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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI PRO-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA, EXTENSÃO E CULTURA - PROPPEC CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL - TURMA 10 A RECEPÇÃO DAS IDEIAS PENAIS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: UMA BREVE ABORDAGEM A PARTIR DO CÓDIGO PENAL DE 1940. MARCO AURÉLIO DA SILVA MOSER Florianópolis, fevereiro de 2010.

A recepção das idéias penais pelo ordenamento jurídico brasileiro: uma breve abordagem a partir do código penal de 1940

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  • UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJA UNIVALI PRO-REITORIA DE PS-GRADUAO, PESQUISA, EXTENSO E CULTURA - PROPPEC CURSO DE ESPECIALIZAO EM DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL - TURMA 10

    A RECEPO DAS IDEIAS PENAIS PELO ORDENAMENTO JURDICO BRASILEIRO: UMA BREVE ABORDAGEM A PARTIR

    DO CDIGO PENAL DE 1940.

    MARCO AURLIO DA SILVA MOSER

    Florianpolis, fevereiro de 2010.

  • UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJA UNIVALI PRO-REITORIA DE PS-GRADUAO, PESQUISA, EXTENSO E CULTURA - PROPPEC CURSO DE ESPECIALIZAO EM DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL - TURMA 10

    A RECEPO DAS IDEIAS PENAIS PELO ORDENAMENTO JURDICO BRASILEIRO: UMA BREVE ABORDAGEM A PARTIR

    DO CDIGO PENAL DE 1940.

    MARCO AURLIO DA SILVA MOSER

    Monografia submetida Universidade do Vale do Itaja UNIVALI, como

    requisito obteno do grau de Especialista em Direito Penal e

    Processual Penal.

    Orientador: Professor Doutor Francisco Bissoli Filho

    Florianpolis, fevereiro de 2010.

  • AGRADECIMENTO

    Agradeo aos meus irmos, Csar Augusto e Jlio Csar, a Gisele Palma, pela amizade e incentivo inestimveis e ao meu orientador,

    Francisco Bissoli Filho, pela pacincia e motivao, imprescindveis concluso deste

    trabalho.

  • DEDICATRIA

    Aos meus queridos pais, Dlcio (in memoriam) e Evanilda, meus exemplos maiores de fora,

    coragem, amor e dedicao.

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    TERMO DE ISENO DE RESPONSABILIDADE

    Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte ideolgico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do Itaja, a coordenao do Curso de Especializao em Direito Penal e Processual Penal e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

    Florianpolis, fevereiro de 2010.

    Marco Aurlio da Silva Moser Aluno

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    PGINA DE APROVAO

    A presente monografia de concluso do Curso de Especializao em Direito Penal e Processual Penal da Universidade do Vale do Itaja UNIVALI, elaborada pelo aluno Marco Aurlio da Silva Moser, sob o ttulo A recepo das ideias penais pelo ordenamento jurdico brasileiro: uma breve abordagem a partir do Cdigo Penal de 1940, foi submetida em Fevereiro de 2010 avaliao pelo Professor Orientador e pela Coordenao do Curso de Especializao em Direito Penal e Processual Penal, e aprovada.

    Florianpolis, fevereiro de 2010.

    Prof. Dr. Francisco Bissoli Filho Orientador

    Profa. MSc. Helena Nastassya Paschoal Pitsica Coordenadora do Curso de Especializao em Direito Penal e

    Processual Penal

  • SUMRIO

    RESUMO........................................................................................... III

    ABSTRACT ....................................................................................... IV

    INTRODUO ................................................................................... 5

    CAPTULO 1 ...................................................................................... 7

    AS PRINCIPAIS IDEIAS PENAIS ...................................................... 7 1.1 CONSIDERAES INICIAIS............................................................................7 1.2 ESCOLA CLSSICA........................................................................................7 1.3 ESCOLA POSITIVA........................................................................................16 1.4 ESCOLA TCNICO-JURDICA.......................................................................24 1.5 O LABELLING APPROACH...........................................................................26 1.6 A CRIMINOLOGIA CRTICA...........................................................................30

    CAPTULO 2.......................................................................................33

    O CDIGO PENAL DE 1940 E SUAS PRINCIPAIS REFORMAS....33 2.1 CONSIDERAES INICIAIS..........................................................................33 2.2 BREVE HISTRICO DA LEGISLAO PENAL BRASILEIRA.....................33 2.2.1 PERODO COLONIAL..................................................................................33 2.2.2 PERODO IMPERIAL....................................................................................35 2.2.3 PERODO REPUBLICANO - CDIGO PENAL DE 1890.............................39 2.3 AS PRINCIPAIS REFORMAS IMPLANTADAS PELO CDIGO PENAL DE 1940.......................................................................................................................43 2.3.1 OS PROJETOS ANTERIORES AO CDIGO PENAL DE 1940...................43 2.3.2 O CDIGO PENAL DE 1940 E A SUA REFORMA DE 1984.......................44

    CAPTULO 3.......................................................................................54

    AS IDEIAS QUE INFLUENCIARAM A REFORMA PENAL DE 1984, A LEI DOS CRIMES HEDIONDOS E A LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS.........................................................................................54 3.1 CONSIDERAES INICIAIS..........................................................................54 3.2 A REFORMA PENAL DE 1984.......................................................................54 3.2.1 PRINCIPAIS INOVAES DA REFORMA PENAL DE 1984.......................54 3.2.2 AS IDEIAS QUE INFLUENCIARAM A REFORMA PENAL DE 1984...........55 3.3 A LEI DOS CRIMES HEDIONDOS.................................................................59 3.3.1 PRINCIPAIS INOVAES DA LEI DOS CRIMES HEDIONDOS................59

  • 2

    3.3.2 AS IDEIAS QUE INFLUENCIARAM A LEI DOS CRIMES HEDIONDOS.....60 3.4 A LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS............................................67 3.4.1 PRINCIPAIS INOVAES DA LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS.............................................................................................................67 3.4.2 AS IDIAS QUE INFLUENCIARAM A LEI DOS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS.............................................................................................................67

    CONCLUSO................................................................................... 76

    REFERNCIA DAS FONTES CITADAS .......................................... 82

  • 3

    RESUMO

    A Escola Clssica, de Beccaria, e seus ideais oriundos do Iluminismo e do Liberalismo foram marcos histricos na reforma do direito penal, humanizando e racionalizando as penas impostas. A Escola Positiva, como contrapartida, combateu o liberalismo dos clssicos, concebendo o direito penal como cincia emprica, dadas as influncias do Evolucionismo. Lombroso e a teoria determinista do criminoso nato, Ferri e a Sociologia Criminal, Garfalo e o conceito de temibilidade, foram os principais expoentes. Outras escolas se desenvolveram a partir da, entre elas a Moderna Escola Alem, de Franz von Liszt, a Tcnico-Jurdica de Arturo Rocco, entre outras. A teoria do etiquetamento ou Labelling Approach, da Nova Escola de Chicago, definiu novo paradigma no estudo da criminalidade, qual seja, do estudo das causas do delito e do delinquente, passou-se a analisar o prprio processo de criminalizao, de seleo e etiquetamento de certos agentes e certas condutas. A Criminologia Crtica herdeira da Nova Escola de Chicago, adicionando um componente scio-econmico ao estudo do processo de criminalizao. Os ordenamentos penais brasileiros sofreram influncia das ideias penais abordadas, sendo considervel a influncia da Escola Clssica e de seus postulados no Cdigo Criminal de 1830, no Cdigo de 1890; a Escola Positiva influenciou consideravelmente o Cdigo Penal de 1940, adicionando os antecedentes e o sistema do duplo binrio, exemplos de uma concepo restritiva de garantias. A Reforma da Parte Geral de 1984, ao contrrio, teve como base ideolgica a interveno mnima do direito penal e os Direitos Humanos; tal orientao seria abandonada com a promulgao da Lei dos Crimes Hediondos, em 1990, que endureceu as penas impostas e ignorou garantias constitucionais. H a retomada, porm, de uma ideologia liberal no direito penal, com a promulgao da Lei dos Juizados Especiais Criminais, em 1995.

    Palavras-chave: Direito Penal. Histria do Direito. Criminologia. Escolas Penais. Reformas Penais. Cdigos Penais do Brasil.

    III

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    ABSTRACT

    The Classical School, of Beccaria, and its ideals derived from the Enlightenment, were the historical mark in the reform of the penal laws worldwide, humanizing and rationalizing the way the penalties were imposed. The Positivist School, in the other way, fought the liberalism of the Classical School, conceiving the criminal justice as a science, adopting the empirism as its method, deriving its influencies from the Evolucionism. Lombroso and his theory of the natural born criminal man, Ferri and his Criminal Sociology, Garfalo and his concept of temibility, were its main authors. Other schools developed from those two Schools, like the Modern German School, of Franz von Liszt, the Neoclassical School of Arturo Rocco, among others. The Labelling Approach, from the Chicago School, defined a new model in the study of the criminality, which is, it changed its focus, from the study of the causes of the crimes and the criminal person, to the very own process of criminalization, the labelling of certain people and conducts. The Critical Criminology is the heir of the School of Chicago, adding a new component: the economy and the social classes as important factors in the process of criminalization. The brazilian penal codes suffered from the influence of the criminal ideas studied before, notably from the policies of the Classical School in the 1830s and 1890s brazilian penal codes. The Positivist School influenced considerably the 1940s penal code, adding the antecedents and the duplo binrio system, examples of the restriction of the guaranties. The 1984s Reform, au contraire, had as its ideological basis, the principle of minimum intervention of the penal system, along with the Human Rights; such orientation would be abandoned with the Hideous Crimes Law, in 1990, which hardened the penalties and ignored some very important constitutional guaranties. There is a retake, however, of a liberal ideology within the criminal justice, with the Special Criminal Benches Law, in 1995.

    Keywords: Penal Law. History of the Criminal Justice. Criminology. Criminal Schools. Penal Law Reforms. Brazils Penal Codes.

    IV

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    INTRODUO

    A presente Monografia tem como objeto discorrer sobre a recepo das principais ideias penais pelo ordenamento penal brasileiro a partir do Cdigo Penal de 1940, especialmente na Reforma da Parte Geral de 1984, na Lei dos Crimes Hediondos e na Lei dos Juizados Especiais Criminais.

    O objetivo, portanto, demonstrar a influncia das principais ideias penais, como as da Escola Clssica, as da Escola Positiva, da Tcnico-Jurdica, da Escola Moderna Alem, da Nova Escola de Chicago e da Criminologia Crtica, em especial, nos Cdigos Penais de 1940, na Reforma de 1984, na Lei dos Crimes Hediondos e na Lei dos Juizados Especiais Criminais.

