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A PRESENÇA DA MIMESE NA OBRA DE VIK MUNIZ: UMA ANÁLISE ESTÉTICA Thais Priscilla P. Jerônimo Duarte 1 [email protected] A linguagem se processa de diversas formas, mas todas convergem para que o ser humano busque maneiras diferentes de se comunicar e expressar sentimentos. Em algumas vezes o resultado pode ser um poema, em outras, músicas, ou ainda simples trocas de conhecimentos em uma conversa. Mas é fato que, desde o início de sua história, o homem buscou formas de linguagem para se expressar e uma delas foi a arte. Passando por paredes de cavernas, madeiras, tecidos, cerâmicas, telas, gesso, enfim, utilizando diversos recursos para materializar uma ideia, copiar um conceito ou criar algo antes inimaginável. A obra de arte pode ser considerada uma linguagem, um modo próprio de expressar sentimentos. Sob este aspecto, a obra de arte não se apresenta como um ser acabado, perfeito, mas como algo inacabado, buscando uma interpretação. Como um dos frutos primogênitos da humanidade, a obra de arte recusa-se a ser interpretada em um sistema fechado, mas sim por um processo, englobando, inclusive, seu vir a ser. Neste contexto, buscamos estudar parte da obra de Vik Muniz. Brasileiro, o artista plástico obteve em terras estrangeiras o reconhecimento de seu trabalho inovador. Por meio da utilização de diversos materiais, cria e recria obras de arte que traduzem um pouco da história da humanidade e da sua própria história. Em vários momentos da carreira é possível perceber características miméticas em seus trabalhos. Este é um estudo inicial que irá se aprofundar não só neste aspecto, mas, principalmente, em todo percurso criativo do artista. 1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Londrina. Mestre em Estudos da Linguagem – PPGEL/UEL (2010). Especialista em Planejamento e Gerenciamento Estratégico – PUC/PR (2005). Graduada em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas – UEL (2004). Docente titular dos cursos de comunicação social e superiores de tecnologia em Marketing e Recursos Humanos da Faculdade do Norte Novo de Apucarana – FACNOPAR. III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 2796

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A PRESENÇA DA MIMESE NA OBRA DE VIK MUNIZ: UMA ANÁLISE ESTÉTICA

Thais Priscilla P. Jerônimo Duarte1

[email protected]

A linguagem se processa de diversas formas, mas todas convergem para que

o ser humano busque maneiras diferentes de se comunicar e expressar sentimentos. Em

algumas vezes o resultado pode ser um poema, em outras, músicas, ou ainda simples trocas de

conhecimentos em uma conversa.

Mas é fato que, desde o início de sua história, o homem buscou formas de

linguagem para se expressar e uma delas foi a arte. Passando por paredes de cavernas,

madeiras, tecidos, cerâmicas, telas, gesso, enfim, utilizando diversos recursos para

materializar uma ideia, copiar um conceito ou criar algo antes inimaginável.

A obra de arte pode ser considerada uma linguagem, um modo próprio de

expressar sentimentos. Sob este aspecto, a obra de arte não se apresenta como um ser

acabado, perfeito, mas como algo inacabado, buscando uma interpretação. Como um dos

frutos primogênitos da humanidade, a obra de arte recusa-se a ser interpretada em um sistema

fechado, mas sim por um processo, englobando, inclusive, seu vir a ser.

Neste contexto, buscamos estudar parte da obra de Vik Muniz. Brasileiro, o

artista plástico obteve em terras estrangeiras o reconhecimento de seu trabalho inovador. Por

meio da utilização de diversos materiais, cria e recria obras de arte que traduzem um pouco da

história da humanidade e da sua própria história. Em vários momentos da carreira é possível

perceber características miméticas em seus trabalhos. Este é um estudo inicial que irá se

aprofundar não só neste aspecto, mas, principalmente, em todo percurso criativo do artista.

                                                            1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Londrina. Mestre em Estudos da Linguagem – PPGEL/UEL (2010). Especialista em Planejamento e Gerenciamento Estratégico – PUC/PR (2005). Graduada em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas – UEL (2004). Docente titular dos cursos de comunicação social e superiores de tecnologia em Marketing e Recursos Humanos da Faculdade do Norte Novo de Apucarana – FACNOPAR.

