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7 A metamorfose do aprender na sociedade da informação Resumo A sociedade da informação precisa tornar-se uma sociedade aprendente. As novas tecnologias da informação e da comunicação assumem, cada vez mais, um papel ativo na configuração das ecologias cognitivas. Elas facilitam experiências de aprendizagem complexas e cooperativas. O hipertexto não é uma simples técnica. É uma espécie de metáfora epistemológica para a interatividade. As redes e a conectividade podem abrir nossas mentes para a sensibilidade solidária. A sociedade da informação requer um pensamento reansversal e projetos transdisciplinares de pesquisa e aprendizagem. Palavras-chave Sociedade da informação; Sociedade aprendente; Hipertexto; Pensamento transversal; Transdisciplinaridade. The metamorphosis of learningin the information society Abstract The Information Society must become a Learning Society. The new technologies of information and communication play, more and more, an active role in the configuration of cognitive ecologies. They facilitate complex and cooperative learning experiences. Hypertext is not just a technique. It’s a kind of epistemological metaphor of interactivity. Networking and connectivity may open our minds for solidary sensitivity. The Information Society requires transversal thinking and transdisciplinary research and learning projects. Keywords Information society; Learning society; Hypertext; Transversal thinking; Transdisciplinarity. INTRODUÇÃO Este artigo é uma introdução sumamente compacta às transformações do aprender e às reconfigurações do conhecimento ensejadas pelas novas tecnologias da informação e da comunicação. A espécie humana alcançou hoje uma fase evolutiva inédita na qual os aspectos cognitivo e relacional da convivialidade humana se metamorfoseiam com rapidez nunca antes experimentada. Isso se deve em parte à função mediadora, quase onipresente, dessas novas tecnologias. Junto às oportunidades enormes de incremento da sociabilidade humana, surgem também novos riscos de discriminação e desumanização. No tocante à aprendizagem e ao conhecimento, chegamos a uma transformação sem precedentes das ecologias cognitivas, tanto das internas da escola, como das que lhe são externas, mas que interferem profundamente nela. As novas tecnologias não substituirão o/a professor/a, nem diminuirão o esforço disciplinado do estudo. Elas, porém, ajudam a intensificar o pensamento complexo, interativo e transversal, criando novas chances para a sensibilidade solidária no interior das próprias formas do conhecimento. O tema específico deste artigo e os muitos temas conexos O propósito deste artigo é bastante circunscrito e específico: limita-se a alguns aspectos da profunda transformação das formas do aprender na era das redes ou na assim chamada sociedade da informação. Sendo este o tema escolhido, é importante ressaltar que existe um enorme leque de outros temas importantes relacionados com a sociedade da informação que não serão abordados neste texto. Vários deles são tão relevantes, que interferem, enquanto parâmetros analíticos indispensáveis, na própria validação do tema específico que escolhemos abordar. Supomos, por isso, perspicácia crítica para tópicos como os seguintes: A era das redes tornou evidente que razão instrumental e razão crítico-reflexiva não são alternativas contrapostas, mas racionalidades conjugáveis e complementares. A expansão incrível das linguagens Hugo Assmann Dr. em teologia; pós-doutor em sociologia; professor titular da Faculdade de Educação da Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba, SP), na pós-graduação em educação (mestrado e doutorado) Endereço postal: Unimep, Pós-graguação em Educação - Caixa Postal 68 CEP 13400-901 - Piracicaba, SP. E-mail: [email protected] ARTIGOS Ci. Inf., Brasília, v. 29, n. 2, p. 7-15, maio/ago. 2000

A metamorfose do aprender na sociedade da informação

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A metamorfose do aprender nasociedade da informação

Resumo

A sociedade da informação precisa tornar-se uma sociedadeaprendente. As novas tecnologias da informação e dacomunicação assumem, cada vez mais, um papel ativo naconfiguração das ecologias cognitivas. Elas facilitamexperiências de aprendizagem complexas e cooperativas.O hipertexto não é uma simples técnica. É uma espécie demetáfora epistemológica para a interatividade. As redes e aconectividade podem abrir nossas mentes para asensibilidade solidária. A sociedade da informação requer umpensamento reansversal e projetos transdisciplinares depesquisa e aprendizagem.

Palavras-chave

Sociedade da informação; Sociedade aprendente; Hipertexto;Pensamento transversal; Transdisciplinaridade.

The metamorphosis of learningin the informationsociety

Abstract

The Information Society must become a Learning Society.The new technologies of information and communication play,more and more, an active role in the configuration of cognitiveecologies. They facilitate complex and cooperative learningexperiences. Hypertext is not just a technique. It’s a kind ofepistemological metaphor of interactivity. Networking andconnectivity may open our minds for solidary sensitivity.The Information Society requires transversal thinking andtransdisciplinary research and learning projects.

Keywords

Information society; Learning society; Hypertext; Transversalthinking; Transdisciplinarity.

INTRODUÇÃO

Este artigo é uma introdução sumamente compacta àstransformações do aprender e às reconfigurações doconhecimento ensejadas pelas novas tecnologias dainformação e da comunicação. A espécie humana alcançouhoje uma fase evolutiva inédita na qual os aspectoscognitivo e relacional da convivialidade humana semetamorfoseiam com rapidez nunca antes experimentada.Isso se deve em parte à função mediadora, quaseonipresente, dessas novas tecnologias. Junto àsoportunidades enormes de incremento da sociabilidadehumana, surgem também novos riscos de discriminação edesumanização.