    Para tanto, principiase, no Captulo 1, tratando das principais ideias penais, sua evoluo histrica, seus principais autores e seus postulados.

    No Captulo 2, tratar-se-, num primeiro momento, da evoluo histrica dos ordenamentos penais aplicados no Brasil e da influncia nestes sentida das ideias penais apresentadas no primeiro captulo, partindo do perodo Colonial, passando pelo Imprio e o primeiro Cdigo Penal brasileiro (Cdigo Criminal de 1830), o perodo republicano e o Cdigo de 1890, culminando com o Cdigo Penal de 1940 e a Reforma de 1984.

    No Captulo 3, tratar-se- da Reforma Penal de 1984, suas principais inovaes e as ideias penais que a influenciaram, procedendo da mesma forma com relao Lei dos Crimes Hediondos e Lei dos Juizados Especiais Criminais.

    O presente Relatrio de Pesquisa se encerra com as Concluses, nas quais so apresentados pontos destacados, seguidos da estimulao continuidade dos estudos e das reflexes sobre a influncia das principais ideias penais nos ordenamentos jurdicos penais de nosso pas, sejam codificados ou no.

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    Para a presente monografia foram levantadas as seguintes hipteses:

    a) que os operadores jurdicos deveriam procurar estudar as origens histricas do ordenamento jurdico penal brasileiro para uma melhor compreenso da dogmtica penal e seus postulados;

    b) que a ideologia dominante, no que se refere ao atual sistema penal, tem suas razes nas primeiras escolas penais surgidas na Europa, devendo-se, pois, compreender seus paradigmas utlizando-se uma abordagem crtica, desarmando as pretenses do sistema penal de ser infalvel e garantidor da ordem pblica.

    Quanto metodologia empregada foi utilizado o Mtodo Dedutivo. Nas diversas fases da pesquisa, foram acionadas as Tcnicas da Documentao Indireta - Pesquisa Bibliogrfica e do Fichamento.

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    CAPTULO 1

    AS PRINCIPAIS IDEIAS PENAIS

    1.1 CONSIDERAES INICIAIS Abordaremos dentro deste captulo as principais ideias

    penais que influenciaram (e ainda influenciam) o pensamento criminolgico e dogmtico penal, em nosso pas e no mundo, comeando pelas escolas criminolgicas tradicionais a Escola Clssica, a Positiva e a Tcnico-Jurdica , as quais marcaram o incio da sistematizao do estudo acerca do crime, do criminoso e da pena, passando pela teoria do Labelling Approach e concluindo com a Criminologia Crtica.

    1.2 ESCOLA CLSSICA

    A Escola Clssica surgiu em meados do sculo XVIII, no bojo do Iluminismo, em perodo de transio do Feudalismo e do Absolutismo para o Capitalismo e o Liberalismo europeu, desenvolvendo-se a medida que estes novos sistemas poltico e econmico consolidavam-se na Europa.

    Sua ideologia refere-se, em linhas gerais, limitao do direito de punir do Estado, dando-se nfase s liberdades individuais contra as arbitrariedades estatais, to comuns no Antigo Regime medievo, tendo na lei positivada a garantia maior contra qualquer excesso estatal. Para Moacyr Benedicto de Souza,

    so conhecidas pela denominao de Escola Clssica, alis dada pelos positivistas que a combateram, diversas correntes filosfico-jurdicas, que, a partir de CESARE BECCARIA com seu Dei delitti e delle pene, publicado em 1764, iniciavam o movimento contra a situao a que chegara a Justia penal na fase medieval e nos sculos seguintes, caracterizada pela crueldade, a opresso e a violncia. As idias liberalistas comearam a marcar posies e duas doutrinas o jusnaturalismo de GRCIO e o contratualismo de ROUSSEAU se destacaram para marcar os rumos da nova poltica criminal. Essa foi a primeira fase da Escola Clssica: essencialmente terica, basicamente filosfica. O seu segundo perodo se inicia com a publicao do livro de

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    CARMIGNANI Elementa Juris criminalis, em 1823, o qual, ao depois, iria formar em suas aulas de Pisa aquele que seria o expoente mximo de sua escola, o grande FRANCISCO CARRARA. Essa a fase prtica do classicismo penal.1

    Para Francisco Bissoli Filho, a obra Dos delitos e das penas, de concepo poltico-filosfica, transformou Cesare Bonesana, o Marqus Di Beccaria (1738-1794) no maior expoente da Escola Clssica, sendo que a referida obra apresentaria duas dimenses crticas: uma negativa e outra positiva do antigo regime de justia penal.2

    Segundo ele,

    a dimenso negativa ressalta incerteza do Direito e pela insegurana individual do antigo regime. Por outro lado, Beccaria permitiu a reconstruo de um discurso positivo ao propalar a formulao programtica dos pressupostos do Direito Penal e Processual Penal, no marco de uma concepo liberal do Estado e do Direito, nas teorias do contrato social, da diviso de poderes, da humanidade das penas e no princpio utilitarista da mxima felicidade para o maior nmero de pessoas.3

    Beccaria advoga a defesa das teorias do contrato social, de cunho iluminista, logo na introduo de sua famosa obra, quando dispe que os homens,

    fatigados de viverem apenas em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de a manter tornava intil, sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurana. A soma dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constituiu a soberania na nao; e o encarregado pelas leis como depositrio dessas liberdades e dos trabalhos da administrao foi proclamado o soberano do povo.

    [...]

    Assim sendo, somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; disso advm que cada qual apenas concorda em por no depsito comum a menor poro possvel dela, quer dizer, exatamente o necessrio para empenhar os outros em mant-lo na posse do restante.

    A reunio de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exerccio do poder que deste

    1 SOUZA, Moacyr Benedicto de. A influncia da escola positiva no direito penal brasileiro.

    So Paulo: Editora Universitria de Direito, 1982, p. 12. 2 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p.

    30. 3 ANDRADE, 1997, p. 49, apud BISSOLI FILHO, Francisco. op. cit., p. 30.

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    fundamento se afaste constitui abuso e no justia; um poder de fato e no de direito; constitui usurpao e jamais um poder legtimo.4

    Foi destacado, segundo Vieira, principalmente, o carter utilitrio e preventivo da pena, sendo que, apesar de entender Beccaria que o crime tem razes profundas na natureza humana, razes estas que no podem ser tolhidas pelas leis, pode o legislador tentar neutralizar as tendncias malfazejas, procurando tornar menos influentes determinadas causas prximas ou remotas do delito.5

    No dizer de Vieira,

    Beccaria sustentava que o mais relevante no , em si, a gravidade ou o peso das penas e sim a rapidez (imediatidade) com que so aplicadas; no so to importantes o rigor ou a severidade do castigo quanto a sua certeza ou infalibilidade: todos saibam e comprovem, inclusive o infrator potencial, que o cometimento do crime implica inevitvel e pronta imposio do castigo; que a pena no um risco futuro e incerto, mas um mal prximo e certo, inexorvel, porquanto a que realmente intimida a que se executa e se executa prontamente, de maneira certa e implacvel. A sano, em si (e no o rigor excessivo), , pois, preventiva, til e eficaz, mas imediata e sem os excessos em voga.6

    Michel Foucault, em sua clssica obra Vigiar e Punir, comenta a transio entre o Antigo Regime Absolutista, excessivamente brutal, tanto na cominao, como na execuo pblica das penas, para o perodo Iluminista, mais brando e menos espetaculoso na execuo penal, mas supostamente inexorvel na aplicao da pena:

    A punio vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando vrias conseqncias: deixa o campo da percepo quase diria e entra no da conscincia abstrata; sua eficcia atribuda sua fatalidade no sua intensidade visvel; a certeza de ser punido que deve desviar o homem do crime e no mais o abominvel teatro; a mecnica exemplar da punio muda as engrenagens. Por essa razo, a justia no mais assume publicamente a parte de violncia que est ligada a seu exerccio. O fato de ela matar ou ferir j no mais a glorificao de sua fora, mas um elemento intrnseco a ela que ela obrigada a tolerar e muito lhe custa impor.

    As caracterizaes da infmia so redistribudas: no castigo-espetculo um horror confuso nascia do patbulo; ele envolvia ao mesmo tempo o carrasco e o condenado: e se por um lado sempre estava a ponto de

    4 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Traduo: Torrieri Guimares. So Paulo:

    Hemus, 1995, p. 14-15. 5 VIEIRA, Joo Alfredo Medeiros. Noes de criminologia. Florianpolis: Ledix, 1997, p. 21.

    6 Ibid., p. 22.

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    transformar em piedade ou em glria a vergonha infligida ao supliciado, por outro lado, ele fazia redundar geralmente em infmia a violncia legal do executor. Desde ento, o escndalo e a luz sero partilhados de outra forma; a prpria condenao que marcar o delinqente com sinal negativo e unvoco: publicidade, portanto, dos debates e da sentena; quanto execuo, ela como uma vergonha suplementar que a justia tem vergonha de impor ao condenado; ela guarda distncia, tendendo sempre a confi-la a outros e sob a marca do sigilo. indecoroso ser passvel de punio, mas pouco glorioso punir.7

    Como exemplo das penas aplicadas no Antigo Regime, de forma espetaculosa, extremamente brutal e na maior parte das vezes de forma arbitrria e injusta, citamos as Ordenaes Filipinas, promulgadas em comeo do sculo XVII e aplicadas pelo Reino de Portugal em todas as suas colnias, entre elas o Brasil.

    Nas palavras de Anbal Bruno,

    Baseada na intimidao pelo terror, como era comum naqueles tempos, distinguiam-se as Filipinas pela dureza das punies, pela freqncia com que era aplicvel a pena de morte e pela maneira de execut-la, morte por enforcamento, morte pelo fogo at ser o corpo reduzido a p, morte cruel precedida de tormentos cuja crueldade ficava ao arbtrio do juiz; mutilaes, marca de fogo, aoites abundantemente aplicados, confiscaes de bens. Do seu rigor e crueldade pode-se julgar pela freqncia com que nela se repete o horrendo estribilho do morra por ello. A pena de morte era, por assim dizer, a punio normal dos crimes.

    [...]

    A esse quadro se juntava o horrvel emprego de torturas para obter confisses, ao arbtrio do juiz, a infmia transmitida aos descendentes no crime de lesa-majestade, que podia consistir at no fato de algum, em desprezo do rei, quebrar ou derrubar alguma imagem de sua semelhana, ou armas reais, postas por sua honra ou memria. A pena, ento, era a morte cruel, com os horrores que acompanhavam esse gnero de execues.

    [...]

    Eram assim as legislaes penais naqueles primeiros anos do sculo XVII, algumas pondo ainda maiores excessos em acentuar esse seu carcter de instrumento de terror na luta contra o crime.8

    7 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrpolis: Vozes, 2000, p. 13.

