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A literatura fantástica: caminhos teóricos

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UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”Reitor: Julio Cezar DuriganVice-reitora: Marilza Vieira Cunha Rudge

Faculdade de Ciências e Letras – AraraquaraDiretor: Arnaldo CortinaVice-diretor: Cláudio César de Paiva

COLEÇÃO LETRAS Nº 9

Conselho Editorial Acadêmico do Laboratório EditorialLuiz Gonzaga MarchezanLeandro Osni ZanioloMarcia Teixeira de SouzaWagner de Melo RomãoEnéas Gonçalves de Carvalho

NormalizaçãoBiblioteca da Faculdade de Ciências e Letras

DiagramaçãoPatrícia de Abreu

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Ana Luiza Silva Camarani

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Copyright © 2014 by Laboratório Editorial da FCLDireitos de publicação reservados a:

Laboratório Editorial da FCL

Rod. Araraquara-Jaú, km 114800-901 – Araraquara – SP

Tel.: (16) 3334-6275e-mail: [email protected]

página: http://www.fclar.unesp.br/laboratorioeditorial

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Sumário

Introdução��������������������������������������������������������������� 7

REFLEXÕES TEÓRICAS E CRÍTICAS PRECURSORAS ��� 13

O precursor teórico: Charles Nodier ����������������������������13

As considerações de Maupassant sobre o fantástico �������22

A visão histórico-literária de Pierre-Georges Castex ��������30

TEXTOS FUNDADORES: VAX, CAILLOIS, TODOROV, BELLEMIN-NOËL, BESSIÈRE ������������������������������������ 43

Vax e a abordagem filosófica ��������������������������������������43

Caillois: diferentes formas do maravilhoso e do sobrenatural �������������������������������������������������������� 54

Todorov e o estruturalismo �����������������������������������������58

Jean Bellemin-Noël: retórica e psicanálise ����������������������73

Bessière e a poética do incerto ������������������������������������84

A EVOLUÇÃO DA TEORIA �������������������������������������� 97

Jacques Finné e a noção de explicação �������������������������97

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Filipe Furtado e a construção do fantástico na narrativa ���107

Joël Malrieu e a valorização do personagem ���������������117

Valérie Tritter: a retomada do fantástico como forma mo-vente ���������������������������������������������������������������������122

Remo Ceserani : o fantástico como modalidade literária ���131

Michel Viegnes: fantástico e poesia ���������������������������142

David Roas: em busca dos limites do real��������������������165

TEORIA E CRÍTICA NO BRASIL ������������������������������ 179

A crítica de José Paulo Paes ��������������������������������������179

O fantástico stricto sensu de Selma Calasans Rodrigues ���� 183

Considerações Finais ��������������������������������������������� 191

Referências ����������������������������������������������������������������197

Sobre Os Críticos ������������������������������������������������� 207

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INTRODUÇÃO

Um grande número de obras teóricas, notadamente em língua francesa, marca a história da literatura fantástica há cerca de duzentos anos. Jacques Finné (1980, p.21), em La littérature fantastique: essai sur l’organisation surnaturelle já o assinala: “De Charles Nodier à Irène Bessière, quelle moisson de théoriciens du fantastique! Quelle disette, aussi!”

Concordo com as duas afirmações, no sentido em que, apesar do grande número de estudos teóricos, alguns bastante recentes, há certa flutuação no que se considera como narrativa fantástica no sentido estrito do termo, isto é, uma modalidade literária muito bem definida. Essa oscilação pode ser explicada pelos traços comuns existentes entre o romance gótico, a narrativa fantástica e o realismo mágico, uma vez que essas três modalidades exigem, em sua construção, duas configurações discursivas diversas: a realista e a não realista, na qual o sobrenatural ou insólito se manifesta. Contribui para dificultar essas distinções a questão do desenvolvimento do fantástico a partir do século XX, indicado como fantástico atual, contemporâneo ou neofantástico.

A narrativa fantástica caracteriza-se ao mesmo tempo pela aliança e pela oposição que estabelece entre as ordens do real e do sobrenatural, promovendo a ambiguidade, a incerteza no que se refere à manifestação dos fenômenos estranhos, insólitos,

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mágicos, sobrenaturais. No romance gótico, esses elementos são explícitos, logo, a incerteza não se manifesta, embora a contradição entre as duas configurações discursivas permaneça. O realismo mágico, por sua vez, mantém a mesma conformação binária, mas elimina a contradição entre o real e o sobrenatural ou insólito: há a naturalização do sobrenatural ou a sobrenaturalização do real, ou ainda o chamado realismo maravilhoso centrado nas crenças étnicas.

Malrieu (1992) assinala que o fantástico nunca saiu completamente dessa situação confusa, tanto na teoria quanto na prática, desde sua origem no romantismo europeu. Alazraki (2001) exprime também sua insatisfação a respeito do rótulo generalizado e propõe a denominação de neofantástico aos textos que marcam a transformação do fantástico a partir do século XX.

Desse modo, penso ser relevante definir que este trabalho tem o objetivo de centrar-se nas reflexões e discussões sobre o fantástico tradicional, que continua a ser desenvolvido durante o século XX por alguns escritores, embora seu ápice tenha sido o século XIX. O que não significa que minhas reflexões sobre sua transformação tenham sido negligenciadas no decorrer de meu texto, que divido em quatro partes.

Os textos teóricos, críticos e de história literária contemplados são apresentados e discutidos de acordo com sua ordem cronológica de publicação. Assim, na primeira parte, “Reflexões teóricas e críticas precursoras”, apresento o precursor teórico, Charles Nodier e as reflexões de Guy de Maupassant, já no final do século XIX, quando o fantástico deixou seu ápice e evoluiu sob a consolidação do positivismo e do progresso científico; em seguida, para mostrar o percurso da literatura fantástica de Nodier a Maupassant, apresento as ideias de Pierre George-Castex que, no início da segunda metade do século XX, reativa os estudos teóricos, críticos e histórico-literários sobre essa modalidade literária.

A segunda parte do estudo, sobre os “Textos fundadores”, focaliza os textos teórico-críticos iniciadores, aqueles que serão retomados pelos estudos posteriores, considerando as reflexões de

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Vax, Caillois, Todorov, Bellemin-Noël e Bessière, dos quais procuro assinalar as ideias que julgo mais pertinentes.

Na terceira parte, “A evolução da teoria”, busco apontar alguns críticos que, a partir dos textos iniciadores reavaliam as propostas ali contidas, trazendo sua contribuição para a definição e compreensão do fantástico literário: Finné, Furtado, Malrieux, Tritter, Ceserani, Viegnes e Roas.

Abandono, de certa forma, a ordem cronológica na quarta parte, quando me restrinjo à “Teoria e crítica no Brasil”, com os textos de Paes e Rodrigues, que datam dos anos 80 do século passado.

Os escritos de Freud, Lovecraft, Sartre e Schneider, embora não mencionados no sumário têm suas reflexões comentadas no desenvolvimento deste trabalho, nos momentos ou trechos em que se mostram relevantes.

Finalmente indico que, embora tenha conservado dos autores que tratei a maneira como eles consideram a literatura fantástica no âmbito da Literatura (gênero, subgênero, categoria, modalidade), optei pelo termo “modalidade” ou “modo” literário, indicado por Ceserani.

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CAPÍTULO I

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REFLEXÕES TEÓRICAS E CRÍTICAS PRECURSORAS

O precursor teórico: Charles Nodier

Se Cazotte foi o precursor da literatura fantástica, Charles Nodier pode ser considerado precursor no que tange às reflexões teóricas sobre o fantástico. Em seu ensaio de 1830, intitulado “Du Fantastique en littérature”, Nodier (1970a) dedica-se, com efeito, a uma espécie de história literária sobre manifestações fantásticas na literatura, para chegar aos textos produzidos no romantismo europeu e a conclusões teóricas a respeito dessa modalidade literária que se sistematiza em sua época. Inicia seu texto retomando a história do espírito humano, ou mais propriamente da imaginação do homem, e destaca três etapas principais.

Assinala que o início da humanidade é marcado pela poesia; tendo esta, inicialmente, como objeto as sensações experimentadas pelo homem, concentra-se por muito tempo na expressão ingênua da sensação. Um pouco mais tarde, compara as sensações entre si, interessa-se em desenvolver as descrições, em apreender os aspectos característicos das coisas, em substituir as palavras pelas figuras. Tal seria o objeto da poesia primitiva (NODIER, 1970a). As primeiras

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criações literárias tinham, assim, como finalidade a descrição e a representação do mundo material por meio das sensações que despertavam nos espectadores.

Em um segundo momento, a atenção desloca-se do conhecido ao desconhecido: “Elle approfondit les lois occultes de la société, elle étudia les ressorts secrets de l’organisation universelle; elle écouta, dans le silence des nuits, l’harmonie merveilleuse des sphères, elle inventa les sciences contemplatives et les religions.” (NODIER, 1970a, p.119). Esse mundo espiritual, ao mesmo tempo em que elevou o homem para além dos limites estritamente materiais, fixou-o cada vez mais em si próprio, tornando-o o centro em redor do qual girava a ordem universal: “La littérature purement humaine se trouva réduite aux choses ordinaires de la vie positive [...]” (NODIER, 1970a, p.119). Assim, a poesia, ao refletir o universo, teria criado as sociedades.

Essas verdades, entretanto, não foram suficientes para explicar a quantidade de sensações e acontecimentos com os quais o homem se via confrontado em sua vida ordinária. É assim que nasce, em uma terceira etapa, aquilo que Nodier nomeia “mentira”:

[...] mais [la littérature] n’avait pas perdu l’élément inspirateur qui la divinisa dans le premier âge. Seulement, comme ses créations essentielles étaient faites, et que le genre humain les avait reçues au nom de la vérité, elle s’égara à dessein dans une région idéale moins imposante, mais non moins riche en séductions; et, pour tout dire, elle inventa le mensonge.(NODIER, 1970a, p.119-120).

Desse modo, a mentira, que Nodier reconhece como procedente da imaginação, faz nascer um terceiro mundo, o mundo fantástico. Ao resumir suas ideias, o escritor assinala que, dessas três operações sucessivas – a da inteligência que fundou o mundo material, a do gênio divinamente inspirado que pressentiu o mundo espiritual e a da imaginação que criou o mundo fantástico -, compôs-se o vasto império do pensamento humano.

Essas três etapas evidenciam uma das principais características do fantástico: este não se apresenta como fruto de mentes perturbadas, visionárias ou alucinadas, mas é oriundo do racional, do desenvolvimento da mente humana. Ao avançar em seu

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conhecimento do mundo, o ser humano observa que toda vez lhe escapa um elemento para que possa chegar a um conhecimento completo de seu ambiente e sente a presença de um conjunto de fenômenos que não pode reconhecer completamente. Trata-se da existência de um mundo fantástico ou superstant, que não é regido por leis diferentes das que dominam o mundo positivo, mas por uma espécie de hiperbolização das leis positivas: “La fantaisie [...] n’eut pour objet que de présenter sous un jour hyperbolique toutes les séductions du monde positif.” (NODIER, 1970a, p.121).

De fato, diferentes críticos da literatura fantástica insistem, demonstrando por meio de inúmeros exemplos e de teorias, que o fantástico deve aparecer ligado à representação do real, pois é justamente o desequilíbrio ou a perturbação das leis reconhecidas que determina essa modalidade literária. Daí o real ser imprescindível para a compreensão do fantástico.

Após discorrer sobre o maravilhoso da Antiguidade Clássica e da Idade Média, e antes de mencionar Dante, Shakespeare, Perrault, Goethe, Tieck, Jean-Paul, a escola romanesca de Lewis, Byron, Walter Scott, Hugo, Nodier assinala que

Le fantastique demande à la vérité une virginité d’imagination et des croyances qui manque aux littératures secondaires, et qui ne se reproduit chez elle qu’à la suite de ces révolutions dont le passage renouvelle tout [...]. L’apparition des fables recommence au moment où finit l’empire de ces vérités réelles ou convenues qui prêtent un reste d’âme au mécanisme usé de la civilisation. Voilà ce qui a rendu le fantastique si populaire en Europe depuis quelques années, et ce qui en fait la seule littérature essentielle de l’âge de décadence ou de transition où nous sommes parvenus.(NODIER, 1970a, p.122-123).

Considera, assim, que as ficções fantásticas respondem aos anseios de um público posterior à Revolução Francesa, fatigado por séculos de racionalismo e ávido por toda a espécie de sensações e sentimentos:

Il ne faut donc pas tant crier contre le romantique et contre le fantastique. Ces innovations prétendues sont l’expression inévitable des périodes extrêmes de la vie

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politique des nations, et sans elles, je sais à peine ce qui nous resterait aujourd’hui de l’instinct moral et intellectuel de l’humanité.(NODIER, 1970a, p.123).

A posição privilegiada de Nodier no cenário inicial do romantismo francês, que se destaca como escritor, crítico, teórico, linguista, bibliófilo, centralizador do movimento romântico em seu princípio, abrirá caminho para a obra de Hoffmann, bem antes que este se torne conhecido na França por meio das traduções de seus contos. Nodier é, de fato, um dos primeiros escritores a refletir sobre os novos gêneros, inclusive o fantástico, tratando-os como novas modalidades para a expressão da sensibilidade de uma época: “[...] j’étais seul, dans ma jeunesse, à pressentir l’infaillible avènement d’une littérature nouvelle.”, diz ele no segundo Prefácio de “Smarra ou les démons de la nuit”, publicado em 1832 (NODIER, 1961a, p.37). A seu ver, a tendência ao fantástico faz parte da sociedade e da literatura de sua época.

Com efeito, as ideias de Nodier sobre o fantástico espalham-se também nos prefácios e mesmo no interior de algumas de suas narrativas fantásticas. Ainda no segundo prefácio de “Smarra ou les démons de la nuit”, expõe algumas de suas noções sobre essa modalidade literária:

Je m’avisai un jour que la voie du fantastique, pris au sérieux, serait tout à fait nouvelle, autant que l’idée de nouveauté peut se présenter sous une acception absolue dans une civilisation usée. L’Odyssée d’Homère est du fantastique sérieux mais elle a un caractère qui est propre aux conceptions des premiers âges, celui de la naïveté. Il ne me restait plus, pour satisfaire à cet instinct curieux et inutile de mon faible esprit, que de découvrir dans l’homme la source d’un fantastique vraisemblable ou vrai, qui ne résulterait que d’impressions naturelles ou de croyances répandues, même parmi les hauts esprits de notre siècle incrédule, si profondément déchu de la naïveté antique. Ce que je cherchais, plusieurs hommes l’ont trouvé depuis; Walter Scott et Victor Hugo, dans des types extraordinaires mais possibles, circonstance aujourd’hui essentielle qui manque à la réalité poétique de Circé et Polyphème; Hoffmann, dans la frénésie nerveuse de l’artiste enthousiaste, ou dans les phénomènes plus ou moins démontrés du magnétisme.(NODIER, 1961a, p.38).

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No início de “Histoire d’Hélène Gillet”, publicado no mesmo ano que o segundo prefácio de “Smarra”, Nodier desenvolve sua teoria sobre o fantástico, prevenindo que “ce genre exige plus de bon sens et d’art qu’on ne l’imagine ordinairement” (NODIER, 1961b, p.330). Passa, então, a discorrer sobre os tipos de fantástico:

Il y a l’histoire fantastique fausse, dont le charme résulte de la double crédulité du conteur et de l’auditoire, comme les Contes de fées de Perrault, le chef d’oeuvre trop dédaigné du siècle des chefs d’oeuvre. Il y a l’histoire fantastique vague, qui laisse l’âme suspendue dans un doute rêveur et mélancolique, l’endort comme une mélodie, et la berce comme un rêve. Il y a l’histoire fantastique vraie, qui est la première de toutes, parce qu’elle ébranle profondément le coeur sans coûter de sacrifices à la raison; et j’entends par l’histoire fantastique vraie, car une pareille alliance de mots vaut bien la peine d’être expliquée, la relation d’un fait tenu pour matériellement impossible qui s’est cependant accompli à la connaissance de tout le monde.(NODIER, 1961b, p.330-331).

Detendo a atenção sobre esses três tipos de fantástico assinalados por Nodier, seria possível afirmar que ele propõe, de modo ainda tênue, fundamentos teóricos dos quais a teoria de Todorov (1970b) estaria bastante próxima, quando este, considerando o maravilhoso e o estranho como dois gêneros vizinhos do fantástico, aponta a existência de gêneros transitórios ou subgêneros: o fantástico-maravilhoso (onde a existência do sobrenatural não é contestada) e o fantástico-estranho (que apresenta uma explicação racional, possível de ocorrer na vida real); o fantástico-puro, que corresponderia ao segundo tipo apresentado por Nodier, seria aquele no qual a hesitação se mantém, deixando “a alma suspensa na dúvida”.

Quando Nodier diz “história fantástica verdadeira”, refere-se à ocorrência de fenômenos estranhos, mas devidamente constatados; em “Hélène Gillet”, além de citar as fontes de onde tirou as informações sobre o caso que apresenta, Nodier narra-os com detalhes completamente verossímeis: condenada à morte por um crime que não cometeu, Hélène se salva por uma falha do carrasco. O que torna a narrativa fantástica é o fato de que a salvação da jovem fora prevista por uma religiosa de mais de noventa e dois anos de idade, “[...] tombée, pour se servir des paroles du vulgaire, dans

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cet état de grâce et d’innocence qui ramène la vieillesse aux douces ignorances des enfants.” (NODIER, 1961b, p.336). Sem afirmá-lo, o narrador sugere a ideia de um dom visionário.

O dom da visão premonitória ou, nas palavras de Nodier (1961c, p.591) “les intuitions de la seconde vue”, é discutido na narrativa intitulada “M. Cazotte”, na qual o autor presta homenagem ao precursor francês da literatura fantástica, Jacques Cazotte, que teria conhecido na infância como um dos amigos de seu pai:

Une affection beaucoup plus étroite l’unissait à l’honnête Jacques Cazotte, son aîné de vingt ans, dont il avait fait la connaissance à Lyon, chez un jeune officier nommé Saint-Martin, thaumaturge passionné d’une philosophie toute nouvelle, qui se recommandait peu par l’enchaînement des idées et par la clarté des formules, mais qui avait au moins sur la triste philosophie du dernier siècle l’avantage de parler à l’imagination et à l’âme.(NODIER, 1961c, p.600).

Nesse texto, Cazotte relata a previsão de sua própria morte feita por uma senhora extremamente velha, Mme Lebrun; Nodier (1961c, p.613) assinala que a estranha longevidade dessa mulher teria sido, para ele, o elemento mais marcante da narrativa; segundo um dos personagens, essa idade avançada teria dado origem à lenda de sua vidência: “Le peuple, toujours porté à penser que la vieillesse réunit à la connaissance expérimentale du passé quelque prescience plus ou moins claire de l’avenir, a choisi la vie de madame Lebrun pour texte des romans les plus bizarres.” No decorrer do relato, Cazotte mostra ter ficado impressionado com a previsão; refletindo sobre o assunto, diz:

En prolongeant la vie de sa créature sur la terre, Dieu ne lui aurait-il pas accordé, pour dédommagement de la dissolution progressive de son être matériel, quelque anticipation prévoyante sur l’avenir de l’âme? Ne lui aurait-il pas ouvert à l’avance les trésors de cette science illimitée du bien et du mal, qui lui appartient dans le ciel, et qu’il réserve à ses émanations les plus pures? (NODIER, 1961c, p.615).

Essas considerações não causam surpresa, já que Cazotte foi apresentado como frequentador da casa de Saint-Martin, logo, iniciado nas doutrinas místicas, tão em voga na época. Nodier (1961c, p.618) termina seu conto anunciando que, quatro meses

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depois “[...] le bon Cazotte avait porté sa tête sur l’échafaud de la terreur toute jeune encore. À peine sortie du berceau, elle dévorait des vieillards.”

Como aponta Bozzetto (1980, p.70) em seu artigo intitulado “Nodier et la théorie du fantastique”, Nodier

[...] n’est pas coupé de sources moins apparentes mais tout aussi profondes et qui ont innervé tout un versant occulte de ce mouvement. Par son père, par Cazotte, par ses lectures il est tôt mis en contact avec les diverses philosophies spiritualistes qui hantent le siècle, de Swedenborg à Saint-Martin. Il les retrouvera sous l’influence de Ballanche [...].

Em “Jean-François les Bas-Bleus”, o personagem título, introduzido como “un idiot, un monomane, un fou”, é o detentor da visão premonitória:

Et Jean-François les Bas-Bleus passait en effet sans avoir pris garde à rien; car cet oeil que je ne saurais peindre n’était jamais arrêté à l’horizon, mais incessamment tourné vers le ciel, avec lequel l’homme dont je vous parle (c’était un visionnaire) paraissait entretenir une communication cachée, qui ne se faisait connaître qu’au mouvement perpétuel de ses lèvres.(NODIER, 1961d, p.364).

Além desse dom visionário, que seria responsável pela verossimilhança da narrativa, o sonho e a loucura teriam essa mesma função na criação de um fantástico sério, como quer Nodier, caracterizando-se como elementos desencadeadores de acontecimentos fantásticos.

O sonho é, para Nodier, uma realidade transformada, uma forma de relato feito pela consciência à pessoa que está dormindo, e o que o surpreende “[...] c’estque le poète éveillé ait si rarement profité dans ses oeuvres des fantaisies du poète endormi.” (NODIER, 1961d, p.39). Segundo seu pensamento, esse mundo onírico, universo ampliado que corresponde à realidade da vigília embora a ultrapasse, existe sob a superfície consciente do homem, mostrando-se mesmo mais real do que a vida ordinária.

Com efeito, em “De quelques phénomènes du sommeil”, texto de 1831,Nodier aponta no homem “[...] deux existences diverses, dont l’une s’écoule en faits matériels, sans poésie et sans grandeur; dont l’autre est

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emportée hors du monde positif dans des extases sublimes.” (NODIER, 1970b, p.144). Comenta ainda que, se no século em que vive a percepção do sono vibra por bastante tempo nas faculdades do homem desperto, provavelmente se prolongaria muito mais outrora, no homem primitivo, que não era esclarecido pelas luzes da ciência e que vivia quase inteiramente pela imaginação: “[...] et d’où procède le merveilleux, je vous prie, si ce n’est de la créance des premières sociétés?” (NODIER, 1970b, p.143),questiona ele, lamentando-se do estado de racionalismo estreito e positivo a que a sociedade está reduzida.

Quanto à loucura, seu emprego é anterior: o conto “Une heure ou la vision”, de 1806, já apresenta um protagonista caracterizado como louco; esse personagem de Nodier assim qualificado será o primeiro de uma longa série de “inocentes”, aos quais será delegado um papel importantíssimo, o de veicular as verdades da imaginação, os fatos de uma realidade mais ampla: é verossímil que loucos relatem fatos estranhos e até mesmo sobrenaturais. “Pour faire illusion aux autres, il faut être capable de se faire illusion à soi-même, et c’est un privilège qui n’est donné qu’au fanatisme et au génie, aux fous et aux poètes.”, reitera Nodier (1961c, p.592).

O conto “La Fée aux Miettes”, publicado em 1832, revela-se também extremamente fecundo, pois contém as ideias fundamentais da obra literária de Nodier e de sua teoria sobre o fantástico. Dirigindo-se diretamente ao leitor em seu prefácio que apresenta o título de “Au lecteur qui lit les préfaces”, o autor assinala sua posição em relação à literatura e ao fantástico:

J’ai dit souvent que je détestais le vrai dans les arts, et il m’est avis que j’aurais peine à changer d’avis; mais je n’ai jamais porté le même jugement du vraisemblable et du possible, qui me paraissent de première nécessité dans toutes les compositions de l’esprit.(NODIER, 1961f, p.168).

Ilustra seu pensamento com uma recordação da juventude, quando, em uma cidadezinha do Jura, passava as noites junto da lareira, escutando as histórias de um amigo nonagenário. Esses serões acabaram por se tornar célebres, provocando a afluência de

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um grande número de pessoas, todas dispostas a contar alguma história do mundo sobrenatural:

[...] mais mon impression allait déjà en diminuant, ou plutôt elle avait changé de nature. A mesure que la foi s’affaiblissait dans l’historien, elle s’évanouissait dans l’auditoire, et je crois me rappeler qu’à la longue nous n’attâmes guère plus d’importance aux légendes et aux traditions fantastiques, que je n’en aurais accordé pour ma part à quelque beau conte moral de M. de Marmontel.(NODIER, 1961f, p.169-170)

E conclui: “C’est que, pour intéresser dans le conte fantastique, il faut d’abord se faire croire, et qu’une condition indispensable pour se faire croire, c’est de croire.” (NODIER, 1961f, p.170). Nas primeiras páginas do conto “Paul ou la ressemblance”, ao discorrer sobre aquilo que o encanta na Odisséia, Nodier (1961g, p.644) esclarece: “C’est qu’il faut deux choses esssentielles à la poésie, le poète qui croit ce qu’il dit, et l’auditeur qui croit le poète.”

Insistindo na necessidade de crença, poderíamos dizer que Nodier se afasta do fantástico-estranho que, de acordo com Todorov, levaria a uma explicação completamente racional, aceita sem dificuldade pelo mais cético dos leitores. Para Nodier, como foi apontado, a história fantástica verdadeira diz respeito, sobretudo, a dons milagrosos que certas pessoas “comprovadamente” possuem. Ora, a exortação de Nodier junto dos leitores é, então, válida, sobretudo se considerarmos que

[...] un conte fantastique est [...] une proposition suivie d’une acceptation ou d’un refus. La nature de l’explication (rationnelle ou irrationnelle) renvoie aux tendances profondes du lecteur, à son adhésion plus ou moins vive à un système de références imposé dès son enfance, à sa faculté de se libérer de ce dernier, voire aux croyances qui l’environnent.(FINNÉ, 1980, p.49-50).

Se Nodier parece referir-se ao leitor real, principalmente quando relacionamos suas palavras com a situação do contador de histórias do Jura e de seus ouvintes, os teóricos posteriores, Todorov inclusive, não deixam de mencionar o leitor, mesmo que implícito, ou o meio a que pertencem.

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De qualquer modo, apesar de certa confusão terminológica que determina que ele denomine indiferentemente fantásticos e maravilhosos determinados textos, ele foi, de acordo com Bozzetto (1980), talvez o primeiro a indicar um sistema no que se refere ao texto fantástico, bem como de suas condições de produção e de recepção.

As considerações de Maupassant sobre o fantástico

Nascido em 1780, Charles Nodier morre em 1844, seis anos antes do nascimento de Guy de Maupassant. Morto no final do século XIX, mais propriamente em 1893, Maupassant não chega a desenvolver grandes reflexões a respeito do fantástico, mas escreve dois curtos textos bastante esclarecedores, sobretudo pelo fato de ter sido, como Nodier, autor de narrativas fantásticas.

Como discípulo de Flaubert, de quem assimila a arte da minuciosa e penetrante observação, Maupassant começa a frequentar os meios literários e publica alguns escritos em revistas. Entra para o “grupo de Médan” de Zola e redige sua novela Boule de Suif que se tornará um de seus escritos mais célebres, o que o vincula à escola realista-naturalista. No entanto, como se observa em uma de suas narrativas de viagem intitulada “Sur l’eau” (título que retomará em uma de suas narrativas fantásticas), de 8 de abril de 1888, Maupassant (2013c, p.12) anseia por “ouvrir des portes mystérieuses sur des horizons inattendus et merveilleux”, tornando possível ao poeta se “promener sans cesse dans un inconnu changeant et surprenant.” No mesmo sentido, lê-se no início de uma de suas novelas, “Madame Hermet”: “Les fous m’attirent. Ces gens-là vivent dans un pays mystérieux de songes bizarres [...] Pour eux l’impossible n’existe plus, l’invraisemblable disparaît, le féerique devient constant et le surnaturel familier.” (MAUPASSANT, 1973a, p.96).

O fantástico de Maupassant é, então, um fantástico interior, inerente à alma humana, no qual não há lugar para monstros e outras criaturas sobrenaturais. Ora, não é esse o tipo de fantástico

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que Nodier chama de “verdadeiro”, e que é baseado no sonho, na alucinação ou na loucura?

O fato é que, enquanto Nodier exalta o desenvolvimento do fantástico na primeira metade do século XIX como signo do revigoramento de uma civilização gasta, valorizando o maravilhoso e utilizando-se do gótico, roman noir ou frenético, Maupassant, no final do século, assinala o seu fim. Na crônica escrita para o jornal Le Gaulois, de 8 de novembro de 1881, sob o título de “Adieu mystères”, Maupassant (2013b, aspas do autor) especifica:

Ainsi qu’un temple des religions nouvelles, un temple ouvert à tous les cultes, à toutes les manifestations de la science et de l’art, le palais de l’Industrie montre chaque soir aux foules ahuries des découvertes si surprenantes que le vieux mot balbutié toujours à l’origine des superstitions, le mot “miracle”, vous vient instinctivement aux lèvres.

Enfatiza a palavra “milagre” para chegar à conclusão de que não há mais mistérios: todo o inexplicável torna-se um dia passível de uma explicação: “[...] le surnaturel baisse comme un lac qu’un canal épuise; la science, à tout moment, recule les limites du merveilleux.” (MAUPASSANT, 2013b). Insiste que a cada dia os filósofos, os eruditos ampliam as fronteiras da ciência, delimitando dois campos: do lado de cá, o conhecido que era ontem o desconhecido; alhures, o desconhecido que será o conhecido amanhã, único espaço ainda deixado aos poetas e sonhadores: “Adieu, mystères, vieux mystères du vieux temps, vieilles croyances de nos pères, vieilles légendes enfantines, vieux décors du vieux monde![...]”(MAUPASSANT, 2013b).

Maupassant despede-se, assim, do fantástico que o positivismo e a industrialização teriam destruído, em um tom saudoso e até mesmo plangente. Observa que a noite não mais aterroriza o homem, para quem não há mais fantasmas, nem espíritos, pois tudo o que era chamado “fenômeno” é explicado por leis naturais:

Il me semble qu’on a dépeuplé le monde. On a supprimé l’Invisible. Et tout me paraît muet, vide, abandonné ! Quand je sors la nuit, comme je voudrais pouvoir frissonner de cette angoisse qui fait se signer les vieilles femmes le long des murs des cimetières, et se sauver les derniers superstitieux devant les vapeurs étranges des

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marais et les fantasques feux follets. Comme je voudrais croire à ce quelque chose de vague et de terrifiant qu’on s’imaginait sentir passer dans l’ombre ! Comme les ténèbres des soirs devaient être plus noires autrefois, grouillantes de tous ces êtres fabuleux! (MAUPASSANT, 2013b).

Dois anos mais tarde, Maupassant escreve uma nova crônica sobre o fantástico, publicada em Le Gaulois em 7 de outubro de 1883, sob o título de “Le fantastique”. Inicia suas considerações no mesmo tom que seu texto de 1881:

Lentement, depuis vingt ans, le surnaturel est sorti de nos âmes. Il s’est évaporé comme s’évapore un parfum quand la bouteille est débouchée. En portant l’orifice aux narines et en aspirant longtemps, longtemps, on retrouve à peine une vague senteur. C’est fini. Nos petits-enfants s’étonneront des croyances naïves de leurs pères à des choses si ridicules et si invraisemblables. Ils ne sauront jamais ce qu’était autrefois, la nuit, la peur du mystérieux, la peur du surnaturel. C’est à peine si quelques centaines d’hommes s’acharnent encore à croire aux visites des esprits, aux influences de certains êtres ou de certaines choses, au somnambulisme lucide, à tout le charlatanisme des spirites. C’est fini. [...] Nous avons rejeté le mystérieux qui n’est plus pour nous que l’inexploré. [...] De là va certainement résulter la fin de la littérature fantastique.(MAUPASSANT, 2013a).

Maupassant insiste, como se vê, na descrença de seu próprio tempo, consequente da evolução da civilização humana. No entanto, nesse momento, seu texto é acrescido da exaltação da literatura fantástica, inclusive da de sua época, por meio das palavras que dedica ao escritor russo Ivan Tourgueneff (Ivan Sergueïevitch Tourgueniev) que acabara de morrer: “un conteur fantastique de premier ordre.” (MAUPASSANT, 2013a).

Passa, então a expor sua reflexão sobre a literatura fantástica, assinalando dois momentos que, como vinha desenvolvendo desde a primeira crônica, aparecem ligados a estágios da civilização, cujas crenças refletiriam tanto no escritor, quanto na recepção da obra. Assim, quando o homem acreditava sem hesitação, os escritores fantásticos não tomavam precauções no desenvolvimento de suas surpreendentes histórias; entravam de uma vez no impossível e nele permaneciam, variando infinitamente as combinações

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inverossímeis, as aparições, todas as estratégias assustadoras para fazer nascer o terror.

Em um segundo momento, quando a dúvida penetrou na mente humana, a arte tornou-se mais sutil. O escritor buscou nuances, girou em torno do sobrenatural em vez de nele penetrar; encontrou efeitos aterradores permanecendo no limite do possível, lançando o espírito na hesitação, na inquietação. O leitor, indeciso, não tinha mais certeza, “[...] perdait pied comme en une eau dont le fond manque à tout instant, se raccrochait brusquement au réel pour s’enfoncer encore tout aussitôt, et se débattre de nouveau dans une confusion pénible et enfiévrante comme un cauchemar.” (MAUPASSANT, 2013a).

Palavras como hesitação, dúvida, inquietação, indecisão – extraídas da própria crônica de Maupassant (2013a) – remetem de imediato a textos teóricos fundadores: a hesitação, tão cara a Todorov (1970a), na qual se baseia sua definição de fantástico e o desenvolvimento de sua teoria; a dúvida, que Bessière (1974) assinala em sua poétique de l’incertain, bem como as palavras que compõem o título do segundo capítulo: limites da razão, espelhando a expressão de Maupassant “limite do possível”; e finalmente, a inquietação, que faz lembrar o texto em que Freud (1976, 2010) discute a narrativa fantástica e a inquietante estranheza que dela emana, do mesmo modo que remete ao sentimento do estranho, de Vax (1965).

Desse segundo tipo de literatura fantástica, Maupassant lembra o extraordinário poder aterrorizador de Hoffmann e Poe, o qual derivaria da habilidade talentosa, da maneira particular de abordar o fantástico e de provocar a inquietação com fatos naturais nos quais, entretanto, resta sempre algo de inexplicável ou de quase impossível.

Em homenagem a Ivan Tourgueneff, Maupassant relata ainda a história que o escritor russo contou, um dia, na casa de Gustave Flaubert, ao cair da noite, ressaltando as circunstâncias possíveis, mas surpreendentes, inquietantes, alucinantes, com um poder de terror inexplicável que particularizaram a narrativa. Não deixa também de citar o livro de Tourgueneff, Étranges Histoires,

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particularmente as narrativas fantásticas “Toc Toc Toc” e “Trois Rencontres”, caracterizadas pela sutil e inapreensível emoção do desconhecido inexplicável, porém possível.

Se nos detivermos nas narrativas fantásticas do próprio Maupassant, tanto naquelas cuja inquietação advém ao personagem das vertigens da imaginação, como “Sur l’eau” ou “La peur”, quanto nas que provêm da loucura, tais quais “Le Horla”, “Lui?”, “Qui sait?”, comprovaremos a presença de eventos aparentemente inexplicáveis, mas possíveis quando decorrentes do medo ou da razão à deriva.

No conto “Sur l’eau”, o canoeiro deixa-se levar pela imaginação na solidão da noite, pois se sente “ému par le silence extraordinaire qui [l’] entourait”, após ter lançado a âncora em determinado ponto do rio: “[...] mais bientôt les légers mouvements de la barque m’inquiétèrent. Il me sembla qu’elle faisait des embardées gigantesques [...]; puis je crus qu’un être ou qu’une force invisible l’attirait doucement au fond de l’eau [...].” (MAUPASSANT, 1973b, p.61, grifo nosso). As palavras destacadas na citação, “pareceu-me” e “acreditei” mostram as sensações e emoções do barqueiro que, já com os nervos abalados, perde a segurança e a certeza em relação ao meio exterior. Vocábulos como “nerfs um peu ébranlés”, “étrange agitation nerveuse”, “des imaginations fantastiques” (MAUPASSANT, 1973b, p.61-62), reiteram-se no texto, comprovando os desvios da imaginação.

Na verdade, é o medo que desencadeia as reviravoltas da imaginação, o que fica nítido na narrativa intitulada “La peur”, sensação definida pelo narrador como

[...] quelque chose d’effroyable, une sensation atroce, comme une décomposition de l’âme, un spasme affreux de la pensée et du coeur, dont le souvenir seul donne des frissons d’angoisse [...]: cela a lieu dans certaines circonstances anormales, sous certaines influences mystérieuses en face de risques vagues. La vraie peur, c’est quelque chose comme une réminiscence des terreurs fantasiques d’autrefois.(MAUPASSANT, 1973c, p.67).

Medo cósmico, como definirá mais tarde Lovecraft, é o medo sentido pelo personagem de “Lui?” que, depois de afirmar não

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temer o perigo concreto, nem os fantasmas, tampouco os mortos, já que não acredita no sobrenatural, conclui: “Eh, bien! j’ai peur de moi! J’ai peur de la peur; peur de mon esprit qui s’affole, peur de cette horrible sensation de la terreur incompréhensible [...], peur de l’hallucination [...]” (MAUPASSANT, 1973d, p.108 ep.112). Nota-se que o medo em Maupassant é, então, criado pela própria mente, responsável também pela alucinação.

A intensidade da alucinação, por sua vez, pode ser determinada pela loucura. A perplexidade do protagonista de “Qui sait?” é marcada desde o início pelos sinais de exclamações e interrogações que compõem as frases, desde o título:

Mon Dieu! Mon Dieu! Je vais donc écrire ce qui m’est arrivé! mais le pourrais-je? l’oserai-je? cela est si bizarre, si inexplicable, si incompréhensible, si fou! Si je n’étais sûr de ce que j’ai vu [...], je me croirais un simple halluciné, le jouet d’une étrange vision. Après tout, qui sait? Je suis aujourd’hui dans une maison de santé [...](MAUPASSANT, 1973e, p.115).

A história que o narrador protagonista relata a seguir é desenvolvida a partir da ênfase em sua necessidade e seu gosto de estar só; como resultado da solidão voluntária, esclarece ser muito apegado aos objetos inanimados e ter prazer em viver sua vida solitária no meio dos móveis e bibelôs familiares. Móveis e objetos que vê, certa madrugada, criarem vida e saírem por si próprios de sua casa: “Oh! quelle émotion! Je me glissai dans un massif où je demeurai accroupi, contemplant toujours cette défilé de mes meubles, car ils s’en allaient tous, l’un derrière l’autre, vite ou lentement, selon leur taille et leur poids.” (MAUPASSANT, 1973e, p.119).

Tendo o evento sido caracterizado como roubo pela polícia, o proprietário decide calar-se para não ser considerado louco e, a conselho médico, parte em viagem. Depois de visitar Itália e África, volta à França e permanece alguns dias em Rouen. A cidade é descrita evidenciando-se as características medievais e os monumentos góticos, até ser focalizada uma “fantástica ruela” onde se localizam os antiquários. Em uma dessas lojas, casa vasta e tortuosa como um labirinto, o narrador vai reconhecendo seus móveis, um a um;

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alguns dias depois, recebe a surpreendente notícia do retorno de todos os objetos.

A Normandia é também o espaço da narrativa “Le Horla” e a moradia do protagonista, junto do Sena, situa-se próxima de Rouen, “[...] la vaste ville aux toits bleus sous le peuple pointu des clochers gothiques.” (MAUPASSANT, 1986a, p.36).A primeira versão da narrativa é iniciada pela voz do médico do protagonista que, em seu hospital, o apresenta a seus colegas para que lhes relate sua história; ao iniciá-la, o protagonista diz: “Pendant longtemps [le docteur Marrande] m’a cru fou. Aujourd’hui il doute.” (MAUPASSANT, 1986b, p.265).Como em “Qui sait?” o personagem, que em nenhum dos casos é nomeado, assinala de imediato estar em um hospício, sendo já introduzido o tema da loucura.

A versão definitiva de “Le Horla” estrutura-se de modo completamente diferente, sob a forma de um diário. Assim, se na primeira versão a ambiguidade é instaurada pela própria dúvida do médico em relação à loucura de seu paciente, logo pela incerteza também no que se refere aos estranhos eventos, a segunda versão cria a ambiguidade no decorrer do texto. A vida do protagonista muda, de repente, logo após ter saudado um navio brasileiro, todo branco, que passara precedido de dois pequenos navios ingleses: começa a sentir-se doente e depressivo: “Je suis malade, décidément! [...] J’ai la fièvre [...] J’ai sans cesse cete sensation affreuse d’un danger menaçant, cette appréhension d’un malheur qui vient ou de la mort qui approche, ce pressentiment qui est sans doute l’atteinte d’un mal encore inconnu [...].” (MAUPASSANT, 1986a, p.38-39). Confusão, inquietação, medo apoderam-se do personagem, que não mais dorme, acredita-se sonâmbulo e termina por sentir uma presença invisível, que o segue. No dia 5 de julho escreve: “Ai-je perdu la raison?”; no dia 6, anota: “Je deviens fou. [...] Je deviens fou?[...]”; e no dia 10, assinala:“Décidément, je suis fou!” (MAUPASSANT, 1986a, p.48). Essa progressão com que expressa sua desrazão recomeça incessantemente no desenvolvimento do texto e nos diferentes dias em que escreve no diário: ora sente que seus pressentimentos, visões e alucinações são um jogo de sua imaginação excitada, ora as dúvidas o assaltam, ora volta a se perguntar se está louco.

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Se os índices sobre a existência do ser invisível são recorrentes e verossímeis no diário do personagem, logo no texto de Maupassant, este não deixa de indicar a possibilidade admissível de a loucura ser a causa da crença na estranha e invisível presença. Esses dados são marcados ainda por outras informações que o personagem transcreve no diário. Um dos informes refere-se às palavras de um médico com quem jantara em casa de sua prima, que apontam para a descoberta científica de importantes segredos da natureza:

Depuis que l’homme pense, depuis qu’il sait dire et écrire sa pensée, il se sent frôlé par un mystère impénétrable pour ses sens grossiers et imparfaits, et il tâche de suppléer, par l’effort de son intelligence, à l’impuissance de ses organes. Quand cette intelligence demeurait encore à l’état rudimentaire, cette hantise des phénomènes invisibles a pris des formes banalement effrayants. De là sont nées les croyances populaires au surnaturel, les légendes des esprits rôdeurs, des fées, des gnomes, des revenants [...](MAUPASSANT, 1986a, p.52-53).

Mistérios impenetráveis e fenômenos invisíveis que o médico tenta penetrar em suas experiências com o hipnotismo e a sugestão, meios utilizados na observação de doenças nervosas e manifestações extraordinárias e, consequentemente, explicá-las cientificamente.

Outro dado corrobora a possibilidade da loucura, quando o personagem reproduz em seu diário a notícia que leu na Revue du monde scientique: “Une nouvelle assez curieuse nous arrive de Rio de Janeiro. Une folie, une épidémie de folie, comparable aux démences contagieuses qui atteignirent les peuples d’Europe au moyen âge, sévit en ce moment dans la province de San-Paulo.” (MAUPASSANT, 1986a, p.69).

Desse modo, explicações racionais são sempre sugeridas nas narrativas fantásticas de Maupassant, seja pelos desvarios da imaginação, seja pelos desatinos da loucura que desencadeiam o medo.

Fermigier (1986, p.7), no prefácio da edição que organizou contendo sua seleção de narrativas fantásticas de Maupassant, apresenta suas conclusões a respeito das ideias do autor:

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Maupassant, le plus réaliste de nos conteurs, fut aussi l’un des écrivains du [XIXème siècle] qui manifesta le plus d’attirance, de curiosité, d’inquiétude à l’égard des lisières de l’irréel. Grand lecteur de Hoffmann et de Poe, [...] il a plusieurs fois dit, ou suggéré, le risque d’appauvrissement que connaîtrait une littérature qui se limiterait au credo naturaliste et cesserait de “rôder autour du surnaturel”.

A qualificação “o mais realista de nossos contistas” combinada com a atração de Maupassant relativa “aos limites do irreal” aponta para as mudanças do fantástico que, sistematizado no romantismo, desenvolve-se durante o século XIX europeu acompanhando as diferentes correntes literárias.

A visão histórico-literária de Pierre-Georges Castex

A transformação do fantástico é desenvolvida por Pierre-George Castex em seu livro Le conte fantastique em France de Nodier à Maupassant, cuja primeira edição data de 1951. De fato, em sua Introdução, Castex (1962) assinala que acredita ter, no momento em que redige seu texto, um recuo suficiente para responder as questões propostas por Sainte-Beuve (apud CASTEX, 1962, p.10), em 1830, sobre o surgimento dessa nova modalidade literária:

Jusqu’à quel point s’étend cette conquête nouvelle de l’art; jusqu’à quel degré est-il possible de la féconder; et contient-elle en elle-même un art tout nouveau dont nous entrevoyons à peine les promesses, ou bien doit-elle éternellement demeurer à l’état de vague et de nuageux?

Assim, Castex (1962, p.10) busca responder às questões de Sainte-Beuve, mostrando a fecundidade e a transformação da literatura fantástica no decorrer do século XIX; propõe-se a traçar sua história e o êxito quase constante que essa literatura experimentou, sucesso ilustrado, de Nodier a Maupassant, “par une foule d’oeuvres pathétiques ou troublantes.”

