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RDS VIII (2016), 2, 479-503 A responsabilidade subsidiária dos administradores das sociedades comerciais pelo pagamento das multas e das coimas – um caso de responsabilidade civil DR. HUGO LUZ DOS SANTOS SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO Acórdão de 20 de Fevereiro de 2013, Processo 0808/12 Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Adminis- trativo Sumário: I – O pensamento legislativo subjacente à alínea c) do artigo 148.º do CPPT, introduzida pela Lei n.º 3-B/2010 de 18 de Abril, é o de incluir na execu- ção fiscal a responsabilidade civil do gestor pelo não pagamento das coimas em que a empresa foi condenada, pelo que se deve proceder a uma interpretação correctiva dessa alínea, de modo a que seja possível alcançar tal finalidade. II – No caso em apreço, considerando que o despacho de reversão é posterior à data de entrada em vigor da Lei n.º 3-B/2010, de 28/4, que aditou a al. c) do n.º 1 do art. 148.º do CPPT, o processo de execução fiscal é meio processual idóneo para cobrança das dívidas emergentes de responsabilidade civil do gestor pelo não pagamento das coimas em que a respectiva empresa foi condenada. 1. A Fazenda Pública, vem recorrer para este Supremo Tribunal da sen- tença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel de 15 de Maio de 2012, que julgou procedente a oposição deduzida por A..., melhor identificado nos autos, à execução fiscal contra si revertida e originariamente instaurada con- tra a sociedade B..., Ld.ª, por dividas relativas a coimas, no valor global de 3,144,44. Termina as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões: Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2016).indb 479 Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2016).indb 479 18/10/16 11:29 18/10/16 11:29

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A responsabilidade subsidiária dos administradores das sociedades comerciais pelo pagamento das multas e das coimas – um caso de responsabilidade civil

DR. HUGO LUZ DOS SANTOS

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVOAcórdão de 20 de Fevereiro de 2013, Processo 0808/12

Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Adminis-trativo

Sumário: I – O pensamento legislativo subjacente à alínea c) do artigo 148.º do CPPT, introduzida pela Lei n.º 3-B/2010 de 18 de Abril, é o de incluir na execu-ção fi scal a responsabilidade civil do gestor pelo não pagamento das coimas em que a empresa foi condenada, pelo que se deve proceder a uma interpretação correctiva dessa alínea, de modo a que seja possível alcançar tal fi nalidade. II – No caso em apreço, considerando que o despacho de reversão é posterior à data de entrada em vigor da Lei n.º 3-B/2010, de 28/4, que aditou a al. c) do n.º 1 do art. 148.º do CPPT, o processo de execução fi scal é meio processual idóneo para cobrança das dívidas emergentes de responsabilidade civil do gestor pelo não pagamento das coimas em que a respectiva empresa foi condenada.

1. A Fazenda Pública, vem recorrer para este Supremo Tribunal da sen-tença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafi el de 15 de Maio de 2012, que julgou procedente a oposição deduzida por A..., melhor identifi cado nos autos, à execução fi scal contra si revertida e originariamente instaurada con-tra a sociedade B..., Ld.ª, por dividas relativas a coimas, no valor global de € 3,144,44.

Termina as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

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«A. Atendendo às últimas interpretações sobre o art. 8.° do RGIT dadas pelo Tribunal Constitucional, não pode o Tribunal a quo deixar de considerar constitucional a reversão de dividas efectuada nos termos deste normativo.

B. Tendo a M.ma Juiz a quo fundamentado a sua decisão na alegada impos-sibilidade da cobrança das dívidas emergentes de responsabilidade civil através do processo de execução fi scal (art. 148.° CPPT),

C. fundamento/causa de pedir divergente e omissa ao plasmado na petição de Oposição apresentada, onde apenas se alega a inconstitucionalidade do art. 8.º do RGIT,

D. conheceu de questões que não podia tomar conhecimento, violando o disposto na al. d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC ex vi al. e) do art. 2.º do CPPT, resultando na nulidade da sentença proferida.

E. Mesmo que assim doutamente não se entenda, a Fazenda Pública, salvo o devido respeito, discorda do julgamento efectuado na sentença recorrida no âmbito da aplicação do direito, porquanto não faz a devida interpretação à apli-cação no tempo da nova alínea c) do n.º 1 do art. 148 do CPPT.

F. A Fazenda Pública considera, que o acto determinante/data para se aferir da legalidade da exigibilidade das dividas em análise, emergentes de responsabi-lidade civil extracontratual efectivada através de processo de execução fi scal, é a data do despacho de reversão,

G. e não a data da instauração dos processos executivos ao devedor originário.

H. Desta forma, à data do despacho de reversão em análise, 29/09/2011, a nova redacção do n.º 1 do art. 149.° do CPPT, nomeadamente a nova alínea c) já se encontrava em vigor no nosso ordenamento jurídico.

I. pelo que incorreu o Tribunal a quo em erro na boa aplicação do direito (aplicação no tempo) por considerar não aplicável à reversão em análise a nova redacção do art. 148.°, n.°1 do CPPT, mormente da nova alínea c), após a entrada em vigor da Lei 3-B/2010 de 28 de Abril, e consequentemente incor-reu em erro de julgamento.»

2. O recorrido não apresentou contra-alegações.

3. O Exm.º Procurador Geral Adjunto emitiu o douto parecer, com a seguinte fundamentação:

«Recorrente: Fazenda PúblicaObjecto do recurso: sentença declaratória da procedência da oposição dedu-

zida no processo de execução fi scal n.º 1759-2009/01012177 (SF Amarante)

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FUNDAMENTAÇÃO1. A sentença pronunciou-se no sentido da impossibilidade legal da utili-

zação do processo de execução fi scal para a cobrança coerciva de divida emer-gente de responsabilidade civil do oponente pela coima aplicada à sociedade da qual era sócio gerente.

Embora fora do âmbito da única questão de constitucionalidade suscitada na petição de oposição, a questão do erro na forma de processo é de conhe-cimento ofi cioso em processo judicial tributário (art.97.° n.°3 LGT; art.98.° n.°4 CPPT; na doutrina Jorge Lopes de Sousa Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado 5.ª edição Volume 1 p. 690).

Neste contexto a sentença não enferma de nulidade por excesso de pro-núncia (art.125.° n.° 1 CPPT)

2. A única questão decidenda equacionada na petição de oposição à exe-cução foi decidida em acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 437/2011,3 outubro 2011 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) o qual, pondo termo a prolongada controvérsia jurídica, se pronunciou no sen-tido de não julgar inconstitucional o artigo 8.º n.°1, alíneas a) e b) do RGIT, quando interpretado no sentido de que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão da execução fi scal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora. A doutrina do acórdão:

a) alinha com anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional, expressa nos acórdãos n.ºs 129/2009,12 março 2009;150/2009, 25 março 2009 (sobre norma de idêntica redacção constante do art.7.°-A RJIFNA)

b) foi posteriormente reiterada nos acórdãos n.º 561/2011,22 novem-bro2011 (sobre norma de idêntica redacção constante do art. 7.°-A RJI-FNA); 249/2012,22 maio 2012

c) proclama como pressupostos fundamentais do juízo de não inconstitu-cionalidade formulado:

– a natureza civil da responsabilidade subsidiária dos gerentes ou admi-nistradores consagrada no artigo 8.°, n.°1 do RGIT, radicada no dano provocado à administração tributária por uma actuação culposa que impossibilitou o pagamento das coimas devidas

– a adequação do mecanismo da reversão para a efectivação da responsa-bilidade civil subsidiária por aplicação da norma constante do art.23.° n.° 1 LGT

– o funcionamento do mecanismo legal da reversão da execução com observância de um processo equitativo e do direito de defesa através do exercício do contraditório, mediante:

– a atribuição à administração tributária do ónus de alegação e prova da actuação culposa dos administradores e gerentes

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– a precedência de audição do responsável subsidiário e a declaração fun-damentada dos pressupostos e extensão da reversão, a incluir na citação (art.23.° n.°4 LGT)

3. Sem prescindir

Após o aditamento ao art.148.° n.°1 CPPT introduzido pela Lei n.º 3-B/2010, 28 abril o processo de execução fi scal foi expressamente consagrado como meio processual adequado à cobrança coerciva da indemnização radicada em responsabilidade civil subsidiária pelas coimas aplicadas às sociedades.