    8 BRUNO, Anbal apud PIERANGELI, Jos Henrique. Cdigos penais do Brasil. So Paulo:

    Revista dos Tribunais, 2004, p. 60.

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    nesse contexto, pois, que surge a j referida obra clssica de Beccaria, de cunho mais poltico e filosfico do que jurdico, mas no menos importante, inspirando mudanas substanciais nas legislaes penais europias.

    Logo, na lio de Pierangeli e Zaffaroni,

    Beccaria no foi propriamente um cientista, j que sua obra foi essencialmente poltica. Ele escreveu, ainda muito jovem, uma pequena obra que tem muito mais de discurso poltico que de estudo cientfico, intitulada Dos delitos e das penas. Apesar disso, este livro de to reduzidas dimenses foi sumamente oportuno e seus resultados foram altamente benficos.

    [...]

    A obra de Beccaria foi rapidamente traduzida para vrias lnguas, e influenciou as reformas penais dos dspotas ilustrados de seu tempo. Voltaire dedicou a ela um importante comentrio, consagrando-a na Frana. Homem do Iluminismo, Voltaire havia assumido a defesa post mortem de um protestante francs, Juan Calas, acusado de assassinar seu filho, por querer converter-se ao catolicismo, pelo que foi condenado ao suplcio da roda. Dois anos depois da execuo de Calas, Voltaire obteve sua declarao de inocncia, o que na poca provocou um escndalo. Nesse momento, chegou Frana a obra de Beccaria, e Voltaire no perdeu a ocasio de difundi-la. Como resultado desta prdica, foram desaparecendo as penas atrozes da legislao, ao menos formalmente.9

    Como bem resume Francisco Bissoli Filho,

    O poder de punir, em Beccaria (1994, p. 18-9), concebido como de origem contratual, traz em si trs conseqncias. A primeira o princpio da legalidade, ou seja, de que apenas as leis podem indicar as penas de cada delito e de que o direito de estabelecer leis penais no pode ser seno da pessoa do legislador; a segunda, diz que necessrio as leis serem gerais e escritas em linguagem comum e to clara que, prescindindo de qualquer interpretao, submetam rigorosamente o juiz, gerando, assim, a necessria igualdade, certeza e segurana jurdica; a terceira, por fim, que a pena deve ser til, ou seja, prevenir o delito, devendo ser proporcional ao delito e menos cruel ao corpo do culpado.10

    Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach (1775-1833), filsofo e jurista alemo, foi um autor clssico que, assim como Beccaria, inspirou-se fortemente no Liberalismo para formular sua teoria da pena. Foi o autor do Cdigo da Baviera, de 1813, ordenamento penal este que veio a

    9 ZAFFARONI, Eugenio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal brasileiro.

    So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 270-71. 10

    BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p. 30.

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    influenciar, dentre outros, o Cdigo Criminal brasileiro de 1830. atribuda a ele a construo da expresso latina nullum crimen nulla poena sine lege, que constitui o princpio da legalidade.11

    Zaffaroni e Pierangeli assim dispem sobre sua contribuio no mbito do direito penal:

    O aspecto mais divulgado do pensamento de Feuerbach no foi aquilo at aqui apontado, mas sua teoria da pena. Embora suas concepes jusfilosficas sejam de extraordinria importncia, no campo penal, Feuerbach o fundador da cincia penal alem contempornea. De incio, manteve uma srie polmica com Grolman, que no seu tempo, sustentava a teoria da defesa social como o faria Romagnosi, na Itlia e a quem responde demonstrando acabadamente que confundia direito de segurana e direito de defesa, que pareciam distinguir-se apenas pelo indivduo nas teses de Grolman (o direito de segurana exercido pelo Estado e o de defesa pelo particular). Posteriormente, publica sua mais importante obra terica penal: Reviso dos princpios e conceitos fundamentais do direito penal vigente (1799 e 1801). Para Feuerbach, conforme se expe neste trabalho, a pena aplicada em razo de um fato consumado e passado, e tem por objeto conter todos os cidados para que no cometam delitos, isto , almeja coagi-los psicologicamente. Da que no s seja necessria uma cominao, mas tambm a execuo, e que a conexo do mal com o delito deva ser feita por uma lei, de forma a no lesar direitos de ningum, pois a ameaa abstrata opera quando tenham sido lesados direitos e cria a certeza de que a pena se seguir ao delito. Para que a pena atue como coao psicolgica, necessrio segundo Feuerbach que seja uma pena certa e no indefinida. (grifo do autor)12

    O italiano Giandomenico Romagnosi (1761-1835) foi outro dos expoentes da Escola Clssica, tendo como obras mais importantes a Genesi del diritto penale (1791) e Filosofia del diritto (1825), nas quais expe sua filosofia jurdica de teor jusnaturalista, com restries tese do contrato social, desenvolvendo uma concepo do direito penal voltado para a defesa social.

    Para Alessandro Baratta, a filosofia do direito e da sociedade elaborada por Romagnosi,

    [..] afirma a natureza originariamente social do homem e nega o conceito abstrato de uma independncia natural, qual o indivduo renunciaria por meio do contrato para entrar no estado social: a verdadeira independncia natural do homem pode-se entender somente como superao da natural dependncia humana da natureza atravs do

    11 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal. So Paulo: Saraiva, 1994.

    12 ZAFFARONI, Eugenio Ral; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal brasileiro.

    So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 267-268.

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    estado social, que permite aos homens conservar mais adequadamente a prpria existncia e realizar a prpria racionalidade. As leis desta ordem social so leis da natureza que o homem pode reconhecer mediante a razo.

    O princpio essencial do direito natural , para Romagnosi, a conservao da espcie humana e a obteno da mxima utilidade. Deste princpio derivam as trs relaes tico-jurdicas fundamentais: o direito e dever de cada um de conservar a prpria existncia, o dever recproco dos homens de no atentar contra sua existncia, o direito de cada um de no ser ofendido por outro.13

    Segundo Artemio Zanon,

    dele a observao de que spinta criminale, ou seja, ao impulso delinqencial, necessrio opor-se a controspinta penale o contra-impulso punitivo: logo, a pena h de ser na proporo da infrao, esta avaliada pela vontade do agente. Assim, s a necessidade de defesa justifica a pena e como ... um sacrifcio indispensvel para a salvao comum, sendo necessrio sempre prevenir antes do que reprimir.14

    Outro influente autor foi o napolitano Gaetano Filangieri (1752-1788), cuja obra Scienza della Legislazione, segundo Zaffaroni et al, sofreu profunda influncia de Locke e Beccaria, bem como inspirou legisladores e projetistas espanhis e portugueses e, portanto, a primeira codificao penal latino-americana.15

    Giovanni Carmignani (1768-1847) reconhecido, por Zaffaroni et al, como ntido expoente da etapa fundacional do direito penal liberal16 e teve como obra mxima seu Elementa juris criminalis, de 1809. Zaffaroni et al sintetizam dessa forma a contribuio de Carmignani:

    Seu grande mrito consistiu em haver tentado criar, com seriedade, um sistema de direito penal derivado da razo: a anarquia legislativa italiana e a falta de uma constituio ou de um cdigo poltico garantidor, ao estilo norte-americano, obrigavam-no a procurar os limites para o poder punitivo na razo. A partir dessa premissa dedutiva, construiu um sistema de direito penal, arvorado desse modo em ponte indispensvel para incorporar ao discurso jurdico os princpios liberais expostos nos trabalhos de poltica criminal ou de crtica, tal como o fizera Beccaria.

    13 BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Traduo:

    Juarez Cirino dos Santos, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 34-35. 14

    ZANON, Artemio. Introduo cincia do direito penal. Florianpolis: Obra Jurdica, 1997, p. 121. 15

    ZAFFARONI, Eugenio Ral et al. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 539. 16

    Ibid., p. 536.

  • 14

    [...]

    Em suma, sua metodologia no deixava de ser dogmtica, ainda que com uma ntida particularidade: o direito penal liberal requer um quadro liberal, ou seja, uma constituio; ante a ausncia, o primitivismo ou estgio rudimentar desse instrumento, a intencionalidade poltica liberal de Carmignani na construo do sistema levava-o a procur-lo na razo e a pretender deduzi-lo desta. Por esse motivo, ele pode ser considerado o mais direto antecedente do direito penal de garantias emoldurado no direito constitucional e no direito internacional, pois se viu impelido a constru-lo carente de um quadro normativo de hierarquia superior. (grifo do autor)17

    Francesco Carrara (1805-1888), expoente da Escola Toscana, junto com seu predecessor Carmignani (ambos foram professores em Pisa), foi responsvel pela construo jurdica coerente da moderna cincia do direito penal italiano, sintetizando harmonicamente as expresses filosficas precendentes (Iluminismo, Racionalismo e Jusnaturalismo) no direito penal.18

    Segundo Bissoli, se em Beccaria encontramos os pressupostos filosficos e ideolgicos da cincia penal, em Carrara est o apogeu da construo sistemtica da razo,19 representando, pois, a concepo jurdica propriamente dita da cincia penal, ainda que filosoficamente embasada.

    Por certo, imprescindvel para o mestre italiano as matizes filosficas jusnaturalistas e racionalistas, sem as quais sua viso rigorosamente jurdica do delito no teria sido concebida. Para Baratta, quando Carrara fala de direito, no se refere s mutveis legislaes positivas, seno a uma lei que absoluta, porque constituda pela nica ordem possvel para a humanidade, segundo as previses e a vontade do Criador.20

    Carrara expe que

    [...] o delito um ente jurdico, porque a sua essncia deve forosamente consistir na violao de um direito. Mas o direito congnito ao homem,

    17 ZAFFARONI, Eugenio Ral et al. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 536-

    537. 18

    BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 35-36. 19

    BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p. 31. 20

    BARATTA, op. cit., p. 36.

  • 15

    porque lhe foi dado por Deus, desde o momento de sua criao, para que possa cumprir os seus deveres nesta vida; deve, pois, o direito ter existncia e critrios anteriores s inclinaes dos legisladores terrenos: critrios absolutos, constantes e independentes dos seus caprichos e da utilidade avidamente anelada por eles. Assim, como primeiro postulado, a cincia do direito criminal vem a ser reconhecida como uma ordem racional que emana da lei moral-jurdica, e preexistente a todas as leis humanas, tendo autoridade sobre os prprios legisladores.21

    H a esfera moral, de cunho terico, e a esfera jurdica, de cunho prtico, sendo que para a primeira, o fundamento lgico dado pela verdade, pela natureza das coisas, da qual, segundo Carrara, deriva a prpria ordem, imutvel, da matria tratada; para a segunda, em troca, tal fundamento dado pela autoridade da lei positiva.22

    Destaca Bissoli que, em Carrara,

    [...] a responsabilidade penal est fundada na responsabilidade moral derivada do livre-arbtrio e, por isso, a imputabilidade, assim entendida como a capacidade de entender o valor tico-social da ao e de determinar-se para a prpria ao, constitui um elemento fundamental e a distino entre imputveis e ininputveis. A pena, por sua vez, a retribuio pelo mal causado; um justo e proporcionado castigo que a sociedade inflige ao culpado, que o merece, em vista da falta que livre e conscientemente cometeu.23

    Logo, como caractersticas principais da chamada Escola Clssica, temos que esta se concentrava na figura do delito, entendido este como violao do direito (o crime definido pelo direito), executado pelo agente imputvel por sua livre e espontnea vontade, e tambm do pacto social, inspirado pelo Liberalismo clssico.