Ainda em sua Introdução, depois de creditar aos jornalistas do Globe, Jean-Jacques Ampère e Duvergier de Hauranne, a clarividência

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de notar a originalidade da obra de Hoffmann a qual apresenta um sobrenatural essencialmente interior e psicológico, Castex (1962, p.8, grifo nosso), define o fantástico: “Le fantastique, en effet, ne se confond pas avec l’affabulation conventionnelle des récits mythologiques ou des féeries, qui implique un dépaysement de l’esprit. Il se caractérise au contraire par une intrusion brutale du mystère dans le cadre de la vie réelle.” Como se observa, Castex caracteriza a narrativa fantástica como um novo modo literário e, antecipando-se às proposições dos teóricos do fantástico, não deixa de apontar a existência da ordem do sobrenatural que se opõe à do real.

Le conte fantastique em France de Nodier à Maupassant divide-se em duas partes. Na primeira parte, Castex desenvolve o que nomeia “Perspective d’ensemble”, referindo-se justamente a uma visão geral da história literária do fantástico. Os títulos que atribui a cada capítulo dessa primeira parte anunciam claramente seu conteúdo.

Desse modo, no primeiro capítulo apresenta o “Renascimento do irracional”, apontando que, mesmo no século anterior, o Século das Luzes e dos escritores filósofos, a corrente ocultista se mantinha, embora não tão evidente, sempre aspirando à iluminação de verdades secretas e continuamente descontente com as certezas limitadas trazidas pela ciência. Mostra que por volta de 1770, quando o espírito científico e positivo granjeou uma grande parte do público esclarecido, as ciências ocultas também se beneficiaram de um novo interesse. Castex explica essa coincidência de interesses, assinalando que quanto mais se obstina o espírito crítico, mais se afirma a necessidade da crença: o movimento ocultista seria um protesto contra a implacável filosofia que destrói os mitos consoladores. Assim, os ocultistas dirigem-se a uma sociedade cuja fé foi abalada, mas o fervor permanece intacto. Três “iluminados” teriam se sobressaído diante dessa sociedade ávida por crer: Emmanuel Swedenborg, Martines de Pasqually e Claude de Saint-Martin, cujas doutrinas teriam sido refletidas nas obras de alguns dos “grandes mestres do gênero”, como Charles Nodier (que cita Saint-Martin ao

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escrever sobre Cazotte), Honoré de Balzac (no romance Séraphita, centrado na doutrina de Swedenborg) e Gérard de Nerval (em Aurélia, quando recorre a Swedenborg para assinalar a “expansão do sonho na vida real”). Lavater e Mesmer aparecem no livro de Castex como propagadores das doutrinas ocultas, enquanto Casanova, Saint-Germain e Cagliostro são tidos como charlatães, mas acabam também por difundir o ocultismo nessa sociedade impregnada de racionalismo.

O segundo capítulo trata do “Precursor francês”, Jacques Cazotte e do papel que desempenhou na renovação da literatura de imaginação sob a influência das doutrinas ocultas: com Le diable amoureux, de 1772, foi o verdadeiro criador do conto fantástico francês. A produção anterior de Cazotte apresenta elementos sobrenaturais oriundos do maravilhoso ou do gótico, mas sempre com intenção paródica. Nessas obras, segundo Castex, Cazotte zomba dos sonhadores que se encantam com os elementos feéricos, bem como não se deixa iludir com os seres sobrenaturais que introduz em suas narrativas. É com Le diable amoureux que Cazotte afirma um realismo psicológico no decorrer da narrativa o qual se contrapõe com o elemento sobrenatural: Belzebu que, invocado na iniciação ocultista do protagonista Alvare em um círculo mágico, por meio de uma fórmula de conjuração, passa a acompanhá-lo sob a forma de uma bela jovem, Biondetta. A ambiguidade é criada por meio dos sonhos do protagonista, que se mesclam à realidade a ponto de ele não mais diferenciar um e outro e se questionar sobre os limites do possível: Cazotte propõe uma explicação humana e reserva a possibilidade de uma explicação sobrenatural. De fato, para Castex (1962, p.33),

L’incontestable originalité du conte tient à des mérites purement littéraires. Cazotte, dans ses premières oeuvres, cultivait délibérément l’extravagance. Dans Le diable amoureux, il joint à la liberté de l’imagination la justesse de l’analyse. Ses personnages vivent, et leurs aventures son rapportées avec tant de naturel que nous en remarquons à peine l’étrangeté.

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Castex assinala ainda a profunda atração que exerceu a figura de Jacques Cazotte durante todo o romantismo e o êxito excepcional que alcançaram algumas de suas criações. Na França, tanto Charles Nodier quanto Gérard de Nerval lhe dedicaram escritos em suas obras; e Le diable amoureux atravessou as fronteiras, pois se encontram ecos de sua narrativa na intriga de O monge (The monk), de Matthew Gregory Lewis, em O visionário (Der Geïsterseher), de Schiller e ainda em um conto de Hoffmann intitulado O espírito elementar (Elementargeist).

Enquanto Castex aponta Jacques Cazotte como o precursor francês da literatura fantástica, E. T. A. Hoffmann aparece como “O iniciador alemão”; em 1828, a tradução de sua obra, empreendida pelo jornalista Loève-Velmars, começa a ser publicada na França. Em artigo do mesmo ano, Loève-Velmars compara a escritura de Hoffmann com a de Walter Scott; este, que recomendava o recurso a um maravilhoso legendário e folclórico, busca lançar em descrédito a obra do iniciador do fantástico, no qual a imaginação se abandonaria a toda irregularidade de seus caprichos. Sainte-Beuve, por sua vez, discerne bem a originalidade de um método que amplia indefinidamente o campo da experiência subjetiva:

Selon Sainte-Beuve, Hoffmann a transposé le merveilleux dans l’âme humaine [...]; il a découvert, aux limites des choses visibles et sur la lisière de l’univers réel, un coin obscur, mystérieux et jusque-là inaperçu; il a suggéré, pour rendre compte des phénomènes qui nous surprennent, des explications déconcertantes pour la science positive et cependant plausibles [...](CASTEX, 1962, p.52).

Na verdade, o termo “fantástico” nasce em sua acepção literária por ocasião da tradução francesa das Phantasiestücke in Callot’sManier de E. T. A. Hoffmann, publicadas na Alemanha em 1813. A palavra alemã “Phantastich” evocava inicialmente as formas breves da fantasia e, na época romântica, trazia à lembrança tudo o que se referia ao domínio do imaginário, mas com a tradução da obra de Hoffmann, o adjetivo evolui em direção ao substantivo e passa a designar uma nova modalidade literária. (GLINOER, 2009). Schneider (1964) também aponta, depois de Castex (1962), que essa

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expressão – contos fantásticos –, segundo ele tão familiar e que evoca um gênero bem definido, foi escolhida para nomear as obras de Hoffmann.

Castex inicia o capítulo intitulado “A idade de ouro”, assinalando que a exploração do mistério nunca havia sido conduzida com tanta paixão como por volta de 1830 e que as mentes mais sérias passaram a recorrer às hipóteses mais ousadas para explicar os fenômenos desconcertantes da experiência humana. Assim, ampliam o campo da pesquisa científica estudos sobre fenômenos reputados como sobrenaturais: sonambulismo, feitiçaria, licantropia, possessão, transes e êxtases místicos, prodígios e milagres.No domínio da arte, essa curiosidade traduz-se por uma liberdade de imaginação que pode ser considerada como a característica mais geral e mais importante do movimento romântico: pintores, ilustradores e músicos apresentam motivos alucinantes, pesadelos, frenesis. A reputação de Hoffmann só tenderia a crescer nessa sociedade tão violentamente atraída, em todos os domínios, pelas ilusões e obsessões que ele descrevia, sugere Castex. Mesmo nas obras dominadas pela preocupação da observação realista, a obra de Hoffmann introduz uma visão singular, como em La peau de chagrin, de Balzac.

Assim, a palavra “fantástico” propaga-se: Charles Nodier, como se viu, amplia o sentido do termo e elabora uma teoria; Gérard de Nerval celebra a inspiração fantástica. O adjetivo “fantástico” passa a ser empregado nas acepções as mais diversas e não mais apenas para definir o estranho clima em que se desenvolvem os contos de Hoffmann; torna-se um vocábulo empregado correntemente, identificando-se, de um lado, com a palavra romantismo, ambos aviltados pelos partidários do classicismo. Por outro lado, o extraordinário êxito do termo, coincide com a voga na França do gênero a que Hoffmann deve sua glória: o conto. Logo os dois termos juntos passam a ser empregados indiscriminadamente, assinala Castex (1962, p.70), apontando a seguir que:

Le véritable conte fantastique intrigue, charme ou bouleverse en créant le sentiment d’une présence insolite, d’un mystère redoutable, d’un pouvoir surnaturel, qui se

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manifeste comme un avertissement d’au-delà, en nous ou autour de nous, et qui, en frappant notre imagination éveille un écho immédiat dans notre coeur.

Ainda nesse capítulo sobre o ápice da literatura fantástica na França, Castex continua a mostrar a diversidade da modalidade, assinalando os dois tipos de narrativa fantástica que Todorov, mais tarde, nomeará “fantástico-estranho” e “fantástico maravilhoso”: nas palavras de Castex, temos, de um lado, as ficções misteriosas ligadas a uma explicação objetiva que, exposta geralmente no final, destrói a ilusão, como a alucinação e a loucura; de outro lado, os contos nos quais os acontecimentos sobrenaturais que vêm perturbar o curso da vida ordinária permanecem inexplicáveis.

No capítulo seguinte, nomeado “O equilíbrio”, Castex dedica-se a mostrar as reações contrárias tanto no que se refere ao conto, quanto no que diz respeito ao fantástico. Desde 1832, esboçam-se ataques contra o gênero (ou subgênero) conto que invade a literatura; e, entre eles, o conto fantástico é o mais violentamente repelido, porque é o mais sistematicamente cultivado. Talvez isso se dê pela profusão de obras comerciais, escritas por autores não reconhecidos pela literatura legítima, pois Castex afirma em seguida que até a glória de Hoffmann sofre os efeitos dessa reação contrária por causa dos imitadores, a ponto de Loève-Velmars suspender suas traduções das obras do escritor alemão. Théophile Gautier enfatiza o mérito de Hoffmann em artigo de 1836, mostrando a minúcia na acumulação dos detalhes familiares que cria a ilusão da vida, a habilidade com que faz serem aceitas as anomalias que despertam, mantêm e aumentam o interesse ou a angústia nos leitores; sublinha a diferença entre esse “maravilhoso” vinculado ao real e o maravilhoso inconsistente das narrativas feéricas. Apesar disso, a voga de Hoffmann passa e retêm-se apenas as invenções que parecem mais assimiláveis ao gosto francês. O equilíbrio surge entre 1835 e 1840, com a publicação de obras fantásticas cuja qualidade compensa a raridade, como La morte amoureuse de Théophile Gautier, Inès de las Sierras de Charles Nodier ou La Vénus d’Ille de Prosper Mérimée.

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Preparado desde o século XVIII pela crítica dos filósofos, o positivismo é, em 1850, uma doutrina estabelecida; nessa data, Auguste Comte já publicou inteiramente seu Cours de philosophie positive; na mesma época, Ernest Renan lança as bases de uma religião da ciência, afirmando que o mundo verdadeiro revelado pela ciência é muito superior ao mundo fantástico criado pela imaginação. E nesse meio do século XIX, o conto fantástico evolui sob a influência dos progressos da psiquiatria e das pesquisas sobre o eletro-magnetismo. No entanto, ao contrário de eliminar o fantástico, a ciência e as certezas positivas acabam por estimular a imaginação e determinam o que Castex denomina “A renovação” desse tipo de literatura. Assim, enquanto o materialismo ganha terreno nos meios científicos, a inquietação em relação à existência após a morte e a necessidade de fé permanecem e renovam-se com o desenvolvimento do espiritismo por meio da doutrina de Allan Kardec e com a reafirmação da magia por intermédio de Eliphas Levi que a formula pela analogia universal.

A transformação do gosto literário é marcada, por sua vez, pela obra de Edgar Allan Poe, como assinala Castex (1962, p.94-95):

Cette relève est facilitée, en outre, par un rajeunissement des modes littéraires, et en particulier par l’introduction en France de l’oeuvre d’Edgar Poe. Sans faire oublier complètement Hoffmann, sans même apporter une conception radicalement différente du mystère, l’Américain, merveileusement servi par la traduction de Baudelaire, semble répondre davantage aux exigences du public moderne par la rigueur plus grandes de ses inventions et de son art.

Castex complementa suas observações assinalando que a grande superioridade de Poe em relação a Hoffmann deve-se à concentração de suas narrativas que evita as digressões, uma vez que o escritor americano elimina os ornamentos inúteis e as fantasias gratuitas, preocupando-se tão somente com a eficácia.

Essas novas influências marcarão “O retorno” dos contos fantásticos franceses. A técnica dos contistas evolui, sem que se possa, todavia, discernir leis bem estritas nessa evolução. Alguns escritores da segunda metade do século XIX cultivam um realismo

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de cenário de que Hoffmann já oferecia o exemplo; outros limitam-se a iluminar a vida secreta do personagem, descrevendo seus delírios e configurando um realismo psicológico, o que os ligaria à tradição de Poe.

É na segunda parte de seu livro, “Les maîtres du genre”, que Pierre-Georges Castex discute as características daqueles que considera os escritores maiores do fantástico, percorrendo o século XIX, de Nodier a Maupassant. Charles Nodier, Honoré de Balzac, Théophile Gautier, Prosper Mérimée, Gérard de Nerval, Lautréamont, Villiers de l’Isle Adam e Guy de Maupassant são os autores de narrativas fantásticas selecionados por Castex, por meio dos quais acaba por tratar da diversidade e da transformação da literatura fantástica até o final do século XIX, dedicando um capítulo a cada escritor.

Nodier, como já visto, além de ser o precursor da teoria literária do fantástico é também o iniciador francês da ficção fantástica, em que o sonho e a loucura desempenham um papel importante; seu idealismo sentimental liga-se ao gosto pelo misticismo alemão e aos iluministas (ocultistas); a sobreposição entre a realidade e o sonho ou delírio ilustra o mito romântico do amor eterno: a evasão da vida real seria a condição primeira da felicidade. As narrativas fantásticas de Gautier estabelecem também uma relação entre a realidade e vários outros meios para vencer a morte da mulher amada: sonho, alucinação, magnetismo, espiritismo, permitindo que seu idealismo latente se expresse com liberdade e que desenvolva sua curiosidade pelos mitos relativos ao amor. A arte do equilíbrio e a surpreendente maestria de Mérimée são enfatizadas por Castex que o considera o mais lúcido e consciente dos contistas fantásticos franceses; talvez por isso sua narrativa La Vénus d’Ille seja tomada por Todorov como o modelo do que denomina fantástico puro. Nerval, por sua vez, vai mais adiante do que Nodier no que diz respeito ao mito do amor ideal: ele cria seu próprio mito pessoal, desloca-se com a mesma facilidade pelo sonho e pelas alucinações da loucura em direção a um passado mítico. Balzac, caracterizado por um talento visionário, busca pintar o homem, não apenas nas relações com seus semelhantes,

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mas também com anjos e demônios em busca do Absoluto. L’Ille Adam configura-se como antecessor do simbolismo em seus contos fantásticos, pois apresenta mitos que são expressões sucessivas de um pensamento ao mesmo tempo vago e ardente que quer arrancar a criatura da miséria de sua condição relativa para transportá-la ao eterno. Já Lautréaumont, louvado pelos surrealistas que o consideraram como seu precursor, é a expressão mais intensa do frenético romântico, segundo Castex, apresentando invenções fantásticas, simbólicas e paródicas em seus Chants de Maldoror. E, finalmente, Maupassant, em cuja obra Castex destaca as análises perturbadoras e agudas de estados mórbidos, o medo que se apresenta como mola propulsora em muitos de seus contos fantásticos, tendo como personagem central um nevrótico cujo equilíbrio mental sucumbe ou sucumbiu momentaneamente ao horror de se sentir só.

Observa-se que os autores considerados por Castex como mestres da narrativa fantástica do século XIX apresentam características próprias, de formação e estilo, mas também que evoluem de acordo com a corrente literária que vivenciam. O que interessa aqui, particularmente, é focalizar Nodier e Maupassant, os dois autores dos quais foram expostas as reflexões teóricas sobre o fantástico.

Em Nodier, o sonho e a loucura são mecanismos da evasão romântica. Em “Une heure ou la vision”, por exemplo, vê-se o jovem protagonista, que enlouquecera com a morte da mulher amada, relatando ao narrador compadecido sua história marcada pelos infortúnios da perda, da epilepsia e da loucura e, posteriormente, pela visão alentadora da amada morta:

Une heure sonna. Et puis, une cloche lugubre, frappée à des longs intervalles, remplit les airs d’une symphonie de mort. [...] Une année après, jour par jour, je montais la rue de Tournon [..] quand une heure sonna...[...]J’entrai tout ému dans les jardins, moi qui n’ai jamais connu de crainte: et la poussière qui s’élevait à mon passage, et les traits de la lune qui jaillissaient entre les feuilles, et le tumulte éloigné du peuple qui regagnait ses demeures, tout me remplissait d’inquiétude et d’alarmes. Elle m’apparut enfin, vêtue et voilée de blanc, comme dans cette belle

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soirée où nous traversâmes à pied tous les quais de la Seine, et je vis distinctement qu’elle flottait dans une vapeur aussi douce que l’aurore. Je perdis connaissance, et Octavie ne s’éloigna point de moi.(NODIER, 1961e, p.18-19).

O espaço do jardim, a lua, a bruma, a hora noturna, o soar lúgubre do sino, a sinfonia de morte, o tempo cíclico, a figura vestida de branco são índices românticos que introduzem os temas do amor e da morte e levam à evasão, à busca da eternidade e do ideal, características do romantismo.

A loucura em Maupassant, como se viu, é determinada pelo medo, sobretudo, da solidão, sensações bastante realistas, no sentido de estarem distantes do idealismo romântico; as menções ao estado mental do personagem, a médicos e hospícios são claras, sugerindo explicitamente a causa das alucinações sem, contudo, eliminar a ambiguidade do texto.

Em relação ao sonho ou à visão, e no intuito de comparar com esse elemento em Nodier, o conto de Maupassant intitulado “La morte” é bastante elucidativo. A narrativa de Maupassant inicia-se com as palavras “Je l’avais aimée éperdument!”, para em seguida anunciar: “Et voilà qu’elle mourut” (MAUPASSANT, 2013d, p.303-304). Aí estão, juntos, o amor e a morte, como no texto de Nodier. E, de fato, Maupassant parece se utilizar de elementos românticos quando institui o tempo cíclico ao relatar, por meio do “eu” do protagonista, que a amada morrera depois de um ano de uma vida de ternura; depois veio a doença, vieram os médicos, a morte, o enterro, o caixão e o túmulo com as seguintes palavras sobre a lápide: “Elle aima, fut aimée, et mourut” (MAUPASSANT, 2013d, p.308). O protagonista parte em viagem no dia seguinte à morte da amada; ao voltar a Paris e entrar na casa em que com ela vivera, não suporta as lembranças e sai; sem se dar conta, vê-se no cemitério: já pensara no “buraco” em que estava enterrada, agora pensa que ela está lá embaixo, “apodrecida”. Tomado pelo desespero, perde a noção do tempo, a escuridão instaura-se e ele esconde-se entre os galhos de uma árvore para passar a noite ali, chorando próximo de seu túmulo. Maupassant recupera totalmente o cenário gótico ou

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frenético: o cemitério, a noite escura sem luar, a solidão, o medo, até chegar ao frenesi final - ruídos, mortos saindo das tumbas:

Et je m’aperçus, en me retournant, que toutes les tombes étaient ouvertes, que tous les cadavres en étaient sortis, que tous avaient effacé les mensonges inscrits par les parents sur la pierre funéraire, pour y rétablir la vérité. Et je voyais que tous avaient été les bourreaux de leurs proches, haineux, déshonnêtes, hypocrites, menteurs, fourbes, calomniateurs, envieux, qu’ils avaient volé, trompé, accompli tous les actes honteux, tous les actes abominables, ces bons pères, ces épouses fidèles, ces fils dévoués, ces jeunes filles chastes, ces commerçants probes, ces hommes et ces femmes dits irréprochables. (MAUPASSANT, 2013d, p.313-314).

Aproximando-se do túmulo da amada, vê seu esqueleto raspando as palavras originais sobre a cruz da lápide e resgatando a verdade, ao escrever: “Étant sortie un jour pour tromper son amant, elle eut froid sous la pluie, et mourut.” O protagonista é encontrado, no dia seguinte, inanimado sobre um túmulo.

Com isso vê-se quão longe se está do idealismo romântico e como Maupassant, utilizando-se dos mesmos elementos empregados pelos contistas fantásticos românticos, mantém sua tendência realista.

Assim, enquanto Nodier descreve sonhos ou visões etéreas visando à correspondência com a eternidade, as alucinações narradas por Maupassant, mesmo que “abram as portas misteriosas para horizontes inesperados”, remetem à realidade em toda sua rudeza.

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CAPÍTULO II

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TEXTOS FUNDADORES: VAX, CAILLOIS, TODOROV, BELLEMIN-NOËL, BESSIÈRE

Vax e a abordagem filosófica

Em La séduction de l’étrange, de 1965, Louis Vax lança as bases de sua concepção de fantástico, que sintetizara em L’art et la littérature fantastiques, de 1960, onde esboçara uma definição de fantástico, contrapondo-o ao conto popular ou feérico, que “coloca fora do real um mundo em que o impossível e, por conseguinte, o escândalo não existem”:

A narrativa fantástica, pelo contrário, gosta de nos apresentar, habitando o mundo real onde nos encontramos, homens como nós, postos de súbito em presença do inexplicável. [...] o fantástico nutre-se dos conflitos do real e do possível. (VAX, 1972, p.8, grifo nosso).

Nessa delimitação da ficção fantástica, contraposta a outras modalidades em que o sobrenatural se manifesta, nota-se que o maravilhoso, a fantasia e o feérico caracterizam-se como universos à parte, com leis próprias; a narrativa fantástica, por sua vez, necessita

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da oposição marcante entre o real diegético e o sobrenatural ou o inexplicável.

Obra com ambições filosóficas, La séduction de l’étrange é construída por fragmentos de discursos, nos quais Vax já desvenda, de modo intuitivo e embrionário, algumas ideias chaves que a crítica especializada subsequente explorará em parte. Esse livro é publicado antes que os estudos literários passem por uma mudança de orientação “científica”, em direção ao estruturalismo, à psicanálise, à sociologia, etc., que marcará os anos 1960-1980.

Em La séduction de l’étrange, Vax aponta a impossibilidade de uma exata conceituação do fantástico e indica ser o livro inteiro uma tentativa de definição dessa modalidade ficcional. Inicia sua proposta assinalando “o sentimento do estranho” ou “sentimento de estranheza” que as obras fantásticas despertam e indicando que esse sentimento torna o homem estranho a si mesmo. Para Vax, o estranho é uma tentação, algo que o homem sofre, mas frui ao mesmo tempo, isto é, o sentimento do estranho mostra uma ambivalência: consciência do estranho, sedução do estranho, horror do estranho configuram-se como um todo. Assim, esse sentimento não existe em si, mas para o homem que o sofre, dele desfruta ou o estuda.

Segundo Vax (1965, p.6-7, grifo do autor), existe uma estrutura da obra fantástica, mas uma estrutura não imutável; consequentemente, as obras modificam sem cessar a ideia que se faz do fantástico, por meio das flutuações tanto das escrituras – de uma obra à outra -, quanto das culturas – de um meio, de uma época, de uma sociedade e mesmo de um autor a outro:

Comprendre le fantastique, c’est comprendre du dedans la structure et l’évolution des oeuvres fantastiques. [...] On ne découvrira donc jamais dans les oeuvres l’empreinte immuable du fantastique en soi, puisque c’est la notion même du fantastique qui se nuance, s’infléchit, s’élargit, se rétrécit selon les structures des oeuvres qu’elle caractérise. Le sens du mot fantastique, c’est celui que lui donne, à un moment donné, un homme marqué par sa connaissance des oeuvres et par son milieu culturel.

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E completa: “Ce mouvement de va-et-vient entre la fixité du concept et le scintillement des phénomènes, c’est la vie même du savoir.” (VAX, 1965, p.8).

Evidentemente, Vax (1965, p.9) inclui no desenvolvimento de suas ideias certos elementos pragmáticos, isto é, a relação – o vai-e-vem constante – entre a obra e o leitor, emissor e receptor, destinador e destinatário:

L’oeuvre c’est, tout à la fois, et ce corps matériel, et l’ensemble des refléxions et des sentiments qu’il cherche à susciter dans la conscience du spectateur. L’oeuvre, comme le vampire du folklore, est un corps mort qui a besoin, pour soutenir son existence, de boire le sang, la vie et la pensée d’un être vivant. Le spectateur, c’est l’homme [...].

Assim, para que o espectador ou leitor leve o monstro a sério é preciso que o monstro o seduza, que faça adormecer pouco a pouco seu espírito crítico, que o mergulhe em uma atmosfera mágica onde o fantasma, já esperado, se manifestará quase naturalmente. É preciso que o sortilégio se torne plausível e que o incrível, o impossível adquiram os traços da evidência. Um conto bem feito, sublinha Vax (1965), é com frequência um empreendimento de sedução.

Em seguida, Vax lembra a contribuição de Freud a respeito do sentimento de estranheza, quando este propõe uma explicação psicanalítica, segundo a qual o unheimlich é o heimlich recalcado. O sentimento de estranheza aparece em Freud ligado ao retorno de uma situação infantil angustiante, à ameaça da castração; a mentalidade animista da criança reapareceria na angústia do adulto. Ao estudar O homem da areia, de Hoffmann, Freud mostra bem a questão de como o sentimento do estranho é despertado a partir de algo que era familiar e foi recalcado: “Le sentiment de l’unheimlich est celui d’une menace qui ne frappe pas du dehors, mais désagrègue du dedans.”, assinala Vax (1965, p.33), explicando: “L’unheimlich nous donne l’impression que le passé n’est pas mort, mais présent, agissant, envoûtant. Nous prenons pour une action du passé ce qui n’est que notre conscience du passé, notre conscience présente du passé qui s’ignore comme telle.”(VAX, 1965,p.36).Vax concorda também com a existência de relações entre o fantástico e

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a sexualidade; não relações causais, mas isomórficas, uma vez que o sentimento do estranho é ambivalente como o desejo sexual. No entanto, Vax pertinentemente aponta falhas na análise que Freud faz de obras literárias, sobretudo em relação ao tratamento que este dá aos personagens, como se fossem seres vivos, pessoas reais; Freud não atentou que o fantástico é um mundo original onde os conceitos científicos não vigoram.

Considerando a narrativa fantástica, Vax detém-se primeiramente nos motivos, temas e esquemas. Aponta ser geralmente admitido que o conto deve seu caráter fantástico ao motivo; certos motivos seriam fantásticos, outros não. Assim, um conto fantástico seria uma história de vampiro, de fantasma, de lobisomem, e não uma história de passarinhos e flores. Desse ponto de vista, uma classificação de motivos – que ele próprio estabeleceu em seu primeiro livro sobre a arte e a literatura fantásticas (VAX, 1972) – daria um esboço do mundo fantástico. Esse procedimento funda-se na ideia de que um motivo possui um “fundo”; mas, acrescenta Vax, qual seria o fundo de “fantasma”, por exemplo? “Fantasma” é um termo indeterminado, cujas determinações dependem de contextos particulares. Não se “escava” um motivo: ele se “desenvolve”. Ao motivo, que é apenas uma palavra, é preciso opor-se o tema, que tende a confundir-se com a narrativa inteira: “Le récit, c’est le corps même de l’être maléfique. Separé de lui, le monstre n’est plus qu’un concept.” (VAX, 1965, p.76). Os motivos não possuem sua determinação originalmente, adquirindo-a apenas no final do texto; depois, voltam à sua indeterminação primeira para adquirir outra em novas obras. O motivo fantástico é, então, uma função que depende de seu contexto.

Dessa forma, o tema é o elemento ao mesmo tempo mais abstrato e mais fecundo da narrativa; ele reúne os motivos ou seus elementos de modo que constituam uma estrutura estável: “[...] le motif est l’élément central du récit, et le thème son dynamisme. Le motif tend à se ramasser en un concept central, le thème à englober le conte entier. Le conte tend vers son centre, le motif; le motif se développe en récit complet.”

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(VAX, 1965, p.76, grifo do autor). A proposta é que se considere motivo e tema como os dois termos de uma relação dinâmica.

Mesmo que se utilizem certos esquemas, como a repetição – apontada por Freud como um dos procedimentos criadores do sentimento de estranheza -, Vax aponta que esse modo de proceder também é próprio do cômico. O mesmo se dá com o emprego da linguagem figurada que, de fato, produz um efeito fantástico, mas também pode levar a um efeito cômico. Daí o fato de que a narrativa fantástica deva ser considerada em sua totalidade.

A coerência da obra é ainda assinalada por Vax ao tratar da questão do mistério e da explicação; para ele, um bom desenlace pode ser racional se a narrativa é desenvolvida no sentido de uma explicação, ou irracional no caso contrário. Discorda, então, da opinião de que o bom fantástico permaneça inexplicável e o ruim mostre-se como efeito de um estratagema ilusório. Propõe que, mistério ou razão, quando engendrados na totalidade da obra, tornem-se um conflito no interior da narrativa; o fantástico convincente não acumula maravilhas: é discreto e impõe-se combatendo a razão em seu próprio terreno. De qualquer modo, a explicação não é unívoca: há explicações mecânicas, psicológicas ou sociológicas, como há explicações completas ou ambíguas. Se completa, a explicação assegura a vitória da razão sobre o irracional antes de possuir provas e de conhecer a disposição precisa do estratagema ilusório; se ambígua, deixa o leitor indeciso entre a redução do desconhecido ao conhecido e a afirmação pura do inexplicável.

Nous étions partis d’une opposition simpliste entre un fantastique expliqué, qui serait mauvais, et un fantastique inexpliqué, qui serait bon. Nous voyons maintenant que les oeuvres où joue une explication interne peuvent être satisfaisantes, alors que celles où ne joue qu’une explication-réduction ne sauraient l’être. Mais ce problème dépasse l’antinomie de l’explication et du refus d’expliquer dans le domaine de la littérature fantastique.(VAX, 1965, p.107, grifo do autor).

Na verdade, trata-se de uma questão de estética geral, em que tudo depende da coerência da obra.

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O sentimento de estranheza em estado puro, por sua vez, só pode ser apreendido no âmago da obra. Mas qual seria o campo da obra literária se ela não se deixa circunscrever? Com efeito, longe de fechar-se nos limites da narrativa que constitui seu corpo material, a obra necessita da cumplicidade do leitor, assinala Vax: ela vive dos sentimentos que desperta tanto quanto das frases que a compõem; não se contenta em ser compreendida, quer ser “vivida”. Mas a arte não exige nem uma participação brutal como a realidade, nem uma adesão intelectual como a verdade. O leitor é semi-autor, semi-espectador; semi-engajado, semi-desengajado. A vítima vive na angústia, o leitor conhece um sentimento de estranheza. Segundo Vax, a narrativa fantástica exige conhecimento e participação, uma vez que o fantástico é uma espécie de ”sagrado” ao contrário, contaminando tudo aquilo que toca.

No mesmo sentido, a atmosfera não é um pano de fundo indiferente, mas já é o embrião dos acontecimentos fantásticos, auxiliando na composição da ambiguidade da narrativa fantástica: “L’inquiétude fantastique, comme toute inquiétude, se nourrit de doute plutôt que de certitude.” (VAX, 1965, p.129, grifo nosso). Seguindo sua proposta de que seu livro todo seria uma tentativa de conceituação do fantástico, Vax complementa com essas palavras seu esboço de definição, que apenas contrapunha real e sobrenatural: a dúvida, instaurada no texto, torna-se responsável pela ambiguidade da narrativa fantástica.

A partir dessa constatação Vax mostra a possibilidade de dois diferentes tipos de ambiguidade, ou melhor, duas atitudes da consciência, a primeira mostrando interesse pelo monstro que ocupa determinada porção do espaço, a segunda referindo-se ao universo estético que engloba, juntamente com a narrativa, o leitor da narrativa e a dúvida do leitor. O fantástico duvidoso, ambíguo, aparece ligado ao enfraquecimento da credulidade.

Considerando o fantástico contemporâneo, Vax constata que a natureza de seu encanto mudou e volta a afirmar que não nos cabe fixar seu sentido. Aponta a possibilidade de que atualmente, isto é, no momento de suas reflexões, aquilo que determinou a unidade

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dessa modalidade seja menos a ideia de uma irrupção abrupta de um acontecimento sobrenatural no mundo real, do que uma relação afetiva que liga os sentimentos ambivalentes – a atração pelo medo, pelo horror, pela aversão.

Finalmente, considera o fantástico como um momento de crise e apresenta o seguinte esquema:

1. Nous habitons le monde rassurant des certitudes quotidiennes;

2. Survient un fait mystérieux, impossible, inexplicable;

3. Ce fait est compris à son tour dans un savoir plus vaste, qui englobe tout à la fois le savoir précédent [et] le phénomène insolite [...]. Ce n’est [...] pas la synthèse nouvelle qui est fantastique, mais le moment d’inquiétude, de crise et d’affolement qui s’intercale entre les deux synthèses. Le fantastique est un moment de crise.(VAX, 1965, p.149).

Ao pensar o fantástico como ficção, Vax assinala que a lista de combinações dos termos “verdadeiro” e “imaginário” com os dois outros termos “verossímil” e “inverossímil” oferece pouco interesse. Para ele mais vale distinguir: a) a certeza científica fundamentada no raciocínio e na experiência; b) a convicção que se apóia na vontade de crer e na recusa de duvidar; c) a evidência afetiva. Em outras palavras: conhecimento, fé, sentimento. Segundo Vax, a pessoa que cultiva o fantástico não se interessa pelas conclusões da psicologia, nem pelos dogmas que definem a existência e o poder dos diabos, mas sim pelo poder de encantamento dos contistas. A narrativa ingênua que um homem de boa fé considera verdadeira, embora inverossímil, é mais convincente no plano do conhecimento do que a narrativa mais genial tida ao mesmo tempo como imaginária e internamente verossímil. O pensamento de Vax encontra, assim, o de Nodier quando este enfatiza a necessidade de identificação entre as palavras do contador de história e o público, isto é, a necessidade de crença (ou a qualidade de ser convicto) por parte do contista.

Dando prosseguimento a seu intuito de delimitar o campo da narrativa fantástica, Vax afirma que o fantástico surge frequentemente de uma ruptura da constância do mundo perceptivo

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ou físico (gigantes, mortos vivos), do mundo moral (perversidades) ou do mundo estético (monstros). E uma ruptura atrai outras: se um personagem criminoso atravessa as paredes, se apresenta a fisionomia de um assassino, ele configura-se como um escândalo na ordem e na razão prática, ao mesmo tempo em que se mostra como um monstro do ponto de vista estético, tanto quanto um fenômeno na ordem da razão especulativa. O fantástico propaga-se: um incidente insólito ganha progressivamente o mundo e o “eu”. A afronta feita a um dos valores estabelecidos atinge todos os outros, até o ponto em que a exceção se torna a regra; e o mundo cotidiano oscila em direção ao fantástico, o qual se enraíza na banalidade do dia a dia.

Esse enraizamento depende do que Vax denomina dinamismo da expressividade, apontando que coisas e pessoas apresentam uma fisionomia particular, uma expressividade original; a percepção apreende as expressividades, assim como a inteligência capta suas significações. A expressividade seria, pois, uma significação buscando vir à luz. Uma das ilustrações utilizadas por Vax para exprimir seu pensamento refere-se ao gato que nos chama a atenção pelo caráter gracioso, ao mesmo tempo vigoroso e macio, sua vitalidade escondida sob a suavidade. Sabemos que é um animal inofensivo; mas se permitirmos que sua expressividade se prolifere, que invada o espaço e o tempo, que metamorfoseie tudo a seu redor, estaremos em pleno fantástico. Seria como uma fachada que dissimula uma existência secreta; o insólito que era uma vaga ameaça, torna-se sedução, completa Vax, remetendo às lendas e crenças das feiticeiras metamorfoseadas em gatos.

Assim, o fantástico começa a insinuar-se dissimuladamente em um universo cotidiano e termina por transformá-lo completamente; em consequência, a natureza do fantástico seria puramente subjetiva, embora ele se pretenda perfeitamente objetivo.

Le point de vue subjectif [...] ne nous montre plus un homme occupant quelques décimètres cubes dans l’espace objectif, mais un voyageur environné de nuit, d’arbres, de solitude, fasciné par une forme insolite. La forêt et la nuit sont complices de la «chose». Elles enveloppent le promeneur, l’isolent du monde des hommes, le séparent

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A literatura fantástica: caminhos teóricos

de la maison qu’il vient de quitter comme de celle qui l’attend. Il est arraché à l’espace homogène et continu où il pouvait circuler librement, coupé du temps qui le lançait du passé vers l’avenir. Le voilà emprisonné dans un monde singulier. Objectivement, il ne fait rien que traverser un lieu circonscrit dans l’espace, à une heure tardive; subjectivement, il est captif d’un espace et d’un temps nés de la peur.(VAX, 1965, p.196).

Logo, nenhum refúgio parece existir ao homem presa do medo; para o homem assombrado, a floresta maldita constitui um mundo que é o próprio mundo: pensar em um limite significa estar livre do assombramento e romper o círculo da evidência maléfica. Para a consciência aterrorizada, a representação do espaço objetivo não está completamente apagada; mas o mundo fora do círculo mágico cessa de ter uma existência plena. Assim, o espaço fantástico possui um centro, o castelo assombrado ou o lugar maldito, de onde parece se propagar o malefício.

O tempo é influenciado pelo espaço: a noite cai, a hora do terror absoluto se aproxima. Há um paralelismo entre espaço e tempo: mesma lentidão tanto em relação à aproximação do lugar maldito, quanto no que se refere à espera da meia-noite. Na verdade, o espaço e o tempo fantásticos podem distender-se, encolher, desenvolver-se, abreviar-se sem preocupação com os critérios do tempo e do espaço mensuráveis. Logo, espaço, tempo e sentimento de estranheza não se separam: “Une réflexion plus poussée montrerait aisément qu’espace et temps, victime et monstre, ne possèdent pas des existences distinctes, mais ne sont que les termes d’une relation complexe: chacun renvoie à tous les autres et n’a de consistance que par eux.” (VAX, 1965, p.200).

No universo fantástico, o espaço é uma variedade do espaço vivido; o lugar assombrado não é apenas uma parcela daquilo que compõe esse mundo, mas um monstro que ameaça sua vítima. O verdadeiro tempo fantástico, por sua vez, é o do terror, da ameaça sem recurso. A vítima vê fechar-se sobre ela o espaço e o tempo fantásticos: é hic et nunc que ela conhecerá o terror absoluto e a morte. É a própria vítima que induz o espaço e o tempo que a ameaçam: assusta-se com o rosto que ela mesma desfigurou, maculou, e que é seu próprio rosto.

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Vax faz observações semelhantes no que se refere aos personagens fantásticos: fantasmas, vampiros e lobisomens. O “sujeito” de uma aventura fantástica é sempre o herói-vítima; seu “objeto” é sempre o monstro. Mas esse objeto que ameaça o sujeito é uma parte revoltada dele mesmo: se o espectador (sujeito) está com medo, o monstro (objeto) é ameaçador. É “aqui” que a vítima experimenta o “alhures” inquietante; é “agora” que ela é ameaçada pelo “futuro”; é por meio dela que o monstro existe. A transcendência fantástica habita no âmago de uma imanência.

Desse modo, a aventura fantástica é quase sempre uma aventura solitária. A solidão fantástica não se refere apenas a um isolamento objetivo: é a negação da comunidade humana. A solidão do cenário reflete a solidão da vítima; o espaço fantástico é, assim, a expressão da solidão em que a loucura e o horror aprisionam suas vítimas.

O conto fantástico é a narrativa de uma aventura que apresenta o real e o irreal. O mistério esparso inquieta o sujeito, estimula sua curiosidade e o incita a buscar a fonte do malefício. Essa busca do objeto do pavor que o atrai e que evita, essa iniciação ao terror, confunde-se com a própria narrativa. O instante agudo da crise é tão somente o final da busca, que pode confundir-se com a descoberta do monstro.

O monstro, o ser inquietante, muitas vezes designado por um pronome pessoal, é a força anônima, aterrorizadora e indeterminada. O objeto ameaçador aparece a princípio como uma imperceptível fissura no real; um tênue indício - um pressentimento, um presságio, um sonho premonitório, um livro ou um manuscrito descoberto por acaso - coloca o sujeito no caminho do insólito.

Esse insólito apresenta dois pólos (VAX, 1965): se a aventura fantástica é mística, a moral é otimista; com maior frequência, porém, a moral é pessimista, e a narrativa aparece plena de sentimentos negativos – medo, horror, desgosto -, e esses sentimentos, cedendo à sua inclinação, vão se intensificando até se tornarem insuportáveis.

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Ao abordar o fantástico principalmente sob um ângulo filosófico, Vax não chega a articular uma sistemática da prática da escritura fantástica. Ao contrário, pretende provar o caráter movente da modalidade invocando a presença da prática individual sobre o modelo geral, e quer demonstrar que o fantástico não é circunscrito de modo preciso. Para Vax, o foco da questão reside na busca de uma “essência” fantástica determinada, e não necessariamente de uma “forma”: “Pour s’imposer, le fantastique ne doit pas seulement faire irruption dans le réel, il faut que le réel lui tende le bras, consente à sa séduction.” (VAX, 1965, p.88).

De todo modo, o livro de Vax encontra-se entre as primeiras obras teóricas de importância publicadas na França sobre a literatura fantástica, seja pelos questionamentos propostos, seja pelas numerosas pistas esboçadas. Assim, algumas ideias essenciais podem ser retidas: ao afirmar que o fantástico só se opõe às evidências racionais porque nelas se apóia, Vax (1965) assinala a oposição, essencial ao fantástico, entre a ordem do real e a do sobrenatural. Essa oposição já aparece em sua obra de 1960 sobre a arte e a literatura fantásticas, quando busca definir o fantástico, após ter delimitado o feérico; ao abordar o sentimento de estranheza em seu livro de 1965 assinala a importância da incerteza e da ambiguidade na caracterização da narrativa fantástica.

Retoma as noções de motivo e tema considerando-os como os dois termos de uma relação dinâmica e elimina as listas de motivos e temas propostas por diferentes teóricos, mostrando a polivalência desses elementos. Embora priorize “a sedução do estranho”, em que o leitor deixa-se seduzir por aquilo em que provavelmente não crê, Vax (1965) deixa claro, ao afirmar ser a narrativa o próprio corpo do ser maléfico, que um motivo não é fantástico por si só pois fora dela o monstro não passa de um conceito; assim, de certo modo, remete à questão da forma da narrativa fantástica, mesmo que seja uma forma mutável, logo, e como afirma, um gênero movente.

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Caillois: diferentes formas do maravilhoso e do sobrenatural

No prefácio intitulado “De la féerie à la science-fiction” que apresenta os contos selecionados da Anthologie du fantastique, tomo I, livro publicado em 1966, Roger Caillois (1966a, p.7) propõe-se a refletir sobre as diferenças entre os contos de fadas, as narrativas fantásticas e as ficções científicas:

[...] il est clair que les féeries se ressemblent, mais qu’elles diffèrent des contes fantastiques; que ceux-ci, à leur tour, ont un air de parenté, par lequel ils s’opposent à la fois aux féeries et aux récits de science-fiction; et que ces derniers, pour leur part, se ressemblent entre eux. Dans chaque cas, il y a surnaturel et merveilleux. Mais les prodiges ne sont pas identiques, ni les miracles interchangeables. En sorte que la liberté d’invention n’est peut-être pas si étendue qu’on le présumait d’abord.

Após apontar a importância dessa distinção entre noções muito próximas e frequentemente confundidas, passa a definir o conto de fadas: o feérico é um universo maravilhoso que se acrescenta ao mundo real da narrativa sem atacá-lo, nem destruir sua coerência, isto é, o mundo feérico e o mundo real diegético se interpenetram sem choque nem conflito. O conto de fadas situa-se em um mundo onde o encantamento é natural e a magia é a regra; obedece a leis diferentes, segundo as quais o sobrenatural não é aterrorizante, tampouco causa surpresa, pois ele constitui a própria substância desse universo, sua lei, seu clima; não viola nenhuma regra, já que faz parte da ordem das coisas. Esse mundo encantado é harmonioso, sem contradições, embora seja fértil em peripécias, pois conhece a luta entre o bem e o mal; mas, uma vez aceitas as propriedades dessa sobrenatureza, tudo permanece estável e homogêneo. Com efeito, o feérico refere-se a uma narrativa situada desde o início no universo fictício dos feiticeiros e dos gênios; as primeiras palavras da primeira frase já são uma advertência: “En ce temps-là” ou “Il y avait une fois”. Desse modo, as fadas e os ogros não poderiam trazer inquietação; a imaginação os exila em um mundo distante, fluido, estanque.

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No fantástico, ao contrário, o sobrenatural aparece como uma ruptura da coerência universal; o prodígio torna-se uma agressão interdita, ameaçadora, que quebra a estabilidade de um mundo cujas leis eram, até então, tidas como rigorosas e imutáveis. É o impossível chegando de improviso em um mundo do qual foi banido por definição. Assim, em oposição à narrativa feérica, “[...] le fantastique [...] manifeste un scandale, une déchirure, une irruption insolite, presque insupportable dans le monde réel.” (CAILLOIS, 1966a, p.8, grifo nosso).Outra oposição apontada por Caillois diz respeito ao final feliz dos contos de fadas, enquanto as narrativas fantásticas desenvolvem-se em um clima de terror e terminam quase inevitavelmente por um acontecimento sinistro que provoca a morte, o desaparecimento ou a danação do herói; depois a regularidade do mundo retoma seus direitos.