A norma constante do art.148.° n.º 1 al. c) CPPT deve ser objecto de uma interpretação correctiva que evite a perversão do pensamento legislativo: utili-zação do processo de execução fi scal como meio adequado à cobrança coerciva da indemnização por responsabilidade civil dos gerentes e administradores pelas multas e coimas aplicadas às sociedades (acórdão STA-SCT 27.06.2012 pro-cesso n.º 623/12)

A norma citada é aplicável ao caso concreto porque:a) é de aplicação imediata, em consequência da sua natureza processual;b) a reversão que operou a modifi cação subjectiva da instância, em ter-

mos que determinaram o prosseguimento da execução contra o respon-sável subsidiário, foi proferida em 29.09.2011, na vigência da Lei n.º 3-B/2010, 28 abril que introduziu o aditamento ao art.148.° n.°1 CPPT (probatório n.°6).

O recurso merece provimento.A sentença impugnada deve ser revogada e substituída por acórdão decla-

ratório da improcedência da oposição».

4. Com dispensa de vistos, de acordo com o disposto no art. 707.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, cabe decidir.

5. Em sede factual apurou-se em primeira instância a seguinte matéria de facto:

1.º Contra a fi rma B..., Lda., foi instaurado o processo executivo com o n.° 1759200901012177, ao qual foram apensos os processos n.ºs 1759200901025627, 1759200901028456, 1759200901031406, 1759200901032518, 1759200901038052, 1759200901049941, 1759201001003755 e 1759201001009010, respeitantes a dívidas de Coimas Fiscais do valor total de 3.144,44 euros.

2.º Em virtude da inexistência de património da sociedade executada, o Órgão de execução fi scal procedeu à preparação do processo para a reversão contra os responsáveis subsidiários.

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3.º Na Conservatória do Registo Comercial de Amarante, o ora Oponente consta como sendo o único gerente da sociedade B..., Lda, no período a que respeitam as dívidas.

4.º Em cumprimento do despacho de 24 de Agosto de 2011, o ora Opo-nente foi notifi cado, para, querendo, exercer o direito de audição prévia com referência à reversão em causa.

5.º Na sequência dessa notifi cação nada disse.6.º Por despacho de 29.09.2011, do Chefe do Serviço de Finanças, foi

mandada reverter a execução contra o ora Oponente, na qualidade de res-ponsável subsidiário relativamente às dívidas de coimas fi scais identifi cadas na Informação do Serviço de Finanças (ponto 5) de Amarante.

7.º O Oponente foi citado da reversão em 06 de Outubro de 2011.8.º Em 10 de Outubro de 2011 foi cumprido o preceituado no art. 241.°

do CPC.9.º A presente Oposição foi enviada ao Serviço de Finanças de Amarante,

via CTT sob registo de 09 de Novembro de 2011.

6. Do mérito do recurso São duas as questões a apreciar no presente recurso: a) A eventual nulidade da sentença, nos termos na al. d) n.º1 do art. 668.º

do CPC ex vi, al. c) do art. 2.º do CPPC, por ter conhecido de questões que não podia tomar conhecimento;

b) No caso de improceder a arguida nulidade, cumpre apreciar, se a deci-são recorrida incorreu em erro de julgamento, por considerar que o processo de execução não é o meio processual adequado para que a administração fi scal proceda à cobrança de dividas, decorrentes da res-ponsabilidade civil revertidas contra o recorrido, não sendo de aplicar à reversão em análise a al. c) do n.º 1 do art. 148.º do CPPT aditada pela Lei n.º3-B/2010 de 18/4.

6.1. Da eventual nulidade da sentença recorrida por excesso de pronuncia. A sentença recorrida pronunciou-se no sentido da impossibilidade legal da

utilização do processo de execução fi scal para a cobrança coerciva de divida emergente de responsabilidade civil do oponente pela coima aplicada à socie-dade da qual era sócio gerente, por entender que os processos de execução fi scal foram instaurados em data anterior à data da entrada em vigor da Lei 3-B/2010 de 28 de Abril, que deu nova redacção ao art. 148.º, n.º 1, al. c) do Código de Procedimento e Processo Tributário.

Contra o assim decidido se insurge a entidade recorrente, Fazenda Pública defendendo que, tendo o tribunal a quo fundamentado a sua decisão na ale-

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gada impossibilidade da cobrança das dívidas emergentes de responsabilidade civil através do processo de execução fi scal (art. 148.° CPPT), fundamento esse não invocado na petição de oposição apresentada, onde apenas se alegava a inconstitucionalidade do art. 8.º do RGIT, conheceu de questões que não podia tomar conhecimento, violando o disposto na al. d) do n.º 1 do art. 668.º do CPC ex vi al. e) do art. 2.º do CPPT, daí resultando a nulidade da sentença proferida. A nosso ver improcede a arguida nulidade.

Nos termos do artigo 125.º n.º 1 do Código de Procedimento e de Pro-cesso Tributário constituem causas de nulidade da sentença a falta de assinatura do juiz, a não especifi cação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, a oposição dos fundamentos com a decisão, a falta de pronúncia sobre questões que o juiz deva apreciar ou a pronúncia sobre questões que não deva conhecer.

Dispõe, por sua vez, o art. 668.º n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Numa correcta abordagem da questão haverá também que invocar o art. 202.º do Código de Processo Civil que dispõe que das nulidades mencionadas nos artigos 193.º e l94.º, na segunda parte do n.º 2 do artigo 198.º e nos artigos 199.º e 200.º pode o tribunal conhecer ofi ciosamente, a não ser que devam considerar-se sanadas. Das restantes só pode conhecer sobre reclamação dos interessados, salvos os casos especiais em que a lei permite o conhecimento ofi cioso.

Ora a questão da inadequação da execução fi scal, por via de reversão, para cobrança de dívidas de coimas consubstancia erro na forma de processo deter-minante da anulação do processado que constitui excepção dilatória de conhe-cimento ofi cioso (artigos 199.º, 494.º, 495.º do CPC, ex vi do artigo 2.°/e) do CPPT.

Com efeito, sendo o processo expressão de normas de direito público que ditam as regras sob as quais deve correr a actividade das partes na defesa das suas pretensões e do tribunal na sua apreciação, a todos vinculando, nunca as partes ou o tribunal poderão dispor do processo: por essa razão, a nulidade do processo deve ter-se como sendo sempre de conhecimento ofi cioso enquanto não deva considerar-se sanada (art. 202 .º do Código de Processo Civil)( Na doutrina vide, neste sentido, Diogo Leite de Campos, Benjamim da Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada,4.ª edição, pág. 848. )

Não se pronunciou, pois, o tribunal “a quo” sobre questão que não devesse conhecer, não estando assim a sentença recorrida ferida de nulidade por excesso de pronúncia, o que desde já se decide.

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6.2. Vejamos agora a outra questão que é a de saber se, à data da reversão, o processo de execução fi scal era o meio processual adequado para a Adminis-tração Fiscal proceder à cobrança coerciva do montante das coimas decorrente da responsabilidade civil determinada nos temos do artigo 8.° do Regime Geral das Infracções Tributárias.

A sentença recorrida considerou que com a Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, a execução das coimas decorrentes da responsabilidade civil determinada nos termos do RGIT passou a estar prevista no art. 148.º, n.º 1, alínea c), do Código de Procedimento e Processo Tributário.

Porém, considerou que os processos de execução fi scal foram instaurados em data anterior à data da entrada em vigor da Lei 3-B/2010 de 28 de Abril, que deu nova redacção ao art. 148.º, n.º 1, al. c) do Código de Procedimento e Processo Tributário

E prosseguindo neste discurso argumentativo concluiu que a reversão não podia ter ocorrido.

Não acompanhamos este entendimento. Vejamos, pois.A responsabilidade subsidiária dos gerentes por coimas é defi nida pelo

artigo 8.º do RGIT nos seguintes termos: «1 – Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que

somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fi scalmente equipara-das são subsidiariamente responsáveis:

a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insufi ciente para o seu pagamento;

b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão defi nitiva que as aplicar for notifi cada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.».

A responsabilidade dos responsáveis subsidiários por coimas, assim consa-grada no art. 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, é uma responsa-bilidade confi gurada como sendo de natureza civil e não uma responsabilidade pela sanção aplicada à sociedade.

Trata-se de uma responsabilização pelo não pagamento da coima pela sociedade devedora ou pela prática de actos dos quais resultou a insufi ciência do património social para o respectivo pagamento.

