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a ruína da história sob o abismo do real - memória marginal e outros encontros-Luísa Schiavon Horta

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Luísa Schiavon Horta

a ruína da história sob o abismo do real

memória marginal e outros encontros

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), apresentado ao Colegiado de Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais.

Habilitação: Artes Gráficas

Orientador (a): Prof. (a) : Daisy Turrer

Belo Horizonte | Escola de Belas-Artes da UFMG | 2013

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Mesmo apressada, parei para conversar com Ricardo ali mesmo, de pé, no vão do pátio central da Escola de Belas Artes. Trazia em mãos o Casa de Lava, trabalho produzido após uma pesquisa sobre livros objetos na disciplina ateliê da professora Elisa Campos. Casa de Lava consistia em uma pilha com cem fotografias de casas sobrepostas, todas do mesmo tamanho e tiradas do mesmo ângulo - algo próximo dos inventários dos fotógrafos alemães Bernd e Hilla Becher. A primeira casa se apresentava com saturação total de cor e a medida que a pilha ia decrescendo, cada fotografia ia ganhando mais brilho, desaparecendo, até chegar à ultima, completamente branca. As fotografias que compunham o trabalho foram retiradas do Google Street View, compiladas em um acervo digital de casas demolidas que deram origem a grandes edifícios.

Através de Casa de Lava, eu e Ricardo conectamos o interesse em desvelar os resíduos deixados pelo processo ativo de construção da história do qual estávamos a presenciar em nossa cidade. Ainda que a abordagem sobre o tema da cidade tenha avançado amplamente após o primeiro projeto realizado juntos, foi esta a partida para iniciarmos a investigação de maneiras para edificar trajetos de memória. No entanto, o surgimento da memória como matéria no meu trabalho se dá anteriormente do encontro com o Ricardo; ela surge intrinsecamente à minha escolha da fotografia como principal suporte de produção e ao meu desejo de contar histórias.

Há muito cultivo uma nítida atração pelos aspectos fantásticos contidos de modo obscuro, marginal ou velado naquilo que entendemos como “real”, ou como “vida cotidiana”. Seja na abordagem de um detalhe desapercebido, na apropriação de uma imagem surpreendente ou na articulação de arquivos esquecidos, é minha intenção deflagrar desdobramentos de sentidos a partir de coisas naturais pertencentes a este mundo “real”.

Ao começar a fotografar, já pensando em delinear um corpo de trabalho ou uma série, capturava acontecimentos e pessoas ao meu redor, tentando delas extrair algo que não estivesse plenamente impresso na imagem. Fosse através do olhar do retratado que atravessava o quadro e alcança um extracampo, do objeto quase reconhecível, não identificado, ou do corpo confuso, intencionava gerar uma tensão na prova de registro de tais acontecimentos.

Aos poucos fui percebendo que imagens em jornais, folhetos, revistas, causavam este estranhamento por mim procurado, mas que no entanto não eram por mim geradas. A este aspecto abriu-se uma nova possibilidade de pensar a imagem, que fosse através de seu descolamento da origem, ou pela sua autonomia com relação à fonte. Comecei a reorganizar essas imagens, a procurar delas novos significados e novos lugares.

Ao passo das experiências advindas dos trabalhos realizados dentro e fora da faculdade, fui reconhecendo na imagem, em especial na fotografia, seu potencial como “lascas fortuitas do mundo”1, o que entendo como estilhaços condutores de histórias no curso dos tempos. Por sua capacidade espectral, a peça fotográfica consegue flutuar em lugares localizados entre “nuvens de fantasia e pílulas de informação”2, proporcionando deste modo grandes ferramentas nas construções de minhas histórias.

O último passo que firmo com a imagem, este tratado juntamente com o Ricardo, é de ordená-las em função de uma narrativa. Nesta ponta, o lugar mais instável de minha

2 Ibid. p. 98

1 SONTAG, Susan. Sobre Fotografia São Paulo: Companhia das Letras. 2010. p. 98

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trajetória, partimos para a invenção a partir das imagens. Não mais importam quem as gerou, mas que foram de alguma forma coletadas e, juntas, conformam uma coleção acerca uma memória construída.

No primeiro capítulo mergulho sobre trabalhos, referências e inspirações, levantando deles aquilo que enxergo em ressonância com minhas obras.

No segundo capítulo, discorro sobre como a experiência – minha trajetória até o ingresso à faculdade e os encontros que se fizeram neste meio – configuraram um corpo de trabalho polimorfo, mas que aponta desde o começo para os caminhos de uma narrativa estruturada pelo fragmento e pelo estranhamento das imagens.

No terceiro capítulo, trago autores que conversam com minha prática, por onde pude estabelecer e fundamentar minha percepção da história, da memória e da narrativa manifestada nos trabalhos.

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I.

Uma fotografia poderia ser um fator decisivo em uma revolução? É o que propõe, na forma de ficção, um filme norte-americano recente, inspirado na Revolução Nicaraguense, Sob Fogo Cruzado (1973), de Roger Spottiswoode. O principal dirigente da insurreição é morto em confronto direto com o exército (a exemplo de Carlos Fonseca, fundador da Frente Sandinista, em 1976). A ditadura triunfa e proclama que a rebelião foi subjulgada. Os camaradas, que conseguiram salvar o corpo do líder, pedem a um fotógrafo amigo que os ajude numa manobra: ele o fotografa sentado, lendo um jornal, o que dá a ilusão de que está vivo. A foto, publicada em toda a imprensa, inflama os insurgentes e o povo, que derrubam a tirania. O cenário é imaginário, mas nem por isso menos crível.3

Ao atestar a fotografia como motivo do levante de insurgentes, Michael Löwy apresenta a imagem através de sua dimensão dialética; a potencialidade discursiva se alinha com a capacidade mimética de representação do real, conferindo determinada legitimidade àquilo que a imagem circunscreve – mesmo que esta não seja uma reprodução fidedigna do contexto retratado. A fotografia mencionada leva o espectador a crer, como o próprio Löwy coloca, na ilusão do líder vivo. Se, para o espectador, é possível se tornar cúmplice desta ilusão, é pela capacidade da fotografia em se consolidar como uma imagem verdadeira.

Joan Fontcuberta situa historicamente a fotografia entre “a vontade de nos aproximarmos do real e as dificuldades para fazê-lo”4, por reconhecer na consolidação da fotografia como arte sua justificativa pela pintura - na qual sua função primordial seria de servir à memória, conservando o traço do passado, reproduzindo com exatidão a realidade.

Em 1859, época do surgimento da fotografia, o poeta francês Baudelaire comenta seu descontentamento com a fotografia, situando-a no conflito da conquista de legitimação já alcançado pela pintura:

Nesses dias deploráveis, produziu-se uma nova indústria que muito contribuirá para confirmar a idiotice da fé que nela se tem, e para arruinar o que poderia restar de divino no espírito francês. Essa multidão idólatra postulou um ideal digno de si, e apropriado a sua natureza, isso está claro. Em matéria de pintura e de escultura, o Credo atual do povo, sobretudo na França (e não creio que alguém ouse afirmar o contrário) é este: “Creio que a arte é e não pode ser outra coisa além da reprodução exata da natureza (um grupo tímido e dissidente reivindica que objetos de caráter repugnante sejam descartados, como um penico ou um esqueleto). Assim, o mecanismo que nos oferecer um resultado idêntico à natureza será a arte absoluta”. Um Deus vingador acolheu as súplicas dessa multidão. Daguerre foi seu Messias. E então ela diz a si mesma: “Visto que a fotografia nos dá todas as garantias desejáveis de exatidão (eles crêem nisso, os insensatos), a arte é fotografia”. A partir desse momento, a sociedade imunda se lança, como um único Narciso, à contemplação de sua imagem trivial sobre o metal. Uma loucura, um fanatismo extraordinário se apodera de todos esses adoradores do sol.5

3 LÖWY, Michel. Revoluções. São Paulo: Boitempo. 2011. p.194 FONTCUBERTA, Joan. O beijo de Judas: fotografia e verdade. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2010b. p.135 BAUDELAIRE, 1859 apud ENTLER. Retrato de uma face velada: Baudelaire e a fotografia. In: Revista da Faculdade de Comunicação da FAAP Nº 17, 2007, p. 4-14. 2007, p.11-12

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Há neste comentário uma nítida preocupação com o advento da fotografia no processo de mecanização do autor pela utilização de um aparelho para produção da obra, o que, segundo o poeta, tornaria distante a essência contida na pintura com relação ao seu criador, seja pela expressão única do gesto ou pela subjetividade impressa nas telas.

A discussão acerca da aceitação da fotografia como arte frente à pintura debateu-se acirradamente durante o século XIX, sobre o qual Walter Benjamin discorre se a “fotografia não haveria de ter modificado o próprio curso da arte”6 .Considerando o boom industrial do período, a fotografia enquanto tecnologia corresponde aos processo de mecanização da sociedade como um todo, sendo significativa no contexto de uma crise de representação deflagrada nas esferas da consolidação de um novo modo do sujeito frente ao real, à contemplação e porque não, à formação de novas subjetividades. Diante um cenário crítico de abordagem da realidade, a fotografia permite que a pintura se liberte do testemunho7, e incumbe para si a função de documentação inerente para a história e para a ciência.

A pós modernidade é marcada pela perda da historicidade e pelo fim da “grande narrativa”. A sociedade pós-industrial irá refutar a crença na razão como verdade absoluta, assim como nas correntes vanguardistas utópicas, que pretendiam mudar o mundo através da arte. No campo estético, o pós-modernismo é representado pelo fim da tradição através da mudança e da ruptura dos modelos antigos; passam a ser incorporados – na forma de apropriação e de citação - obras do passado. A arte perde sua função de revelar a realidade, de ter no referente um compromisso com sua existência histórica. O fim da modernidade irá culminar na problematização do real, culminando no questionamento da verdade.