O fantástico aterroriza porque rompe e desconsidera uma organização imutável, inflexível e que parece ser a garantia da razão; assim, o fantástico supõe a solidez do mundo real, para melhor devastá-la.

C’est pourquoi le fantastique est postérieur à la féerie et, pour ainsi dire, la remplace. Il ne saurait surgir qu’après le triomphe de la conception scientifique d’un ordre rationnel et nécessaire des phénomènes, après la reconnaissance d’un déterminisme strict dans l’enchaînement des causes et des effets. En un mot, il naît au moment où chacun est plus ou moins persuadé de l’imposssibilité du miracle. Si désormais le prodige fait peur, c’est que la science le bannit et qu’on le sait inadmissible, effroyable. Et mystérieux: on n’a pas assez remarqué que la féerie, parce que féerie, excluait le mystère.(CAILLOIS, 1966a, p.9).

Caillois discute ainda a questão do sobrenatural explicado na ficção fantástica, apontando que as narrativas que apresentam a irrupção do insólito no banal não repousam uniformemente sobre um único princípio; muitas vezes, o autor não vai até o fim do escândalo e, por meio de algum artifício, elimina o fantástico no momento de fechar a narrativa. E passa a discutir sobre os recursos utilizados: o evento aparentemente sobrenatural não passa de uma encenação para aterrorizar o herói; ou é proveniente do

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sonho, alucinação ou delírio, mecanismos que provocariam uma decepção análoga. Outra espécie do que chama pseudo-fantástico seria aquela que recorre ao emprego de metamorfoses decorrentes de experiências científicas, paralelamente à categoria de contos misteriosos que se dedicam a utilizar dados das ciências psíquicas como telepatia, espiritismo, levitação, ectoplasmas, sonhos premonitórios.

Ao afirmar que a literatura fantástica se situa imediatamente no plano da ficção pura, pois é antes de tudo um jogo com o medo, sugere ser preciso que os escritores que colocam espectros em cena, não acreditem nos fantasmas que inventam. Mais adiante, Caillois (1966a, p.22) traz à tona palavras, segundo ele quase esquecidas, de Mme Du Deffand, femme de lettres do século XVIII, que resumiriam claramente o espírito do amador de contos fantásticos: “Croyez-vous aux fantômes? – Non, mais j’en ai peur.” Na narrativa fantástica, afirma ainda o autor, o medo é um prazer, um jogo delicioso, uma espécie de aposta com o invisível em que o invisível, no qual não se crê, parece vir reclamar o que lhe é devido; no entanto, uma margem de incerteza subsiste instaurada pelo talento do escritor, por meio da lógica, da precisão, de detalhes verossímeis, mostrando-se exato, escrupuloso, realista.

Caillois insiste que o fantástico é, em toda parte, posterior à imagem de um mundo sem milagres, submisso a uma causalidade rigorosa. Na Europa, não aparece antes do final do século XVIII, como compensação de um excesso de racionalismo.

Le Siècle des lumières se termine, on le sait, par une éclatante revanche du merveilleux. Toutes les superstitions fleurissent, et avec d’autant plus de succès qu’elles empruntent quelque apparence scientifique. En outre, les féeries de style oriental sont à la mode. Il suffit de citer, outre le Vathek de Beckford, Le Diable amoureux de Cazotte et Rodrigue ou la Tour enchantée du marquis de Sade. En Allemagne, Goethe écrit plusieurs nouvelles allégoriques dont un impitoyable symbolisme maçonnique ou rose-croix détermine les moindres détails. Le conte proprement fantastique se dégage assez lentement de cet excès de prodiges et de paraboles. (CAILLOIS, 1966a, p.16).

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Após assinalar que, na Europa, o fantástico é contemporâneo ao romantismo, Caillois (1966a, p.16) ressalta o livro Manuscrit trouvé à Saragosse, com as palavras: “Comme il arrive souvent, le coup d’essai fut un coup de maître”. Escrito em francês pelo conde Potocki, a primeira parte foi publicada em São Petersburgo em 1804, com uma tiragem bem pequena; apesar da publicação em Paris, em 1813, da segunda parte da obra, e da reedição da primeira parte no ano seguinte, o livro permaneceu quase desconhecido. Indica, ainda, que um dos contos mais célebres de Washington Irving, The Grand Prior of Malta, é a estrita tradução literal de um dos episódios da obra de Potocki, bem como o fato de outros autores terem conhecido e utilizado essa fonte. Nenhum desses escritos, porém, parece ter atingido a originalidade fundamental do Manuscrit trouvé à Saragosse, pois as novelas que compõem esse Decamerão fantástico repetem e variam a mesma aventura estranha e imutável, de modo que à inquietação suscitada por cada uma delas se junta um acúmulo de mistério e de angústia originários do cenário recorrente que persegue o herói.

Caillois passa, então, a elencar os signos do outro mundo que compõem o fantástico literário: o pacto com o demônio, a alma penada que exige o cumprimento de certa ação para que possa repousar, o espectro condenado a um percurso desordenado e eterno, a morte personificada surgindo no meio dos vivos, a “coisa” indefinível e invisível que mata ou prejudica, os vampiros ou mortos que se asseguram uma juventude perpétua sugando o sangue dos vivos, a estátua, manequim, armadura, autômato que se animam e adquirem temível independência, a maldição de um feiticeiro que desencadeia uma doença terrível e sobrenatural, a mulher fantasma saída do além sedutora e mortal, a intervenção dos domínios do sonho e da realidade.

No capítulo intitulado “L’image fantastique” que integra o livro Images, images...,Caillois (CAILLOIS, 1966b) retoma o prefácio de Anthologie du fantastique, incluindo algumas páginas nas quais desenvolve amplamente a passagem do fantástico para a ficção científica, sobretudo a partir do tema da invisibilidade. Mostra que, para o fantástico, o ser invisível por excelência é o espectro,

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enviado do Além. Na ficção científica, a invisibilidade deve-se a um procedimento de laboratório, à invenção inédita de um cientista: decorre daí ser um fato que a ciência, a técnica e, diríamos hoje, a tecnologia criam uma nova espécie de maravilhoso.

Em suma, assinala Caillois, o conto de fadas exprimia os ingênuos anseios de um homem diante de uma natureza que não sabia ainda como dominar. As narrativas fantásticas ou de horror sobrenatural traduziam o pavor de se ver, de repente, a regularidade, a ordem do mundo tão dificilmente estabelecida e afirmada pela investigação metódica e pela ciência experimental, ceder ao ataque das forças irreconciliáveis, noturnas, demoníacas. Por sua vez, a ficção científica ou narrativa de antecipação reflete a angústia de uma época que se mostra atemorizada face aos progressos da teoria e da técnica. Nos três casos, conclui, o clima geral das obras, seus temas de predileção, sua inspiração essencial derivam das preocupações latentes das épocas em que as diferentes modalidades literárias se desenvolvem.

Todorov e o estruturalismo

Com Introduction à la littérature fantastique, de 1970, Todorov é sem dúvida o primeiro teórico do fantástico a abordar o estudo dessa modalidade literária em uma perspectiva de gênero e a tentar uma abordagem estruturalista de importância. Nesse sentido, parece retomar a discussão a partir do ponto em que Vax termina sua investigação, e situa imediatamente o fantástico no terreno dos gêneros literários:

A expressão “literatura fantástica” refere-se a uma variedade da literatura ou, como se diz comumente, a um gênero literário. Examinar obras literárias a partir da perspectiva de um gênero é um empreendimento absolutamente peculiar. Nosso propósito é descobrir uma regra que funcione para muitos textos e nos permita aplicar a eles o nome de “obras fantásticas”, [e] não pelo que cada um tenha de específico.(TODOROV, 1975, p.7-8).

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Para Todorov, o conceito de gênero é, então, fundamental para o desenvolvimento de sua reflexão. Pergunta-se se há somente alguns gêneros (poético, épico, dramático) ou muitos mais, sempre insistindo em que não se pode rejeitar a noção de gênero, embora a literatura pareça estar abandonando essa divisão. Recorre a Genette e à noção de transgressão da norma, isto é, o fato de o texto ir além das estruturas vigentes, para demonstrar a importância de seu pensamento e afirma serem os gêneros escalas por meio das quais a obra se relaciona com o universo da literatura. Investiga também a teoria dos gêneros de Northrop Frye que, na verdade, não utiliza a palavra “gênero” em toda sua classificação, mas emprega os termos “modo”, “tendência”, “categoria”, para finalmente chegar ao que considera gêneros: drama, poesia lírica, poesia épica, prosa. Todorov conclui que Frye assinalou apenas os “gêneros teóricos” e não os “históricos”.

A discussão sobre gêneros com o objetivo de sintetizar suas ideias resume-se em que, para Todorov (1975, p.24), “[...] toda teoria dos gêneros assenta-se numa representação da obra literária.”, determinada por uma estrutura abstrata. Detém-se, então, no estudo do “gênero fantástico”, distinguindo, em um primeiro momento, três aspectos: os aspectos verbal, sintático e semântico. No aspecto verbal, que reside nas frases concretas constituintes do texto, Todorov assinala dois grupos de questões; o primeiro grupo refere-se às propriedades do enunciado, o segundo aparece ligado à enunciação, isto é, ao autor e leitor implícitos. O aspecto sintático diz respeito às relações que as partes da obra mantêm entre si: lógicas, temporais e espaciais; o aspecto semântico, por sua vez, refere-se aos temas do livro. Todorov deixa claro que esses três aspectos manifestam-se em uma inter-relação complexa e só aparecem isolados na análise da obra.

Em um segundo momento, Todorov assinala em que nível pretende situar as estruturas literárias, optando por considerar todos os elementos imediatamente observáveis no universo literário como manifestação de uma estrutura abstrata e desnivelada, produto de uma elaboração. Em terceiro lugar, afirma que o conceito de gênero

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deve ser matizado e qualificado: tendo considerado os gêneros históricos (observação dos fatos literários) e os gêneros teóricos (deduzidos de uma teoria da literatura, podendo ser subdivididos em elementares e complexos), Todorov (1975, p.26) define sua proposta: “A definição dos gêneros será então um vaivém contínuo entre a descrição dos fatos e a teoria em sua abstração.”

Além desses três aspectos que comporiam a estrutura do fantástico em literatura, Todorov (1975, p.38-39) determina três condições para que uma narrativa seja considerada fantástica:

Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem; desta forma o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação encontra-se representada, torna-se um dos temas da obra [...]. Enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação “poética”. Estas três exigências não têm valor igual. A primeira e a terceira constituem verdadeiramente o gênero; a segunda pode não ser satisfeita. Entretanto, a maior parte dos exemplos preenchem as três condições.

Como Vax, Todorov considera a dimensão pragmática (leitor modelo, leitor real, atitude em relação ao texto), mas, ao contrário de seu predecessor, interessa-se mais pelo discurso como tal, pela formalização interna da narrativa, pela instalação de um universo intratextual (o mundo dos personagens). A noção de hesitação – entre natural e sobrenatural, real e ilusório – seria imprescindível na formalização do fantástico literário. A segunda condição encontra-se, de certo modo, incluída na primeira: segundo Todorov, a hesitação pode ser formalizada tanto na organização do discurso, quanto no processo pragmático do ato de leitura. Assim, a representação da hesitação por um personagem é condição essencial para a formalização do fantástico canônico: o personagem da narrativa fantástica sempre reage intensamente à aparição do sobrenatural

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ou insólito, e o leitor constrói sua leitura e sua interpretação tanto a partir do discurso desse personagem quanto da narração de fenômenos estranhos. Decorre daí a definição de narrativa fantástica de Todorov (1975, p.31, grifo nosso), quando constata que o fantástico ocorre na incerteza: “O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural.”

Busca, então, corroborar a exatidão de sua definição por meio das considerações sobre o fantástico emitidas por diferentes escritores, as quais sempre indicam a oscilação entre a explicação natural e a sobrenatural em relação aos eventos narrados. Não deixa de citar o que chama de textos canônicos sobre o fantástico literário: as reflexões de Pierre-Georges Castex, Louis Vax e Roger Caillois, salientando a significação unívoca de suas definições, nas quais “[...] há de cada vez o ‘mistério’, o ‘inexplicável’, o ‘inadmissível’, que se introduz na ‘vida real’, ou no ‘mundo real’, ou ainda na ‘inalterável legalidade cotidiana’.” (TODOROV, 1975, p.32). Essas contraposições ou contradições entre real e sobrenatural no universo da narrativa já sugerem a questão da hesitação, palavra-chave da definição de Todorov; além disso, viu-se que se Nodier e Castex apenas aventam a questão da hesitação, Vax assinala a palavra “dúvida” e Maupassant indica não só a dúvida, como a hesitação.

A terceira condição aparece ligada a um importante elemento apontado por Todorov, no momento em que o teórico discorre sobre a “unidade estrutural” da narrativa fantástica, assinalando os aspectos verbal, sintático e semântico; no que se refere ao enunciado (aspecto verbal), Todorov (1975, p.85) considera que “[...] o primeiro traço assinalado é um certo emprego do discurso figurado. O sobrenatural nasce frequentemente do fato de se tomar o sentido figurado ao pé da letra.” Assim, a última condição estabelecida por Todorov lembra que o processo da leitura deve ser regido por mecanismos que presidam a leitura do tipo literal, em que a interpretação alegórica ou poética é excluída de fato.

Todorov passa, então, a abordar os muitos sentidos da palavra “fantástico”. Não concorda com a definição de H. P. Lovecraft,

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que a centra na experiência particular do leitor real, isto é, na experiência do medo. É preciso lembrar que o livro de Lovecraft, Supernatural Horror in Literature, cuja primeira edição data de 1927 não indica pretensões teóricas e nem mesmo histórico-literárias; diria que se trata de um longo ensaio, em que o autor se propõe a indicar as transformações da narrativa fantástica e o horror que ela suscita, por meio de obras que marcam uma evolução em relação à literatura gótica; ou seja, fixa-se nas narrativas fantásticas em que o medo é imprescindível, ou o horror, como já aponta o título de sua obra.

Lovecraft (1969, p.31) mostra que muitos escritores de narrativas fantásticas traçam uma via através dos meandros da escola gótica, procedimento que, de Poe a Hawtorne, vem ao encontro de autores atuais:

Quel était le décor nécessaire à l’élaboration d’un tel type d’ouvrage ? D’abord le château gothique et féodal, château délabré en général, puis des vieux meubles, des tentures effrayantes, des couloirs humides, des cryptes macabres. N’oublions pas une flopée de fantômes évoluant dans un lourd climat de légendes, suspense démoniaque, terreur surnaturelle.

Para o autor norte-americano (LOVECRAFT, 1969), a atmosfera é a qualidade mais importante da narrativa fantástica, e o maquinário gótico em muito contribui para esse aspecto.

O corpus por ele discutido compõe-se, principalmente de textos de autores de língua inglesa, dentre os quais Edgar Allan Poe é destacado. E, de fato, Lovecraft (1969, p.9) centra suas reflexões na questão do medo, sentimento que justificaria a existência da narrativa que apavora:

La plus vieille, la plus forte émotion ressentie par l’être humain, c’est la peur. Et la forme, la plus puissante découlant de cette peur, c’est la Peur de l’Inconnu. [...] le récit fantastique survit à travers les siècles, se développe et atteint même à de remarquables degrés de perfection. Car, Il plonge ses racines dans um élémentaire et profond principe, dont l’attrait n’est pas seulement universel mais nécessaire au genre humain: la Peur [...].

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Algumas páginas depois, Lovecraft (1969) especifica que o gênero da literatura fantástica não deve ser confundido com outro gênero de literatura, aparentemente similar, mas cujas motivações psicológicas são bem diferentes: a literatura de terror, fundada principalmente em um sentimento de medo físico. De qualquer modo, Todorov não deixa de apontar teóricos do fantástico que levam em consideração o medo provocado no leitor, como Penzoldt ou a impressão de estranheza, como Caillois (lembro aqui a proposta de Vax), embora para eles a dupla explicação possível permaneça como a condição necessária do gênero.

Ao voltar à sua própria definição, salientando sempre a questão da hesitação, Todorov aponta duas possibilidades: hesitar ao considerar a possibilidade de os eventos insólitos que realmente ocorreram serem uma fraude ou um erro de percepção do personagem (logo do leitor); e hesitar por não saber se os eventos sobrenaturais foram reais ou fruto da imaginação. Esses dois tipos de hesitação desencadeariam a ambiguidade da narrativa.

Outros dois procedimentos provocadores da ambiguidade seriam o imperfeito e a modalização. No caso do tempo verbal, Todorov mostra a continuidade do imperfeito no tempo, uma vez que pode se referir a um passado distante ou bem próximo do presente, incitando a incerteza. É justamente a incerteza o resultado do emprego da modalização como se viu, por exemplo, no conto “Sur l’eau”, de Maupassant, indicando as oscilações da imaginação do protagonista.

Se o fantástico configura-se como um gênero evanescente, segundo Todorov (1975, p.47), já que “dura apenas o tempo de uma hesitação”, ele se define sempre em relação aos gêneros que lhe são vizinhos:

No fim da história, o leitor, quando não a personagem, toma contudo uma decisão, opta por uma ou outra solução, saindo desse modo do fantástico. Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode

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ser explicado, entramos no gênero maravilhoso. (TODOROV, 1975, p.48).

Conclui, assim, que o fantástico parece se localizar antes no limite de dois gêneros, o maravilhoso e o estranho, do que ser um gênero autônomo. Ilustra seu pensamento recorrendo ao romance gótico, que considera como um dos grandes períodos da literatura fantástica, e que confirmaria a questão do sobrenatural explicado (estranho) representado pelos romances de Ann Radclif e Clara Reeves, e do sobrenatural aceito (maravilhoso), que agrupa as obras de HoraceWalpole, M. G. Lewis e Mathurin. No entanto, embora o fantástico literário estabeleça relações com o gothic novel, neste o sobrenatural é sempre explícito e não há hesitação, dúvida ou incerteza sobre sua manifestação, seja ele explicado racionalmente ou aceito no final: nesse sentido, o romance gótico se configuraria como uma modalidade literária diferente do fantástico. Todorov (1975, p.48) continua no que parece confirmar minhas reflexões e contradizer o que antes ele assinalara:

Não existe aí [nas obras góticas] o fantástico propriamente dito: somente gêneros que lhe são vizinhos. Mais exatamente, o efeito fantástico de fato se produz mas somente durante uma parte da leitura. [...] Uma vez terminado o livro, compreendemos – nos dois casos – que não houve fantástico.

Vejo aqui outra contradição, uma vez que Todorov apontará, logo abaixo, ser o fantástico um gênero evanescente, depois de ter afirmado que dura apenas o tempo da hesitação, isto é, a maioria das narrativas fantásticas também produziria o fantástico em apenas uma parte do texto.

Ao conceber a unidade da obra, Todorov (1975, p.50) parece reconsiderar a afirmação acima e pondera que “[...] seria falso entretanto pretender que o fantástico só possa existir em uma parte da obra.” Imediatamente, restringe essa sua ponderação: “Há textos que mantêm a ambiguidade até o fim, o que quer dizer, além. Fechado o livro, a ambiguidade permanecerá.” Ilustra sua observação citando A volta do parafuso de Henry James e “La

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Vénus d’Ille” de Prosper Mérimée. A incoerência, neste caso, seria de ordem restritiva em relação à própria estrutura que ele mais adiante proporá em relação às narrativas fantásticas que constituem o corpus selecionado, o qual abrange todo o século XIX.

Outro ponto confuso é quando Todorov (1975, p.49) considera que “[...] o maravilhoso corresponde a um fenômeno desconhecido, jamais visto, por vir: logo, a um futuro.” Ora, o maravilhoso configura-se como um universo à parte, com leis próprias, como aliás a ficção científica, e esta sim situa-se comumente no futuro. Mais adiante veremos que o teórico considera a ficção científica como uma das formas do maravilhoso – o maravilhoso científico -, o que não deixa de ser coerente uma vez que as convenções desse tipo de narrativa são pré-estabelecidas.

Insiste, a seguir, na necessidade de não excluir do exame do fantástico literário os gêneros com os quais este se imbrica – o maravilhoso e o estranho - e conclui que o fantástico puro seria representado apenas pela linha que permeia o fantástico-estranho e o fantástico-maravilhoso, os quais ficariam entre o estranho, de um lado e o maravilhoso, de outro. O fantástico-estranho refere-se aos textos que apresentam acontecimentos que parecem sobrenaturais, mas no fim recebem uma explicação racional: coincidências, sonhos, influência das drogas, fraudes, jogos falseados, ilusão dos sentidos, loucura explicariam o que, a princípio, apresentava um caráter insólito ou sobrenatural. Ao lado desses casos, o estranho puro define-se por acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que se mostram incríveis, extraordinários, inquietantes, provocando no personagem e no leitor reação semelhante àquela proporcionada por uma narrativa fantástica, como o medo.

Novamente remeto à estrutura que Todorov propõe – a qual considero plenamente válida no que se refere ao fantástico tradicional - e pergunto-me se, no caso de a narrativa em questão preencher os requisitos estruturais que aponta sua teoria quando considera os aspectos verbal, sintático e semântico, não poderia

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ser considerada fantástica mesmo que os elementos sobrenaturais fossem apenas aparentes? A atmosfera de “A queda da casa de Usher”, de Poe (POE, 1965b), utilizada por Todorov para ilustrar sua reflexão sobre o estranho, apresenta todas as características de uma narrativa fantástica, mesmo que seja do que o próprio teórico considera como fantástico-estranho, isto é, que apresente explicações racionais para os eventos ocorridos. Um narrador em primeira pessoa que acaba por compartilhar com o protagonista os efeitos causados pela atmosfera inquietante da enorme casa em ruínas, perturbação acentuada pela suposta morte da irmã de Roderick Usher, o reaparecimento súbito de Lady Madeline, cuja morte de fato coincide com a do irmão, a fuga do narrador da mansão prestes a desmoronar: coincidências, aponta Todorov, ou pandeterminismo, parecendo esquecer ter sido essa uma das primeiras características que indicou para caracterizar o fantástico-estranho. No mesmo sentido, a experiência limite que excluiria a obra do fantástico, é apontada por Maupassant e por Bessière como sendo característica dessa modalidade literária: o estado extremamente doentio do irmão e da irmã, a sugestão velada de incesto. A meu ver, a narrativa policial de mistério seria uma ilustração mais satisfatória para aquilo que Todorov denomina “estranho”, uma vez que, como ele próprio aponta, no romance policial a ênfase recai na solução do mistério.

A discussão sobre o fantástico-maravilhoso revela-se mais simples e clara, os textos que utiliza como ilustração são exemplares: “La morte amoureuse”, de Théophile Gautier e “Véra”, de Villiers de l’Isle Adam; no primeiro caso, o protagonista, ao ser aberto o túmulo de Clarimonde, vê nitidamente a amada, morta há muito tempo, fresca e bela como em vida, com uma gota de sangue nos lábios; ao ser aspergido com água benta, o cadáver pulveriza-se transformando-se imediatamente em cinzas. No segundo caso, o conde, marido de Véra, encontra em seu quarto a chave que ele próprio jogara no interior do jazigo da esposa morta, depois de trancá-lo. Assim, o fantástico-maravilhoso termina com a aceitação do sobrenatural, como mostram os dois textos.

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Para discutir o maravilhoso puro, Todorov distingue-o dos contos de fadas e passa a enumerar os vários tipos de maravilhoso: maravilhoso hiperbólico, maravilhoso exótico, maravilhoso instrumental e maravilhoso científico (ficção científica). Acrescenta, então, que “[...] a todas essas variedades do maravilhoso ‘desculpado’, justificado, imperfeito, opõe-se o maravilhoso puro, que não se explica de nenhuma maneira.” (TODOROV, 1975, p.63).

Passa, a seguir, a precisar as relações do fantástico com o que considera dois gêneros vizinhos: a poesia e a alegoria. Iniciando pela poesia, parte dos elementos que a diferenciam da ficção: esta apresentaria um caráter representativo e a seu respeito são utilizados termos como personagens, ação, atmosfera, cenário, etc., isto é, palavras que também designam a realidade extra-textual; enquanto a poesia recusaria esta aptidão para evocar e representar (e aponta que essa oposição tende a desaparecer na literatura do século XX), sendo os termos empregados para caracterizá-la rimas, ritmo, figuras retóricas, etc. Assinala ser uma oposição de grau, pois a poesia comporta também elementos representativos e a ficção apresenta propriedades que tornam o texto opaco, não transitivo. O fato é que, se o texto poético for lido com as devidas conotações, não tendem a descrever um mundo representado; assim, quando Todorov (1975, p.68) escreve que “o fantástico implica ficção”, podemos ler: o fantástico exige a leitura literal quando as palavras aparecem em sentido figurado.

A alegoria em relação ao fantástico poderia ser explicada da mesma maneira. Considerando primeiramente que a alegoria implica na existência de pelo menos dois sentidos para as mesmas palavras, diz-se às vezes que o sentido primeiro deve desaparecer, outras vezes que os dois devem estar presentes juntos. Em segundo lugar, este duplo sentido é indicado na obra de maneira explícita, não dependendo de interpretação: “Se o que lemos descreve um acontecimento sobrenatural, e que exige no entanto que as palavras sejam tomadas não no sentido literal mas em um outro sentido que não remeta a nada de sobrenatural, não há mais lugar para o fantástico.” (TODOROV, 1975, p.71). Todorov mostra ainda

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diferentes níveis de alegoria até chegar à questão da hesitação, provocada pela construção do texto, no que se refere à inclinação do leitor pelo sentido alegórico ou literal; essa discussão termina ilustrada pela narrativa “William Wilson”, de Poe: aponta ser difícil decidir se esse duplo é um ser humano em carne e osso, ou se o autor propõe que esse pretenso duplo é tão somente uma parte da personalidade, uma espécie de encarnação da consciência; o fim da história impele ao sentido alegórico em relação ao duplo, sem prejuízo do fantástico, a meu ver, visto que se trata de uma experiência limite; Todorov, no mesmo sentido, assinala estarmos em face da hesitação do leitor.

O fato de o fantástico estar relacionado com o sentido literal das palavras é um aspecto importante do discurso fantástico, da estrutura da narrativa fantástica: “Se a obra literária forma verdadeiramente uma estrutura, é preciso que encontremos em todos os níveis, consequências desta percepção ambígua do leitor pela qual o fantástico é caracterizado.” (TODOROV, 1975, p.84). Com essa afirmação, e depois de apontar que se limitará aos traços mais gerais da estrutura (os aspectos verbal, sintático e semântico), Todorov passa a discorrer sobre as três propriedades que mostram como se realiza a unidade estrutural: a primeira depende do enunciado, a segunda da enunciação (ambas relativas ao aspecto verbal) e a terceira do aspecto sintático. Em relação à primeira propriedade, que diz respeito a certo emprego do discurso figurado, Todorov assinala três relações das figuras retóricas com o fantástico: 1) o exagero e 2) o sentido próprio da expressão figurada (relação diacrônica); 3) a figura e o sobrenatural presentes, juntos, no mesmo plano (relação sincrônica). Com referência a esse último caso, que Todorov considera o mais interessante para seu propósito, lê-se:

Aqui a aparição do elemento fantástico é precedida por uma série de comparações, de expressões figuradas ou simplesmente idiomáticas, muito correntes na linguagem comum, mas que designam, se forem tomadas ao pé da letra, um acontecimento sobrenatural: precisamente aquele que ocorrerá no fim da história. (TODOROV, 1975, p.88).

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A expressão figurada seria introduzida por uma forma modal: dir-se-ia, como se. Quando Alphonse, o protagonista de “La Vénus d’Ille”, não consegue tirar o anel que colocara no dedo da estátua de Vênus, inquieta-se pois seus amigos o “chamariam de marido da estátua”: de fato, a estátua se comportará como se fosse esposa de Alphonse.

Enquanto o emprego do discurso figurado é um traço do enunciado, a segunda propriedade estrutural relaciona-se à enunciação, e mais propriamente ao narrador: “O narrador representado convém [...] perfeitamente ao fantástico. Ele é preferível à simples personagem, que pode facilmente mentir [...]. Mas ele é igualmente preferível ao narrador não representado [...]” (TODOROV, 1975, p.91). Segundo Todorov, há duas razões para que o narrador representado tenha primazia: 1) se o acontecimento sobrenatural fosse contado por um narrador em terceira pessoa ou heterodiegético, estaríamos imediatamente no maravilhoso, pois a dúvida não existiria; 2) a primeira pessoa permite mais facilmente a identificação do leitor com o personagem, sobretudo se este for um “homem médio”. É claro que o teórico enfatiza ser evidente que nada impede o leitor real de manter distância absoluta com relação ao universo do livro. Excelente observação, pois mesmo considerando estar Todorov refletindo sobre um corpus de narrativas já clássicas, há variações do discurso que não foram por ele consideradas: o narrador heterodiegético pode ser substituído no decorrer da narrativa pelo discurso direto ou indireto livre em que os personagens ganham voz e a incerteza seria mantida; o narrador nem sempre é um “homem médio”, ao contrário, considerando as narrativas que ilustram a teoria de Todorov, na maioria das vezes é alguém acima da média, seja em cultura, seja em equilíbrio, seja em posição social.

A terceira propriedade estrutural observada por Todorov relaciona-se ao aspecto sintático da narrativa: a composição, em linha ascendente, levaria a um ponto culminante, traço estrutural apontado e discutido por Penzoldt. Além de citar este teórico, Todorov assinala também ser este traço estrutural derivado da

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“Filosofia da composição”, de Poe. Constata que as gradações podem ser diferentes, logo o ponto culminante – geralmente o evento sobrenatural – pode dar-se antes do final da narrativa. O que Todorov considera importante é o fato de a narrativa fantástica, que marca fortemente o processo da enunciação, enfatizar o tempo da leitura, já por convenção, irreversível, isto é, o fantástico acusaria essa convenção mais claramente. A seu ver, a segunda leitura de uma narrativa fantástica se tornaria uma metaleitura, em que se ressaltam os procedimentos do fantástico, em vez de se experimentar seus encantos.

Após a discussão dos aspectos verbal e sintático, Todorov dedica-se a desenvolver o aspecto semântico. Inicia a discussão apontando não ser a abordagem temática redutora, pois o conceito de estrutura pressupõe a superação da antiga dicotomia da forma e do fundo, para considerar a obra como totalidade e unidade dinâmica. Mas questiona a crítica temática no que se refere à unanimidade de método dos escritos críticos sobre o fantástico que privilegiam a classificação de temas; cita Dorothy Sacarborough, Penzoldt, Caillois e mesmo Vax (sem dúvida remetendo ao primeiro livro do autor e omitindo as reflexões contidas em La séduction de l’étrange). Todorov opõe-se, pois, ao método que visa a classificar os temas independentemente uns dos outros, isolando-os da narrativa.

Propõe-se a agrupar os temas inicialmente de maneira formal e depois interpretar os agrupamentos, sempre tendo em mente a coerência da obra. Chega a dois grupos de temas, sendo o primeiro nomeado de “temas do eu”: o tema da metamorfose e a própria existência de seres sobrenaturais apareceriam relacionados ao tema do pandeterminismo, este significando “[...] que o limite entre o físico e o mental, entre a matéria e o espírito, entre a coisa e a palavra deixa de ser estanque.” (TODOROV, 1975, p.121). A ruptura entre a matéria e o espírito seria o denominador comum entre metamorfose e pandeterminismo; essa ruptura viria ainda ligada à loucura, à experiência da droga. Essas transgressões, em que o mundo físico e o espiritual se interpenetram alterariam também o

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tempo e o espaço, que se apresentam de modo diverso do espaço e do tempo cotidianos. Todorov (1975, p.128) resume os temas do eu do seguinte modo, a partir da problemática do limite entre matéria e espírito: “Este princípio engendra numerosos temas fundamentais: uma causalidade particular, o pandeterminismo; a multiplicação da personalidade; a ruptura do limite entre sujeito e objeto; enfim, a transformação do tempo e do espaço”. Relaciona-os à estruturação da relação entre o homem e o mundo, isto é, ao sistema percepção-consciência, relacionado à visão do mundo, de modo que poderiam ser designados como “temas do olhar”.

O segundo grupo, denominado “temas do tu”, compõem-se de temas que aparecem particularmente ligados à sexualidade e ao desejo sexual em suas formas excessivas e/ou interditas e corresponderiam ao sistema dos instintos inconscientes: incesto, homossexualismo, amor a mais de dois, sadismo, necrofilia.

O ponto de partida desta segunda rede permanece o desejo sexual. A literatura fantástica dedica-se a descrever particularmente suas formas excessivas bem como suas diferentes transformações ou, se quisermos, perversões. Um lugar à parte deve ser dado à crueldade e à violência [...]. Do mesmo modo, as preocupações concernentes à morte, à vida depois da morte, aos cadáveres e ao vampirismo, estão ligadas ao tema do amor. (TODOROV, 1975, p.147).

Os temas do tu mostrariam, então, a relação do homem com seu desejo, logo com seu inconsciente, implicando em uma forte ação sobre o mundo circundante. A partir dessas considerações de Todorov, Jean-Bellemin-Noël desenvolverá suas reflexões que conduzem a uma abordagem psicanalítica da ficção fantástica.

Após ter buscado evidenciar a estrutura da narrativa fantástica, Todorov dedica-se a tentar estabelecer suas funções, a social e a literária, concluindo que elas coincidem, pois ambas se referem a uma transgressão: social, porque aborda temas considerados tabus (acredito que seja preciso ter em mente que, além de se basear em sua própria temática para tecer essas considerações, Todorov examina um corpus essencialmente do século XIX); e literária, pois

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o surgimento do sobrenatural na narrativa rompe o equilíbrio inicial e o equilíbrio final, perfeitamente realistas. A questão da ruptura já fora apontada por Vax de modo mais amplo: ruptura no universo estético, físico e moral.

Apesar de certas imprecisões, esse livro de Todorov, além de ser um texto fundador permanece imprescindível para a compreensão da literatura fantástica, sobretudo em relação à estrutura que propõe para as narrativas dessa modalidade literária. Como se observará, os teóricos e críticos posteriores partem da Introdução à literatura fantástica para propor suas próprias reflexões, mesmo que indiquem os pontos que consideram falhos.

O capítulo intitulado “A narrativa fantástica”, que integra ensaios de Todorov (1970b) sob o título de As estruturas narrativas, apresenta uma síntese de suas principais reflexões sobre o fantástico literário, em que se pode observar com nitidez a importância e a viabilidade da maioria de suas propostas.

Todorov finaliza seu livro que introduz a literatura fantástica, assinalando a vida relativamente breve do fantástico, que “[...] apareceu de uma maneira sistemática por volta do fim do século XVIII, com Cazotte; um século mais tarde, encontram-se nas novelas de Maupassant os últimos exemplos esteticamente satisfatórios do gênero.” (TODOROV, 1975, p.175). Insiste na questão da categoria do real, da hesitação e da ambiguidade, para assinalar a transformação da narrativa fantástica no século XX, “[...] onde a coisa mais surpreendente é a ausência de surpresa diante [de um] acontecimento inaudito [...]. (TODOROV, 1975, p.177). Como o teórico cita Kafka, conclui-se que esteja remetendo ao que Sartre chama de fantástico contemporâneo e que, mais tarde, a crítica especializada denominará realismo mágico.

Bellemin-Noël, por sua vez, no diálogo que estabelece em seus estudos críticos com a Introdução à literatura fantástica de Todorov, considera que a morte do fantástico é, sobretudo, o sinal de uma diluição da problemática geral da escritura depois das revoluções produzidas por Proust, Joyce e o surrealismo.

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Jean Bellemin-Noël: retórica e psicanálise

Um ano depois da publicação do livro de Todorov sobre o fantástico, por conseguinte em 1971, Bellemin-Noël (1971, p.103) publica seu ensaio intitulado “Des formes fantastiques aux thèmes fantastiques”, passando de imediato a dialogar com o texto do teórico búlgaro-francês:

L’originalité essentielle de Tzvetan Todorov dans son Introduction à lalittérature fantastique (collection“Poétique”, Éd. duSeuil, 1970) tient à son projet d’instituer une approche formelle, voire formaliste, d’un genre jusqu’ici étudié à partir de son contenu. De P.-G. Castex à Louis Vax em passant par Marcel Schneider et Roger Gaillois, le fantastique a été défini par l’intrusion de l’inadmissible dans le monde communément admis. Le mécanisme reposait sur la mise en jeu de phénomènes “insolites”, c’est-à-dire à la fois inattendus et inexplicables, impossibles à intégrer dans un univers vécu par les acteurs et le lecteur comme réel (comprenons: organisé de manière à rendre compte des expériences et des perceptions communes à la majorité des êtres humains appartenant à la [à notre] civilisation, lieu de tous les consensus). [...] La première intention de Todorov fut de remplacer les inventaires de sujets par des critères plus spécifiquement littéraires.

Esclarece que, no caso particular de Todorov, o desejo de caracterizar cientificamente os gêneros corresponde a uma preocupação teórica nitidamente afirmada que se inscreve na preocupação mais ampla de uma “poética”, que buscaria ao menos isolar certas constantes, bem como um esquema diferencial.

Ao indicar as características da narrativa fantástica segundo Todorov – a presença no texto de uma hesitação entre duas séries de explicações do fenômeno insólito, instaurando três situações limites -, Bellemin-Noël (1971, p.104) assinala ter Lovecraft fornecido o exemplo de um mecanismo aperfeiçoado: o narrador se interroga sem conseguir escolher entre as interpretações possíveis do fenômeno e a impossibilidade de optar por uma solução torna-se a própria mola da narrativa, como se a posição fantástica exigisse uma dúvida prévia.

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Lovecraft, qui réfléchissait beaucoup sur son art, met dans la bouche du narrateur d’une de ses nouvelles (Celui qui hantait les ténèbres) ces paroles qui eussent pu offrir une épigrapheau livre de Todorov: après avoir exposé rapidement deux explications possibles de la mort d’un jeune écrivain amateur de fantastique, nommé Blake, il déclare: “Nous laissons au lecteur le soin de choisir lui-même entre ces deux opinions. Quant à nous, après avoir étudié le journal intime de Blake avec objectivité, nous allons donner ici un résumé des événements en nous plaçant au point de vue de l’acteur principal.” Le mécanisme peut-il être démonté de façon plus explicite?

Ainda considerando positivamente as reflexões de Todorov, Bellemin-Noël mostra a razão da separação entre as instâncias do protagonista e do narrador: um narrador-testemunha está mais bem localizado do que uma vítima para prestar contas da importância das sensações por ela experimentadas, pois é capaz de decifrar os sinais irrefutáveis; esses sinais constatados são substituídos pelo narrador-testemunha por signos linguísticos, processo de verbalização que torna o acontecimento mais eficaz. De qualquer modo, quando a própria vítima relata o que lhe aconteceu, ela o faz a propósito de uma situação passada que só poderia ser contada em um momento diferido. Além disso, esse procedimento tem por função a credibilidade da aventura: quem fala é um homem de sangue frio em quem se confia instintivamente. Para o escritor, este seria o melhor meio de evitar que o leitor questione a verossimilhança dos fatos alegados, pois nos dois casos valoriza-se o discurso em vez da história, e a literariedade do texto afirma-se e confirma-se.

Passa, então, a apontar os pontos da teoria de Todorov com os quais não concorda; depois de criticar a escolha de Aurélia, de Gérard de Nerval, para ilustrar as questões do imperfeito e da modalização, Bellemin-Noël mostra sua discordância a respeito da classificação que coloca o fantástico (“gênero sempre evanescente”) entre o estranho e o maravilhoso, isto é, na fronteira que separa as narrativas em que o sobrenatural é explicado, daquelas em que é aceito. Enfatiza que estranho e maravilhoso não estão no mesmo plano, pois não existe gênero estranho, o estranho não é uma categoria literária, nem uma categoria estética; isso levaria à

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impressão de que o fantástico se encontraria imobilizado entre o maravilhoso e nada ou não importa o quê (o estranho), ali colocado por conveniência. Ao refinar sua análise, Todorov circunscreve em um diagrama as quatro subdivisões: estranho puro, fantástico-estranho, fantástico-maravilhoso, maravilhoso puro. A respeito dos dois quadros centrais do diagrama, que especificam os aspectos do que comumente se chama de “fantástico”, Todorov os justifica com certo embaraço, indica Bellemin-Noël; no entanto, continua, poder-se-ia aceitar esses dois aspectos e recusar o “fantástico-puro”, considerando que ele forma como uma linha ideal, que não apresenta sentido, nem fundamento, a não ser que se admita a montagem ternária Estranho/Fantástico/Maravilhoso.

Ao indicar ser possível abordar a questão de outro modo sem ser infiel aos procedimentos estruturais, Bellemin-Noël propõe buscar as diferenças estruturais existentes entre uma narrativa fantástica, um conto maravilhoso e um texto de ficção científica. Sugere quatro níveis de análise: 1) O ponto de vista. No maravilhoso encontra-se o que Todorov denomina “a não-representação do narrador”, na qual se presume que os acontecimentos se contam por si mesmos: trata-se do modelo clássico do “Era uma vez...”. No caso do fantástico, opostamente, os narradores são preferencialmente representados. A partir de Todorov, Bellemin-Noël mostra que a “visão de dentro” e a “visão com” nunca são separadas de maneira nítida; quando em uma obra fantástica se encontram de um lado um relator, de outro um ator, os dois não são senão hipóstases de uma única e mesma figura, o narrador protagonista. O esquema de organização é o de uma narrativa desdobrada: há o “je”, a testemunha lúcida, que se interroga na incerteza, e há o “moi”, o herói que vive a aventura com paixão (até a morte ou a loucura, na maioria dos casos); o ponto de vista é eminentemente pessoal. A ficção científica exige, ao contrário, um ponto de vista impessoal, situando-se ainda no registro do que Todorov chama de “representação do narrador”, mas passando do subjetivo ao objetivo; o narrador-testemunha funciona como o redator, necessário e modesto, de um relatório

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científico. Todos os mergulhos no irreal que o maravilhoso autoriza com uma simples varinha mágica transformam-se, na ficção científica, em uma exigência enciclopédica com um mínimo de didatismo: sem isso, não há mais planetas a explorar, viagens no tempo, sociedades utópicas. Nesse sentido, a ficção científica entraria, segundo Bellemin-Noël, no domínio do que Todorov assinala como estranho puro, em que tudo exige uma explicação racional indicada no texto.2) O tipo de narração. Trata-se da maneira como a narrativa se apresenta em seu desenvolvimento. Os contos maravilhosos são estritamente lineares: uma voz em offnarra sem ruptura os acontecimentos, sendo o encadeamento das sequências narrativas, na medida do possível, responsável pela sucessão cronológica. Tanto a neutra homogeneidade da voz narrativa, quanto a temporalização simplificada são, nesse tipo de ficção, condição de êxito. A situação do fantástico é outra: já que há um narrador, a narrativa é de algum modo mediatizada, estabelecendo mesmo um diálogo se levarmos em conta a cisão do sujeito, que justapõe ou mistura os dois discursos. Com frequência o narrador-testemunha cede expressamente a palavra ao herói-narrador, graças a artifícios formais como a confidência oral ou escrita ou a descoberta de documentos pessoais. Quando o próprio herói é narrador durante todo o texto, nota-se que ele cede a palavra por sua vez a testemunhas que têm a missão de informar e de passar uma versão sensata ou objetiva dos eventos insólitos. Há, assim, uma espécie de técnica polifônica na narração fantástica, considerando que constitui uma mensagem a duas vozes. Observa-se ainda que o fio do texto não pode se alinhar simplesmente sobre o fio cronológico dos fatos: os retornos ao passado ou analepses são constantes. A ficção científica nada apresenta de específico; dependendo dos subgêneros que explora, isto é, seja uma epopéia espacial que pede uma intriga tensa ou um texto satírico que apresenta parênteses humorísticos, todas as técnicas são válidas.3) A descrição. Nesse nível, a ficção científica possui uma característica marcante: o estatuto original da descrição. Na medida

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em que esse gênero se propõe a criar, com a ajuda de extrapolações “científicas”, um universo do qual pretende que a realidade seja aceita, seria quase possível dizer que a descrição ali desempenharia um papel preponderante: a intriga deve, antes de tudo, permitir a exposição de um mundo, uma sociedade, um fenômeno cultural, um paradoxo filosófico ou cósmico, em seus aspectos mais concretos, imitando a vida. Esquematizando, Bellemin-Noël sugere que se toda narrativa se define pela passagem de um equilíbrio a outro por meio de uma série de episódios, a ficção científica é, de certo modo, uma anti-narrativa: o estático e o espacial sobrepõem-se ao temporal, o cenário sobrepõe-se à intriga. É máxima a diferença com o maravilhoso, no qual tudo pode permanecer indefinido; nesse tipo de conto só se encontram funções, obstáculos, condições. Observa-se que Bellemin-Noël não discute aqui sobre a narrativa fantástica, mas remete essa discussão ao próximo nível.4) A escritura romanesca realista. Depois de assinalar que o maravilhoso não conhece os “efeitos de real” (remetendo explicitamente a Barthes), ao contrário da ficção científica em que tudo seria, em certo sentido, efeito de real, o crítico dedica-se a refletir sobre a narrativa fantástica. Mostra que no fantástico as questões da descrição e dos meios de representar a realidade não são tão simples. Retoma o assunto dos dois discursos ou das duas tonalidades de discurso: de um lado, o discurso racional da testemunha ou consciência lúcida, que se esforça para corroborar um referencial (local, data, testemunha apresentada como cientista ou policial, homem sensato, capaz de observar); de outro, o discurso do inexplicável, da atividade delirante ou da percepção alucinatória, que busca sua eficácia na coerência estrutural do texto literário (visão imprecisa, ruídos inquietantes, fenômenos parapsicológicos). Não há falta de coerência, mas sim uma deformação ou nenhuma forma precisa. Mas a descrição da “coisa” não pode ser escamoteada, pelo menos parcialmente. Dois traços caracterizam “a coisa” fantástica, dois meios de permitir que seja pressentida, de sugerir o imperceptível, aponta Belemin-Noël. O primeiro traço consistiria em não mostrá-la: a incompetência do olhar, ou

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da visão, de instituir o inexistente torna necessária a intervenção dos outros sentidos: ruídos mal identificados, ritmos surdos, toques suspeitos, correntes de ar, odores desgradáveis ou excitantes. O herói, apavorado ou estimulado não está disposto a experimentar sua percepção do insólito até o final; essa impossibilidade seria um avatar romanesco de uma recusa tanto do intolerável quanto do desejado – e Bellemin-Noël introduz nesse momento a possibilidade de uma abordagem psicanalítica. Outro dado introduzido refere-se justamente ao procedimento que criticou em Todorov, embora houvesse enfatizado a má escolha do texto ficcional ilustrativo: a utilização das formas modalizadoras, ou como prefere o crítico, das comparações unidas às analogias formando uma rede de metáforas que habilmente induzem à sugestão. De fato, conclui, a falsidade referencial da “coisa” consagra-a como objeto verbal; olhando-se com atenção a técnica empregada pelos autores fantásticos para dar realidade ao irreal, pode-se mesmo assinalar uma retórica do indizível.