    Baratta explica que, na Escola Clssica, o Estado, cujo arcabouo jurdico penal (direito penal e execuo da pena) no tem como foco principal o agente que comete o crime, mas sim, o prprio delito, defende a sociedade e o pacto social originrio utilizando-se da certeza da aplicao da pena, como preveno e contramotivao endereada a toda sociedade, em

    21 CARRARA, Francesco apud BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao.

    Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p. 31. 22

    BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 36. 23

    BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p. 32.

  • 16

    detrimento dos espetculos brutais e desproporcionais ao delito cometido, comuns no Antigo Regime.24

    Frederico Abraho de Oliveira sintetiza que, para os autores da Escola Clssica, a pena no se destina a anular um fato nocivo j cometido, mas, antes, impedir que o culpado continue a delinqir, bem ainda desviar que os demais indivduos delinquam.25

    Baratta conclui que, os limites da cominao e da aplicao da sano penal, assim como as modalidades de exerccio punitivo do Estado, eram assinalados pela necessidade ou utilidade da pena e pelo princpio de legalidade.26

    1.3 ESCOLA POSITIVA

    A Escola Positiva surge na dcada de setenta do sculo XIX, em momento histrico marcado pela influncia ideolgica do socialismo nascente e sua concepo de Estado interventor da ordem econmica e social, assim como pelo Positivismo cientfico e o Evolucionismo de Darwin.

    Baratta fala desta escola como a primeira fase de desenvolvimento da criminologia, entendida como disciplina autnoma, abarcando as teorias desenvolvidas na Europa entre o final do sculo XIX e o comeo do sculo XX, inspiradas pela filosofia e pela sociologia do positivismo naturalista27.

    H neste momento, no campo penal, uma espcie de reao aos postulados dos autores clssicos, postos em cheque com a acusao de no

    24 BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas

    Bastos, 1999, p. 31. 25

    OLIVEIRA, Frederico Abraho de. Manual de criminologia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1992, p. 21. 26

    BARATTA, op. cit., p. 31. 27

    Ibid., p. 32.

  • 17

    terem cumprido a promessa de reduo da criminalidade; criticado o individualismo e a doutrina do livre-arbtrio.28

    Para os autores da Escola Positiva, entre os quais destacam-se os italianos Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garfalo, a defesa dos direitos individuais, consagrados no perodo liberal clssico, de inspirao iluminista e que nortearam os autores da Escola Clssica, deve dar espao defesa dos direitos sociais, supostamente negligenciados no perodo anterior.

    A obra considerada inaugural desta escola O homem delinquente, publicada, pela primeira vez, no ano de 1876 e de autoria do mdico italiano Cesare Lombroso, o qual atuava como legista em penitencirias do sul da Itlia.

    Segundo Pierre Grapin, o episdio que instigou Lombroso a elaborar sua polmica teoria ocorreu em 1870 e foi o dissecamento do crnio de um famoso criminoso da poca, Villella, surpreendendo-se o mdico com uma srie de anomalias em sua formao craniana, com aspectos, segundo ele, presentes em certos animais.29

    Desde aquele momento Lombroso multiplicou seus trabalhos neste sentido, dissecou cerca de quatrocentos cadveres de criminosos, observou mais de seis mil delinquentes vivos, em busca do que ele chamava de marcas da criminalidade. A ideia fundamental era simples (talvez simples demais e ele mesmo a retocou gradualmente): todo indivduo que apresentava estas marcas ou estigmas, era um ressurgimento do homem primitivo, um selvagem entre os civilizados, ou seja, uma espcie de monstro hbrido, meio homem e meio fera, no que alguns traos regressivos o remontavam a um distante e sombrio passado, a pocas obscuras e selvagens, nas quais o homem recm saira do mundo animal.

    Aqui se percebe a influncia, apressadamente assimilada, das ideias evolucionistas de Darwin, que comeavam a se disseminar. Numa mesma ordem de ideias, Lombroso considerava que todo homem que apresentava traos femininos, ou toda mulher com aspectos masculinos,

    28 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p.

    34. 29

    GRAPIN, Pierre. La antropologa criminal. Barcelona: Oikos-Tau, 1973.

  • 18

    sendo seres mal diferenciados, por essa mesma causa deveriam ter inclinao para o crime.30 (traduo nossa).

    Nesta obra, pois, advoga Lombroso a tese antropolgica do atavismo, do criminoso nato, no que tange ao comportamento criminoso de certo grupo de indivduos que, segundo ele, j nasceriam pr-dispostos ao cometimento de delitos, inaugurando o que hoje se conhece por direito penal do autor, em detrimento do direito penal do ato, defendido pela Escola Clssica, a qual mantinha seu foco no ato delituoso e no no agente.

    Para Francisco Muoz Conde,

    O Direito Penal do autor se baseia em determinadas qualidades da pessoa, pelas quais esta pessoa, na maioria das vezes, no absolutamente responsvel e as quais, em todo caso, no podem ser precisadas e formuladas com toda nitidez nos tipos penais. Assim, p. ex., muito fcil descrever em um tipo penal os atos constitutivos de um homicdio ou de um furto, mas impossvel determinar com a mesma preciso as qualidades de um homicida ou de um ladro.31

    Para Orlando Soares,

    Incontestavelmente, Lombroso teve o mrito de contribuir para a sistematizao cientfica da Antropologia Criminal, com o que desviou a ateno do fato criminoso at ento a preocupao mxima dos criminalistas abrindo caminho para o surgimento da Escola Positiva, em oposio Escola Clssica.32

    30 Desde aquel momento Lombroso multiplic los trabajos orientados en este sentido, diseccion

    cerca de cuatrocientos cadveres de criminales, observ a ms de seis mil delincuentes vivos, en busca de lo que l llamaba los estigmas de la criminalidad. La idea fundamental era simple (quiz demasiado, y l mismo la retoc gradualmente): todo individuo que presentara estos estigmas, era un resurgimiento del hombre primitivo, un salvage entre los civilizados, o sea, una especie de monstruo hbrido, medio hombre y medio bestia, em el que algunos trazos regresivos los remontaban a un lejano y sombro pasado, a pocas oscuras y salvages, em las que el hombre apenas sobresala del mundo animal. Ah se entrev la influencia, apresuradamente asimilada, de las ideas evolucionistas de Darwin, que empezaban a extenderse. En el mismo orden de ideas, Lombroso consideraba que todo hombre que presentara rasgos femeninos, o toda mujer viriloide, siendo seres mal diferenciados, por su misma causa deberan tener inclinacin al crimen. GRAPIN, Pierre. La antropologa criminal. Barcelona: Oikos-Tau, 1973, p. 27. 31

    MUOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do delito. Traduo e notas de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 10. 32

    SOARES, Orlando. Criminologia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1986, p. 74.

  • 19

    Segundo Medeiros Vieira, Lombroso aventou a hiptese de que certos indivduos j nascem com predisposio para a delinqncia, sendo tal disposio prvia revelada por sua figura fsica.33

    Ante as caractersticas fisionmicas seria possvel conhecer o indivduo capaz de delinqir. Tratava-se do chamado criminoso nato. Nem todos os criminosos seriam natos, mas o verdadeiro o , proclamava Lombroso. Passou-se, ento, a admitir, em princpio, que a teoria lombrosiana era explicvel pelo atavismo. O criminoso nato seria atavicamente delinqente, ou seja, por hereditariedade, porquanto possuindo caractersticas comportamentais relativas a tempos anteriores quele em que vivia, regressava, mentalmente, aos seus ancestrais. Assim, para Lombroso, o atavismo seria a herana mediata, um retorno a operar-se no processo hereditrio do indivduo. (grifo do autor)34

    Se Lombroso ressaltou os fatores antropolgicos do criminoso nato, seu discpulo Enrico Ferri (1856-1929) destacou os aspectos sociolgicos. Considerado o expositor mais polmico, mas tambm o mais claro da chamada Escola Positiva, foi professor universitrio, advogado e poltico militante do Partido Socialista dos Trabalhadores italiano.

    Teve como obra mais importante o livro Sociologia Criminale, publicada com esse nome em 1891 e anteriormente em 1884 com o ttulo Nuovi orizzonti del diritto e della procedura penale.35

    Segundo Antonio Garca-Pablos de Molina,

    O delito, para Ferri, no produto exclusivo de nenhuma patologia individual (o que contraria a tese antropolgica de Lombroso), seno como qualquer outro acontecimento natural ou social resultado da contribuio de diversos fatores: individuais, fsicos e sociais.

    Distinguiu, assim, fatores antropolgicos ou individuais (constituio orgnica do indivduo, sua constituio psquica, caractersticas pessoais como raa, idade, sexo, estado civil etc.), fatores fsicos ou telricos (clima, estaes, temperatura etc.) e fatores sociais (densidade da populao, opinio pblica, famlia, moral, religio, educao, alcoolismo etc.).

    Entende, pois, que a criminalidade um fenmeno social como outros, que se rege por sua prpria dinmica, de modo que o cientista poderia antecipar o nmero exato de delitos, e a classe deles, em uma determinada sociedade e em um momento concreto, se contasse com

    33 VIERA, Joo Alfredo Medeiros. Noes de criminologia. Florianpolis: Ledix, 1997, p. 24.

    34 Ibid., loc. cit.

    35 Ibid., p. 25.

  • 20

    todos os fatores individuais, fsicos e sociais antes citados e fosse capaz de quantificar a incidncia de cada um deles.36

    O homem, pois, para Ferri, ou se adapta vida em sociedade, sendo assim considerado normal, ou reage de forma anormal, instigado mais por fatores endgenos, mas tambm pelos exgenos, cometendo um delito quando da transgresso s normas de conduta social, tornando-se um delinquente, sob o prisma jurdico.37

    de Ferri a teoria dos substitutivos penais, atravs da qual sugere um programa poltico-criminal de luta e preveno do crime, prescindindo, inclusive, do ordenamento jurdico penal.