Até à publicação do acórdão do plenário do Tribunal Constitucional n.º 437/2011 de 23.01.2011 a jurisprudência maioritária deste Supremo Tribu-nal Administrativo vinha-se pronunciando no sentido da inconstitucionalidade

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material do art. 8.° do RGIT, por não ser compaginável com os princípios constitucionais da intransmissibilidade das penas e da presunção de inocência enunciados, respectivamente, no n.º 3 do art. 30.º e no n.º 2 do art. 32.º da CRP (cfr. os acs. deste STA, de 16/12/09, 16/12/09, 24/3/10 e 14/4/10, nos processos n.ºs. 1147/09, 1074/09, 1216/09 e 64/10).

Em sentido oposto, porém, a jurisprudência maioritária do Tribunal Cons-titucional entendia que a responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes assentava, não no próprio facto típico que é caracterizado como infracção contra-ordenacional, mas num facto autónomo, inteiramente diverso desse, que se traduzia num comportamento pessoal determinante da produção de um dano para a Administração Fiscal. E era esse facto, de carácter ilícito, imputável ao agente a título de culpa, que fundamentava o dever de indem-nizar, e que, como tal, originava a responsabilidade civil – cf. Acórdão do Tribunal Constitucional 129/09, Proc. 649/08, in http://www.tribunalcons-titucional.pt.

Posteriormente, e na sequência de dois acórdãos que julgaram inconstitu-cional ( Por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, na parte em que se refere à responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes pelos montantes correspondentes às coimas aplica-das a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação fi scal.) a norma do art. 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (Ac. n.º 24/2011 e o Ac. 26/2011, processos n.º 551/10 e n.º 207/10, respectivamente) o plenário do Tribunal Constitucional veio a dirimir aquela divergência jurisprudencial, com a prolação do Acórdão 437/2011.

No referido aresto o plenário do Tribunal Constitucional entendeu “não julgar inconstitucional o art. 8.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RGIT, quando interpretado no sentido de que consagra uma responsabilidade pelas coimas que se efectiva pelo mecanismo da reversão da execução fi scal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora”.

Mas a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo vinha enten-dendo também, a titulo subsidiário, em face da posição do Tribunal Consti-tucional no sentido da não inconstitucionalidade do art. 8.º do Regime Geral das Infracções Tributárias por violação do princípio da intransmissibilidade das sanções, que, a tratar-se de uma imposição de responsabilidade civil extracon-tratual e não da coima do responsável subsidiário, então existiria um obstá-culo processual à reversão, que era o de não ser esta admitida relativamente a dívidas de responsabilidade extracontratual , à face da interpretação conju-gada dos arts. 153.º, n.º 1 e 148.º do Código de Procedimento e Processo Tributário – cf. neste sentido os Acórdãos de 28.05.2008, recurso 31/08, de 14.04.2010, recurso 64/10, de 08.09.2010, recurso 186/10, de 16.12.2009, recurso 1147/09, de 08.09.2010, recurso 186/10, e de 10.11.2010, recurso

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767/10.E efectivamente é indiscutível que, até à entrada em vigor da Lei n.º 3-B/2010 de 28 de Abril, o art. 148.º do Código de Procedimento e Processo Tributário não previa a possibilidade de serem cobradas as dívidas decorrentes da responsabilidade civil determinada nos temos do artigo 8.° do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Sendo, aliás, tal lacuna evidenciada pela jurisprudência deste Supremo Tri-bunal Administrativo – vide, por exemplo os acima citados acórdãos 31/08 e 64/10.

Assim, e com clara intenção de obviar àquela falta de previsão legal, o legislador introduziu na Lei do Orçamento de Estado para 2010, uma alteração ao referido normativo, aditando-lhe uma al. c) com o seguinte teor: «Coimas e outras sanções pecuniárias decorrentes da responsabilidade civil determinada nos termos do Regime Geral das Infracções Tributárias».

Sobre o aditamento da al. c) do n.º1 do art. 148.º do Código de Proce-dimento e Processo Tributário diz Jorge Lopes de Sousa, no seu Código de Procedimento e Processo Tributário anotado vol. III, pág. 41, que o mesmo não veio alterar a situação de inexistência de norma que preveja a cobrança de dívidas de responsabilidade civil através de processo de execução fi scal

Sublinha aquele autor que nem se percebe o que se quer dizer com «coimas e outras sanções pecuniárias decorrentes da responsabilidade civil determinada nos termos do Regime Geral das Infracções Tributárias», pois no RGIT não se prevê qualquer situação em que de responsabilidade civil decorram coimas ou sanções pecu-niárias nem é imaginável que de responsabilidade civil possa emergir não um dever de indemnização, mas coimas e sanções acessórias. O que se prevê no art. 8., n. 1, do RGIT é o contrário do que se prevê nesta alínea c), isto é, res-ponsabilidade civil decorrente de coimas e sanções pecuniárias e não coimas e sanções pecuniárias decorrentes de responsabilidade civil que é o que se refere naquela alínea c).»

Ora foi com base na análise desta defi ciente redacção da alínea c) do art. 148.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que nos acórdãos deste Supremo Tribunal Administrativo de 23/2/2012, rec. n.º 01147/09 e de 19/4/2012, rec. n.º 01216/09, se considerou que o aditamento daquela alí-nea ao artigo 148.º não veio alterar o entendimento vertido na jurisprudência anterior, no sentido de que é de afastar a cobrança de dívidas de natureza civil, através de reversão efectuada em processo de execução fi scal, por não estar legalmente prevista a cobrança de dívidas de responsabilidade civil extracontra-tual emergente de coimas através dessa forma processual.

Não acompanhamos, porém, tal interpretação do preceito, antes entende-mos, em sintonia com o decidido nos Acórdãos deste Supremo Tribunal Admi-nistrativo de 21.11.2012, recurso 1176/11, de 11.07.2012, recurso 824/11 e de

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26.09.2012, recurso 312/12, que o pensamento legislativo subjacente à alínea c) do artigo 148.º do CPPT, introduzida pela Lei n.º 3-B/2010 de 18 de Abril, é o de incluir na execução fi scal a responsabilidade civil do gestor pelo não pagamento das coimas em que a empresa foi condenada, pelo que se deve pro-ceder a uma interpretação correctiva dessa alínea, de modo a que seja possível alcançar tal fi nalidade.

Na verdade, como se sublinha naqueles arestos, a inserção daquele adita-mento normativo (a al. c) do n.º 1 do art. 148.º do CPPT) na Lei do Orça-mento de Estado para 2010 parece evidenciar o nítido o propósito de o legis-lador colmatar a lacuna do CPPT quanto à inexistência de meio processual adequado à cobrança coerciva de dívidas resultantes de responsabilidade civil determinada nos termos do Regime Geral das Infracções Tributárias.

Sendo que a incorrecta, e algo confusa, formulação da norma (confundindo responsabilidade civil decorrente de coima e outras sanções acessórias com coi-mas e outras sanções acessórias decorrentes de responsabilidade civil) não será sufi ciente para sustentar um entendimento que não releve tal intenção do legis-lador e esvazie de efeito útil tal preceito.

E isto por diversas razões.Primeiro porque não se concebe que o legislador aditasse a referida alínea

c) para incluir no âmbito do processo de execução fi scal a cobrança dívidas de coimas e sanções pecuniárias e não de dívidas decorrentes de responsabilidade civil, quando, afi nal tal solução já resultava expressamente da anterior redacção da norma (al.b)).

Depois porque era patente que a redacção original do art. 148.º do Código de Procedimento e Processo Tributário não previa a possibilidade de serem cobradas as dívidas decorrentes da responsabilidade civil determinada nos temos do artigo 8.° do Regime Geral das Infracções Tributárias, lacuna essa eviden-ciada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo que se pro-nunciara, uniformemente, pela inadmissibilidade do uso do processo de exe-cução fi scal para cobrança, ao gestor, das coimas aplicadas à empresa, sendo perfeitamente plausível admitir que o legislador terá procurado obstar à tese da ilegalidade da cobrança da dívida através do processo de execução fi scal, resol-vendo assim uma questão de direito cuja solução era controversa no domínio do Código de Procedimento e Processo Tributário.

Finalmente porque uma interpretação gramatical da norma, com atenção ao signifi cado técnico-jurídico das expressões verbais utilizadas, leva à conclu-são, inelutável de que o legislador terá incorrido em lapso na respectiva redac-ção, dado que as coimas e as sanções têm por fonte a responsabilidade penal e não a responsabilidade civil.

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Lapso esse a que não será certamente alheio o facto do montante indemni-zatório corresponder ao valor da multa ou coima não paga.