Na década de 80, a ideia da fotografia como documento passa por profundas transformações, afetadas pelas novas formas de pensamento. Ela passa a ter valor por consequência analítica dos meios de sua produção e de suas possibilidades, assim como é com a pintura e a gravura, por exemplo, e não como representação de algo. Passa a ser, enfim, não uma arte técnica, mas estética, levando à crítica os elementos intrínsecos a sua capacidade e de seu processo produtivo. Ela passa a se apresentar, portanto, como “lascas fortuitas do mundo”8, como fragmentos fulgurantes sobre as coisas presentes na realidade. A fotografia emancipa seu compromisso de atestado de semelhança com o referente; a imagem é tomada como um lance de olhar sobre o referente, conferindo-lhe certa autonomia relacionada ao verossímil pela manifestação inerente à sua linguagem.

Uma vez lançada esta abordagem, inicia o processo de reconhecimento do autor/fotógrafo no objeto que ele produz. Desde o seu surgimento, a fotografia se apresenta como nota verídica de um acontecimento, prova de um lugar ou estado capturado e percorrido pelo fotógrafo. Ou seja, a fotografia torna implícita a implicação da presença

6 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 1717 ibid. p. 1748 SONTAG, Susan. Op. cit. p. 98

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de um sujeito naquilo que concerne a captura de uma imagem.

A história da arte passa então a levar em conta a dimensão do autor presente na revelação e na produção de sua obra, como podemos identificar em trabalhos contemporâneos de fotografia.

O mundo fantástico revelado no ensaio As aventuras de Guille e Bellinda, da fotógrafa Alessandra Sanguinetti, é um registro poético de duas garotas no interior da Argentina. Ao percorrer as imagens, que ocorreram dentro de um período de tempo de dez anos, vimos estabelecer um território estético fruto da penetração da artista no cotidiano da pequena vila. Através da câmera de Sanguinetti, são refletidas cenas que montam situações extremas de performatividade, seja ela expressa na intimidade plena da vida das meninas ou através do jogo lúdico na relação delas com indumentárias e objetos.

A cumplicidade travada entre fotógrafo e fotografado é expressa pela invisibilidade da atuação extraída nas imagens – temos a impressão de estarmos adentrando profundamente a realidade das duas garotas, como se não pudesse existir outra coisa senão aquilo capturado pelas lentes. O que imaginamos com a narratividade presente nas imagens, é suscitado sempre a partir dos elementos ali constituídos, uma vez que desconhecemos as origens e o dia a dia real de Guille e Belinda.

Marcadas fortemente por sensações de estranhamento e de melancolia, o ensaio configura um retrato parcial e delimitado, se levarmos em conta a dimensão de um registro diante uma perspectiva sociológica. Sanguinetti opta, ao recortar fragmentos de vivências e experiências, ampliar o mundo das duas garotas, lançando-as em um campo imaginário potente, intensificado pela aura de mistério que se debruça sobre as imagens. Ao ver as imagens, volta-se a questão da presença do autor imantada sobre o trabalho – o resultado se torna possível uma vez que, juntos, aquele que fotografa e quem é fotografado contribuem para a construção deste lugar situado frente à realidade, porém como ficção.

A abordagem performática do retrato é vista também no trabalho LITVA de Lise Sarfati. A artista utiliza a fotografia para dramatizar a complexidade da identidade de adolescentes russos. Sarfati conecta com os fotografados intencionando criar um ambiente incômodo, tanto no sentido físico assim como no psicológico; a complexidade é expressa pelos corpos e rostos dos meninos em sua passagem para a vida adulta, se apresentando em posições estáticas que denotam um estado emblemático perante as situações retratas. Ambientes comuns, familiares, são contrapostos por poses fortemente marcadas e expressões que sugerem um abismo psicológico que jamais será alcançado pelo espectador.

Fotografando em locações e com pessoas reais (e não atores), as imagens poderiam assemelhar-se até certo ponto a um atlas - como feito por August Sander no início do século – por ser uma espécie de “catalogação” das espécies pertencentes à juventude de um determinado contexto. No entanto, a artista utiliza este efeito do real para criar uma tensão entre o documento e a encenação. Tudo na fotografia é verossimilhante,

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mas não corresponde à realidade. O que Sarfati narra com suas imagens são histórias silenciosas, mentes que apontam para questões estendidas muito além dos cenários retratados – implicam na relação desses adolescentes com o mundo, enunciações enigmáticas manifestadas pelo emblema das expressões estampada em rostos de uma determinada geração.

Nos trabalhos de Lise Sarfati e de Alessandra Sanguinetti é possível identificar uma edificação simbólica das personalidades retratadas utilizando a matéria do real; a mimese serve para recriar situações de farsa considerando um sentido ativo e impulsionado pela direção deliberada pelo desejo do fotógrafo. Seria o que Benjamin enuncia como o “teatro do mundo”, no trabalho de Kafka:

O mundo de Kafka é um teatro do mundo. Para ele, o homem está desde o início no palco. (...) O talento de ator, que parece o critério mais óbvio, não tem nenhuma importância. Podemos exprimir esse fato de outra forma: não se exige dos candidatos senão que interpretem a sim mesmos. Está absolutamente excluído que eles sejam o que representam.9

A fotógrafa Sofia Borges se utiliza da mesma operação, porém deliberando de modo incisivo a presença da fotografia, observada pelo tratamento e pela impressão das imagens. A artista encena situações um tanto obscuras, tendo como referência o universo cinematográfico – como declarado pela própria, do diretor David Lynch - para compor com corpos tensos ambientes que carregam uma atmosfera densa e escura.

Fortemente narrativas, as cenas de Sofia não apontam uma história fechada; embora derivadas do cinema, suas imagens revelam um tempo entrópico, calcado na possibilidade inerte da fotografia. Através das possibilidades dadas pelo aparelho a artista problematiza os sistemas de representação, se apoiando na ideia do índice, uma vez que a imagem fotográfica seja determinada pela relação intrínseca de existência do referente. O uso deliberado de ferramentas de pós produção tornam as cenas carregadas de camadas de cores e luzes artificiais, elaborando deste modo um jogo entre o real – dado pela relação indicial entre objeto e a realidade – e ficcional – denotado pela utilização de efeitos estéticos próprios da linguagem fotográfica.

Algo nas fotografias de Sofia, assim como nas de Sanguinetti e de Sarfati, sempre nos escapará. Mesmo que estejam lançados no quadro objetos e referentes com a máxima precisão permitida pelo aparelho, há algo que nos lança para fora, ou para dentro daquelas mentes e corpos, e que não nos deixam acessá-las. Talvez esteja localizado neste “fora”, ou nesta parte que não alcançamos, o punctum10 referido por Barthes; é este punctum que nos afeta, que nos faz pertencer e nos apropriar àquela imagem. É através dele que somos capazes de sentir amor, compaixão ou repulsa por esses personagens retratados. O sentido nasce de uma projeção daquele que vê, pelas coisas que nos concernem e são lançadas sobre as lacunas que emanam destas imagens.

Se esta construção se torna possível frente ao cenário contemporâneo da arte, é

9 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 15010 O punctum, conceito desenvolvido pelo filólogo Roland Barthes, seria a própria subjetividade do leitor à obra, onde cada espectador poderá comportar sua leitura da obra dada. O punctum da imagem é aquilo que o leitor acrescenta à imagem, segundo o próprio autor, uma “fulguração”. O punctum pode ser entendido como o campo subjetivo da imagem, aquilo que está além da realidade concreta da foto e atinge a observação estética da imagem.11 SONTAG, Susan. Op. cit. p. 95

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pelo legado surrealista que pensadores como Benjamin e Sontag identificam na estratificação de uma artificialidade lançada sobre e através do real:

A contingência das fotos confirma que tudo é perecível; a arbitrariedade da evidência fotográfica indica que a realidade é fundamentalmente inclassificável. A realidade é resumida em uma série de fragmentos fortuitos – um modo infinitamente sedutor e dolorosamente redutor de lidar com o mundo. Exemplo dessa relação, em parte jubilosa, em parte desdenhosa, com a realidade, que constitui a bandeira de luta do surrealismo, a insistência do fotógrafo em que tudo é real implica também que o real não é suficiente.11

Desta forma, a fotografia surrealista:

prepara uma saudável alienação do homem com relação ao seu mundo ambiente. Ela liberta o homem a olhar politicamente educado o espaço em que toda intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores.12

O fotógrafo surrealista Eugène Atget, na leitura de Benjamin, irá buscar na realidade a aura de lugares através de uma composição calcada de elementos espaciais e temporais que se solidificam na imagem. Ao fotografar a cidade, passando longe dos lugares comuns, retrata seu esvaziamento, transformando ruas e edifícios em lugares insólitos. Como um “flâneur que não se sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, mas sim por seus recantos escuros e sórdidos, suas populações abandonadas”13, Atget – tal como Sanguinetti, Sarfati e Borges - lançam seu olhar pelo pelas zonas não explícitas, mas pelas camadas que a atravessam, sugando “a aura da realidade como uma bomba suga a água de um navio que afunda.”14

Sontag aponta como o surrealismo consolidou de modo mais exato suas propriedades na ficção, expressa especialmente pela sua manifestação na fotografia, pela interferência marcante no realismo. Este realismo, expresso nas fotografias contemporâneas, gritam um pormenor que é inscrito por algo que se localiza mais profundamente do que em sua superfície. Esta camada está expressa na forma interpretativa que Benjamin percebe o retrato do jovem Kafka; o olhar triste do menino ascende com profundidade o quadro, fazendo o cenário e paisagem artificial planarem em um segundo plano, que se contamina pela densidade profícua de sua expressão. O que essas fotografias pretendem é o retrato da aura, daquilo que atravessa os personagens e os suspendem deste mundo. Conferem-lhe por ora um tempo seguro no passado, do qual o instante os faz mais importante do que o resto de suas vidas.

