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A RELIGIÃO COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA: O QUE MAQUIAVEL PODE NOS ENSINAR? MARCOMINI, Roberson Augusto, SIMÕES, Mauro Cardoso Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4 14 A RELIGIÃO COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA: O QUE MAQUIAVEL PODE NOS ENSINAR? MARCOMINI, Roberson Augusto Mestrando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas - UNICAMP (Faculdade de Ciências Aplicadas) [email protected] SIMÕES, Mauro Cardoso Professor da Faculdade de Ciências Aplicadas UNICAMP e do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas [email protected] RESUMO O propósito deste trabalho é examinar o pensamento político de Maquiavel e procurar compreender as relações entre política e religião. Entendendo que um dos principais motivos para a rejeição de sua proposta política encontra-se fundamentada em motivos morais de cunho religioso, investigaremos a religião como instrumento da política em seu pensamento. Palavras-Chave: Maquiavel, Politica, Autonomia, Religião. ABSTRACT The purpose of this paper is to examine the political thought of Machiavelli and to the understanding the relationship between politics and religion. Understanding that one of the main reasons for rejection of his policy proposal is based on moral grounds of religious basis, we will to investigate religion as an instrument of politics in his thought. Keywords: Machiavelli, Politics, Autonomy, Religion INTRODUÇÃO Este trabalho tem como escopo analisar os principais aspectos que o pensamento de Maquiavel podem assinalar da religião como instrumento de conquista e manutenção do poder. A primeira questão diz respeito ao tratamento de Maquiavel desta interrelação entre política e religião. A segunda questão e igualmente importante, diz respeito à leitura contemporânea do entrelaçamento entre política e religião, destacando como a religião tem ocupado o espaço autônomo que cabia fundamentalmente à política e os males que podem ocasionar tal inversão. A metodologia a ser aplicada será de artigos científicos, bibliografia

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Augusto, SIMÕES, Mauro Cardoso

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A RELIGIÃO COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA: O QUE

MAQUIAVEL PODE NOS ENSINAR?

MARCOMINI, Roberson Augusto

Mestrando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar

em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas - UNICAMP (Faculdade de Ciências Aplicadas)

[email protected]

SIMÕES, Mauro Cardoso

Professor da Faculdade de Ciências Aplicadas – UNICAMP e do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas

[email protected]

RESUMO O propósito deste trabalho é examinar o pensamento político de Maquiavel e procurar compreender as

relações entre política e religião. Entendendo que um dos principais motivos para a rejeição de sua proposta política encontra-se fundamentada em motivos morais de cunho religioso, investigaremos a

religião como instrumento da política em seu pensamento.

Palavras-Chave: Maquiavel, Politica, Autonomia, Religião.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to examine the political thought of Machiavelli and to the understanding

the relationship between politics and religion. Understanding that one of the main reasons for rejection of his policy proposal is based on moral grounds of religious basis, we will to investigate

religion as an instrument of politics in his thought.

Keywords: Machiavelli, Politics, Autonomy, Religion

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como escopo analisar os principais aspectos que o pensamento de

Maquiavel podem assinalar da religião como instrumento de conquista e manutenção do

poder. A primeira questão diz respeito ao tratamento de Maquiavel desta interrelação entre

política e religião. A segunda questão e igualmente importante, diz respeito à leitura

contemporânea do entrelaçamento entre política e religião, destacando como a religião tem

ocupado o espaço autônomo que cabia fundamentalmente à política e os males que podem

ocasionar tal inversão. A metodologia a ser aplicada será de artigos científicos, bibliografia

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relacionada ao tema, notícias veiculadas na mídia e outros pesquisadores do fenômeno

religioso para análise.