    Segundo Garca-Pablos de Molina,

    Sua tese a seguinte: o delito um fenmeno social, com uma dinmica prpria e etiologia especfica, na qual predominam os fatores sociais. Em conseqncia, a luta e a preveno do delito devem ser concretizados por meio de uma ao realista e cientfica dos poderes pblicos que se antecipe a ele e que incida com eficcia nos fatores (especialmente nos fatores sociais) crimingenos que o produzem, nas mais diversas esferas (econmica, poltica, cientfica, legislativa, religiosa, familiar, educativa, administrativa etc.), neutralizando-os. A pena, conforme Ferri, seria, por si s, ineficaz, se no vem precedida ou acompanhada das oportunas reformas econmicas, sociais etc., orientadas por uma anlise cientfica e etiolgica do delito. Por isso que ele propugnava, como instrumento de luta contra o delito, no o Direito Penal convencional, seno uma Sociologia Criminal integrada, cujos pilares seriam a Psicologia Positiva, a Antropologia Criminal e a Estatstica Social 38.

    H em sua teoria uma continuao das ideias defendidas por Lombroso, com uma nfase ainda maior no determinismo e na consequente negao do livre-arbtrio, no que tange ao delinquencial, gerando ainda mais polmica nos meios penais da poca.

    36 GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. So Paulo: Editora Revista dos

    Tribunais, 1997, p. 155. 37

    BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998. 38

    GARCA-PABLOS DE MOLINA, op.cit., p. 155-156.

  • 21

    Ressaltados os aspectos biolgicos (herana), fsicos (clima) e sociais (habitat) como fatores preponderantes na ao delituosa, estabeleceu Ferri, por consequncia, a Lei da Saturao Criminal, pela qual

    [...] da mesma maneira que em um certo lquido tal temperatura ocorrer a diluio de alguma quantidade de seu todo, sem uma molcula a mais ou a menos, assim tambm, em determinadas condies sociais, sero produzidos determinados delitos, nem um a mais ou a menos.39

    Ferri, portanto, aprofundou as teorias deterministas de Lombroso, de certa forma radicalizando-as, tornando-se ferrenho inimigo da teoria do livre-arbtrio do agente, de concepo clssica; o termo Escola Clssica, alis, foi por ele cunhado, atribuindo a todos os penalistas do perodo liberal clssico, capitaneados por Beccaria, ou que no se adequassem a suas ideias deterministas, a alcunha de clssicos40.

    Leondio Ribeiro, citado por Newton e Valter Fernandes, acrescenta que outro erro atribuir a Lombroso a autoria da expresso vulgar criminoso nato; esta classificao no est em sua obra; ela se deve ao seu discpulo Enrico Ferri41.

    O ltimo autor a compor a trade da Escola Positiva italiana Raffaele Garfalo (1851-1934), magistrado de orientao poltica conservadora, responsvel por apresentar uma verso moderada dos postulados positivistas e por ter sido o criador do termo Criminologia, como sendo a cincia da criminalidade, do delito e da pena42.

    Em sua obra Criminologia: Estudo sobre o delito e a represso penal, de 1885, segundo Bissoli Filho, Garfalo desenvolve o conceito de delito natural, de inspirao darwiniana, sendo que naquele aparece sempre

    39 FERNANDES, Newton; FERNANDES, Valter. Criminologia integrada. So Paulo: Revista dos

    Tribunais, 1995, p. 83. 40

    ZAFFARONI, Eugenio Ral, PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal brasileiro. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 41

    FERNANDES, N.; FERNANDES, V., op. cit., p. 84. 42

    Ibid., p. 85.

  • 22

    a leso de algum daqueles sentimentos mais profundamente radicados no esprito humano e que, no seu conjunto, formam o que se chama senso moral43.

    O senso moral seria formado, em sntese, por dois sentimentos altrustas, o de piedade (o qual impede atos que causem dor fsica e moral em outrem) e o de probidade (respeito propriedade alheia), constituindo, pois, o delito natural na ofensa a estes dois sentimentos, que constituiriam a base e o patrimnio moral indispensvel de todos os indivduos, em qualquer sociedade e em qualquer momento44.

    No entendimento de Garca-Pablos de Molina, a caracterizao da criminalidade, em Garfalo, no prescinde da teoria lombrosiana, ainda que conceda alguma importncia aos fatores sociais e ao fato criminoso em si, e no somente ao agente.

    Segundo esse autor,

    O caracterstico da teoria de Garfalo a fundamentao do comportamento e do tipo criminoso em uma suposta anomalia no patolgica psquica ou moral. Trata-se de um dficit na esfera moral da personalidade do indivduo, de base orgnica, endgena, de uma mutao psquica (porm no de uma enfermidade mental), transmissvel por via hereditria e com conotaes atvicas e degenerativas. (grifo do autor)45

    Para Francisco Bissoli Filho, a criminologia de Garfalo deu consistncia ideologia da defesa social, propugnando por princpios que transformam o crime e o criminoso em um mal a ser combatido e extirpado do convvio social46.

    Logo, o conceito de periculosidade, por ele chamado de temibilidade, especialmente destacado, no que diz respeito ao tratamento dado a quem comete atos delituosos, sendo, em suas palavras, a perversidade

    43 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p.

    35. 44

    Ibid., p. 36. 45

    GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 159. 46

    BISSOLI FILHO, op. cit., p. 37.

  • 23

    constante e ativa do delinqente e a quantidade do mal previsto que se deve temer por parte do mesmo delinqente47.

    Como bem resume Francisco Bissoli Filho,

    Ao contrrio do classicismo, o positivismo viu no homem criminoso o protagonista de suas investigaes, tendo-o como um ser anmalo, do qual depreendeu os estigmas da criminalidade. At ento o indivduo, tido apenas como detentor do livre-arbtrio, no tinha merecido a devida ateno das Cincias Criminais. Assim, o positivismo criminolgico deteve-se mais nos estudos acerca do homem criminoso, precisamente nas teorias da tipologia e da periculosidade criminal.48

    Em suma, constata-se como pontos divergentes nos postulados formulados pelos autores clssicos e os pertencentes Escola Positiva: a) o delito, sob a gide positivista, passou a ser considerado uma realidade fenomnica, um fato humano e social, e no somente um conceito abstrato, formal e exclusivamente jurdico; b) a responsabilidade penal fundada no na vontade livre do homem, como dispem os clssicos, mas sim na lei como expresso da vontade da sociedade, em detrimento do indivduo, atendendo-se, acima de tudo, finalidade preventiva da pena, como instrumento da defesa social e de acordo com o grau de periculosidade inata do delinquente (princpio da individualizao da sano penal); c) mudana de paradigma metodolgico, do dedutivo ou lgico-abstrato utilizado pelos autores clssicos, com foco no delito, para o indutivo ou etiolgico, prprio das cincias naturais, com a promessa dos positivistas de explicar o fenmeno criminal a partir do estudo de suas causas, em especial, do criminoso nato49.

    Assim resume Molina as diferenas bsicas conceituais do Antigo Regime, da Escola Clssica e da Escola Positiva:

    A imagem do homem como ser racional, igual e livre, a teoria do pacto social, como fundamento da sociedade civil e do poder, assim como a concepo utilitria do castigo, no desprovida de apoio tico, constituem os trs slidos pilares do pensamento clssico. A Escola

    47 GARFALO, Raffaele apud SOUZA, Moacyr Benedicto de. A influncia da escola positiva no

    direito penal brasileiro. So Paulo: Editora Universitria de Direito, 1982, p. 20. 48

    BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p. 42. 49

    BISSOLI FILHO, op. cit., p 39-40.

  • 24

    Clssica simboliza o trnsito do pensamento mgico, sobrenatural, ao pensamento abstrato, do mesmo modo que o positivismo representar a passagem ulterior para o mundo naturalstico e concreto.50

    Cabe ainda ressaltar a existncia das Escolas Eclticas, como a Terza Scuola italiana, que teve como principais representantes Alimena, Carnevale e Impallomeni, a Moderna Escola Alem, ou Escola de Marburgo, que teve como principal expoente Franz von Liszt e a Escola da Defesa Social, de Grammatica e Prins e a Nova Defesa Social, de Marc Ancel, as duas ltimas escolas tendo como foco principal a poltica criminal. Estas escolas, segundo Molina, pretendem harmonizar os postulados do positivismo com os dogmas clssicos, tanto no plano metodolgico como no ideolgico.51

    No contm nenhuma teoria criminolgica (etiologia) original (valem-se da conhecida frmula de combinar a predisposio individual e o meio ambiente), porm interessam porque abordam problemas essenciais para a reflexo criminolgica. Assim, por exemplo: o livre arbtrio, finalidade do castigo e da Administrao Penal, relao entre disciplinas empricas e disciplinas normativas, conflito entre as exigncias formais e garantias do indivduo e as da defesa da ordem social (Direito Penal e Poltica Criminal), funes e limites da luta e preveno ao crime etc.52

    1.4 ESCOLA TCNICO-JURDICA

    Como forma de conciliar os postulados das Escolas Clssica e Positiva, surge esta escola, tambm denominada de Neoclssica, durante a primeira dcada do sculo XX. Da primeira adotou o princpio da responsabilidade moral, distinguindo entre delinquentes imputveis e no imputveis; dos positivistas, adotou as premissas acerca da gnese natural da criminalidade, utilizando-se de dados da Antropologia e da Sociologia Criminal.53

    Para alguns autores, explica Vieira, a Escola Tcnico-Jurdica surge como reao excessiva interdisciplinariedade, quase uma

    50 GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. So Paulo: Revista dos Tribunais,

    1997, p. 135. 51

    Ibid., p. 164. 52

    Ibid., loc. cit. 53

    BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p. 42.

  • 25

    intromisso, no direito penal, por parte da Filosofia, da Sociologia, da Antropologia, entre outras, deixando, desde logo, transparecer especial averso s indagaes filosficas e ao jusnaturalismo54.

    Teve como expoente mximo o jurista italiano Arturo Rocco, o qual destaca que a Cincia Penal tem como objeto principal de estudo, utilizando-se de um mtodo tcnico-jurdico, as leis penais e a consequente relao jurdica que delas advm, levando-se em conta o delito e a pena, como fatos humanos, sociais e polticos.