Ora, quando, como no caso subjudice, a fórmula normativa é tão mal ins-pirada que não alude, com clareza mínima, às hipóteses que pretende abranger, e, tomada à letra abrange outras que decididamente não estão no espírito da lei, o intérprete deverá recorrer a uma interpretação correctiva, pois só por essa via será possível será possível alcançar o fi m visado pelo legislador (Neste sentido João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pag. 186.).

Daí que, tal como se entendeu no Acórdão deste Supremo Tribunal Admi-nistrativo 623/12, de 27.06.2012, se entenda também aqui, que a norma, na parte em que se refere a «coimas e «sanções pecuniárias», tenha que ser lida como pretendendo referir-se à dívida, calculada por referência ao montante da coima ou multa, que decorre da responsabilidade civil que recai sobre o gestor ou administrador pelo facto de culposamente a não ter pago.

Haverá assim de concluir-se que, após o aditamento (pela Lei n.º 3-B/2010, de 28/4) da al. c) do n.º 1 do art. 148.º do CPPT, o processo de execução fi scal é meio processual idóneo para cobrança das dívidas emergentes de responsa-bilidade civil do gestor pelo não pagamento das coimas em que a respectiva empresa foi condenada.

6.3. Sucede que no caso subjudice a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafi el considerou que os processos de execução fi scal foram ins-taurados em data anterior à data da entrada em vigor da Lei 3-B/2010 de 28 de Abril, que deu nova redacção ao art. 148.º, n.º1, al. c) do Código de Procedi-mento e Processo Tributário

E prosseguindo neste discurso argumentativo concluiu que a reversão não podia ter ocorrido.

Mas também aqui não andou bem a decisão recorrida. Com efeito a responsabilidade subsidiária efectiva-se por reversão do pro-

cesso de execução fi scal (art. 23.° n.º 1 LGT). A reversão opera a modifi cação subjectiva da instância executiva, a qual

prossegue contra o revertido, em consequência de fundada insufi ciência de bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários (art. 23.° n.º 2 LGT).

Importa ainda sublinhar, citando o já referido Acórdão 824/12, que neste caso, «o problema da relevância da superveniência de normas jurídicas, tem que ser analisado no plano substantivo e não num plano estritamente processual. A acção de oposição à execução fi scal, em que a causa de pedir é constituída por ilegalidades imputadas ao acto de reversão, é uma acção de natureza impugnató-

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ria, cuja questão central, como se sabe, é a validade daquele acto. Ora, tratan-do-se de um processo de impugnação de acto administrativo, pois a reversão tem essa natureza, aquela questão só pode ser apreciada e resolvida por refe-rência às normas vigentes no momento em que a reversão foi praticada. O que releva aqui é o princípio tempus regit actum, um princípio de direito substantivo, segundo o qual a validade dos actos jurídicos deve aferir-se por referência aos factos existentes e às normas vigentes no momento da respectiva produção».

Ora, como fl ui do probatório, o despacho de reversão foi exarado em 29 de Setembro de 2011, tendo o oponente/recorrido sido citado em 6 de Outubro de 2011, sendo certo que a Lei 3-B/2010 entrou em vigor em 29 de Abril de 2010, pelo que a norma do art. 148.º, n.º1, al. c) do Código de Procedimento e Processo Tributário, na nova redacção que lhe foi dada pelo referido diploma legal é aplicável ao caso concreto.

Do exposto se conclui que à data da reversão o processo de execução fi s-cal era o meio processual adequado para a Administração Fiscal proceder à cobrança coerciva do montante das coimas decorrente da responsabilidade civil determinada nos termos do artigo 8.° do Regime Geral das Infracções Tributá-rias, pelo que procederá, nesta parte a argumentação da recorrente.

Assim sendo a sentença recorrida incorreu em errada interpretação e apli-cação do disposto nos arts. 148.º, n.º 1, al. c) do Código de Procedimento e Processo Tributário e 12.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária pelo que deverá ser revogada, procedendo o recurso da Fazenda Pública.

7. DecisãoTermos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da secção de Conten-

cioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provi-mento ao presente recurso, revogando a sentença recorrida, e julgando impro-cedente a oposição.

Sem custas.Lisboa, 20 de Fevereiro de 2013. – Pedro Delgado (Relator) – Ascensão Lopes

– Valente Torrão.

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ANOTAÇÃO

Sumário: I) Factos. II) Súmula da Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional em matéria de responsabilidade subsidiária dos gerentes e administradores das sociedades comerciais pelo pagamento das multas e das coimas aplicadas à pessoa colectiva: um caso de responsabilidade civil por acto próprio. III) Esquema expositivo. IV) A natureza civil da responsabilidade subsidiária dos gerentes ou admi-nistradores das sociedades comerciais consagrada no artigo 8.º, n.° 1, alínea a), do RGIT. V) O dano colectivo e reputacional infl igido ao Estado-Colectividade em virtude da diminuição da percepção da receita fi scal.

I – Factos

Em apertada síntese, os factos subjacentes ao Acórdão do Supremo Tribu-nal Administrativo foram os seguintes: contra a fi rma B..., Lda., foi instaurado o processo executivo com o n.° 1759200901012177, ao qual foram apensos os processos n.ºs 1759200901025627, 1759200901028456, 1759200901031406, 1759200901032518, 1759200901038052, 1759200901049941, 1759201001003755 e 1759201001009010, respeitantes a dívidas de Coimas Fiscais do valor total de 3.144,44 euros.

Em virtude da inexistência de património da sociedade executada, o Órgão de execução fi scal procedeu à preparação do processo para a reversão contra os responsáveis subsidiários.

Na Conservatória do Registo Comercial de Amarante, o ora Oponente consta como sendo o único gerente da sociedade B..., Lda, no período a que respeitam as dívidas.

Em cumprimento do despacho de 24 de Agosto de 2011, o ora Opo-nente foi notifi cado, para, querendo, exercer o direito de audição prévia com referência à reversão em causa. Na sequência dessa notifi cação nada disse. Por despacho de 29.09.2011, do Chefe do Serviço de Finanças, foi mandada rever-ter a execução contra o ora Oponente, na qualidade de responsável subsidiário relativamente às dívidas de coimas fi scais identifi cadas na Informação do Serviço de Finanças (ponto 5) de Amarante. O Oponente foi citado da reversão em 06 de Outubro de 2011. Em 10 de Outubro de 2011 foi cumprido o preceituado no artigo 241.° do CPC. A presente Oposição foi enviada ao Serviço de Finanças de Amarante, via CTT sob registo de 09 de Novembro de 2011.

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II – Súmula da Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional em matéria de responsabilidade subsidiá-ria dos gerentes e administradores das sociedades comerciais pelo pagamento das multas e das coimas aplicadas à pessoa colectiva: um caso de responsabilidade civil por acto próprio

A jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo (STA), que o acórdão do STA, de 20/02/20131 perfi lhou, na esteira da jurisprudên-cia consolidada do Tribunal Constitucional, tem-se inclinado para a constitu-cionalidade do regime jurídico de responsabilidade subsidiária pelo pagamento das multas ou coimas aplicadas à pessoa colectiva, constante do artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT; sendo essa uma responsabilidade de cariz civil, por acto próprio, gerador da insufi ciência do património social para responder pelo pagamento das multas e das coimas que lhe foram aplicadas2.

Com efeito, o acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 437/2011, prolatado no processo n.º 206/10, julgou não ser «inconstitucional a norma do artigo 8.º n.º 1 do RGIT, quando interpretado no sentido de que consagra uma respon-sabilidade pelas coimas, que se efectiva pelo mecanismo da reversão da execução fi scal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora». E na sequência dessa juris-prudência mais qualifi cada em termos de controlo da constitucionalidade das normas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sofreu uma ine-

1 Por questões de economia de espaço, faremos apenas uma referência, necessariamente sinco-pada, ao acórdão sob anotação limitando-nos a enunciar as questões relevantes do acórdão com especial atenção para a subsidiariedade passiva do património dos administradores pelas multas ou coimas aplicadas à sociedade comercial; o texto integral do mesmo pode ser facilmente acedido em www.dgsi.pt. 2 Seguiremos de muito perto, o que escrevemos em Hugo Luz dos Santos, “Os fi duciary duties dos administradores das sociedades comerciais e o regime jurídico da solidariedade passiva constante do (revogado) artigo 8.º, n.º 7, do RGIT e do (repristinado) artigo 7.º-A, n.º 2, do RJFNA: coo-peração dialética entre o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal de Justiça?”, in: Revista Fiscal (RF), Maio/Junho de 2014, Vida Económica, Porto (2014), passim; Hugo Luz dos Santos, “Os deveres fi duciários dos administradores das sociedades comerciais à luz do recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 11/2014: mais um capítulo da (falta) de cooperação dialéctica entre o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal de Jus-tiça?”, in: Revista de Direito das Sociedades (RDS), Ano VII (2015), I, Almedina, Coimbra (2015), pp. 109-157; Hugo Luz dos Santos, “O dever de lealdade dos administradores das sociedades comerciais na Região Administrativa Especial de Macau e em Portugal (algumas notas mais ou menos desenvolvidos)”, in: Direito das Sociedades em Revista (DSR), ano 7, Vol. 14 (2015), pp. 133-160; Hugo Luz dos Santos, “Sobre a responsabilidade subsidiária (artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT) dos gerentes das sociedades comerciais – Comentário ao Acórdão do Supremo Admi-nistrativo, de 29/10/2014”, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal (RFPDF), Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2016), em curso de publicação.

