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O “BOM” INTÉRPRETE E A HERMENÊUTICA DESEJADA: O USO DA LINGUAGEM COMO INSTRUMENTO DE MANIPULAÇÃO PARA A CONSTRUÇÃO DOS DOGMAS E A ANULAÇÃO DOS INDIVÍDUOS Fernanda Ravazzano Lopes Baqueiro * * * * RESUMO: Este trabalho tem por escopo tecer uma análise crítica acerca do uso da linguagem como instrumento de manipulação, criando-se as falsas verdades, com o fim de legitimar e manter o domínio de um “Poder” sobre uma sociedade. Destarte, são criados ídolos e mitos para embaçar e castrar o intelecto dos homens, tornando-os facilmente adestráveis. Neste diapasão, há a manipulação do Direito, na criação das regras e castigos como forma de controle daqueles que se insurgem contra a “ordem”. Ademais, a constante interpretação manipulada dos objetos de estudo, aliada à figura do “bom” intérprete e a aceitação da interpretação pela sociedade, fortalece os dogmas e promove, cada vez mais, a cegueira das sociedades. Apenas através da percepção do “auto-engano” e conseqüente exercício da “auto-crítica”, as sociedades conseguirão se libertar das amarras do “Poder” e mudar a realidade vigente. PALAVRAS-CHAVE: linguagem; manipulação; poder; verdade; direito; moral; intérprete; hermenêutica; ídolos; mitos; “auto-engano”; “auto-crítica”. RIASSUNTO: Lo scopo di questa tesi è essere una analisi critica a rispetto dello uso del linguaggio come strumenti di manipolazione creando false veritá, obiettivando legittimare ed mantenere il dominio del “Potere” sulla società. In fatti, sono creati idoli ed miti da confondere il intelletto dell´uomo ed diventarlo più facilmente addestrabile. In questo modo, existono la manipolazione del Diritto, nella creazione delle regole e del castigo, come forme di controllo delle persone chi ribellarsi contro la “ordine”. Nonostante, la manipolazione della interpretazione degli oggetto di studi, alleata alla figura del “buono” interprete ed della accettazione di questa interpretazione dalla società, fortifica gli dogme ed incrementa il aceccamento della società. Appena attraverso la percezione dello “auto- inganno” ed allora, il esercizio della “auto-critica”, la società ottenerá liberarsi delle “Potere” ed cambiar la realitá. PAROLE-CHIAVE: Linguaggio; manipolazione; pottere; verità; diritto; morale; inteprete, emerneutica; idoli; miti; “auto-inganno”; “auto-critica”. SUMÁRIO:1 Introdução; 2 A estrutura da linguagem e o arbítrio dos signos; 2.1. A estrutura da linguagem em Ferdinand de Saussure; 2.2. A estrutura da linguagem em Gottlob Frege; 3. O “bom” intérprete: a linguagem, o Direito, a moral e o Poder; 3.1. Confusão entre Direito/moral/religião; 3.2. Função simbólica da linguagem e a relação de Poder; 3.3. A figura do “bom” intérprete e a hermenêutica desejada; 4. A criação dos mitos e dos ídolos; 4.1. Os ídolos de Bacon; 4.2. O mito e a linguagem e o seu papel na sociedade * Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; Advogada sócia do escritório Baqueiro & Ravazzano Advogados Associados; Advogada monitora do Patronato de Presos e Egressos do Estado da Bahia.

A Ilusão Da Justiça

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A Ilusão da Justiça , Hans Kelsen

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  • O BOM INTRPRETE E A HERMENUTICA DESEJADA: O USO DA LINGUAGEM COMO INSTRUMENTO DE MANIPULAO PARA A CONSTRUO DOS DOGMAS E A ANULAO DOS INDIVDUOS

    Fernanda Ravazzano Lopes Baqueiro

    RESUMO: Este trabalho tem por escopo tecer uma anlise crtica acerca do uso da linguagem como instrumento de manipulao, criando-se as falsas verdades, com o fim de legitimar e manter o domnio de um Poder sobre uma sociedade. Destarte, so criados dolos e mitos para embaar e castrar o intelecto dos homens, tornando-os facilmente adestrveis. Neste diapaso, h a manipulao do Direito, na criao das regras e castigos como forma de controle daqueles que se insurgem contra a ordem. Ademais, a constante interpretao manipulada dos objetos de estudo, aliada figura do bom intrprete e a aceitao da interpretao pela sociedade, fortalece os dogmas e promove, cada vez mais, a cegueira das sociedades. Apenas atravs da percepo do auto-engano e conseqente exerccio da auto-crtica, as sociedades conseguiro se libertar das amarras do Poder e mudar a realidade vigente.

    PALAVRAS-CHAVE: linguagem; manipulao; poder; verdade; direito; moral; intrprete; hermenutica; dolos; mitos; auto-engano; auto-crtica.

    RIASSUNTO: Lo scopo di questa tesi essere una analisi critica a rispetto dello uso del linguaggio come strumenti di manipolazione creando false verit, obiettivando legittimare ed mantenere il dominio del Potere sulla societ. In fatti, sono creati idoli ed miti da confondere il intelletto delluomo ed diventarlo pi facilmente addestrabile. In questo modo, existono la manipolazione del Diritto, nella creazione delle regole e del castigo, come forme di controllo delle persone chi ribellarsi contro la ordine. Nonostante, la manipolazione della interpretazione degli oggetto di studi, alleata alla figura del buono interprete ed della accettazione di questa interpretazione dalla societ, fortifica gli dogme ed incrementa il aceccamento della societ. Appena attraverso la percezione dello auto-inganno ed allora, il esercizio della auto-critica, la societ ottener liberarsi delle Potere ed cambiar la realit.

    PAROLE-CHIAVE: Linguaggio; manipolazione; pottere; verit; diritto; morale; inteprete, emerneutica; idoli; miti; auto-inganno; auto-critica.