No tocante à aprendizagem e ao conhecimento, chegamosa uma transformação sem precedentes das ecologiascognitivas, tanto das internas da escola, como das que lhesão externas, mas que interferem profundamente nela.As novas tecnologias não substituirão o/a professor/a, nemdiminuirão o esforço disciplinado do estudo. Elas, porém,ajudam a intensificar o pensamento complexo, interativoe transversal, criando novas chances para a sensibilidadesolidária no interior das próprias formas do conhecimento.

O tema específico deste artigo e os muitos temas conexos

O propósito deste artigo é bastante circunscrito eespecífico: limita-se a alguns aspectos da profundatransformação das formas do aprender na era das redes ouna assim chamada sociedade da informação. Sendo esteo tema escolhido, é importante ressaltar que existeum enorme leque de outros temas importantesrelacionados com a sociedade da informação que nãoserão abordados neste texto. Vários deles são tãorelevantes, que interferem, enquanto parâmetrosanalíticos indispensáveis, na própria validação do temaespecífico que escolhemos abordar.

Supomos, por isso, perspicácia crítica para tópicos comoos seguintes:

• A era das redes tornou evidente que razão instrumentale razão crítico-reflexiva não são alternativascontrapostas, mas racionalidades conjugáveis ecomplementares. A expansão incrível das linguagens

Hugo AssmannDr. em teologia; pós-doutor em sociologia;professor titular da Faculdade de Educação da Unimep (UniversidadeMetodista de Piracicaba, SP), na pós-graduação em educação (mestradoe doutorado)Endereço postal: Unimep, Pós-graguação em Educação - Caixa Postal 68CEP 13400-901 - Piracicaba, SP.E-mail: [email protected]

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digitais levou ao aparecimento explícito de suaincompletude. Os algoritmos recursivos e genéticosse tornaram indispensáveis na “computaçãoevolucionária”. Os falsos dilemas do velho sonho da“linguagem perfeita” ficaram mais perceptíveis.Evidenciou-se também a insuficiência operativa dapura reflexão crítica1 .

• É preciso distanciar-se tanto dos escolhos dotecnootimismo ingênuo (tecnointegrados) como dorechaço medroso da técnica (tecnoapocalípticos). Emmuitos ambientes escolares, persiste o receiopreconceituoso de que a mídia despersonaliza,anestesia as consciências e é uma ameaça àsubjetividade. A resistência de muitos(as)professores(as) a usar soltamente as novas tecnologiasna pesquisa pessoal e na sala de aula tem muito a vercom a insegurança derivada do falso receio de estarsendo superado/a, no plano cognitivo, pelos recursosinstrumentais da informática. Neste sentido, o merotreinamento para o manejo de aparelhos, por maisimportante que seja, não resolve o problema. Por isso,é sumamente importante mostrar que a função do/aprofessor/a competente não só não está ameaçada, masaumenta em importância. Seu novo papel já não seráo da transmissão de saberes supostamente prontos, maso de mentores e instigadores ativos de uma novadinâmica de pesquisa-aprendizagem.

• A expressão “sociedade da informação” deve serentendida como abreviação (discutível!) de umaspecto da sociedade: o da presença cada vez maisacentuada das novas tecnologias da informação e dacomunicação. Serve para chamar a atenção a esteaspecto importante. Não serve para caracterizar asociedade em seus aspectos relacionais maisfundamentais. Do conceito de sociedade dainformação, passou-se, por vezes sem as convenientescautelas teóricas, ao de Knowledge Society (Sociedadedo Conhecimento) e Learning Society (SociedadeAprendente). Em francês alguns falam em SocietéCognitive. Parece haver alguma conveniência paraadmitir, em português, a expressão sociedadeaprendente’2 .

• Nas teorias de gerenciamento empresarial, alastra-seo discurso sobre learning organisations (organizaçõesaprendentes - cf. Peter Senge3 e outros). A incrívelabundância e variedade de linguagens acerca desseprocesso tecnológico e, ao mesmo tempo, ideológico-político é um fenômeno deveras impressionante.

Supomos igualmente que, diante de acontecimentos tãocomplexos, entenda-se como de bom alvitre munir-se dealgumas cautelas críticas, sem deixar de insinuar pistas deopção. Para esse efeito _ e por amor à brevidade _ servimos-nos de algumas breves citações da vasta produção da UniãoEuropéia acerca do tema, que já se estende do início dadécada de 90 até hoje. Ficamos em alguns poucosexemplos4 .

O conceito de informação admite muitos significados5 .O passo da informação ao conhecimento é um processorelacional humano, e não mera operação tecnológica.

Em primeiro lugar, é fundamental estabelecer umadistinção clara entre dados, informação e conhecimento.Do nosso ponto de vista, a produção de dados nãoestruturados não conduz automaticamente à criação deinformação, da mesma forma que nem toda a informaçãoé sinónimo de conhecimento. Toda a informação pode serclassificada, analisada, estudada e processada de qualqueroutra forma a fim de gerar saber. Nesta acepção, tanto osdados como a informação são comparáveis àsmatérias-primas que a indústria transforma em bens.