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vitável alteração, passando igualmente a acolher essa posição, porque adoptada em formação plenária, conforme se pode ver pela leitura dos acórdãos proferi-dos em 19/4/2012, no proc. n.º 1216/09, em 21/11/2012, no proc. n.º 1176//11, em 9/1/2013, no proc. n.º 1187/12, em 16/1/2013, no proc. n.º 312/12, em 30/1/2013, no proc. n.º 1036/12, em 26/06/2013, no proc. n.º 554/13.

Perfi lhando este entendimento, o presente acórdão STA, de 20/02/2013, como, por exemplo, mais recentemente, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29/10/2014, relatado pelo Exmo. Senhor Conselheiro Casimiro Gonçalves, entendeu que o juízo de não considerar inconstitucio-nal o artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT se assume hoje como a orientação jurisprudencial mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Adminis-trativo (perfi lhada, igualmente, no Acórdão do Supremo Tribunal Administra-tivo, de 09/04/2014, relatado pela Exma. Senhora Conselheira Dulce Neto); devendo, assim, decidir-se pela não inconstitucionalidade da norma.

O presente (e modesto) artigo pretende, de forma despretensiosa, confe-rir outro enfoque analítico ao regime jurídico da subsidiariedade passiva contida artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT e, pugnando por captar a ratio legis dessa disposição legal, concluir pela solvabilidade constitucional da mesma, do ponto de vista do seu cruzamento refl exivo com o enlightened shareholder value e os fi duciary duties dos gerentes e dos administradores das sociedades comerciais, cunhados pela doutrina e jurisprudência nacional e norte-americana.

III – Esquema expositivo

Para a temática que nos interpela, são duas as questões nucleares para fun-damentar o juízo de constitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT: i) a natureza civil da responsabilidade subsidiária dos gerentes ou administradores das sociedades comerciais consagrada no artigo 8.º, n.° 1, alínea a), do RGIT3, que, por seu turno, serve de propugnáculo ao ii) dano (colectivo e reputacional) provocado à administração tributária por uma actuação culposa dos gerentes ou administradores das sociedades comerciais que impossibilitou o pagamento das coimas devidas.

3 Considerando, contudo, que “não poderemos afi rmar que a responsabilidade subsidiária prevista no art. 8.º confi gura uma responsabilidade civil de natureza extracontratual – não existe dano, não existe lesado. O resultado do não cumprimento de uma sanção de cariz sancionatário não gera a obrigação de indemnizar, por não ter natureza jurídico-civil”, Eva Vaz Freixo Garcia, “A análise da natureza da responsabilidade subsidiária prevista no artigo 8.º, n.º 1, do RGIT”, in: Revista de Direito das Sociedades (RDS), Ano V (2013), Número 4, Director: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra (2014), p. 834.

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A questão enunciada em i) será enquadrada, a traço grosso, nos deveres fi du-ciários dos administradores das sociedades comerciais [artigo 64.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CSC]; a questão aventada em ii) será analisada em sede do dano colec-tivo e reputacional infl igido ao Estado-Colectividade que, em virtude da diminuição da percepção da receita fi scal, faz perigar a sustentabilidade económico-fi nanceira do referido Estado-Colectividade e, por aí, a solidariedade intergeracional em vista da qual aquela foi erigida.

IV – A natureza civil da responsabilidade subsidiária dos gerentes ou admi-nistradores das sociedades comerciais consagrada no artigo 8.º, n.° 1, alínea a), do RGIT

O regime jurídico contido no artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT, no que se refere à subsidiariedade passiva pelo pagamento das multas ou coimas aplicadas à pessoa colectiva, estriba-se, justamente, no que se refere ao Código das Socie-dades Comerciais, no regime geral do artigo 64.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CSC, o que signifi ca que, sobre todos e cada um dos gerentes da sociedade comercial impende um especial dever de cuidado (duty of care) e um não menos especial dever de lealdade (duty of loyalty), com expressão prática na obrigatoriedade de todos e cada um dos gerentes serem o repositório fi el do padrão do gestor criterioso e ordenado que se obriga a si mesmo ao dever constante de monitorização da vida económica da sociedade comercial, que se obriga a si mesmo à estrita observância do dever de prestar que confere individualidade, tipicidade, e unidade à situação do administrador que é, singelamente, o dever de administrar4.

A obrigação de administrar, como conceito decomponível, comporta no seu seio a ideia-mestra de que o centro de gravidade da sociedade comercial situa-se nos administradores, é por eles controlada e funciona no seu exclusivo interesse5, e que o poder de administrar, sendo funcionalizado ao interesse social da sociedade comercial, está forçosamente ligado ao dever de cuidado [artigo 64.º, n.º 1, alínea a), do CSC] que o administrador terá de constantemente observar em ordem

4 Na doutrina norte-americana, Stephen M. Bainbridge, Caremark and Enterprise Risk Manage-ment, New York (2007), pp. 10-13.5 Neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, “Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais”, in Direito das Sociedades em Revista (DSR), Março de 2009, Ano I, n.º I, Coimbra, Almedina (2009), pp. 14 e ss, que vimos seguindo de muito perto, mesmo textualmente.

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a comandar a sociedade6, a geri-la, fazendo frutifi car os meios de que a sociedade comercial dispõe tendo como escopo primacial a criação de lucro para os sócios7.

Assim, quando o gerente da sociedade comercial, como no caso concreto analisado pelo Supremo Tribunal Administrativo8, contribui decisivamente para a insufi ciência do património da sociedade comercial para responder pelas dívidas tributá-rias, infringe o dever funcional do administrador diligente, criterioso, e ponderado que está directamente acoplado à sua função dirigente, não podendo o arco do Direito pactuar com a inconsideração alheia, pelo que se justifi ca, de pleno, o regime jurí-dico da subsidiariedade passiva constante do artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT.

Ora, se assim é, e cremos que sim, se sobre os gerentes das sociedades comerciais impendem os deveres funcionais acima descritos, seja no caso da actua-ção funcional na proximidade da insolvência, seja no caso de descapitalização, por que razão, sob pena de quebra do princípio da unidade da ordem jurídica (artigo 31.º, n.º 1, do CP)9, que confere uma certa uniformidade e coerência internas10, ou coerência local, ao ordenamento jurídico, não deve a infracção dolosa desses mesmos deveres funcionais, consubstanciado na insufi ciência do património social da pessoa colectiva para responder pelas dívidas tributárias, emergente de actos praticados pelo gerente, ser severamente sancionado com base no regime jurí-dico da subsidiariedade passiva pelo pagamento das multas ou coimas aplicadas à pessoa colectiva constante do artigo 8.º, n.º1, alínea a), do RGIT?

Na verdade, como bem afi rma o acórdão do Supremo Tribunal Adminis-trativo (sob anotação), não se trata, neste caso, de qualquer transmissão da responsa-bilidade penal da pessoa colectiva (artigo 30.º, n.º 3, da CRP), mas apenas de um

6 Neste sentido, Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores e o Governo Societário”, in Revista de Direito das Sociedades (RDS), Ano I, n.º I, Director: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra (2009), pp. 123 e ss.7 Neste sentido, António Carneiro da Frada, “A Business Judgment Rule no quadro dos deve-res gerais dos Administradores”, in Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais, Homenagem aos Profs. Doutores Ferrer Correia, Orlando de Carvalho, e Vasco Lobo Xavier, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra (2007), pp. 212-213.8 Ainda que o Acórdão não forneça, com segurança, elementos clarifi cadores desta asserção, temos por certo que, para existir reversão do processo executivo contra os gerentes da sociedade comer-cial, terão existido, alegadamente, actos ilícitos-típicos de natureza civil, reconduzíveis a uma gestão societária pouco criteriosa e ordenada, conducente, por sua vez, à insufi ciência do património social para responder pelo pagamento das multas e das coimas; donde a responsabilidade subsidiária do gerente da sociedade comercial, por esse pagamento.9 Sobre o princípio da unidade da ordem jurídica, Harold J. Berman, Law and Revolution. The forma-tion of western legal tradition, Cambridge/Massachusetts/London: Harvard University Press (2012), pp. 7/41.10 Neste sentido, princípio da unidade da ordem jurídica, Joseph Raz, “The relevance of coherence”, in Boston University Law Review, n.º 72 (2002), pp. 310 e ss.