Essa retórica proporcionaria meios de assinalar a todo custo o que não se deixa formular em uma língua já convencionada. No plano lexicológico, a operação fantástica está sempre criando “puros significantes”; vem daí, aponta Bellemin-Noël, a inspiração para fabricar nomes:

Chez Lovecraft, on rencontre ainsi des puissances mystérieuses (Cthulhu, Azathoth, Nyarlathotep) ou des êtres monstrueux (les shoggoths); mais on trouve également des noms communs devenus de purs signes: les Grands Ancêtres, le Chaos rampant; ou bien encore des signes qui sont fonctionnellement des espèces de non-signes: la Chose, l’Entité (la majuscule fait office d’embrayeur de “désignification”); voire des mots outils employés absolument: cela [...](BELLEMIN-NOËL, 1971, p.112).

O crítico indica mais um procedimento que chama de pseudo-preterição e que aparece conjugado ao da nominação. Indica ser a preterição uma figura clássica bem conhecida: afirma-se que não se quer dizer aquilo que se está dizendo claramente, atraindo a atenção, de um lado, para o que se finge ter decidido calar-se, enquanto, de

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outro lado, subentende-se ser algo que se deve considerar como evidente e não merece ser mencionado. Aponta o emprego análogo dessa figura no fantástico: no lugar de “Não direi que...”, utiliza-se: “Impossível de descrever aquilo que...”. O mecanismo seria o seguinte: inicia-se como uma verdadeira preterição: “Não posso descrever o que vi; parecia...”; depois, percebe-se que efetivamente nada foi descrito, produzindo-se uma passagem para o que está além do descritível. Assim, aquilo que foi ocultado adquire uma espécie de vidência pela demonstração de que é impossível mostrar alguma coisa. Tudo isso leva a algo que poderia ser nomeado de efeito de realismo irrealisado ou de realismo hipotético.

Após novamente assinalar os méritos da teoria de Todorov, Bellemin-Noël enfatiza o fato de o teórico-crítico haver colocado em termos precisos, na última parte de seu livro, a questão da relação entre a singularidade do discurso fantástico e a pressão das instâncias reconhecidas pela psicanálise. Sugere que Todorov tenta ver, como princípio explicativo, certa manifestação dos fantasmas do inconsciente; Bellemin-Noël faz essa sugestão, apontando que essa questão deve ainda ser aprofundada, o que efetivamente fará em seu outro texto “Notes sur le Fantastique (textes de Théophile Gautier)”. No momento, pressente que esses fantasmas (em francês, fantasmes, diferenciando-se dos fantômes sobrenaturais) operam de modo liberador, gratificante ou angustiante, ou dos dois ao mesmo tempo. O fantástico se justificaria e se organizaria graças às relações de identidade, de sublimação ou de compensação que mantém com o fantasmático, encontrando a análise de Freud, quando este considera que o sentimento de Unheimliche equivale a um acesso neurótico inofensivo, tendo algo a ver com um recalque que retorna para fascinar, isto é, apavorar e seduzir. Bellemin-Noël explica que, em suas atividades veladas ou em sua língua figurada, o inconsciente manifesta seu gosto pelas situações em que ele reencontra cenas “esquecidas”, pelos roteiros que lhe aparecem como repetindo as posições relacionais sobre as quais constrói seus sonhos ou suas formações delirantes. Assinala que Todorov iniciou

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uma interpretação desse tipo, partindo de uma reflexão sobre os temas fantásticos.

Bellemin-Noël passa a discorrer sobre os temas propostos por Todorov, temas do eu e temas do tu, apontando tanto a importância de suas reflexões, quanto as imprecisões. A respeito da oposição eu/tu que pretenderia abranger a distinção entre neurose e psicose, considera-a completamente inaceitável e esclarece: a diferença entre neurose e psicose passa pela diferença entre recalque e rejeição; no primeiro caso o real foi simbolizado e “interiorizado” sob forma simbólica; no segundo, o real foi excluído, e é a realidade exterior que mantem todas as ameaças como imprevisíveis. No entanto, conclui, não se pode negar que o fantástico tem algo a ver com o fantasmático; nessa perspectiva, nada proíbe de definir a literatura fantástica como aquela que marca a emergência da questão do inconsciente.

Em seu texto de 1972, “Notes sur le Fantastique (textes de Théophile Gautier)”, Bellemin-Noël (1972) cita Todorov nas primeiras linhas, assinalando ter ele desbravado uma primeira vereda no que se refere às caracterizações formais do fantástico literário. Indica ainda a ideia de Todorov de introduzir a abordagem psicanalista da narrativa fantástica, fecunda porém inacabada, para a seguir mencionar Freud e a necessidade de uma releitura de Das Unheimliche.

Para desenvolver suas reflexões, Bellemin-Noël parte de uma dupla fórmula: o fantástico é uma maneira de narrar, o fantástico é estruturado como o fantasma (fantasme). Primeiramente, busca uma definição etimológica da palavra “fantasmagórico”, considerando-a como o conjunto de procedimentos que caracterizam o gênero fantástico, constituído por narrativas literárias, isto é, como a arte de apresentar publicamente fantasmas (fantômes). A irresolução, da situação ou do leitor, é a base do fantasmagórico: Todorov a denomina “hesitação” e Freud indica a “incerteza intelectual”; de qualquer modo, Bellemin-Noël assinala a presença de uma situação ambígua por meio dos vários procedimentos já apontados pelo autor no texto anterior e discutidos acima. Passa, então, a explicar

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o que compreende por “fantasmático” (fantasmatique), observando que tomou emprestado o termo da psicanálise: indica que essa palavra leva aos fantasmas (referindo-se já ao sobrenatural: fantômes). Pergunta-se: o que são esses fantasmas, esses acontecimentos imaginários, isto é, esses personagens, coisas, ações, situações que parecem imitar seus homólogos da realidade cotidiana ao mesmo tempo em que se deixam pressentir como sendo radicalmente “outros”? E remete a Freud, indicando que, depois de laboriosa reflexão sobre a semântica complicada e confusa da palavra unheimlich e uma investigação a partir de suas leituras das obras de Hoffmann ou de suas experiências pessoais - pois para ele existe um fantástico da vida de todos os dias ao lado do fantástico literário -, Freud conclui que aquilo que foi trazido para a cena para ser exposto à vista, é o que foi recalcado: recusado pelo eu, remetido ao inconsciente ou nele abandonado. A inquietante estranheza é o retorno do recalcado: enquanto regresso (reiteração, repetição) e enquanto recalque (impossível de ser representado ou mesmo apresentado).

“Das Unheimliche”, de 1919, é o texto de Freud que mais leva em consideração a especificidade da literatura; e é a partir do conceito freudiano de (un)heimilich que Bellemin-Noël busca esclarecer as noções de fantasmagórico e fantasmático. Traduzido como “L’inquiétante étrangeté” (1933, 1971) (FREUD, 1933) em francês, e como “O estranho” (FREUD, 1976) e “O inquietante” em português (FREUD, 2010), o texto começa por apresentar e discutir os diferentes sentidos de heimlich. Em uma primeira acepção, significa: pertencente à casa, familiar, domesticado (em oposição à selvagem), capaz de fazer companhia ao homem, alegre, disposto íntimo, amigavelmente confortável, que desperta sensação de repouso e segurança; uma segunda acepção oferece os significados de: escondido, oculto à vista, dissimulado, sonegado aos outros, por trás das costas de alguém, como se houvesse algo a esconder. O composto de heimlich com o negativo ‘un’, isto é, unheimlich, apresenta as significações: misterioso, sobrenatural, que desperta horrível temor; a definição de Schelling (apud FREUD, 2010,

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p.337) elucida a relação entre as duas palavras: “Unh. chama-se a tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas apareceu.” Assim, em seus diferentes matizes, um dos significados da palavra heimlich encontra o significado de seu oposto unheimlich, mostrando sua ambiguidade:

[...] o mais interessante para nós é que a palavra heimlich ostenta, entre suas várias nuances de significado, também uma na qual coincide corm o seu oposto, unheimlich. O que é heimlich vem a ser unheimlich; [...] Somos lembrados de que o termo heimlich não é unívoco, mas pertence a dois grupos de ideias que, não sendo opostos, são alheios um ao outro: o do que é familiar, aconchegado, e do que é escondido, mantido oculto. [...] Portanto, heimlich é uma palavra que desenvolve o seu significado na direção da ambiguidade, até afinal coincidir com o seu oposto. Unheimlich é, de algum modo, uma espécie de heimlich.(FREUD, 2010, p.337-338 e p.340).

Sua análise de O homem da areia, de Hoffmann, busca justamente focalizar os ataques de loucura do protagonista adulto a partir de eventos recalcados na infância; assinala, então, o que chama de temas de “estranheza” que mais se destacam: os olhos (remetendo ao medo de ficar cego, substituto do temor de ser castrado), o inanimado que se anima, o duplo. Este último dá ensejo a que Freud aborde a questão da repetição, responsável também pela inquietante estranheza: o retorno constante da mesma coisa, dos mesmos aspectos, características ou vicissitudes, dos mesmos crimes e, até mesmo, dos mesmos nomes.

Finalmente, esclarece:

Primeiro, se a teoria psicanalítica está correta ao dizer que todo afeto de um impulso emocional, não importando sua espécie, é transformado em angústia pela repressão, tem de haver um grupo, entre os casos angustiantes, em que se pode mostrar que o elemento angustiante é algo reprimido que retorna. Tal espécie de coisa angustiante seria justamente o inquietante [...] Segundo, se tal for realmente a natureza secreta do inquietante, compreendemos que o uso da linguagem faça o heimlich converter-se no seu oposto, o unheimlich, pois esse unheimlich

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não é realmente algo novo ou alheio, mas algo há muito familiar à psique, que apenas mediante o processo da repressão alheou-se dela. O vínculo corn a repressão também nos esclarece agora a definição de Schelling, segundo a qual o inquietante é algo que deveria permanecer oculto, mas apareceu. (FREUD, 2010, p.360).

A partir das considerações sobre o texto de Freud, Bellemin-Noël indica que não pretende incorrer no erro classificatório denunciado por Todorov que reduziria o fenômeno fantástico a uma lista de temas, lista variável e nunca terminada; e enfatiza ser sua definição de fantástico:“estruturado como” o fantasma (fantasme): é uma forma que se busca, não um conteúdo. Assim, só há percepção fantástica no texto se a “fantasticidade” for enfatizada pelo próprio discurso, pois é o discurso, e não o evento, que qualifica a história.

Bellemin-Noël enumera, então, os procedimentos que contribuem para caracterizar uma narrativa como fantástica. Primeiramente aponta a mise en abyme da narrativa, indicando não ser esse procedimento específico da escritura fantasmagórica: nos contos fantásticos (lembro que o subtítulo do artigo remete às narrativas de Gautier), ora há alusão à cultura, às belas-artes, aos escritores universalmente reconhecidos; ora o próprio herói é escritor, pintor ou dramaturgo, ou ainda os dados do problema são sustentados por reflexões e referências livrescas. Tudo se torna mais notável e específico quando se passa a um segundo grau de precisão, que Bellemin-Noël nomeia “efeito de espelho”, também utilizado em produções literárias de modo geral: trata-se de uma narrativa segunda, de dimensões reduzidas, encaixada na primeira narrativa, repetindo emblematicamente o que se passa na aventura principal, já no plano do conteúdo. Um terceiro procedimento de inserção mereceria, segundo o crítico, ser nomeado de “efeito de fantástico propriamente dito”: refere-se à aparição obrigatória do epíteto “fantástico” ou de palavras similares. Um quarto modo de proceder seria a presença de alusões manifestas, ou “efeito de citação”: no caso de Gautier, o mestre citado constantemente é

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Hoffmann. Para ilustrar o quinto procedimento, a “auto-referência explícita”, Bellemin-Noël serve-se da obra de Lovecraft.

Assim, assinala o crítico, a ficção fantástica fabrica outro mundo com outras palavras que não são de nosso mundo, que pertencem ao un-heimlich (estranho, inquietante); mas, por um justo retorno das coisas, esse outro mundo não poderia existir em outro lugar: ele está aqui, oculto e inefável e é tão heimlich (familiar) que não é reconhecido como tal. A leitura do fantástico e a revelação de seus procedimentos mostram a pertinência do que afirmava Freud: o fantástico é o íntimo que vem à tona e que perturba. Nas palavras de Bellemin-Noël, o fantástico finge jogar o jogo da verossimilhança para que se adira à sua fantasticidade, enquanto manipula o falso verossímil para fazer aceitar o que é o mais verídico, o inconcebível e inaudível.

Bessière e a poética do incerto

Irène Bessière, por sua vez, concentra-se na lógica narrativa; embora trabalhe com um corpus bem mais reduzido do que Todorov, alonga-o no tempo, considerando as narrativas do século XX que não fizeram parte das ponderações do autor de Introduction à la littérature fantastique e trazendo sua contribuição à teoria do fantástico no livro Le récit fantastique: la poétique de l’incertain, de 1974; a autora não se dedica propriamente a construir um sistema, mas propõe uma reflexão a partir de três ideias fundamentais e complementares.

Primeiramente, o fantástico é uma questão relativa à representação e à relação entre o real e o irreal: “Le récit fantastique provoque l’incertitude, à l’examen intellectuel, parce qu’il met en oeuvre des données contradictoires assemblées suivant une cohérence et une complémentarité propres.” (BESSIÈRE, 1974, p.10, grifo nosso). Além disso, e opondo-se a uma questão central da teoria de Todorov, Bessière (1974, p.10) afirma que o fantástico não constitui uma categoria ou um gênero literário, mas supõe uma lógica narrativa “[...]à la fois formelle et thématique qui [...] reflète, sous l’apparent jeu de l’invention pure,

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les métamorphoses culturelles de la raison et de l’imaginaire communautaire.” Enfim, insistindo na lógica e na ruptura da causalidade interna da narrativa fantástica, Bessière (1974, p.11) assinala ser o fantástico “[...]commandé de l’intérieur par une dialétique de constitution de la réalité et de la déréalisation propre au projet créateur de l’auteur.”; a narrativa fantástica apresenta, assim, uma razão paradoxal: especifica-se pela justaposição e contradição de vários verossímeis, ou seja, das hesitações e fraturas das convenções comunitárias e instala a desrazão.

A narrativa fantástica teria sido derivada do conto maravilhoso, do qual conserva o elemento sobrenatural e a interrogação sobre o acontecimento, todavia com diferenças notáveis: o maravilhoso não questiona a própria essência da lei que rege o acontecimento, mas o expõe; na narrativa fantástica, todo evento é colocado sob o signo da inadequação e a ambiguidade marca a impossibilidade de qualquer asserção. Segundo Bessière, a narrativa fantástica, parente do conto, apresenta-se como um anti-conto; ao dever-ser do maravilhoso, impõe a indeterminação: seguindo a sugestão de Henry James em A volta do parafuso, a narrativa fantástica é exatamente a primeira volta de um parafuso sem fim.

Assim, no fantástico

[...] la position d’irréalité se voile d’une motivation réaliste. Cet échange impératif distingue le fantastique du merveilleux: dans le conte de fées, le “il était une fois” place les événements narrés hors de toute actualité et prévient toute assimilation réaliste. La fée, l’elfe, le farfadet du conte féerique évoluent dans un monde différent du nôtre, parallèle au nôtre: toute contamination est exclue. A l’opposé, le fantôme, la chose innomable”, le revenant, l’événement anormal, insolite, l’impossible, l’incertain enfin font irruption dans l’univers familier, structuré, ordonné, hiérarchisé, où, jusqu’à la crise fantastique, toute faille, tout “glissement” semblaient impossibles et inadmissibles. (BESSIÈRE, 1974, p.32).

A pesquisadora deixa claro que o projeto fantástico, constituído pelo conhecido e pelo desconhecido, pelo real e pela irrealidade é, por natureza, antinômico: deve aliar sua irrealidade primeira a um

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realismo segundo, reiterando, assim, o que apontaram os teóricos precedentes.

O evento narrado seria, então, privado de qualquer possibilidade interna; ao contrário, apresentaria duas probabilidades externas: uma racional e empírica (lei física, sonho, delírio, ilusão visual) que corresponderia à motivação realista; e outra racional e meta-empírica (mitologia, teologia dos milagres e dos prodígios, ocultismo, etc.) que traduziria a irrealidade no plano sobrenatural, extra-natural. Ao afirmar que a narrativa fantástica é fundamentada unicamente sobre probabilidades externas, Bessière explicitamente considera falsa a hipótese estruturalista de Todorov de que a narrativa fantástica obedece a um triplo princípio de composição: verbal, sintático e semântico.

Na verdade, no início de seu livro, Bessière aponta a dificuldade de tratar o fantástico, sobretudo no que diz respeito aos pressupostos metodológicos e conceituais; e desde esse momento começa a dialogar com as teorias precedentes. A referência ao texto de Bellemin-Noël (1972), “Notes sur le Fantastique (textes de Théophile Gautier)”, é o primeiro diálogo que estabelece, criticando a prudência excessiva do teórico quando este aponta ser prematura qualquer síntese sobre o fantástico naquele momento em que as pesquisas ainda estavam sendo desenvolvidas, bem como o fato de sua proposição teórica separar o fundo e a forma, reduzindo a organização da narrativa a um traço não específico, a hesitação (que, como se viu é tomada da definição de Todorov).

Utiliza-se dos termos “entreprise de séduction”, explicitando ser uma fórmula de Louis Vax, para assegurar que a questão da recepção da narrativa fantástica não se coloca em termos de crenças, verdadeiras ou simuladas, partilhadas entre o autor e seu leitor (aproximando-se aqui da ideia de Caillois e distanciando-se do pensamento de Nodier e do próprio Vax), mas em termos de sensibilidade, isto é, da capacidade de instaurar o absolutamente novo, de inventar.

Da proposta de Todorov de sistematização da narrativa fantástica, Bessière (1974, p.56-57, grifo nosso) critica outros pontos, particularmente no que se refere à questão da hesitação:

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Il échappe à Todorov que le surnaturel introduit dans le récit fantastique un second ordre possible, mais aussi inadéquat que le naturel. Le fantastique ne résulte pas de l’hésitation entre deux ordres, mais de leur contradiction et de leur récusation mutuelle et implicite.

Sem dúvida, como já foi assinalado desde as considerações de Castex e a proposta de Vax, tanto o irreal quanto o real diegéticos são indispensáveis à composição da narrativa fantástica, tanto quanto a contradição entre essas duas ordens, que devem se mostrar incompatíveis. Esses elementos, todavia, são também próprios da literatura gótica; esta, porém, elimina a incerteza, uma vez que o sobrenatural no romance gótico é explícito. A incerteza e a ambiguidade, características maiores do fantástico literário – apontadas, aliás, por Bessière -, advêm justamente do que Todorov denomina “hesitação” e que a pesquisadora chama de “interrogação” ou “espanto”:

Point d’étrange sans interrogation ni étonnement. Qu’il reste insoluble alors même que la raison l’a circonscrit, et voici le fantastique où la raison, à force de vouloir défaire l’irrationnel, trouve la permanence de la déraison et la rupture irréparable des chaînes de causalité.(BESSIÈRE, 1974, p.38).

Efetivamente, nesse ponto, Irène Bessière segue no mesmo sentido que Todorov, ampliando a discussão. “A contradição e a recusa mútua e implícita” que aponta em sua definição não me parece isenta de hesitação, uma vez que a contradição faz emergir a possibilidade de hesitação, como comprova a citação acima e como já assinalei.

Retomo a noção de lógica narrativa, que a pesquisadora enfatiza, ao mesmo tempo em que considera os signos culturais; para Bessière (1974), as antinomias razão e desrazão, real e irreal, produzem a formalização narrativa, criam a ambiguidade e reformam os signos culturais que a narrativa fantástica recolhe: o impossível é, de fato, o lugar de uma polissemia - aquela mesma dos quadros sócio-cognitivos - e da inscrição de um sentido outro, que não pode ser dito, mas que nasce do processo de relativização suscitado pelo jogo das ambivalências. Por ser a narrativa dos contrários, o fantástico

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é a do limite praticamente apto a evocar os traços extremos do real; a partir das “formas simples” de Jolles, que estariam na origem de formas artísticas, Bessière (1974) considera o fantástico como uma forma mista do caso e da advinha, hibridismo que remete à oralidade tanto do ato de contar casos (acontecimentos tidos como reais), quanto ao modo cifrado ou encoberto da pergunta que caracteriza a advinha (mistério), o que pressuporia a ambiguidade.

Como caso, o acontecimento fantástico imporia uma decisão, mas não traz em si o meio de decidir, porque permanece inqualificável. Essa impossibilidade de decisão resulta da presença da demonstração de todas as soluções possíveis, implicando a livre escolha da solução. A narrativa fantástica exclui a forma da decisão porque impõe à problemática do caso a questão da adivinhação. Mescla do caso e da adivinha, a narrativa fantástica é ambivalente, contraditória, ambígua e essencialmente paradoxal.

Pour reprendre les termes de Sartre, le récit merveilleux est non-thétique, c’est-à-dire qu’il ne pose pas la réalité de ce qu’il représente. Le « il était une fois » nous coupe de toute actualité, et nous introduit dans un univers autonome et irréel, explicitement donné pour tel. A l’inverse le récit fantastique est thétique; il pose la réalité de ce qu’il représente: condition même de la narration qui fonde le jeu du rien et du trop, du négatif et du positif. [...] Le récit fantastique ne semble pas alors « la ligne de partage entre le merveilleux et l’étrange », comme le suggère encore Todorov, mais plutôt, par la fausseté voilée, le lieu de la convergence de la narration thétique (roman des realia) et de la narration non-thétique (merveilleux, conte de fées). (BESSIÈRE, 1974, p.36-37, grifo nosso).

No entanto, a narrativa fantástica não se limita em se configurar como “o lugar de convergência entre a narração tética e a não-tética”, mas – tal qual afirmou a própria teórica – como a oposição entre as duas.

Depois de uma espécie de história literária em que pertinentemente assinala o nascimento do que denomina literatura “sobrenatural” a partir do romance gótico, noir ou frenético, com o qual, de fato, o fantástico estabelece laços de parentesco,

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Bessière (1974, p.144, grifo nosso) passa a tratar da renovação do fantástico: “Le fantastique renouvelle ses éléments objectifs au gré des découvertes scientiques, et reconstitue à partir du discours de l’objectivité, la convergence du thétique et du non-thétique.” Compreende-se, então, que a pesquisadora não mais aponta a questão da contradição, mas enfatiza a convergência: estende o fantástico ao que Sartre denominou “fantástico contemporâneo”, talvez ao que a literatura de língua hispânica nomeia “neo-fantástico” e a crítica especialista, sobretudo a de língua inglesa, trata como “realismo mágico”.

Em seu ensaio de 1942, intitulado “‘Aminabad’, ou do fantástico considerado como uma linguagem”, Sartre (1997, p.108) analisa obras de Maurice Blanchot e de Kafka, que lhe permitiriam “traçar o ‘último estado’ da literatura fantástica.” São livros que mostram as buscas inúteis do protagonista, porque não levam a nada, exprimindo ideias banais sobre a vida humana. Referindo-se ao fantástico tradicional (ou fantástico no sentido estrito do termo, aquele que nasceu e se sistematizou a partir do século XIX europeu), Sartre (1997, p.112) assinala que o fantástico teve uma missão bem definida: manifestava a faculdade de transcender o ser humano. Indicando ter Blanchot começado a escrever em uma época de desilusão que levou ao retorno ao humano, aponta que essa tendência influenciou o fantástico, tendo Kafka como precursor: “daí o plano dum ‘retorno ao humano’ do fantástico.”, que busca transcrever a condição humana e para o qual existe apenas um objeto fantástico – o homem, ser que é um microcosmo, o mundo, a natureza inteira. O fantástico “[...] despojou-se, parece, de todos os artifícios: nada nas mãos, nada nos bolsos; reconhecemos ser nossa a pegada das margens.” (SARTRE, 1997, p.113).

Sartre parte, então, da comparação entre os textos Aminabad e O castelo, de Blanchot e Kafka respectivamente, para buscar detectar outras características que comporiam o “fantástico contemporâneo”: a rebelião dos meios contra os fins, pois nenhum meio é encontrado para realizar esse fim; o absurdo configurado pela ausência total de fim; a atmosfera asfixiante; a configuração de um mundo às avessas, onde as mensagens não têm conteúdo,

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nem mensageiro, tampouco remetente; a ausência de espanto diante da sucessão dos acontecimentos desse mundo invertido que escandalizam em consequência de ser algo censurável, mas completamente normal; um universo em que a lei não apresenta finalidade, nem significado, e da qual ninguém pode fugir; um universo simultaneamente fantástico e rigorosamente verdadeiro. Esse universo fantástico teria o aspecto de uma burocracia:

Para mergulhar os seus heróis no seio de uma actividade febril, fatigante e ininteligível, Blanchot e Kafka têm de os cercar de homens-utensílios. Remetido do utensílio ao homem, como do meio ao fim, o leitor descobre que o homem, por sua vez, não é mais do que um meio. Daí esses funcionários, esses soldados, esses juízes que povoam os livros de Kafka, e esses criados, chamados também de “empregados”, que povoam Aminabad. (SARTRE, 1997, p.117).

Esse “retorno ao humano” que centraliza as reflexões de Sartre sobre o “fantástico contemporâneo” determinaria o termo escolhido por Bessière de “antropomorfismo”, embora a discussão da pesquisadora não focalize o que Chiampi (1980) chama de “sobrenaturalização do real” – termo que poderia ser aplicado tanto a Aminabad de Blanchot, quanto a O processo e O castelo de Kafka; Bessière detém-se grosso modo na “naturalização do irreal” que caracterizam o corpus por ela selecionado, composto por narrativas de Borges e Cortázar: “Cet anthropocentrisme peut prendre pour objet la nature brute (thème de la métamorphose), l’organisation du réel suivant les cadres de l’entendement (jeu sur l’espace et le temps suivant le motif du rêve ou du double).” (BESSIÈRE, 1974, p.147).

Assim, para Bessière, a renovação da narrativa fantástica depende completamente do emprego de temas oriundos do antropocentrismo, o qual marcaria um progresso em relação à liberdade da imaginação; o antropocentrismo permite ainda, segundo Bessière, que o jogo da razão e da desrazão, a convergência do tético e do não-tético sejam assimilados pela identificação falaciosa entre o mundo e o homem, entre alteridade e identidade, objeto e sujeito, ao exame de uma apreensão do real que rompe a relação equilibrada do

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indivíduo com o cotidiano: “Le récit fantastique rétablit ainsi la logique surnaturelle sans user explicitement de croyances caduques: il organise toujours son argument suivant deux probabilités externes exclusives et inadéquates.” (BESSIÈRE, 1974, p.147). Compreende-se, então, relativamente ao que a pesquisadora denomina como renovação do fantástico, que embora haja convergência entre a narrativa tética e a não-tética, há ruptura; chega-se, assim, ao porquê de Bessière ter se restringido às obras contemporâneas que naturalizam o irreal e se afastado do corpus escolhido por Sartre, em que o sobrenatural não se manifesta. E é preciso examinar atentamente se há mesmo ruptura “da relação equilibrada do indivíduo com o cotidiano” (BESSIÈRE, 1974), ou se se trata da concepção surrealista que propõe considerar como real um universo mais amplo, do qual faria parte o conteúdo do sonho, dos desejos, da imaginação e das crenças comunitárias. Ou ainda se Bessière se restringe aos textos que se caracterizariam como neofantásticos, deliberadamente ambíguos, mas sem que interrogações e espantos (hesitação) marquem o desenvolvimento do enredo.

Quando aborda as narrativas selecionadas de Cortázar aponta a redução da narrativa fantástica a seus traços funcionais e reafirma a rejeição dos elementos alógenos da crença fixa ou caduca. Na narrativa intitulada “Axolotl” (CORTÁZAR, 1974) do escritor argentino, chama a atenção para o antropomorfismo e para o tema da metamorfose: a identificação do humano com o não humano, isto é, do protagonista com o anfíbio, remeteria à convergência do tético com o não-tético, uma vez que Cortázar não reduz o acontecimento insólito à alucinação; nas palavras de Bessière, o sobrenatural ortodoxo é recusado ou ignorado. Em outras palavras, o sobrenatural é naturalizado. Assinalo que essa narrativa de Cortázar não parece apresentar incerteza alguma em relação à metamorfose do protagonista em axolote e deixa clara a interpenetração entre os dois elementos.

A interpenetração de dois universos é o elemento principal da narrativa citada por Bessière, “Nuit face au ciel” (CORTÁZAR,1956), cujo título original é “La noche boca arriba”, traduzido em português

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como “A noite de barriga para cima”. A pesquisadora assinala a duplicação do “eu” e a dissolução espaço-temporal, designando uma fratura do real que mantém a coerência dos dois universos narrativos justapostos – o do hospital moderno e o da América pré-hispânica -, o que assegura a inversão final que faz do passado o presente, permutando tético e não-tético. Em suma, o que se julgava ser um pesadelo recorrente do protagonista acidentado no leito de um hospital, revela-se como a realidade, e aquilo que se supunha ser realidade mostra-se como um sonho apaziguador: este é, de fato, o único equívoco. Há realmente a convergência entre real e irreal (tético e não-tético), mas não ruptura como no fantástico stricto sensu; ao contrário, há a nítida interpenetração de dois universos, já que o texto não apresenta “uma relação equilibrada do indivíduo com o cotidiano” (BESSIÈRE, 1974, p.147), pois não se sabe qual é o cotidiano.

Em Borges, Bessière mostra a composição lúdica, a reorganização infinita dos elementos imaginários. Na narrativa intitulada “O Sul” (BORGES, 1972b), a pesquisadora observa que tudo repousa na cultura do equívoco, isto é, na continuidade causal das duas partes simétricas que compõem a ficção. Como na narrativa acima de Cortázar, apenas no último parágrafo tem-se a sugestão de que o protagonista morrera no hospital, no primeiro segmento do texto, e que a morte a céu aberto, na planície, é a morte que teria escolhido ou sonhado. Como se vê, sonho e realidade unindo-se em uma realidade mais ampla; ou ambiguidade plenamente deliberada, sem indicação de hesitação.

Em relação à narrativa “As ruínas circulares”, (BORGES, 1972a) Bessière aponta a retomada dos temas fantásticos tradicionais (jogo da realidade e do sonho); na verdade, além da interpenetração entre sonho e realidade, a narrativa retoma “as crenças caducas” que a pesquisadora banira desse fantástico renovado: zoroastrismo, judaísmo, alquimia, gnosticismo, magia são elementos que perpassam todo o texto de Borges, naturalizando o irreal, isto é, as crenças ou o que Bessière denomina “probabilidade externa racional e meta-empírica”.

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A literatura fantástica: caminhos teóricos

Atualmente tem-se uma perspectiva mais ampla sobre o assunto, embora este ainda se apresente como um vasto e fecundo campo a ser discutido e desvendado: se há uma preocupação explicitada pelos críticos que se dedicam ao fantástico em definir a ficção fantástica em relação a outras modalidades literárias (como os contos de fadas, a fantasia, a ficção científica, a narrativa policial), seus limites no que se refere ao gótico (considerando o corpus utilizado por alguns críticos), ao realismo mágico (que Sartre nomeia fantástico contemporâneo, Chiampi e Rodrigues denominam realismo maravilhoso) e ao neofantástico (termo que, a patir de Alazraki, alguns críticos da literatura hispânica optam por utilizar para designar o fantástico atual) permanecem indistintos. A proximidade entre essas modalidades é clara, assim como as diferenças: a ambiguidade, a incerteza, oriundas da hesitação, características maiores do fantástico tradicional, não se manifesta, a meu ver, nem no gótico, nem no realismo mágico. Por outro lado, como se verá, as narrativas do tipo que Bessière utilizou para ilustração e discussão sobre a renovação do fantástico, isto é, aquelas que apresentam convergência do tético e do não-tético, mas também mostram ruptura, são apontadas por parte da crítica como condizentes com o neofantástico, narrativas que não mostram explicações para os eventos insólitos ou sobrenaturais apresentados: a ambiguidade permaneceria, sem que nenhuma hesitação tenha sido determinada.

Por outro lado, as reflexões de Bessière sobre o fantástico tradicional são, sem dúvida, bastante pertinentes para a continuação da discussão teórica sobre essa modalidade literária: suas considerações sobre a lógica da narrativa e a ruptura da causalidade interna; a insistência na presença de dados contraditórios reunidos, seguindo uma coerência e complementaridade próprias; e, ainda, quando mostra ser próprio da narrativa fantástica atribuir a mesma inconsistência ao real e ao sobrenatural.

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CAPÍTULO III

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A EVOLUÇÃO DA TEORIA

Jacques Finné e a noção de explicação

Em seu livro La littérature fantastique: essai sur l’organisation surnaturelle, publicado em 1980, Finné indica, inicialmente, haver duas tendências que se defrontam no que concerne ao nascimento do fantástico. Para a primeira, que inclui Louis Vax e Marcel Schneider, o fantástico pertenceria a todos os tempos e lugares. Julgo que os autores consideraram, nessa tendência, os elementos e eventos sobrenaturais e não propriamente a literatura fantástica desenvolvida a partir do romantismo europeu, isto é, tomaram a palavra “fantástico” em sentido amplo – algo que contribui, sem dúvida, para a falta de distinção, até os dias de hoje, em relação a outras modalidades literárias em que o irreal se manifesta. Em A arte e a literatura fantásticas (VAX, 1972, p.105), primeiro livro de Vax sobre o assunto, o autor assinala elementos sobrenaturais na Bíblia, em Homero, Virgílio, Dante, Apuleio e em toda a Idade Média, para concluir que “a literatura fantástica só no século XVIII tomou o seu verdadeiro surto.”; Schneider, por sua vez, cujo livro se inicia com o maravilhoso do século XII, também acaba por apontar o paralelismo entre fantástico e romantismo. Paralelismo defendido

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pela segunda tendência que conta entre os teóricos Roger Caillois, Pierre-Georges Castex, Tzvetan Todorov, por exemplo. A partir dessas considerações, Finné indica as zonas em que o fantástico mais se desenvolveu: as zonas tocadas fortemente pelo romantismo teriam visto nascer e desenvolver-se uma literatura fantástica das mais notáveis – a Alemanha e os países anglo-saxões seriam as terrae sacrae do fantástico; aquelas com um romantismo moderado ou importado teriam apresentado um desenvolvimento mais comedido do fantástico – seria o caso da França; os locais em que o romantismo apenas se enraizou, mostraria um fantástico embrionário – como a Espanha e a Itália.

A seguir, retoma brevemente as teorias anteriores, focalizando não apenas os estudos de Caillois, Vax, Todorov e Bessière, mas também trabalhos mais antigos como o de Peter Penzoldt, The supernatural in fiction, de 1952, e o de Hubert Matthey, Essai sur le merveilleux dans la littérature française depuis 1800, de 1915. Na verdade, inicia suas considerações detendo-se na definição de Caillois, da qual enfatiza a grande oposição entre contos de fadas e narrativa fantástica advinda do fato de que, no primeiro, leitor e autor unem-se por um pacto e, na segunda, o autor deve impor seu fantástico ao leitor.

Sobre a obra de Matthey, após ressaltar a grande contribuição do autor para a reflexão teórica a respeito do sobrenatural em literatura, Finné (1980) salienta alguns elementos ali discutidos, entre os quais as ideias de que uma narrativa fantástica deve apresentar uma coerência interna, aspecto enfatizado por Bessière, e de que é desejável instalar, na narrativa, um personagem digno de fé, característica assinalada por Todorov quando aponta a estrutura do discurso fantástico.

Em relação a Penzoldt, Finné (1980) sublinha o interesse reduzido de seu texto para a narrativa fantástica – que o teórico alemão chama de ghost story – pelo fato de ter uma finalidade essencialmente psicanalítica, uma vez que busca saber por que os autores escrevem narrativas fantásticas. Finné assinala, porém, que a despeito do objetivo limitado da obra de Penzoldt, este procura

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estabelecer uma estrutura, embora bastante restrita, das narrativas fantásticas, que seriam organizadas tendo em vista um clímax. Finné aponta o fato de Todorov (1970a) ter estabelecido o aspecto sintático da estrutura da narrativa fantástica a partir da ideia de clímax ou ponto culminante de Penzoldt, aliás citado pelo teórico búlgaro-francês na exposição de suas concepções.

Aponta, em seguida, obras que tratam do medo como consequência do fantástico, entres elas a de Penzolt, Vax e Lovecraft; incluo Caillois que, como se viu, afirma ser o fantástico, antes de tudo, um jogo com o medo. A esse respeito, Finné pensa ser arriscado definir um “gênero literário” baseando-se na reação do leitor. Mesmo porque muitos contos de fadas, sobretudo em sua origem, apresentam elementos causadores de medo e nem sempre têm um final feliz. Enfim, alguns contos fantásticos não aterrorizam. Em relação a esta última consideração, lembro que Vax (1965) considera duas extremidades no que se refere ao sobrenatural ou insólito: o lado místico, quando a narrativa apresenta uma moral otimista, enquanto a moral pessimista levaria a sentimentos negativos.

Finné busca indicar o valor sociológico do fantástico, e o justifica, considerando a perspectiva do leitor, pela sedução do estranho, pela fascinação que exerce, como já apontara Vax. Detém-se, porém, no ponto de vista do escritor, descartando a necessidade de crença e considerando que o autor de textos fantásticos se dedica a uma moda, a um jogo: não especifica ser um jogo com o medo, como propusera Caillois. Não deixa de deter-se, porém, na reflexão de Vax sobre as narrativas fantásticas oriundas do folclore, que são tidas como verídicas por parte dos ouvintes; assim, aponta Finné (1980), é possível acreditar que um conto fantástico proveniente de um tema folclórico seria aceito, por certos leitores, como uma narrativa realista. Nesse sentido, parece contradizer sua ideia - ao diferenciar a narrativa fantástica do conto de fadas - de que o autor deve impor o fantástico ao leitor.

Finné cita os principais teóricos do fantástico, mas Todorov tem, na verdade, um lugar especial em seu livro, uma vez que

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encontramos em La littérature fantastique: essai sur l’organisation surnaturelle, as considerações de seu autor não só sobre os pontos positivos apresentados no livro do teórico búlgaro-francês, como também das questões que considera mal resolvidas; sobre estas últimas, enumera: as contradições internas; o excesso de resumos de textos ficcionais; erros de detalhes relativos aos comentários sobre o corpus; a utilização dos contos das Mil e uma noites para discutir o fantástico; a utilização de Le diable amoureux e de Le manuscrit trouvé à Saragosse para fundamentar sua teoria, visto que a narrativa de Cazotte é considerada alegórica e a de Potocki é inacabada, entre outras falhas relativas à história literária; e ainda as causas apontadas por Todorov que justificam a existência do fantástico.

Entretanto, para Finné, Todorov se revela o mais brilhante entre os teóricos, um dos raros autores a dedicar-se sistematicamente a levantar um catálogo de imagens para tentar descobrir um mecanismo da narrativa fantástica, isto é, uma estrutura que a caracterize. Enumera as seguintes observações que considera pertinentes em Todorov: a importância do leitor, implícito e real; a representação do leitor na narrativa fantástica; a indicação de procedimentos estilísticos que anunciam o fantástico; a crítica dos teóricos anteriores; o paralelismo entre temas fantásticos e elementos psiquiátricos; a existência de outro fantástico em que o elemento sobrenatural aparece no início da narrativa e não como o ápice de uma gradação.

Jacques Finné insiste no que Todorov, ao centrar sua definição de fantástico na hesitação, deixou subentendido: em último caso, um conto fantástico seria um conto em que a hesitação se manteria no final da intriga. E Finné (1980) sintetiza: Todorov, intuitivamente, distinguiria conto fantástico e conto contendo fantástico. O crítico belga assinala, ainda, que muitas vezes suas próprias conclusões encontrarão as de Todorov.

Passa, então, a desenvolver sua teoria retomando as reflexões contidas em Introduction à la littérature fantastique, sobretudo naquilo que diz respeito à explicação que advém depois do clímax. Como

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Todorov, Finné (1980, p.35) pretende “[...] découvrir un mécanisme qui unisse tous les récits fantastiques et qui forme la caractéristique du genre.” Desse modo, Finné reafirma, depois de Todorov, que uma narrativa fantástica obriga o leitor a uma leitura cronológica. Acrescenta, então, que a organização de uma narrativa fantástica depende de um elemento comum a todas as narrativas fantásticas: a presença dos fatos de mistério.

Tel est le grand point commun de tous les récits – et non l’effet de terreur ou, même, le thème fantastique lui-même. Tout lecteur, lisant un récit fantastique, en vient, un moment donné, à sentir une crispation de son rationalisme, une insulte à son bon sens, un bafouage de sa logique. A ce moment, une explication est nécessaire – n’importe laquelle, du moment qu’elle intervienne. (FINNÉ, 1980, p.35-36).

Assim, a teoria de Finné (1980, p.36, grifo nosso) será baseada na ideia de que “tout récit fantastique est donc subordonné à une explication.” Neste ponto, Finné segue, de certo modo, as observações sugeridas por Nodier, apontadas por Castex, Vax, Caillois, Bellemin-Noël e amplamente discutidas por Todorov, quando este subdivide o fantástico literário em fantástico-puro (em que a ambiguidade permanece), fantástico-maravilhoso (quando o sobrenatural é comprovado) e fantástico-estranho (que finaliza com uma justificativa racional para os acontecimentos sobrenaturais). Finné (1980) discorda das considerações de Todorov no que se refere à permanência imprescindível da ambiguidade e baseia suas reflexões teóricas nas ideias de souffle fantastique, vecteur-tension/vecteur-distension e notion d’explication. Em suma, para Finné, a narrativa se subdivide em dois vetores: um vetor de tensão, que se centra nos mistérios e tem por efeito contrair o leitor; um vetor de distensão, que aniquila a tensão. O ponto de junção entre os dois vetores é marcado pela explicação. A explicação, por sua vez, apresenta algumas variações; segundo Finné (1980) pode aparecer no início ou no final da narrativa, pode levar a uma solução racional ou irracional e ainda possibilitar a escolha do leitor entre a explicação realista e a sobrenatural – como se vê algo bem próximo à teoria todoroviana, até o momento em que Finné introduz a noção de sopro fantástico.

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Assim, partindo do princípio de que todas as narrativas fantásticas seriam compostas de uma soma de fatos de mistérios culminando em uma explicação, Finné (1980, p.44) aponta ser fundamental estabelecer uma distinção entre explicação narrativa e sopro fantástico:

Le souffle fantastique est lié à la nature des faits de mystère. Qu’un récit parvienne, au cours de son vecteur-tension, à faire douter du réalisme, et l’on peut parler d’un souffle fantastique. Celui-ci n’est donc que la tendance de la part du lecteur (souvent représenté par un protagoniste), à ne plus voir son univers tel qu’il est, c’est-à-dire régi par des lois rationnelles. Le souffle est une hésitation devant la manière de dissiper un mystère, une lutte entre la tentation du surnaturel et la volonté du quotidien – il ramène donc, peu ou prou, à la définition émise par Todorov.

Embora continue remetendo a Todorov, Finné (1980, p.45) conclui que a existência do sopro fantástico permite encerrar a longa discussão que tende a opor fantástico e falso fantástico:

Plus nombreux seront donc les contes d’où émane un souffle fantastique que ceux qui appartiennent résolument au genre. C’est la nature de l’explication elle-même qui permet, de manière définitive, de ranger un récit dans le fantastique ou de l’en exclure. Néanmoins, avouerais-je qu’exiler à jamais du fantastique un récit de souffle surnaturel me semble bien sévère.

Eu diria severo demais, pois – e como apontei a respeito de “A queda da casa de Usher”, de Poe – desde que a narrativa manifeste uma coerência interna ao apresentar os elementos que compõem a narrativa fantástica determinando a ambiguidade em relação aos eventos insólitos ou sobrenaturais, que instaure a incerteza no decorrer do texto, que apresente índices criadores de uma atmosfera sugestiva do sobrenatural ou insólito, o texto deveria ser visto como fantástico.

Continuando suas considerações a respeito do sopro fantástico, Finné indica que o final do sopro é fácil de determinar, pois ele termina com a explicação; por outro lado, seu nascimento é mais complexo, e as causas de sua intromissão na narrativa podem estar relacionadas aos fatos, à linguística ou à estilística.