Como definir a sociedade da informação?

A sociedade da informação é a sociedade que estáactualmente a constituir-se, na qual são amplamenteutilizadas tecnologias de armazenamento e transmissãode dados e informação de baixo custo. Esta generalizaçãoda utilização da informação e dos dados é acompanhadapor inovações organizacionais, comerciais, sociais e

Hugo Assmann

1 ECO, Umberto. La ricerca della lengua perfetta. Roma - Bari: Laterza,1993

2 ASSMANN, Hugo. Reencantar a Educação - Rumo à SociedadeAprendente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, 4ª ed. 2000.

3 SENGE, Peter M. A quinta disciplina. Arte e Prática da organização queaprende. São Paulo: Best Seller. 1994; A Quinta Disciplina - Caderno deCampo. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1995; A Dança das Mudanças. Riode Janeiro: Campus, 1999, 680 p.

4 Está disponível online um grande número de documentos e informaçõessobre as atividades da Comissão Européia relativas à Sociedade daInformação através do ISPO, “Gabinete do Projeto Sociedade daInformação” da Comissão (http://www.ispo.cec.be; ou no portal geralda CE: http://europa.eu.int/en/comm/ ). Para comentários, boletinsinformativos e banco de dados é também muito útil o servidor doCentro de Informática da Universidade do Minho.

5 FLÜCKIGER, Daniel Federico. Contributions Towards a Unified Conceptof Information (tese de doutorado disponível online, Fac. of Science,atthe Univ. of Berne, Suiça, 1995).

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jurídicas que alterarão profundamente o modo de vidatanto no mundo do trabalho como na sociedade em geral.

No futuro, poderão existir modelos diferentes desociedades da informação, tal como hoje existem diferentesmodelos de sociedades industrializadas. Esses modelospodem divergir na medida em que evitam a exclusão sociale criam novas oportunidades para os desfavorecidos.A importância da dimensão social caracteriza o modeloeuropeu. Este modelo deverá também estar imbuído deuma forte ética de solidariedade.

A mera disponibilização crescente da informação nãobasta para caracterizar uma sociedade da informação.O mais importante é o desencadeamento de um vasto econtinuado processo de aprendizagem.

...sublinhamos que é fundamental considerar a sociedadeda informação como uma sociedade da aprendizagem.O processo de aprendizagem já não se limita ao período deescolaridade tradicional. Como referido no Livro Brancoda Comissão sobre a educação, “Rumo à SociedadeCognitiva” (1995), e no relatório da OCDE“Aprendizagem ao Longo da Vida” (1996), trata-se de umprocesso que dura toda a vida, com início antes da idadeda escolaridade obrigatória, e que decorre no trabalho eem casa.

No acesso à sociedade da informação as políticas públicaspodem fazer a diferença.

Para que sejam aproveitadas todas as vantagenseconómicas e sociais do progresso tecnológico e melhoradaa qualidade de vida dos cidadãos, a sociedade da informaçãodeve assentar nos princípios da igualdade de oportunidades,participação e integração de todos, o que só será possívelse todos tiverem acesso a uma quota parte mínima dosnovos serviços e aplicações oferecidos pela sociedade dainformação.

Nas discussões da União Européia sobre a sociedade dainformação houve um evolução politicamente crucial:

...a idéia inicialmente preconizada no relatório Bangemann(1994) e posteriormente desenvolvida em váriosrelatórios oficiais da UE – constitui, na nossa opinião,uma abordagem excessivamente minimalista do papel dasautoridades públicas nesse processo.(...)

Para ir ao encontro destas preocupações, são necessáriaspolíticas públicas que possam ajudar-nos a beneficiar dasvantagens do progresso tecnológico, assegurando aigualdade de acesso à sociedade da informação e umadistribuição eqüitativa do potencial de prosperidade6 .

O famoso Livro Verde sobre a Sociedade da Informaçãoem Portugal é muito explícito acerca dos riscos que correa democraticidade na era das redes:

O caracter democrático da sociedade da informação deveser reforçado. Por isso, não é legítimo abandonar os maisdesprotegidos e deixar criar uma classe de info-excluídos.É imprescindível promover o acesso universal à info-alfabetização e à info-competência7 .

TECNOLOGIAS VERSÁTEIS FACILITAMAPRENDIZAGENS COMPLEXAS ECOOPERATIVAS8

As novas tecnologias da informação e da comunicação jánão são meros instrumentos no sentido técnicotradicional, mas feixes de propriedades ativas. São algotecnologicamente novo e diferente. As tecnologiastradicionais serviam como instrumentos para aumentaro alcance dos sentidos (braço, visão, movimento etc.).As novas tecnologias ampliam o potencial cognitivo doser humano (seu cérebro/mente) e possibilitam mixagenscognitivas complexas e cooperativas. Uma quantidadeimensa de insumos informativos está à disposição nasredes (entre as quais ainda sobressai a Internet). Umgrande número de agentes cognitivos humanos podeinterligar-se em um mesmo processo de construção deconhecimentos. E os próprios sistemas interagentesartificiais se transformaram em máquinas cooperativas,com as quais podemos estabelecer parcerias na pesquisa eno aviamento de experiências de aprendizagem.

