou não ponham em perigo
esse bem jurídico por falta de antijuridicidade material.300
O bem jurídico exerce ainda uma dita função sistemática, na medida em que atua
como elemento classificatório na formação dos grupos de tipos da parte especial do Código
Penal, servindo de guia para a estruturação dos títulos e capítulos de acordo com o bem
jurídico protegido. Portanto, é no exercício da função sistemática que o bem jurídico preside a
ordenação dos delitos na parte especial das legislações penais, que são catalogados de acordo
com o bem jurídico protegido.301
Por derradeiro, é de ver que o direito penal, tendo em conta a drasticidade da sua
sanção — que atinge um dos valores fundamentais dos indivíduos, a liberdade -, deve incidir
com a parcimônia recomendada pelo princípio da sua mínima intervenção, bem como sem se
distanciar dos lindes legitimadores dessa intervenção sob a égide do modelo de Estatal que se
pretende. Nessa toada, para realizar este desiderato, revela-se decisiva a definição acerca dos
bens passíveis de tutela penal.
299 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 48-49. 300 Maurício Antonio Ribeiro Lopes vislumbra, acerca disso, uma função dogmática atribuída ao bem jurídico. Cf. Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 342. 301 A nomenclatura “função sistemática” é tomada por Mauricio Antonio Ribeiro Lopes em outra acepção, isto é, toma-a como critério finalista de justiça: “A organização sistemática, contudo, não é propriamente uma função, senão uma técnica destinada a uma finalidade superior (…). A teoria do bem jurídico põe em estreito contato a determinação da missão do Direito Penal como critério de Justiça que utiliza a Política Criminal no momento de determinar quais fatos são dignos de uma pena criminal, pois vincula dita missão a uma qualidade visível de comportamento merecedor de pena. (…) Implica dizer que o processo de seleção e organização em categorias dos bens jurídicos-penais permite a identificação do critério de justiça empregado na estruturação do sistema punitivo, isso porque, sobretudo, facilita a penetração do princípio da proporcionalidade da intervenção penal estatal sobre os fatos ofensivamente relevantes ao interesse social” (Teoria constitucional do direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 341).
188
Mostra-se, portanto, plenamente satisfatório o critério que vê nos bens jurídicos os
valores a serem protegidos pelas normas penais. Além disso, é também certeiro situar e
identificar estes bens na Constituição da República, na medida em que ela representa o básico
pacto de convivência formulado entre os integrantes da sociedade e por nela constarem os
princípios e valores estruturais da comunidade.
Tal opção, veiculada com veemência pela dogmática penal, surge como iter
inarredável para alcançar um Estado efetivamente liberal e democrático, que privilegie as
iniciativas individuais e tome por pressuposto a vontade geral dos cidadãos, além de servir de
modelo para superar a tendência, infelizmente corrente, de preferência, por econômico e
facilitado, ao recurso indiscriminado de criminalização de condutas.
189
CONCLUSÃO
Uma intervenção penal que se pretenda legítima não poderá se afastar de uma
percepção axiológica para a construção de soluções dogmáticas e da própria definição
substancial do delito. O direito penal experimentou uma mudança de disciplina jurídica
puramente técnica e de negação valorativa para uma orientação segundo uma política criminal
valorativa. A ausência dessa referência tem ensejado uma utilização da intervenção penal que
não observa seu caráter de ultima ratio, convertendo-se em instrumento político de direção
social, com evidente prejuízo ao seu papel de proteção jurídica subsidiária a outros ramos do
ordenamento e ao seu substrato legitimador. O modo pelo qual a intervenção penal se legitima
é informado por valores extraídos de um programa de Política Criminal, que segue orientado,
por sua vez, pelas finalidades a serem buscadas pelo direito penal.