    Francisco Bissoli Filho sintetiza da seguinte forma o pensamento de Rocco acerca da Cincia Penal e de seu mtodo tcnico-jurdico:

    Rocco defende que essa Cincia trata, necessariamente, de um estudo tcnico-jurdico, posto que no conhecimento cientfico do direito no se dispe de meios diferentes dos que oferece a tcnica jurdica, motivo pelo qual preconiza, para o estudo do Direito Penal, o mtodo tcnico-jurdico; mas isto no quer dizer que o estudioso do Direito Penal no deva assumir de vez em quando o papel do antroplogo, do psiclogo e do socilogo; nem se quer que neste estudo tcnico do Direito no se possa ou no se deva seguir o mtodo positivo e experimental. Distino nao separao e muito menos divrcio cientfico. precisamente por este aspecto do mtodo que deve seguir-se na investigao tcnica do Direito, pelo que a Cincia do Direito Penal que por natureza exclusivamente jurdica e est dirigida a estudar o delito e a pena como objetos de normas jurdicas se vincula intimamente com a Cincia que trata do delito como fenmeno natural, isto , com a Antropologia Criminal, e com a que trata do delito e da sano enquanto fenmenos sociais, a saber, a Sociologia Criminal.

    Assim, o Direito Penal Positivo, nico dado da realidade, passa a constituir o objeto da Cincia do Direito Penal, que tem por tarefa a elaborao tcnico-jurdica deste Direito, buscando proporcionar no somente o conhecimento emprico, mas tambm o cientfico queles que so chamados, por sua misso na vida social, a interpretar e a aplicar o Direito como operadores jurdicos55.

    De forma geral, pode-se sintetizar que, para a Escola Tcnico-Jurdica, o delito relao jurdica, porm com contedo individual e social, tendo a pena seu carter retributivo (reao e consequncia do crime) e preventivo, geral e especial, aplicvel aos imputveis; para os ininputveis, por influncia da Escola Positiva, ser imposta a medida de segurana. Aceitam, por

    54 VIERA, Joo Alfredo Medeiros. Noes de criminologia. Florianpolis: Ledix, 1997, p. 32.

    55 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p.

    43.

  • 26

    influncia da Escola Clssica, o princpio da responsabilidade moral (livre arbtrio) do agente, utilizam-se do j mencionado mtodo tcnico-jurdico e refutam completamente a filosofia na esfera penal56.

    1.5 O LABELLING APPROACH

    O Labelling Approach ou teoria do etiquetamento foi produto da chamada Nova Escola de Chicago, surgida em fins da dcada de 50 e comeo da de 60, nos Estados Unidos, sendo considerada o bero da moderna Sociologia americana.

    Caracterizou-se a Escola de Chicago por um forte empirismo e finalidade pragmtica, empregando a observao direta em todas as investigaes, destas originando teses que oferecessem um diagnstico confivel sobre os urgentes problemas sociais surgidos nos Estados Unidos daquele perodo, como resultado do descrdito com o Estado e seu discurso oficial, agravados pela ameaa nuclear constante decorrente da Guerra Fria e da ecloso da Guerra do Vietn57.

    Para Garca-Pablos de Molina,

    A temtica preferida pela Escola de Chicago foi a que poderamos denominar a sociologia da grande cidade, a anlise do desenvolvimento urbano, da civilizao industrial e, correlativamente, a morfologia da criminalidade nesse novo meio. Atenta ao impacto da mudana social, especialmente evidente nas grandes cidades norte-americanas [industrializao, (i)migrao, conflitos culturais etc.] e interessada pelos grupos e culturas minoritrios, conflitivos, soube aprofundar-se no corao da grande urbe, conhecer e compreender desde dentro o mundo dos desviados, suas formas de vida e cosmovises, analisando os mecanismos de aprendizagem e transmisso das referidas culturas desviadas58.

    56 PRADO, Luiz Rgis; BITENCOURT, Cezar Roberto apud BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas

    da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p. 43-44. 57

    GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. 58

    Ibid., p. 244.

  • 27

    A teoria do Labelling Approach ou do Etiquetamento, como teoria do conflito, ou seja, teoria que concebe a sociedade como uma pluralidade de grupos com normas culturais diferentes, com sistemas de normas em coliso, segundo Zaffaroni e Pierangeli,

    [...] inverte o posicionamento positivista, afirmando que o criminoso simplesmente aquele que se tem definido como tal, sendo esta definio produto de uma interao entre aquele que tem o poder de etiquetar (teoria do etiquetamento ou labelling theory) e aquele que sofre o etiquetamento, o que acontece atravs de um processo de interao, de etiquetamento ou de criminalizao. (grifo do autor)59

    Para Bissoli Filho, essa teoria constitui-se numa das correntes desconstrutoras do moderno sistema penal, mudando o paradigma criminolgico, antes concentrado na criminalidade, agora no processo de criminalizao60.

    Segundo Bissoli,

    As teorias do homem criminoso, que partem do pressuposto da existncia, em certas pessoas, de tendncias ao crime, ou de caractersticas ou condies que as tornam mais ou menos perigosas, na verdade tambm so questionadas luz do labelling approach, medida que, segundo este enfoque, a existncia do criminoso depende da seleo prvia das agncias de criminalizao (polcia, Ministrio Pblico e Poder Judicirio), sem a qual o criminoso no ser conhecido. Os estudos realizados pela Escola Positiva, que concluram pela existncia de classes especficas de criminosos (tipologia criminal), bem como pela periculosidade do delinqente, tiveram como objeto indivduos j selecionados, etiquetados, estigmatizados e estereotipados pelo sistema. Assim, os dados sobre os quais se debruaram os positivistas nos seus estudos eram dados incertos, que no refletiram a realidade.61

    O processo de criminalizao, segundo Baratta, abordado, na teoria do etiquetamento, utilizando-se do enfoque dado por duas correntes da sociologia americana, quais sejam, o interacionismo simblico, inspirado na psicologia social de George H. Mead, e a etnometodologia, inspirada pela sociologia fenomenolgica de Alfred Schutz. Segundo essas duas correntes, o

    59 ZAFFARONI, Eugenio Ral; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal brasileiro.

    So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 318 e 319. 60

    BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p. 44. 61

    Ibid., p. 204.

  • 28

    estudo da realidade social o estudo dos processos de tipificao, os quais conferem um significado s interaes entre os indivduos que compem a sociedade, significados estes que se afastam das situaes concretas; a sociedade, pois, no uma realidade que se possa conhecer objetivamente, dado ser o produto de uma construo social, no estanque e mutvel62.

    O sociolgo americano Howard Becker, em sua obra Outsiders, publicada originalmente em 1963, expe os efeitos da estigmatizao na formao do status social de desviante, mostrando que a mais importante conseqncia da aplicao de sanes consiste em uma decisiva mudana da identidade social do indivduo; uma mudana que ocorre logo no momento em que introduzido no status de desviante63.

    Becker assim sustenta, acerca do desvio e do desviante:

    Desse ponto de vista, o desvio no uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma conseqncia da aplicao por outros de regras e sanes a um infrator. O desviante algum a quem esse rtulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante aquele que as pessoas rotulam como tal.

    Como o desvio , entre outras coisas, uma conseqncia das reaes de outros ao ato de uma pessoa, os estudiosos do desvio no podem supor que esto lidando com uma categoria homognea quando estudam pessoas rotuladas de desviantes. Isto , no podem supor que essas pessoas cometeram realmente um ato desviante ou infringiram alguma regra, porque o processo de rotulao pode no ser infalvel; algumas pessoas podem ser rotuladas de desviantes sem ter de fato infringido uma regra. Alm disso, no podem supor que a categoria daqueles rotulados conter todos os que realmente infringiram uma regra, porque muitos infratores podem escapar deteco e assim deixar de ser includos na populao de desviantes que estudam. medida que a categoria carece de homogeneidade e deixa de incluir todos os casos que lhe pertencem, no sensato esperar encontrar fatores comuns de personalidade ou situao de vida que expliquem o suposto desvio. (grifo do autor)64

    Alessandro Baratta menciona Edwin M. Lemert como responsvel pela distino entre delinquncia primria e delinquncia secundria, na perspectiva da reao social.

    62 BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas

    Bastos, 1999. 63

    BECKER, Howard apud BARATTA, op. cit., p. 89. 64

    BECKER, Howard. Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 21-22.

  • 29

    Para Baratta,

    Lemert desenvolve particularmente esta distino, de modo a mostrar como a reao social ou a punio de um primeiro comportamento desviante tem, freqentemente, a funo de um commitment to deviance, gerando, atravs de uma mudana da identidade social do indivduo assim estigmatizado, uma tendncia a permanecer no papel social no qual a estigmatizao o introduziu65.

    Vera Pereira Andrade sintetiza que as indagaes formuladas pela teoria do labelling approach em torno de seu objeto, o processo de criminalizao, resultaram em trs pontos explicativos:

    1) investigao do impacto da atribuio do status de criminoso na identidade do desviante (desvio secundrio e carreiras criminais); 2) processo de atribuio do status criminal (seleo ou criminalizao secundria); 3) processo de definio da conduta desviada (criminalizao primria).66

    Zaffaroni et al estabelecem a criminalizao primria e a secundria como etapas do processo seletivo de criminalizao; a primria o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punio de certas pessoas, enquanto a secundria a efetiva ao punitiva exercida sobre pessoas concretas, pelas agncias policiais e judiciais67.

    Em suma, conclui Molina que no se pode compreender o crime prescindindo da prpria reao social, do processo social de definio ou seleo de certas pessoas e condutas etiquetadas como delitivas68.

    Delito e reao social so expresses interdependentes, recprocas e inseparveis. A desviao no uma qualidade intrnseca da conduta, seno uma qualidade que lhe atribuda por meio de complexos processos de interao social, processos estes altamente seletivos e discriminatrios.

    O labelling approach, em conseqncia, supera o paradigma etiolgico tradicional, problematizando a prpria definio da criminalidade.

    65 BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas

    Bastos, 1999, p. 89. 66

    ANDRADE, Vera Regina Pereira de apud BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p. 50. 67

    ZAFFARONI, Eugenio Ral et al. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 43. 68

    GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 291.

  • 30

    [...]

    Por isso, o interesse da investigao se desloca do desviado e do seu meio para aquelas pessoas ou instituies que lhe definem como desviado, analisando-se fundamentalmente os mecanismos e o funcionamento do controle social ou a gnese da norma e no os dficits e carncias do indivduo, que outra coisa no seno vtima dos processos de definio e seleo, de acordo com os postulados do denominado paradigma de controle69.

    1.6 A CRIMINOLOGIA CRTICA

    Esta corrente surge em meados da dcada de 70, em pases capitalistas avanados, como a Alemanha e a Itlia, sendo uma espcie de continuao da teoria do Labelling Approach, por reconhecer a definitiva quebra do paradigma etiolgico por essa corrente, com a proposio do novo paradigma da reao social, com a mudana do foco do delito e do delinquente (objetos tanto da escola clssica, como da positiva), para o processo de criminalizao.