A metamorfose do aprender na sociedade da informação

6 Todas as citações precedentes são do documento da EU Construir aSociedade Européia da Informação para todos - Relatório Final do Grupode Peritos de Alto Nível - Abril 1997, disponível em vários idiomas naInternet

7 Do Livro Verde para a Sociedade da Informação em Portugal (Maio/1997, 125 p.), disponível na Internet; pode ser solicitado pelo e-mail:[email protected]

8 No que segue retomamos idéias do capítulo 9, “O impacto sócio-cognitivo das novas tecnologias”, do livro: ASSMANN, Hugo & MOSUNG, Jung. Competência e Sensibilidade Solidária - Educar [ara aEsperança. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

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Para evitar mal-entendidos, é importante prevenir: acrítica à razão instrumental continua sendo um desafiopermanente. Nada de redução do Lógos à Techné. Mas,doravante, já não haverá instituição do Lógos sem acooperação da Techné. As duas coisas se tornaraminseparáveis em muitas das instâncias – não em todas, éclaro __ do que chamamos aprender e conhecer. Estamosdesafiados a assumir um novo enfoque do fenômenotécnico. Na medida em que este se tornou co-estruturadorde nossos modos de organizar e configurar linguagens,penetrou também nas formas do nosso conhecimento.

Isto significa que as tecnologias da informação e dacomunicação se transformaram em elemento constituinte(e até instituinte) das nossas formas de ver e organizar omundo. Aliás, as técnicas criadas pelos homens semprepassaram a ser parte das suas visões de mundo. Isto não énovo. O que há de novo e inédito com as tecnologias dainformação e da comunicação é a parceria cognitiva queelas estão começando a exercer na relação que o aprendenteestabelece com elas. Termos como “usuário” já nãoexpressam bem essa relação cooperativa entre ser humanoe as máquinas inteligentes. O papel delas já não se limitaà simples configuração e formatação, ou, se quiserem, aoenquadramento de conjuntos complexos de informação.Elas participam ativamente do passo da informação parao conhecimento.

Está acontecendo um ingresso ativo do fenômeno técnicona construção cognitiva da realidade. Doravante, nossasformas de saber terão um ingrediente – um entre muitosoutros, é bom frisar __ derivado da nossa parceria cognitivacom as máquinas que possibilitam modos de conheceranteriormente inexistentes.

Em resumo, as novas tecnologias têm um papel ativo eco-estruturante das formas do aprender e do conhecer.Há nisso, por um lado, uma incrível multiplicação dechances cognitivas, que convém não desperdiçar, masaproveitar ao máximo. Por outro lado, surgem sériasimplicações antropológicas e epistemológicas nessaparceria ativa do ser humano com máquinas inteligentes.

O que muda no próprio sujeito do processo criativo doaprender, quando a aprendizagem acontece em umaparceria co-instituinte e co-estruturante na qual amáquina representa um novo patamar técnico definívelcomo feixe de propriedades cognitivas? Como seentrelaçam o papel ativo do ser humano e as funções nãopuramente passivas ou comandadas, mas parcialmenteativas e geradas autonomamente pela máquina? Tudoindica que chegou a hora de colocar em novas bases a

própria questão do sujeito epistêmico. Ou será que issonos parece tão novo só porque nunca havíamos levado asério a evolução, nunca havíamos pensado de formaconseqüente, o que implica aceitar que somos fruto dosnichos vitais que nos acolheram, ou que construímos paranossa espécie, ao longo de toda a evolução?

Essas coisas devem parecer bastante estranhas, ou não ternenhum sentido, para quem usa o computador apenascomo uma espécie de máquina de escrever incrementadacom alguns recursos a mais. Talvez já comecem, porém, afazer sentido para quem redige textos com abundantemanejo de mixagem redacional que inclui deslocamentosde porções de texto, recurso constante a muitos arquivos,abertura de multitelas, uso simultâneo da Internet etc.Creio que aumentará de sentido para quem é cibernauta,isto é, navegante mais ou menos assíduo da Internet,pesquisando com os robôs de busca (AltaVista, HotBot etantos outros) no ciberespaço transformado em imensabiblioteca virtual escancarada, incrivelmente versátil ecada vez mais ilimitada. E é tão fácil aprender meia dúziade truques para incrementar a busca, por exemplo,interligando verbetes compostos de várias palavras ou atéfrases inteiras com um simples sinal de +, ou colocando-os entre aspas etc.

Mas o conceito de interatividade e parceria ativa commáquinas versáteis e “inteligentes” adquire um sentidoexperimental muito mais forte para quem trabalha comsistemas multiagentes, nos quais se tornam manifestos arelativa autonomia e os níveis cognitivos emergentespropiciados pelo uso de algoritmos genéticos (ou seja,programas que se auto-organizam e auto-reprogramam).