    SUMRIO:1 Introduo; 2 A estrutura da linguagem e o arbtrio dos signos; 2.1. A estrutura da linguagem em Ferdinand de Saussure; 2.2. A estrutura da linguagem em Gottlob Frege; 3. O bom intrprete: a linguagem, o Direito, a moral e o Poder; 3.1. Confuso entre Direito/moral/religio; 3.2. Funo simblica da linguagem e a relao de Poder; 3.3. A figura do bom intrprete e a hermenutica desejada; 4. A criao dos mitos e dos dolos; 4.1. Os dolos de Bacon; 4.2. O mito e a linguagem e o seu papel na sociedade

    Mestra em Direito Pblico pela Universidade Federal da Bahia; Advogada scia do escritrio Baqueiro & Ravazzano Advogados Associados; Advogada monitora do Patronato de Presos e Egressos do Estado da Bahia.

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    para Cassirer; 4.3. A manipulao da linguagem e o auto-engano em Habermas; 5. Consideraes finais; Referncias.

    1 INTRODUO Este trabalho tem por escopo tratar do uso da linguagem como instrumento de

    manipulao para a legitimao e manuteno do domnio de um determinado Poder1

    sobre uma sociedade. Para tanto, ser analisada a estrutura da linguagem e o arbtrio dos signos em Ferdinand de Saussure e em Gottlob Frege, conferindo enfoque questo da intencionalidade no exerccio da interpretao.

    Ademais se procurar conceituar criticamente o que vem a ser a figura do

    bom intrprete e qual hermenutica desejada. Dessa forma, o hermeneuta deve se debruar sobre o objeto de estudo sempre buscando determinar seu sentido e tratar de sua relao com o meio segundo as regras previamente ditadas pela sociedade; , portanto, o intrprete, instrumento atravs do qual dito o Direito e as verdades absolutas so construdas e propagadas. Interessa ao Poder dominante manter os indivduos longe do conhecimento, para que nunca questionem seus dogmas. Assim sendo, apenas determinados homens, escolhidos pelo Poder (padres, cientistas, dentre outros), esto aptos a interpretar os objetos postos e extrair deles as verdades.

    Destarte, sero abordados os dolos de Bacon e os mitos de Cassirer, responsveis por embaar o intelecto dos homens e castrar sua liberdade. Os dolos tratados por Bacon seduzem os homens, torna-os preguiosos e apticos; os indivduos se encantam por falsas noes e no se percebem capazes de question-las. Neste mesmo sentido, Cassirer refere-se aos mitos existentes ao longo da histria da humanidade, ponderando que os mitos modernos so os polticos, devidamente acompanhados de um rito para anular o pensamento do homem cidado; por fim, ser abordado o pensamento de Habermas acerca do auto-engano da sociedade e da auto-reflexo. necessrio, pois, que a sociedade exera o senso de auto-crtica para perceber o estgio de cegueira em que se encontra para que se possa questionar os dogmas existentes e se libertar das amarras que a subjuga.

    1 Tal palavra utilizada neste trabalho objetiva retratar um grupo social dominante, que determina as regras em

    uma sociedade, em um dado momento histrico.

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    2 A ESTRUTURA DA LINGUAGEM E O ARBTRIO DOS SIGNOS Com efeito, para que se analise o uso da linguagem como instrumento de

    manipulao pelo Estado, mister que se aponte, primeiramente, estudos sobre a estrutura

    da linguagem e o arbtrio dos signos, para que, em seguida, se demonstre o sentido conferido pelo ente poltico a determinadas palavras, no processo de criao de mitos e

    dolos, e, conseqentemente, seus reflexos na vida em sociedade. Ressalte-se que este trabalho apenas far uma breve anlise da estrutura da linguagem, sem pretender esgotar o assunto, haja vista que o tema demasiado complexo, merecendo um trabalho especfico parte.

    2.1 A ESTRUTURA DA LINGUAGEM EM FERDINAND DE SAUSSURE

    Ferdinand de Saussure tratou da semntica sob o ponto de vista estrutural, analisando apenas o uso da lngua (instrumento) sistema de signos e no da linguagem (uso do instrumento), preocupando-se, portanto, com as relaes estabelecidas dentro da prpria palavra enquanto inserida num sistema. O conjunto de signos sozinhos, por conseguinte, dariam conta da significao, seriam auto-suficientes, sem haver necessidade de se correlacionar com o mundo exterior para se explicar. o princpio da arbitrariedade dos signos. Distingue, Saussure, entre as entidades psquicas (constituem os signos) e as fsicas (que lhe so estranhas).

    Assim sendo, o signo composto do significado juno do plano das idias (conceito), com o plano dos sons (fonema), que so massa amorfa e do significante imagem acstica. O signo lingstico uma entidade psquica de duas faces: une no uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acstica. Este lao que une

    significado e significante (signo) arbitrrio. Todavia, Saussure salienta que:

    A palavra arbitrrio requer tambm uma observao. No deve dar a idia de que o significado dependa da livre escolha do que fala (ver-se-, mais adiante, que no est ao alcance do indivduo trocar coisa alguma no signo, uma vez esteja ele estabelecido num grupo lingstico); queremos dizer que o significante imotivado, isto , arbitrrio em relao ao significado, com o qual no tem nenhum lao natural na realidade.2

    2 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingstica geral. Traduo de Antnio Chelini, Jos Paulo Paes e

    Izidoro Blikstein. So Paulo: Cultrix Ltda., 1993, p. 83.

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    A arbitrariedade reside, portanto, na relao do signo com o significado; em verdade, a arbitrariedade traduz que a relao significante/significado necessria, independe de fatores externos. Para que se interprete, deve o estudioso analisar o sistema lingstico no qual o signo encontra-se inserido, a intencionalidade do sistema.