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caso de responsabilidade civil por facto próprio11, porque a sua causa não é a prática do crime ou da contra-ordenação, mas a colocação culposa da sociedade numa situa-ção de impossibilidade de cumprimento de uma obrigação tributária12_13.

A Tatbestand do artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT, que fundamenta a responsabilidade subsidiária do administrador, nada tem a ver com o facto constitutivo da obrigação tributária não cumprida, mas com os deveres funcionais de administração, mais concretamente, com a inobservância culposa das disposições legais destinadas à protecção do credor (artigo 78.º, n.º 1, do CSC)14 e que foi causa da insufi ciência do património social para a satisfação daquele crédito tributário [artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT].

Deste modo, o ilícito – típico a que se refere o artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT, radica na violação de deveres funcionais dos administradores das sociedades, sendo essa uma norma de protecção15 do credor tributário, uma vez que a acção dolosa do administrador constituiu causa da insufi ciência patrimonial da sociedade comercial16.

A signifi car que, os administradores ou gerentes da sociedade comercial, à luz do desenho normativo constante do artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT, respondem perante os credores sociais, rectius, os credores tributários, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual17 – delitual – (artigo 483, 1.ª parte do CC,

11 Neste sentido, Maria João Antunes, “Direito Penal Fiscal – algumas questões da justiça cons-titucional”, in Direito Penal, Fundamentos Dogmáticos e Político – Criminais, Homenagem ao Professor Peter Hünerfeld, cit., p. 803.12 Neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Porto, Universidade Católica Editora (2009), p. 329.13 Neste sentido, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 129/2009, disponível em www.dgsi.pt. 14 Neste sentido, Maria de Fátima Ribeiro, “Da pertinência do recurso à “desconsideração da personalidade jurídica” para tutela dos credores sociais”, Acórdão do Tribunal da Relação de Lis-boa, de 29.04.2008, cit., p. 50.15 Sobre as normas de protecção dos credores sociais, Adelaide Menezes Leitão, Normas de Protecção e Danos Puramente Patrimoniais, Colecção Teses, Tese de Doutoramento, Coimbra, Almedina (2009), pp. 799 e seguintes.16 Neste sentido, Adelaide Menezes Leitão, “Responsabilidade dos administradores para com a sociedade e os credores sociais por violação de normas de protecção”, in Revista de Direito das Sociedades (RDS), Ano I, Número 3, Coimbra, Almedina (2009), p. 675.17 Neste sentido, advogando a responsabilidade extra – contratual, por violação de normas de pro-tecção dos credores sociais, dos membros dos órgãos de fi scalização que respondem solidariamente com os gerentes e administradores das sociedades comerciais, Gonçalo Meneses, “Responsabi-lidade Solidária dos Membros dos Órgãos de Fiscalização por Actos e Omissões dos Gestores das Sociedades Comerciais”, in Revista da Ordem dos Advogados (ROA), Ano 71, Outubro/Dezembro de 2011, Lisboa (2012), p. 1149.

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artigo 78.º, n.º 1, do CSC), uma vez que a pretensão indemnizatória dos cre-dores não tem, neste regime, fonte obrigacional18.

Assim, o gerente ou o administrador, ao conduzir-se ilicitamente (con-tra o direito), colocou em perigo19 a massa patrimonial dos credores sociais e, por isso, deve responder subsidiariamente com a pessoa colectiva pelo pagamento das multas aplicadas [artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT]: é essa solução norma-tiva, mutatis mutandis, que resulta do artigo 189.º, n.º 2, alínea e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na redacção conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril20; do artigo 81.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais21 e, ainda que a título de responsabilidade pessoal e ilimitada do sócio único da sociedade por quotas supervenientemente pessoal pelas obrigações sociais, do artigo 84.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais22 e do artigo 270.º-F, n.º 4, do Código das Sociedades Comerciais23.

O que bem se compreende.

18 Neste sentido, Fábio Loureiro, “Os contratos de administração e a protecção dos credores sociais”, in Direito das Sociedades em Revista (DSR), Outubro de 2012, Ano 4, Volume 8, Semestral, Coimbra, Almedina (2012), p. 132.19 Utilizamos aqui, algo indiferenciadamente, noção de “comunhão de perigos” cunhada dogmatica-mente pela doutrina de inspiração germânica, mais concretamente por Franz Bydlinsky, System und Prinzipien des Privatrechts, Springer, Wien (1996), 210, n.º 213.20 Advogando a interpretação extensiva do artigo 78.º, n.º 1, do CSC, utilizando o lugar paralelo cons-tante do artigo 189.º, n.º 2, alínea e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na redacção conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril “aos casos (todos) em que a diminuição do património do credor esteja causalmente ligada à diminuição do património da sociedade ou, ainda que não haja diminuição do património da sociedade, à diminuição da “capacidade” da sociedade para cumprir (pontualmente) as suas obrigações vencidas”; Nuno Manuel Pinto de Oliveira, “Uma proposta de coordenação entre os arts. 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais”, in Direito das Sociedades em Revista (DSR), Março de 2013, Ano 5, Volume 9, Semestral, Almedina, Coimbra (2013), pp. 81-82.21 Sobre o regime de solidariedade passiva dos membros dos órgãos de fi scalização com os gerentes e administradores das sociedades comerciais, o estudo de Gonçalo Meneses, “Responsabilidade Solidária dos Membros dos Órgãos de Fiscalização por Actos e Omissões dos Gestores das Socie-dades Comerciais”, cit., pp. 1096-1156.22 Neste sentido, com muito interesse, Pedro Pidwell, “A tutela dos credores da sociedade por quotas unipessoal e a responsabilidade do sócio único”, in Direito das Sociedades em Revista (DSR), Ano 4, Volume 7, Semestral, Coimbra, Almedina, Março de 2012 (2012), pp. 201-238.23 Sobre a mui laboriosa e profi ciente análise do regime jurídico da responsabilidade pessoal e ili-mitada constante do artigo 270.º – F, n.º 4, do CSC, Maria de Fátima Ribeiro, “O âmbito de aplicação do artigo 270.º- F, n.º 4, do CSC e a responsabilidade “ilimitada” do sócio único”, in Direito das Sociedades em Revista (RDS), Ano 1, Volume 2, Semestral, Coimbra, Almedina (2009), pp. 233 e ss.

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Na verdade, atenta a teoria do contacto social, havendo uma ligação especial24 entre a prossecução dos deveres fi duciários dos gerentes ou administradores da sociedade comercial e a integridade da massa patrimonial da pessoa colectiva, formam-se a partir desse aforismo os denominados círculos de diligência devida25, consubstanciados no universo de deveres de protecção (Schutzpfl ichten)26 e da ine-rente fi nalidade negativa de defesa, pelos administradores, da integridade pessoal e patrimonial da sociedade comercial, que se espelha naquilo que a doutrina portuguesa27, inglesa28_29 e norte-americana30 denomina de Enlightened Sharehol-der31 Value (interesse social iluminado).

Mas o que signifi ca o “interesse social iluminado”?Signifi ca realizar o fi m ou interesse social, atendendo aos interesses de longo prazo

dos sócios, mas sabendo que para atingir este objectivo é preciso que quem actua pela sociedade promova (estabeleça e proteja) um conjunto de relações estáveis e duradouras da empresa com os trabalhadores, credores, clientes e for-necedores – numa palavra: que invista em relações que aumentam o valor global da empresa32.