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Ao assinalar os fatos que estariam na origem do sopro fantástico, Finné aponta, de início, o clima fantástico da narrativa, a partir de aspectos característicos como a noite, o cemitério, a tempestade, o trovão, o castelo, a porta carcomida e oscilante, o piso rangente, elementos que evocam o sobrenatural. Seria também o caso dos personagens estereotipados, como a velha beata, o curandeiro, o antiquário; ou certas cores, como o negro e o vermelho. O crítico sublinha, assim, a relação de certas realidades exteriores com o sopro fantástico ou, mais exatamente, a maneira como essas realidades engendram o sopro fantástico na mente do leitor.

Se esse primeiro procedimento viria ligado ao significado, pois remete a uma representação do exterior, Finné aponta que o significante pode também conduzir ao surgimento do sopro fantástico. Cita Lovecraft para ilustrar esse método que, na verdade, é utilizado comumente na escritura do fantástico; palavras como horrível, monstruoso, putrefato, fantástico já introduziriam vítima e leitor no universo fantástico; Bellemin-Noël já apontara esse procedimento linguístico ilustrando-o também com textos de Lovecraft. Finné estende sua ilustração a Poe, e aproveita para assinalar a questão do estilo; tomando “A queda da casa de Usher” como modelo, indica, nesse texto, palavras como “melancólico”, para chegar a frases como “nuvens pesavam densas e baixas no céu” ou “os muros que sentiam frio”, destacando as palavras “peso” e “frio”.

Dedica-se, a seguir, a precisar a noção de explicação, explicitando que, para haver sopro fantástico, ela deve vir no final; teríamos, então, a explicação racional, a sobrenatural e a ambígua.

Em relação à explicação racional, Finné inicia sua reflexão comparando a narrativa fantástica com explicação racional ou narrativa de sobrenatural reduzido com o romance policial de enigma: a oposição é marcada pela existência, na primeira, de um cenário fantástico que acaba por aniquilar a explicação racional, enquanto o romance policial insiste na solução humana do mistério, mesmo que este seja inexplicável à primeira vista à lógica cotidiana. A narrativa fantástica insiste na realidade cotidiana para melhor

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impor o irracional; o romance de mistério permanece como um puro exercício de lógica racional, não desenvolve nenhum sopro fantástico. Insistindo na coesão interna que conduz à probabilidade da solução, Finné aponta os tipos de explicação racional: a brincadeira de mau gosto, o sonho, a alucinação (involuntária ou voluntária), a loucura, a coincidência.

Quanto à explicação sobrenatural, Finné aponta que por meio de elementos diversos (fatos, significantes, significados) a narrativa desenvolve um sopro fantástico, um vetor-tensão que, por razões de coerência interna, deve culminar em uma explicação sobrenatural.

Finné aponta ainda a dupla explicação, ao considerar o leitor – e acredito que se refira à escolha do leitor relacionada a seus dados culturais, isto é, às suas crenças, como apontara em relação às narrativas provenientes do folclore; assim, a narrativa com dupla explicação manteria a possibilidade de escolha entre duas ou mais explicações no final do texto – podendo ser explicações implícitas ou explícitas, voluntárias ou involuntárias. Embora considere raras as narrativas com dupla explicação, o teórico cita autores que deixam em seus textos uma espécie de abertura que permite duas explicações: Théophile Gautier, Prosper Mérimée e Charles Nodier. A propósito da narrativa de Henry James, A volta do parafuso, embora discordando de Todorov quando este indica a possibilidade de a mansão ser assombrada ou a de a governanta apresentar uma neurose, Finné também aponta duas soluções: uma monstruosa metempsicose (considerando que os fantasmas de fato reencarnaram no espírito das crianças) ou distúrbios da governanta provenientes de recalque.

Em suma, Finné busca mostrar, por um lado, que não existe explicação fantástica absoluta: proposta a explicação, o próprio leitor escolheria se ela entra ou não em seu sistema de referências; assim, caberia ao leitor classificar uma narrativa na categoria realista ou fantástica. Compreendo que, como Finné indicou ser o fantástico uma moda ou um jogo, o leitor participaria ativamente desse jogo; pensaria Finné em um leitor implícito? Pelo desenvolvimento de suas ideias, uma vez que considera as diferentes crenças e

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culturas, estaria apontando para o leitor real? Para as crenças coletivas ou individuais? Os leitores que professam o espiritismo considerariam realista, por exemplo, o conto intitulado O encontro, da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles (1974), que desenvolve amplamente o tema da reencarnação, remetendo, além disso, por meio da intertextualidade implícita, ao livro Laços Eternos, tido como psicografado pela escritora Zibia Gaspareto? Lembro que, por ocasião da divulgação da doutrina de Allan Kardec, as ideias dali advindas foram utilizadas em narrativas fantásticas, entrando na classificação da história literária como uma renovação do fantástico, lado a lado com o ocultismo de Éliphas Lévi. Os leitores não cederiam ao efeito dos procedimentos literários que remetem ao fantástico: a atmosfera, a hesitação, a ambiguidade, o espaço, o tempo, e, ainda, o diálogo que a autora estabelece com textos tradicionalmente fantásticos, como os de Poe; enfim, tudo o que entra na composição da narrativa literária que induziria o leitor involuntariamente ao fantástico não causaria efeito algum? Vejo aqui uma grande contradição com o que o próprio teórico assinala no início de seu livro ao considerar arriscado definir um gênero literário baseando-se na reação do leitor e optar pela coerência interna do texto, detendo-se no ponto de vista do escritor e descartando a necessidade de crença. No caso de narrativas como a de Telles, a crença eliminaria o fantástico. Retorno à questão da crença em Nodier, quando me servi das palavras de Finné para corroborar o pensamento do escritor romântico: se no relato oral a crença do contador de histórias era imprescindível para tornar verossímil sua história e despertar a atenção e o prazer dos ouvintes, em relação ao texto escrito cabe ao autor, com suas escolhas temáticas e linguísticas, determinar o caráter fantástico do texto – o que Telles, sem dúvida, o faz. Nos dois casos, seria o empreendimento de sedução apontado por Vax. Não deixo de considerar o progresso centífico e tecnológico, tampouco o caráter movente do fantástico; porém, as crenças religiosas e as superstições – probabilidades racionais e meta-empíricas - ultrapassam as fronteiras do real; se forem tidas como reais, se considerarmos a ampliação da realidade

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estendendo seus limites, sem que haja dúvidas, transgressões, conflitos, incertezas, adentraremos o universo do realismo mágico.

Finalmente, Finné chega a uma dupla conclusão: por um lado, a de que não existe explicação fantástica absoluta; proposta a explicação, o próprio leitor escolheria se ela entra ou não em seu sistema de referências; por outro lado, admite não conhecer nenhum gênero literário que dependa até esse ponto do intelecto do leitor, dependência que considera uma das grandes características do fantástico, ressaltando que ninguém antes a apontara. Como indiquei acima, não estou de acordo com esse aspecto da teoria de Finné, como procurei assinalar sua contradição. No entanto, o crítico acaba por nuançar suas afirmações ao escrever que o escritor de textos fantásticos deve forçar seu leitor a aceitar sua explicação, mesmo que seja por um curto período de tempo, mesmo que seja durante o tempo da narrativa, isto é, deve convencer seu leitor – e este seria seu desafio. E para convencer o leitor, isto é, impor a ele seu fantástico, Finné aponta os procedimentos – já descritos - responsáveis pela lógica interna do texto.

Quando deixa a questão da crença do leitor em relação à dupla explicação e passa a tratar do narrador, Finné retorna à coerência de suas reflexões, uma vez que se volta para uma das características imprescindíveis do fantástico: a necessidade do real diegético para que o sobrenatural se manifeste a contento: “Que la narration soit en Je ou en Il importe finalement assez peu. L’important est de comprendre les deux atitudes humaines en confrontation: réalisme et fantastique. Le premier sert de frein réaliste, le second d’accélérateur fantastique.” (FINNÉ, 1980, p.130). O autor afirma, então, em consonância com os teóricos anteriores, que as narrativas que se afastam da realidade cotidiana perdem seu poder de suscitar o fantástico.

Na verdade, a meu ver, a grande contribuição de Finné relaciona-se à questão das duas partes que compõem a narrativa fantástica, mesmo que o teórico assinale ter partido das ideias de Penzoldt e de Todorov: a primeira, o vetor-tensão, culmina com a explicação sobrenatural; a segunda, o vetor-distensão, explora as consequências lógicas e narrativas da primeira, podendo manter a

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explicação sobrenatural ou resultar em uma explicação racional. Lembro, ainda, a questão do sopro fantástico, excelente para que se considerem fantásticas as narrativas que o apresentem, levando-se em conta a coerência interna do texto ficcional.

Filipe Furtado e a construção do fantástico na narrativa

Publicado no mesmo ano que La littérature fantastique: essai sur l’organisation surnaturelle de Jacques Finné (1980), na Bélgica, o livro do estudioso português Filipe Furtado (1980), intitulado A construção do fantástico na narrativa não propõe novas ideias, mas tem o mérito de assinalar objetiva e concisamente as características próprias do fantástico literário.

O autor retoma a crítica anterior, indicando duas atitudes opostas. A primeira delas refere-se, segundo Furtado (1980, p.10 e p.15), à excessiva importância atribuída aos reflexos emocionais que a obra possa suscitar “[...] no destinatário da enunciação, em desfavor de factores constantes e intrínsecos [...]”, ou seja, na reação do medo. A segunda atitude crítica pressupõe “[...] uma análise objectiva do gênero e das formas como é realizado pelas narrativas que nele se inscrevem.”; aponta, então, os trabalhos que já seguem essa abordagem desenvolvida, sobretudo, por críticos de expressão francesa.

Furtado (1980, p.16) deixa claro, de início, que em seu texto, considera a narrativa fantástica um gênero literário, ponderando que “[...] um texto literário constitui um tipo ou classe de discurso realizado, de forma mais ou menos completa, por um conjunto de textos cujas características e formas de organização específicas os demarcam com nitidez do resto da literatura.”

Como primeira característica do gênero, Furtado (1980) aponta justamente o surgimento do sobrenatural em um ambiente cotidiano e familiar, retomando as definições de Caillois e Vax; completa seu pensamento afirmando que, assim, a fenomenologia meta-empírica (de índole maléfica) é sempre

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o elemento temático dominante da narrativa fantástica. Vimos que Bessière já se utilizara da terminologia “probabilidade meta-empírica” para referir-se justamente aos fenômenos não realistas; quanto à citação de Vax - extraída de seu livro de 1960, L’art et la littérature fantastiques - de que se utiliza Furtado (1980, p.22) para corroborar sua afirmação segundo a qual “só o sobrenatural negativo convém à construção do fantástico”, lembro que, em seu segundo livro, La séduction de l’étrange, de 1965, Vax revê essa ideia ao apontar que o sobrenatural ou insólito apresenta dois pólos, o positivo e o negativo. E Finné aponta que nem todos os contos fantásticos aterrorizam. Furtado (1980) acaba também por relativizar sua afirmação quando indica não significar que se exclua por completo o sobrenatural positivo da narrativa fantástica. Acredito que o pólo negativo apresentou um maior desenvolvimento visto que o fantástico, posterior ao romance gótico do pré-romantismo inglês, dele aproveitou muitos elementos, como os antigos castelos com seus corredores labirínticos e suas passagens secretas, os bosques sombrios, os cemitérios, as ruínas, as assombrações e aparições diabólicas. A intensidade do emprego desses elementos góticos pelos autores de narrativas fantásticas, bem como o grau de incerteza daí decorrente determinam já uma subdivisão dentro do fantástico tradicional que passa a apresentar duas tendências: enquanto alguns textos se mostram bastante sutis em relação ao sobrenatural, o qual é expresso muitas vezes por meio de uma linguagem poética que intensifica a ambiguidade, outros enfatizam certos componentes oriundos do gótico, dirigindo seus textos para a narrativa de terror.

Consideremos as narrativas fantásticas oriundas do romantismo francês e, particularmente, as de Charles Nodier, sobre as quais assinala Vax (1972, p.155) em seu primeiro livro, de 1960: “[...] a sua linguagem elegante [...] está melhor dotada para dizer a tristeza elegíaca do que o horror. A morte ronda seus heróis, mas trata-se muitas vezes duma morte suave e consoladora, que lhes permitirá prosseguir no outro mundo os sonhos interrompidos neste.”, como se viu a propósito de “Une heure ou La vision”, texto que conserva a coerência interna da narrativa fantástica, mantendo a ambiguidade

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até o final. Realmente, e diferentemente de Maupassant, o sonho e a loucura em Nodier privilegiam o positivo, em consonância com ideal romântico de eternidade. Mas não apenas visando a esse ideal ou objetivo; vemos claramente em suas narrativas a volta ao passado nacional e o emprego da mitologia cristã; lembro que o próprio Vax (1965) assinala o caráter movente do fantástico, considerando as flutuações das escrituras e das culturas.

Na verdade, Nodier traz, em muitos de seus contos, ecos da antiga Querela dos Antigos e dos Modernos, que se desenvolveu na França do final do século XVII, isto é, no século do classicismo francês em que a Antiguidade Clássica era tomada como modelo. A controvérsia visava a determinar a superioridade, de um lado, dos artistas que seguiam os modelos antigos, e de outro, daqueles que manifestavam o espírito do progresso (acreditando, pois, na evolução da literatura) e reivindicavam o direito de inovação e criação artística. A disputa inicia-se justamente com a questão do maravilhoso: a querela do “maravilhoso cristão” em oposição ao “maravilhoso pagão”, debate estético em que os artistas denominados Modernos pretendem destituir o maravilhoso antigo em favor do maravilhoso nacional e cristão.

Assim, lendas populares e mitos cristãos são utilizados por Nodier na criação de suas narrativas fantásticas. As primeiras páginas de seu conto “La légende de soeur Béatrix” apresentam uma discussão confrontando textos mitológicos clássicos com narrativas que se originam de lendas e contos populares nacionais; nesse texto, a lenda diz respeito à imagem da Virgem Maria que aparece entre espinheiros sempre floridos, dando origem ao templo então denominado Notre-Dame–des-Épines-Fleuries. E a narrativa desenvolve-se privilegiando o misticismo, ou seja, o caráter positivo do sobrenatural. A dúvida da protagonista, responsável pelos cuidados com a imagem da Virgem – ou hesitação como indica Todorov –, que fugira do convento para vivenciar sua paixão terrena, determina a ambiguidade da narrativa, mantida neste conto desde o momento em que Béatrix constata que sua ausência não fora notada, até quando percebe ter a própria

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Virgem tomado suas feições e seu encargo. O texto termina com o sobrenatural devidamente comprovado, constituindo o que Nodier denomina “história fantástica falsa”, Todorov nomeia “fantástico maravilhoso” e Finné “fantástico com explicação sobrenatural”. De qualquer modo, o fantástico não aparece atenuado. Assim, não concordo com a citação que Furtado faz da primeira obra de Vax (1972, p.175) sobre o fantástico – “O diabo é fantástico, a Virgem não o é [...]”; a narrativa fantástica não tem obrigatoriamente de manifestar o sobrenatural ou insólito negativo, uma vez que sua função não é unicamente despertar o medo ou outro sentimento, mas também apresentar uma lógica interna - e neste ponto estou de acordo com as reflexões de Furtado (1980, p.28): “[...] a manifestação do sobrenatural encenada pelo fantástico não pode ser arbitrária, devendo manter uma certa coerência ao longo de toda a narrativa e conformar-se aos princípios gerais impostos pela própria construção do género.” Como se verá, Roas (2011) enfatiza o medo como elemento imprescindível ao fantástico literário, sem deixar de ponderar sobre o “maravilhoso cristão”, que considera como forma híbrida.

E essa lógica interna pressupõe a ambiguidade. Assim, ao indicar que “[...] o emprego de temática meta-empírica com uma função central na intriga constitui o elemento comum ao fantástico, ao maravilhoso e ao estranho”, Furtado (1980, p.34 e p.35, grifo nosso) aponta a segunda característica da ficção fantástica: a ambiguidade, pois “[...] só o fantástico confere sempre uma extrema duplicidade à ocorrência meta-empírica”:

A ambiguidade resultante desta presença simultânea de elementos reciprocamente exclusivos nunca pode ser desfeita até o termo da intriga, pois, se tal vem a acontecer, o discurso fugirá ao género mesmo que a narração use de todos os artifícios para nele a conservar. [...] É, portanto, a criação e, sobretudo, a permanência da ambiguidade ao longo da narrativa que principalmente distingue o fantástico dos dois gêneros que lhe são contíguos [...] Assim, um texto só se inclui no fantástico quando, para além de fazer surgir a ambiguidade, a mantém ao longo da intriga, comunicando-a às suas estruturas e levando-a a

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refletir-se em todos os planos do discurso. (FURTADO, 1980, p.36 e p.40).

Observa-se que Furtado retoma os elementos anteriormente apontados, sobretudo por Todorov, e os sistematiza e organiza no sentido de deixar claro que a narrativa fantástica pode e deve ser considerada como um gênero literário. Nota-se ainda, na citação acima, que o crítico parece concordar plenamente com as ideias do teórico búlgaro-francês (TODOROV, 1970a) quando este considera como fantástico-puro apenas aqueles textos que mantêm a ambiguidade até o final da narrativa; no entanto, mais adiante Furtado (1980, p.41) relativiza essa conclusão, afirmando que “[...] o ponto de equilíbrio entre a aceitação ou a recusa da manifestação meta-empírica é extremamente difícil de atingir e, sobretudo, manter até o termo da intriga.” Consequentemente, embora não se detenha sobre esse aspecto como o fez Finné, cuja proposta aponta como fantásticas as narrativas de “sopro fantástico”, que tendam para uma explicação racional ou sobrenatural em seu fecho, Furtado mostra não estar em completa discordância. De fato, conclui que nem sempre a racionalização do sobrenatural é susceptível de anular o caráter ambíguo do fantástico: “O emprego da racionalização parcial como processo redutor do impacto eventualmente produzido pelo fenómeno sobrenatural é muito frequente, sendo raras as narrativas do género em que não surge.” (FURTADO, 1980, p.65). Assim, mostra tornar-se claro que apenas a racionalização plena anula o fantástico, visto que, ao destruir totalmente o sobrenatural, impede o desenvolvimento das etapas subsequentes da construção do gênero; a racionalização parcial, ao contrário, pode consolidar a manifestação insólita; quando os excessos da imaginação ameaçam conduzir a narrativa para o maravilhoso, a explicação racional pode repor o equilíbrio necessário ao fantástico, favorecendo a ambiguidade da ação. Furtado recupera, ainda, os dois tipos de racionalização assinalados por Todorov – a leitura alegórica e a leitura poética – considerando-os como eventuais perigos a que está sujeita a construção fantástica, lembrando que a manutenção da ambiguidade é essencial para a existência do fantástico na narrativa.

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Para que a ambiguidade imprescindível ao fantástico possa surgir e desenvolver-se na narrativa, Furtado indica ser necessário que o evento sobrenatural ou insólito mostre certo grau de plausibilidade:

Já que propõe como provável a realidade objectiva da manifestação meta-empírica que encena e como a falsidade de tal proposta não deverá tornar-se aparente à leitura, a narrativa fantástica procura envolvê-la em credibilidade, acentuar por todas as formas a sua verosimilhança. (FURTADO, 1980, p.45, grifo do autor).

O crítico especifica que, no fantástico, o verossímil busca despertar no destinatário do enunciado a mesma submissão às regras do gênero que se verifica na própria narrativa.

Esse conjunto de falsidades e artifícios não deve evidenciar sua inadequação ao mundo empírico, mostrando uma lógica interna cujas regras se pretendem impor ao destinatário. Furtado aponta ser a presença desse conjunto de elementos que possibilita a manutenção da ambiguidade em narrativas como La Vénus d’Ille de Prosper Mérimée, The Turn of the Screw de Henry James ou The Monkey’s Paw de W. W. Jacobs. Passa, então, a enumerar e discutir alguns desses artifícios:

1) O recurso à autoridade, isto é, a fontes consideradas confiáveis: personagens respeitáveis, documentos (manuscritos, diários, memórias);

2) Referências factuais: acontecimentos históricos ou fatos contemporâneos, dados científicos ou pseudocientíficos;

3) Testemunho do narrador-personagem, geralmente um indivíduo céptico.

Outros contributos para reforçar a plausibilidade da narrativa são ainda apontados por Furtado como a explicação racional de alguns aspectos secundários da narrativa, a acentuação de traços realistas, o efeito de recuo que desloca a ação para o passado distante.

Furtado retoma, então, a questão da hesitação proposta por Todorov e aponta ser óbvio que este não tenha se referido ao leitor

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real, mas a uma figura pelo menos implícita no texto, o narratário, utilizando-se da nomenclatura apresentada por Genette (1972) em Figures III: ao narratário cabe representar um determinado papel que resulte na reação do receptor do enunciado. Deste modo, assinala Furtado (1980, p.76), o papel do narratário constitui uma importante característica do gênero, embora por si só não o constitua:

Assim, facilmente se depreende que afastar o traço distintivo do fantástico da sua situação própria (a ambiguidade) para o colocar no papel (nem sempre explícito ou convincente) destinado ao narratário, como o faz Todorov, equivale a dar prioridade ao acessório sobre o essencial, privilegiando um factor aleatório em desfavor de uma característica constante de qualquer narrativa que se inscreva no género.

Em suma, a caracterização do gênero deve se basear, não em reações aleatórias e exteriores à obra, mas em traços que se mantenham indiscutivelmente constantes, mesmo que sujeitos às mais diversas nuanças de leitura. Daí a inviabilidade da definição do fantástico literário a partir da atitude do leitor real face ao texto, do mesmo modo que se revela insuficiente centrá-la em relação ao papel do narratário, mesmo que este seja relevante como traço do fantástico. Penso ter Furtado sido bastante claro em relação à sua própria reflexão ao tratar da questão da hesitação em Todorov, não a descartando, mas colocando-a como um dos traços decorrentes da coerência interna que apresenta como característica principal a ambiguidade intrínseca da ação e seu alastramento a todas as estruturas do discurso.

Valendo-se ainda de Todorov, Furtado assinala que para conduzir o destinatário da enunciação à incerteza deve-se suscitar nele a identificação com o personagem que melhor reflita a percepção ambígua do evento supostamente sobrenatural e sua consequente perplexidade diante da coexistência das duas fenomenologias contraditórias; indica ser tal identificação, na maioria dos casos, com o protagonista: “A personagem torna-se,

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assim, um importante elemento de orientação na floresta dos sinais erguidos ao longo do texto, indicando repetidas vezes ao leitor real (directamente ou por intermédio do narratário) o percurso de leitura a seguir.” (FURTADO, 1980, p.85). Esclarece que a reação ambígua do personagem não pode ser considerada um traço fundamental do fantástico literário, mas contribui para sua consolidação. Assinala ainda que os personagens de modo geral pouco ou nada interessam ao discurso fantástico enquanto figuras com vida própria; devem servir de veículos, seja para reforçar a aparência normal do quadro em que se desenvolve a ação, seja para tornar mais admissível o evento sobrenatural, seja ainda para favorecer alternadamente um ou outro desses elementos antagônicos. O importante é ter em mente que o fantástico encena acontecimentos e personagens pretensamente originários de duas ordens diferentes de universos que se supõe interpenetrarem-se ao longo de determinada parte da narrativa. Nesse contexto, sugere Furtado, o medo torna-se relevante como efeito da manifestação meta-empírica negativa quando enquadrado no conjunto das reações do personagem.

Em relação ao narrador, Furtado (1980, p.109) concorda com grande parte da crítica ao apontar ser o narrador-personagem a modalidade mais frequente na narrativa fantástica, bem como haver predomínio da primeira pessoa relativamente ao modo como é veiculada a narração:

[...] convém ao fantástico que o sujeito da enunciação coincida com uma figura de relevo na acção. Por isso, este tipo de narrador deve ser considerado um factor importante quando se pretende estabelecer com clareza a delimitação do gênero, embora não se possa dizer que constitui um traço distintivo dele pois não está presente na totalidade das narrativas que o integram.

Aponta, desse modo, tratar-se de um narrador de dupla incumbência, um narrador-personagem, que na maioria das vezes coincide com um companheiro e não propriamente com o protagonista. Recorrendo à terminologia de Genette (1972), Furtado indica então que, em geral, o narrador é homodiegético, ajustando-

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se a um personagem secundário, embora possa aparecer como autodiegético, o que é mais raro devido à natureza duvidosa de sua percepção e de suas reações claudicantes diante do evento insólito. Logo, estabelece-se uma distinção entre o narrador enquanto protagonista e o narrador-testemunha; enquanto o primeiro sofre a subversão do real e, diante do inadmissível, torna-se incapaz de uma narração exata, clara e desapaixonada do evento, o segundo revela-se lúcido e mais emocionalmente equilibrado; o próprio protagonista pode mostrar-se como narrador-testemunha quando apresenta uma distância temporal dos eventos que protagonizou, isto é, ao narrar acontecimentos passados, o que pressupõe também o distanciamento psicológico e moral.

Resumidamente, assinala Furtado, o narrador que é simultaneamente personagem está incumbido de funções importantes no que se refere a vários planos da ficção fantástica. Esse narrador deve ser, de preferência, homodiegético e não-omnisciente, coincidindo com uma figura que revele conhecimentos sobre a manifestação extra-natural, podendo mostrar-se céptico na evolução da narrativa, reproduzindo, em linhas gerais, o papel atribuído ao narratário e, por meio deste, ao próprio leitor. Caracterizado dessa forma, “[...] o narrador pode constituir um elemento relevante no que concerne ao reforço da ambiguidade e à sua comunicação ao receptor do enunciado.” (FURTADO, 1980, p.115).

Vê-se, assim, a insistência bastante válida de Furtado em assinalar que todos os elementos da narrativa deverão ser organizados em função da ocorrência do sobrenatural, seja para contribuir para sua plausibilidade, seja para evitar sua plena aceitação, confirmando a ambiguidade própria do fantástico.

Como o fizera Bellemin-Noël, Furtado indica ser desnecessário, na narrativa fantástica, a descrição minuciosa que, ao contrário, deve ser evitada; fixa-se na descrição do espaço, mostrando que o emprego regrado e seguro da descrição do cenário pode ser de grande utilidade: de um lado, sublinhando a ambiguidade da ação, de outro, promovendo o reforço de sua verossimilhança.

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Assim, a contradição real/irreal pode ser reproduzida e ampliada pelo próprio espaço representado na narrativa, combinando-se dois tipos aparentemente opostos, mas complementares, de cenário. Um que apresente componentes “realistas”, representando o real e simulando as leis naturais; outro, composto por elementos “alucinantes” que, segundo Furtado, surgem em menor número e contribuem para introduzir dados anormais no cenário anterior, desconformes com os traços do universo do destinatário da enunciação; o crítico aponta que muitos dos elementos que chama de “alucinantes” são oriundos dos romances góticos.

Decorre daí que, a maioria das narrativas fantásticas prefere apresentar locais delimitados e fechados, ambientes interiores, particularmente casas de grandes dimensões, construções labirínticas, quando não retoma os antigos castelos góticos construídos em áreas isoladas; o espaço fantástico, aponta Furtado, também se distancia da luz e da cor, privilegiando a escuridão ou as nuanças sombrias. Não deixa de considerar que, por vezes, o espaço exterior também é focalizado na narrativa fantástica – a natureza selvagem – sem que desrespeite as características apontadas. A indecisão permanente, o equilíbrio precário entre a aparência do real e sua ilusória subversão justifica a presença de um espaço híbrido na narrativa fantástica, a qual nunca pode se desenvolver inteiramente em um espaço determinado, qualquer que seja, realista ou alucinante: o cenário constitui, então, um fundo adequado à incerteza e indefinição da história. O crítico indica ainda que o texto fantástico deve manter-se em constante oscilação entre um e outro espaço, empregando elementos dos dois universos antagônicos que focaliza, embora privilegie sempre a representação do cotidiano. As duas modalidades de representação “[...] deverão ser combinadas de forma a instaurarem na narrativa uma nunca resolvida antinomia entre o aparente real e o meta-empírico, a qual, pela sua permanente indefinição, propicie a ambiguidade exigida pelo género.” (FURTADO, 1980, p.126).

Em suma, a narrativa fantástica deverá propiciar por meio do discurso a instauração e a permanência da ambiguidade. Com essas

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palavras, Furtado elenca os procedimentos que criam e mantém a indefinição do fantástico literário; assinala primeiramente três desses procedimentos que considera essenciais, pois sua combinação é responsável por gerar a ambiguidade empírico/meta-empírico: 1 – fazer surgir em um contexto aparentemente normal aconteci-mentos ou personagens que subentendam a existência objetiva de uma fenomenologia meta-empírica;2 – conferir verossimilhança a essa fenomenologia extra-natural; 3 – evitar a racionalização plena da manifestação meta-empírica, mesmo incluindo explicações parciais dos eventos insólitos.

Paralelamente a esses traços permanentes, outros traços vêm repetir e ampliar o debate sobre a admissibilidade dos fenômenos inexplicáveis:4 – instaurar um narratário, preferencialmente intradiegético; 5 – instaurar personagens que suscitem a identificação por parte do leitor;6 – organizar as funções dos personagens de acordo com uma estrutura actancial que reflita as normas do gênero; 7 – utilizar um narrador homodiegético;8 – evocar um espaço híbrido, subvertido ou indefinido.

Como se observa, todos esses procedimentos contribuem para a criação e manutenção da ambiguidade que distingue a narrativa fantástica de outras modalidades literárias em que o sobrenatural ou o insólito se manifestam.

Joël Malrieu e a valorização do personagem

Em Le fantastique, Malrieu (1992, p.5) inicia suas reflexões com a questão: “Existe-t-il un genre fantastique?”, isto é, traz de volta a questão sobre gêneros literários: “Quiconque aborde la littérature fantastique voit sa lecture infléchie d’avance par une accumulation de présupposés plus ou moins flous et d’origines fort diverses.” Logo em

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seguida, desloca o problema para a necessidade de definir o fantástico literário: “Cette confusion générale n’empêche pas d’ailleurs d’admettre comme acquis qu’il existe un genre fantastique. Le seul problème est de le définir.” (MALRIEU, 1992, p.5).

Para assinalar essa “confusão geral” relacionada com a diversidade de textos que diferentes teóricos, críticos ou historiadores literários consideram como pertencentes à literatura fantástica e para tentar explicar as causas dessa indefinição, Malrieu (1992, p.7) apóia-se na história literária: “[...] il faut d’abord comprendre ce qui s’est passé en France vers 1830, au moment où les romantiques français s’emparent du mot fantastique [...].

Malrieu retoma, assim, questões bastante pertinentes relativas à diferença estética entre o gótico e o fantástico, bem como à ressonância dos contos de Hoffmann na França. No que se refere às diferenças entre o gótico e o fantástico, Malrieu (1992) aponta que, não importando se o romance gótico termine com uma explicação racional, como em Ann Radcliffe, ou mantenha o sobrenatural até o final, como em Lewis, ele sempre repousa em certo número de procedimentos: cemitérios, velhos castelos, ruínas, longos corredores com muitas portas, aparições sobrenaturais e demoníacas, cadáveres, esqueletos, ladrões e bandidos e, ainda, doses suficientes de cochichos, gemidos e outros ruídos horríveis. O fantástico, ao contrário, gênero livre, não obedecendo a nenhuma regra, não pode ser definido pelos elementos que compõem suas obras, embora utilize em muitos textos os componentes oriundos do gótico; além disso, o fantástico serve-se dos contos e lendas populares, do sonho e das descobertas científicas.

Em relação a Hoffmann, cuja produção literária foi traduzida na França por Loève-Veimars, Malrieu acredita que a repercussão de suas narrativas mostra-se favorável à luta romântica contra as regras rígidas do classicismo e à reabilitação da prosa. Era preciso, porém, recorrer a outro termo, diferente de “fantasia”, que originasse um novo sentido.

Malrieu (1992, p.17) segue discorrendo brevemente sobre a identificação inicial entre romantismo e fantástico, buscando marcar

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a origem da confusão sobre os limites do fantástico literário: “Jamais le fantastique n’est sorti complètement de cette situation confuse, ni dans sa pratique, ni dans sa théorie.” O crítico não deixa, de qualquer modo, de apontar algumas contribuições de escritores para delimitação do fantástico: Nodier, quando vincula o fantástico ao sentimento de decadência; Maupassant, ao assinalar o surgimento de uma nova problemática, que estabelece a relação do homem com ele próprio, uma vez que é inseparável do progresso da ciência; Mérimée, que propõe a transição sutil do bizarro, mas possível, ao sobrenatural. Ainda, seja por remeter às considerações de Maupassant, seja por meio das palavras de Henry James no prefácio de The Turn of the Screw, Malrieu (1992, p.35) constata o fim do fantástico: “Le fantastique au XXe a déjà tendance à laisser le pas à la science-fiction [...]. L’apogée du fantastique à la fin du XIXe siècle signifiait em même temps son déclin.”

Segundo Malrieu, uma das consequências da indefinição que vem apontando seria que, atualmente, o termo fantástico - relativo à literatura fantástica - é compreendido de diferentes modos; e, a essa dificuldade de ordem conceitual, acrescenta outra, de ordem estrutural: a de que, desde seu início, o fantástico não se ateve a regras: “De fait, toute tentative d’approche théorique se trouve par avance pervertie parce que les romantiques en ont fait artificiellement un genre, avant même que le genre existe.” (MALRIEU, 1992, p.17).

Finalmente, Malrieu (1992, p.20) acaba por concluir que o fantástico constitui um gênero literário, ao apontar que

Malgré les problémes théoriques nombreux que présente le terme, on peut admettre de regrouper sous cette dénomination un certain nombre d’oeuvres d’origines très diverses, mais qui expriment toutes, à travers une structure récurrente, des préoccupations similaires.

E mais adiante, oferece sua definição de narrativa fantástica:

Le récit fantastique repose en dernier ressort sur la confrontation d’un personnage isolé avec un phénomène, extérieur à lui ou non, surnaturel ou non, mais dont la présence ou l’intervention représente une contradiction profonde avec les cadres de pensée et

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de vie du personnage, au point de les bouleverser complètement et durablement. (MALRIEU, 1992, p.49, grifo nosso).

A partir dessa definição, e depois de citar brevemente as teorias anteriores destacando Castex, Caillois e Todorov, Malrieu dedica-se a reflexões sobre personagem, narrador, espaço, tempo e fenômeno fantásticos. Para o crítico, a história do fantástico é a história das variações em torno desse esquema.

Inicia por apontar a vacuidade do personagem da narrativa fantástica: um homem comum, que não apresenta características do herói, ao contrário, é singularmente vazio em relação a seus caracteres. Por isso, nada indica que esteja destinado a confrontar o extraordinário ou o impossível, o que o coloca, solitário (isolamento intelectual e social), entre dois mundos – o do fenômeno e o do real diegético, fazendo brotar a contradição, apontada na definição. Para Malrieu, o fantástico fundamenta-se na relação entre o personagem (raramente um personagem feminino) e o fenômeno: o ceticismo ou a incredulidade do personagem deixam um vácuo ao fenômeno no qual este vai poder se imiscuir. A aparição do fenômeno teria por função revelar ao personagem seus próprios limites; daí em diante, sozinho diante do fenômeno, tenta voltar-se para os outros, mas sem poder sair da situação inicial de solidão, choca-se com a incompreensão e vê-se excluído ou rejeitado.

O fenômeno nada apresenta de inquietante, à primeira vista, pois seu comportamento permanece nos limites do real possível ou do cotidiano. No século XIX, assinala Malrieu enfatizando a questão da loucura, o fenômeno não é somente exterior, como no romance gótico, mas sobretudo interior: “Le fantastique est une réflexion sur les contradictions, et ce qui en résulte, entre l’humain, incarné par le personnage, et le non-humain, représenté par le phénomène, étant bien entendu que les deux peuvent parfaitement cohabiter dans le même individu.” (MALRIEU, 1992, p.88). O fenômeno apresenta sempre algo que o diferencia do humano, mas que é vago, incerto ou sutil demais para deixar uma impressão durável: a ideia de que um gato ou uma estátua possam representar qualquer perigo é tão absurda que o leitor acaba partilhando essa negligência primeira do personagem

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em relação ao fenômeno; aí reside a principal força deste último, completa Malrieu. Inominável e indescritível, o fenômeno insere-se insidiosamente no mundo cotidiano, organizado e racional, estabelecendo uma relação de atração e repulsa com o protagonista.

O espaço ocupado pelo personagem, vítima do evento insólito, é, aparentemente, da mesma natureza do espaço do narrador: determinado, conhecido, frequentado. No entanto, tanto o espaço quanto o tempo do personagem são duplos, como ele: sem ser anormal, o espaço apresenta, entretanto, certos traços estranhos. Após essas constatações, Malrieu aponta que, quando o lugar do personagem mostra-se estranho, isso se dá porque se trata de um local antigo, que representa a sobrevivência de um passado desaparecido em um mundo que não cessa de se transformar. Acrescenta que, na narrativa fantástica, o tempo encontra-se sempre ligado à degeneração e à decomposição: o passado nunca está morto e não cessa de irromper no presente.

Tendo introduzido a figura do narrador na discussão do espaço e do tempo, o crítico nela se detém para assinalar a viabilidade do emprego da terceira pessoa, apesar de muitos críticos apontarem a utilização da primeira pessoa como característica do fantástico. Observação pertinente, pois como afirma Malrieu, as ficções com narrador em terceira pessoa raramente são compostas inteiramente segundo esse modo narrativo, pois há variações do ponto de vista que pode ser deslocado para o protagonista, voltando a ser a expressão de um “eu”. Aponta ainda, como outros críticos ou teóricos, as possibilidades de um narrador-protagonista relatar um evento do passado, ou da presença no texto de um narrador testemunha.

Embora Malrieu pouco acrescente às discussões teórico-críticas precedentes, considero pertinente sua observação acima sobre não ser prejudicial o emprego da terceira pessoa na narrativa fantástica, bem como sua discussão a respeito da confusão original, no romantismo, em torno da delimitação do campo da narrativa fantástica. Observo, no entanto, que minimizou a importância da ambiguidade provocada pela hesitação ou incerteza, a meu ver

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característica maior do fantástico literário; embora em sua definição assinale a “contradição profunda” que o evento insólito traz ao universo do protagonista, critica a ênfase atribuída por Todorov à hesitação e à ambiguidade dela advinda; decorre daí a utilização constante por Malrieu de textos como Frankenstein de Mary Shelley, Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde de Stevenson e Dracula de Bram Stoker, desconsiderando completamente que são textos góticos, um deles oriundo da retomada da primeira fase da literatura gótica no início do século XIX, e os outros dois originários da segunda fase do gótico no final do mesmo século.

Valérie Tritter: a retomada do fantástico como forma movente

O livro de Tritter, Le fantastique, de 2001, inicia-se com um breve desenvolvimento sobre a origem da palavra “fantástico”, a partir das origens, seja do grego (phantastikos: faculdade de criar imagens vãs), seja do latim tardio cristão (phantasticus: imaginário, irreal); na época medieval, em linguagem corrente, “fantástico”, remete ao significado “possuído” e origina dois tipos de literatura: o phantasma, que representa a partir do imaginário puro e a phantasia, que desenvolve um imaginário intensamente fundamentado no real. Tritter não deixa de apontar que esse segundo tipo poderia muito bem ser o ancestral do fantástico como se tornou conhecido.

A seguir, situa no século XIX o nascimento do fantástico:

Comme en France jusqu’au XIX ème siècle, pour désigner toute production littéraire imaginaire, les Anglais ont un vocable, “fantasy”, et les Allemands l’équivalent, “phantasie”. C’est le mot choisi par Hoffmann pour intituler en 1815 un recueil de nouvelles, les Phantasiestücke [...]. En 1829, par esprit d’analogie avec l’adjectif français “fantastique”, Loève-Veimars, premier traducteur de Hoffmann en France, traduit par “contes fantastiques”. Dès lors, le mot est lancé, et il ne faut pas attendre bien longtemps pour qui naisse le genre. (TRITTER, 2001, p.4, grifo do autor).

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Indica ainda que outra tradução infiel de adjetivo para “fantástico” aparece quando Defauconpret traduz um artigo de Walter Scott: “fantastic mode of writing” (modo de escritura fantasista) aparece como “le genre fantastique” (o gênero fantástico). Tritter remete, então, às considerações de Malrieu que explica a instabilidade dessa noção e do campo que abarca pelo fato de o fantástico ser um gênero nascido em teoria antes de existir verdadeiramente. Assinala, em seguida, ter sido o substantivo introduzido em literatura por Charles Nodier, que o emprega no título de seu ensaio, Du fantastique em littérature, em 1830, revelando-se como o primeiro a delimitar alguns contornos no fantástico literário. Assim, Nodier tornou-se o primeiro teórico – como, aliás, é tratado no início deste trabalho -, lançando a palavra e erigindo o fantástico à dimensão de gênero.

Quanto às fontes literárias do fantástico, Tritter aponta primeiramente a Alemanha com os contos de Hoffmann e o Fausto de Goethe; em seguida, a Inglaterra romântica por meio do romance gótico e, finalmente, o conto libertino francês que, na verdade, irmana-se com o frenético: essas três fontes traçam os contornos do fantástico como um grande gênero europeu. Gênero profundamente inscrito no romantismo desenvolve-se no plano literário como oposição ao classicismo, no plano político e social como uma nova concepção do homem; no plano ontológico mostra-se como a expressão exacerbada do desacordo romântico entre o “eu” e o mundo e, enfim, apresenta uma relação paradoxal no que se refere à ciência, entre a tentação e a recusa do cientismo.

Em seguida, assinala brevemente alguns nomes da crítica do século XX sobre o fantástico: Freud (fantástico e psicanálise); Lovecraft e Sartre (autores ensaístas); Castex, Caillois, Vax, Todorov, Malrieu (crítica universitária) – autores contemplados nas discussões anteriores. De Freud enfatiza as três instâncias psicanalíticas, a dimensão do sonho, o sentimento de inquietante estranheza e o pressentimento do papel do narrador; sobre este último aspecto escreve:

On a souvent reproché à Freud de ne guère tenir compte du fait littéraire. Effectivement, en psychanalyste, il réduit les textes à une étude diagnostique et les

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personnages à des cas cliniques. [...] Mais dans L’Inquiétante Étrangeté, il pressent que le fantastique ne réside pas dans l’événement mais dans la manière de rapporter [...] (TRITTER, 2001, p.14).

“A maneira de relatar” os acontecimentos remete de imediato ao papel do narrador, cuja importância não passou despercebida pelos diferentes críticos, mas refere-se também à coerência interna da obra que, como sublinhou Furtado (1980), determina a ambiguidade característica do fantástico.

Sobre Lovecraft, Tritter (2001, p.15) assinala acertadamente que seu livro Supernatural Horror in Literature fixa-se nas narrativas de horror e o interesse principal do texto é a análise das motivações da escritura fantástica: “À la source de cette littérature comme dans son but ultime, c’est-à-dire l’impact sur le lecteur, il désigne un phénomène: la peur.”

Define bem a postura de Sartre em Aminabad ou du fantastique considéré comme un langage, diante do que este – invertendo a habitual dicotomia que opõe mundo normal e mundo fantástico - denomina fantástico contemporâneo em relação ao que nomeia fantástico tradicional, referindo-se à produção anterior a Kafka.

Ao assinalar a crítica acadêmica, Tritter mostra primeiramente que Castex desenvolve uma teoria historicista segundo a qual o fantástico nasce da reação ao espírito das Luzes e formula uma das primeiras definições, voltada – como evidencia o título: La littérature fantastique en France de Nodier à Maupassant -, para a produção literária do século XIX. Em sua definição, como se viu, Castex (1962) aponta que o fantástico literário inaugura um realismo outro, estabelecendo uma relação com o verossímil.

Tritter (2001, p.20) opta pela definição de Caillois – que aparece no artigo já aqui apresentado, “De la féerie à la science-fiction”, precedendo sua Anthologie du fantastique, de 1966 -, cuja oposição com o maravilhoso lhe parece convincente:

Le féerique est un univers merveilleux qui s’ajoute au monde réel sans lui porter atteinte ni en détruire la cohérence. Le fantastique, au contraire, manifeste un

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scandale, une déchirure, une irruption insolite, presque insuportable dans le monde réel. [...] Le conte de fées se passe dans un monde où l’enchantement va de soi et oû la magie est la règle. Le surnaturel n’y est épouvantable, il n’y est même pas étonnant, puisqu’il constitue la substance même de l’univers, sa loi, son climat. [...] Au contraire dans le fantastique, le surnaturel apparaît comme une rupture de la cohérence universelle. (CAILLOIS 1966a, p.8-9).

Não deixa de enfatizar que essa ruptura já apontada por Castex, adquire, em Caillois o sentido de transgressão à norma.

Em relação às considerações de Vax, depois de apontar a perspectiva filosófica do autor, Tritter focaliza a ênfase atribuída à intensidade do sentimento de estranheza que atinge o tempo e o espaço.

Representando o formalismo russo, Todorov sistematiza o estudo do gênero fantástico, indica Tritter (2001, p.19), apontando que o mérito do crítico é o de ter feito do fantástico uma experiência particular do leitor:

Il inaugure ce qu’on a coutume de nommer la «critique dialogique» où se rencontrent la voix de l’auteur et celle du lecteur. Il insiste surtout sur le rôle actif du lecteur; il va même jusqu’à écrire que peu importe que l’hésitation soit ou non représentée par un personnage, celle du lecteur suffit.