A este olhar para o passado, que se mortifica através da fotografia, deve-se também ao caráter informativo que a sociedade pretende que a fotografia assuma. Porém as enunciações que avançam pelos elementos expostos na imagem, irão abarcar a narrativa em sua incompletude, pela sua incapacidade de se estratificar em um momento único do passado sem que seja tocado pelas faíscas do agora:

Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo que existe planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha

12 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 10213 SONTAG, Susan. Op. cit. p. 7014 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 10115 Ibid. p. 95

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do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás.15

Partindo da noção indicial da imagem, a artista Sophie Calle explora a capacidade incompleta da narrativa pela fotografia, lançando o espectador a aprofundar o olhar através daquilo que falta nos registros do passado. Se valendo de objetos e cenários reais, Calle insere suas fotografias em um diário de fabulação, criando um romance auto referencial, inscrevendo as imagens na sua própria biografia. Ao deliberar a fábula em seus trabalhos, a artista deixa lacunas a serem preenchidas pelo olhar curioso do espectador – ela dá as pistas, mas não delineia um limite entre a realidade e a ficção. Os textos, quase sempre trabalhado junto às fotografias, servem como interrogadores, complexificando ainda mais esta localização do traço real do passado e da reinvenção da autora pela sua própria obra.

Em L’hotel, a francesa Sophie Calle se vale do registro de pertences de hóspedes turistas para a construção de um diário ficcional. Para a realização deste trabalho, a artista se empregou durante três semanas como camareira de um hotel em Veneza. A cada quarto investigado, Calle se lançava no diário, misturando sua trajetória de encontro a esses objetos e seu registro com as percepções sobre quem seriam os donos dos pertences. A presença da artista está implicada na escolha do diário como dispositivo para leitura das fotografias. Assim fazendo, ela se coloca dentro da história, nos fazendo avançar sobre investigação da verdade não só sobre a disposição dos objetos, mas também sobre a experiência da própria Calle.

A construção dos personagens se dá partindo dos vestígios encontrados na realidade, porém performatizados no corpo dos objetos e no trajeto da artista. Engendrando um roteiro de busca, Calle integra pessoas desconhecidas em uma elucubração sobre suas identidades. Mas é através da preservação de seu anonimato, assim como da não presença física dos “atores” no quadro, que permite que se estabeleça uma percepção indireta e incompleta das identidades. A partir deste vazio ocasionado pela fala da autora com a não imagem dos personagens é que é feita a fábula.

Invocando deste modo o texto alinhavado às imagens, a compreensão do fato se posiciona abertamente, pulsante nas pistas propostas pelo gesto de Calle; ela não pretende apresentar um poder retórico sobre as imagens através do texto, mas demarcar nebulosamente uma descrição para delas extrair um espaço ilusório.

Pressupõe-se mediante ao trabalho que o espectador reconheça premeditadamente o percurso ficcional na criação do objeto artístico, para que se estabeleça o campo do imaginário que irá completar a narrativa.

O trânsito entre a realidade e ficção, a elaboração de novas paisagens de memória se dá em uma conduta que não encerra o significado daquilo que é proposto. A imagem, gerada pelas artistas até então citadas, correspondem a uma criação localizada entre o documento e a performance. À abertura narrativa que se localiza na fresta da realidade capturada pela câmera, Sontag comenta:

16 SONTAG, Susan. Op. cit. p. 34

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Contudo, a representação da realidade pela câmera deve sempre ocultar mais do que revela. Como assinala Brecht, uma foto da fábrica Krupp não revela quase nada a respeito dessa organização. Em contraste com a relação amorosa, que se baseia na aparência, a compreensão se baseia no funcionamento. E o funcionamento se dá no tempo e deve ser explicado no tempo. Só o que narra pode levar-nos a compreender.16

Desde modo entende-se que a compreensão do trabalho se dará a partir da história que o artista irá lançar mão para exposição dessas imagens.

Alguns artistas utilizam a dimensão arquivística da fotografia para a criação de um imaginário que irá questionar o significado memorial das imagens. Ultrapassando o devir discursivo dessas imagens, eles a inserem no campo da história – enquanto agentes do sistema de informação e realidade - tensionando pela narrativa a elas aplicada os limites de verdade e falsidade.

É o caso do fotógrafo Joan Fontcuberta, que trabalha criticamente a fotografia explorando dialeticamente a imagem enquanto traço informativo do passado e da história. Em entrevista dada ao Fórum Latino Americano, o autor comenta a sua produção artística influenciada pela teoria conceitual herdada dos pós-estruturalistas, como o minimalismo, entendendo que os discursos e o pensamento não trabalham paralelamente à produção, mas como “manifestações da mesma problemática17 .

Em Fauna, o autor apresenta uma coleção de animais desconhecidos, utilizando fotografias, diários e anotações. Baseado no acervo perdido do naturalista alemão Peter Ameisenhaufen, são criados com a ajuda de um taxidermista animais fantásticos dignos da zoologia borgeana, cujas classificações seguem as probabilidades científicas. Utilizando a mesma concepção estética das fotografias de arquivo, Fontcuberta constrói cenas onde se vêem tais animais, por vezes se colocando dentro da imagem como assistente de Ameisenhaufen, A fotografia dá apoio para a credibilidade do discurso, tendo o museu como entidade cultural e ideológica que irá atestar a veracidade dos registros. A primeira vez que expos este trabalho, o inseriu dentro de um Museu de Botânica, tornando ainda mais implicada as noções de legitimidade que as fotografias assumem enquanto arquivo.

Já em Sputinik, Fontcuberta levanta um conjunto de imagens que “provam” a existência de um astronauta soviético que morreu em um acidente na época da corrida espacial, forjando imagens em que o mesmo aparece em situações históricas. A manipulação de fotografias, recurso principal utilizada neste ensaio, se aproxima da ideia praticada por Stalin para alterar documentos, que por muitas vezes apagava pessoas que não desejasse fazer parte de tais episódios históricos. O dito astronauta é interpretado pelo próprio autor, que se insere nas imagens utilizando uma percepção irreal do documento.

Seus ensaios apontam para a acepção da fotografia pela crença; através da criação de um mundo próprio das imagens, baseado em condutas e contextos da realidade, Fontcuberta transgride o poder da informação ao delatar fantasticamente experiências

17 http://olhave.com.br/blog/juan-antonio-molina-entrevista-joan-fontcuberta/

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do passado. Nestes ensaios, é sempre articulado a dimensão descritiva à imagem. A descrição requerida acompanha o espaço deixado pelas imagens, que não se encerram sem si mesma. A conotação é dada pelo conjunto – as imagens funcionam como figuras de um álbum, dando uma um sentido à outra, como fragmentos soltos que apontam para o mesmo destino. No entanto, este destino não se localiza à frente, mas dentro das próprias imagens, criando uma verdade entrópica que se adensa no abismo contido nas fotografias, no mundo que delas se expande.

O trabalho de Fontcuberta prescinde das condutas próprias do museu para que suas imagens se coloquem no mundo. A partir de operações que tensionam todo o tempo a veracidade das fotografias enquanto documento histórico, o autor questiona profundamente a noção do museu em nossa sociedade, utilizando dos mecanismos institucionais para criticá-lo. Na formulação de uma abordagem própria de materiais científicos, apresenta uma abordagem referenciada nas fotografias de arquivo e as insere como objeto histórico no espaço expositivo.

Já Sofia Borges, em seu trabalho Pré-História, perpassa a crítica lançando mão de seu próprio museu, edificado através do conjunto de suas imagens. Criando um léxico sem referência épica ou geográfica, Borges trabalha cenas enigmáticas em favor de um museu que irá existir nas imagens, pela relação que se dá entre elas. Não mais dialoga com a instituição física, ou faz qualquer menção ao campo externo – suas fotografias terão por objetivo e finalidade mortificar objetos como peças de museus em sua própria representação.

Vemos um fóssil dourado que não se assemelha a nenhuma forma conhecida; um cavalo desfocado, em pose de catalogação; duas japonesas sentadas a frente de uma vitrine, que é atingida por um flash. Não conseguimos apreender uma mesma época ou contexto – o tempo aqui é suspenso, deslocado para o interior das imagens. Humanos e objetos são explorados adiante a mesma luz artificial e não usual que delibera a autora, recortados de sua justificativa, lançados como pequenos fragmentos de memórias. Contraposta à proposta Fontcuberta, Sofia continua adensando a investigação dentro da própria linguagem, realizando na produção pictórica as potências dos estados permeados de tempo. Não mais a falsificação do arquivo, mas a criação de um registro que não se localiza em nenhuma estética codificada, mas de uma leitura única que se torna possível enquanto objeto de arte.

Há aqui uma importante chave para a compreensão dos estados requeridos de arte por parte dos ensaios que ficcionalizam e desconstroem o arquivo enquanto monumento. O que irá ampliar a percepção dessas imagens com relação à realidade é o lugar que estas irão ocupar dentro do sistema da arte, que as reconhece através de sua potência dialética e impulsionadora de um imaginário.