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O artista e a estética

Vicente José de Oliveira Muniz nasceu em São Paulo, em 1961 e, entre

outras paixões, se dedica à fotografia, desenho e pintura. Desde 1983, reside e trabalha em

Nova York onde realiza uma série de trabalhos com temas relativos à memória, à percepção e

à representação de imagens do mundo das artes e dos meios de comunicação. Faz uso de

técnicas diversas e emprega nas obras, com frequência, materiais inusitados como açúcar,

chocolate líquido, doce de leite, manteiga de amendoim, gel para cabelo e lixo.

Em geral, o trabalho de Vik Muniz surpreende pelo processo criativo e pelo

uso de materiais pouco convencionais, caso dos retratos de Elizabeth Taylor, Mona Lisa e

Che Guevara, realizados, respectivamente, com diamantes, pasta de amendoim e geleia de

morango e só depois fotografados.

Figura 1 - Elisabeth Taylor em diamantes

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Figuras 2 e 3 - Mona Lisa em pasta de amendoim e Che Guevara em geleia de morango

Sua série de 2008 foi desenvolvida com lixo. Após coletar objetos num

aterro sanitário, Vik Muniz deu vida a personagens como um catador de lixo e uma lavadeira

baiana. O trabalho rendeu o documentário “Lixo extraordinário”, indicado ao óscar na

categoria.

Figuras 4 e 5 - O catador de lixo e a lavadeira baiana

Vik Muniz explora, propositalmente, um caráter híbrido e ambíguo da

imagem, o que torna suas obras sedutoras. Enfatiza o diálogo entre o material, os objetos

simples que ele usa para fazer as composições e a imagem. Sua obra faz com que o espectador

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questione a imagem pelas camadas de significados sempre feitos a partir de ícones,

estereótipos e arquétipos digeridos.

Em uma definição simplista, estética é a ciência que estuda os sentidos.

Originário do termo grego aisthesis, significa sensação, sentimento, é a impressão causada

nos sentidos por um elemento externo. Rosenfield (2006, p.07) afirma que a estética analisa o

complexo das sensações com o fim de determinar suas relações com o conhecimento, a razão

e a ética.

Refere-se, então, a tudo aquilo que pode ser percebido pelos sentidos e

procura entender o encanto que uma manifestação artística proporciona ao espírito humano.

Em outras palavras, a estética é a ciência que trata das condições da percepção pelos sentidos,

que pretende alcançar um tipo específico de conhecimento: aquele que é captado através dos

sentidos e do belo.

A ação tem, também, a proposta de explanar a universalização de uma

manifestação artística. Pela criação estética, a obra tende a se universalizar, a permanecer viva

através dos tempos, anunciando uma mensagem artística que, independente do seu conteúdo

ideológico, expressa profunda sensibilidade. Por isso, ela é capaz de ultrapassar esses limites

históricos e temporais, torna-se capaz de atrair homens de diferentes países, culturas ou

sociedades.

A estética da comunicação não é singular, pelo contrário, está associada a

outras áreas: psicologia, semiótica, sociologia. Segundo Martino (2007, p.08), quando se

estuda comunicação é impossível deixar de lado a contribuição de diversos campos de

conhecimento e suas visões. A estética da comunicação transita entre diversas áreas, da crítica

literária à sociologia, da eletrônica à filosofia, para compreender de que maneira as mídias

alteram as relações sociais.

Martino (2007, p.09) diz que, hoje, as pessoas estão mergulhadas em um

oceano de signos e mensagens, mas quase não se dão conta disso. Mensagens circulam o

tempo todo no espaço social e o indivíduo, por sua vez, se define a partir de suas relações de

comunicação, em sua sensibilidade (aisthesis) para organizar e reorganizar os fluxos

contínuos de mensagens e se definir em relação a eles, bem como aos outros indivíduos, em

uma seleção de eventos comunicativos.

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O tema parece um paradoxo: o Ser está ligado à singularidade; comunicação

prevê interação. O indivíduo é único, mas existe junto com os outros. Como isso acontece?

Martino (2007, p.25) clarifica que o próprio exercício do pensamento é uma relação

comunicativa na qual o ser discorre a respeito de si mesmo. O conhecimento da mente

humana só pode se realizar plenamente na comunicação; só na comunicação a mente permite

o acesso a seus conteúdos, nesse sentido, toda pesquisa sobre a consciência é, em primeiro

lugar, uma tentativa de entrar em comunicação com os conteúdos de uma mente.