Todo o direito penal se integra na política criminal diante da identificação entre a
teoria dos princípios da política criminal e a dos fins (e meios) do direito penal. O direito
penal estatal, portanto, expressa uma opção político-criminal, de forma dúplice, tanto em lex
lata quanto em lex ferenda. A orientação da política criminal será fornecida justamente pelo
modelo de Estado a que se aspira. Assim, a intervenção penal orienta-se à realização de
valores extraídos da política criminal: não de qualquer política criminal, mas daquela acolhida
pelo modelo de Estado democrático de Direito. Um direito penal orientado às conseqüências
afasta-se de uma simples análise instrumental da intervenção penal, de sorte a também
considerar as opções valorativas veiculadas na escolha do âmbito de incidência e nos limites
impostos ao direito penal.
Entre as vertentes do pensamento conseqüencialista, é o funcionalismo teleológico
que melhor responde às questões acerca da legitimação e dos limites da intervenção penal.
190
Para afastar o risco de valorações isoladas e sem lastro comum, atribui-se à lei o papel de,
além de assegurar os pressupostos e os limites legais de eventual punição, orientar os valores
em que se fundamente a intervenção da política criminal para solução do caso concreto. O
direito penal, assim, passa a ostentar muito mais o papel de instrumento por meio do qual as
finalidades político-criminais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica: a
construção da teoria do delito, portanto, deve voltar-se teleologicamente aos valores político-
criminais, de sorte a afastar as críticas contra a dogmática abstrata-conceitual própria dos
tempos positivistas. Essa pauta extraída de uma norma maior demarcará a intervenção penal –
sem olvidar-se da evidente “relatividade” ou “condicionalidade sócio-cultural” do direito
penal no contexto do conceito de pessoa, sua dignidade e seus direitos fundamentais, de modo
definitivo, segundo o marco de uma fundamentação objetiva.
Enquanto o direito penal de um Estado social legitima-se como sistema de
proteção efetiva dos cidadãos, ao qual se atribui a missão de prevenção na medida – e
somente na medida – do necessário para essa proteção; o direito penal de um Estado
democrático de Direito deverá submeter a prevenção penal a outra série de limites, em parte
decorrentes da tradição liberal do Estado de Direito e em parte reforçados pela necessidade de
satisfazer ao conteúdo democrático do direito penal. Se o modelo de Estado deve determinar
uma concepção do direito penal, esta há de informar o suporte de seus componentes básicos, a
pena e o delito, sempre dirigidos a uma finalidade preventiva.
O implemento das garantias de rigidez nas Constituições provocou uma
transformação radical no papel delas. Essa mudança culminou na descoberta do significado e
do valor da Constituição como limite e vínculo impostos a qualquer poder, especialmente ao
direito penal. Com isso, todas as respostas às clássicas questões relativas à sua legitimação –
quando e como punir, quando e como proibir, quando e como julgar – resultam condicionadas
191
aos princípios veiculados na Constituição, que deixam de ser apenas reitores teóricos para
converterem-se em normas jurídicas vinculantes para o legislador. Não é apenas o direito
penal, mas também a política criminal que o informa que se submeterão à Constituição: o
paradigma constitucional será responsável pelo delineamento do sistema jurídico-penal,
impondo-se tanto à teoria como à análise dogmática do delito.
O movimento abolicionista nega qualquer justificação ou legitimidade externa à
intervenção punitiva do Estado e pode ser compreendido como uma forma de captar todas as
práticas discursivas e não discursivas do sistema de justiça penal e atuar frente a elas. Para
Louk Hulsman, a abolição de todo o sistema penal traduz uma necessidade lógica, uma vez
que o sistema penal causa sofrimento desnecessário, subtrai o conflito dos envolvidos e resiste
à imposição de limites. Para ele, a solução seria suprimir a regulação estatal de conflitos e
adotar formas descentralizadas de regulação autônoma desses conflitos. Já Thomas Mathiesen
ocupa-se de uma imediata abolição do cárcere como política criminal radical e vislumbra nas
organizações e nos movimentos sociais, como alternativas à esfera pública, os meios para
consolidação dessa política. O abolicionismo, inserido num viés que se pretende humanista,
implica certa forma de radicalismo e funda-se num princípio de solidariedade com aqueles
que se encontram à margem da sociedade.