As subdivisões da pesquisa busca entender no primeiro momento como a religião

ganhou força e tornou-se o agente mais poderoso da manutenção da sociedade. O pressuposto

fundamental diz respeito a que os seres humanos estão inevitavelmente envolvidos pela

religião e a política. Considera-se, aqui, que estas atividades são inerentes à própria condição

humana na convivência em sociedade; de uma certa maneira a religião ensina a reconhecer e a

respeitar as regras políticas a partir do mandamento religioso. Essa norma coletiva pode

assumir tanto o aspecto coercivo exterior da disciplina militar ou da autoridade política

quanto o caráter persuasivo interior da educação moral e cívica para a produção do consenso

coletivo.

Nas palavras do próprio Maquiavel, “Nunca houve um legislador que tenha dado leis

extraordinárias a um povo e não tenha recorrido a Deus, pois de outro modo não seriam

aceitas” (MAQUIAVEL, 2007, p. 11).

1 – Elementos fundamentais para a interpretação do pensamento de Maquiavel

A obra Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio foi escrita por Maquiavel

quatro anos após haver concluído O Príncipe. E é precisamente nestas duas obras que

Maquiavel trata das questões envolvendo a religião, com destaque para as análises mais

contundentes em Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. O que a distingue d’O

Príncipe é a análise detalhada da república, em que o autor claramente se coloca em favor

desta, apontando suas principais características observadas no decorrer da história e

modos de melhorá-la, ou, pelo menos, de mantê-la (LEFORT, 2010, p. 151).

A obra inicia referindo-se à origem das cidades, que podem estabelecer-se devido a

um grupo de cidadãos reunidos com o objetivo de adquirir maior segurança: a estrangeiros

que querem assegurar o território conquistado, a estabelecer, ali, colônias; ou mesmo a fim

de exaltar-se a glória do Príncipe.

As repúblicas nascem com o surgimento das cidades e, assim, constituem três

espécies, que são: a monarquia, aristocracia e despotismo. Três que podem evoluir para o

despotismo, oligarquia e monarquia, respectivamente. É claro, neste ponto, o pessimismo

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de como a sociedade é vista por Maquiavel: é a dialética de dois termos, que trata de

sucessão entre ascendência e descendência, a formar um ciclo vicioso. Maquiavel acredita

que todos os príncipes corrompem-se e degeneram-se, e que é possível ser corrigido

somente via acidente externo (fortuna) ou por sabedoria intrínseca (virtú) (LEFORT,

2010, 161-167).

Ao se voltar às espécies de repúblicas, chega à conclusão de que a sua melhor forma

seria o equilíbrio, dito como ser a “justa medida”, para Aristóteles. Tal equilíbrio pode

manter-se através das próprias discordâncias entre o povo e o Senado, já que estes, em

conjunto, representam e lutam pelos interesses gerais do Estado.

O Estado é definido como o poder central soberano, sendo legítimo o monopólio

exclusivo da força. As leis são estabelecidas nas práticas virtuosas da sociedade com o

cuidado de não repetir o que não teve êxito. Por isso, é dito que não há nada pior do que a

deixar ser desrespeitada. Se isso ocorrer, torna-se clara a falha do exercício do poder de

quem a corrompe. Em contrapartida, em se tratando de Estado, tudo é válido, desde a

violação de leis e costumes e tudo o mais que for necessário para atingirem as

consequências visadas: “os fins justificam os meios”. Esse “quase” lema do pensamento

de Maquiavel necessitaria ser aclarado, o que não cabe aos propósitos deste trabalho.

Sendo assim, nessa visão de poder do Estado, é clara a importância da religião, pois

em nome dela são feitas valer muitas causas em favor do Estado (LEFORT, 2010, p. 177-

178). A religião é, sob a visão de Maquiavel, um instrumento político, se usada de modo a

justificar interesses os mais peculiares e, também, como conforto à população, que anda

sempre em busca de ideias, a estar disposta até mesmo a conceber sua vida em busca

destes (LEFORT, 2010, p. 194).