A autora Rosalind Krauss, em análise sobre os espaços discursivos da fotografia, utiliza a fotografia de paisagem de Timothy O’Sullivan para exaltar as conotações pós-modernas que irão inserir uma imagem do século XIX no circuito da arte contemporânea:

18 KRAUSS, Rosalind, Susan. Op. cit. p. 157

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Nem é preciso dizer que a constituição da obra de arte como apresentação de seu próprio espaço de exposição é, de fato, o que chamamos de história do modernismo. Por esse motivo é fascinante hoje em dia olhar os historiadores da fotografia integrando sua mídia na lógica dessa história. Pois se perguntarmos mais uma vez em que espaço discursivo funcionava a fotografia original de O’Sullivan do modo como eu a descrevi no começo deste artigo, só se pode responder: o do discurso estético. E se nos perguntarmos então o que ela representa, forçosamente responderemos que, no interior desse espaço, ela se torna uma representação do plano de exposição, da superfície do museu, da capacidade da galeria para erigir em arte o objeto que ela decidiu exibir.18

A fotografia de O’Sullivan foi feita dentro dos códigos fotográficos da época, sem se ater ao status como obra de arte. Sua incorporação como objeto de culto, um século mais tarde, ultrapassa a consideração do atestado da fotografia como verdade, dando lugar às sensações e percepções trazidas ao espectador mediante a captura da imagem, assim como sua relação direta com o contexto em que é apresentado.

A instância que essas imagens ocupam dentro do museu e do espaço de arte, ou o que os proporciona um não comprometimento oficial, vimos que as fotografias vão se emancipar de um registro histórico social para pertencer à história da arte:

Montadas, emolduradas e dotadas de um título, as imagens entram hoje pelo viés do museu no terreno da reconstrução histórica. Podemos agora ler na parede da exposição esses objetos sabiamente isolados de acordo com uma certa lógica, lógica essa que, para legitimá-los, põe ênfase em seu caráter de representação no espaço discursivo da arte.19

Ou seja, a fabulação e a ficcionalização se tornam também objetos históricos, simultaneamente em que discorrem sobre um imaginário histórico. O que fazem esses trabalhos é apontarem para uma destinação crítica do objeto em seu próprio espelho, atravessando os territórios de legitimação. Buscando uma tensão que seja originada na própria ofertação do museu à fruição do sujeito frente ao objeto de arte, a fabulação retira a imagem da ciência e da informação para lança-la no terreno da poética e do imaginário através de uma construção pós histórica. Nas palavras de Krauss, o museu de agora seria então como os museus de Malraux, imaginários, sem paredes, cujo “conteúdo de suas galerias se amontoam num vasto conjunto coletivo.” Ou seja, a matéria histórica que irá constituir este arquivo de fabulação é montado dos fragmentos das coisas presentes no espaço coletivo, no mundo, fragmentos de vida inertes à espera de uma significação que os insira dentro do circuito da arte.

19 Ibid. p. 157

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II .

A narratividade implicada nos trabalhos de Sanguinetti e Sarfati, assim como a ficcionalização do documento histórico presente nas instalações de Fontcuberta e Borges servem como iluminação sobre o que concerne a ideia de imagem presente em minha produção. Tais operações podem ser percebidas como elementos de sedimentação naquilo que culminara em meu último trabalho realizado, o Guerra dos Perdidos, em parceria com Ricardo Burgarelli. Na entrevista abaixo, feita por ocasião da montagem deste trabalho no Museu Memorial de Minas, o curador Eduardo de Jesus elaborou algumas perguntas acerca de conceitos – próximos de tais atravessamentos - que enxergou no contato com minha produção nas artes visuais:

EDUARDO DE JESUS: Alguns de seus trabalhos dialogam com a performance, como as fotografias “Fronteiras” ou na instalação “Lugaralgum”. Gostaria que vc comentasse esses trabalhos e posicionasse suas pesquisas nesse lugar entre o registro da imagem e o gesto performático.

EU: O corpo se torna presente no meu trabalho enquanto ressonância de minha trajetória - da passagem intensa pelo circo, mas também pela dança, pelo teatro e pelo cinema. Na fotografia, ele aparece “no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento”, nas palavras de Bergson. Ele é parte de um todo, que é o quadro, onde atua enquanto cor, como forma. Em Lugar Algum, através do vídeo, essa relação se amplifica; ele se torna também o condutor de uma ação que desenha este quadro, seja na relação com objetos ou pela sua disposição na paisagem.

EDUARDO DE JESUS: Você atuou no Marginália Lab na instalação interativa “Lugar algum”. Como foi essa experiência e em que medida essas questões vindas da tecnologia repercutiram em sua prática artística?

EU: Entendo a tecnologia como uma ferramenta, da qual para tudo (ou quase tudo) que vamos fazer, precisamos de alguma forma lidar – é o tipo de papel, de tinta, de impressão, a versão do software, o corte da madeira, etc. O trabalho com o Marginália Lab foi gerido colaborativamente, em um processo que eu particularmente gosto bastante. Fiquei bem longe dos algoritmos de programação, e o desafio foi criar considerando o uso de um dispositivo interativo no percurso final da obra. Não que essa coisa de interatividade seja uma novidade - aliás, é muito mais antigo do que tendemos a imaginar - porém no meu caso este contato serviu para investigar a narrativa fragmentada, a história ao acaso, o comportamento aleatório dos fatos. Pensando assim, acho que tem muito a ver com o modo como construímos hoje nossos arquivos – despedaçados, multifacetados, onde cada peça traz em si a aura da coleção ao mesmo tempo em que possui um valor e uma história autônomas.

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EDUARDO DE JESUS: Você esteve no Ateliê Aberto da Casa Tomada em São Paulo. Como essa experiência de uma residência artística repercutiu no desenvolvimento de seu trabalho?

EU: Acho que toda residência em artes visuais é uma boa desculpa para vivenciarmos um processo de produção assim como gostaríamos que fosse cotidianamente. É uma forma de fazer o trabalho respirar, o colocando em contextos que deflagrem constantemente questionamentos e pensamentos sobre ele. Acredito que é no movimento que se reconhece o desejo, seja pelas coisas novas ou velhas, e é dele que parte a produção. Neste sentido, estar em trânsito, convivendo com outras pessoas, traz ao meu processo uma intensidade que acaba sendo imantada naquilo que faço.

EDUARDO DE JESUS: Em “Guerra dos perdidos” existe um nítido desejo de tocar nas questões da memória. Vc e Ricardo Burgarelli trabalharam em outra obra com arquivos de cine-jornais. Como vc posiciona a memória no trabalho de vcs e qual sua ligação com as questões da memória?

EU: Trazer esta exposição pra dentro do museu acho que é uma das maneiras que encontramos de tensionar essa noção. Partilhamos, de certa forma, deste mesmo lugar de memória com que o museu lida, por enxergá-la através de uma matéria inventiva, feita de apropriações e de fragmentos. A diferença reside talvez em apresentarmos, em confronto com uma memória parcial, restrita e direcionada, elementos que revolvam uma acepção não tão clara, tão direta desses acontecimentos.

Os objetos e as imagens que trazemos à exposição se monumentalizam enquanto arquivos, funcionam como estruturas simbólicas do passado na articulação de tempos e eventos justapostos na associação dos campos do real e do imaginário.

EDUARDO DE JESUS: Essa é a segunda experiência de vc e Ricardo em torno da fabulação. Em 2012 vcs apresentaram “Arquivo de Obras em Acabamento” no Centro Cultural da UFMG (Belo Horizonte) e no Museu Nacional (Brasília). Como essa noção opera na elaboração das obras e especialmente na que vemos exposta aqui no Memorial Minas Gerais Vale.

EU: Ao lidar com a história partindo da estreita dimensão revelada pelos rastros que asseguram sua legitimidade, acabamos por acordar na expropriação de imagens e objetos pertencentes a certos dutos narrativos para inserí-los em campos mais espessos. Atravessamos a narrativa do acontecimento, seja ele histórico ou doméstico, considerando as muitas camadas que o comportam. O que fazemos é trabalhar com a profundidade e a sobreposição dessas camadas, de certo modo balançando os significados desses pedaços que são estremecidos quando colocados em contato.

Posso dizer que situamos nosso olhar na trincheira; trabalhamos com o acontecimento pelas pistas que o constituem, mas nem sempre através delas conseguimos alcançar aquilo que percebemos. E é neste vácuo, onde não encontramos aquilo que enxergamos, que acabamos por inventá-lo à nossa maneira. A fábula é intrínseca aos contornos dissolutos da verdade contida nestas pistas, e são eles que nos permitem a perfurá-los com nosso desejo.

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Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.

Antonio Ramos Rosa

Era uma contorcionista ruiva, de estatura média e olhos bem grandes. Dividiam o picadeiro, a contorcionista e uma mala verde. O número tinha início antes que o anterior tivesse terminado. Em baixo tom, falando ia coisas que quase não entendíamos; as saudades da casa da infância, a perda da mãe, a passagem pelo orfanato, o desterro, o exílio quando não se ausente. E enquanto falava, ia tentando organizar seu corpo de maneira que a mala pudesse contê-lo - em vão. A mala o expulsava, não o permitia estar em conforto naquele espaço. A cada movimento que delineava um percurso de tentativa, um fracasso; um caminho era interrompido e o corpo permanecia sem lugar, deslocado de si mesmo, inquieto e cansado.

A menina que vi em Estocolmo atuava na contramão dos números tradicionais circenses – apresentava, em torno de uma narrativa, um jogo de imagens construídos a partir da técnica de contorção. A fala repercutia como um adereço, de tão bem amarrados que seguiam corpo e história, de modo que, mesmo sem compreender o texto por ela cantado, conseguíamos adentrar suas nuances através do gesto desenhado.