Observa-se que Tritter interpreta a questão do leitor em Todorov sob uma perspectiva diversa da reflexão de Furtado, quando este, retomando a questão da hesitação, indica ser óbvio não se tratar do leitor real, mas de uma figura pelo menos implícita no texto, o narratário.

Tritter não deixa de incluir Malrieu entre os críticos acadêmicos, atribuindo-lhe o mérito de oferecer uma descrição apurada do fantástico que recupera algo do formalismo, pois o crítico busca encontrar um princípio de estrutura universal. Chega a denominar “esquema” sua definição, na qual o eixo principal é o personagem, verdadeiro sujeito do fantástico.

Depois de remeter às diferenças entre maravilhoso, fantástico e ficção científica – distinções, aliás, bastante discutidas pelos

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críticos anteriormente aqui abordados -, Tritter (2001) vale-se das reflexões de Bessière (1974) para apontar que, historicamente, e considerando-se que a narrativa fantástica apareceu no final do século XVIII, século do conto feérico e do romance realista, pode-se supor que esse tipo de narrativa tenha nascido da contaminação dos dois gêneros. Retoma, então, a proposta de Bessière que vê na obra fantástica o lugar de convergência da narração tética (realista) e da narração não-tética (maravilhoso). Aponta que mesmo Todorov estabelece um desvio por meio da hesitação, um dos meios da ilusão realista. Chega à conclusão que não há antinomia fundamental entre o realismo e o fantástico: o pressuposto realista é a condição sine qua non do fantástico. Tritter chega ao fecho dessas reflexões afirmando que o fantástico se estabelece como um gênero novo.

Em seu estudo sobre a literatura fantástica, Tritter não desenvolve propostas teóricas, mas recupera as teorias já existentes, para constatar, em dado momento, como Vax (1965), que “[...] le fantastique se présente comme une forme mouvante capable d’investir tous les genres littéraires existants, mais certains de manière plus efficace, quant à l’effet produit, que d’autres.” (TRITTER, 2001, p.37, grifo nosso).

Detendo suas reflexões sobre as abordagens temáticas, Tritter apresenta um estudo detalhado, com subdivisões esclarecedoras, a respeito do espaço e do tempo fantásticos: tempo e espaço são, para Tritter, muito difíceis de serem separados no fantástico, pois um se coloca como metáfora do outro.

Assim, esses dois elementos aparecerão juntos em suas reflexões, a começar dos lugares marcados pelo passado. O espaço medieval, oriundo da literatura gótica, abrangeria o lugar fechado, como calabouços, cavernas, masmorras, que permitem reavivar certos temores viscerais (a claustrofobia, o medo de ser enterrado vivo), além de se configurarem como o antro do monstro, o local da revelação. O labirinto seria um desses locais, sob a forma de subterrâneos, galerias, escadas em caracol, aparecendo relacionados à vertigem do sentido e da identidade. Tritter ressalta o espaço

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labiríntico, assinalando que o paradoxo desse local é o de configurar-se ao mesmo tempo como lugar fechado e aberto, isto é, sem fechadura, mas do qual é impossível escapar; em suma, considera o labirinto como a metáfora generalizada do fantástico, trajeto que leva fatalmente ao que se busca fugir. Teríamos, ainda, as ruínas, cuja imagem pitoresca e romântica pode transmutar-se em visão inquietante, simbolizando no universo fantástico o ressurgimento do passado no presente, da morte na vida, e preludiando a aparição do fantasma; e, finalmente, o distanciamento espacial, característica do gótico e do frenético, que centra a ação em países exóticos, do mesmo modo que no castelo inacessível.

A morada maldita, que paralelamente ao motivo do castelo exerce uma influência nos habitantes ou visitantes e se fecha sobre eles como uma armadilha, é considerada por Tritter como outro espaço marcado pelo passado. O que torna esses edifícios fantásticos, explica, seria justamente o fato de serem atravessados pelo tempo: funcionam como memórias de pedra, depositárias de segredos sombrios que fazem nascer uma concepção antropomorfa do local, centro de fenômenos estranhos, ameaçadores e, até mesmo, criminosos. De qualquer modo, sejam velhos castelos, habitações malditas, labirintos, escadarias, calabouços ou ruínas, o fantástico privilegia aberrações arquiteturais e espaciais.

Além desses espaços ermos, a crítica mostra também a importância da cidade, esclarecendo ser necessário ao fantástico desenvolver-se em um espaço social, pois a ruptura na qual se constrói só pode ser plenamente concebida em um espaço regido pelas normas sociais: o espaço vazio funciona apenas quando existe ou existiu uma dimensão de civilização da qual restam traços.

Desse modo, o espaço aparece temporalizado ou o tempo mostra-se espacializado. Tradicionalmente, o instante fantástico dá-se à noite, preferencialmente à meia-noite, hora intermediária, tempo do relógio e tempo mítico. A noite, no fantástico, é percebida tanto em termos espaciais, quanto temporais: ela envolve a vítima e o fenômeno que a atinge; a obscuridade faz-se tão densa, que se

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torna quase palpável. O fantástico apresenta ainda coincidências temporais que abolem toda ideia de espaço, como quando o momento fantástico reúne dois eventos espacialmente distantes.

Sob o título de “Approches thématiques”, Tritter abarca vários elementos; além do espaço, tempo e motivo discutidos acima, trata de personagens, objetos e temas. Sobre personagens humanos assinala que o personagem mergulhado no âmago da experiência fantástica é geralmente um homem, elemento que, no esquema actancial, nomeia-se sujeito. Cabe a ele a autoridade da narração, a menos que outro personagem narre o evento que ele vivenciou, isto é, ou o protagonista é o próprio narrador, ou um narrador-testemunha incumbe-se de relatar o acontecimento fantástico. Trata-se geralmente de jovens que vivem na realidade, isto é, que não são fantásticos em essência, mas vêem-se imersos no seio da experiência fantástica. Além desse sujeito que é, na verdade, a vítima, existe outro tipo de personagem dominante, que desempenha um papel ambíguo: adjuvante ou oponente, figurando como cientista, médium, magnetizador, artista, antiquário, arquivista.

A respeito da figura da mulher, Tritter aponta que ela intervém raramente como protagonista ou narradora testemunha do extraordinário, com a exceção da governanta de The turn of the screw, de Henri James. Acredito que, na contemporaneidade, outros personagens do sexo feminino se incluam, como se observa nos textos de Carlos Fuentes ou nos de Lygia Fagundes Telles.

Ao lado dos personagens humanos, Tritter aponta os não-humanos, ou seja, o bestiário fantástico: o gato e o cachorro (como avatares diabólicos), o cavalo (que conduziria a alma dos mortos), o lobo, o urso e a aranha (relacionados à licantropia e à metamorfose). Não-humanos são também os personagens herdados do folclore, como a bruxa, o feiticeiro e o diabo, bem como os seres do além-túmulo: fantasmas, múmias e vampiros; e criaturas mitológicas, tais quais a mandrágora, o golem e o judeu errante, além das projeções monstruosas do pensamento, quando o fantástico cria sua própria mitologia.

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Chega, enfim, ao tema do duplo, assinalando que, efetivamente, a estética do fantástico poderia colocar-se inteiramente sob o signo do duplo, pois por sua própria natureza a obra fantástica dispõe-se à ambivalência, permite a dúvida, projeta um duplo olhar sobre o evento, multiplica os efeitos especulares. Logo, no fantástico, a estética do duplo desenvolve-se como tema e, muitas vezes, como arquitetura da obra. Depois de situar a origem desse tema no antigo Egito, Tritter aponta os diferentes desdobramentos em autores diversos: Chamisso, Hoffmann, Gautier, Poe, por exemplo. Diferencia esses desdobramentos do que chama de simulacro humano, referindo-se a marionetes, autômatos e robôs.

O que a leva a discutir o estatuto dos objetos no fantástico, a começar da animação da matéria, ilustrando sua reflexão com o conto “La cafetière” e “Le pied de momie” de Gautier, “La main” e “La main d’écorché” de Maupassant, “Le nez” de Gogol, dos quais diferencia dois tipos de animação: animação de objetos ou de partes de corpo humano. Passa, então, à discussão do objeto artístico na narrativa fantástica, sobretudo a escultura e a pintura, em torno do qual o texto com frequência se desenvolve, até mesmo como matéria de reflexão sobre a qualidade da obra de arte; não deixa de acrescentar que o quadro ou estátua constituem-se como matérias sujeitas à animação, o que, aliás, ocorre desde as narrativas góticas.

As questões relativas ao sonho, à loucura e ao medo são discutidas no capítulo sobre abordagens teóricas, sob o título de “Une tératologie de l’intériorité”, sendo pois tratadas como anomalias internas do indivíduo; na narrativa fantástica, o homem passa a ser governado por forças desconhecidas que o dominam de dentro de si próprio:

Le fantastique est un art de dévoilement spectaculaire de l’intériorité, où le désir prend l’inquiétant visage du vampire, la peur, celui du monstre ou du revenant, la folie, la figure du double. [...] Le fantastique pourrait se donner à lire comme une tératologie de l’intériorité. (TRITTER, 2001, p.25).

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Retoma, ainda, a história literária do fantástico indicando, como fontes do fantástico literário, o roman noir inglês ou romance gótico e a produção romântica alemã que, em seu programa de redescoberta das raízes populares da literatura alemã, privilegia o conto maravilhoso popular e artístico, este último mais ancorado no real.

Em relação aos precursores, antes de Le diable amoureux de Jacques Cazotte, de 1772, e de Le manuscrit trouvé à Saragosse de Jan Potocki, escritor polonês de expressão francesa, cuja publicação se inicia, por capítulos em 1797, Tritter aponta como o primeiro precursor do fantástico o texto La poupée de Jean Galli de Bibiena, de 1747: tido como conto libertino, essa narrativa apresenta aspectos do maravilhoso e do fantástico, já que, afirma a crítica (TRITTER, 2001), o sobrenatural ali instaurado é objeto de dúvida.

Da primeira geração que se dedicou à literatura fantástica, Tritter enumera os autores alemães, sempre seguindo a ordem cronológica, Achim Von Arnim, Adelbert Von Chamisso e E. T. A. Hoffmann; os escritores franceses Charles Nodier, Honoré de Balzac, Gérard de Nerval, Théophile Gautier e Prosper Mérimée; os russos Alexandre Pouchkine, Nicolai Gogol e Fiodor Dostoïevski; os escritores americanos Washington Irving, Nathaniel Hawthorne e Edgar Allan Poe. Da segunda geração, a partir de 1850, aponta, na França, Guy de Maupassant, Villiers de l’Isle Adam, Jean Lorrain, Erckmann-Chatrian; no domínio anglo-saxão, Robert Louis Stevenson, Oscar Wilde, Le Fanu e Bram Stocker, considerando, assim, como fantásticos, alguns textos góticos. Não deixa de lembrar, valendo-se dos textos críticos e histórico-literários anteriores, que o século XIX é considerado como o século do apogeu do fantástico.

Enfim, se Tritter (2001) não sugere novos elementos para a teoria do fantástico literário, apresenta os aspectos já existentes sob um novo olhar, inserindo-os nas diferentes abordagens que nomeiam os capítulos de seu estudo.

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Remo Ceserani: o fantástico como modalidade literária

Ao contrário de Valérie Tritter, Remo Ceserani (2006, p.7, aspas do autor) inicia seu livro, O fantástico, de 2004, com uma nova proposta ou um novo conceito – trata o fantástico como “modalidade” literária:

Tzvetan Todorov teve o grande mérito de “promover”, no final dos anos 60 – e de chamar a atenção dos estudiosos de todo o mundo, com uma operação crítica e historiográfica brilhante -, todo um filão literário intacto da modernidade, que é a literatura de modalidade fantástica.

Em nota esclarecedora a respeito dessa modalidade literária, Ceserani (2006, p.135, aspas do autor) aponta alguns estudos e livros sobre o fantástico anteriores a Todorov; entre outros, cita Castex, Schneider, Vax, Milner, Sartre, Penzoldt, Freud, indicando que

[...] não há dúvida de que o livro de Todorov, saído em um momento de forte renovação dos estudos literários, tenha sido recebido como “pioneiro”: primeiro exame sistemático e original de uma modalidade literária até então pouco estudada, ou relegada a segundo plano, como a literatura de gênero ou de consumo.

Mostra, ainda, que na trilha de Todorov houve uma grande efervescência de estudos em torno da literatura fantástica dos séculos XIX e XX, em muitos países, recuperando e redescobrindo uma tradição literária inteira.

Ao mencionar os problemas de ordem histórica, teórica e de classificação que surgiram em torno do fantástico, pergunta-se:

É correto considerar o fantástico, assim como se faz para outras formas de produção literária, como um modo específico e autônomo [...]? É correto defini-lo como uma nova modalidade do imaginário, criada no fim do século XVIII e utilizada para fornecer eficazes e sugestivas transcrições da experiência humana, em particular da experiência humana da modernidade? Se aceitarmos a colocação de

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Todorov, a resposta deveria ser positiva, ainda que ele não use nunca o termo “modo” (CESERANI, 2006, p.8).

Assinala haver duas tendências que se contrapõem para identificar o fantástico como um modo literário específico: uma que tende a reduzir o campo de ação do fantástico, identificando-o com um gênero literário historicamente limitado a alguns textos e escritores do século XIX, mais propriamente do romantismo europeu; outra, que, segundo Ceserani (2006, p.8-9), parece prevalecer, tende a ampliar

[...] o campo de ação do fantástico e a estendê-lo sem limites históricos a todo um setor da produção literária, no qual se encontra confusamente uma quantidade de outros modos, formas e gêneros, do romanesco ao fabuloso, da fantasy à ficção científica, do romance utópico àquele de terror, do gótico ao oculto, do apocalíptico ao meta-romance contemporâneo.

Ceserani parece discordar dessa tendência a que falta clareza contextual ao simplesmente fazer do fantástico o contrário do realista, termo este também difícil de ser definido; mas é evidente que a crítica tende a utilizar o termo “fantástico” como uma grande categoria geral, sinônimo de “irrealidade”, “ficção” ou “imaginário”.

Por outro lado, Ceserani chama a atenção para o fato de que a escolha de se fechar completamente na terminologia de Todorov é obrigada a combater fortes e generalizadas tendências, pois o fantástico descrito pelo crítico búlgaro-francês mistura-se com uma grande quantidade de outros produtos literários, até mesmo da literatura de consumo, prejudicando uma eficaz identidade. Situação que se complica no contexto do final do século XVIII e início do XIX por causa da “não pequena confusão” da história das palavras e das ideias nas várias áreas culturais. Atualmente, as ambiguidades semânticas, a inclinação para tornar as palavras vagas e genéricas, para esvaziá-las de significado incidiu também sobre a área semântica do “fantástico”, inflacionando o termo.

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E finaliza sua Introdução intitulada “Delimitação de uma modalidade do imaginário” indicando sua visão do fantástico, proveniente do exame de uma série de textos literários:

[...] o fantástico surge de preferência considerado não como um gênero, mas como um “modo” literário, que teve raízes históricas precisas e se situou historicamente em alguns gêneros e subgêneros, mas que pôde ser utilizado – e continua a ser, com maior ou menor evidência e capacidade criativa – em obras pertencentes a gêneros muito diversos. (CESERANI, 2006, p.12, grifo nosso).

No desenvolver de suas ideias, o crítico assinala ter Bessière (1974), em sua tentativa de definir o fantástico como “modo”, buscado inspirar-se na teoria das “formas simples” de André Jolles, aplicando a ideia de que o fantástico seria uma contra-forma. Ceserani conclui que, considerado como contra-forma ou mais precisamente como modo, o fantástico resulta ser uma presença muito forte e persistente na literatura da modernidade. Caracterizado como modo, o fantástico reafirma seu caráter movente, podendo manifestar-se em todos os gêneros ou subgêneros literários, como confirma Ceserani em nota em que aponta as reflexões de outros críticos da literatura fantástica: “A variedade de manifestações do fantástico no teatro moderno serve ainda mais para reforçar a convicção de que o fantástico deve ser considerado um modo literário e performativo mais do que um gênero.” (MURPHY, 1989 apud CESERANI, 2006, p.149, grifo do autor).

Considero muito pertinentes as duas observações de Ceserani (2006), tanto no que se refere à importância do livro de Todorov, quanto a que designa o fantástico como “modalidade” ou “modo” literário. Sobre o primeiro ponto, já se assinalou reiteradas vezes o mérito da teoria todoroviana; a respeito da opção por considerar o fantástico como uma modalidade literária, a partir de Vax (1965) e posteriormente de Bessière, reitero a mobilidade da escrita do fantástico, que o torna apto a manifestar-se e desenvolver-se nos gêneros épico, lírico e dramático.

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A seguir, Ceserani assinala as narrativas de Hoffmann, Gautier, Mérimée e Poe como textos exemplares do modo fantástico. Analisa “O homem da areia” (1817), de Hoffmann, primeiramente sob o viés das considerações de Freud a respeito do conto introduzindo o conceito de unheimlich, a questão da compulsão à repetição e do fenômeno do lapso; mostra também o mérito de Freud ter trazido à tona os temas do olho e da perspectiva da visão, bem como o da cisão do eu e da formação do duplo. Comenta, ainda, outras abordagens de orientação psicológica ou psicanalista, apontando três interpretações diferentes: a primeira que considera o conto de Hoffmann como a história de um trauma infantil e das fantasias obsessivas e repetitivas de um personagem fixado naquele trauma; a segunda, que interpreta o conto como sendo a história de um artista, de um poeta romântico, levado à loucura por ser obrigado a viver em um mundo banal e prosaico; e a terceira, que sustenta ser a história de um jovem cuja vitalidade, sensibilidade e aspirações de crescimento são sistematicamente frustradas pelos outros personagens principais. Ceserani, evidentemente, não deixa de indicar a crítica que se dedicou a aprofundar os aspectos técnico-narrativos do conto como: a representação do tempo, o uso dos pontos de vista múltiplos, a importância dos temas, a utilização da mise en abyme.

Entre os textos de Hoffmann que Ceserani trata como exemplares estão ainda “As aventuras da noite de São Silvestre” (1814-15) e “A casa deserta” (1817). No primeiro texto, além de apontar vários procedimentos que contribuem para criar a ambiguidade do fantástico – transformações ou metamorfoses interiores e exteriores dos personagens, jogos de espelhos entre aparência e realidade, atos falhos, experiências visionárias, percepções fantásticas do tempo e do espaço, metáforas que devem ser compreendidas literalmente – o crítico observa a presença do que constitui o primeiro “objeto mediador” na tradição da literatura fantástica; trata-se de um objeto que, com sua presença no texto, dá uma espécie de testemunho da veracidade dos eventos narrados – remetendo ao que Todorov denomina “fantástico-maravilhoso”

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e Finné “fantástico com explicação sobrenatural”. No segundo conto, é enfatizada a alternância entre a apresentação de elementos inexplicáveis, a hesitação no modo de explicá-los, a falsa explicação, a volta da hesitação, a introdução de novos elementos inexplicáveis e assim por diante.

Como admirador e propagador dos contos de Hoffmann na França, vários contos de Théophile Gautier são citados em seguida: “Onuphrius ou os vexames fantásticos de um admirador de Hoffmann” (1832), “Omphale – Uma história rococó” (1834), “A morta apaixonada” (1836) e “O pé da múmia” (1840). Ceserani detém-se nestes dois últimos contos sublinhando, no primeiro, o fato de o protagonista-narrador ser um monge, completamente fervoroso em suas crenças religiosas; nota ainda o tema do duplo e a oscilação entre o espaço sagrado e o profano, sem deixar de remeter à inspiração hoffmanianna da narrativa. Em “O pé da múmia” distingue a presença irredutível do objeto mediador, bem como a coligação do modo fantástico com o irônico-humorístico, já observado também em Hoffmann.

“A Vênus de Ille” (1837), de Prosper Mérimée - pertencente ao gosto do “fantástico arqueológico”, como “Arria Marcela”, de Gautier, que recuperam objetos ou cidades oriundos de um passado remoto - mostra-se como outro texto exemplar; na verdade, e como se viu, Todorov considera-o modelar para a ilustração do que denomina fantástico-puro. De fato, como mostra Ceserani (2006), toda a narração é conduzida pelo signo da ambiguidade; a cada evento aparentemente sobrenatural ligado à estátua de Vênus, o narrador mantém aberta a possibilidade de uma explicação racional.

Dois textos de Edgar Allan Poe são selecionados por Ceserani (2006), que não se abstém de apontar as formas novas do fantástico que o escritor norte-americano introduziu na França, bem como sua sensibilidade “gótica” e seu gosto pelo macabro. Em “Berenice” (1835) ressalta a presença do objeto mediador - os dentes da jovem -, bem como os sintomas do narrador-protagonista que pode ser visto como um louco monomaníaco; aponta ainda a presença do sonho e dos parágrafos em branco que se abrem como fendas

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na narração. Quanto ao conto “O retrato oval” (1842), que tem como tema a relação entre a vida e a morte, entremeada pela relação entre a vida e a arte, recupera o espaço gótico e, a meu ver, renova o tema (também gótico) do inanimado que se anima, pois ali os termos aparecem também invertidos, como se houvesse acontecido uma troca fatal, como se a arte se tivesse nutrido e sugado a vida do modelo.

Após esses eficientes comentários em torno de textos ficcionais exemplares, o autor de O fantástico passa a recuperar as definições de fantástico de diferentes teóricos e historiadores literários, já aqui suficientemente abordados em sua maioria. Nesse sentido, limitarei meus comentários a três pontos, a começar pelas considerações de Ceserani (2006, p.49-50) sobre a distinção que faz Todorov entre “maravilhoso”, “fantástico” e “estranho”, este último termo criticado até mesmo por Bellemin-Noël que parte explicitamente das reflexões de Todorov para organizar suas ideias:

Todorov, na realidade, mesmo não dizendo e dando a impressão de utilizar abstratas categorias retóricas (mas em parte também psicológicas), se apegava a distinções que circulavam entre os praticantes e os admiradores deste gênero de literatura, já a partir do século XIX.

Mostra ainda ser evidente que, ao formular sua definição, além de incorporar o “inquietante” de Freud, Todorov preocupou-se com o discurso literário e retórico, construindo um sistema com três termos bem delimitados e correlativos, que pudesse descrever e classificar a produção literária relativa ao fantástico. Na verdade, completa, Ceserani (2006, p.55, aspas do autor),

A vantagem da definição de Todorov é que ela se apresenta baseada não em dois elementos, mas em três. Isso permite a ele introduzir, no lugar do conceito de “ruptura” (Caillois) ou “conflito” (Vax), o conceito de “ambiguidade”, como característica essencial do texto, e de “incerteza” ou “hesitação” como experiência, inscrita no texto, do personagem; ou como reação, prevista pelo texto, do leitor.

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Outros dois pontos que não entraram em minha discussão anterior referem-se às descrições e definições do fantástico introduzidas por Hoffmann e Henry James em seus textos. Segundo Ceserani (2006), em “A casa deserta”, Hoffmann estabelece uma discussão entre três personagens, sob moldura introdutória e extra-narrativa, em torno da presença, na vida cotidiana, de fenômenos misteriosos, isto é, aludem a procedimentos próprios da narrativa fantástica contrapondo real e insólito. James, em seu prefácio a “O altar dos mortos” (publicado na coletânea Terminations, 1895), acentua as relações que devem ser estabelecidas, em cada bom conto, entre a consciência central de um personagem e a reação psicológica do leitor, antecedendo as reflexões de teóricos e críticos posteriores.

A seguir, Ceserani dedica-se a tratar dos procedimentos formais e sistemas temáticos do fantástico, pois

[...] o que o caracteriza, e o caracterizou particularmente no momento histórico em que esta nova modalidade literária apareceu em uma série de textos bastante homogêneos entre si, foi uma particular combinação, e um particular emprego de estratégias retóricas e narrativas, artifícios formais e núcleos temáticos. (CESERANI, 2006, p.67).

Primeiramente, o crítico elenca e discute os procedimentos narrativos e retóricos que considera recorrentes no modo fantástico, a começar pela posição de relevo dos procedimentos narrativos no próprio corpo da narração: o destaque, a manipulação consciente e paródica dos procedimentos narrativos, o gosto por colocar em relevo e explicitar todos os mecanismos da ficção. A seguir, reitera a frequência da narração em primeira pessoa e também de destinatários explícitos - seja por meio de cartas, de participantes em reunião ou, ainda, de ouvintes -, que ativam e autenticam ao máximo o texto ficcional, estimulando e facilitando o ato de identificação do leitor implícito com o leitor externo ao texto, exercendo a “sedução”, como quer Vax (1965). Outro procedimento diz respeito ao forte interesse pela capacidade

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projetiva e criativa da linguagem, isto é, às potencialidades criativas pelas quais as palavras podem criar uma nova e diversa realidade; é o caso da metáfora, identificada por Todorov como um dos geradores da literatura fantástica, quando utilizada em seu sentido literal: mesmo não sendo um aspecto exclusivo do fantástico, “[...] transformada em procedimento narrativo, a metáfora pode permitir aquelas repentinas e inquietantes passagens de limite e de fronteira que são características fundamentais da narrativa fantástica.”, assinala Ceserani (2006, p.71). Para assinalar o envolvimento do leitor: surpresa, terror, humor, o crítico recorre, a princípio, às considerações de Lovecraft em seu ensaio sobre as narrativas de horror; mas não deixa de apontar os elementos sutilmente humorísticos que acompanham o elemento de horror, sobretudo em Hoffmann e, acrescento, em Gautier; lembro ainda que nas narrativas de caráter místico apenas a surpresa se manifesta. Ao tratar de passagem de limite e de fronteira, Ceserani indica que nos textos fantásticos observa-se a passagem da dimensão do cotidiano, do familiar e do costumeiro para a do inexplicável e do perturbador; em várias ficções fantásticas vê-se, por exemplo, a passagem do limite da realidade para a dimensão do sonho, do pesadelo, da loucura. O objeto mediador, que já apontara, aparece relacionado ao procedimento de passagem de limite: um objeto que, com sua concreta inserção no texto, se torna o testemunho inequívoco do fato de que o personagem-protagonista ultrapassou, de fato, o limite da dimensão da realidade diegética. As elipses, também já indicadas anteriormente pelo crítico em suas análises, provocando a súbita abertura de espaços vazios, apresentam fortes efeitos de surpresa e incerteza; explicita a contribuição de Bessière (1974) na observação desse aspecto, quando ela aponta que o silêncio da narração nutre a proliferação das perguntas. Sobre o procedimento da teatralidade, o crítico assinala que o gosto da modalidade do fantástico pela técnica e prática teatral ocorre em decorrência do gosto pelo espetáculo, que vai até a fantasmagoria, e por uma necessidade de criar no leitor um efeito de ilusão, que termina por levar à duplicação dos elementos ou eventos representados. Decorrente da teatralidade, a figuratividade e

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iconicidade aparecem implícitos no modo fantástico mostrando o recurso a procedimentos que sublinham elementos gestuais e visuais, de aparição e colocação em cena, que se manifestam na evocação de visões espetaculares, como alucinações ou sonhos. Finalmente, a função narrativa do detalhe, com a consequente hierarquização dos diversos elementos constitutivos do texto, as desorientações e as mudanças de escala, os fragmentos de uma realidade variada e inconstante, conduz a significados que contribuem para a caracterização do modo fantástico.

A discussão a respeito dos sistemas temáticos recorrentes na literatura fantástica, estreitamente relacionada com os procedimentos formais, inicia-se com a determinação do ambiente preferido do fantástico: a noite, a escuridão, o mundo obscuro e as almas do outro mundo, isto é, o mundo noturno; de fato, as sombras favorecem não apenas a manifestação das aparições sobrenaturais ou insólitas, terrificantes ou místicas, como reforçam o mistério e a ambiguidade. O tema da vida dos mortos e de seu retorno constrói-se, no fantástico, interiorizando-se; nesse sentido, liga-se a novas explorações filosóficas e experimentações pseudocientíficas, apresentando raízes antropológicas e psicanalíticas. Ao tratar do indivíduo, sujeito forte da modernidade, Ceserani parte da individualidade burguesa para mostrar que, de um lado, existe o eu que programa a própria história e evolução segundo um percurso linear e unitário; de outro, há o eu que, ao contrário, se representa em suas próprias descontinuidades, nos saltos e mutações de desenvolvimento, nas rupturas, nas hesitações e nas dúvidas originando, além das tantas obras do século XIX (que configuram o eu dividido) e, particularmente as do modo fantástico: o monomaníaco, obsessivo, louco, duplicado em um próprio sósia, dividido em duas naturezas e dois caracteres contrastantes. Vem daí o tema da loucura, ligado aos problemas mentais de percepção; esse tema, do louco ou da loucura, se relacionaria, segundo Ceserani, ao tema do autômato, da persona dividida, e também ao do visionário, do conhecedor de monstros e fantasmas. O crítico aponta, a seguir, o tema do duplo (desdobramentos, gêmeos, sósias), fortemente

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interiorizado no modo fantástico e relacionado à vida da consciência, das suas fixações e projeções; esse tema, nos textos fantásticos, torna-se mais complexo e se enriquece por meio da aplicação dos motivos do retrato, do espelho, das muitas refrações da imagem humana, da sombra do indivíduo. A aparição do estranho, do monstruoso, do irreconhecível trata do estereótipo, presente na psicologia e no imaginário cultural, da cena da aparição repentina e inesperada de um estranho no espaço doméstico de uma casa, reservado e protegido; na literatura fantástica, o estereótipo torna-se um texto literário, manifestando-se uma forte interiorização da experiência em que o “eu” é agredido por uma súbita irrupção, como a do diabo para concluir seu pacto, da bestialidade do lobisomem ou do vampiro que suga a energia vital. O tema seguinte apontado pelo crítico intitula-se o Eros e as frustrações do amor romântico, caracterizando-se, sobretudo, por um forte elemento de auto-programação ou auto-afirmação do duplo, implicando questões como a alma gêmea, a íntima conexão entre alma e corpo, a união das histórias individuais dos dois amantes. Enfim, o tema do nada remete ao pessimismo e ao niilismo aos quais a loucura, com frequência, se junta na experiência dos protagonistas.

Ao tratar das raízes históricas do fantástico, Ceserani (2006, p.89) pondera: “É necessário pensar, no que se refere ao sistema literário [na literatura européia do século XIX], na fortíssima carga de renovação operada pela literatura romântica e à geral reestruturação dos gêneros literários ocorrida entre os séculos XVIII e XIX.”; logo a seguir, assinala o florescimento, na Inglaterra, do romance gótico, com seu gosto antigo e estetizante como pano de fundo histórico, um gosto ambiguamente iluminado pelas manifestações do sobrenatural, dos fenômenos como o mesmerismo e a parapsicologia, da presença de espíritos e fantasmas, a atração fascinante pelo mistério da maldade humana, das perversões dos instintos e do caráter, pelas peripécias libertinas, que ilustra a obra do Marquês de Sade; uma escritura do excesso, que prefere ainda o estilo e as ambientações elevadas e sublimes. Indica, porém, ter sido a Alemanha que reuniu e produziu a mais

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equilibrada síntese das várias tendências – romance gótico inglês, Schauerroman alemão, roman noir francês -, agindo como modelo por toda a Europa.

Assinala que no decorrer do século XIX, a produção literária fantástica conheceu articulações ulteriores, misturou-se a gêneros literários. Assim, a introdução, em um sistema, de um novo modo literário foi advertida claramente por grande parte dos gêneros líricos, narrativos e dramáticos então existentes e praticados. Observa, ainda, que o modo fantástico, introduzido no início do século XIX, demonstrou, mais do que outros modos e formas literárias, uma extraordinária vitalidade.

Para compreender em toda a sua abrangência a transformação, e o verdadeiro conflito, dos modelos culturais entre os séculos XVIII e XIX, é necessário fazer referência – além das mutações sociais e antropológicas que incidiram profundamente na mentalidade e na sensibilidade coletivas – às novas explorações filosóficas, científicas e paracientíficas, à importância extraordinária que assumiram os problemas da consciência, da verdade, do duvidoso.O fantástico operou, como todo o verdadeiro e grande modo literário, uma forte reconversão do imaginário, ensinou aos escritores caminhos novos para capturar significados e explorar experiências, forneceu novas estratégias representativas. Justamente porque se trata de um modo, e não simplesmente de um gênero literário, ele se caracteriza por um leque bastante amplo de procedimentos utilizados e por um bom número de temas tratados em outros modos e gêneros da literatura. (CESERANI, 2006, p.103).

Para provar essas reflexões e reiterar a ponderação de ser o fantástico um modo literário, Ceserani busca mostrar sua transformação na história literária, apresentando seu desenvolvimento ou seus encontros com o esteticismo e o realismo do final do século XIX, com o surrealismo e o neofantástico do século XX e com a pós-modernidade. Assim, na esteira das ponderações de Sartre, e depois de Bessière (1974), o crítico, em poucas páginas finais, e a partir das reflexões do crítico argentino

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Jaime Alazraki e de textos ficionais do autor, também argentino, Julio Cortázar medita sobre o que indica ser uma abertura para o absurdo. No mesmo sentido, apresenta breves considerações a respeito do escritor italiano Antonio Tabucchi e da experiência pós-moderna de revisitar modos ou gêneros literários do passado.

Michel Viegnes: fantástico e poesia

Com o instigante título L’envoûtante étrangeté. Le fantastique dans la poésie française, publicado em 2006, Michel Viegnes pergunta-se: devemos considerar como antinômicos os termos “poesia” e “fantástico”? Para o crítico, a resposta afirmativa aparece como uma imposição que, no entanto, não resiste à leitura de um corpus tão rico e vasto, o qual demonstra a existência de uma importante tendência que percorre a produção poética do romantismo até as portas do surrealismo. Reflete sobre a possibilidade de se considerar uma “poesia fantástica”, como se fosse um subgênero – a exemplo de “poesia épica -; mesmo assim, seria preciso considerar se esse sentido implicaria uma absorção completa do poema nessa categoria, ou apenas a atribuição ao poema de certos traços particulares. Seu estudo seria, então, um esforço de definição de poesia e de fantástico.

Assim, Viegnes (2006) toma como ponto de partida as considerações de Todorov sobre a exigência de um sentido literal, de um primeiro grau, que permite o pacto de leitura próprio do fantástico. Desse modo, aponta o crítico, vê-se um primeiro ponto de fricção possível entre fantástico e poesia, esta última, na esteira de Sartre, Jakobson, Rifaterre, sendo compreendida como anti-mimese, discurso de literalidade fingida, construído sobre a “ilusão referencial”: “Mais [...] le référent demeure visible à l’horizon, véritable “orient” du signe, à tel point que si la poïesis, en effet, se situe au-delà de la mimesis, une première lecture référentielle constitue un passage obligé vers cette lecture herméneutique [...]”. (VIEGNES, 2006, p.8-9, grifo do autor). A dinâmica comum à narrativa fantástica

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e ao poema apareceria ocupando “a terra de ninguém” entre o literal e o figurado, os dois tipos de discurso remetendo ao real e a seu duplo; os dois combateriam o funcionamento habitual da referência:

Première convergence: poésie et fantastique ne sont ni désolidarisés du monde référentiel, sous peine de tomber dans l’affabulation ludique ou le merveilleux pur [...] ni complices de l’illusion collective de la vie ordinaire. Ils sont, comme la Vénus d’Ille, des éléments de “turbulence” qui visent à troubler, à désordonner, à reconfigurer notre relation symbiotique avec les mots et les choses. [...] poésie et fantastique procèdent de ce principe d’inquiétude, qui ne se confond pas nécessairement avec la peur. (VIEGNES, 2006, p.9-10, aspas do autor).

O medo seria apenas uma faceta entre outras dessa inquietude, dessa perturbação hermenêutica; a gama de seus efeitos estende-se muito, do horror ao maravilhamento, mas o critério determinante é o de suplemento de sentido: a profundidade paradigmática de um querer-dizer inesgotável.

Se o fantástico, poético ou não, é uma contestação da modernidade positiva e racionalista, ele próprio é um modo de pensamento e de discurso profundamente moderno, isto é, instável, ambíguo, aberto. Viegnes (2006) retoma aqui a fórmula de Louis Vax (1965, p.163) para quem a literatura fantástica é “filha da descrença”. E aponta não ser surpreendente o fato de que quase todos os teóricos e historiadores do fantástico façam-no remontar ao final do século XVIII, aos pré-românticos: Sturm-und-Dränger e gothic novelists, mas também aos clássicos tardios, como Cazotte, que já fazem nascer, no crepúsculo das Luzes, um “frisson nouveau” -, “novo frêmito”, palavras que, como se sabe, foram utilizadas por Victor Hugo para aclamar os poemas de Baudelaire; dessa forma, Viegnes (2006) sutilmente aprimora a relação do fantástico com a poesia. Assim, continua o crítico, nascido de uma sobrevivência do noturno nos tempos aclarados, o fantástico persiste por todo o século XIX europeu, da Revolução Francesa à Primeira Guerra Mundial. No final do século XIX, o fantástico passa a empregar elementos relativos à medicina e à maquinaria, assinala Viegnes

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referindo-se à psicanálise e às novas descobertas científicas. Outra ramificação aparece, no início do século XX, com Kafka: o fantástico transforma-se em absurdo. Do lado dos poetas, dos surrealistas, é suficiente lembrar que Breton rejeita o fantástico em proveito do “maravilhoso”; este, procurado na vida cotidiana, como mostra Nadja, tem para os surrealistas, valor de experiência, enquanto o fantástico parece resultar de uma fabricação, opondo-se ao automatismo e ao acaso.

Ao desenvolver suas premissas teóricas, Viegnes (2006) inicia afirmando que a poesia fantástica, em primeiro lugar, é um sub-conjunto da poesia como gênero, e não do poético enquanto categoria geral. Assinala que

Le genre poétique n’est [...] ni une simple essence – la catégorie du “poétique” - ni la somme historique de ses attributs formels, mais se situe à l’intersection des deux, dans cet espace à la fois vaste et étroit où se réalise l’homogénéité du discours, la fusion d’une forme et d’un sens. Les textes relevant du genre poétique peuvent ainsi être distingués de tous les autres, par cette conception langagière bien particulière: d’un côté, des textes qui présuposent un ordre extérieur au langage, auquel ce dernier doit se conformer; de l’autre, des textes qui, sans pour autant désactiver la fonction référentielle, posent comme pacte de lecture que c’est au sein du langage lui-même que réside le principe d’intelligibilité du monde. (VIEGNES, 2006, p.20, grifo do autor).

O crítico esclarece que se trata, sobretudo, de uma “postura ilocutória” (a intenção comunicativa de execução vem associada ao significado de determinado enunciado): o gênero poético em todos os seus componentes, notadamente formais, procede diretamente do que se poderia chamar uma “postura órfica”, no sentido em que o compreende Mallarmé quando escreve a Verlaine ser o projeto que deverá incorporar-se a seu livro o de uma “explicação órfica da Terra”. Em outras palavras, o próprio da linguagem poética é de ser tensionada por uma necessidade interna rumo à revelação, ou à “explicação” das relações, além das da simples lógica, que constroem um universo. O que de modo algum exclui o mundo sensível.

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Viegnes (2006) insiste no fato de que o discurso poético não é isento de referencialidade, contrariamente a certos dogmas estruturalistas. A referência nunca é pura ilusão: o texto poético se refere ao exterior do texto, mas de modo diferente e em outro nível. Não é a pura presença das coisas que ele busca reproduzir, é o texto do mundo, compreendido como seu sentido íntimo e sua capacidade de revelar.

No século XIX, esclarece Viegnes (2006, p.25), essa “explicação órfica” projetada por Mallarmé revelava-se urgente, uma vez que, com a chegada na Europa do maquinismo, do capitalismo e da urbanização industrial, o mundo, aos olhos de muitos, mostrava-se ameaçado de desvalorização, de perda de significação, de constituir-se em um real degradado. E entre os numerosos sintomas dessa inquietação diante da modernidade racionalista, é preciso citar os textos poéticos que constituem verdadeiros gritos de alarme contra a ciência, ou mais exatamente contra o cientismo, completa Viegnes (2006). O desafio do espírito positivo já é sentido pelos espíritos mais lúcidos desde a primeira metade do século e a maioria dos poetas vê nisso uma ameaça mortal.

Uma questão que se coloca, de acordo com Viegnes (2006, p.44, grifo do autor), relacionada à compatibilidade da poesia lírica com o fantástico, é a pertinência deste último fora do campo narrativo. “A priori, étudier le fantastique, c’est se pencher sur des récits. La première raison à cela est d’ordre factuel et historique: parmi les textes qui relèvent de cette poétique particulière, la majorité sont des nouvelles ou des romans.” No sentido de opor-se à noção de o fantástico expressar-se apenas na narrativa, a reflexão de Viegnes (2006) opõe-se também a uma ideia central da teoria de Todorov: a de que a leitura poética constitui um obstáculo para o fantástico. Essa decisão arbitrária fundamenta-se, enfim, na adesão quase cega à tese da não-referencialidade da poesia, da qual, sugere Viegnes (2006) a partir das premissas acima, é necessário afastar-se. Aponta ainda que o raciocínio de Todorov apóia-se, pois, em uma base não questionada, que muito deve à definição saussuriana dos signos e ao estruturalismo.

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Insiste, mais uma vez, que o fantástico não é um gênero, mas uma categoria estética, como o grotesco, o trágico ou o cômico. Mais do que um conjunto de procedimentos ou de motivos, é um certo olhar, um prisma que serve para interrogar os limites do real; diríamos, assinala Viegnes (2006), que o fantástico é uma opção ao mesmo tempo estética e filosófica, uma disposição alternativa do pensamento e da sensibilidade. Afirma, então, que todo o problema nas diferentes teorias do fantástico refere-se a que todos os teóricos partem da oposição entre “real” e “irreal” como se o limite entre os dois campos conceituais fosse óbvio e as “fronteiras do real” se mostrassem definitivas. Porém, completa Viegnes (2006, p.49), o próprio Todorov que, “[...] malgré tous ses défauts, demeure l’un des textes fondateurs de la théorie du fantastique.”, afirma, no final de seu estudo: “Mas hoje, não se pode mais acreditar numa realidade imutável, externa, nem em uma literatura que não fosse senão a transcrição dessa realidade.” (TODOROV, 1975, p.176).

A análise do fantástico em literatura repousa, pois, com maior fequência, em um sistema de dualidades que o leitor é precisamente convidado a questionar, e mesmo a ultrapassar. Viegnes (2006) indica que Bessière (1974) é uma das raras estudiosas a mostrar que é próprio do fantástico atribuir a mesma inconsistência ao real e ao sobrenatural: em vez do jogo de dualidades – natural/sobrenatural, razão/ilusão, lucidez/loucura – há a neutralização de todas essas noções. Ao contrário do mito que é fundador de sentido, o fantástico perturba os pontos de referência e as interpretações; mas, ao mesmo tempo, ele abre o sentido e “cava” o real, colocando o leitor em estado de disponibilidade. É por essa razão que fantástico e poesia, longe de se excluírem, tendem a se encontrar, em uma luta comum contra o “desencanto do mundo”.

Ao discorrer sobre repetição, lirismo, angústia, Viegnes (2006) indica que o tipo de narrativa que se insere mais facilmente em um poema lírico é efetivamente a narrativa de caráter cíclico; ilustra seu pensamento com o poema de Musset (2013a, grifo nosso),

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“La nuit de décembre”, mostrando que é escandido em todo seu desenvolvimento pelas aparições periódicas da figura do duplo:

LE POÈTE

Du temps que j’étais écolier,Je restais un soir à veillerDans notre salle solitaire.Devant ma table vint s’asseoirUn pauvre enfant vêtu de noir,Qui me ressemblait comme un frère.[...]

Comme j’allais avoir quinze ansJe marchais un jour, à pas lents,Dans un bois, sur une bruyère.Au pied d’un arbre vint s’asseoirUn jeune homme vêtu de noir,Qui me ressemblait comme un frère. [...]

Partout où j’ai voulu dormir,Partout où j’ai voulu mourir,Partout où j’ai touché la terre,Sur ma route est venu s’asseoirUn malheureux vêtu de noir,Qui me ressemblait comme un frère. [...]

Mais tout à coup j’ai vu dans la nuit sombreUne forme glisser sans bruit.Sur mon rideau j’ai vu passer une ombre ;Elle vient s’asseoir sur mon lit.Qui donc es-tu, morne et pâle visage,Sombre portrait vêtu de noir ?Que me veux-tu, triste oiseau de passage ?Est-ce un vain rêve ? est-ce ma propre imageQue j’aperçois dans ce miroir ? [...]

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E o crítico completa, citando a frase que aparece em “Avatar”, de Théophile Gautier: “Quem vê seu duplo deve morrer” e quem morre a cada vez no poema de Musset é uma cristalização ou uma fase do “eu” – infância, adolescência, idade adulta, etc. Rito de passagem, ritmo de ascendência a um conhecimento de si mesmo mais completo, entrada em outro ciclo, e o processo permanece inacabado. De qualquer modo, sugere Viegnes (2006), esse texto pode razoavelmente inserir-se em uma antologia de histórias de doppelgänger, entre os clássicos dessa veia fantástica: Peter Schlemil de Chamisso, “Le Chevalier Double” de Gautier, “William Wilson” de Poe, O duplo de Dostoïevski, etc. Porém, não deixa de apontar que o único efeito análogo às surpresas dos grandes textos narrativos é a queda, que dá a palavra à VISION: “Ami, je suis la Solitude.” (MUSSET, 2013a), Essa revelação final induz uma ambivalência que encontra a hesitação cara a Todorov, ou seja, leva à irresolução entre duas leituras, causando eficazmente a perturbação.