O êxito de uma república, consoante o autor, pode ser estrategicamente obtido

através da sucessão dos governantes. Se se intercalar os virtuosos como os fracos, o

Estado poderá manter-se. Mas, se, diferentemente, dois péssimos governantes sucederam-

se, ou apenas um, mas que seja duradouro, a ruína do Estado será inevitável, já que, desse

modo, o segundo governo não poderá utilizar-se dos bons frutos do governo anterior.

Desse modo, analisa a importância das repúblicas, já que nela os próprios cidadãos

escolhem seus governantes, de modo a aumentar a chance de se ter consecutivamente,

bons governos.

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Referindo-se à política de defesa, nota-se uma clara incompetência por parte do

soberano, pois é de sua exclusiva competência formar um exército próprio para a defesa

da nação. É também de suma importância saber a hora própria de se instruir na ditadura,

que, em ocasiões excepcionais, é necessária a fim de se tomarem decisões rápidas, a

dispensar, assim, consultar as tradicionais instituições do Estado. Após uma análise teórica

e comparativa em termos históricos, é colocada ainda a importância da fortuna, que tem

contingência própria e o poder de mudar os fatos. Assim, o autor define o papel do homem

na história: desafiá-la.

Compreende-se, assim, que o ideal é estabelecer um meio termo entre as formas de

governo a serem adotadas, e observar que a combinação das já existentes pode se mostrar

muito mais eficiente. A forma de administração do Estado deve adaptar-se ao seu

contingente populacional, e não as pessoas às suas leis.

No Capítulo VII d'O Principe, observamos que, o caso limite da conquista seria para

o príncipe recorrer aos meios extraordinários para chegar ao poder e que não depende da

exclusivamente da virtú (MANENT, 2007, 36), nem da fortuna, mas das armas. Para

Maquiavel,

os fins que ele advoga são aqueles aos quais julga prudente que os seres humanos, que compreendem sua realidade, dediquem suas vidas. Os fins

últimos nesse sentido, sejam ou não aqueles da tradição judaico-cristã, são o

que geralmente se pretende dizer por valores morais (BERLIN, 2002, p. 314).

O que Maquiavel vislumbra não são princípios valorativos, mas valores políticos, ou

seja, o que ele quer não é emancipar a política da ética ou da religião. Pensa a política em

termos amplos, não podendo ser identificado como um técnico da política (LEFORT, 2014,

167). Ambiciona que possa existir uma prática política para o bem comum e justiça em ambas

partes da vida do ser humano (LEFORT, 2014, 170). .

A razão por que as pessoas não estão completamente abertas à influência é que, nas massas, os interesses individuais se anulam uns aos outros, de tal

modo que acabam por funcionar no sentido da “regra”. Esta regra ou lei é o

fim objectivo da sociedade, que não pode ser alterado pelos subjectivos ( HELLER,1982, p. 271).

Dois são os meios possíveis de se tornar príncipe, pelo valor ou pela fortuna. Mas,

analisando este o tema do valor e da fortuna nos indagamos sobre se seria possível alcançar o

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poder sem usar a virtú e a fortuna. Como conhecimento político, como manipulação política,

como prática política ou através da ética política? A resposta seria:

Se um homem falhar neste conhecimento político geral e na práxis política, pode ser subtilíssimo e um astuto dissimulador, pode empregar as

artimanhas mais adequadas da política, mas nunca conseguirá ser um político sério...Se um homem não conseguir alcançar os resultados

desejados, e benéficos, com os meios permitidos em política – se, por outras

palavras, o seu conhecimento e prática políticas “saem pela cultura” -, então as suas decisões éticas ou de manipulação não merecem o respeito ou o

perdão, (HELLER,1982, p.276).

Se um homem não conseguir alcançar os seus resultados políticos, então nem a ética

ou a manipulação poderão ser os seus critérios de argumentação. Nos Discursos perceberemos

que a práxis ocupa o primeiro plano, e, n’O Príncipe, a manipulação da ética é reiteradamente

utilizada. Para Maquiavel a manipulação seria o uso da totalidade dos meios de

implementação prática do conhecimento político.