Resolvi entrar na escola do circo atraída, de certa forma ingenuamente, pelo modo de vida daqueles que abraçavam o picadeiro. Estar continuamente em trânsito, fazer de casa a estrada e criar trabalhos inseridos em um contexto de colaboração coletiva me instigavam a experiência de, pelos ares, conhecer o mundo com uma trupe. A partir do exercício diário, da entrega física e dos meios criativos me conectei ao modo contemporâneo de circo, onde pude desenvolver durante cinco anos números e espetáculos que me proporcionaram a satisfação pelo trânsito e pela dedicação constante a uma técnica. Porém duas coisas me inquietavam: uma era estar a sujeição do conteúdo pela técnica no desenvolvimento dos números. A outra, a distância que se fazia a fantasia, o lúdico - tão caro ao legado circense - do mundo real e cotidiano. Não que considerasse que a fantasia devesse ser extinta, mas no palco/picadeiro a subjetividade não tornava um campo possível quando, em cena, homens-heróis se alternavam em demonstrações de força, destreza, beleza.

A escolha pela universidade me ocorreu tardiamente, me acarretando o ingresso já com uma certa bagagem pregressa. No início do curso de Artes Visuais, sentia-me largamente perdida dentre tantas técnicas que tínhamos contato, passadas por vezes superficialmente. A cada técnica, eu entendia uma forma particular ligada à materialidade e ao procedimento (ou à matéria e ao processo), que avançavam a dúvida sobre qual seria, para mim, a mais profícua em ressonância com a minha trajetória e meu interesse criativo. Não entendia, enfim, porque haveríamos de optar por somente

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uma, e porque não todas, já que de alguma forma enxergava que cada especificidade pudesse enaltecer um ou outro ponto que porventura quisesse trabalhar.

A produção de conhecimento na arte, que se transmite historicamente através, também, dos aparatos técnicos, implicam em relações disciplinares dotados de carga mecânica da qual eu não conseguia absorver todo o seu sentido, se não fosse através de um motivo exterior à prática. Dos artistas que me atraem, tal qual os escritores e poetas a quem devo admiração, me instigam sobretudo a maneira que se constroem sobre as coisas do mundo, seu potencial de reinvenção do real e o desejo que movem suas obras.

Diante da impermanência dos processos que lançava mão em meus trabalhos, passei a compreender que a substância movente nas produções eram fruto de um desejo próprio de uma expressão criativa, sobre coisas que se localizavam em nosso interior, e não o contrário.

O cineasta Pedro Costa, em palestra na Escola de Cinema de Tóquio, em 2004, identifica de modo análogo ao que digo a matéria do desejo, como colocado no trecho a seguir:

Freqüentei uma escola em Lisboa, onde vivo, com a idade de vocês, entre 20 e 30 anos. Naquele tempo, eu era um pouco verde com relação ao cinema. Estava mais envolvido com a música e entrei nessa escola porque estava um pouco perdido em relação ao que fazer da vida. Então, comecei a ver coisas nos filmes, no cinema, que me afetaram sem que, no entanto, eu percebesse. Eu estava numa escola de cinema e achava que havia alguma coisa ambígua nessa coisa de seminário. É da escola e do diretor que se espera ouvir coisas sobre a mise-en-scène, montagem, direção de atores, pois, claro, podemos aprender algumas regras, técnicas básicas de câmera, som e montagem e a história do cinema. No entanto, tudo aquilo que diz respeito às sensações e aos sentimentos – e aqui, com o risco de parecer fora de moda -, gostaria de insistir no fato de que o cinema é feito, sobretudo, de sentimentos – e, de novo, estamos sobre um terreno perigoso, porque não sei se consigo transmitir isso a vocês. Ou você tem isso ou pode aprendê-lo, é de certa forma uma técnica. No fundo, ser um estudante de cinema é um trabalho muito solitário, pois significa trabalhar sobre seus próprios sentimentos. Para ser bom, você precisa trabalhar sobre seus próprios sentimentos.20

Fiz opção pelas Artes Gráficas por entendê-la como um espectro amplo de técnicas e habilidades, por onde perpassavam significativamente o texto, o desenho e procedimentos de impressão, como a gravura e a fotografia. Tendo desenvolvido até então um pensamento crítico relacionado ao mercado, acreditei ser a arte “reprodutível” contraria à posição do artista moderno, que teria nas artes gráficas um potencial de expansão coerente às formas alternativas contemporâneas de apreensão e distribuição da obra.

Em acordo com o pensamento desenvolvido por Boris Groys acerca do célebre texto de Walter Benjamin, A obra de arte da era de sua reprodutibilidade técnica vimos como a cópia e a multiplicidade na pós-modernidade abrem um pressuposto para o questionamento

20 COSTA, Pedro. Catálogo In: O Cinema de Pedro Costa. São Paulo: CCBB. 2010. p. 158

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da noção de autenticidade da obra de arte, que irá prescindir do contexto em que está inserido. Em nossa época, a obra de arte avança o contexto fixo e original, passando a circular anonimamente nos meios de cultura de massa. Segundo Benjamin, o original possui uma aura que falta à cópia – pois é dado, dentro da história da arte, como um objeto único e singular. No entanto, Groys identifica que, se o que irá caracterizar o original da cópia é o contexto fixo, marcado e aurático, então o deslocamento e a desterritorialização do original proporciona a recolocação e a reterritorialização da cópia; sua inserção em um novo contexto, como ocorre nas instalações pós modernas, teriam a capacidade de gerar o original, mesmo sendo o objeto inserido, uma cópia.

A fotografia, mídia reprodutível por excelência, circula desde a alta cultura até as camadas mais ordinárias da vida. Considerando o valor intrínseco daquilo que se produz enquanto arte, a fotografia irá se distinguir das outras linguagens por ser em sua origem uma cópia, ligada ao processo de formação estética da sociedade industrial. Por entendê-la dentro deste aspecto, elegi a fotografia como minha principal mídia de meu trabalho.

Um dos primeiros trabalhos realizados na faculdade, antes mesmo que tivesse escolhido minha habilitação, foi o ensaio fotográfico Seu mundo ao meu redor. A ideia surgira da minha influência na época, ao ver trabalhos de fotógrafos documentais - tais como Lise Sarfati ou Alessandra Sanguinetti. Queria registrar meus amigos em poses inusitadas, situações banais que fossem atravessadas por um grau de estranhamento ou de delírio. Em visitas a estes amigos, pessoas de minha convivência (em geral atores e artistas) propunha colocá-los em lugares que reverberassem uma tensão no corpo ou uma relação não usual com algum objeto. À medida que ia fotografando, percebia estar em busca de um lugar além da simples relação do corpo com o espaço e com o objeto - pretendia imagens que de alguma forma resplandecessem uma partícula do interior de cada um daqueles fotografados. Durante a realização das fotografias, aproximando ia um estranhamento desvelado através da personalidade íntima - da forma como eu percebia – de cada retratado. Porém já não importavam se eram retratos dirigidos ou espontâneos, mas que traduziam na imagem alguma centelha de algo que não poderia ser apreendido completamente dentro do quadro ou da imagem impressa. Era como tentar condensar em um retrato não só uma imagem, mas uma ideia de contexto que detonasse outras fantasias, que fizesse a impressão de estarem contidas em um curso narrativo estendido e que o momento-imagem fosse apenas um instante dentro de uma história.

O resultado deste ensaio configurou um punhado de retratos irregulares, sem uma ligação semântica que justificasse as poses e cenas. Diante das fotografias, vi surgir meu interesse pelo fragmento, pela narrativa e pelo extracampo nas fotografias.

A convite da professora Patrícia Azevedo, participei em 2010 da edição do Collective Body, projeto de colaboração entre alunos da UFMG e de universidades de outros países. Em Self Portrait Investigation, eu e Coral Moran, aluna da inglesa da Leeds University, trocamos durante duas semanas palavras que definiam lugares - tais como

21 O fenômeno Instagram diz respeito à incorporação massiva de usuários de telefones móveis à rede social Instagram de compartilhamentos de fotografias, frequentemente utilizadas com filtros que imitam recursos analógicos.

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biblioteca, quarto e banheiro - para o desenvolvimento de auto retratos que revelassem nosso corpo em situações não cotidianas. Feitos com câmeras simples, os retratos passavam por filtros digitais que se assemelhavam a efeitos de processos obsoletos de revelação - como a Polaroid e o médio formato. Nesta época, porém, ainda não havia o fenômeno Instagram21 e os filtros de celular não eram tão difundidos como atualmente. Com este trabalho que realizei minha primeira exposição, na galeria da Escola de Belas Artes e depois no Centro Cultural da UFMG. Com a produção do trabalho no espaço expositivo, agregaram outras questões proporcionadas pela montagem. Assim como na captura havia a preocupação em utilizar um dispositivo “comum”, as impressões foram feitas em uma máquina automática de revelação, fazendo-a mais próxima de sua percepção das fotografias amadoras, de uso cotidiano, do que como objeto de fine art. As fotografias foram estruturadas na parede em um grid irregular, embaralhadas, onde não se resolvia um percurso para a leitura cronológica ou linear das imagens. Minhas fotos misturavam-se com as de Coral, estruturando-as como um só corpo.

Ainda em 2010, fui para São Paulo participar de uma residência no Espaço Cultural Casa Tomada. Durante três meses dividi o ateliê com outros seis artistas, em uma rotina que alternava visitas de profissionais do mercado da arte com períodos de criação. Fora da universidade, o distanciamento do trabalho me permitiu visualizar as instâncias que o contornavam e recorrências nos núcleos temáticos. Tornei presente as questões do corpo na obra, da encenação do corpo para a câmera, da relação do corpo com o espaço, dos objetos como elementos performáticos, da narrativa pela imagem, da fragmentação da narrativa, da elaboração de histórias através das imagens.