Ferrajoli, que na construção de seu sistema garantista volta-se a uma justificação
do direito penal, situa-a no plano da filosofia do direito. Sustenta a necessidade de redução da
intervenção penal de um modo geral, num nítido projeto minimalista de direito penal, e
aponta a forma jurídica da pena como técnica institucional de minimização da reação violenta
ao desvio socialmente não tolerado e como garantia do acusado contra os arbítrios. Para ele,
os objetivos de prevenção da pena, ou ainda, somente o da redução dos delitos, não são
suficientes para ditar o limite máximo de intervenção penal, mas somente um limite mínimo,
192
abaixo do qual não se verifica adequada a incidência de uma sanção. A prevenção, não apenas
em relação aos futuros delitos, refere-se à possível reação punitiva — mas não penal – que se
revela informal, selvagem, espontânea, arbitrária. Na ausência de penas, e nisso reside sua
contundente crítica ao abolicionismo, essa resposta poderia advir do próprio ofendido ou de
forças sociais ou institucionais solidárias a ele. A pena, então, não serve apenas para prevenir
os delitos injustos, mas, igualmente, as injustas punições. Esses dois objetivos convivem em
situação dialética, trazidos pelas duas partes do contraditório no processo penal, ou seja, a
acusação, que atua movida pelo interesse de defesa social e, portanto, pretende potencializar a
prevenção e a punição dos delitos, e a defesa, interessada na promoção individual e, portanto,
na prevenção das penas arbitrárias. O direito penal, portanto, atuaria como técnica de tutela
dos direitos fundamentais.
As discrepâncias entre as vertentes abolicionistas e a abordagem garantista não
dizem respeito ao reconhecimento da necessidade de submeter o poder punitivo a estritos
controles jurídicos, mas radicam na compreensão de que tal objetivo comporta a legitimação
do atual modelo punitivo, de suas justificações e de suas penas.
Nada obstante, na contramão dessas discussões, verifica-se um movimento de
expansão do direito penal, consubstanciado na franca utilização de um “direito penal do
inimigo”, que, mesmo para aqueles que o aceitam, justificar-se-ia apenas em contexto
excepcional. O direito penal em expansão da contemporaneidade rege-se por finalidades
puramente simbólicas, afastadas da preocupação de realização de uma missão
constitucionalmente estabelecida, deixa de atuar como instrumento de controle do emprego da
força estatal e converte-se em instrumento de combate à criminalidade. O fenômeno da
globalização igualmente implica e fomenta essa expansão da intervenção penal.
193
O funcionalismo sociológico, que lastreará a opção legitimadora da intervenção
penal, guarda suas raízes na concepção de Durkheim, para quem o crime exercia uma função
integradora e inovadora na sociedade. A pena, segundo essa vertente, constituiria a reação
social necessária, atualizando sentimentos coletivos atingidos e reforçando a vigência de
determinados valores. O desvio, como gênero da espécie crime, decorre das relações
existentes entre a estrutura cultural e a estrutura social e do modo como os indivíduos reagem
à tensão que habita entre as duas.
Segundo o pensamento de Niklas Luhmann, que parte do funcionalismo
sociológico, o direito só pode ser compreendido como fenômeno social, de modo a se ocupar
da prática da legalidade (ou ilegalidade) como ação social, num processo de positividade
sociológica. Ao abordar o direito como estrutura de um sistema social cuja função essencial é
regular os sistemas complexos e os sistemas simples, o direito positivo — decisão que
absorve e apreende as situações contingenciais que caracterizam o aumento da complexidade
dos sistemas sociais — passa a ser expressão dinâmica do processo de mudanças das
estruturas sociais. A legitimação pelo procedimento e pela igualdade das probabilidades de
obter decisões satisfatórias substitui os antigos fundamentos jusnaturalistas ou os métodos
variáveis de estabelecimento do consenso.