Qual é a essência da manipulação em Maquiavel? É o uso da totalidade dos

meios com vista à implementação prática do conhecimento político. Nenhum dos meios deve ser rejeitado se for necessário obter o resultado

desejado: é este, em resumo, o conteúdo da teoria dos meios e dos fins de

Maquiavel. Quanto a isto, é necessário sublinhar duas questões. A primeira é que Maquiavel fala sempre dos meios que são necessários para atingir um

fim. Os meios que nos afastam do fim desejado (e da práxis) devem ser

rejeitados – quer se trate de meios bons ou maus. Num sentido político, os maus meios apenas são meios inadequados, (HELLER,1982, p. 277).

Tratando-se ainda de valores morais ou políticos, o que se nos fornece como base de

análise das qualidades necessárias que uma pessoa ou um príncipe deva ter para manter-se no

poder, é necessário que um e outro, aprenda ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso

segundo a necessidade que o persegue. Além do que já foi dito, os homens e príncipes devem

estar no mais alto, pois assim todos poderão notar as suas qualidades.

alguns são tidos como liberais, outros como miseráveis (usando o termo

toscano mísero, porque avaro, em nossa língua, é ainda aquele que deseja possuir pela rapinagem, e miséria chamamos aos que se abstêm muito de

usar o que possuem); alguns são tidos como pródigos, outros como rapaces;

alguns são cruéis e outros piedosos; perjuros ou leis; efeminados e pusilânimes ou truculentos animosos; humanitários ou soberbos; lascivos ou

castos; estúpidos ou astutos; enérgicos ou indecisos; graves ou levianos;

religiosos ou incrédulos, e assim por diante (MAQUIAVEL, 1973, p. 69 – 70).

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Assim, um príncipe que possuísse entre todas as qualidades que foram ditas, ou que

demonstrasse possuí-las, ele será mau e bom ao mesmo tempo. E isto levaria o príncipe a ser

bom e ser prudente e que saiba evitar os eventuais defeitos em público, o que fará com que

pratique em seu governo as boas qualidades que permita assegurar o seu governo. É certo que

em determinados momentos os defeitos podem ajudá-lo em seu governo. Além de tudo as

coisas que pareçam ser virtudes e se forem praticadas, poderiam levá-lo à ruína.

Se um governante não depende da virtude para manter o seu Estado, mas sim dos

conhecimentos dos homens prudentes, sendo um governante prudente a sua tendência é ser

amigo dos seus inimigos, para que eles não venham a derrubá-lo de seu trono. Conforme

assinalado, essas qualidades são essenciais ao exercício do poder, mesmo simuladas em certas

circunstâncias, tanto na visão moral ou política. É neste sentido que Maquiavel crítica os

cristãos por querer regular as ações humanas e políticas pelas leis de uma moral abstrata, com

os ideais do cristianismo.

Os ideais do cristianismo são a caridade, a misericórdia, o sacrifício, o amor

a Deus, o perdão aos inimigos, o desprezo pelos bens deste mundo, a fé na vida depois da morte, acresça na salvação da alma individual como algo de

incomparável valor – mais elevado do que todo objetivo social, político ou

qualquer outro propósito terrestre, qualquer outra consideração econômica, militar ou estética, na verdade, inteiramente incomensurável em relação a

qualquer um desses valores (BERLIN, 2000, p. 314).

O que Maquiavel busca é assinalar que os homens acreditam nesses ideais e os

praticam, mas num certo sentido de estabelecerem o bom estado cristão. Disso ele nos

convence de que as virtudes cristãs são meros obstáculos à construção de uma sociedade onde

a justiça possa reinar tanto na prática moral como nas ações políticas, ou seja, uma sociedade

onde satisfaz os desejos e interesses dos homens dos quais buscam o exercício prático em seu

dia a dia. “É, pois, uma condição fundamental da política se desenrolar na aparência”

(BIGNOTTO,1992, p. 117). Mas, se a condição da política só depende do desenrolar de sua

aparência, onde ficaria a sua moralidade? Permaneceria na prática tanto da vida em sociedade

como na vida individual. “Falar apenas em divórcio entre ética e política não espelha o

pensamento de Maquiavel, ainda que para ele a ética pareça ser apenas o depósito de nossas

representações (BIGNOTTO, 1992, 117).