    Analisando o pensamento de Saussure, cumpre tratar de duas metforas: a da

    folha de papel3, que traduz que a lngua e o pensamento so indissociveis, tal qual o verso e o anverso de uma folha de papel; se rasgarmos um lado, afetaremos o outro. Esta metfora utilizada por Saussure para afirmar que a lngua a expresso do pensamento, posto que sem a lngua, o pensamento seria uma massa amorfa e indistinta; a lngua um sistema de signos que se relacionam entre si e, dessa forma, significam. A outra metfora corresponde ao tabuleiro de xadrez4: cada pea possui sua importncia e significado de acordo com as demais peas. Dessa forma, a interpretao do signo se d em duas direes: vertical (significante e significado) e horizontal (relao do signo com outros valores).

    Por fim, ressalte-se que o fato social ser responsvel por criar o sistema lingstico, dentro do qual se apreender o valor do signo, quando confrontado com os demais signos que compem a coletividade.

    2.2 A ESTRUTURA DA LINGUAGEM EM GOTTOLOB FREGE

    Gottolob Frege estuda a linguagem utilizando-se dos fundamentos da lgica5 matemtica, estabelecendo, diferentemente de Saussure, uma relao necessria entre o signo e o universo exterior. Em sua obra ber Sinn und Bedeutung6 (Sobre o Sentido e a Referncia), traa uma diviso entre sinal, sentido e referncia e a relao com a representao7. O sinal corresponde unio da referncia (a coisa designada) e do sentido

    3 Idem. Ibidem, p. 131.

    4 Idem.Ibidem, p. 104-105. Ao movimentar uma pea do xadrez, apenas aquela pea alterada isoladamente;

    todavia, repercute em todo o sistema. Com a lngua, ocorre o mesmo. Por conseguinte, Saussure desenvolve sua teoria do valor. Para o lingista, um signo apenas possui valor no momento em que ele no outro signo. Trata-se de uma relao diferencial e negativa. 5 Cf. CASSELA, Csar Augusto de Oliveira. A literatura e a figura da significao. Disponvel em:

    Acesso em: 10 jul 2008. Neste artigo, o autor analisa o uso da lgica matemtica nos postulados de Frege: (A=A; B=B; A=B). 6 RODRIGUES, Fbio Della Paschoa. O arbitrrio do signo, sentido e referncia. Disponvel em:

    Acesso em: 10 jul 2008. O autor traz comentrios a esta obra de Frege. 7 Cf. CASSELA, Csar Augusto de Oliveira. A literatura e a figura da significao. Disponvel em:

    Acesso em: 10 jul 2008.

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    (o modo como o objeto se apresenta). Destarte, Frege aborda no somente os componentes do sinal (sentido e referncia), mas estuda a representao associada ao sinal. Dessa forma, o sinal apreendido objetivamente, atravs da percepo sensorial; a referncia, por sua vez, reside no plano subjetivo, correspondendo a uma imagem interna, banhada em lembranas e impresses sensveis, em experincias do indivduo. Em contraposio ao sentido de um sinal que partilhado por uma comunidade, a representao algo prprio do indivduo; assim sendo, a representao de um homem para algum difere para outra

    pessoa. Com efeito, Frege com tal assertiva salientou que algumas expresses no possuem uma determinada referncia, embora possamos retirar delas um sentido.

    Surge, portanto, uma nova problemtica acerca do arbtrio dos signos, posto que Frege leva em considerao na formulao do sentido o mundo real; a arbitrariedade agora reside na conexo entre os sinais e a coisa designada. Assim sendo, o universo extralingstico exerce influncia sobre o modo de pensar e se expressar da humanidade, no momento em que se atribui uma referncia a um sinal. Em razo desta conexo entre sinal e coisa designada ser arbitrria, a mesma pode ser deformada pelo falante. Para Frege, diferentemente do que entende Saussure, o arbtrio reside na conexo entre o sinal e a coisa designada e no entre o significado e o significante. Dessa forma, pode o emissor alterar o

    sentido do signo de acordo com suas ideologias e da cultura da sociedade em que est incurso, havendo, portanto, o uso da linguagem como instrumento de manipulao.

    3 O BOM INTRPRETE: A LINGUAGEM, O DIREITO, A MORAL E O PODER

    A partir da breve anlise acerca da estrutura da linguagem e como se opera a alterao do sentido e da referncia dos signos, passa-se a tratar da figura do bom intrprete. Assim sendo, deve o hermeneuta buscar extrair do objeto de estudo seu sentido e referncia de acordo com as normas pr-dispostas pela sociedade, de sorte a legitimar e manter um Poder atuante. Para tanto, para bem castrar os indivduos e subjugar a sociedade, o Estado se vale do Direito que apenas se realiza por meio da linguagem e, portanto, instrumento de manipulao e da confuso entre o Direito, a moral e a

    religio, para construir verdades, que no podem ser contestadas.

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    3.1 CONFUSO ENTRE O DIREITO/MORAL/RELIGIO

    Ao longo da histria da humanidade, sempre existiu a confuso entre direito/moral/religio. Destarte, analisar a genealogia do direito se debruar sobre a

    genealogia da moral e do castigo. Os preceitos morais formam os padres predispostos nas sociedades8, criando os deveres e direitos, extrnsecos natureza do homem, animal de

    rapina9, mas intrnsecos sociedade qual pertence. Se o Direito fico humana, criado para regulamentar condutas entre os homens a fim de que haja a convivncia em grupo, certo que tais regras surgiram diante dos conceitos difundidos em uma comunidade, num dado momento histrico, do que certo/errado, moral/amoral, bom/mau. Diante do nascimento da regra, surge a sua violao e, por via de conseqncia, a punio do comportamento desviante, o castigo. necessrio que se puna aquele que desobedece, que d vazo aos seus instintos e promove uma ruptura no tecido social, um abalo no contrato social para que se mantenha a unidade da sociedade. Em Nietzsche:

    A resposta, com todo o rigor: precisamente o bom da outra moral, o nobre, o poderoso, o dominador, apenas pintado de outra cor, interpretado e visto de outro modo pelo olho de veneno do ressentimento. Aqui jamais negaramos o seguinte: quem conhecesse aqueles bons apenas como inimigos, no conheceria seno inimigos maus, e os mesmos homens to severamente contidos pelo costume, o respeito, os usos, a gratido, mais ainda pela vigilncia mtua, pelo cime inter pares [entre iguais], que por outro lado se mostram to prdigos em considerao, autocontrole, delicadeza, lealdade, orgulho e amizade, nas relaes entre si -para fora, ali onde comea o que estranho, o estrangeiro, eles no so melhores que animais de rapina deixados solta.10

    Analisando ainda a genealogia do Direito, nos deparamos com a prpria histria

    do surgimento da humanidade, posto que desde que o homem nasce, sente a necessidade de conviver em grupo quer por questes de segurana, quer por questes econmicas e, para tanto, doa parte de sua liberdade em prol do convvio em sociedade. Assim sendo, o Direito produto da cultura humana, criado sobre alicerces morais, fortemente edificados, ao longo dos sculos pelas diversas religies atravs do fomento da culpa, do exerccio da

    8 Cf. DURKHEIM, Emile. As regras do mtodo sociolgico. So Paulo: Matin Claret, 2002. Para Durkheim,

    o homem encontra-se circunscrito num ambiente social que implica fatores coercitivos, os quais obrigam este indivduo a se amoldar aos ditames da sociedade. Dessa forma, o homem deve obedecer aos parmetros historicamente impostos pelo grupo social ao qual ele pertence. Segue, portanto, padres preestabelecidos e exteriores ao prprio, que abarcam o plano psicolgico, moral, hbitos, costumes, comportamento, toda sua cultura. 9Cf. NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral: uma polmica. Disponvel em: Acesso em: 02 jan 2008. 10

    Idem. Ibidem, p. 12.

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    auto-punio e da angstia pelo descumprimento dos valores da sociedade, obedecidos pelo homem nobre.

    Neste diapaso, conforme ex vi so criadas as regras, que devem ser obedecidas,

    sob pena de se infligir um castigo ao marginal. Tais regras decorrem da interpretao orientada dos atos/fatos, para que se mantenha o intelecto dos homens devidamente

    embaados, de tal sorte que os mesmos se encontram impotentes diante do que se afirma como verdade. O exerccio da culpa, da m-conscincia, fomenta no homem o dever de obedecer e nunca questionar. O intrprete diz qual o Direito, qual a regra e o castigo diante de sua desobedincia; a moral torna o homem fraco, pois destri sua mente; por conseguinte, a sociedade, devidamente subjugada, apenas um organismo que legitima e mantm o Poder.

    3.2 A FUNO SIMBLICA DA LINGUAGEM E A RELAO DE PODER Apenas aqueles que so aptos a interpretar e transmitir o significado de algo

    so detentores do Poder. Destarte, o Poder dominante se utiliza da linguagem como

    instrumento de manipulao, interpretando os smbolos de acordo com a mensagem que objetivam transmitir.

    Ao longo dos sculos, a funo simblica da linguagem se tornou importante meio de dominao e legitimao da permanncia de um Poder no comando de uma sociedade. Somente as pessoas autorizadas interpretam e extraem deste exerccio o real significado de algo, informando o que verdade e o que no . Analisando o pensamento

    de Todorov11, percebe-se que na interpretao patrstica, a linguagem utilizada como instrumento de manipulao. Com efeito, as ambigidades da linguagem existem para que

    apenas os aptos possam traduzir seus smbolos e desnudar seu contedo. Todorov, analisando a patrstica poca de Santo Agostinho, busca traar as razes para a funo simblica da linguagem:

    Podemos aqui distinguir trs razes. A primeira (que no muito freqente nos textos de Agostinho) que a expresso simblica protege a palavra divina do contato com os mpios; a obscuridade desempenha aqui um papel selectivo, permitindo afastar e neutralizar os no iniciados. As outras duas razes,

    11 Cf. TODOROV, Tzvetan. Simbolismo e interpretao. So Paulo: Edies 70, 1978.

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    invocadas mais freqentemente, vo, em certos aspectos, em sentidos opostos.12 (grifos aditados).

    Por conseguinte, pode-se afirmar que a linguagem sempre instrumento de

    manipulao; , conforme ex vi, lhe conferido um significado de acordo com os interesses dos detentores do Poder. Durante a era de ouro da patrstica, as interpretaes dos textos

    sagrados visavam enaltecer o papel de Deus na vida da sociedade e, por conseqncia, reforavam a importncia da Igreja, na figura dos padres, como o meio atravs do qual a palavra de Deus poderia ser corretamente interpretada e transmitida aos homens. A simbologia existente na Bblia existia porque apenas os homens autorizados poderiam interpretar as liturgias e determinar seu contedo e alcance. Deus era o Ser supremo e os padres eram o contato direto entre a vontade de Deus e o dever de obedecer dos homens.

    Destarte, a patrstica, bem como as diferentes formas de interpretao, nada mais so do que instrumentos disposio daqueles que detm o Poder. Se antes as religies no apenas o cristianismo indicavam quem poderia interpretar as escrituras que continham a verdade das coisas, experimenta-se, nos tempos atuais, o desempenho de tal papel pela cincia. Dessa forma, se acredita nos dogmas trazidos pela cincia13 como

    outrora foram trazidos pelas religies, sobretudo a Catlica.