Em outras palavras, cada Ser, antes de se comunicar com o outro, comunica-

se consigo mesmo. Escrever em um diário é comunicar-se consigo mesmo. Ouvir à intuição é

comunicar-se. O próprio exercício do pensamento, neste sentido, é uma relação comunicativa

na qual o Ser discorre a respeito de si mesmo. Seguindo esta linha, a relação com o mundo

exterior é a raiz da dinâmica da consciência. Os objetos exteriores do pensamento são

retrabalhados com os conteúdos próprios da consciência interior.

Por isso, em um processo de comunicação, não se pode esperar que o

receptor absorva, de imediato, o que o emissor lhe comunica, uma vez que a coerência é

construída de forma individual, de acordo com os conhecimentos adquiridos em relação à

informação recebida. A consciência não tem conteúdos, mas é, em si, uma estrutura capaz de

desenvolver os conteúdos do exterior em outros, combinando-os, definindo-os além de

qualquer possibilidade jamais deixada transparecer pelos sentidos em si.

Todo processo de comunicação implica na relação entre uma produção e

uma percepção. Essa relação dialética entre a relação poética (produção) e a estética

(percepção) se resolve na dinâmica do tempo na qual uma necessariamente se transforma em

outra. Assim a comunicação é a estrutura móvel resultante dessa transformação dialética dos

objetos do pensamento transmitidos/recebidos.

O objeto do ato comunicativo nasce na necessidade de expressar algo para

além de si mesmo, portanto, não se prende apenas ao domínio do logos, mas, também, a

comunicação de afetos, sentimentos, sensações. Há uma estética, portanto, em todo ato

criativo/comunicativo.

Uma comunicação é, portanto, um ato estético na medida em que é a

reconstrução poética de uma sensação que se pretende externar, expressar para além de si

mesmo e compartilhar, causando uma sensação similar em outro indivíduo. O sentimento

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(aisthesis) é o ponto de partida para uma nova poiesis. Neste sentido, o filósofo Hegel afirma

que a experiência estética não é egoísta.

Essa conversão e reconversão contínua da poética em estética e vice-versa

se dá em um tempo definido pela própria consciência, mas nunca deixa de agir. Mesmo o

silêncio é uma resposta, mesmo a expressão guarda em si algo de incompleto como o silêncio.

A relação de consciência com o mundo não se esgota em receber as

impressões dos sentidos, mas em transformar essas impressões em formas de expressão de

maneira a compartilhar com os outros indivíduos as sensações e os conhecimentos. Portanto,

este estudo também se define como uma reconstrução poética de uma sensação que queremos

externar, expressá-la para além de nós mesmos. E que, do mesmo modo, busca causar uma

sensação similar em outro Ser. Pois, nem tudo o que compõe o mundo existe para o indivíduo,

como explica Martino (2007, p.34):

O mundo de cada um é o microcosmos constituído pelos elementos aos quais atribui um significado intencional, que passam a figurar na paisagem da consciência e são destacados como uma figura isolada à qual se dá importância destacada de um fundo de objetos sem significado, com os quais se mantém uma relação indiferente de consciência.

O mundo é completamente indiferente ao sujeito até que lhe seja atribuído

um significado, que pode ser de natureza cognitiva, prática ou estética, logo, a tomada de

significado de um objeto está vinculada à sua presença na consciência e isso só acontece

mediante uma relação de comunicação.

Sendo assim, toda comunicação é uma forma de ampliar os limites do

microcosmo da percepção. Igualmente, a comunicação é a abertura desse microcosmo à

possibilidade de ser parcialmente moldado pelos novos objetos de consciência introduzidos

nesse contato comunicativo com outros objetos.

Devemos ressaltar que o Ser participa desse processo de comunicação

trazendo todos os valores morais e estéticos já existentes em sua essência, por isso a abertura

do seu microcosmo pode ser parcial. Mas, buscar a ampliação das percepções do outro,

através da informação, da comunicação e da apresentação de um “mundo novo” é a razão da

existência. O efeito colateral da existência é o estabelecimento de relações humanas a partir

das quais o indivíduo passa também a fazer sentido no mundo.