A fase na Casa Tomada foi marcada pela produção intensa; muitos trabalhos não chegaram a consolidar uma resolução formal, mas contribuíram significativamente para o desenvolvimento de minhas produções posteriores. Um dos processos do qual identifico perpassar traços característicos de minha pesquisa, está o Paisagens de Memória. A partir de negativos encontrados de fotografias em preto e branco, fiz uma ampliação manual de retratos de desconhecidos, revelando somente partes da imagem. Gotejando o revelador no papel fotográfico, selecionava áreas de impressão, que consequentemente subtraiam partes da imagem que eram substituídas por áreas brancas onde não havia relevador. A pessoa desconhecida permanecia desvelada parcialmente, visível apenas pela mancha abstrata materializada em tons de cinza.

Ao final da residência, acabei por apresentar dois trabalhos de natureza distintas, por onde identifico duas vertentes da minha pesquisa:

Em Vestido, costurei fragmentos de tecidos cujo texto batido à máquina trazia a lembrança de sonhos que havia tido. Naturalmente na passagem do sonho para sua descrição, muitas imagens se perdiam, assim como algumas poderiam ser somente desejos de meu imaginário. A essas falhas da memória, resolvi traduzir em algumas palavras que eram ocultadas, interferindo no sentido da oração. O vestido foi moldado

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com base em meu próprio corpo e apresentado suspenso por um cabide.

Fronteiras surgiu durante os percursos e trânsitos pela cidade de São Paulo. Ao refletir sobre o funcionamento da lógica imobiliária no contexto paulistano, observava as grandes áreas de concreto que não possuíam utilidade; terrenos amplos e desocupados, territórios inabitáveis. Aqueles lugares soaram para mim como zonas de ninguém, lugares autônomos em uma cidade já saturada. Soavam como pontos de alívio dentro da lógica do acúmulo e do consumo. Coloquei-me a ocupar esses lugares nos limites de sua construção, colada em muros, barreiras e anteparos que separavam essas zonas dos lugares transitáveis. Relacionando a grandeza da construção através do jogo colocado pela proporção humana, busquei revelar a potência deste vazio.

No ano seguinte, fui convidada pelo coletivo Marginalia Lab a integrar a equipe de criação de conteúdo para LugarAlgum, instalação audiovisual que dispunha de um dispositivo interativo ótico. Ao entrar no cubo preto e escuro, o espectador recebia uma lanterna cujo feixe de luz, quando em contato com uma das quarto paredes, “pintava” uma determinada área, revelando a imagem projetada. Quatro projeções simultâneas mostravam cenas visíveis somente nas partes que eram selecionadas pela lanterna do espectador, provocando uma leitura fragmentada das imagens. Através de um jogo de cenas que alternavam entre um contexto doméstico fantástico e planos contemplativos de vistas e lugares, buscávamos apresentar diversas noções de percepção da paisagem. Cito algumas partes do roteiro que descrevem algumas das cenas:

: em uma sala, há um imenso vazio dotado apenas de uma mesa de jantar com uma cadeira ao centro, onde uma mulher toma uma sopa de beterraba. Quase ao final da refeição, emerge no fundo do prato um cartão postal, revelando uma paisagem exótica.

: através de uma janela, têm-se a vista de uma cidade ao entardecer. No lusco-fusco, amontoam-se prédios e montanhas, algumas luzes já acesas. Uma mulher inicia uma ação de colagem de cartões postais sobre a superfície envidraçada da janela. Aos poucos a vista da cidade é totalmente bloqueada, substituída pelas fotografias e cartões postais de lugares desérticos e exóticos.

: Uma mulher repousa em um armário cheio de estantes e gavetas. O corpo disposto sobre o móvel começa a abrir seus compartimentos e deles tirar atlas, mapas, livros de viagens e cartões postais, que vão sendo transferidos a outros compartimentos. A cena termina quando vê-se o armário quase completamente preenchido pelos objetos.

: um enorme cubo de concreto cravado no solo revela cinco metros de profundidade tomado a esmo pelo matagal que o encobre. Uma mulher surge no plano, revelando a dimensão monumental daquele órgão abandonado. Ela percorre seu interior, toca suas laterais.

: a câmera capta uma imagem aérea de um imenso terraço, aparentemente abandonado. Uma mulher caminha pelo terraço, definindo planos geométricos.

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As cenas delineavam um fio narrativo que conduzia esta personagem a experimentar, de diversas maneiras, uma relação com a paisagem. Quando em ambiente doméstico, as ações apontavam para o fora, contrastando os cômodos de disposição minimalista com os lugares longínquos e inabitáveis representados pelas fotografias. Já quando havia a captura direta dessas paisagens, a inserção da personagem no quadro se aliava a intenção contemplativa; era como se a mulher, ao ser transportada para este “fora”, transferisse também a sensação de estranhamento com estes lugares. O corpo, sempre lento, se colocava de modo a definir o desenho desta paisagem, conduzindo a câmera por diferentes pontos de vista que obscureciam o contexto daquele percurso.

A fragmentação da história é observada na elaboração de um roteiro que busca uma apreensão simbólica e sensorial através de um enredo particionado, sendo o sentido emancipado de uma história que prescinda de começo, meio e fim. Através de quatro projeções simultâneas aliada ao dispositivo interativo, a montagem é construída a partir da leitura específica de cada observador das imagens apresentadas. O áudio da instalação incorpora o sentido fragmentário, uma vez que não segue sincronizado às cenas, mas contribuindo para uma ou outra sensação detonada pelos passos da mulher, pelo vento da paisagem, pelo silêncio da casa.

Enquanto desenvolvia LugarAlgum, procurando locações que dialogassem com o roteiro, me interessei pelo tema da arquitetura através da relação com a memória. Vivendo em Belo Horizonte, me atentei a dois momentos que em muito contribuíram significativamente para a construção política da cidade: o de seu planejamento, no final do século XIX, e a virada modernista, instrumento ideológico executado por Juscelino Kubitschek em conjunto com arquiteto Oscar Niemeyer.

Neste momento desenvolvia alguns estudos ligados à arquitetura e memória para as disciplinas em curso, quando surgiu o interesse de Ricardo Burgarelli - outro aluno da escola - para um trabalho em parceria. Tendo como motivador comum o tema da arquitetura como símbolo histórico, chegamos ao projeto intitulado Arquivo de Obras em Acabamento. O trabalho foi contemplado no edital do Centro Cultural da UFMG, cujo resultado de seis meses de pesquisa apresentamos em uma exposição em agosto de 2012.

A exposição trazia a construção de um trajeto ficcional da história da cidade de Belo Horizonte através da leitura crítica das imagens, fatos e documentos relacionados com a arquitetura, seus agentes e sua influência na vida da sociedade. Os trabalhos ocuparam a galeria composta de quatro salas; vídeos, gravuras, fotografias, projeções de slides, intervenções diretas no edifício e publicações foram dispostos afim de deflagrar uma abordagem abstrata dos acontecimentos do passado. Os eventos que norteavam o manancial imagético constitutivo dos trabalhos eram geralmente acontecimentos esquecidos, histórias incompletas que se encontravam nos dutos dos acervos públicos, assim como nas entranhas da própria cidade. Volta-se o olhar para a potência simbólica dessas imagens do passado, revivendo-as através de sua inserção enquanto fragmento dialético no circuito da exposição.

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O arquivo se fazia, contudo, da junção desses trabalhos – ainda que cada um revelasse, em alguma medida, a problemática da história implicada em sua inserção dessas imagens como objetos de arte. A memória da cidade se fazia dissoluta em uma proposição calcada na percepção minha e do Ricardo, onde sugerimos campos imaginários que circundassem os eventos apresentados. Não buscávamos delinear uma chave para a compreensão destes momentos na arquitetura, mas através do levantamento de seus signos e registros, trazê-los ao presente de forma horizontal. A refletir sobre os efeitos e causas que tais eventos erigiam sobre nossas próprias vidas enquanto habitantes dessa cidade, estavam colocados agentes que usufruem desta história.

Em meio ao levantamento dos escritos de memória que nutriam a pesquisa, nos veio às mãos anotações sobre a região que abriga atualmente o Centro Cultural da UFMG:

Centro, fantasmas do passado e imperativos do presente. O imaginário, através de personagens secretos, organizam a ficção da cidade, a memória que os habitantes constroem diariamente de acordo com as práticas sociais, interações e deslocamentos.

A cidade adquire pregas através do tempo, encontrando-se estriada de faixas pretas semelhantes a certas regiões noturnas mal iluminadas de onde a vida parece escapar... Os nomes das ruas, quarteirões, sobrenomes, formam constelações cintilantes onde se engancham em associações de lembranças.

A arquitetura possui uma escrita, representada pelos discursos, e é o palco do espetáculo urbano. A centralidade acaba por definir o utópico e é por ele definida - é o que não tem lugar mas que o busca em um determinado espaço tempo.”22

O corpo do prédio foi incorporado como matéria para intervenções integradas no processo de trabalho da memória, funcionando como um monumento vivo, que carrega em si as implicações das quais estávamos trabalhando.

Com Arquivo de Obras em Acabamento, constituímos um lugar da narrativa engendrado pela comunhão de peças que proporcionam associações conforme é dado o percurso do espectador pelo espaço da galeria. Pelo conteúdo denso, a permanência sobre os fragmentos é que proporcionavam a edificação de sentidos suscitados pelos questionamentos sobre a fundamentação da legitimidade da história. Não sendo requerida a apreensão do conteúdo em sua totalidade para compreensão dos sentidos, as conexões deflagradas do encontro da experiência de cada indivíduo com os motivos colocados é que tecem a impressão sobre o tratado da história. A fabulação torna-se um instrumento para a sedimentação da narrativa, uma vez consentida a abertura simbólica dos campos da memória contida nas imagens do passado.