    Com efeito, indaga-se: o que a verdade? Existe verdade absoluta sobre algo? A verdade, que se projeta para a sociedade da mesma forma que o Direito, ou seja, atravs da linguagem, tambm fruto de uma conveno. Os detentores do Poder, ou seja, aqueles que esto autorizados a interpretar algo, dizem o qual a regra/castigo14, o que moral/amoral, certo/errado, determinam o que o Direito e o que a verdade. Aqueles que

    podem definir o que a verdade so os mesmos que vigiam os homens para que no duvidem de suas afirmativas, para que no questionem seus dogmas. As verdades absolutas

    so vigiadas, constantemente, pelos prprios homens da sociedade. Aquele que tem o conhecimento do que verdade o detentor do Poder; os que vigiam os cidados so

    12 Idem. Ibidem, p. 112

    13Cf. SANTOS, Sousa Boaventura. Um discurso sobre as cincias. 4 ed. So Paulo: Cortez, 2006. Se antes os padres eram os nicos autorizados a interpretar os textos sagrados e traduzir do seu simbolismo a verdade, hoje as cincias interpretam fatos e provas para extrair seus significados, elaborar seus postulados e afirmar quais so as verdades. Os cientistas so instrumentos a disposio da burguesia para manter seu poder. 14Com efeito, Tercio pondera que: Nessa dicotomia aflora uma concepo limitada do prprio poder que oculta a noo de controle-disciplina (controle-regulao), ao encarar o poder-dominao (controle-dominao) como algo que se tem, se ganha, se perde, se divide, se usa, se transmite (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo: Atlas, 2007, p. 329).

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    exercentes de pequenas parcelas do poder, que ao final compem um Poder15 maior; quem diz a verdade o detentor do saber, do conhecimento, que o Poder. H, assim, relao entre a linguagem/interpretao/verdade/conhecimento/poder. Aquele que est autorizado a interpretar a simbologia da linguagem e extrair dela as verdades aquele que possui o conhecimento, e saber Poder. Analisando Foucault temos que:

    [...] Vigilncia permanente sobre os indivduos por algum que exerce sobre eles um poder mestre escola, chefe de oficina, mdico, psiquiatra, diretor de priso e que, enquanto exerce esse poder, tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir, sobre aqueles que vigia, a respeito deles, um saber. Um saber que tem agora por caracterstica no mais determinar se alguma coisa se passou ou no, mas determinar se um indivduo se conduz ou no como deve, conforme ou no regra, se progride ou no, etc. Esse novo saber no se organiza mais em torno das questes isto foi feito? quem o fez?; no se ordena em termos de presena ou ausncia, de existncia ou no existncia. Ele se ordena em torno da norma, em termos do que normal ou no, correto ou no, do que se deve ou no fazer16.

    O exerccio da vigilncia para lembrar sempre ao homem que ele no conhece e deve obedecer; h algo superior a ele, devendo o indivduo se curvar diante do Poder.

    Este exercido, conforme afirmado por Foucault, pelas pequenas autoridades, que so responsveis por castrar intelectualmente os indivduos desde o momento em que eles nascem em uma comunidade.

    3.3 A FIGURA DO BOM INTRPRETE E A HERMENUTICA DESEJADA Quem seria o bom intrprete? Quem seria o mau intrprete? Qual seria a

    hermenutica desejada? Ora, foi exposto no tpico anterior a confuso entre direito/moral/religio; decerto, existe o maniquesmo bem/mal, moral/amoral, certo/errado,

    valores devidamente criados pelo Poder dominante e mantido pelas sociedades ao longo dos sculos. Atravs da conceituao e conseqente imposio daquilo que correto para uma determinada comunidade, cria-se uma rede de valores, um sistema axiolgico que deve ser sempre preservado e reforado, o que se denomina cultura17 de um povo.

    15 Em qualquer estrutura de governo, h a delegao de atividades, poderes em prol de um Poder superior,

    para que se descentralize as tarefas e se mantenha a unidade da sociedade. 16

    FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. 2 ed. Rio de Janeiro: Nau, 1999, p. 43 17

    Neste sentido, Fauzi entende que: Se a cultura (e sua veiculao), pea fundamental para a compreenso do todo, num primeiro momento deve ficar claro que tipo de conhecimento deve ser fomentado para que se

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    O bom intrprete aquele que se submete s regras da sociedade e apenas extrai o sentido e o alcance do objeto de estudo necessrio para manter os dogmas criados pelo Poder. Assim sendo, o bom intrprete o dolo da sociedade, o mito, que serve aos interesses do ente poltico, de tal sorte que diz qual o Direito existente, qual a verdade das coisas; , pois, servo do Poder. Se antes o bom intrprete eram os Padres, que devidamente autorizados pelo Poder dominante da poca Igreja reforava os dogmas existentes, atualmente temos os cientistas. A cultura de uma sociedade orienta

    qual hermenutica desejada; compete ao homem apto a interpretar, manter a falsa verdade propagada, subjugando os indivduos, castrando-os para que no se insurjam contra os dogmas e nunca os questione. Neste diapaso, Tercio Ferraz assevera que:

    Assim, a possibilidade, conforme a situao, de usar cdigos fortes e fracos do poder de violncia simblica confere hermenutica uma margem de manobra, que, simultaneamente, explica as divergncias interpretativas, sem, porm, ferir a noo de interpretao verdadeira, enquanto a que efetua o ajustamento congruente entre poder-autoridade, poder-liderana e poder-reputao na emisso da norma. 18

    Conforme acima afirmado, o bom intrprete aquele que ao interpretar

    consegue atingir os fins desejados pela sociedade, ou seja, extrai do objeto de estudo seu conceito e referncia de acordo com os interesses do Poder. A traduo19 e a

    interpretao interessam quando o enfoque trazido pelo autor socialmente aceito; neste momento, o autor alcana a hermenutica desejada.