HIPERTEXTUALIDADE: A CHANCE DOESTUDO CRIATIVO

Não vamos deter-nos longamente neste tópico, por se tratarde um assunto conhecido para qualquer navegador/a daInternet. Do ponto de vista técnico, o hipertexto foi apassagem da linearidade da escrita para a sensibilização deespaços dinâmicos. Como conceito de conectividaderelacional mediada pela tecnologia, podemos definir ahipertextualidade como um vasto conjunto de interfacescomunicativas, disponibilizadas nas redes telemáticas.No interior de cada hipertexto, deparamo-nos com umconjunto de nós interligados por conexões, nas quais ospontos de entrada podem ser palavras, imagens, ícones etramações de contatos multidirecionais (links). É importantedestacar que o hipertexto contém geralmente suficientesgarantias de retorno para que os sujeitos interagentes nãose percam e se sintam seguros em sua navegação.

Hugo Assmann

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Do ponto de vista diretamente cognitivo, o hipertextonão é uma simples metáfora de novas atitudes aprendentes,que buscam criativamente novas maneiras de conhecer.É, também e sobretudo, um desafio epistemológico, ouseja, o processo do conhecimento se transformaintrinsecamente em uma versatilidade de iniciativas,escolhas, opções seletivas e constatações de caminhosequivocados ou propícios. Isso permite estabeleceranalogias diretas com a maneira como as coisas __ segundoo que nos foram mostrando as pesquisas neurofisiológicas__ em nosso cérebro/mente, capacitado para apostas“enactantes” (usando a linguagem de Francisco Varela),isto é, ativamente incursionantes em mundos diversificadosdo sentido. Mas, da mesma maneira como se pode seguir emuma utilização, meramente instrumental e pouco criativadas novas tecnologias, é também sinistramente plausívelque, por resistência de muitas escolas a ingressardecididamente na era das redes, o potencial dos aprendentescontinue submetido a um verdadeiro apartheid neuronal.O uso (ou não uso) versátil das novas tecnologias temconseqüências já constatadas no desenvolvimento dopotencial cognitivo dos aprendentes.

Em síntese, a tecnologia do hipertexto e a sucessivaincrementação de sua dinâmica interna criaram umaenorme facilidade para a pesquisa criativa, porquetransformaram os modos de tratar, acessar e construir oconhecimento. Dessa forma, também possibilitam umnovo entendimento da própria realidade enquantorealidade discursiva, construída mediante nossas maneirasde enactá-la, isto é, de apostar ativamente em mundos dosentido, ingressando neles através de nossos processos doconhecimento9 .

A PASSAGEM A UM PARADIGMACOOPERATIVO DO CONHECIMENTO

Um dos aspectos mais fascinantes da era das redes é atransformação profunda do papel da memória ativa dosaprendentes na construção do conhecimento. Medianteo uso de memórias eletrônicas hipertextuais, que podemser consideradas como uma espécie de prótese externa doagente cognitivo humano, os aprendentes se vêemconfrontados com uma situação profundamentedesafiadora: o recurso livre e criativo a essa ampla memóriaexterna pode liberar energias para o cultivo de umamemória vivencial autônoma e personalizada, que sabeescolher o que lhe interessa; por outra parte, os que forem

preguiçosos e pouco criativos correm o risco de absorverpassivamente nada mais que fragmentos dispersos de umuniverso informativo no qual há de tudo. No oceano daconectividade, subsiste o risco de virar concha presa a umou poucos fragmentos de pedra.

As redes funcionam como estruturas cognitivasinterativas pelo fato de terem características hipertextuaise pela interferência possível do conhecimento que outraspessoas construíram ou estão construindo. Com isso, o/aaprendente pode assumir o papel de verdadeiro gestor dosseus processos de aprendizagem.

Precisamos visualizar conjuntamente os agentes humanose a tecnologia versátil de modo a superar uma concepçãoem demasiado maquínica da interação entre sereshumanos e ambientes cognitivos artificiais. Trata-se deentender que, embora preservando uma série de aspectostípicos das racionalidades instrumentais e das linguagensreducionistas, as tecnologias adquiriram tamanhaversatilidade e disponibilidade cooperativa que podemoschamá-las sistemas cooperativos ou interfaces de parceriaentre o homem e a técnica.

Marvin Minsky não duvida em atribuir aos sistemasmultiagentes artificiais uma forte característica criativa:

...o surpreendente surgimento, a partir de um sistemacomplexo, de um fenômeno que não parecia inerente àsdiferentes partes desse sistema. Esses fenômenosemergentes ou coletivos mostram que um todo pode sersuperior à soma das partes10 .

Aprendentes humanos podem, agora, situar-se no interiorde ecologias cognitivas nas quais a morfogênese doconhecimento passa a acontecer sob a forma daquilo quePierre Lévy denomina inteligência coletiva11 . A construçãodo conhecimento já não é mais produto unilateral deseres humanos isolados, mas de uma vasta cooperaçãocognitiva distribuída, da qual participam aprendenteshumanos e sistemas cognitivos artificiais. Isso implicamodificações profundas na forma criativa das atividadesintelectuais. Doravante precisamos incluir a cooperaçãoda técnica em nossos modos de pensar12 . Segundo alguns

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9 Para maior bibliografia e abordagem pedagógica do tema, verGONÇALVES DE SOUZA, C.R. As implicações pedagógicas de umavisão hipertextual da realidade . Piracicaba, Unimep. dissertação demestrado, 2000. (Orientador: Hugo Assmann)

10 Apud. LINK-PEZET, Jo. De la représentation à la coopération: évolutiondes approches théoriques du traitement de l’information. Disponível nainternet, cf. Solaris, Sommaire du dossier no. 5.