    No dizer de Alessandro Baratta,

    Na perspectiva da criminologia crtica a criminalidade no mais uma qualidade ontolgica de determinados comportamentos e de determinados indivduos, mas se revela, principalmente, como um status atribudo a determinados indivduos, mediante uma dupla seleo: em primeiro lugar, a seleo dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais; em segundo lugar, a seleo dos indivduos estigmatizados entre todos os indivduos que realizam infraes a normas penalmente sancionadas. A criminalidade [...] um bem negativo, distribudo desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema scio-econmico e conforme a desigualdade social entre os indivduos.70

    Seus autores, inspirados fortemente no Socialismo Marxista, criticam a teoria do etiquetamento, sendo que, para eles,

    A teoria descreveria os mecanismos de criminalizao e de estigmatizao, mas no explicaria a realidade social nem o significado do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalizao justificando, portanto, a crtica de parecer a outra cara da ideologia oficial.

    69 GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Criminologia. So Paulo: Revista dos Tribunais,

    1997, p. 292. 70

    BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. Traduo: Juarez Cirino dos Santos, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, 2. ed., p. 161.

  • 31

    [...]

    O paradigma do conflito, fascinado com fenmenos de aparente separao entre propriedade e poder, e de burocratizao da indstria e do Estado, situaria o conflito nas relaes de poder, e no nas relaes de propriedade. (grifo do autor)71

    Esta concepo materialista do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalizao, em estreita relao com a sociedade capitalista e suas contradies e desigualdades, seria o salto qualitativo da Criminologia Crtica em relao s teorias formuladas anteriormente.

    Juarez Cirino dos Santos, em prefcio obra Criminologia crtica e crtica do direito penal, de Alessandro Baratta, este um dos principais expoentes da Criminologia Crtica, sustenta que esta corrente de pensamento teria tido melhor xito ao explicar a contradio entre a igualdade formal do sujeito jurdico e a desigualdade real de indivduos concretos, com reais chances de serem selecionados pelo sistema penal.

    O progresso da criminologia crtica estaria na passagem da descrio para a interpretao dessa desigualdade, mostrando a relao dos mecanismos seletivos do processo de criminalizao com a estrutura e as leis de desenvolvimento da formao econmico-social.

    Assim, a seleo legal de bens e comportamentos lesivos instituiria desigualdades simtricas: de um lado, garante privilgios das classes superiores com a proteo de seus interesses e imunizao de seus comportamentos lesivos, ligados acumulao capitalista; de outro, promove a criminalizao das classes inferiores, selecionando comportamentos prprios desses segmentos sociais em tipos penais.

    O processo de criminalizao, condicionado pela posio de classe do autor e influenciado pela situao deste no mercado de trabalho (desocupao, subocupao) e por defeitos de socializao (famlia, escola), concentraria as chances de criminalizao no subproletariado e nos marginalizados sociais, em geral (grifo do autor)72.

    Francisco Bissoli Filho, citando o colombiano Emiro Huertas, enumera as seguintes propostas de discusso da Criminologia Crtica:

    71 SANTOS, Juarez Cirino dos. Anatomia de uma criminologia crtica. Prefcio a BARATTA,

    Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 13. 72

    SANTOS, op. cit., p. 15.

  • 32

    1) Mxima reduo do mbito de ao do sistema penal; 2) Mxima reduo do uso da privao da liberdade; 3) Reforo das garantias individuais frente atividade punitiva estatal; 4) Democratizao e humanizao do sistema penal; 5) Vinculao a outros movimentos progressistas; e 6) Legitimao pblica da perspectiva crtica e seu projeto73.

    Concluda a perspectiva histrica das principais ideias penais, suas caractersticas e autores principais, abordar-se-, no captulo seguinte, o Cdigo Penal brasileiro de 1940 e suas posteriores reformas e em que medida as ideias penais ora apresentadas influenciaram seus dispositivos.

    73 BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalizao. Florianpolis: Obra Jurdica, 1998, p.

    53.

  • 33

    CAPTULO 2 O CDIGO PENAL DE 1940 E SUAS PRINCIPAIS REFORMAS

    2.1 CONSIDERAES INICIAIS

    O presente Captulo tem o propsito de abordar a influncia das principais ideias penais, apresentadas no primeiro captulo, notadamente as Escolas Clssica e Positiva, na gnese do Cdigo Penal brasileiro de 1940, com suas posteriores reformas, partindo de um breve histrico das legislaes penais anteriores quela, a demonstrar a continuidade presente no Cdigo de 1940, desde as Ordenaes portuguesas, passando pelo Cdigo Imperial de 1830, o republicano de 1890 e a Consolidao de 1932.

    2.2 BREVE HISTRICO DA LEGISLAO PENAL BRASILEIRA

    2.2.1 PERODO COLONIAL

    Entre as trs Ordenaes do Reino portugus, quais sejam, as Ordenaes Afonsinas (sculo XV), as Manuelinas (sculo XVI) e as Filipinas (sculo XVII), somente esta ltima foi aplicada em solo brasileiro.

    Alm das Ordenaes, segundo Zaffaroni, vigiam tambm, paralelamente ao seu Livro V, um direito penal domstico privado, a ser aplicado pelos donatrios e, posteriormente, com a lenta instalao da estrutura judiciria no Brasil colnia, uma profuso de normas penais, dispersas por alvars, regimentos, decretos, cartas-rgias e mesmo assentos da Casa da Suplicao [...]. 74

    Zaffaroni et al explicam que,

    Diversamente das Afonsinas, que no existiram para o Brasil, e das Manuelinas, que no passaram de referncia burocrtica, casual e

    74 ZAFFARONI, Eugenio Ral et al. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 419.

  • 34

    distante em face das prticas penais concretas acima noticiadas, as Ordenaes Filipinas constituram o eixo da programao criminalizante de nossa etapa colonial tardia, sem embargo da subsistncia paralela do direito penal domstico que o escravismo necessariamente implica. A vigncia das Filipinas, em matria penal, avanou mesmo alguns anos sobre o prprio estado nacional brasileiro, at a promulgao do cdigo criminal de 1830, com os limites e alteraes decorrentes da nova ordem constitucional e de algumas leis penais editadas naquele perodo;

    [...]

    A matria penal concentrava-se no Livro V, que reproduzia, com as alteraes intercorrentes, a mesma estrutura bsica das Afonsinas; pode-se contudo afirmar que ferocidade dos textos no correspondia uma implacvel aplicao judicial massiva, que em todo caso ser maior no sculo XVIII do que nos antecedentes. 75

    Seu nome, segundo Pierangelli, advm do monarca espanhol Filipe II, que aps reunificar os reinos da Espanha e de Portugal, em 1581, torna-se Filipe I de Portugal; as ordenaes, no entanto, somente entraram em vigor em 1603, j no reinado de Filipe II (III de Espanha).76

    Explicam Zaffaroni et al que, em que pese a vigncia das Ordenaes, mais especificamente, o Livro V, que cuidava da matria penal, em razo da demora da metrpole em implantar as burocracias estatais no Brasil colnia e pela prpria tradio ibrica de imiscuir a esfera pblica com a privada, acompanhado de um direito penal domstico aplicado aos escravos e a herana feudal do regime de capitanias hereditrias, a aplicao e execuo da pena aos condenados era exercida pelos prprios donatrios, na maioria das vezes de maneira arbitrria.77

    De uma forma ou de outra, o processo criminalizante seletivo j se faz presente na origem da aplicao do direito penal em nosso pas. Como dispe Zanon,

    Pode-se afirmar, sem embargos, que o Livro V, foi o primeiro estatuto penal no solo ptrio sob civilizao. Dentre outras normas, nele constava: aos negros e aos ndios era aplicado o regime da escravido; a semi-escravido era imposta aos portugueses e judeus que na Colnia cumpriam pena de banimento; a penas desumanas eram submetidos os

    62 ZAFFARONI, Eugenio Ral et al. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 417-418. 76

    PIERANGELI, Jos Henrique. Cdigos penais do Brasil. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 77

    ZAFFARONI et al, op. cit., passim.

  • 35

    que sofreram o degredo. De outro lado, a pena era aplicada de acordo com a classe da pessoa: aos homens comuns, o povo, impunham-se os rigores da lei, enquanto que fidalgos, nobres e aristocratas gozavam de considervel iseno.78

    Francisco de Assis Toledo assim resume o teor do Livro V das Ordenaes Filipinas:

    As Ordenaes Filipinas refletiam o esprito ento dominante, que no distinguia o direito da moral e da religio. Tanto assim que logo nos primeiros ttulos do famigerado Livro V tem incio a previso de penas para hereges e apstatas, que arrenegam ou blasfemam de Deus ou dos santos, para feiticeiros, para os que benzem ces etc. A palavra pecado abunda no texto dos tipos penais e at em ttulo, como ocorre com o de n. XIII, in verbis: Dos que commetem pecado de sodomia, e com alimrias. A pena criminal, extremamente rigorosa, freqentemente a de morte, era utilizada para os atentados contra o rei e o Estado, para represso do pecado, dos desvios de normas ticas e, por fim, dos atos que produziam danos.79

    Pierangeli comenta a execuo de Tiradentes, como exemplo emblemtico da aplicao do Livro V das Ordenaes Filipinas no Brasil colnia:

    Tambm no Brasil encontramos exemplos da extrema crueldade dessa legislao. Tiradentes, acusado e condenado de crime de lesa-majestade, foi enforcado, esquartejado, sendo os seus membros fincados em postes colocados beira das estradas nas cercanias de Vila Rica, com slogans destinados a advertir ao povo sobre a gravidade dos atos de conspirao contra o monarca (na poca, D. Maria, a Louca). As inscries diziam que ningum poderia trair a rainha, porque as prprias aves do cu se encarregariam de lhe transmitir o pensamento do traidor. Ainda quanto a Tiradentes, imps-se a pena de infmia at sua quarta gerao.80

    2.2.2 PERODO IMPERIAL

    Aps a proclamao da independncia do Brasil, em 4 de maro de 1823, por D. Pedro I, inspirada nos ideais liberais iluministas, elaborou a Assemblia Constituinte o texto constitucional que foi outorgado pelo imperador, em maro de 1824.

    78 ZANON, Artemio. Introduo cincia do direito penal. Florianpolis: Obra Jurdica, 1997, p.

    152. 79

    TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal. So Paulo: Saraiva, 1994, p. 56. 80

    PIERANGELI, Jos Henrique. Cdigos penais do Brasil. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 59.

  • 36

    Na nova carta constitucional, a primeira do Brasil como nao independente, estabeleceu em seu artigo 179 vrias regras a serem observadas pelo legislador, quando da elaborao de um cdigo penal brasileiro, que viesse a substituir as anacrnicas Ordenaes.