    4 A CRIAO DOS DOLOS E DOS MITOS Neste diapaso, so criados os dolos e os mitos, capazes de confundir o

    intelecto dos homens e mant-los devidamente adestrados, pois so facilmente seduzidos pela aparente descoberta das verdades. Passa-se anlise dos dolos de Bacon.

    aceda e interprete legitimamente o conjunto, que o detm e pode se encontrar apto a repass-lo (Cf. CHOUKR, Hassan Fauzi. Processo penal de emergncia. Rio de Janeiro: Lmen, 2002, p. 27). 18

    FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo: Atlas, 2007, p. 287. 19O autor assevera que: 5.1.5.1 NOO COMPETENTE DO USO DA LNGUA. A resposta remete-nos a uma questo pragmtica: trata-se de uma questo de enfoque. O critrio da boa traduo repousa no enfoque do tradutor, ou, mais precisamente, na aceitao do enfoque do tradutor. Aceitar o enfoque do tradutor significa abrir-lhe um crdito de confiana. (FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo: Atlas, 2007, p. 275)

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    4.1 OS DOLOS DE BACON

    Com efeito, Bacon20 trata dos dolos (falsas noes), responsveis pelo bloqueio da mente humana e dos equvocos da cincia e dos homens que se dizem cientistas, capazes

    de, inclusive, obstaculizar o alcance das verdades. Para o filsofo, apenas a formao de noes e axiomas pela verdadeira induo que seria capaz de alcanar as verdades e

    repelir os dolos. Assim sendo, Bacon pontua que o intelecto humano d maior valor a certas coisas, valores do que de fato elas possuem. Destarte, classificou esses dolos em quatro grupos: 1) Idola tribus (dolos da tribo); 2) Idola specus (dolos da caverna), 3) Idola fori (dolos da vida pblica).; 4) Idola theatri (dolos do teatro).

    Percebe-se que, para o filsofo, o intelecto humano acomodado; se uma afirmao feita e aceita facilmente pela sociedade, ele tende a acreditar nela e nunca que

    questiona sua autoridade21, perpetrando tal equvoco. Dessa forma, tendem a crer em argumentos msticos, como a astrologia, interpretao de sonhos. Em verdade, o intelecto

    humano prefere as instncias positivas s negativas, tendo dificuldade em entender que os verdadeiros axiomas vm a partir das instncias negativas. longo e rduo o percurso at deparar-se com os fatos remotos e heterogneos pelos quais os axiomas se provam. Mas o intelecto humano no luz pura, posto que influenciado pela vontade e afetos, gerando a cincia que se quer, haja vista que o homem tende a ter por verdade o que prefere. Segue o caminho mais cmodo, rejeita as dificuldades e se impacienta com a investigao; os sentimentos povoam e nublam o intelecto.

    Destarte, os homens tendem a aceitar como verdadeiros certos assuntos por

    acreditarem em seus descobridores; uns tm preferncia pela Antiguidade, outros pelas coisas modernas, sem lanar, todavia, um olhar crtico sobre ambas e alcanar a justa medida, ou seja, o meio termo, levando em considerao poca das afirmaes e no a natureza 22e a experincia, que so eternas.

    20 Cf. BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicaes acerca da interpretao da natureza.

    Traduo e notas de Jos Aluysio Reis de Andrade. So Paulo: Nova Cultural, 1997. 21

    Quando cr em algo, quer porque se convence de que de fato aquilo verdadeiro, quer porque lhe convm tal assertiva, trata de arrastar todos os argumentos possveis para seu apoio e acordo. No observa os argumentos contrrios ou simplesmente os despreza, no sem grande prejuzo. Em razo de tal comportamento essas assertivas permanecem inalteradas. 22

    O autor pondera ainda que no se deve, porm, ao analisar a natureza das coisas, observar apenas as partculas delas, mas tambm sua estrutura. Deve-se alternar ambas as formas. H de se ter cuidado com as predilees do intelecto, que embaam a viso das coisas, de sorte que apenas atravs da precauo o intelecto se mantm ntegro e puro.

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    Acerca dos dolos do foro, Bacon assevera que esses so, sem dvidas, o tipo mais perturbador de dolos porque se utilizam da linguagem como forma de manipular os intelectos, empregando valores vulgares aos conceitos, confundindo as mentes humanas e convencendo-as das verdades que querem. O uso da palavra se d de duas formas: ou os dolos se valem de nomes para se referir a coisas que no existem (como fortuna, primeiro mvel, rbita planetria) ou usam nomes de coisas que existem, mas de forma dbia, temerria.

    Dos dolos do teatro, que tm suas origens nas doutrinas filosficas influentes, no passam de peas teatrais, representadas num mundo irreal. Muitos dogmas so construdos pelos dolos do teatro, atravs do uso da religio e das filosofias (que floresceram entre os gregos). So fbulas que enganam os homens, com suas cenas ordenadas e elegantes que aprazem mais que as verdadeiras narraes tomadas da histria. A filosofia se embasa em um nmero limitado de experincias, onde constri seu

    raciocnio, levando ao equivoco das coisas, posto que afirma como verdade algo parcial; h ainda filsofos que misturam cincia com religio, amparados pela f e venerao das

    gentes; por fim, Bacon assevera que para que haja progresso das cincias, mister que haja a destruio dos dolos. Livre das amarras dos dolos, parte-se para a Grande Reconstruo. Para que o homem deixe de ser dominado e passe a ser dominador da natureza, preciso que ele conhea bem as leis da natureza: saber poder.

    4.2 O MITO E A LINGUAGEM E SEU PAPEL NA SOCIEDADE PARA

    CASSIRER

    Os mitos para Cassirer possuem funo semelhante aos dolos de Bacon; so

    criados para subjugar os indivduos pertencentes a uma sociedade. Com efeito, Cassirer trata no apenas dos mitos, mas dos ritos que os acompanha como instrumento de

    manipulao e anulao dos homens.

    Ernest Cassirer aborda os mitos modernos, quais sejam, os mitos polticos e a carncia que os homens possuem em ter um heri para guia-los. guisa de exemplo, trata o autor do mito poltico do nazismo. Neste diapaso, a sociedade alem, vivenciando, num dado momento histrico, uma crise sem precedentes, acometida do medo, pavor e desespero, exigiu dos seus governantes uma resposta drstica, capaz de tir-los daquele

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    momento de angstia. Como em toda sociedade, que diante de uma crise entra em pnico e clama por uma soluo imediata, surge um regime de exceo; cria-se, ento o heri da Alemanha, Adolf Hitler, e nasce o nazismo, o mito do Estado. Todavia, tal mito para triunfar fez-se acompanhado de um rito, castrador, que repetidas vezes levava os indivduos a um estado de xtase e anulao, de tal sorte que restaram incapazes de perceber o que defendiam.