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Como fenômeno social, a arte possui, portanto, relações com a sociedade.

Essas não são estáticas e imutáveis, ao contrário, são dinâmicas, modicando-se

historicamente.

O artista vive em sociedade e, queira ou não, existe uma influência recíproca entre ele e a sociedade. O artista, queira ou não, se apóia numa determinada concepção do mundo, que ele exprime igualmente em seu estilo. (COTRIM, 2000 p. 323)

Para Heidegger (1960, p.11-12), a origem da obra de arte é o artista e a do

artista é a obra, e como nenhum de ambos sustenta por si o outro, nos movemos dentro de um

círculo o qual só será superado por um terceiro elemento que na ordem da dignidade é o

primeiro por ser fundamento de ambos. Quando ressaltamos a importância do artista social,

não estamos reduzindo a arte a um simples produto que reproduz momentos históricos ou

ideologias. É claro, que estes fatores estão presentes na obra de um artista. Mas, como adverte

Cotrim (2000, p.34), na realização da obra de arte, todos os elementos que a envolvem

precisam ser traduzidos em termos de criação estética.

Nessa criação é que reside o valor essencial de toda grande obra de arte. É

pela criação estética que uma obra de arte tende a se universalizar, a permanecer viva através

dos tempos, anunciando uma mensagem artística que, independe de seu conteúdo ideológico,

expressa profunda sensibilidade.

O conceito de mimese e o entusiasmo criador

Parece constante a ideia de que obra é fruto da atividade humana. A

necessidade do homem de representar o mundo à sua volta originou muito do que

conhecemos como obra de arte. Paviani (1973, p. 21) destaca que há uma concordância geral

no sentido da obra de arte não ser apenas cores, sons, imagens, ou sinais tipográficos, mas sim

possuir a condição de um símbolo.

Seguindo a visão hegeliana, o artista tem diante de si um projeto e uma

matéria a serem trabalhados. Ao iniciar-se o trabalho, há um projeto, mas a obra que está

sendo realizada segue sua lei interior, de tal modo que nunca se pode prever o seu resultado.

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O fazer artístico não depende de normas pré-existentes, ao contrário, é um processo, muitas

vezes, imprevisível.

Santaella (2005, p. 25) descreve que Platão foi o primeiro a desenvolver

uma teoria das artes inserida no contexto de uma filosofia do belo. Há dois conceitos básicos

em sua teoria: o conceito de mimese, de um lado, e do entusiasmo criador, de outro. A

mimese tem sido entendida, por alguns, como imitação, ou cópia imperfeita do ideal. Para

Paviani (1973, p. 38), algumas obras de arte têm mais características miméticas, e outras,

poéticas. Enquanto a característica de mimese indica uma imitação do real visto pelo homem,

a poética é a criação do real, mais rica de sentidos.

As características miméticas e poéticas na obra de Vik Muniz são facilmente

visualizadas de acordo com o objetivo de sua obra e do momento histórico de sua carreira. Ao

iniciar os trabalhos com lixo e sucata, o artista busca, deliberadamente, copiar obras

renomadas e até revelar momentos históricos, como a morte de Marat durante a Revolução

Francesa, por meio de sua arte.

Figuras 6 e 7 – A morte de Marat, de Jean-Louis David, e a composição mimética da obra, de Vik Muniz.

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Figuras 8 e 9 – Narciso, de Caravaggio, e a composição mimética da obra, de Vik Muniz.

Figuras 10 e 11 – Deus grego “Cronos”, de Goya, e a montagem de Vik Muniz.

Questionar se o tipo de material utilizado e as referências escolhidas são

planejadas ou, simplesmente, coincidências, é inevitável. Assim como perceber características

ora miméticas, ora poéticas, em diferentes ciclos do artista também levantam a necessidade de

conhecer a fundo seu processo criativo e descobrir quais as intenções da mão criadora.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COTRIM, Gilberto Vieira. Fundamentos da filosofia. São Paulo: Saraiva, 2000.

HEIDEGGER, M. Sendas Perdidas. Losada: Buenos Aires, 1960.

MARTINO, Luís Mauro Sá. Estética da Comunicação. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.

PAVIANI, Jayme. Estética e filosofia da arte. Porto Alegre: Sulina, 1973.

ROSENFIELD, Kathrin H. Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ED., 2006.

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2005.

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