A abordagem funcionalista-sistêmica fixa que a regulação da convivência social
supõe um processo de comunicação ou interação dos membros de uma comunidade que se
consuma por meio de uma relação estrutural nominada como expectativa. A sanção, segundo
essa compreensão, veicula um conteúdo contrafático, uma vez que a sua vigência como
norma não se modifica pelo fato de não ser cumprida; ao revés, seu cumprimento e a seguinte
sanção é que confirmam sua necessidade e vigência. Com isso, a análise sistêmica permite
fixar um novo marco teórico à idéia de legitimação do castigo, pois a pena tem uma função de
194
prevenção integradora, distinta daquelas que lhe foram atribuídas pela dogmática tradicional,
ou seja, reafirma a vigência da norma alterada pela prática delituosa. Assim, o direito penal
não tem de partir do bem jurídico lesado ou posto em perigo, senão do descumprimento da
norma que regula as relações sociais, de modo que à dogmática caberá caracterizar apenas
quem não é fiel ao Direito, e este será o autor do delito.
No entanto, a visão funcionalista-sistêmica do direito penal afasta-se de uma
necessária abordagem multidisciplinar e, o mais importante, prescinde de uma imperiosa
aproximação dos valores assegurados, constitucional ou legalmente, como próprios de uma
política criminal que oriente soluções axiologicamente voltadas a refletir a opção por um
Estado democrático de Direito. Por implicar verdadeira substituição do conceito de bem
jurídico pelo de “funcionalidade do sistema social”, a abordagem sistêmica acaba por afastar-
se do último ponto de que dispõe o direito penal para uma crítica do direito positivo. Já a
concepção funcionalista-axiológica ou funcionalista-teleológica veicula claramente a idéia de
um direito penal orientado à humanização por meio da política criminal. Para afastar o risco
de um relativismo valorativo, o funcionalismo teleológico extrai suas valorações político-
criminais diretamente da ordem constitucional do Estado democrático de Direito, que respeita
e promove a dignidade humana e os direitos fundamentais. Traduz ele uma síntese do
ontológico (em pensamento indutivo que compõe grupos de casos) com o valorativo (em
pensamento dedutivo vincado em valorações político-criminais), de sorte que o intérprete
deverá, em seu proceder interpretativo, atuar dedutiva e indutivamente de forma simultânea,
em postura que rememora a idéia do círculo hermenêutico. A dogmática jurídico-penal e a
política criminal passam a unir-se e, com apoio nos princípios constitucionais, destinam-se a
cumprir os objetivos de reafirmação dos valores vigentes, não só para a escolha dos
instrumentos capazes de obstaculizar a criminalidade, nos limites das garantias
constitucionais, mas também colaborar para a construção da norma futura. A missão
195
constitucional do direito penal – proteção de bens jurídicos por meio da prevenção geral ou
especial – dirige a construção teleológica de conceitos, a materialização das categorias do
delito, enfim, todo pensamento dogmático do direito penal.
Com isso, as teorias da pena assumem relevo fundamental à justificação do direito
penal. São três, historicamente, as teorias que respondem ao questionamento da legitimação
da intervenção penal. Nas teorias absolutas, de retribuição, o sentido da pena assenta em que a
culpabilidade do autor seja compensada mediante a imposição de um mal penal. As teorias
relativas, ou de prevenção, são visualizadas em dois aspectos. Segundo a prevenção especial,
a incidência da sanção penal volta-se a corrigir ou reabilitar o delinqüente, sempre que seja
possível, ou então a afastá-lo para torná-lo inofensivo. Já a prevenção geral fixa o sentido e o
fim da pena nos efeitos intimidatórios sobre a generalidade das pessoas.