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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A problematização desta pesquisa se dá a partir das obras de Maquiavel, procurando

elementos que possibilitem compreender a construção do pensamento de Maquiavel e que se

encontram na história, na análise da tomada e conservação do poder, e na utilização dos meios

adequados para o governo de uma cidade, tais como o poder, as armas, as leis e a religião. É

assim que a religião apresenta-se como um elemento indispensável para a compreensão das

relações entre as esferas humana e política, Maquiavel relata a religião como um instrumento

da política, fazendo uma diferenciação entre a moralidade pagã antiga e a cristã.

Esta pesquisa busca desenvolver uma análise das ideias políticas nas obras de

Maquiavel, aprofundando o contexto de uma Florença representada por muitos de seus

contemporâneos, como uma cidade arrasada tanto pelos estrangeiros, como por seus próprios

políticos. Massimo Firpo afirma em seu livro O Cardeal, que a política da Itália, que os

Estados não eram o centro da vida política e cultural, alguns chegavam a ser abalados por

crises, mas a Igreja, que era comandada por pontífices, diretamente envolvidos com a política,

inclusive possuindo um poder maior do que aquele atribuído aos príncipes. Os cardeais eram

nomeados pelo Papa e, deste modo, os designados eram pessoas próximas ao Pontífice,

parentes ou pessoas de sua confiança ou de famílias ricas que em troca do chapéu cardinalício

pagavam altas somas. É nesta busca por encontrar soluções para esses problemas que

Maquiavel escolheu o modelo romano que conheceu por intermédio de Tito Lívio, talvez por

sua própria relação com a Florença moderna, ou talvez por ter contatado-a durante suas

leituras, cuja obra lhe acompanhou desde as primeiras fases de seus estudos latinos na casa

paterna (GRAZIA,1993).

Esta política da Igreja afetava diretamente a política, interna e a externa, das cidades

que em geral estavam diretamente ligadas à política de Roma. As cidades ligadas ao

pontificado não dispunham de liberdade para organizar o seu governo, e suas decisões

dependiam do governo central; já as que não estavam diretamente ligadas ao pontificado eram

impedidas de conduzir uma política que satisfizesse os interesses da população.

Maquiavel sublinha que nenhum Estado sobrevive sem a religião (MANENT, 2007,

46-47). Não porque se sustente pela fé ou pela crença em Deus. A sua razão está na finalidade

que lhe é externa, qual seja, um devotamento dos súditos à pátria e às causas cívicas. Desta

maneira, o temor a Deus pode ser um importante elemento que o monarca pode utilizar para

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tornar o povo mais submetido ao Estado, o que, em última análise, facilita a sua

administração.

A dupla função da religião, de coerção e de persuasão, coincide, respectivamente, com

a virtù do príncipe e a do povo. A religião, compreendida como instrumentum regni, requer

do príncipe a capacidade de servir-se de modo sagaz da fé do povo para levá-lo à obediência

da lei civil (MAQUIAVEL, 2007, p. 58). Quer dizer, somente um príncipe 'virtuoso' é capaz

de levar o povo a temer a desobediência às ordens do Estado como se fosse uma ofensa a

Deus. E por que o povo estaria mais propenso a obedecer às ordens divinas do que às

humanas? Para Maquiavel, isso se deve à superioridade da eficácia do mandamento divino em

relação à lei humana para submeter o povo, pois este, segundo ele:

Teme muito mais romper os juramentos do que as leis por prezar mais o poder de Deus do que o dos homens (MAQUIAVEL, Discorsi I, 11).