11 LÉVY, P. A inteligência coletiva. São Paulo: Loyola, 1998; do mesmoautor: As tecnologias da Inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999.

12 Lopes Guimarães Jr., M J. A cibercultura e o surgimento de novas formasde sociabilidade. Disponível na Internet, junho/2000.

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autores, já começou a acontecer uma experiênciaaprendente profundamente inovadora, na qual já não setrata de uma relação de dependência recíproca entre osujeito cognoscente e seus instrumentos técnicos, mas deuma “autoconstituição ontológica de um novo sujeito a partirdos seus objetos13 ” que são agora versáteis e cooperantes.

A criação de memórias eletrônicas coletivas obedece aindanormalmente a um esquema estrito de linguagens formais.Mas a co-presença de agentes cognitivos humanos eartificiais na ativação das interfaces comunicativas entreos agentes humanos e aquilo que está disponibilizado éativável nas máquinas cooperantes já constitui umaecologia cognitiva surpreendentemente criativa. Já nãocabem dúvidas de que, nesse processo cognitivo, surgemfenômenos de descobertas imprevistas, cujascaracterísticas não estavam pré-programadas daquele jeitonas máquinas, nem previstas na expectativa dos agenteshumanos. É a essa versatilidade criativa que muitos autoresse referem quando usam conceitos como auto-organizaçãoe emergência14 para referir-se às inovações criativas doconhecimento, que se tornaram possíveis mediante acooperação humana com organizações hipercognitivashipertextuais nas máquinas inteligentes.

O AGENCIAMENTO COOPERATIVO DOSCAMPOS DO SENTIDO

Já vimos que o hipertexto enseja uma libertação e explosãodo pensamento criativo. Vimos depois como aconteceuma presença ativa de outros agentes cognitivos __

humanos e máquinas cooperantes __ em um mesmoprocesso de construção cooperativa do conhecimento.Apontamos que essa dinâmica cooperativa doconhecimento apresenta fenômenos de auto-organizaçãoe níveis criativos emergentes. Passemos agoraexplicitamente da questão das formas sintaticamentecomplexas e cooperantes, na constituição dos campossemânticos, para a questão mais de fundo, que é a do caráterigualmente cooperativo dos mundos do sentido queemergem e do papel solidário dos agentes que interferemem campos do sentido.

Comecemos com uma citação de Jo Link-Pezet:

Para Piaget, o conhecimento acontece no momento emque o pensamento lógico do racionalismo e a experiênciasensorial se encontram em um processo dialético edinâmico do pensamento, no qual essa dualidade co-existe. Essas duas visões se co-especificam uma a outraem um movimento de vaivém, superando a rigidez dopensamento cartesiano e pondo em evidência a relaçãoconstitutiva que existe entre o homem e o seu ambiente,entre o sujeito (que conhece) e aquilo que é conhecido(objeto do conhecimento), entre o homem, seu corpo esua experiência15 .

Esta é uma descrição que julgamos bastante fiel do pontono qual se estagnou o construtivismo de Piaget. Ele aindaestá marcado por uma visão da racionalidade fortementeintelectualista, ou, se quiserem, pela razão formalizante,preocupada prioritariamente com os níveis de explicitaçãoconsciente das formas do conhecimento. Dentro de umacerta continuidade, mas também com alguns lances deruptura com o pensamento construtivista piagetiano,surgiram várias propostas inovadoras acerca damorfogênese do conhecimento.

É em relação a essa questão que, a nosso modo de ver, arelevante contribuição de Humberto Maturana &Francisco Varela16 , que supomos relativamente conhecida,situa-nos em um patamar novo. Gostaríamos de enfatizarque eles nos propiciaram a visão de entrelaçamentosfecundos entre as redes neuronais, a teia da vida em gerale as redes telemáticas.

Cabe mencionar agora, de passagem, a direção para a qualse orientam as contribuições do assim chamadopensamento pós-formal. Ele busca abordar certos aspectosque rompem com as concepções racionalistas deconstrução do conhecimento. A ênfase é posta, agora, nosaspectos aleatórios, nas turbulências neuronais, nasperturbações imprevistas da atenção, nos elementos deindeterminação, enfim, na dinâmica de constantemudança propiciada por novelos de retroalimentação, que

Hugo Assmann

13 LINK-PEZET, Jo., Loc cit.; ALLIEZ, E. La signature du monde. Paris:Ed. Du Cerf, 1993. (Trad. port. pela Editora 34).

14 Para uma análise mais detida do tema e ampla bibliografia conf.SKIRKE, Ulf. Technologie und Selbstorganisation, Disponível na internet,junho/2000. Para uma história dos usos do conceito de emergência verSTEPHAN, A. Emergenz - Von der Unvorhersagbarkeit zurSelbstorganisation (Emergência. Da impredictibilidade à auto-organização), Dresden-München: Dresden University Press, 1999.