Nos apropriamos da leitura de Groys acerca da instalação, que toma como original todos os componentes ali contidos – mesmo que sejam cópias. O que distingue a arte contemporânea dos movimentos anteriores é só que a originalidade da obra em nosso tempo não irá se estabelecer de acordo com sua forma, mas através de sua inclusão

22 Anotações retiradas da introdução dos documentos referentes ao tombamento de edifícios da Rua Caetés, Guaicurus e adjacências.

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em contexto específico.

Guerra dos Perdidos foi elaborado em continuidade à pesquisa iniciada com o Arquivo de Obras em Acabamento. Ainda imersos no território de investigação dos mecanismos de legitimação de nossa história, voltamos o olhar para as batalhas e guerras ocorridas em nosso país.

Através de um caderno do jornal paulistano Estadão23, tomamos conhecimento de uma série de pequenas guerras não encontradas nos registros oficiais, desvanecidas enquanto evento de importância cultural no país. Aquela que dá título ao trabalho foi em si uma batalha vitoriosa, porém de pouca repercussão após sua conclusão. Uma vez que sua existência não tenha resistido aos meios de divulgação convencionais, seu legado pôde ser apreendido somente pelos depoimentos daqueles que a vivenciaram. A memória ficou sujeita à experiência pessoal e sua perpetuação se deve à existência de uma coletividade que viria guardá-la e perpetuá-la.

Nesta comunicação é que reside o conceito tradicional de narrativa, ligado à transmissão da experiência através da memória coletiva. Embora Benjamin acreditasse que a experiência da trincheira fosse aniquiladora da verdadeira experiência, neste caso ela irá encontrar seu tradicional sentido, quando torna falante a experiência, por nos contar através do que resta, mediante ao tempo lento imposto mesmo na contemporaneidade.

Uma vez entendida a noção de memória enquanto organismo sobrevivente da experiência coletiva, eu e Ricardo intentamos elaborar um corpo de arquivos que fizesse alusão à uma guerra, imaginária. Coletamos materiais que não necessariamente fizessem parte do universo bélico ou extraído de bases de confronto, mas buscando uma representação dos contornos que envolvem as consequências e os impulsionadores da barbárie.

Em Guerra dos Perdidos, tornamos o percurso da busca um transformador da concepção final do trabalho. Novamente lançando mão da apropriação – de objetos e imagens – como matéria da instalação, nos deixamos tocar pela matéria memorial suscitada do nosso encontro com esses elementos. Assim sendo, saímos da representação literal, que seria amarrada pela apresentação de referentes típicos que constituem o ambiente da guerra, para uma abordagem inserida no terreno simbólico, do estranhamento, também colocado a partir da dimensão doméstica do acontecimento.

Incorporamos objetos de naturezas distintas, que em conjunto designavam um inventário de instrumentos cuja aparência se sobrepunha à sua utilidade. A composição das peças, em grande número de ferro e latão, denotava uma semelhança material que as planificava dentro da relação de importância, relacionando-as ainda com os materiais utilizados para a fabricação de armas e outros artefatos utilizados em guerras. Os pedaços, em sua maioria, traziam um aspecto sujo, envelhecido, enferrujado, conferindo um caráter de uso que visava colocá-lo como registro de memória.

23 http://www.estadao.com.br/especiais/as-guerras-desconhecidas-do-brasil,127791.htm

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As imagens selecionadas ecoam em ressonância ao caminho traçado com os objetos, trazendo aspectos que circundam os eventos militares. Campos de batalha e front são deixados de fora – fábricas, instrumentos de alimentação e fotografias de laboratórios são trazidos para um painel que circundava a coleção de artefatos.

Os objetos foram dispostos em três módulos baixos, desenhando um labirinto dentro da galeria. Alguns módulos se sobrepunham, não deixando ver alguns objetos que se encontram na mesa mais baixa. A esta operação entende-se como uma síntese daquilo pretendido com a instalação; os motivos são expostos, mas não deixam à mostra a totalidade para sua apreensão. As lacunas que residem no ocultamento desses objetos é que hão de abarcar sobre eles uma compreensão que ia além da mera intenção de contemplação e da informação.

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III .

A história como elemento condutor dos trabalhos Arquivo de Obras em Acabamento e Guerra dos Perdidos funciona como um questionador dos limites da verdade e do real. Através de mecanismos presentes no mundo – tais como a fotografia e a imprensa - investigamos os motivadores que a fazem como instrumento da memória. Ao abordar o evento histórico a partir de uma matéria inventiva, levamos em conta a experiência do coletivo, que irá conferir à história mais do que um legado absoluto do acontecimento - mas um território passível de fabulação pela sua contaminação dentro da cultura. Na instância da arte, o campo imaginário da história faz-se pertinente quando em contato das lembranças e vivências por ela derivadas. Jornais e documentos públicos se apresentam como elementos do real cuja apresentação da verdade se dá atravessada por interesses políticos e ideológicos; no âmbito da arte, funcionam como matéria diletante para uma apreensão aberta dos fatos quais vem a narrar.

Para compreender a tecitura que dá origem a fábula presente nos intercursos dos meios de massa, nos atemos à trajetória de Fontcuberta. Ao ter contato com o campo da comunicação, da qual pertence a imprensa, o fotógrafo passa a percebê-la como uma máquina de fabricação da verdades (ou de mentiras):

Hay que advertir que yo no procedo en mi formación del mundo de las Bellas Artes ni de la historia del arte. Yo estudié comunicación y eso me permitió luego trabajar en el ámbito de la publicidad y el periodismo, y ambas disciplinas nos preparan para la mentira, para aceptar una ficción periodística de alguna forma. Pero al mismo tiempo todo eso sucede, lo repito, en un momento político en el que mi generación está sufriendo los rigores de una dictadura y por lo tanto el sistema de un régimen en el que nos habitúa la propaganda, a la gestión de la información de una forma pretenciosa e idealizada. Esto hizo que muchos jóvenes reaccionásemos contra ese sistema, contra ese marco, y la manera de hacerlo era justamente contrarrestando esa verdad oficial con otras verdades posibles.24

Por esta citação Fontcuberta nos conta, de maneira muito clara, como visualiza no sistema da informação uma estrutura que busca a exposição de um acontecimento a partir de uma visão única, fazendo deste um instrumento de articulação política. O direcionamento imposto à leitura informativa de imagens e texto denotam em um caráter narrativo ocluso, todavia preparado como um complemento de prova ao fato descrito, resignado de toda a sua potência dialética. O conteúdo compositivo que se apresenta dentro deste contexto é posto a serviço de reprodução do real – e não de um apontamento crítico da realidade. Fontcuberta sugere, no entanto, como embate da lógica que circunda a informação, a criação de “outras verdades possíveis”, que seria alcançada através de recursos que carreguem a imagem para outras instâncias – com a arte ou a literatura.

A distância observada entre a literatura e a imprensa revela o abismo onde resplandecem fragmentos do real dotados de multiplicidades, que propiciarão

24 http://olhave.com.br/blog/juan-antonio-molina-entrevista-joan-fontcuberta/

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conjunções elaboradas pelas duas formas – no caso da primeira, tais associações se abarcam afim de emancipar significações e propor novos sentidos, enquanto na segunda ela serve a um sentido estrito e determinado, engessando-os.

Ao reconhecer no corpo da imprensa uma retórica totalitária, Fontcuberta certifica também que o sentido proposto pela notícia só se consolida quando o espectador atua como testemunho do fato narrado. Uma vez colocada a imprensa como objeto de refutação daquilo que está descrito, esta se torna também um objeto abjulgado de sua verdade, já que passamos a olhá-la com olhos daquilo que ela representa no conjunto da história, enquanto elemento passível de crítica. Tido como ferramenta espetacular de construção da história, os fatos descritos passam a pertencerem, no registro da oficialidade, como meros instrumentos ideológicos. Trazendo o fato ao confronto da estrutura que o noticia, Benjamin atribui à informação seu devir narrativo a partir do contato com a experiência do sujeito:

O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.25

Segundo o autor, a informação só tem validade enquanto novidade. Passado o fervor instantâneo que valida a notícia, segue-se com a informação no plaino do passado, flutuando entre o estado de arquivo e de prova da memória. Para a abertura narrativa da notícia tomada pelo presente, o leitor é quem deve atribuir sua capacidade interpretativa para elaboração de um pensamento crítico acerca do acontecimento. A narrativa além da notícia pede algo que emerja da superfície de sua verificação; pede uma visão que avance sobre a mimese do relato, que atue na direção de outros fragmentos, pertencentes ou não à tradição histórica.

o saber, que vinha de longe – do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição - , dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível “em si para si”. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos.26

Esta abertura narrativa é observada nos trabalhos de Fontcuberta, que utiliza do sistema da informação para a criação de um mundo próprio fantástico. O fotógrafo lança mão do dispositivo de criação da verdade para sua própria desconstrução – no âmbito da arte traz a estrutura informativa para revelar ao espectador uma forma de leitura ao mesmo tempo crítica e inventiva, pelo conjunto de sentidos suscitados na narração de uma verdade.