    Desta forma, h a funo social do mito, qual seja, ludibriar as sociedades, torna-las dceis a partir de falsas promessas, anulando os homens a tal ponto de perderem sua identidade. Para muitos, poca do nazismo, este mito solucionou diversos pontos da crise e no mostrou sua verdadeira face, a princpio, razo pela qual, durante anos foi reverenciado pela comunidade alem. Cumpre adotar as lies de Cassirer acerca da existncia dos mitos modernos e como os mesmos operam no plano do inconsciente coletivo:

    O mito foi sempre descrito como resultado de uma atividade inconsciente e como um produto livre da imaginao. Mas aqui encontramos o mito feito de acordo com um plano. Os novos mitos polticos no crescem livremente; no so frutos bravios de uma imaginao exuberante. So coisas artificiais por artesos hbeis e matreiros. Estava reservado ao sculo XX, grande era da tcnica, desenvolver uma nova tcnica de mito.

    [...] O efeito desses novos ritos obvio. Nada melhor para adormecer todas as nossas foras ativas, o nosso poder de juzo e discernimento crtico, e para nos retirar o sentimento de personalidade e responsabilidade individual do que a realizao constante, uniforme e montona dos mesmos ritos.23

    Kelsen24, analisando o pensamento de Cassirer, assevera que a formao e o fortalecimento dos mitos reside na dualidade bem/mal, na construo das regras que formam o bom homem e, em contrapartida, aquele que no as segue o indivduo mau; a concepo das almas e a personificao da natureza, aliada ao uso das palavras mgicas destaque ao papel da linguagem como instrumento de manipulao incrementam ainda

    mais o pensamento mtico e facilitam sua aceitao na sociedade. Percebe-se, pois, que a

    23 CASSIRER, Ernest. O mito do Estado. So Paulo: Cdex, 2003, p. 326-329.

    24 Kelsen pondera que Cassirer caracteriza o pensamento mtico, diferenciando-o do lgico-causal [...] Em

    outras palavras: enquanto o pensamento racional tende a diluir substncia em funo, o pensamento mtico detm-se no substancial. Fundamentalmente, a personificao das foras da natureza e, particularmente, dos valores morais do Bem e do Mal, to caracterstica de todos os mitos - sua apresentao como entidades pessoais, humanas e sobre-humanas, a concepo de almas, espritos, demnios e deuses bons e maus -, produto dessa tendncia substancializaro. (KELSEN, Hans. A iluso da justia. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 213).

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    massificao de uma idia, aliada a uma especfica ritualizao, anula a individualidade do homem, tornando-o mais facilmente adestrvel e inconsciente de seu papel na comunidade.

    4.3 A MANIPULAO DA LINGUAGEM E O AUTO-ENGANO EM HABERMAS

    Neste sentido, Habermas25 traz luz as concepes de auto-reflexo, auto-engano e discorre sobre o paradigma da linguagem e os atos da comunicao. Com efeito, o

    ente estatal se vale da linguagem, por meio dos arbtrios dos signos, para criar mitos e dolos. A teoria crtica da sociedade tem interesse emancipatrio do conhecimento; usa-se

    a reflexo para promover a autonomia do interesse da razo. Dessa forma, desenvolvido o senso crtico, contesta-se a linguagem empregada que visa justificar os interesses da dominao. Trata-se da ao estratgica da comunicao, em que se usa a linguagem para orientar e manipular os intelectos; atravs da ao comunicativa rompe-se com o paradigma da conscincia pelo paradigma da linguagem.

    Com a mudana paradigmtica da linguagem26, centrada nos pressupostos do sentido, argumentao, consenso, as relaes intersubjetivas e o discurso, h a ampliao do conceito de racionalidade e, conseqentemente, o homem tem conscincia de si e do

    papel que desempenha na sociedade, sendo capaz de romper com as barreiras dos dogmas propagados pela religio e pela cincia.

    Percebe-se a correlao entre a concepo de auto-engano e auto-reflexo e da necessidade emancipatria do intelecto humano e o pensamento desenvolvido por Emile Durkheim27. Para o autor, o homem encontra-se circunscrito num ambiente social que implica fatores coercitivos, os quais obrigam este indivduo a se amoldar aos ditames da sociedade. Dessa forma, o homem deve obedecer aos parmetros historicamente impostos pelo grupo social ao qual ele pertence. Segue, portanto, padres preestabelecidos e exteriores ao prprio, que abarcam o plano psicolgico, moral, hbitos, costumes, comportamento, toda sua cultura. Tal processo , at certo ponto, inconsciente, instintivo, e

    so fatores determinantes para se asseverar seu maior ou menor comprometimento com os

    25 Cf. HABERMAS, Jrgen. Conhecimento e Interesse. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1982.

    26 Cf. MEDEIROS, Arilene Maria Soares e MARQUES, Maria Auxiliadora de Resende B. Habermas e a

    teoria do conhecimento. Disponvel em: Acesso em: 01 Mai 2008. 27

    Cf. DURKHEIM, Emile. As regras do mtodo sociolgico. So Paulo: Editora Matin Claret, 2002.

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    processos coletivos28.

    Neste diapaso, Durkheim se utiliza da palavra devoto para se referir ao indivduo. Com efeito, o homem antes de nascer j encontra pronta todas as crenas e prticas da vida religiosa que deve seguir, formas de se comportar, de agir, de se expressar, de tal sorte que se tratam de regras que so exteriores conscincia do indivduo, independente da mesma. Os processos coletivos possuem primazia sobre os indivduos, que so obrigados a seguir as regras interpostas desde o momento de seu nascimento, como se

    fosse algo natural, mais forte que ele, que o adestre29, de tal sorte que seus impulsos naturais individuais sejam tachados de egosmo, individualismo. Trata-se do controle de seus impulsos individuais em prol de conviver pacificamente em sociedade, como um bom cidado. Pontue-se ainda que, para Durkheim, qualquer conflito precisa ser superado.