15 LINK-PEZET, Jo. loc. cit.

16 MATURANA, H., VARELA, F. A árvore do conhecimento. Campinas:Editorial Psy, 1995; Para aprofundar o conceito de enação, ver o longoprefácio de Francisco Varela à segunda edição de MATURANA, H.VARELA, F. De máquinas e Seres Vivos. Porto Alegre: Artes Médicas,1997; VARELA, F. et al. The Embodied Mind. Massachessetts: TheMIT Press, 1991; VARELA. F. et al. A mente inclusiva: ciência cognitiva ea experiência humana. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. DeMATURANA, H. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: EditoraUFMG, 1997; Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte:Editora UFMG, 1999. Os dois autores têm sites na Internet.

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acontecem efetivamente em nosso sistema neuronal e quejá podem ser simulados parcialmente por máquinasinteligentes.

Muito próximo a esse tipo de problematização está opensamento de Michel Polanyi17 , que distingue entre osníveis tácitos e os níveis explícitos na construção tantodos campos semânticos, quanto, sobretudo, dos mundosdo sentido. Já Merleau-Ponty ponderava que os níveisimplícitos e explícitos do conhecimento sãocomplementares e, portanto, tão intimamente ligados àexperiência e à corporeidade que não é possível separá-los. A novidade do pensamento de Michel Polanyi nosparece consistir na relevância que ele atribui àquilo quedenomina níveis tácitos. Torna-se, assim, evidente que,doravante, é recomendável alinhar-se com a apreciaçãopositiva daquilo que Michel Maffesoli18 denomina “razãosensível”.

Demos ainda um pequeno passo adiante. Queremos tornarperceptível que o agenciamento cognitivo e experiencialdos mundos do sentido é um processo marcado por umadimensão solidária ativa de vários agentes cognitivoscooperantes. Para expressar isso, nada melhor que oconceito de enação (enaction) de Varela.

Na esteira de Merleau-Ponty, Varela nos convida a considerar-nos como estruturas internas e externas, biológicas efenomenológicas, e a considerar a corporeidade da nossaexperiência como nosso verdadeiro contexto cognitivo. A enaçãoé uma ação encarnada que se situa nesse contexto (experienciale corporal). Ela se refere ao fenômeno da interpretação,entendida como “um fazer-emergir da significação sobre o panode fundo da compreensão”. (...) A emergência das significaçõesacontece através de agenciamentos coletivos 19 .

A EXPERIÊNCIA DA SUPERAÇÃO DA ESCASSEZ

A experiência da abundância e da liberdade de escolha noque se refere à música, à televisão e que aos poucos seestende também a outras tecnologias informacionaispassou a fazer parte do cotidiano de muitíssima gente.Trata-se de um tipo de experiência de superação da escassez.As pessoas com razoáveis ingressos estão expandindorapidamente esta experiência a vários outros campos.

É certamente aconselhável proceder com certa cautelanesse assunto, porque, antes de fazer afirmaçõescontundentes acerca do caráter inédito daquilo que asnovas tecnologias propiciam, convém refazer, talvez demaneira nova, algumas perguntas antigas. Por exemplo:será que as nossas linguagens e nossas formas deconhecimentos foram alguma vez inteiramente nossas ouestiveram desde sempre em estado de parceria, sofrendovariadas intervenções internalizadas em sua própriagênese e constituição? Que trazem, então, de efetivamentenovo as novas máquinas cognitivamente cooperantes? Poracaso os mitos, os tabus, os campos do sentido embutidosem nossas linguagens e as formas da cultura não exerceram,desde milênios atrás, uma ativa parceria psicogenética comos seres simbolizadores que somos? Não acontecia já issomesmo desde quando, há milênios, a nossa espécieconseguiu criar meios para inventar e simular mundos,vivenciados como reais, embora apenas virtuais, como é ocaso dos mitos, dos dogmas, dos campos semânticos denossas linguagens, do dinheiro etc.? Estamos presenciandoalgo realmente novo?

Há certamente continuidades, como sói acontecer(p. ex. a “janelização” continua ainda tecnicamenteimprescindível para estabelecer conexões (links)telemáticos). O próprio “fim da escassez” é umacaracterística aplicável apenas a alguns aspectos dacibercultura. Os mitos também fingiam uma certasuperação da escassez (p. ex. o mito da redenção). Mas asnovas tecnologias nos oferecem acessos não mediatizadospor terceiros (sacerdotes, mestres etc.) à superabundânciada informação. Queremos explicitar um alerta crítico emrelação a um tecnootimismo desvairado, que geralmenterecai em visões gnósticas ou platônicas de um mundosoberanamente auto-organizativo, com escassa previsãode interferência ativa dos sujeitos humanos, alentados poruma sensibilidade social conscientemente cultivada20 .

Uma certa experiência do fim da escassez - ainda tãodistante em tantos outros aspectos da vida em sociedade– tornou-se possível e repetível como experiência pessoaldo aprendente no mundo da informação e dos acessos àcultura. Palavras meio esdrúxulas como hipertextualidade,conectividade, transversa(ti)lidade aludem sobretudo aesse caráter experiencial que o fim da escassez estáadquirindo. Será que há, finalmente, um tópos, um lugarexperiencial, no qual a exclusão está desaparecendo?