    Pierangeli assim discorre sobre o referido artigo 179:

    No seu art. 179, a Constituio de 1824 estabeleceu regras e princpios que reafirmavam a sua concepo liberal, que efetivamente norteava figura mpar, e muitas vezes contraditria, do Imperador. Assim, de se destacar: Item II Nenhuma lei ser estabelecida sem utilidade pblica, onde se apresentava claramente as idias de Jeremias Bentham, para quem os sistemas legislativos deveriam orientar-se pela utilidade, enquanto o item III fixava o princpio da irretroatividade da lei, que constitui uma das mais preciosas garantias dos direitos humanos de liberdade.

    Alm desses dispositivos, outros de extrema importncia foram explicitados: item XII A lei ser igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensar em proporo dos merecimentos de cada um; item XIX Desde j ficam abolidos os aoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruis; item XX Nenhuma pena passar da pessoa do delinquente. Portanto no haver em caso algum confiscao de bens, nem a infmia do Ro se transmittir aos parentes em qualquer gro, que seja; inciso XXI As Cadas sero seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para separao dos Ros, conforme suas circunstancias, e natureza dos seus crimes.

    Era, pois, sob a tica das idias iluministas que provinham de outras plagas, e que aqui se encontravam presentes, inclusive no esprito do Imperador, que as introduziu na Carta que outorgou, que deveria se alicerar a primeira codificao penal brasileira, a qual deveria ser fundada nas slidas bases da Justia e da Equidade (item XVIII). Por conseguinte, o nosso Cdigo Criminal de 1830, que tanto encantou a cultura jurdico-poltica de sua poca, tinha suas linhas mestras fixadas na Constituio.81

    Logo, foi sancionado, em 16 de dezembro de 1830, o Cdigo Criminal do Imprio do Brasil, originrio do projeto de Bernardo de Vasconcellos.

    Citando Basileu Garcia, sobre este jurista, dispe Pierangeli:

    De formao ideolgica liberal, conquanto adaptado s concepes escravocratas aqui vigentes na poca, era o autor formado em direito por Coimbra, onde fora aluno de Pascoal de Mello Freire, ressoando perante ele as pregaes liberais desse mestre, que recebera o influxo da obra de Beccaria. Se por outras vrias formas no se explicasse, a

    81 PIERANGELI, Jos Henrique. Cdigos penais do Brasil. So Paulo: Revista dos Tribunais,

    2004, p. 66.

  • 37

    teramos justificada a repercusso do individualismo no Cdigo do Imprio.82

    Importante ressaltar a figura de Mello Freire, jurisconsulto portugus e professor na Universidade de Coimbra, tendo sido autor de um projeto de cdigo penal apresentado Coroa portuguesa em 1786 e que reformaria as Ordenaes, mas que, por ser avanado demais para a poca, no vingou.

    Pierangeli assim o descreve:

    Forjado nas mais puras concepes iluministas, Mello Freire sofreu extrema influncia de Beccaria, Filangieri, Grcio, Pufendorf, Montesquieu, Voltaire, Pttman, Paulo Rizzi, Felipe Maria Renazzi, Blackstone, Servant, Bentham, entre outros, muitos dos quais vm citados na apresentao do seu Projeto de Cdigo Criminal, onde ele d uma clara idia da sua formao cultural e da tendncia iluminista que orientava o seu trabalho e a sua obra, em geral.83

    O momento histrico em que foi elaborado e promulgado o Cdigo Criminal de 1830, qual seja, logo aps a independncia do Brasil, portanto, em perodo de transio e adaptao, com perturbaes de ordem poltica, social e econmica, reflete as contradies presentes em seu bojo, entre a ideologia liberal (e anti-escravista) que o inspirou e o sistema poltico e econmico ainda atrelado ao antigo regime escravista que, de certa forma, o desvirtuou. Nas palavras de Zaffaroni et al, citando Caio Prado Jr., Emlia Vioti da Costa e Roberto Schwarcz:

    Quando se assenta a poeira dos tensos episdios que assinalam a independncia, ascende ao poder do novo estado a classe mais diretamente interessada na conservao do regime: os proprietrios rurais, que se tornam sob o imprio a fora poltica e socialmente dominadora. Paralelamente decadncia do nordeste, a cultura do caf no sudeste faz este produto ultrapassar o acar e o algodo nas exportaes e concentra geograficamente riqueza e poder poltico, prorrogando a demanda de mo-de-obra escrava. A queda nos preos internacionais do acar e do algodo e a crise financeira agravada pelo deficit fiscal tratado com volumosas emisses de papel-moeda produzem insatisfaes que se materializaro em inmeras sedies: a partir de 1831 os cabanos no Par, a setembrada de 1832 em Pernambuco, a revoluo farroupilha de 1835 no sul (mesmo ano de uma revolta de escravos na Bahia, sobre a qual retornaremos), a

    82 GARCIA, Basileu apud PIERANGELI, Jos Henrique. Cdigos penais do Brasil. So Paulo:

    Revista dos Tribunais, 2004, p. 66. 83

    PIERANGELI, Jos Henrique. Cdigos penais do Brasil. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 68.

  • 38

    sabinada tambm na Bahia em 1837, a balaiada no Maranho em 1839, a revoluo praieira em Pernambuco em 1848, So Paulo e Minas Gerais em 1842, Alagoas em 1844...

    A Constituio de 1824 mantivera a escravido, sob a frmula circunloquial de garantir o direito de propriedade em toda a sua plenitude. A contradio entre a condio escrava e o discurso liberal era irredutvel: como disse Emlia Vioti da Costa, a escravido constitua o limite do liberalismo no Brasil, frisando Roberto Schwarcz que as idias liberais no se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartveis.(grifo do autor)84

    Pierangeli aponta algumas falhas no Cdigo Criminal de 1830, citando Magalhes Noronha:

    evidente que essa legislao possua defeitos, como, alis, j vaticinara a Comisso nomeada pela Cmara, ao ofertar o seu parecer parcialmente transcrito. No definia a culpa, mencionando apenas o dolo (arts. 2 e 3), conquanto no art. 6 a ela se referisse, capitulando logo mais adiante crimes culposos (arts. 125 e 153), olvidou o homicdio e as leses corporais culposas. Essa omisso s veio a ser suprida atravs da Lei 2.033, de 1871. Contudo, de se ressaltar que o silncio do Cdigo, na poca em que veio a lume, pouco ou nada significava, pois a importncia dos crimes culposos s surgiu com o advento das mquinas, com os meios de transporte e da evoluo da indstria, quando, ento, situaes perigosas passaram a se apresentar e reclamar o que hoje denominamos cumprimento do dever objetivo de cuidado.

    Tambm estaria a merecer crticas por ter sucumbido s idias predominantes na poca, em que se valorizava a pena de morte, principalmente como meio de submisso do brao escravo, sobre o qual repousava, em grande parte, a nossa incipiente economia. Com isso espalhou-se a desigualdade no tratamento entre homens, mas, bem verdade, o escravo era apenas rs que pertencia ao seu senhor. Tudo isso, embora a Constituio consagrasse o princpio da igualdade de todos perante a lei (A Lei ser igual para todos, quer proteja, quer castigue art. 179, item XIII).85

    Reconhece-se, entretanto, o aspecto vanguardista do Estatuto penal de 1830, se comparado a outros vigentes poca, vindo inclusive a influenciar o Cdigo penal espanhol de 1848 e, por consequncia, vrios cdigos latino-americanos. O liberalismo do Cdigo de 1830, em que pese as concesses feitas aos escravocratas, foi tido como responsvel pelo aumento da criminalidade e, nas palavras de Assis Toledo, no tardou o surgimento de uma

    84 ZAFFARONI, Eugenio Ral et al. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 423-

    424. 85

    PIERANGELI, Jos Henrique. Cdigos penais do Brasil. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 71.

  • 39

    reao antiliberal que, durante a vigncia do novo estatuto, logrou editar algumas leis de cunho retrgrado, principalmente contra escravos.86

    Roberto Lyra, citado por Pierangeli, enumera as seguintes inovaes:

    1.) no esboo da indeterminao relativa e de individualizao da pena, contemplando, j, os motivos de crime, s meio sculo depois testado na Holanda e, depois, na Itlia e na Noruega;

    2.) na frmula da cumplicidade (co-delinqncia como agravante) com traos do que viria a ser teoria positiva a respeito;

    3.) na reviso da circunstncia atenuante da menoridade, desconhecida, at ento, das legislaes francesa, napolitana e adotada muito tempo aps;

    4.) no arbtrio judicial no julgamento dos menores de 14 anos;

    5.) na responsabilidade sucessiva nos crimes por meio da imprensa antes da lei belga, e, portanto, esse sistema brasileiro e no belga, como conhecido;

    6.) a indenizao do dano ex delicto como instituto de direito pblico, tambm anteviso positivista;

    7.) na imprescritibilidade da condenao.87

    Pierangeli cita como principal inovao presente no Cdigo Criminal de 1830 a adoo do sistema do dia-multa, em seu artigo 55, que muitos autores nacionais, segundo ele erroneamente, denominam de sistema escandinavo.88

    2.2.3 PERODO REPUBLICANO CDIGO PENAL DE 1890

    Segundo Pierangeli, posteriormente abolio da escravatura, dada pela promulgao da Lei urea, de 13 de maio de 1888, foi formada comisso para examinar anteprojeto de um novo cdigo criminal, em

    86 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal. So Paulo: Saraiva, 1994,

    p. 59. 87

    PIERANGELI, Jos Henrique. Cdigos penais do Brasil. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 71-72. 88

    Ibid., passim.

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    face da nova realidade social, tendo como relator o Conselheiro Joo Baptista Pereira.

    Proclamada a Repblica em novembro de 1889, interromperam-se os trabalhos de feitura do novo cdigo, vindo, porm, a ser retomado pelo prprio Joo Baptista Pereira, a convite de Campos Salles, Ministro da Justia do governo provisrio; Baptista Pereira terminou o trabalho em trs meses, promulgando a Repblica seu primeiro cdigo penal em outubro de 1890.89

    O Cdigo foi duramente criticado poca, muitos atribuindo suas eventuais falhas forma clere pela qual foi feito.

    Zaffaroni e Pierangeli atribuem as crticas dirigidas ao Cdigo de 1890 mais matriz ideolgica de cunho liberal-clssico, utilizada pelo relator Baptista Pereira, um monarquista avesso ao Positivismo filosfico, que tanto influenciou os ideais republicanos:

    O Cdigo de 1890 foi sumamente criticado, mas cremos que essas crticas no possuem tanto fundamento como se tem apregoado. Freqentemente refere-se a ele como possuidor de um texto arcaico e defeituoso, e essa afirmao no tem sido objeto de uma reviso sria. Muitas dessas crticas exsurgem mais como fruto da vaidade e da incompreenso. No obstante as crticas, o primeiro c