Note-se que Maquiavel não nega que a religião tenha sua função social e política;

aliás, a função elementar da religião é focalizada quando ele relata que após a morte de

Rômulo, seu sucessor, Numa, encontrou um povo rude e bravio e que para impor-lhe a

obediência civil, para que pudesse conviver em paz. Ele diz:

Voltou-se para a religião como o agente mais poderoso da manutenção da

sociedade, fundando-a sobre tais bases que nenhuma outra república

demonstrou maior respeito pelos deuses, o que facilitou todos os empreendimentos do Senado e dos grandes homens que aquele Estado viu

nascer (NAMER, 1982).

Para Maquiavel, governantes e governados, conhecem a verdade da religião de modo

diferente.

O príncipe conhece a verdade da religião de maneira racional, ao passo que o

povo, quando muito, conhece-lhe a falsidade quando a intenção de embuste do mediador lhe é descoberta (NAMER, 1982).

Portanto, o verdadeiro problema não é saber se há ou não algum conteúdo de verdade

na religião, e, sim, o de canalizar os sentimentos e as energias que a religião suscita no

espírito dos homens em uma direção politicamente útil e construtiva. Isso justifica a

necessidade de esses homens dissimularem o próprio juízo no confronto das coisas que dizem

respeito à religião. Igualmente, é o que fundamenta a exigência de fingir uma atitude

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exatamente oposta, cultivando e protegendo e, na situação concreta, também suscitando tudo

quanto seja capaz de favorecer o sentimento religioso coletivo.

Para Berlin, (2002, p. 323) o ideal de Maquiavel é uma crítica do sistema que na época

era autoritário, que regiam as normas da natureza humana, tanto, para os indivíduos

autônomos como para os da vida públicas, ou seja, a natureza humana apesar de individuais

decidem pela política, a massa não pode agir tanto comunal e moral.

o ideal de Maquiavel é delineado, particularmente nos Discursos, a atividade política é intrínseca à natureza humana e, apesar de alguns

indivíduos aqui e ali decidirem abster-se da política, a massa da

humanidade não pode agir assim; e sua vida comunal determina os deveres morais de seus membros, (BERLIN, 2000, p. 323).

Já Bignotto afirma que, (1992, p.119) Maquiavel não opõe duas esferas autônomas da

ação humana, da política e da ética. Mas, a maneira de como deve ser concebida a ética

(cristã) que busca revelação na consciência e as outras antigas fundadas no respeito ao bem

público. Portanto, Bignotto, separa a ética abstrata (cristã) da ética política (pública).

Maquiavel não opõe duas esferas autônomas de ação – a política e a ética – mas (...) duas maneiras de se conceber a ética: uma cristã, fundada na

revelação e na consciência, e outras antigas, fundadas no respeito ao bem

público e às leis da polis. (BIGNOTTO, 1992, p. 119).

Segundo o florentino, (1992, p. 119) a ética cristã, é incapaz de fundar uma sociedade

livre e forte. “Nossa religião dá mais crédito às virtudes contemplativas do que às virtudes

ativas” (BIGNOTTO, 1992, p.119).

Maquiavel, sabendo que o cristianismo triunfou das ruínas de Roma, o seu projeto era

buscar a destruição do espírito cristão que se cristalizava na Itália como um espírito

dominante do bem que chamamos de valor. Surge então a delimitação de ética na política,

onde na verdade ética e política estavam ligado a um pensamento renascentista.

É preciso assinalar que Maquiavel evita a discussão de ordem exclusivamente

teológica, que inevitavelmente exigiria o recurso aos textos e que culminaria na análise dos

fundamentos e da verdade pronunciada pela religião (TARCOV, 2014, 194-199). O que

procura, no entanto, é compreender o desenvolvimento do estatuto da religião, pois esta

compõe o estabelecimento e conservação do ordenamento político e a busca de seus fins. O

que almeja é situar a religião como instrumento pedagógico e moral para a segurança do

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Estado, sendo, ainda, um elemento constitutivo da identidade social e que integra a coletiva

em metas comum e visa fortalecer os vínculos; nas palavras de Maquiavel “(…) onde há

religião, facilmente se podem introduzir armas; e, onde houver armas, mas não houver

religião, esta com dificuldade poderá ser introduzida” (MAQUIAVEL, 2007, p. 50).