24 Neste sentido, na doutrina alemã, Günther Teubner, Alternativkommentar zum Bürgerlichen Gezetzbuch, II, Luchterhand, Neuwied, 980, § 242 (2008), n.º 58.25 Neste sentido, ainda que noutro âmbito temático, Miguel Brito Bastos, “Deveres Acessórios de informação. Em especial, os deveres de informação do credor perante o fi ador”, in Revista de Direito das Sociedades (RDS), Ano V, Números I-II, Director: António Menezes Cordeiro, Coim-bra, Almedina (2013), p. 275.26 Pedro Caetano Nunes, “Jurisprudência sobre o dever de lealdade dos administradores”, in II Congresso de Direito das Sociedades em Revista, Coimbra, Almedina (2013), p. 217.27 Catarina Serra, “Entre corporate governance e corporate responsability: deveres fi duciários e “inte-resse social iluminado”, I Congresso de Direito das Sociedades em Revista, Almedina, Coimbra (2011), pp. 211-258.28 Neste sentido, na sequência da entrada em vigor, em 01 de Outubro de 2007, da Companies Act 2006, Davy Ka Chee Wu, “Managerial Behaviour, Company Law and the Problem of Enlighte-ned Shareholder Value”, in Company Lawyer, 31 (2) (2010), pp. 56 e ss.29 Neste sentido, Andrew Keay, “Tackling the Issue of Corporate Objective: An Analysis of the United Kingdom s “Enlightened Shareholder Value Aproach”, in Sydney Law Review (SLR) (2007), 29, p. 597.30 Neste sentido, Cynthia A. Williams/John M. Conley, “An emerging third way? The ero-sion of the Anglo – American Shareholder Value Construct”, in Cornell International Law Journal (2005), 38, pp. 493 e ss.31 Sobre as derivative actions dos sócios, muito recentemente, na doutrina norte-americana, Ann M. Scarlett, “Shareholder Derivative Litigation’s Historical and Normative Foundations”, in Buff alo Law Review (BLR), Volume 61, Issue 4, August 2013 (2013), pp. 837-908.32 Neste sentido, Catarina Serra, “Entre corporate governance e corporate responsability: deveres fi du-ciários e “interesse social iluminado”, cit., p. 247.

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Estará nessa posição, como no caso vertente analisado – e bem – pelo Supremo Tribunal Administrativo, o gerente ou o administrador que, cau-sando a insufi ciência patrimonial da sociedade comercial, frusta a possibilidade de satisfação patrimonial das multas ou das coimas? E causando essa insufi ciência patrimonial não deverá o gerente ou o administrador responder subsidiariamente por essas multas ou coimas aplicadas à pessoa colectiva? Impõe-se uma resposta negativa à primeira questão, e uma resposta positiva à segunda questão.

Na verdade, os deveres fi duciários33 dos gerentes e administradores das socie-dades comerciais34 encontram-se, a montante, umbilicalmente ligados à role res-ponsability, ao agir social35, que se caracteriza pela atribuição, a quem ocupa um determinado lugar numa organização social a que estão ligados deveres especiais de prover ao bem-estar dos outros, da responsabilidade pelo cumprimento desses mesmos deveres36, sendo essa role responsability cunhada como responsabilidade como virtude ou responsabilidade – virtude37, como dever-ser (Sollen), traduzindo-se a sua vio-lação como um “facto condição”38 da consequência jurídica (a consequência de um acto ilícito), i. e., a subsidiariedade passiva do gerente ou administrador pelo pagamento das coimas aplicadas à sociedade comercial [artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT].

Pelo exposto, aplaudimos, sem rebuço, o douto acórdão do Supremo Tri-bunal Administrativo, quando considera que a subsidiariedade passiva do gerente ou administrador pelo pagamento das coimas aplicadas à sociedade comercial [artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT], tem natureza jurídico-civil (artigo 78.º, n.º 1, do CSC, artigo 483.º, n.º 1, do CSC), afastando, de permeio, a (eventual)

33 Na jurisprudência norte-americana, sobre os fi duciary duties, o Acórdão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América (Us Supreme Court), KMMG LLP v. Robert Cochi et alii, de 07 de Novembro de 2011, disponível em http://www.supremecourt.gov. 34 Sobre a densifi cação dogmática dos fi duciary duties, cruzado com a sua leitura à luz da jurispru-dência do Supremo Tribunal do Delaware, Mohsen Manesh, “What is the pratical importance of default rules under Delaware LLC and LP Law”, in Harvard Business Law Review (HBLR), Volume 2 (2012), pp. 121-129.35 Sobre o agir social, na doutrina alemã, Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft. Grundriss der vers-tehenden Soziologie, 5. Aufl age, Tübingen (2002), pp. 11 e ss.36 Neste sentido, sobre a densifi cação dogmática da “role responsibility”, H. L. Hart, “Varieties of Responsibility”, in The Law Quarterly Review, Volume 83 (1967), pp. 346-364.37 Neste sentido, na doutrina italiana, Guido Gorgoni, “La Responsabilitá come progetto. Primi Elementi per un Analisi dell´Idea Giuridica di Responsabilità Prospettica”, in Diritto e Società, Volume 2 (2009), pp. 243-292.38 Neste sentido, aludindo à categoria da imputação normativa como possibilidade de conexão entre um “ facto – condição” e uma “consequência jurídica”; na doutrina austríaca, Hans Kelsen, Hauptpro-bleme der Staatslehre entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatze, Tübingen (1911), pp. 7 e ss.

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natureza jurídico-penal da sanção (subsidiariedade passiva), e, por aí, a intransmis-sibilidade das penas (artigo 30.º, n.º 3, da CRP).

V – O dano colectivo e reputacional infl igido ao Estado-Colectividade em virtude da diminuição da percepção da receita fi scal

Conatural à temática da sustentabilidade económico-fi nanceira do Estado-Co-lectividade e da justiça intergeracional (artigo 66.º, n.º 2, alínea d), da CRP)39_40, cuja prossecução é garantida, justamente, através da percepção regular e com-pleta das receitas fi scais, é a questão, que se entrelaça e interpenetra com esta, do (possível) dano (colectivo41 e, por isso,) reputacional deste (Estado-Colectivi-dade), emergente da insufi ciência do património da pessoa colectiva para respon-der patrimonialmente pelo pagamento das multas ou coimas aplicadas à mesma; e se esse dano reputacional infl igido ao Estado-Colectividade justifi ca a mobiliza-ção (melhor se diria, extensão) do património do gerente ou administrador da sociedade comercial para responder subsidiariamente pelo adimplemento da multa ou coima aplicada à pessoa colectiva [artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT].

Numa palavra, a questão que se coloca é a de saber se a falta de percepção regu-lar e completa das receitas tributárias, sendo imputável à violação de deveres fi duciários do gerente ou administrador da sociedade comercial [artigo 64.º, alíneas a) e b), do CSC], e fazendo perigar a prossecução do escopo de redistribuição igualitária da riqueza, cujo fl uxo é essencial para a satisfação das necessidades colectivas do Estado-Colectividade (artigo 103.º, n.º 2, da CRP), funda, em si e por si, um dano reputacional do Estado-Colectividade, e, por isso, legitima a extensão do património do gerente ou do administrador da sociedade comercial com o fi to de responder subsidiariamente pelo pagamento das coimas aplicadas à pessoa colectiva [artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT].

39 Hugo Luz dos Santos, “Os créditos tributários e a criação de normas imperativas no con-texto do Direito da Insolvência: Das Prinzip Verantwortung ou a ética da (ir) responsabilidade?”, in Revista Julgar, n.º 23, Director: José Igreja de Matos, Coimbra Editora, Coimbra (2014), passim.40 Muito recentemente, o Tribunal Constitucional, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 862/2013, de 19 de Dezembro de 2013, relatado pelo Exmo. Senhor Conselheiro Lino Ribeiro, disponível em www.dgsi.pt, no que respeita a este núcleo temático, afi rmou que “o princípio da “justiça intergeracional” recebe acolhimento constitucional, falando a CRP em “solidariedade entre gera-ções” (artigo 66.º, n.º 2, alínea d))”.41 Sobre os danos colectivos (Gesamtschaden), Ana Perestrelo de Oliveira, “Responsabilidade Civil dos auditores perante terceiros: legitimidade processual do terceiro na pendência de processo de insolvência da sociedade auditada”, in: Revista de Direito das Sociedades (RDS), Ano VI (2014) – Número 2, Director: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra (2015), p. 402.