A metamorfose do aprender na sociedade da informação

17 Entre a várias obras de M. POLANYI destacaríamos A dimensãotácita (The Tacit Dimension). Em francês, Paris: PUF, 1966.

18 MICHEL, M. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis/RJ: Vozes, 1998.

19 LINK-PEZET, Jo. loc cit.

20 É a impressão que nos dá o pensamento, aliás não isento decontradições, de Delfim Soares, em seu Glossário de Sociocibernética evários outros textos seus disponíveis na internet, stembro/2000.

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PARCERIAS EPISTEMOLÓGICAS DE ALTONÍVEL

Passemos a um exemplo de parceria transdisciplinar de altonível entre pesquisadores da área das ciências sociais eperitos das ciências computacionais. O exemplo que seaduz presta-se para deixar bastante claro que o problemade fundo não é juntar esforços no plano do uso de máquinascognitivas sofisticadas (sistemas multiagentes com forterecursividade algorítmica). Trata-se disso também, porqueo pessoal da área de humanas e sociais geralmentesubutiliza os recursos computacionais disponíveis. Oproblema de fundo, no entanto, é de índole epistemológicae ética. Trata-se do problema do controle humano (e nestesentido, “racional”) das decisões e julgamentos que – comojá o velho Kant sabia muito bem – aparecem no interiorda própria constituição das formas (da morfogênese) doconhecimento. De que podemos abrir mão, e que nãodeveríamos delegar jamais, à parceria ativa com máquinascognitivas?

Em 1988, nos EUA, um grupo de sociólogos e peritos dainformática mais avançada (Inteligência ArtificialDistribuída) publicou uma série de ensaios com o estranhotítulo The Unnamable (Aquilo que não tem nome ou O[ainda] Inominável). Os estudos versavam sobre a regiãoteoricamente fronteiriça – ou, se quiserem: a interfaceepistemológica – entre os pressupostos filosóficos e osmodelos explicativos das ciências sociais e das ciênciascomputacionais. A partir do momento em que se começaa usar conceitos como inteligência artificial, vida artificial,sistemas multiagentes, algoritmos aenéticos, sistemascomplexos e adaptativos, e por aí afora, estamosconfrontados com implicações filosóficas muito sérias.

Dez anos depois, na Alemanha, essa região sem nome passoua ter um nome, oficializado (precariamente) em 1998 pelaDFG (Deutsche Forschungsgemeinschaft – algo parecidoao nosso CNPq, mas com recursos bem mais vultosos). Onome, agora oficializado, é Sozionik (Sociônica).

Assim como na Biônica se tomaram as funções corporaiscomo modelo para novas técnicas, na Sociônica se tratada questão de como é possível tomar exemplos da vidasocial para desenvolver, a partir deles, novas tecnologiascomputacionais.21

21 DFG, Edital Nº 14 de 14 de julho de 1998. cf. Internet.

O “Programa-Eixo: Sociônica” (Schwerpunktprogramm:Sozionik) destina-se a expertos em informática esociólogos e visa a apoiar projetos de parceria (“projetostandem”) para a pesquisa e a modelização de socialidadeartificial. Anotem o conceito aparentemente ousado:künstliche Sozialität (socialidade artificial). Cito:

Trata-se da questão de como é possível tomar exemplosda vida social e desenvolver, a partir deles, programascomputacionais inteligentes. O Programa-Eixo: Sociônicaconcentra-se em dois problemas básicos quando se tratada interface entre Inteligência Artificial Distribuída eSociologia: 1. Emergência e Dinâmica de sistemas sociaisartificiais; 2. Comunidades híbridas de agentes humanose agentes artificiais22 .

Os documentos tornados públicos até o momento sãomuito explícitos quanto à incorporação de conceitos-chave da discussão sobre sistemas vivos enquanto sistemasaprendentes, sobre organizações aprendentes, sobresistemas complexos e adaptativos ou sistemas dinâmicos,formas de socialidade artificial e temas similares. Pelo queconsigo perceber, já se maneja como óbvia uma série deconceitos que tem sérias implicações filosóficas, como é ocaso dos conceitos emergência e auto-organização(supostamente espontânea). O debate parece deslocar-seexplicitamente do plano técnico e operacional (as formasde programação computacional) para o campo dasimplicações filosóficas, éticas e políticas, ou seja: que tipode níveis decisórios não podem ser “delegados” à crescente“relativa autonomia cognitiva” dos sistemas multiagenteseletrônicos.

(Para finalizar __ e dito entre parênteses __, o exemplo queexaminamos rapidamente poderia talvez inspirar um lequede projetos similares no Brasil. Um aspecto peculiar adestacar no caso alemão é a abertura para a valorização deentrelaçamentos criativos entre pesquisas básica __ ou seja,teoria mesmo! __ e pesquisa experimental, além da marcatransdisciplinar do conjunto de projetos. Na Alemanha,julgou-se necessária uma instigação inicial “de cima”,delegando aos poucos a função coordenadora a váriasinstâncias interinstitucionais. No caso do Brasil, a queinstância(s) caberia assumir um papel instigador similar?)

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Hugo Assmann

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Ci. Inf., Brasília, v. 29, n. 2, p. 7-15, maio/ago. 2000

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