Diante de teorias ecléticas ou mistas, Roxin enuncia uma chamada “teoria
unificadora dialética” com arrimo na concepção de que o atual direito penal enfrente o
indivíduo de três maneiras: ameaçando-o com penas e com isso delimitando o âmbito de
incidência da intervenção penal segundo os princípios da subsidiariedade e lesividade;
mensurando e impondo as penas; e, por fim, executando-as. Os distintos momentos de
realização do direito penal estruturam-se uns sobre os outros e, portanto, cada etapa seguinte
deve acolher em si os princípios da etapa precedente. Relativamente ao segundo momento de
realização do direito penal, a determinação do âmbito de incidência do direito penal orientar-
se-á pela prevenção geral. Uma preocupação retributivo-preventiva geral deve orientar a
mensuração da pena: a culpa, embora não se preste a fundamentar o poder penal do Estado,
serve para limitar essa intervenção estatal, ou seja, atua em favor do indivíduo. A prevenção
especial, voltada à reinserção ou ressocialização do indivíduo em abordagem multidisciplinar,
deverá informar a execução da pena em conjugação com os momentos anteriores. Assim, o
196
sentido e os limites da pena estatal justificam-se na missão que tem a intervenção penal de
proteção subsidiária de bens jurídicos e prestações de serviços estatais, mediante prevenção
geral e especial, de salvaguarda da personalidade no quadro traçado pela medida da culpa
individual.
Por derradeiro, acerca da missão do direito penal de exclusiva proteção de bens
jurídicos, vê-se que a Constituição traduz uma norma portadora de determinados valores
materiais, que conduzem a uma totalidade do ordenamento jurídico: uma unidade de sentido
material. A Carta Política, portanto, responde a uma concepção valorativa da vida social e
instaura um marco básico de princípios que conformam a convivência em sociedade. Veicula
uma pauta de valores e determina diretrizes que devem ser respeitadas por todo o
ordenamento jurídico do Estado, onde se inclui também o direito penal. A Constituição
assume papel ativo na construção da tipologia penal, na medida em que seleciona mediante
critérios e parâmetros os bens jurídicos relevantes na esteira dos valores esculpidos pelo
constituinte, delineando um determinado modelo de sistema penal e, com isso, lançando as
bases de uma política criminal extraída da própria norma fundante do sistema jurídico. O
sistema penal, portanto, há de expressar positivamente, reproduzindo e conformando, os
valores constitucionalmente definidos. Esses valores jurídicos fundamentais do ordenamento
jurídico estatal – em particular, o penal –, por meio de sua norma básica, prestar-se-ão como
critérios para medir a legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade.
Assim, como limite do poder estatal ou mesmo como garantia de liberdade, a Constituição
representa o poder de fixação dos limites em que há de se situar qualquer expectativa que
pretenda converter-se em direito. Num Estado democrático de Direito, ao direito penal cabe a
função de exclusiva proteção dos bens fundamentais do seio social, das condições sociais
básicas necessárias à livre realização da personalidade de cada indivíduo.
197
É na Constituição, portanto, que o legislador deve buscar os bens jurídicos aptos a
receber a proteção penal. De um lado, sob uma perspectiva político-criminal, o bem jurídico-
penal presta-se a determinar os rumos do direito penal, esboçando e – sobretudo – limitando o
âmbito de incidência da intervenção penal. De outro lado, sob uma perspectiva estritamente
dogmática, presta-se o bem jurídico-penal a apreender e identificar os objetos concretos da
tutela penal, o que se conhece por conteúdo material do crime, ou seja, o valor que se busca
proteger por meio da intervenção penal. Assim, radicado na concepção de que a intervenção
penal reflete o modelo de Estado a que se aspira, consentânea com o sistema político-criminal
vicejado pelo funcionalismo teleológico, impõe-se a adoção de uma teoria constitucional do
bem jurídico, que procure formular critérios aptos a orientar e limitar o legislador penal
quando da criação de tipos penais com lastro na Constituição vigente.
198
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