Em seguida, Viegnes (2006) examina a questão de um fantástico não-narrativo, de um “efeito de fantástico”, que poderia ser alcançado por meio do discurso narrativo, uma vez que a descrição pode ser considerada como a expressão mediadora entre o lírico e o narrativo. Assim, a possibilidade de uma articulação complexa entre descrição, poesia e fantástico não diz respeito à inserção da estrutura do mundo no discurso, mas como algo próprio do discurso poético; trata-se de reinterpretar o universo referencial, de reconfigurá-lo segundo as grades hermenêuticas da linguagem. Em “La Fontaine du cimetière” de Gautier (2013a, grifo nosso) vê-se, como é natural nos poetas parnasianos, um local “assombrado” pela presença/ausência dos mortos:

A la morne Chartreuse, entre des murs de pierre, En place de jardin l’on voit un cimetière, Un cimetière nu comme un sillon fauché, Sans croix, sans monument, sans tertre qui se hausse : L’oubli couvre le nom, l’herbe couvre la fosse ; La mère ignorerait où son fils est couché.

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Les végétations maladives du cloître Seules sur ce terrain peuvent germer et croître, Dans l’humidité froide à l’ombre des longs murs ; Des morts abandonnés douces consolatrices, Les fleurs n’oseraient pas incliner leurs calices Sur le vague tombeau de ces dormeurs obscurs.

Au milieu, deux cyprès à la noire verdure Profilent tristement leur silhouette dure, Longs soupirs de feuillage élancés vers les cieux, Pendant que du bassin d’une avare fontaine Tombe en frange effilée une nappe incertaine,Comme des pleurs furtifs qui débordent des yeux.

Par les saints ossements des vieux moines filtrée, L’eau coule à flots si clairs dans la vasque éplorée, Que pour en boire un peu je m’approchai du bord...Dans le cristal glacé quand je trempai ma lèvre, Je me sentis saisi par un frisson de fièvre :Cette eau de diamant avait un goût de mort !

A topografia é, desde o primeiro verso, estabelecida; o artigo definido situa a Cartuxa no mundo pressuposto como real. O terceiro verso, “um cemitério nu como um campo ceifado”, em que a aparência do local é explicitada pela linguagem, revela sua inquietante singularidade, inclusive pelo verbo ceifar que remete à figura da Morte, grande ceifadora. O quarto verso mostra um cemitério, sem signos, “sem cruz, sem monumento, sem montes de terra”; logo, não se trata de um lugar de memória, mas de um recinto de morte absoluta. E eis, chama a atenção Viegnes (2006), um lugar que constitui por si só um “escândalo’, retomando o termo de Castex (1962) sobre o fantástico. O crítico continua sua reflexão mostrando que o cemitério, verdadeiro desafio ao esforço humano de imortalidade simbólica, se impregna de uma significância maléfica, que a descrição vai restituir por meio de uma transfiguração poética: “Tout le fantastique réside ici dans le va-et-vient

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entre projection affective sur les choses et malédiction intrinsèque des éléments du site” (VIEGNES, 2006, p.65). Remetendo à terceira estrofe, salienta que a verdura dos ciprestes é “negra” e a fonte “avara” em água: dois atributos objetivos, mas que são imediatamente incorporados em uma rede interpretativa; árvores e fonte são quase animados pela imagem dos suspiros e prantos, o que embaralha a fronteira do mundo e da consciência; o mundo é pleno desse “eu” solipsista. No último verso do poema, Viegnes (2006) considera que o ponto de exclamação final aproxima o enunciado poético dos efeitos de queda da narrativa fantástica; o “gosto de morte” vem confirmar as virtualidades de sentido trazidas pela descrição: o local está saturado de morte e até mesmo a fonte, que nos mitos é associada sobretudo à vida, mostra-se como uma fonte fúnebre. O cemitério é, literalmente, maldito; e é a linguagem que faz dele um espaço maléfico. O discurso poético, pelos procedimentos que lhe são próprios, difunde o sentimento de morte; as próprias flores são ao mesmo tempo presentes e ausentes desse quadro, à maneira dos espectros – mencionadas virtualmente.

Retomando suas reflexões, Viegnes (2006) passa a abordar a questão da analogia; sabe-se, diz ele, que o principal argumento contra a possibilidade de uma poesia fantástica é o pretenso fechamento do poema na esfera semântica, em particular na dimensão tropológica da linguagem. Segundo a maioria das teorias clássicas do tropo, este, e particularmente a metáfora, tropo-rei na poesia, abole o sentido literal para deixar subsistir apenas o figurado. Nos teóricos mais recentes, a condição sine qua non da abolição do sentido literal é atenuada: considera-se a possibilidade de uma “dupla leitura”; a metáfora articularia, então, a poesia e o fantástico, fazendo funcionar o paradigma central do pensamento mágico, a analogia. Assim, a utilização desses tropos e figuras, na poesia, só pode estar a serviço do fantástico se, no pacto de leitura próprio a tal texto ou tal autor, são apresentadas como que chaves hermenêuticas revelando os entrelaçamentos da universal analogia. Ao considerar a comparação, vê-se que o “como” tem um papel a

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desempenhar na “malha simpática” ou analógica das palavras e das coisas; em alguns textos, metáfora e comparação aproximam-se a ponto de equivaler-se.

Se Baudelaire, Catulle Mendès, Mallarmé, entre outros poetas contribuem para a reflexão sobre a analogia, Viegnes aponta que, no final do século, cabe a Villiers de l’Isle Adam oferecer o modelo desse “provocador de perturbação”, desse “perturbador do sentido” que convida – ainda não ao niilismo ou ao absurdo – mas a uma busca do reverso do cenário – função inquietadora, despertadora do mistério, partilhada pela poesia como gênero e pelo fantástico como categoria geral. Porém, a inquietude, em poesia, pode ser paradoxalmente positiva. Por isso, explica Viegnes a respeito do título de seu livro, de preferência à “inquietante estranheza”, definirá a poesia fantástica como o lugar de uma “sedutora estranheza”, o adjetivo “envoûtante” dando conta melhor da ambivalência e ambiguidade dessa estranheza, que inquieta e exalta ao mesmo tempo.

Conclui provisoriamente assinalando um último ponto em comum entre fantástico e poesia: assim como o fantástico implica uma necessária dilatação de sentido, um “excesso” irredutível, no poema sempre resta uma parte inexplicável; porque é poético, um texto recusa-se à exaustividade do comentário.

A conduta interpretativa procede do desejo de explorar mais longe esse horizonte de sentido, que guarda tanto quanto revela, fazendo da busca hermenêutica uma busca infinita. Porque essa busca hermenêutica se aplica igualmente à realidade, é que o fantástico pode habitar o poema, não como a “louca da casa”, mas antes como um gênio astuto que nos obriga a duvidar de nossas interpretações, a prolongá-las, a reconsiderá-las.

Os motivos utilizados pelos poetas e ficcionistas concorrem para a aproximação entre a poesia e o fantástico; Viegnes (2006) detém-se nos seguintes motivos: quimeras, sombras, lugares, trevas e vozes. Em relação à quimera, o crítico assinala uma relação paradoxal com o fantástico e mais propriamente com a poesia fantástica, uma vez que é um motivo mitológico que parece fechar o texto na

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categoria do mito, da lenda, referindo-se a um mundo outro, aquele que corresponde ao maravilhoso. No entanto, aponta Viegnes, a quimera, de todos os monstros antigos, é o que mais frequenta a obra dos poetas do século XIX: Nerval, Hugo, Gautier, Baudelaire, Banville. E completa mostrando que, com efeito, à quimera corresponde um “quimerismo” (termo cunhado por Hugo), isto é, uma reflexão sobre a natureza própria do sonho e da inspiração, que constitui, indiretamente, uma espécie de arte poética, cujos principais eixos tocam o âmago da noção de poesia fantástica. Parece haver um consenso entre Hugo, Gautier, Banville e Baudelaire: se a inspiração poética constitui abertura às manifestações interiores que reconfiguram o real, nem por isso é um “desregramento de todos os sentidos”. O processo deve ser controlado; o logos poético deve impor à matéria prima do sonho uma ordem inteligível, sob pena de perder-se no incomunicável. Percebe-se, assim, pela razão dos contrários, o que é uma arte fantástica que questiona a noção de realidade: o artista permanece um “alucinado que raciocina”, como o narrador de “Le Horla”, de Maupassant. Todo poeta será, então, “filho da quimera”, e o “quimerismo” será a abertura à dimensão noturna, dionisíaca, da inspiração. O quimerismo majoritário que preside à estética poético-fantástica consiste em um misto de delírio e razão, em uma loucura lúcida e controlada, destinada a aceder a uma realidade mais ampla, sem por tanto renegar a “realidade menor” da vida ordinária.

Sombras, espectros, fantasmas, almas do outro mundo: termos quase sinônimos, que designam a manifestação do espírito de um morto, e que constitui outro motivo desenvolvido por Viegnes (2006). Todas essas manifestações de assombro, em sua diversidade, têm um critério comum: a relação particular com o espaço-tempo. Uma alma que volta do outro mundo (revenant), como indicam os próprios termos que a denominam, já indica um passado que contamina o presente, a presença anormal de um ausente em determinado espaço. No século XIX, particularmente na poesia, o fantasma assemelha-se, muitas vezes, à sombra antiga do ser desencarnado que propaga um melancolia sutil e etérea, feita

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sobretudo de nostalgia da existência carnal. Por esse aspecto, torna-se facilmente uma alegoria da obsessão em relação ao tempo e ao esvaecimento das coisas, que constitui um dos temas privilegiados da poesia ocidental. A partir daí, Viegnes (2006) sugere, levando em conta as inevitáveis exceções, a ocorrência de uma diferença fundamental entre os tratamentos poéticos e narrativos do fenômeno espectral, o que leva a pensar que a poesia não tomou simplesmente emprestada essa temática dos gêneros narrativos: a diferença genérica corresponderia a uma diferença fundamental de referentes simbólicos. A narrativa implica um drama, uma crise, que será ou não resolvida: inspira terror, aponta ainda o crítico, indicando que vários contos de Maupassant o atestam, entre os quais a narrativa intitulada “Apparition”. Na poesia, ao contrário, o espectro é, com maior frequência, sedutor e antes evocado do que exorcizado. As manifestações de seres desaparecidos podem ser lidas como a objetivação dessas criaturas interiores que nascem da memória e do fantasma (do inconsciente). Ilustra esse procedimento com a poesia de Gautier (2013b, grifo nosso), “Lamento”:

Connaissez-vous la blanche tombe Où flotte avec un son plaintif L’ombre d’un if ?Sur l’if, une pâle colombe,Triste et seule, au soleil couchant,Chante son chant. [...]

Sur les ailes de la musique On sent lentement revenir Un souvenir ;Une ombre de forme angélique Passe dans un rayon tremblant,En voile blanc.

Essas duas estrofes em que aparece a tríade morte-amor-memória (ou morte-mulher- memória) são suficientes para mostrar tanto a lembrança, quanto a sombra sedutora e angélica; estamos, de acordo com Viegnes (2006, p.137), em uma “sinfonia em

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branco maior”, em que o autor associa as principais obsessões do desaparecimento – seja das mulheres, do amor ou da beleza – em um feixe de imagens herdadas da tradição gótica, embora o conjunto permaneça banhado em certa suavidade elegíaca.

No mesmo sentido, considerando-se as seis estrofes que compõem o poema, percebe-se um singular efeito alucinatório, que evoca, faz aparecer. A menção da lembrança, recordação ou memória que “se sente lentamente retornar”, como explicita o segundo verso da segunda estrofe aqui transcrita, mantém a ambiguidade propícia à abertura de sentido que, como afirma Viegnes (2006, p.139), se mostra como a verdadeira marca do fantástico, melhor ainda do que a hesitação todoroviana; esse “fantasma de lânguidas poses” (Et le fantôme aux molles poses) seria uma manifestação do Além ou a presença exacerbada da recordação? Eterno equívoco do espectro: forma do outro ou forma do eu, projeção alucinada da memória e, muitas vezes, da consciência culpada?, propõe o crítico, concluindo que o poema permite não escolher.

Para mostrar essa evocação em Baudelaire, Viegnes serve-se do poema “La servante au grand coeur” (BAUDELAIRE, 1964), fantasma evocado pelo amor filial. Como a jovem morta do poema de Gautier que se lamenta do infortúnio de ser esquecida, Mariette, a criada de bom coração, lastima-se da indiferença daqueles a quem serviu e amou ao longo de sua humilde existência. A imagem baudeleriana da sombra que se senta em uma poltrona junto da lareira, retomando o lugar que era seu durante sua vida corporal, é retomada por Mallarmé (2013a) no poema sem título, com a dedicatória Pour votre chère morte, un ami. Em nota elucidativa, Viegnes (2006) assinala que o tema espectral não poderia deixar de aparecer nos dois irmãos espirituais de Edgar Poe. Se Baudelaire traduziu a maioria das obras em prosa, Mallarmé traduziu uma parte da obra em verso do “poeta maldito” americano. “To Helen” (À Hélène) põe em cena uma aparição feminina, cujos olhos estabelecem no locutor uma sedução tão definitiva quanto ambígua:

Le lustre perlé de la lune s’en alla: les bancs de mousse et le méandre des sentiers, les fleurs heureuses et les gémissants arbres ne se firent

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plus voir: des roses mêmes l’odeur mourut dans les bras des airs adorateurs. Tout, – tout expira, sauf toi, sauf moins que toi, sauf seulement la divine lumière en tes yeux, sauf rien que l’âme en tes yeux levés.[...].Mais voici qu’à la fin la chère Diane plongea hors de la vue dans la couche occidentale d’un nuage de foudre: et toi, fantôme, parmi le sépulcre des arbres, te glissas au loin. Tes yeux seulement demeurèrent. Ils ne voulurent pas partir; – ils ne sont jamais partis encore! (POE, 2013).

Como sugere essa pequena parte da tradução em prosa de Mallarmé, o poema todo é construído sobre uma oposição entre signos vivos da memória e signos mortos ou efêmeros.

De Philotée O’Neddy (1968 apud VIEGNES, 2006, p.149, grifo nosso) crítico cita o poema com o significativo título de “Post-scriptum”, cujo tema espectral aparece ligado à própria linguagem:

À peine avais-je ainsi pensé – qu’il me sembla...Ah! Personne, pourtant, personne n’était là!Il me sembla – charmé de deuil – navré de joie – Entendre le frisson d’un vêtement de soie –Et le soupir d’un sein gonflé d’émotion.

Nesses versos, o contrato fantástico todoroviano é perfeitamente respeitado, uma vez que a presença espectral evocada não é claramente afirmada; a ambiguidade permanece, o que abre um grande leque de interpretações.

O tema do espectro que se surpreende por não poder interagir com os vivos, aponta Viegnes (2006), foi bastante explorado em obras da literatura e do cinema fantásticos; assinala, então, que nos poemas de Hugo sobre o luto por sua filha Léopoldine, dá-se o motivo inverso: o pai inconsolado tem uma aguda consciência de seu estado de morto-vivo em um “entre-dois” mundos, em um território de sombras.

Já em poemas de Théodore de Banville, como “Le cher fantôme”, há uma mescla de sublime e familiar, em que a aparição vem, de algum modo, transfigurar o local da felicidade passada e o

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transforma em um locus mysticus, isto é, empreende uma sublimação mística.

Conclui-se, com Viegnes (2006), que o fantasma frequenta, ou assombra, toda uma face do edifício poético do século XIX; a ideia do espectro, não importam as crenças efetivas sobre o Além, possui uma aura de verossimilhança poética, do romantismo até o final do século, e mesmo após. Acrescenta, ainda, o crítico, que o fantasma como tropo está presente na literatura desde séculos e acompanha-se de vários efeitos particulares: duplo, máscara, impressão de estranheza, obsessão, telepatia, cripta e melancolia.

A obsessão diz respeito a um fantasma ligado ao tempo; mas ela está igualmente ligada ao espaço, à ideia de lugar. O mundo, em seu todo, não poderia, efetivamente, ser assombrado: apenas certos lugares, bem específicos têm esse privilégio, indica o crítico, acrescentando que, em poesia, não se trata de um privilégio negativo. O lugar deve ser visto como a unidade de sentido do espaço, o que implica possuir uma relativa completude, mantendo uma relação simbólica e vertical com o mundo, do qual é a imagem reduzida. Como unidade de sentido do espaço, o lugar apresenta uma conexão com a língua, pois a magia do lugar vem daquilo que é sempre dito, ou é susceptível de sê-lo.

Fundar “lugares” de sentido, assinala Viegnes (2006), que não sejam “lugares comuns”: esta ambição não é privilégio da poesia, mas esta, enquanto operação relativa à linguagem, é particularmente apta para isso. O mistério é excesso de sentido, e o lugar assombrado assemelha-se à parte manifesta de um iceberg. Não importa quão angustiante seja, a experiência de tal lugar deixa perceber que o espaço tem prolongamentos no invisível, que um Além absoluto aflora no “aqui”, e que o local se abre para escuras imensidões. Definir o lugar assombrado não é, evidentemente, um empreendimento racional; nas concepções tradicionais, certos locais naturais constituem a soleira do mundo; em um sentido psicológico, o lugar assombrado é aquele que inspira o sentimento de uma presença: da morte, de pessoas e acontecimentos pertencentes ao passado, mas cuja marca permanece. A manifestação de um espectro, no sentido clássico,

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permanece fortemente dependente de um lugar que foi o palco de sua existência passada.

Na maioria das vezes, conclui Viegnes (2006), a obsessão de um lugar é apresentada pelo poema como objetiva, mesmo que permita, evidentemente, ser interpretada como um fenômeno psíquico.

Detendo-se em lugares específicos, o crítico indica que, de todos os cômodos de uma casa ou de um apartamento, o quarto é o mais evocativo de intimidade e idiossincrasia: é o espaço mais pessoal, refúgio, santuário e museu de nosso universo interior. Assinala que todo quarto, em certo sentido, é duplo: ao mesmo tempo lugar de vida e camera obscura dos sonhos, meditações e tormentos solitários. Lugar de vida principalmente noturna. “La chambre double”, de Baudelaire, apresenta-se inicialmente como uma utopia luminosa, para em seguida revelar um sentido que tende para o funesto: esse quarto no qual o sujeito que se expressa se sente circundado de mistério, de silêncio, de paz e de perfumes é um paraíso artificial; o frasco de láudano mencionado confirma a origem duvidosa dessa beatitude. Logo, o quarto é “duplo”, ou seja, enganador, mentiroso, e acaba por revelar sua verdadeira face – um pardieiro -, quando os efeitos do narcótico se dissipam. Viegnes não deixa de assinalar que é possível considerar esse poema como um esboço de uma tendência que se confirmará na literatura de fim de século, quando não serão mais os monstros a assombrar o mundo, mas essa dura realidade do mundo que obsedará os personagens.

Os semas da assombração (ou da obsessão), benéficos ou, e sobretudo, maléficos, que se centram no quarto estão presentes no poema “O corvo”, de Edgar A. Poe (1965a, p.901-902, grifo nosso), que também perfaz a tríade morte-mulher-memória:

Em certo dia, à hora, à horaDa meia noite que apavora,Eu caindo de sono e exausto de fadiga,Ao pé de muita lauda antiga,De uma velha doutrina, agora morta,Ia pensando, quando ouvi à portaDo meu quarto um soar devagarinho

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E disse estas palavras tais:“É alguém que me bate à porta de mansinho; Há de ser isso e nada mais.”

Ah! Bem me lembro! Bem me lembro Era no glacial dezembro;Cada brasa do lar sobre o chão refletiaA sua última agonia. Eu, ansioso pelo sol, buscavaSacar daqueles livros que estudavaRepouso (em vão!) á dor esmagadoraDestas saudades imortaisPela que ora nos céus anjos chamam Lenora,E que ninguém chamará jamais.

E o rumor triste, vago, brandoDas cortinas ia acordandoDentro em meu coração um rumor não sabido [...]

Com longo olhar escruto a sombra,Que me amedronta, que me assombra [...]

Observa-se que o “eu” lírico está só no quarto, à meia-noite que apavora; este verbo vem juntar-se aos últimos transcritos – amedronta e assombra; o substantivo sombra, por sua vez compõe o ambiente do quarto, completado por ruídos qualificados ora positivamente – devagarinho, brando -, ora de modo negativo – triste –, ou ainda ambíguo – vago. As palavras que explicitam a tríade morte-amor-memória já aparecem nos poucos versos citados, reforçadas pelo vocábulo “jamais”, retomado ao longo do texto, contrastando com a sugestão da presença.

As ruínas, grande tópos romântico, são igualmente lugares privilegiados pela assombração, sendo elas próprias, em certo sentido, espectros de edifícios, propícios ao devaneio sobre o passado e a morte. Viegnes mostra, para ilustrar, a fascinação romântica pela idade média, que inspirou o jovem Musset (2013b,

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grifo nosso) a conferir, em “Stances”, uma forma de vida a ruínas dos Pirineus:

Que j’aime à voir, dans la valléeDésolée,

Se lever comme un mausoléeLes quatre ailes d’un noir moutier! [...]

Vieilles églises décharnées,Maigres et tristes monuments,Vous que le temps n’a pu dissoudre,

Ni la foudre,De quelques grands monts mis en poudreN’êtes-vous pas les ossements?J’aime vos tours à tête grise,

Où se briseL’éclair qui passe avec la brise,J’aime vos profonds escaliersQui, tournoyant dans les entrailles

Des murailles [...]

Os vocábulos que apontam as ruínas são claros: negro mosteiro, velhas igrejas descarnadas, magros e tristes monumentos, profundas escadas. Para completar, Viegnes (2006) enfatiza a palavra “asas”, na primeira estrofe, que relaciona a arquitetura à vida; as ruínas, com efeito, transformam-se em carcaças de misteriosas formas orgânicas, entre o reino mineral e o reino vegetal. Essa animalização do mineral acaba por conferir uma verossimilhança poética ao “espírito do lugar”. As escadas que “volteiam até as entranhas das muralhas” ligam a terra e o Além, o passado e o presente.

Além das ruínas, Viegnes (2006) reflete sobre os cemitérios, ponderando que, logicamente, o espectro os assombra; o próprio túmulo materializa a intersecção entre o “aqui” e o Além, o passado e o presente, como a escadaria do poema de Musset. Algumas vezes, esse “lugar de memória” é interiorizado; o horror do mal-estar transforma sensibilidade e memória em um espaço macabro. Outras vezes, a relação entre a alma e o lugar origina-se mais da

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correspondência espiritual, se o cemitério pertence ao mundo referencial; entretanto, por uma lógica propriamente poética, o elo com o cemitério passa pela linguagem e, muitas vezes, ele mostra-se assombrado, carregado da presença dos mortos.

Se Hugo designa o cemitério pela perífrase “cidade dos túmulos” (ville des tombes), em “Horror”, é possível, ao contrário, que uma cidade inteira se transforme em necrópole. O fantasma da cidade morta está no coração do imaginário do século XIX, indica Viegnes (2006); os românticos, embriagados com os poderes do verbo, sentem-se capazes de fazer reviver uma cidade do passado: Hugo em relação a Paris medieval, Gautier a Pompéia, Aloysius Bertrand a Dijon dos últimos duques de Borgonha. Na época do Simbolismo, porém, continua o crítico, essa fé no poder evocativo da linguagem é abalada; não mais se trata, no ímpeto da ação criadora, de fazer viver ou reviver os mundos mortos, sendo seu encanto justamente que eles não mais aqui estejam, ou que subsistam em um no man’s land entre presença e ausência. Toda a Europa fim-de-século, de fato, comunga uma mesma fascinação decadentista por essas cidades que exalam o odor da morte. Mas pode ser também uma cidade de fábricas e fumaça, epopéia da modernidade urbana, como em Rimbaud, no qual a cidade industrial, longe de ser exorcizada e desencantada, torna-se o lugar de uma nova obsessão, em que os próprios espectros são transfigurados.

O lugar natural, a natureza – que pode ser encontrada no espaço urbano sob a forma de parque – é também suscetível de obsessão, sobretudo quando é um espaço que escapa da marca humana e que testemunha certa virgindade. É o caso dos lugares altos (colinas), das profundezas obscuras (abismos, grutas, fundos submarinhos), do deserto, do mar e das florestas, estas particularmente permeáveis às presenças invisíveis. Historicamente, indica Viegnes (2006), a floresta representa a parte obscura do mundo, o território caótico que escapa à ordem humana; assinala, ainda, que a psicanálise interpreta a floresta como figuração do inconsciente, alimentando fobias, pois é o lugar que os contos iniciáticos povoavam de espectros, de feiticeiros, anões e monstros. Indica o poema “Le

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Satyre”, de La legende des siècles, para ilustrar como Hugo (1967 apud VIEGNES, 2006, p.188) é receptível ao meio silvestre: “Les forêts sont le lieu lugubre; la terreur, /Noire, y résiste même au matin [...]”.

As trevas constituem outro motivo discutido por Viegnes (2006) ao apontar que o romantismo noir, a corrente frenética e o movimento decadente construíram uma verdadeira poética do horror ao longo do século XIX. Mostra que Lovecraft já distinguia duas vertentes na literatura fantástica: a que designa como “literatura de horror” e a que qualifica de “fantástico”, esta última definindo-se por seu caráter causador de ansiedade, de angústia. Todas as distinções se operariam, então, segundo os diferentes graus do medo: a “literatura de horror” estaria relacionada com o pavor e a repulsa física, enquanto a “literatura de medo cósmico” despertaria um medo atávico e absoluto diante do desconhecido. Assim, a experiência do horrível, do abjeto, do ignóbil ultrapassa a antítese conhecido/desconhecido, natural/sobrenatural. O horror que o século XIX – considerando-se Sade como precursor – se esforça por tornar presente é precisamente um horror não assimilável, logo, que permanece sempre na alteridade, revelando-se, no final das contas, presente no íntimo do sujeito. Tem-se, pois, um duplo movimento: é o real em si, rebelde a qualquer exigência humana, tanto espiritual, quanto moral; mas é também essa natureza profunda das coisas que se insinua no “eu”, que mina do interior as construções seguras, estáveis e simétricas, que se projeta sobre o mundo circundante do qual se depende. Nesse sentido, a representação do horrível configura-se como um esforço para exorcizar esse “medo cósmico”, apontado por Lovecraft, que provém do desfalecimento da razão diante de uma realidade muito violenta. Além do crime, o horror procede das fendas ontológicas da existência, através das quais a morte, o sofrimento, a aberração se insinuam permanentemente no âmago da natureza e dos viventes. A imagem do verme roendo as carnes é uma imagem obsedante na poesia, podendo ser encontrada, à guisa de ilustração, em Hugo em “L’épopée du ver” e em uma passagem de “Cimetière Marin”, de Valéry.

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As exceções da vida humana e da natureza, o que Viegnes (2006) denomina a vida deformada, desdobram-se nos motivos da loucura, na desfiguração (vampiro, corcunda, monstro), na doença contagiosa, na necrose – horrores inerentes à vida orgânica; horror ainda mais completo uma vez que as imagens, em poemas de Baudelaire ou nos Chants de Lautréamont, por exemplo, estão na confluência da realidade e do símbolo, da arte e da ciência. A deformação estende-se ao bestiário de pesadelo: Leconte de Lisle, Baudelaire, Hugo, Lautréamont; neste último, o bestiário tenebroso dos Chants de Maldoror reúne tubarão, aranha, buldogue, hiena, condor, piolho, polvo. O corvo de Poe, vindo das “noturnas plagas” (POE, 1965a, p.902), é ao mesmo tempo cósmico, infernal e divino: emissário da morte, do mundo das trevas, é também mensageiro de uma verdade superior, convidando o homem a submeter-se aos decretos do destino. No ser humano, a deformação pode ser moral, considerando-se o mal que o homem faz: horror do qual só o homem é capaz. Esse caráter maléfico, tenebroso e quase satânico de certos seres já se manifesta, muitas vezes, pela aparência física e pela própria presença que exala a maldade, como em poemas dos “Tableaux parisiens”, de Baudelaire; em outros, e “Eviradnus” de Hugo o ilustra, a perversidade e o mal aparecem ligados ao poder dos déspotas. O tópos da cidade como abismo do vício, por sua vez, a partir do Antigo Testamento, enriquece-se com uma violência imaginária cada vez mais espetacular, em que o spleen é o vício supremo. O Tédio é o próprio princípio do mal: o homem é cruel, perverso, sádico por tédio, isto é, por ódio, e mais particularmente por ódio de si.

Mas todas as formas naturais e morais do mal conduzem, sob a perspectiva de uma revolta absoluta, a um Mal divino, assinala Viegnes (2006), remetendo ao demonismo e à revolta metafísica. Revolta e acusação, mal metafísico incurável, que acabam por estabelecer um evangelho às avessas como o fazem o Maldoror de Lautréamont ou o Satã de Baudelaire, originando imagens de pesadelo.

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Ao longo do século XIX, a voz humana – outro motivo apontado por Viegnes (2006) – recobra um prestígio que havia perdido desde a Idade Média e o Renascimento. A poesia conduz a um ponto de acuidade extrema os recursos da escritura, da linguagem e da palavra; o poema é uma espécie de voz “em si”, ao mesmo tempo universal e pessoal; e desde sua origem, o discurso poético é concebido para ser ouvido, para ressoar na vibração viva da voz humana. A voz exprime, no sentido próprio como no figurado, a intimidade do sujeito, e esta permanece obsedada pela “metafísica da presença”, reflete Viegnes (2006): ressonância mesmo do sujeito, sua música envolve o silêncio e o mistério do santuário interior. Por sua textura musical, a voz junta-se a um imaginário da audição já manifestado na era romântica, mas que continua se impondo nos admiradores de Wagner e Mallarmé: ao paradigma visual que caracteriza a poética parnasiana, os simbolistas preferem o paradigma musical, mais especificamente órfico, atribuindo à audição o poder de captar realidades mais sutis do que aquelas percebidas pelo olhos. A poesia do século XIX põe em cena os poderes da voz ao associá-los ao esquema órfico, sob dois aspectos: a comunicação com os mortos e com a alma do mundo, que se vocaliza e se faz ouvir pela consciência poética. Ao lado da voz, Viegnes considera ainda o motivo do silêncio divino, extinção da voz metafísica; mas, ao considerar a poesia como voz, ela se torna eco da voz divina. Leva em conta, ainda, a voz da natureza que permite ouvir o mundo: a voz exterior do mundo entra em ressonância no âmago do “eu” lírico, a imanência reconcilia objeto e sujeito. Voz da natureza, voz dos mortos: a relação não mais aparece no imaginário contemporâneo, tão evidentemente quanto na época romântica. Lamartine (1973 apud VIEGNES, 2006, p.251, grifo nosso) ilustrou essa osmose entre almas mortas e alma do mundo em “Pensée des morts”:

Ah! quand les vents de l’automneSifflent dans les rameaux morts,Quand le brin d’herbe frissonne, Quand le pin rend ses accords,Quand la cloche des ténèbres

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Balance sesglas funèbres,La nuit, à travers les bois, À chaque vent qui s’élève,À chaque flot sur la grève,Je dis: “N’es-tu pas leur voix?”

O último verso refere-se à voz dos mortos, trazida pela natureza, pela alma do mundo, pela memória. Em sua origem, a função poética relaciona-se ao “dever da lembrança”; ora, a memória, ou lembrança, é uma faculdade mística, em muitas culturas; lembrar-se, é fazer voltar à existência um ser, um acontecimento; se é um evento sagrado, a lembrança é um recomeço, como já demonstrou Eliade (1969). A função poética está, pois, ligada, pela operação da memória que ativa, à evocação dos mortos. Mallarmé (2013b, grifo nosso) faz reviver Ettie Yapp em seu poema “Apparition”

La lune s’attristait. Des séraphins en pleurs Rêvant, l’archet aux doigts, dans le calme des fleurs [...]- C’était le jour béni de ton premier baiser. Ma songerie aimant à me martyriser S’enivrait savamment du parfum de tristesse Que même sans regret et sans déboire laisse La cueillaison d’un Rêve au coeur qui l’a cueilli. J’errais donc, l’oeil rivé sur le pavé vieilli Quand avec du soleil aux cheveux, dans la rue Et dans le soir, tu m’es en riant apparue Et j’ai cru voir la fée au chapeau de clarté Qui jadis sur mes beaux sommeils d’enfant gâté Passait, laissant toujours de ses mains mal fermées Neiger de blancs bouquets d’étoiles parfumées

Lua, anjos, flores choram em comunhão com o poeta relembrando a amada morta, que evocada, aparece sorrindo.

Assim, a voz chama, evoca, relacionando-se com a lembrança. A linguagem, evidentemente, está presente nesse processo poético e é tratada por Viegnes (2006) que reflete desde a importância dos nomes ou de sua ausência, até à métrica e à transfiguração advinda

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do trabalho com a linguagem. Conclui, então, que, contrariamente à opinião de Todorov e à reprovação implícita de outros teóricos da modalidade, o fantástico goza de privilégio na poesia e esta, por sua vez, usufrui desse privilégio enquanto busca de suplemento do sentido, exploração das margens do dizível e visão transfiguradora das coisas.

David Roas: em busca dos limites do real

Na apresentação de seu livro de 2011, Tras los limites de lo real: una definición de lo fantástico, o professor e crítico espanhol David Roas define claramente seu objetivo: chegar a uma definição do fantástico, conjugando os diversos aspectos tratados em teorias anteriores relevantes sobre o assunto. Para fazê-lo, parte de quatro conceitos centrais: a realidade, o impossível, o medo e a linguagem. Assim, trata da relação do fantástico com o real, ou seja, da relação do possível com o impossível na obra artística; dos limites do fantástico, isto é, de formas próximas como o maravilhoso, o realismo mágico ou o grotesco; de seus efeitos emocionais e psicológicos no receptor; e da transgressão relacionada à linguagem que deve expressar aquilo que, por definição, seria inexprimível. Considera o fantástico como uma categoria estética multidisciplinar, abrangendo literatura, cinema, teatro, vídeo games. Complementa a análise dos quatro conceitos centrais com a reflexão sobre a vigência do fantástico na pós-modernidade.

Ao tratar da realidade, focaliza, a princípio, o século XVIII racionalista, época em que prepondera o realismo nas obras artísticas, a expressão do cotidiano; apesar dessa concepção realista da verossimilhança, assinala que o sobrenatural não desaparece, encontrando refúgio na literatura, e coincidindo com uma nova sensibilidade, o sublime, que toma o horror como fonte de deleite e beleza. Assim, no século das Luzes inicia-se o desenvolvimento de ideias e gostos estéticos que o romantismo retomará: o onírico, o visionário, o sentimental, o macabro, o aterrador, o noturno. Em

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sua reivindicação do racional, explica Roas (2011), o século das Luzes revela, também, um lado obscuro da realidade que a razão não podia explicar. E será esse lado obscuro a nutrir a literatura fantástica em sua primeira manifestação, o romance gótico.

Diferentemente da Ilustração, que só considerava o que era passível de ser demonstrado dentro dos limites da razão, os românticos, sem repelir as conquistas da ciência e sem deixar de considerar o racional, valorizaram a intuição e a imaginação; aboliram as fronteiras entre o interior e o exterior, o irreal e o real, o sono e a vigília, a magia e a ciência. O conto fantástico irá muito mais longe do que o romance gótico, aponta Roas (2011, p.20):

Cuando el lector se cansó de aquellas historias macabras ambientadas en castillos en ruinas y en una brumosa Edad Media demasiada lejana como para poder tomarla en serio, los autores románticos empezaron a trasladar sus historias al presente y, sobre todo, a ámbitos conocidos por el lector, para hacer más creíbles y, a la vez, más impactantes los hechos relatados.

De qualquer modo, o fantástico literário começa a desenvolver-se em uma época marcada pela ideia de um universo estável ordenado por leis fixas e imutáveis; nesse sentido, o fantástico define-se pela transgressão a essas regras.

É a partir dessa retomada do fantástico tradicional que Roas desenvolve suas reflexões, anunciadas pela questão: há literatura fantástica após a mecânica quântica? Mostra, então, que a ciência, a filosofia e a tecnologia postulam novas condições no trato com a realidade; isto é, depois de todas as novas descobertas científicas e tecnológicas o homem não mais se encontra em um universo estável, pois a esfera do real amplia-se por inúmeras realidades paralelas, pelas várias realidades que coexistem simultaneamente, seja considerando o multiverso, ou a realidade virtual, ou ainda o conjunto de correspondências com que o leitor constrói seu próprio universo.

Depois dessas considerações, o crítico retoma a definição de fantástico exposta no início do livro, segundo a qual o fantástico se caracteriza por propor um conflito entre (nossa ideia) do

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real e do impossível (ROAS, 2011). A seu ver, o essencial para que tal conflito crie um efeito fantástico não é a hesitação ou a incerteza, elementos sobre os quais muitos teóricos insistem desde Todorov, mas a impossibilidade de explicação do fenômeno. As palavras que colocou entre parênteses já anunciam que a impossibilidade de explicação do fenômeno não se determina exclusivamente no âmbito intratextual, mas envolve o próprio leitor; isto porque a narrativa fantástica mantém, desde suas origens, um constante debate com o extratextual. Deixa claro não estar de acordo com as definições imanentistas que postulam surgir o fantástico simplesmente do conflito no interior do texto entre dois códigos diferentes de realidade. Justifica sua ponderação assinalando que a definição imanentista deixa escapar que os recursos estruturais e temáticos interventivos na construção das narrativas fantásticas buscam implicar o leitor no texto. Ao relacionar o universo textual com o mundo extratextual é possível a interpretação do efeito ameaçador que o evento narrado pressupõe em relação à realidade empírica. Recordo que tanto Vax, quanto Todorov já consideravam o mundo extratextual, ou, como assinalei, a dimensão pragmática do leitor, apesar de se concentrarem no universo intratextual; Furtado, por sua vez, parece deter-se na lógica interna do texto fantástico.

De seu lado, Roas (2001) enfatiza que a definição que propõe não implica uma concepção estática do fantástico, pois este evolui no mesmo ritmo que se modifica a relação entre o ser humano e a realidade. Desse modo, o fantástico está em estreita relação com as teorias do conhecimento e com as crenças de uma época: a experiência coletiva da realidade media a reação do receptor; percebe-se a presença do impossível como uma transgressão do horizonte de expectativas do leitor a respeito do real, não apenas em relação ao progresso científico, filosófico e tecnológico, como também no que se refere às certezas que se estabelece no trato cotidiano com o real. Viu-se que Bessière considerara essa questão, assinalando que a lógica narrativa acompanha as metamorfoses culturais da razão e do imaginário comunitário.

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O objetivo do fantástico será, então, continua Roas, desestabilizar os limites de segurança, problematizar as convicções coletivas, questionar a validade dos sistemas de percepção da realidade comumente admitidos. O crítico cita Rosalba Campra (2001 apud ROAS, 2011, p.34) sobre a questão do limite entre o real e o impossível: “[...] la noción de frontera, de limite infranqueable para el ser humano, se presenta como preliminar a lo fantástico. Una vez establecida a existencia de dos estatutos de realidad, la actuación de lo fantástico consiste en la transgresión de este limite.” Roas insiste, assim, no questionamento entre o possível e o impossível, e não só na coexistência dos dois, o que Bessière já enfatizara; porém, o crítico espanhol vai mais adiante, iluminando o caminho que ainda se mostrava obscuro, ao indicar que Alasraki e outros teóricos se dispuseram a ir além dessa concepção de fantástico baseada na necessária confrontação com o real, propondo uma nova categoria, o neofantástico, que apresentaria uma ampliação das possibilidades da realidade e incluiria textos de Kafka, Borges, Cortázar e outros autores do século XX. Para esclarecer suas considerações recorre a Martha J. Nandorfy (2001 apud ROAS, 2011, p.38), quando esta assinala que os textos do neofantástico revelam uma realidade enriquecida pela diferença, que eliminaria a visão do fantástico como alteridade negativa do real. Campra, Alasraki e Nandorfy entram com seus textos sobre o fantástico na composição do livro introduzido e organizado por David Roas sobre Teorías de lo fantástico, publicado em 2001, o qual se completa com escritos de Jean Bellemin-Noël, Irène Bessière, Roger Bozzetto, Teodosio Fernández, Rosie Jackson, Susana Reisz e Tzvetan Todorov. Roas conclui que o objetivo da literatura neofantástica é o de ampliar a percepção, levar a descobrir essa segunda realidade que se esconderia por trás da realidade cotidiana, conferindo o caráter de válido e verossímil a ambas as ordens.

Embora não as inclua no âmbito do neofantástico, nem no do realismo mágico, o crítico não deixa de mencionar as obras surrealistas que preconizam uma revitalização e uma ampliação do conceito de realidade, mediante a inclusão dos estados mentais inconscientes (sonho, livre associação de ideias, loucura) no mesmo

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plano da realidade consciente ou cotidiana; a literatura surrealista constrói uma realidade textual autônoma na qual se ampliam os limites do real ao apagar a fronteira com o irreal, completa Roas.

Schneider (1964), por sua vez, dedica uma parte de seu livro ao “Fantástico surrealista”. Assinala, primeiramente, a declaração feita por Breton no Manifesto do surrealismo de 1924, quando este afirma categoricamente que o maravilhoso é sempre belo, não importa qual seja o maravilhoso e apenas o maravilhoso é belo. A seguir, Schneider (1964) mostra que, em 1936, em La clé des champs, livro que reúne textos escritos por Breton de 1936 a 1952, o “merveilleux” passa a “fantástico”, sendo que esta última palavra aparece entre aspas, pois, como se viu, o escritor surrealista privilegia o maravilhoso em detrimento do fantástico:

Le “fantastique” constitue à nos yeux, par excellence, la clé qui permet d’explorer le contenu latent, le moyen de toucher ce fond historique secret qui disparaît derrière la trame des événements. C’est seulement à l’approche du fantastique, en ce point où la raison humaine perd son contrôle, qu’a toutes chances de se traduire l’émotion la plus profonde de l’être, émotion inapte à se projeter dans le cadre du monde réel et qui n’a d’autre issue, dans sa précipitation même, que de répondre àla sollicitation éternelle des symboles et des mythes. [...] Le surréalisme n’en est encore qu’à enregistrer le déplacement, de l’époque du roman noir jusqu’à nous, des plus hautes charges affectives de l’apparition miraculeuse à la coïncidence bouleversente et à demander qu’on accepte de se laisser guider vers l’inconnu par cette dernière lueur [...] (BRETON, 1953 apud SCHNEIDER, 1964, p.357).

Schneider (1964) esclarece, então, que o surrealismo descobriu uma forma de fantástico que exprime “a emoção mais profunda do ser”, provocada pelas forças reunidas da aparição, da coincidência ou acaso objetivo e do abandono ao maravilhoso, ao sonho, ao automatismo. E aponta que esse fantástico não se fundamenta mais na crença no poder do Mal, como em Hoffmann, nem na lógica e no terror, como em Poe; também não tem um valor de iniciação, nem de revelação no sentido religioso dos termos; mesmo que exprima uma transcendência, esse “além” não apresenta relação com o das religions estabelecidas: André Breton deu o modelo desse fantástico com Nadja, de 1928. Nessa narrativa, o

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real e o fantástico penetram-se de tal modo que um se resolve no outro, conclui Schneider (1964), baseando-se ainda no Manifesto de 1924, quando Breton assinala que o que há de mais admirável no fantástico, é que não há mais fantástico, há apenas o real.

Roas (2011), por sua vez, detém-se no fantástico tradicional, deixando claro que este se constrói a partir da convivência conflitante do real e do impossível; e a condição da impossibilidade do fenômeno se estabelece, por sua vez, em função da concepção do real que apresentam tanto os personagens quanto os receptores: o impossível é aquilo que não pode ser, que é inconcebível segundo a concepção que se tem do mundo extratextual. Roas ilustra com um dos recursos tradicionais da narração fantástica, a figura do fantasma: ser que retorna da morte e se instala no mundo dos vivos, rompendo os limites entre as ordens do real e do impossível e introduzindo uma transgressão absoluta nos códigos de funcionamento do real, ao mesmo tempo em que afeta o tempo e o espaço humanos. Essa dimensão transgressora é o que determina o valor da narrativa fantástica. Assim, se o que consideramos impossível não entra em conflito com o contexto em que os fatos se sucedem, não se produz o fantástico: é o caso do maravilhoso e da fantasia, que se desenvolvem em mundos autônomos. No caso do romance gótico, o conflito permanece, mas não a dúvida ou o questionamento; porém, indica Roas (2011, p.50), “[...] ya sea mediante la duda o mediante la manifestación efectiva de lo sobrenatural, a realidad (nuestra convención sobre lo real) ya nunca puede volver a ser la misma […]”.

Ainda em relação ao impossível e, evidentemente, ao fantástico, Roas aponta o que considera formas híbridas: o maravilhoso cristão e o realismo mágico, que compartilhariam elementos com o fantástico, mas com funcionamentos e efeitos diferentes. O maravilhoso cristão seriam narrativas literárias, habitualmente sob a forma de lendas, em que os fenômenos sobrenaturais teriam uma explicação religiosa, isto é, entram no domínio da fé como acontecimentos extraordinários, mas não impossíveis, não constituindo, geralmente, uma ameaça; não deixa de referir-se às

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narrativas do romantismo, particularmente às de Charles Nodier: lembro o conto já aqui referido, intitulado “Légende de Soeur Béatrix”. Como aponta Roas sobre esse tipo de narrativa, não se trata de persuadir o leitor da verdade dos eventos, mas de construir um relato coerente que permita desfrutar do prazer estético do sobrenatural, de uma posição distanciada e segura a respeito da possibilidade efetiva do que foi narrado. Assim, a enunciação distanciada do relato, o espaço rural, o afastamento temporal dos fatos e sua explicação religiosa impedem que o leitor ponha em contato os acontecimentos do texto com sua concepção de mundo.