3. RESULTADOS ALCANÇADOS

Este trabalho analisa o lugar que a religião ocupa no pensamento político e é neste

sentido que a religião apresenta-se como um elemento indispensável para a compreensão das

relações entre as esferas humana e política; não é por acaso que Maquiavel já relatava a

religião como um instrumento da política, fazendo uma diferenciação entre a moralidade pagã

antiga e a cristã.

No primeiro momento da pesquisa entendemos que a religião ganhou força e tornou-se

o agente mais poderoso da manutenção da sociedade. Um recurso à história pode sustentar tal

posicionamento. Os resultados mostraram que o agir humano tem algo de imprevisível,

pulsional, violento, mau, e que, por isso, necessita de algo que o regule, sejam normas sociais,

políticas, morais ou religiosas. É a religião que tem atuado historicamente, desse modo , como

um centro regulador (TARCOV, 2014). As demais normas submetem-se, assim, às exigências

próprias da religião, tornando-a imprescindível para a avaliação das demais normas. Esse é o

ponto: a religião interrompe o movimento das ações humanas, e como força centrípeta,

reorganiza e reordena aquelas ações com vistas ao equilíbrio social e ao bem comum político.

Assim temos um procedimento metodológico que analisa esse fenômeno por sua capacidade

de cumprir a tarefa cívica de mobilizar os homens a favor do fortalecimento do Estado.

Em um segundo momento da pesquisa entendemos que a função da religião na

atualidade tem ocupado o espaço autônomo que cabia fundamentalmente à política e os males

que podem ocasionar tal inversão.

A religião nunca esteve totalmente confinada aos espaços privados, sendo que houve

uma ascensão das mais diversas crenças religiosas atualmente e a inserção massiva de seus

representantes na política radicalizaram esse cenário, tornando difícil imaginar um Congresso

sem a presença de candidatos eleitos por tais representações. Considera-se, assim, que há uma

instrumentalização mútua entre religião e política, percebida no estabelecimento de alianças

entre os maiores partidos laicos do país e as lideranças religiosas, que objetiva cooptar o fiel

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A RELIGIÃO COMO INSTRUMENTO DA POLÍTICA: O QUE MAQUIAVEL PODE NOS ENSINAR? MARCOMINI, Roberson

Augusto, SIMÕES, Mauro Cardoso

Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4

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eleitorado apelando a credos de cunho religioso. O entrelaçamento da religião com a política

mostra, deste modo, todo o seu poder de sustentação ideológica, política e econômica. E

atualmente os representantes parlamentares e a mídia viram espaços para a publicização de

discursos baseados no tradicionalismo, na defesa da família e da moral cristã, como se fossem

herdeiros de Savonarola, tão combatido por Maquiavel. Assim, na esteira do fortalecimento

do conservadorismo de nossa sociedade, pautas controversas como o aborto, o casamento

civil de pessoas do mesmo sexo e, ainda, a democratização dos meios de comunicação

continuam interditadas no debate público.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos admitir que a proposta de Maquiavel, defensor da autonomia da política,

ainda não se concretizou no Brasil. Haveria uma equiparação entre o combate empreendido

por Maquiavel e os embates contemporâneos entre política e religião? A resposta é,

infelizmente, positiva. No caso específico do Brasil, a política nacional ainda abriga

moralidade e crenças religiosas que minam o avanço de questões que afetam o bem comum.

Se a religião pode ser um instrumento poderoso da política que visa a administração da

política, a política se tornou o instrumento para a satisfação dos ideais religiosos, subvertendo

a lógica da ação política. Neste sentido, se há quem espere a vinda do Messias, ainda estamos

esperando por Maquiavel.

REFERÊNCIAS

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