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Antolha-se-nos uma resposta positiva que se polariza, já se deixou ante-visto, no sentido da ligação umbilical entre a violação dos deveres fi duciários dos gerentes e administradores das sociedades comerciais [artigo 64.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CSC], a insufi ciência do património da sociedade comercial, por causa da violação desses deveres fi duciários, e a perturbação da prossecução das necessida-des colectivas do Estado-Colectividade (artigo 103.º, n.º 2, da CRP), é dizer da sustentabilidade económico-fi nanceira do mesmo; donde o dano reputacional do Estado-Colectividade, e, coerentemente, a legitimação material para a extensão do património do gerente ou do administrador da sociedade comercial com a fi nalidade de responder subsidiariamente pelo pagamento das multas ou coimas aplicadas à pessoa colectiva [artigo 8.º, n.º 1, alínea a), do RGIT]; sendo esta uma norma de protecção dos interesses patrimoniais do Estado-Colectividade (artigo 78.º, n.º 1, do CSC), erigida, ao nível da responsabilidade civil extracontratual, para tutelar interesses alheios – a justiça intergeracional [artigo 66.º, n.º 2, alínea d), da CRP, com referência ao artigo 483.º, n.º 1, 2.ª parte do Código Civil].

Mas o que signifi ca o dano reputacional do Estado-Colectividade?Signifi ca, em rectas contas, um dano à imagem social do Estado-Colectividade

que vê seriamente afectada a sua imagem social de profi ciente recolector de receitas tributárias, e, por conseguinte, de penhor seguro do interesse comunitário; uma vez que a fonte primacial de fi nanciamento do Estado-Colectividade reside, justamente, na percepção regular e completa das receitas tributárias, sendo, por isso, refl exa e instrumentalmente, afectada a redistribuição igualitária da riqueza que lhe subjaz (artigo 103.º, n.º 2, da CRP).

Talvez por essa razão, a mais autorizada doutrina nacional considere que estamos perante “danos à nação”42; e, quiçá pela mesma razão, abalizada dou-trina alemã se refi ra a um “dano patrimonial indirecto”43, e, entre nós, a um “dano indirecto ou refl exo” (artigo 78.º, n.º 1, do CSC)44.

42 Referindo, no que respeita ao dano reputacional do Estado, que “cremos, na verdade, que o Estado, enquanto forma de organização de uma nação, pode efectivamente sofrer danos de imagem (…) ao menos os danos à “nação””; Manuel Carneiro da Frada, “Danos societários e governação de sociedades (corporate governance)” in Cadernos de Direito Privado (CDP), n.º especial-II Seminário dos Cader-nos de direito privado- Responsabilidade Civil, Cejur, Braga, Dezembro de 2012 (2012), pp. 17-29.43 Neste sentido, Wolfgang Grunsky, Aktuell probleme zum begriff des vermogensschadens, Beck, München, 2. Aufl age (2008), p. 10.44 Neste sentido, Adelaide Menezes Leitão, “Responsabilidade dos Administradores para com a sociedade e os credores sociais por violação de normas de protecção”, in Revista de Direito das Sociedades (RDS), Ano I, Número I, Director: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra (2009), pp. 647-679.

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A referência ao dano patrimonial indirecto, é dizer, ao dano reputacional do Estado-Colectividade45 prende-se, essencialmente, como acima se deixou ante-cipado, com a reputação, com a credibilidade46, com a projecção social47do Estado--Colectividade; e esse dano reputacional do Estado-Colectividade, ainda que conte-nha em si considerações de natureza patrimonial (como vimos), tem muito mais que ver com o facto de que, com a sua produção, contrariar-se decisivamente os fi ns do titular do património48: a redistribuição igualitária da riqueza (artigo 103.º, n.º 2, da CRP), e, refl examente, a justiça intergeracional [artigo 66.º, n.º 2, alínea d), da CRP].

Por conseguinte, esse dano reputacional infl igido ao Estado-Colectividade, mais do que enfocado na técnica ressarcitória dos punitive damages49, deve ter como consequência jurídica, em face do perigo potencial de perturbação da prossecução do escopo de redistribuição igualitária da riqueza (artigo 103.º, n.º 2, da CRP), a exten-são do património do gerente ou do administrador da sociedade comercial com a fi nalidade de responder subsidiariamente pelo pagamento das multas ou coimas aplicadas à pessoa colectiva [artigo 8.º, n.º 1,alínea a), do RGIT].

Porquanto, esse regime jurídico da subsidiariedade passiva pelo pagamento das multas aplicadas à pessoa colectiva poderá arvorar-se em um meio de inti-midação, tendente a prevenir a prática do ilítico-típico50 (a violação dos deveres fi duciários dos gerente e administradores das sociedades comerciais), e, de algum modo, visando sancionar patrimonialmente o produtor do evento lesivo (o dano reputacional do Estado-Colectividade); sendo essa uma das razões pelas quais se

45 Neste sentido, na doutrina italiana, sobre o dano patrimonial indirecto, Renato Scognamiglio, “Il dano morale. Contributo alla teoria del danno extracontrattuale”, in Rivista de Diritto Civile, Cedam, Padova (1957), pp. 283-285.46 Neste sentido, Jónatas Machado, “A Glória, a Honra e o Poder – Observações sobre a liber-dade de imprensa em democracia”, in Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), Ano 143.º, n.º 3984, Janeiro-Fevereiro de 2014, Director: António Pinto Monteiro, Coimbra Editora, Coim-bra (2014), p. 179.47 Neste sentido, na doutrina norte-americana, Toni Massaro/Robin Stryker, “Political Dis-course, Civility, and Harm: Freedom of Speech, Liberal Democracy, and Emerging Evidence on Civility and Eff ective Democratic Engagement”, in Arizona Law Review, Volume 54 (2012), p. 374.48 Neste sentido, na doutrina alemã, Mertens, Köllner Kommentar zum Aktiengesetz, 2/1, 3.Aufl age (2010), § 93, nota 59.49 Preconizando que a responsabilidade civil avoca uma função punitiva, monografi camente, Hen-rique Antunes, Da inclusão do Lucro Ilícito e de Efeitos Punitivos entre as consequências da Responsabili-dade Extracontratual: a sua Legitimação pelo Dano, Dissertação de Doutoramento, Coimbra Editora, Coimbra (2011), pp. 234-342. 50 Neste sentido, monografi camente, José Carlos Brandão Proença, A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Colecção Teses, Dissertação de Doutora-mento, Almedina, Coimbra (1997), p. 162.

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Page 25: A responsabilidade subsidiária dos administradores das ... 2016-02...sável subsidiário, foi proferida em 29.09.2011, na vigência da Lei n.º 3-B/2010, 28 abril que introduziu o

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A responsabilidade subsidiária dos administradores das sociedades comerciais… 503

assiste à realização (voluntária)51 do seguro de responsabilidade civil dos administra-dores das sociedades comerciais, uma vez que este seguro visa a protecção dos admi-nistradores-segurados52, mais do que a dos terceiros lesados (dentre os quais o Estado-Colectividade) pelas actuações ilícitas e culposas daqueles53.

Assim, se os princípios são mandados de optimização (Optimierungsgebote)54 e se eles exigem que algo seja feito na máxima extensão possível de acordo com as possibilidades de facto e de direito existentes55; esse algo (a sustentabilidade econó-mica-fi nanceira do Estado-Colectividade) deve ter primazia na sensibilidade jurídica dos decisores56 – foi o que fez, e bem, o Supremo Tribunal Administrativo.

Funchal (Madeira, com um relance do olhar para as Desertas), 11 de Feve-reiro de 2016.

51 Neste sentido, monografi camente, Ana Perestrelo de Oliveira, A responsabilidade civil dos administradores nas sociedades em relação de grupo, Almedina, Coimbra (2007), p. 179.52 Neste sentido, na doutrina espanhola, M. Ibarren, “Los seguros de responsabilidad civil para administradores y altos directivos de sociedades de capital”, in Revista Espanõla de Seguros (RES), 136 (2008), pp. 805 e ss.53 Neste sentido, Maria Elisabete Ramos, “D&O Insurance e o projecto dos Princípios do Direito Europeu do Contrato de Seguro”, in Direito das Sociedades em Revista (DSR), Ano 4, Número 7, Almedina, Coimbra (2012), p. 187.54 Na doutrina alemã, Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Suhrkamp (1985), 6. Aufl age, Frankfurt, Suhrkamp (2011), p. 75.55 Robert Alexy, “Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade”, tradução por Paulo Pereira Gouveia, in: Revista O Direito, Ano 146.º (2014), IV, Almedina, Coimbra (2015), p. 819.56 Joaquim Freitas da Rocha, Direito Financeiro Local (Finanças Locais), 2.ª edição, Colecção Estu-dos, CEJUR, Coimbra Editora, Coimbra (2015), p. 31.

Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2016).indb 503Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2016).indb 503 18/10/16 11:2918/10/16 11:29