Quanto ao realismo mágico, Roas indica que essa modalidade literária apresenta a coexistência não problemática do real e do sobrenatural em um mundo semelhante ao nosso, em que os fenômenos prodigiosos são apresentados como se fossem comuns: uma situação de naturalização e de persuasão que confere status de verdade ao não existente, sem conflito, nem questionamento, o que já o distingue do fantástico. O crítico ilustra suas reflexões com o conto de García Márquez (1972), “Um senhor muito velho com umas asas enormes”, de 1968, mostrando o processo de naturalização do acontecimento insólito: o leitor, contagiado pelo tom familiar do narrador, por sua falta de surpresa que demonstram também os personagens, acaba aceitando o narrado como algo natural. Observa-se por essas considerações que Roas diferencia realismo mágico de neofantástico.

Essa ausência de conflito entre o real e o impossível caracteriza ainda aquilo que Roas denomina pseudo-fantástico (termo utilizado por Caillois, como se viu, para designar o sobrenatural explicado na ficção fantástica), textos que divide em três grupos. O primeiro grupo refere-se ao “fantástico explicado”, no qual considera as narrativas que terminam racionalizando o sobrenatural e, assim, destruindo o conflito próprio do fantástico entre real e irreal; essa racionalização dá-se “por via mecânica” (quando se explicita que os eventos impossíveis foram criados mediante truques mecânicos) ou pelo “fantasmático” (termo, como se viu, advindo da psicanálise, que identifica a expressão direta de fenômenos psicológicos ou

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psicopatológicos como o sonho, a alucinação, a obsessão). O segundo grupo refere-se a obras que utilizam o fantástico como meio para propor uma alegoria de caráter moral. E o terceiro grupo diz respeito aos textos grotescos que empregam elementos sobrenaturais, combinando o riso e o horror; Vax já apontara que o riso anula os efeitos do fantástico; Roas (2011), por sua vez, adverte que, em relação ao grotesco, trata-se de deformar os limites do real, levá-los até a caricatura, não para provocar a inquietude no leitor, mas o riso, ao mesmo tempo em que o impressiona negativamente mediante o caráter monstruoso, macabro, sinistro ou simplesmente repugnante dos seres e situações representados.

O medo relaciona-se à reação do leitor, configurada a partir da desestabilização dos códigos vigentes que permitem a compreensão do real. Roas aponta os diferentes sinônimos que esse conceito apresenta dependendo de seu uso (terror, inquietação, angústia, horror, apreensão, desconcerto), para assinalar que, no sentido estrito e individual, o medo é uma emoção, muitas vezes precedida de surpresa, provocada pela consciência de um perigo presente e agoniador, que parece ameaçar a integridade do indivíduo. Em sentido menos rigoroso e mais amplo, isto é, em um sentido coletivo, engloba uma gama de emoções que vão do temor e da apreensão a terrores maios fortes; neste caso, o medo é o hábito que se tem, em um grupo humano, de temer essa ou aquela ameaça, real ou imaginária. Para dar continuidade a suas reflexões, Roas retoma as palavras de Lovecraft quando este considera o medo como a mais intensa e antiga emoção, enfatizando o medo do desconhecido; em consequência, para complementar, recupera também as ponderações de Freud sobre a palavra e o sentimento de unheimlich, aqui discutidos anteriormente.

Assim, segundo Roas (2011), o fantástico mostrou-se como o melhor recurso para expressar de forma simbólica a ameaça que pressupõe a perda de familiaridade com o real, encarnando-a em monstros horrendos ou em fenômenos impossíveis, gerando a “inquietante estranheza”, ou seja, o medo. Relembra o conto de Maupassant “O medo” - “La peur”, texto comentado neste trabalho

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na parte relativa ao escritor francês -, quando o personagem explica esse sentimento, referindo-se ao medo do desconhecido, daquilo que não mais é familiar, do estranho. Como Todorov, Roas (2011) assinala que o fantástico suscita a perplexidade tanto do personagem, quanto do leitor, obrigando um e outro a buscar uma explicação, um sentido que justifique o que se passa; operação condenada sempre ao fracasso, o que provoca o medo no receptor. Pergunto-me se essa perplexidade suscitada pelo desconhecido em relação ao que se considera impossível, perplexidade que perdura, não deixaria o receptor na incerteza, logo na hesitação?

Após apontar que, a seu ver, Lovecraft oferece uma excelente definição de fantástico baseada na perspectiva psicológica que põe em primeiro plano o efeito emocional gerado pela narração, isto é, o medo, o crítico espanhol indica que nem todos os teóricos e críticos do fantástico têm a mesma opinião sobre a presença imprescindível do medo nos textos fantásticos. Esclarece ainda que sua intenção não é definir o fantástico em função do medo, mas demonstrar que essa emoção específica é uma condição necessária para a criação do fantástico, porque é seu efeito fundamental, produto da transgressão da ideia que se faz do real. Ilustra com o tema do duplo, recorrente na literatura fantástica, sempre provocando inquietação e medo. Considero sua reflexão coerente, na medida em que apontou como “formas híbridas” aquelas que despertam outro tipo de emoção, entre as quais o maravilhoso cristão.

Para esclarecer a relação do fantástico com o medo, Roas estabelece a distinção entre medo físico e medo metafísico. O primeiro, medo físico, logo emocional, tem a ver com a ameaça física, a morte e aquilo que materialmente desperta esse sentimento. O medo metafísico, por sua vez, refere-se ao que Roas considera a impressão exclusiva do fantástico, que se manifesta no personagem e atinge o receptor, pois se produz quando as convicções sobre o real deixam de funcionar, quando o que parecia familiar torna-se inquietante. Não deixa de mencionar que Lovecraft aponta distinção semelhante, opondo medo físico a medo cósmico. E de sugerir que a diferença essencial entre o fantástico do século XIX e

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o fantástico contemporâneo poderia ser caracterizada do seguinte modo: o que distingue este último é a irrupção do anormal em um mundo aparentemente normal, não para demonstrar a evidência do sobrenatural, e sim para postular a possível anormalidade da realidade, para revelar que o mundo não funciona como se acreditava (ROAS, 2011). Para o crítico, o que considera como literatura fantástica contemporânea seria outra forma de expressar a transgressão essencial que caracteriza essa modalidade literária em toda sua história, a qual se manifesta na impressão ameaçadora denominada por ele de medo metafísico, elemento que se revela essencial.

Ao discutir a questão da linguagem empregada na ficção fantástica, Roas inicia retomando a necessidade de expressão do real no universo diegético de modo que haja uma identidade entre o mundo ficcional e o mundo extratextual. Assim, a construção do texto fantástico estaria guiada, paradoxalmente, por uma “motivação realista”, ou seja, é preciso que desperte o “efeito de real”, nas palavras de Barthes (1968); o fantástico seria, então, um modo narrativo que emprega o código realista, de preferência em sua mais absoluta cotidianidade, mas supondo uma transgressão desse código. Em seguida, afirma que são numerosas e variadas as estratégias discursivas e narrativas para levar o leitor a abandonar seu cepticismo, motivar sua cooperação interpretativa e, finalmente, alcançar que aceite a dimensão impossível da narração ou, pelo menos, que duvide de sua ideia de real. Algumas dessas estratégias seriam, por exemplo, a autenticação da ficção pela apresentação do relato como um documento real ou como um testemunho pessoal; o relato “objetivo” em terceira pessoa, focalizado pela perspectiva do personagem ou do narrador; a narração polifônica (apontada também por Bellemin-Noël); o jogo com as diversas modalidades da ambiguidade: ambiguidade da perspectiva do narrador e personagens, ambiguidade retórica. Essas estratégias são tomadas por Roas de um ensaio de Juan Herrera Cecilia, datado de 2000; assim, o relato em terceira pessoa, que divergiria das estratégias apontadas nos textos de teóricos fundadores, é, na verdade, atenuado, pois

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completa-se com as questões da focalização e da polifonia pouco consideradas nos escritos anteriores, também promovedoras de ambiguidade. Essa necessidade de realismo marca a transformação do fantástico até nossos dias, finaliza o crítico.

Já o fenômeno fantástico, impossível de explicar, supera os limites da linguagem, uma vez que deve designar aquilo que não pode ser designado, o indizível. Roas (2011) mostra que Borges, em “o Aleph”, de 1945, reflete perfeitamente sobre a vertigem da escritura fantástica, sobre o inefável. Assim, a concordância estabelecida entre o mundo ficcional e o mundo extratextual se fissura no momento em que a linguagem deve dar conta do fenômeno impossível. O crítico espanhol retoma, então, o termo empregado por Bellemin-Noël que, como se viu, indica uma “retórica do indizível”, conjunto de marcas textuais que assinalam a excepcionalidade do representado: metáforas, sinédoques, comparações, paralelismos, analogias, antíteses, oximoros, neologismos e expressões ambíguas (como as modalizações apontadas por Todorov), a utilização reiterada de adjetivos fortemente conotativos (sinistro, fantasmagórico, aterrorizante, incrível), representações da enunciação (É impossível descrever...), jogos de metaficção que põem em crise a ilusão de realidade (principalmente nas narrativas contemporâneas). O fantástico torna-se, assim, uma categoria subversiva, não apenas no aspecto temático, mas também na dimensão linguística, pois altera a representação da realidade estabelecida pelo sistema de valores de uma comunidade, ao apresentar a descrição de um fenômeno impossível em tal sistema, ou seja, a transgressão proposta pela narrativa fantástica manifesta-se também no plano linguístico. Não existe uma linguagem fantástica em si mesma, mas uma forma de usar a linguagem que gera o efeito fantástico.

Ainda considerando a questão linguística, Roas assinala que alguns pesquisadores têm tratado de diferenciar o fantástico do século XIX de sua elaboração contemporânea em função de um uso particular da linguagem. Indica que Rosalba Campra, no artigo “Lo fantástico: una isotopía de la transgresión” oferece uma das primeiras análises sob esse ponto de vista, apresentando como

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caracterizadora do fantástico uma transgressão linguística em todos os níveis do texto. Segundo Campra (2001 apud ROAS, 2011, p.135), houve uma mudança fundamental no fantástico do século XX: passou-se do fantástico como fenômeno de percepção ao fantástico como fenômeno de escritura, de linguagem – aspecto que Sartre enfatizara já no título de seu texto, “Aminadab, ou do fantástico considerado como uma linguagem” (SARTRE, 1977). Distinção também apontada por Todorov, completa Roas, indicando que, na verdade, encontra-se a transgressão linguística desde o século XIX – e penso que tanto Todorov, quanto Bellemin-Noël apontaram alguns recursos da linguagem que contribuem para que o texto se qualifique como fantástico.

Além de Campra, Roas mostra que essa diferença entre fantástico de percepção (em que a transgressão se desenvolve como acontecimento) e fantástico de linguagem é também discutido no livro de Rodríguez Hernández, La conspiración fantástica: una perspectiva lingüístico-cognitiva sobre la evolución del género fantástico. No caso da modalidade do fantástico como linguagem, a ruptura da confiança ou seu questionamento permite que o fantástico se configure a partir de uma transgressão essencialmente linguística; Hernández ilustra sua concepção com a narrativa de Cortázar, “Axolotl”, entendendo que o texto descansa sobre um jogo retórico que permite a metamorfose do narrador no anfíbio do título.

No entanto, afirma Roas (2011), o texto narrativo, fantástico ou não, nunca pode prescindir de uma ideia de realidade, mesmo que o contexto estético em que surge tenha negado qualquer poder de representação direta da palavra, pois eliminaria qualquer possibilidade de compreensão do texto. E conclui apontando que nem a transgressão da modalidade de percepção é exclusivamente semântica, nem a transgressão da modalidade da linguagem é exclusivamente formal ou retórica. A diferença que percebe entre o fantástico tradicional e o fantástico pós-moderno reside em que o primeiro problematiza os limites entre realidade e irrealidade, enquanto o segundo os apaga.

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CAPÍTULO IV

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TEORIA E CRÍTICA NO BRASIL

A crítica de José Paulo Paes

Poeta, tradutor, ensaísta e crítico literário, Paes apresenta algumas ideias críticas sobre a literatura fantástica seja em sua Introdução à coletânea de contos fantásticos que traduziu, intitulada Os buracos da máscara, seja em um dos ensaios que integram a obra Gregos & baianos, ambas publicadas em 1985.

Em sua Introdução aos contos de autores estrangeiros selecionados e traduzidos por ele – coletânea que inclui os escritores brasileiros Rubião e Veiga – Paes (1985a, p.7 e p.9) utiliza a palavra “subgênero” para designar essa nova tendência do romantismo de prosa de ficção; ao lado do termo “modalidade” de Ceserani, parece ser também uma opção mais viável do que “gênero” fantástico: “No terreno específico do conto, de Hoffmann e Gautier a Kafka e Borges, esse subgênero haveria de oferecer à sua massa de leitores um acervo de obras-primas de que diminuta parte é recolhida nesta antologia [...]” (PAES, 1985a, p.7).

Como ponto de partida histórico da moderna ficção fantástica, ressaltando que não se deve tomar a palavra “moderno” como

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“contemporâneo”, Paes evidentemente aponta o romance de Jacques Cazzotte, Le diable amoureux, publicado no século filosófico, o Século as Luzes: “Ter herdado do medievo o gosto do irracional e do sobrenatural, mas no apagar das luzes de uma época em que só o racional e o natural contavam – eis a indelével marca de nascença da moderna ficção fantástica [...]” (PAES, 1985a, p.8).

Recupera sinteticamente os pontos básicos da teoria de Todorov, sobretudo a questão da hesitação, e decide-se pela definição de fantástico de Bessière, que considera menos restritiva:

A concepção de Todorov é pois extrínseca: recorre às categorias de natural e sobrenatural tal como se manifestam à nossa experiência e senso (ou consenso) comum; ao contrário, a concepção de Bessière é intrínseca na medida em que vê natural e sobrenatural tão-só conforme propostos pelo texto, isto é, categorias puramente literárias. Esta última concepção é mais abrangente, dá melhor conta do gênero ou subgênero em questão, dele não excluindo a performance de Kafka ou de outros contistas da mesma linhagem do absurdo [...] (PAES, 1985a, p.9).

De fato, Bessière (1974, p.143) inclui em seu livro autores como Cortázar e Borges quando escreve sobre a “renovação do fantástico”, como se viu. E Paes faz figurar em sua coletânea autores do que denomina, como Sartre, “fantástico contemporâneo”, sem deixar de apontar que essa modalidade também é chamada de “realismo mágico”; assim, ao lado de Hoffmann, Poe, Gautier, Bécquer, Villiers de L’Isle Adam, Dickens, Maupassant, H. H. Munro e Jean Lorrain (perfazendo o caminho do romantismo, simbolismo, realismo, e decadentismo), completam a antologia contos de Kafka, Murilo Rubião e José J. Veiga.

No ensaio, cujo título é “As dimensões do fantástico”, Paes (1985b, p.184) assinala primeiramente o amplo conceito de fantástico do teórico norte-americano Eric S. Rabkin, o qual “[...] utiliza a ideia de oposição diametral na sua definição de fantástico, que para ele é ‘o espanto que sentimos quando as regras de base

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A literatura fantástica: caminhos teóricos

do mundo narrativo sofrem uma súbita inversão de 180 graus’.” Conceito, na verdade, que retoma da tradição da teoria sobre o fantástico a noção de que “[...] é no mundo da realidade e da normalidade que vai ocorrer de repente um fato inteiramente oposto às leis do real e às convenções do normal.” (PAES, 1985b, p.185).

Em seguida, Paes (1985b) compara o conceito de Rabkin, que se estende a outros subgêneros vizinhos da ficção fantástica – ficção policial, ficção científica e contos de fadas -, com a definição de Todorov, que se restringe ao fantástico, excluindo dele o maravilhoso e o estranho. E conclui:

Como qualquer leitor poderá verificar por si mesmo, a maioria dos contos rotulados de fantástico atende às exigências estabelecidas na conceituação todoroviana de literatura fantástica. Particularmente à mais importante delas, a hesitação do leitor (ou de um personagem da narrativa) entre uma explicação natural e sobrenatural das ocorrências relatadas. (PAES, 1985b, p.188).

Assinala, ainda, ter Todorov observado, com razão, que a obra de Kafka coloca o leitor diante de um fantástico generalizado, em que o mundo inteiro e o próprio leitor estão incluídos: assim, Todorov exclui esse tipo de narrativa do fantástico.

Ao contrário, mostra Paes (1985b, p.189), Sartre chega a uma ideia lato sensu do fantástico, que “[...] desde seus primórdios no século XVIII, [...] sempre se preocupou mais em por em xeque o racional do que o real propriamente dito.” Após retomar o racionalismo do Século das Luzes, afirma ter sido precisamente contra os excessos dessa tirania da razão que se voltou à literatura fantástica: “A empresa a que se propunha era contestar a hegemonia do racional fazendo surgir, no seio do próprio cotidiano por ele vigiado e codificado, o inexplicável, o sobrenatural – o irracional, em suma.” (PAES, 1985b, p.190).

A seguir, o crítico defende o paralelismo entre fantástico e romantismo, pois neste a ênfase se transfere para o subjetivo, o

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excêntrico, o individual, o misterioso, o místico, o libertário. A ressonância dos contos de Hoffmann chega a França, com Nodier, Nerval, Gautier, para daí irradiar-se por outros países da Europa, até mesmo o Brasil, com Álvares de Azevedo. Não deixa de apontar que a Inglaterra já possuía “uma variedade própria de fantástico no chamado ‘romance gótico’” (PAES, 1985b, p.190), recorrendo a ingredientes de um horror de aparência sobrenatural. Nos Estados Unidos, a “unidade de efeito” de Poe traz mais um elemento à elaboração do conto fantástico, recurso utilizado por Lovecraft e Pirandello em um de seus contos. O gosto do fantástico reafirma-se durante a fase do realismo-naturalismo, quando a preocupação positivista do racional e do objetivo volta a se impor sob a égide da ciência e da técnica, indica Paes (1985b), ilustrando essa retomada com o conto “Le Horla”, de Guy de Maupassant. Segundo o crítico, a “abertura da racionalidade” no século XX veio libertar o fantástico de seus antigos compromissos com a hesitação entre natural e sobrenatural e com a proibição da visada metafórica ou alegórica: torna o real absurdo, como em Kafka, ou permuta real e irreal livremente, como em Borges ou Cortázar: ‘literatura do absurdo’ para os europeus ou ‘realismo mágico’ para os latino-americanos, conclui Paes (1985b), caracterizando essa produção, na esteira de Sartre e Bessière como textos resultantes da transformação do fantástico.

Observa-se que, embora os textos críticos de José Paulo Paes completem poucas páginas, suas conjeturas abordam pontos teórico-críticos fundamentais: a oscilação em tratar como gênero ou subgênero a narrativa fantástica espelha as considerações dos teóricos e críticos aqui discutidos anteriormente; no mesmo sentido, são sensatas suas observações acerca do “fantástico contemporâneo”, o primeiro (cronologicamente) dos estudiosos aqui contemplados a não ignorar o termo “realismo mágico”; e sua visão sobre a linguagem figurada ou a alegoria que, embora com objetivo diferente, acaba encontrando o pensamento de Viegnes (2006).

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O fantástico stricto sensu de Selma Calasans Rodrigues

Rodrigues inicia seu livro, O fantástico, de 1988, esclarecendo as diferenças entre o fantástico no sentido estrito e o realismo mágico, que chama de realismo maravilhoso. Os subtítulos em que mostra essas diferenças são por si só bastante elucidativos: indica, primeiramente, “O fantástico questionado”, aquele que pressupõe a ambiguidade, para nomear o fantástico stricto sensu, isto é, quando

[...] o texto oferece um diálogo entre razão e desrazão, mostra o homem circunscrito à sua própria racionalidade, admitindo o mistério, entretanto, e com ele se debatendo. Essa hesitação que está no discurso narrativo contamina o leitor, que permanecerá, entretanto, com a sensação do fantástico predominante sobre as explicações objetivas. A literatura, nesse caso, se nutre desse frágil equilíbrio que balança em favor do inverossímil e acentua-lhe a ambiguidade. (RODRIGUES, 1988, p.11, grifo do autor).

E, em seguida, “O fantástico ‘naturalizado’”, em que “[...] os atores se encontram integrados num universo de ficção total onde o verossímil se assimila ao inverossímil numa completa coerência narrativa, criando o que se poderia chamar de uma verossimilhança interna.” (RODRIGUES, 1988, p.13): tudo é visto como natural, pois não há explicação, produzindo no leitor a mesma aceitação.

Rodrigues (1988) ilustra o fantástico questionado com um trecho de “A casa deserta”, de Hoffmann e o fantástico naturalizado com um fragmento de Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez. Mostra, então, uma semelhança básica entre os dois textos, que se refere à causalidade que liga os acontecimentos na sintaxe narrativa: uma causalidade mágica.

Considerando o nascimento do fantástico stricto sensu no Século das Luzes, pergunta-se onde estaria o lugar do fantástico em uma sociedade que rejeita a metafísica; e vale-se de Bessière, para mostrar que o fantástico se desenvolve pela fratura da racionalidade na época enfatizada.

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Detém-se, então, na discussão sobre o fantástico no sentido estrito, observando primeiramente que nos séculos XVIII e XIX o sobrenatural é de natureza humana, nunca teológica:

O Diabo, que passa a ser tema constante na literatura, é laicizado, a contaminação da realidade pelo sonho engendra novas histórias, a existência do duplo, e mais: o magnetismo, o hipnotismo são usados para explicar experiências, a viagem no tempo, a catalepsia, a volta dos mortos, as desordens mentais, as perversões, etc. Todos são temas antropocêntricos. (RODRIGUES, 1988, p.28).

E põe-se a refletir sobre alguns temas - que parecem englobar tanto o fantástico questionado, quanto o fantástico naturalizado -, a começar pelo pacto diabólico, apontando Le diable amoureux (1772), de Cazotte, como um dos inauguradores desse fantástico tradicional. Aponta que o pacto diabólico existia desde a Idade Média, ou antes, e que passa, nesse período, do estatuto de crença ao de símbolo literário; torna-se expressão codificada do Mal. Mostra, ainda, que essa motivação (o diabo), na maioria das vezes, metaforiza uma relação amorosa, sexual, proibida ou perversa. Assinala também que, em lugar do diabo, podem ser utilizados vampiros (ligados à necrofilia) ou fantasmas diversos: “Desse modo, o interdito fica simbolizado, e a recusa dos limites impostos pela sociedade é sutilmente expressa pela arte.” (RODRIGUES, 1988, p.32-33). Não deixa de indicar que o mais famoso pacto com o diabo ficou imortalizado na sequência de Faustos: Marlowe (1588), Lessing (1729-1781), Goethe (1773),Thomas Mann (1947).

O tema seguinte refere-se à transposição de fronteiras entre real e irreal, em que trata do sonho na narrativa fantástica. Rodrigues (1988) assinala o fato de o sonho ter sido usado frequentemente como explicações para experiências inverossímeis mas, segundo seu pensamento, o que determina a fantasticidade stricto sensu é exatamente a brecha deixada pela narrativa ao inserir no enunciado a pergunta se “será ou não sonho”, isto é, quando se faz uma indagação sobre os limites entre o sonho e o real. Essa questão é ilustrada com o Manuscrito encontrado em Saragossa, de Jan

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Potocki, “O pé da múmia”, de Gautier e com “La noche boca arriba”, de Cortázar.

O tema do inanimado animado é ilustrado com La Vénus d’Ille, de Prosper Mérimée, uma das narrativas que Todorov considera como modelo do que denomina “fantástico puro”, como se viu. Rodrigues centra-se na questão da suposta animação da estátua de Vênus retomando a reflexão de que o fantástico stricto sensu se constrói a partir da laicização das crenças religiosas e das superstições e compreendendo por inanimado aquilo que não é dotado de alma (anima), de movimento próprio, e, ao contrário, o animado, o que tem alma, vontade e movimento próprios. Rodrigues (1988, p.41) indica como “versão moderna do tema fantástico da estátua que se anima” o conto “Chac-Mool”, do autor mexicano contemporâneo Carlos Fuentes.

Para tratar do duplo, Rodrigues inicia com o conto de Borges, “Borges e eu”, com o intuito de mostrar ser este um dos temas recorrentes, obsessivos na obra do escritor argentino. Expõe, ainda, a variação das formas de representação do duplo: personagens que, além de semelhantes ou iguais fisicamente têm sua relação acentuada por processos mentais como a telepatia; ou há a identificação do sujeito com outro personagem a ponto de gerar dúvida sobre quem é o seu “eu”; ou o retorno das mesmas características através de diversas gerações – ilustra com a novela Aura, de Carlos Fuentes; ou ainda, um mesmo “eu” desdobra-se em personagens distintos e opostos. Tanto Unheimlich (1919) de Freud, quanto A etapa do espelho (1949), de Lacan são citados remetendo à abordagem psicanalítica do duplo.

Finalmente esclarece que as obras citadas integram ora a literatura européia dos séculos XVIII e XIX, ora as obras latino-americanas contemporâneas, isto é, do século XX. Para finalizar sua reflexão e efetuar uma comparação entre o fantástico tradicional e o que chama de moderno (provavelmente, como apontou Roas (2011), ao que alguns críticos denominam neofantástico), alude à distinção proposta pela ensaísta Rosalba Campra, nela se baseando para determinar que: no fantástico tradicional há a apresentação de

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várias alternativas (sobrenatural ou delírio?; realidade ou sonho?); no fantástico atual, nenhuma explicação é dada ao acontecimento insólito, permanecendo a ambiguidade; ilustra suas considerações com a novela Aura, de Fuentes. De minha parte, compreendo que a narrativa tende para uma explicação sobrenatural, este tendo sido sugerido (implicitamente, o que só se perceberá no decorrer da narrativa) desde o início do texto, quando o protagonista Felipe Montero lê o anúncio de oferta de emprego, para o qual ele preenche todos os requisitos, nos mínimos detalhes; e os elementos sobrenaturais se prolongam, manifestando-se explicitamente, com dados e elementos de bruxaria, com atmosfera e retórica próprias do fantástico tradicional. O contato com o cotidiano exterior, com o mundo real cessa, de fato, no momento em que Felipe ultrapassa a porta da velha casa, cujos costumes se revelam como um ritual que acaba eliminando a noção de tempo. Não há, porém interpenetração entre passado e presente, nem vivências duplas ora no passado, ora no presente, ora em um espaço, ora em outro; Felipe tem dúvidas em relação ao que vê (os gatos pegando fogo) e ao que não vê (o criado que supostamente apanhara suas coisas); surpreende-se com os gestos idênticos de Consuela e Aura (presumidamente tia e sobrinha); confunde sonho com realidade; hesita – realidade ou delírio?: “[...] você se lembra de seus movimentos, sua voz, sua dança, por mais que você diga a si mesmo que ela não esteve ali.” (FUENTES, 1981, p.54). O desfecho não se mostra determinantemente ambíguo, mas sugere a explicação sobrenatural. A meu ver, essa narrativa de Fuentes apresenta elementos que condizem com o fantástico tradicional.

A seguir, Rodrigues menciona o maravilhoso surrealista, recuperando as palavras de Breton sobre a conciliação dos contrários, escritas no Segundo manifesto, de 1930: “Tudo leva crer que existe um certo ponto do espírito em que a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessam de ser percebidos contraditoriamente.” (BRETON, 1930 apud RODRIGUES, 1988, p.57); e dedica-se a tratar do realismo mágico ou, como prefere, realismo maravilhoso,

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o qual restringe à produção latino-americana (Hispano-América e Brasil), considerando como representantes máximos Borges e Cortázar.

Porém, os estudos críticos sobre o neofantástico e a diversificação de textos críticos a respeito do realismo mágico são posteriores aos de Rodrigues e, neste último caso, também condizentes com a multiplicação de textos de ficção realistas mágicos em língua inglesa.De qualquer modo, no decorrer de seu livro – da coleção Princípios, o que pressupõe que seja para iniciantes -, Rodrigues oferece uma visão que lança algumas luzes em um assunto que, como se pôde observar, não se mostra completamente definido até os dias de hoje.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomando as reflexões esclarecedoras de Roas (2011), quando este considera que as narrativas do realismo mágico comporiam formas híbridas, as quais apresentam a coexistência não problemática do real e do sobrenatural, em que os elementos insólitos são apresentados como se fossem comuns, sem questionamentos, percebemos que uma diferença é apontada entre o realismo mágico e neofantástico. Pelo corpus em comum apresentado tanto por Roas, quanto por Alazraki, Bessière e Rodrigues - certos textos de Borges e Cortázar e A metamorfose de Kafka - para caracterizar o neofantástico, pode-se pensar que o questionamento se mantém nos textos neofantásticos, ao passo que no realismo mágico (em que o sobrenatural ou o extraordinário se manifestam) há um processo de naturalização do irreal ou insólito, em que a falta de surpresa dos personagens demonstra a natural aceitação do prodígio. É evidente que o próprio Alazraki (2001) aponta certas características da modalidade que nomeia: em vez de mostrar a solidez do mundo real como o fantástico, o neofantástico assume o real como uma máscara que ocultaria uma segunda realidade; porta um sentido metafórico; apresenta uma ambiguidade deliberada que proporciona uma multiplicidade de interpretações; abandona a hesitação apresentada no interior do texto; introduz o sobrenatural ou insólito desde as primeiras frases. Assim, se o conto fantástico é

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contemporâneo do romantismo e mostra-se como um desafio e um questionamento dirigidos ao racionalismo científico e aos valores da sociedade burguesa, a narrativa neofantástica apóia-se nos efeitos da primeira guerra mundial, nos movimentos de vanguarda, em Freud e na psicanálise, no surrealismo e no existencialismo, entre outros fatores (ALAZRAKI, 2001).

Irlemar Chiampi (1980), que discute especificamente o realismo maravilhoso, denominação utilizada para designar o novo romance que evidenciou a crise do realismo e rompeu com o esquema tradicional do discurso realista nas literaturas hispânicas, aponta três maneiras de constatar a “nova atitude” do narrador diante do real: a naturalização do irreal (perspectiva fenomenológica), a sobrenaturalização do real (perspectiva ontológica, a preferida dos surrealistas) e o real maravilhoso americano (iniciado por Carpentier).

A crítica de língua inglesa, por sua vez, adota a denominação de realismo mágico para designar esse novo fantástico ou essa nova visão da realidade, abrangendo uma produção literária bastante diversificada. O crítico guatemalteco, William Spindler (1993), por exemplo, propõe os mesmos três tipos de realismo mágico apontados por Chiampi, sem restringir-se à produção literária de língua hispânica; assim, em seu artigo “Magic realism: a typology”, ele considera o “realismo mágico metafísico” (que corresponderia à sobrenaturalização do real, isto é, a textos condizentes aos que Sartre utilizou para ilustrar o fantástico contemporâneo, nos quais o sobrenatural não se manifesta; ao contrário, apresenta um mundo reconhecível como dentro dos limites do real, mas abre na mente do leitor a impressão de ser confrontado com uma alegoria ou uma metáfora de algo que permanece quase ao alcance e ainda assim, desconhecido), o “realismo mágico antropológico” (que se adéqua ao real maravilhoso, no qual o narrador normalmente tem “duas vozes”: às vezes retrata acontecimentos de um ponto de vista racional - componente “realista”- e às vezes da perspectiva do crente em magia - elemento mágico; conflito resolvido pelo autor quando adota ou se refere aos mitos e ao histórico cultural

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de um grupo étnico ou social) e o “realismo mágico ontológico” (que resolve a antinomia acima apontada sem recorrer a nenhuma perspectiva cultural em particular, apresentando o sobrenatural de um modo realista como se não contradissesse a razão e não são oferecidas explicações para os acontecimentos irreais no texto; equivale à naturalização do irreal). Jeanne Delbaere-Garant (1995), ao escrever a respeito das variações sobre o realismo mágico na literatura contemporânea em inglês, propõe mais três tipos: “realismo psíquico” (gerado no interior da mente), “realismo mítico” (que se aproximaria do real maravilhoso, enfatizando os espaços não consumidos), “realismo grotesco” (relativo a toda espécie de distorção hiperbólica que cria um senso de estranhamento por meio da confusão ou interpenetração de reinos diferentes como animado/inanimado ou humano/animal).

O professor e crítico francês Charles W. Scheel (2005), quando reflete sobre o realismo mágico e o realismo maravilhoso resgata as reflexões de Franz Roh, Alejo Carpentier, Irlemar Chiampi, Amaryll Chanady para dedicar-se ao estudo de Marcel Aymé, Jean Giono, Jacques S. Alexis e William Faulkner, Gabriel García Márques entre outros escritores. E comenta que mesmo que as técnicas narrativas atravessem e voltem a atravessar o Oceano, esses autores produziram textos muito diferentes, pois se incluem em línguas e contextos culturais diversos. O que explica a diversidade da produção ficcional que compõe essa modalidade.

O neofantástico, por sua vez, e como se indicou acima, parece diferenciar-se do realismo mágico por não apresentar nem a naturalização do irreal, nem a sobrenaturalização do real, mas mostrar uma ambiguidade deliberada, sem que, no entanto, exiba a hesitação no interior do texto, o que o distinguiria do fantástico tradicional.

Decorre dessas minhas reflexões o fato de eu considerar que os textos literários pertencentes à literatura fantástica tradicional apresentam como característica imprescindível a ambiguidade proveniente da hesitação (ou do espanto, interrogação, dúvida, incerteza, questionamento) no interior do texto literário. A hesitação

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entre o real e o sobrenatural pode ser determinada por diferentes alternativas, divergindo assim do neofantástico que estabelece uma ambiguidade intencional, sem possibilidade de explicação.

E essa hesitação própria do fantástico tradicional advém do conflito entre o real e o sobrenatural; a contraposição entre a reali-dade e o irreal, impossível ou insólito é apontada e reiterada pelos diferentes estudos críticos sobre o esse tipo de fantástico, como foi devidamente apontado no desenvolvimento deste trabalho.

Assim, a lógica narrativa é imprescindível enquanto empreendi-mento de sedução; a coerência interna do texto é responsável por despertar os sentimentos do leitor: medo, surpresa, angústia, enfim, a inquietante estranheza; a obra é, ao mesmo tempo, o corpo mate-rial, o complexo de procedimentos utilizados pelo autor seguindo uma lógica interna e o conjunto de reflexões e sentimentos que busca suscitar na consciência do leitor.

Como já indicado, prefiro considerar os textos que apresentam tais características como modo ou modalidade literária, uma vez que contribui para asseverar o caráter movente do fantástico literário, tanto no que se refere à sua manifestação nos gêneros narrativo, lírico e dramático, quanto em relação à sua estrutura que não se revela inalterável, embora conserve seus traços distintivos, variando de acordo com as diferentes épocas, culturas e autores.

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A literatura fantástica: caminhos teóricos

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______. Madame Hermet. In: ______. Contes et nouvelles. Paris: Larousse, 1973a. v.1, p.96-104. (Nouveaux classiques Larousse).

______. Sur l’eau. In: ______. Contes et nouvelles. Tome II. Paris: Larousse, 1973b. v.2,p.59-66. (Nouveaux classiques Larousse).

______. La peur. In: ______. Contes et nouvelles. Paris: Larousse, 1973c. v.2, p.66-72. (Nouveaux classiques Larousse).

______. Lui?In: ______. Contes et nouvelles. Paris: Larousse, 1973d. v.2, p.106-114. (Nouveaux classiques Larousse).

______. Qui sait?In: ______. Contes et nouvelles. Paris: Larousse, 1973e. v.2,p.115-127. (Nouveaux classiques Larousse).

MUSSET, Alfred de. La nuit de décembre. Disponível em:<http://poesie.webnet.fr/lesgrandsclassiques/poemes/alfred_de_musset/la_nuit_de_decembre.htl> Acesso em: 14 nov. 2013a.

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SCHEEL, Charles W. Réalisme magique et réalisme merveilleux: des théories aux poétiques. Paris: L’Harmattan, 2005.

SCHNEIDER, Marcel. La littérature fantastique en France.Paris: Fayard, 1964.

SPINDLER, William. Magic realism. Fórum for modern language studies, Oxford, n.39, p.75-85, 1993.

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Ana Luiza Silva Camarani

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SOBRE OS CRÍTICOS

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SOBRE OS CRÍTICOS

ANA LUIZA SILVA CAMARANI possui graduação em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1974), mestrado em Letras (Língua e Literatura Francesa) (1991) e doutorado em Letras (Língua e Literatura Francesa) (1997) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor assistente doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Francesa e Literatura Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas: romantismo francês, fantástico, realismo mágico, narrativa poética, narrativa lecléziana. Pós-doutorado em Estudos Literários (Curso de estudos linguísticos, literários e tradutológicos franceses), sob a supervisão da Profª Drª Gloria Carneiro do Amaral, na Universidade de São Paulo (2013-2014), de cuja pesquisa resultou o presente trabalho.

BELLEMIN-NOËL, Jean – Nascido em Isère, França, em 1931, interessou-se desde 1948 pela psicanálise. Foi professor de literatura francesa na Sorbonne e, depois, na Universidade de Paris 8. Seu campo de pesquisa centra-se também na literatura francesa, tendo publicado quinze livros e cerca de oitenta artigos de crítica literária sobre literatura fantástica, Freud, mitologia e leitura. Desenvolveu

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um novo conceito em genética literária, o avant-texte e uma outra maneira de ler os textos com o apoio de Freud, a textanalyse.

BESSIÈRE, Irène – Historiadora de arte francesa é encarregada da área de cinema no Institut national d’histoire de l’art e na Maison des sciences de l’homme. Dirige dois programas de pesquisa: “História do cinema e história da arte” e “Os europeus no cinema americano”, de que participam especialistas franceses e correspondentes estrangeiros. Suas pesquisas focalizam a literatura e o cinema fantásticos e as relações entre a história do cinema e a história da arte.

CAILLOIS, Roger – Crítico, ensaísta, poeta, sociólogo, nasceu em Reims em 1913. Sua obra, que muito deve à exploração dos mundos poéticos do imaginário e do fantástico, mostra-se como uma contribuição essencial e original à crítica literária e às ciências humanas do século XX. Foi eleito para a Academia francesa em 1971; morreu em 1978.

CASTEX, Pierre-Georges – Nascido em Toulouse em 1915 e morto em Paris em 1995, foi professor de literatura moderna na Universidade de Sorbonne. Foi eleito membro da academia de ciências morais e políticas em 1974. Com Paul Surer e Georges Becker é autor de um Manual de estudos literários franceses, lançado em seis volumes, cada um contemplando um século da história literária francesa. Foi responsável pela edição das obras completas de Villiers de l’Isle Adam e da Comédia Humana de Honoré de Balzac.

CESERANI, Remo – Nascido em Soresina, Itália, em 1933, além de crítico literário, é professor e grande estudioso de literatura comparada na Universidade de Bologna. Trabalha ainda com teoria literária, história da crítica e com a literatura europeia do Renascimento à idade moderna. Em 2012 esteve como professor visitante no Departamento de Francês e Italiano, da Stanford University; neste mesmo ano foi contemplado com o prêmio Feltrinelli da’Accademia de Lincei, dedicado à literatura européia.

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A literatura fantástica: caminhos teóricos

FURTADO, Filipe – Professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, no Departamento de Estudos Anglo-Americanos.

FINNÉ, Jacques – Nasceu em Bruxelas, Bélgica, em 1944. É crítico literário, especialista em literatura fantástica e traduz do inglês, do italiano e do neerlandês para o francês. Além de La littérature fantastique: essai sur l’organisation surnaturelle, publicou três volumes sobre o fantástico americano e seis volumes sobre mulheres escritoras, sempre salientando a literatura fantástica.

MALRIEUX, Joël – Professor de Letras modernas, ensina em colégio e é formador no IUFM (Institut universitaire de formation des maîtres) de Paris sobre análise da imagem. Ganhou o prêmio Grand Prix de l’imaginaire por seu livro Le fantastique; publicou estudos sobre os personagens Frankenstein de Mary Shelley e Dr Jekyll-Mr Hyde de Robert Louis Stevenson, assim como sobre novelas de Maupassant.

MAUPASSANT, Guy de – Nasceu em Fécamp, na Normandia, em 1850. Sua carreira literária inicia-se por intermédio de Gustave Flaubert, que o põe em contato com os grandes escritores da época: Zola, Huysmans, Daudet e os irmãos Goncourt. Depois do sucesso de Boule-de-Suif , narrativa publicada em 1880, integrando Les Soirées de Médan, e da publicação de La Maison Tellier, em 1881, Maupassant abandona seu emprego em um ministério e dedica-se inteiramente à escritura. A partir dessa época publica conjuntos de contos e novelas, romances e artigos em jornais. Por volta de 1891, desenvolve gradativamente um sentimento de mal-estar e passa a ser vítima de alucinações; tenta suicidar-se e é internado na casa de saúde do Dr. Blanche. Morre em 1893.

NODIER, Charles – Escritor romântico francês, nasce em Besançon em 1780 e morre em Paris no ano de 1844. Homem erudito, bibliófilo, além de consagrar-se à literatura, dedica-se também à história natural, à entomologia e à política. Filho de militante jacobino, distancia-se do espírito revolucionário paterno,

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mostrando certa nostalgia em relação à monarquia (como, aliás, muitos artistas da época que não se adaptavam ao materialismo burguês), mesmo se seu principal combate político se fixasse na luta contra o despotismo. Fora dos círculos políticos, torna-se conservador da biblioteca do Arsenal, onde promove encontros com os futuros atores do romantismo, Victor Hugo, Lamartine, Nerval, Musset, Gautier. É figura marcante em sua época e nas seguintes com uma obra discreta, mas fundadora.

PAES, José Paulo – Nascido em Taquaritinga, interior do estado de São Paulo, em 1926, foi um poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta brasileiro. Em 1949 passa a colaborar com os jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Tempo, Jornal de Notícias e Revista Brasiliense, aproximando-se de escritores modernistas como Graciliano Ramos, Jorge Amado e Oswald de Andrade. Por volta de 1963, Paes dá início a um trabalho editorial intenso à frente da Editora Cultrix, dedicando-se integralmente à literatura. Em 1981, aposenta-se como editor e, dando início a um dos mais competentes trabalhos de tradução entre os escritores brasileiros, verte para o português autores de diversas línguas. Morreu na capital do estado, em 1998.

ROAS, David – Nasceu em Barcelona em 1965. Escritor e crítico literário espanhol, é também professor de Teoria da literatura e Literatura comparada na Universidad Autónoma de Barcelona. Especialista em literatura fantástica, apresenta diversas obras publicadas sobre o assunto.

RODRIGUES, Selma Calasans – Natural do Rio de Janeiro, fez parte do corpo docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro ministrando aulas de Literatura Comparada e Teoria Literária; posteriormente, exerceu suas atividades na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT). È também psicanalista.

TODOROV, Tzvetan – Nascido na Bulgária, passa a morar em Paris em 1963 e, dez anos depois obtem a nacionalidade francesa. Veemente defensor das tradições humanistas veiculadas por

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A literatura fantástica: caminhos teóricos

Montaigne, Rousseau e Benjamin Constant, é filósofo, semiólogo, linguista e historiador. Juntamente com Roland Barthes e Gérard Genette, torna-se um dos grandes teóricos do estruturalismo literário. Seu primeiro ensaio, Théorie de la littérature textes des formalistes russes, é publicado em 1966, seguido, alguns anos depois, em 1970, de Introduction à la littérature fantastique, graças ao qual adquire notoriedade, confirmada em 1972 pelo Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage; em 2007 lança La Littérature en péril. Suas obras são traduzidas em mais de vinte e cinco línguas.

TRITTER, Valérie – Doutora em literatura comparada, especialista em literatura e cinema fantásticos franceses, ingleses e americanos. Autora e organizadora de obras universitárias. Professora do segundo grau, encarregada das relações internacionais da reitoria de Paris.

VAX, Louis – Nasceu em Metz, França, em 1924. Foi professor de filosofia na Universidade de Nancy e de lógica moderna no Centro Universitário de Luxembourg. É autor de várias publicações sobre análise da linguagem, literatura fantástica, lógica contemporânea, filosofia contemporânea e demonologia.

VIEGNES, Michel – Foi professor na Indiana University, em Bloomington e no Bryn Mawr College, em Filadélfia, U.S.A.; em seguida, lecionou na Universidade de Grenoble, França; atualmente é professor na Universidade de Fribourg, Suiça. Dedica-se ao estudo da literatura francesa dos séculos XIX e XX, do fantástico e literaturas do imaginário, da representação do medo na literatura, artes gráficas e cinema e dos gêneros literários, sobretudo poesia e novela.

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COLEÇÃO LETRAS(NÚMEROS PUBLICADOS):

1 – Do poético ao lingüístico no ritmo dos trovadoresGladis Massini-Cagliari

2 – Um poeta na medida do impossívelLaura Beatriz F. de Almeida

3 – Filigranas do discursoMaria do Rosário V. Gregolin (Org.)

4 – A expressão da futuridade no português faladoAdemar da Silva

5 – O horror antigo e o horror moderno em ‘O tempo e ovento’ e ‘Noite’ de Erico VerissimoMaria das Graças Gomes Villa da Silva

6 – António de Morais Silva: Lexicógrafo da Língua PortuguesaClotilde de Almeida Azevedo Murakawa

7 – J.-K. Huysmans: de Charles-Marie-Georges a J(oris)-K(arl) Huysmans “O Homem como invenção de si-mesmo”

Luiz Antonio Amaral

8 – J.-K. Huysmans: Expressão do decadentismo francêsLuiz Antonio Amaral

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SOBRE O VOLUME

coleção: Letras, nº 9 (Coleções da FCL)formato: 14 x 21 cm

mancha: 10 x 18,5 cmtipologia: Garamond 9/11

papel: pólen bold 90 g/m2 (miolo)cartão suprema: 250 g/m2 (capa)

1ª edição: 2014

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