    Neste mesmo sentido, Habermas ao tratar da psicanlise, pondera acerca do convvio social e do auto-engano. Indaga-se: quais so as intenes que fazem com que os indivduos se unam? Ora, o indivduo tem averso civilizao porque ele se pune o tempo todo; o recalque colocar aquilo que no desejado pelo indivduo, o territrio estrangeiro de si prprio, um auto-engano. O homem no deseja interagir porque o regime social exige regras, e, desta forma, ao conviver em sociedade, o indivduo se aprisiona

    dentro de si. Ento porque ele viveria em sociedade30? Por interesses econmicos e de preservao.

    O superego segura o inconsciente; diz quais so as regras, de tal sorte que retrata a vida em sociedade. Se houvesse apenas o inconsciente, o homem no sobreviveria vida social. Percebe-se, pois, que o homem para sobreviver no seio de uma comunidade, anula seus instintos, seus impulsos, obedece regras sob a escusa de se preservar o contrato social. Pergunta-se: o que moral e amoral31? o que se convencionou ser e no o que realmente . Apenas no momento em que a sociedade exercitar sua auto-crtica e perceber seu auto-

    28 De acordo com o abordado no item, 2.1 deste trabalho, o meio social se utiliza dos instrumentos de coero

    e instituies educativas aliena o indivduo, controla-o, regula-o e molda-o aos padres por ela pr-determinados, tornando os processos coletivos harmnicos, preservando o pacto social. 29

    Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da priso. Petrpolis: Vozes, 2002.Pode-se fazer aqui uma relao com esta obra de Michel Foucault, que aponta que a determinao dos horrios para dormir, almoar e trabalhar dos presos, ou seja, a pr-determinao de sua jornada, aliada obrigatoriedade do trabalho (ressocializao), bem como participao no culto religioso ofertado pelo Estado, tornam o preso adestrado, anulando-o, castrando-lhe. 30

    H uma compensao pela vida em sociedade (o homem renuncia sua pulso para viver em sociedade) como o ganho de bens, de pessoas. Os indivduos possuem tendncias destrutivas e por isso existe a punio, para sufocar esta tendncia. O ser psictico aquele que deixa fluir sua tendncia destrutiva (no tem sentimento de auto-limitao, de culpa). 31Conforme visto no tpico 2.1. acerca da confuso entre Direito e moral.

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    engano, conseguir rever tal posicionamento; destarte, a sociedade conseguir se libertar das amarras que a prende e a anula, iniciando um movimento de revoluo interna, com a conseqente contestao dos dogmas existentes e rompimento das barreiras castradoras. Somente aps esta percepo que se poder mudar a realidade vigente.

    5. CONSIDERAES FINAIS Ao analisar o arbtrio dos signos, baseando-se na estrutura da linguagem para

    Frege, apreende-se que o Estado se utiliza da linguagem como instrumento de manipulao, a partir da alterao da conexo entre o sinal e a referncia das palavras, conferindo-lhes o

    enfoque desejado, a fim de perpetrar seus dogmas e anular intelectualmente os homens. Compreendendo a relao entre a lngua e o universo exterior, percebe-se, mais claramente, como o ente poltico usa a linguagem como forma de legitimar e manter seu controle.

    Dessa forma, o Poder ao alterar tal relao, cria as verdades absolutas e

    indica quem o bom intrprete, qual seja, aquele autorizado a exercitar a hermenutica desejada, de tal sorte que dever manter o discurso do ente estatal. A propagao de falsas verdades e, conseqentemente, a criao dos dolos e mitos, castra o intelecto dos homens, torna-os facilmente adestrveis e incapazes de questionar os dogmas impostos. Neste sentido, o Direito exerce papel de destaque; em verdade, o Direito instrumento colocado disposio do ente poltico, posto que ao criar normas cujo contedo visa manter o controle de quem est no domnio da sociedade que devem ser obedecidas pelos cidados de bem, cria o castigo para se punir os maus indivduos, que ousam questionar e violar tais regras. A ritualizao das condutas, aliadas ao fomento e exerccio da culpa, torna os homens pesadamente incapazes de questionar as verdades absolutas; seduzidos pelos

    bons intrpretes, so facilmente corrompidos, subjugados. Assim sendo, para que a sociedade se liberte dos falsos dogmas que a cega,

    mister que ela perceba seu auto-engano e exercite a auto-reflexo. Trata-se de um processo demorado e doloroso haja vista que o intelecto do indivduo , no raro, preguioso, preferindo acreditar e seguir as verdades j postas que construir suas prprias mas necessrio, para que se ultrapasse tal estgio de dominao e se inicie um processo de libertao. Para tanto, essencial que o homem conhea, posto que somente atravs do conhecimento se tem o poder de questionar, argumentar, destruir e construir.

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    REFERNCIAS BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicaes acerca da interpretao da natureza. Traduo e notas de Jos Aluysio Reis de Andrade. So Paulo: Nova Cultural, 1997.

    SANTOS, Sousa Boaventura. Um discurso sobre as cincias. 4 ed. So Paulo: Cortez, 2006

    CASSELA, Csar Augusto de Oliveira. A literatura e a figura da significao. Disponvel em: Acesso em: 10 jul 2008.

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    DURKHEIM, Emile. As regras do mtodo sociolgico. So Paulo: Matin Claret, 2002.

    FERRAZ JR., Trcio Sampaio. Introduo ao Estudo do Direito: tcnica, deciso, dominao. 5 ed. So Paulo: Atlas, 2007.

    FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. 2 ed. Rio de Janeiro: Nau, 1999.

    ______. Vigiar e punir: nascimento da priso. Petrpolis: Vozes, 2002

    HABERMAS, Jrgen. Conhecimento e Interesse. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1982.

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    SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingstica geral. Organizado por Charles Bally e Albert Sechehaye. Traduo de Antnio Chelini, Jos Paulo Paes e Izidoro Blikstein. So Paulo: Ed Cultrix, s/d.

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