Na imprensa comum, esta abertura seria possível quando extinta a hierarquia que rege o escritor sobre o leitor - ou quando ambos partilharem de experiências que proporcionam extrair da informação sua expressão, mediante as múltiplas associações implicadas nas camadas simbólicas e constitutivas do acontecimento. Esse achatamento da hierarquia é pouco observado na mídia comum, mas Benjamin a

25 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 20326 Ibid. p. 203

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identifica no modelo da pós-revolução russa, através de uma citação de Tretiakov:

...o declínio da dimensão literária na imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre o autor e o público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre pronto, igualmente, a escrever, descrever e prescrever. Como especialista – se não numa área de saber, pelo menos no cargo em que exerce suas funções -, ele tem acesso à condição de autor. O próprio mundo do trabalho toma a palavra.27

Somente em contexto semelhante possível seria ultrapassar as “distinções convencionais entre ensaístas e ficcionistas, entre investigadores e vulgarizadores”, como afirma Benjamin, e colocariam na mesma esteira leitores e escritores enquanto capacitores de invenção e de crítica da realidade. Desde modo, se aproximariam realidade e ficção, verdade e mentira, tornando tênue este limite a ser perpassado pela experiência individual decorrente da memória coletiva sobre o evento histórico.

A dimensão dialética da informação se dá a partir do olhar lançado sobre ela, já que “não se consegue extrair nada daquilo que não está lá”28. Por esta afirmação, entende-se que toda e qualquer imagem carrega consigo o devir de sua existência, tanto a respeito do referente a que encerra uma opinião (na informação), tanto como no espectro sensível dos contextos acionados a partir de sua inserção em tal ou qual meio. Por esta abordagem, compreende-se que para além do seu lugar de origem, a imagem irá suscitar continuamente, em sua existência, as instâncias que entrecortam e se relacionam com o evento por ela narrado – seja pela presença ou pela ausência dos elementos dos quais é constituído.

O noção de memória enredado na narrativa é concebida, por sua vez, através de uma costura que se realiza coletivamente. Não basta que o indivíduo nutra de subjetividade a imagem que flutua nos campos dos sentidos, mas que pela experiência coletiva consiga visualizar complexamente os vários níveis de sedimentação da história. A memória irá mover a imagem articulando-a com aquilo que está exterior a ela, porém calcado nas significações proporcionadas pelos elementos que representa, e que de alguma forma são identificados na experiência do sujeito. A constituição desta memória segue, portanto, da apropriação de imagens “vivas”, que assumem uma forma residual como índice da transmissão:

As imagens das quais é feita nossa transmissão tendem, incessantemente, no curso da transmissão histórica (coletiva e individual), a se enrijecer em espectros e se trata, justamente, de restituir-lhes a vida. As imagens são vivas, mas, sendo feitas de tempo e de memória, sua vida é sempre Naschleben, sobrevivência, está sempre ameaçada e prestes a assumir uma forma espectral.29

Agamben atenta, através desta citação, para o risco do engessamento do sentido da imagem quando atrelado ao sentido tradicional de transmissão da memória. Ele identifica na transmissão um caráter espectral que pode ser identificado como traço

27 TRETIAKOV apud BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 12428 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 12929 AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. São Paulo: Hedra. 2007 p. 33

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de uma noção épica da narrativa. Para Benjamin, o narrador é quem poderá salvar a imagem da oclusão da informação e conferir a ela um estatuto de índice, ou de fragmento fulgurante do real:

a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem em si. Uma se articula na outra como demostraram todos os outros narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Sherazade, que imagina uma nova história a cada passagem da história que está contando.30

Cada imagem é, frente à narrativa, uma Sherazade que tece, sob o terreno da imaginação, uma perspectiva da história confrontada pela experiência. A tradição, que irá transportar as fuligens remanescentes da história através do choque de suas faíscas, deve aos narradores a propagação de fragmentos sujeitos ao esquecimento. Aquele que narra, segundo Benjamin, carrega também de si na história narrada – é o leitor-escritor, ou aquele que avança à história de modo horizontal; do mesmo modo que se debruça por ela, deixa-se tocar pelo acontecimento. Devemos compreender então que esta imagem “viva” é dialética “no nível do sentido, (pois) produz ambiguidade..”31 - não pelo estado de uma má determinação ou interpretação, mas pelo ritmo de choque que é produzido quando colocado em confronto com as outras imagens.

A história que contamos em Arquivo de Obras em Acabamento poderia, até certo ponto, passar ao espectador desavisado como uma simples organização de fatos que se dá à exibição. No entanto, ao tratarmos da memória da cidade através da arquitetura, considerando também os agentes que as compõem, apontamos criticamente para os formadores desta versão histórica; elaboramos planos de inserção do espectador dentro de um cenário de invenção, porém feito e carregado de elementos da realidade. Consideramos estarmos movendo imagens a deflagrarem diversos significados, tornando-as vivas, pela sua inserção em um circuito dialético de apreensão.

O trabalho Atlas de Construção, um dos que compõem o Arquivo de Obras em Acabamento, traz um álbum com dezenas de imagens de edifícios e lugares da cidade em obras e em ruína. Se em alguma medida as fotografias de edifícios em construção se articulam pictoricamente às de destruição, é por reconhecermos também a semelhança dessas imagens na paisagem no cotidiano contemporâneo da cidade. Enquanto vestígios de uma realidade passada, funcionam como pedaços relampejantes do anjo da história32 que avança sobre nós até os dias atuais. Walter Benjamin reconhece que a memória não surge como sistema posse do rememorado, mas da aproximação ambivalente das coisas passadas com o lugar elas vem ocupar no presente. As imagens do passado

30 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 21131 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34. 1998. p.12332 Walter Benjamin se refere ao Angelus Novus como aquele que apreende o progresso como uma tem-pestade que arrebata irresistivelmente a tudo e a todos. Entendida como um movimento violento que afasta esse anjo angustiado do paraíso, a idéia de progresso não poderia nesse aspecto ser vista como algo positivo.

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servem, no entanto, para falar de um estado de origem atravessado por alguma fagulha do íntimo de agora, tratado na relação única que cada habitante tece com os edifícios cânones apresentados. É lançada uma lembrança de outrem para que seja tomada como própria:

articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.33

Em Silêncio, trabalho que também integra o Arquivo de Obras em Acabamento, a projeção de um slide revela o interior de um antigo cinema art déco que fora transformado em estacionamento no centro da cidade de Belo Horizonte. O áudio de um filme spaguetti brasileiro, inspirado aos modelos dos westerns italianos, é colocado como uma ruína sonora, a sugerir o rastro da projeção de um filme no lugar da tela onde a imagem é ausente. O que se vê, através da fotografia, é um tempo que avassala a arquitetura e sua história não através de sua destruição, mas da incorporação de elementos de variados tempos que se presentificam em uma mesma situação. A justaposição dos tempos entrelaçados por áudio e imagem revelam, pela leitura de Didi-Huberman, que

... não quer dizer que a história seja impossível. Quer simplesmente dizer que ela é anacrônica. E a imagem dialética seria a imagem de memória positivamente produzida a partir dessa situação anacrônica, seria como que sua figura de presente reminiscente. Criticando o que ela tem (o objeto memorizado como representação acessível), visando o processo mesmo da perda que produziu o que ela não tem (a sedimentação histórica do objeto), o pensamento dialético apreenderá doravante o conflito em solo aberto e do objeto exumado.34

O objeto exumado irá carregar, portanto, sua memória de “origem” no mesmo plano que sua memória de “agora”. O lugar a qual pertencia antes de sua retirada, permanece presente no corpo do objeto, mesmo deslocado de sua origem. Portanto, a imagem que se dirige ao acontecimento irá carregar tudo aquilo que se insere do instante da captura da imagem pela fotografia até o instante presente, inclusive os motivos que a fizeram existir até a atualidade. O sentido a ver a imagem do passado se dá pela necessidade do presente em rememorá-la, em trazê-la como massa de confronto à memória e à história, tal qual “irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visitado por ela.”35

No entanto, em Silêncio há a sugestão, para além da realidade escancarada dos carros pairando sobre o chão original de tacos, a rememoração de um lugar que um dia já foi um cinema – e, por consequência, nos leva a pensar no que seria se não houvesse interrompido o curso dessa maneira. Há, portanto, uma penetração do passado, não só através das marcas deixadas pela arquitetura, mas pelo modo que adentramos essa “integração” problemática que se não se acomoda, mas que tensiona, e questiona.

Da mesma forma entende-se que as intervenções feitas no corpo da galeria onde apresentamos O Arquivo de Obras em Acabamento carregam esta problemática. Em Janela, realizamos uma ação cuja apreensão pôde ser feita pelo seu resultado. Na tarde da abertura da exposição, dois operários da obra realizada pela prefeitura na

34 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos... Op. Cit. p.17635 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 224

33 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 224

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avenida em frente ao Centro Cultural fizeram um corte no drywall da galeria, deixando aparente a janela original do prédio. Além de ampliar a visão, criando um canal de comunicação do dentro e do fora da galeria, deixa-se ver as pistas do que já foi, originalmente, hoje o Centro Cultural da UFMG.

Ao expor o edifício através de suas características originais, estamos resistindo à sua modificação, ou a sua transformação frente ao utilitarismo que insiste em apagar os sinais dos tempos. Levantamos o que há de original para que seja pensado o seu uso de agora. Há nesta simples operação uma grande implicação de tempos, onde interrompe-se por alguns momentos a acepção neutra deste pertencimento, afim de criar com a fissura, um incômodo. A partir da ação, é lançada uma sugestão de imagens, a partir da janela aberta e da paisagem que é incorporada pela galeria.

Outro trabalho que carrega emblematicamente a impregnação da memória nas imagens do passado é Souvenir, uma série de pratos de porcelana com paisagens impressas, ao modelo das lembranças doadas pela prefeitura em aniversários comemorativos. Imagens de projetos públicos que nunca foram executados, são impressos no interior destes pratos, desenhando um imaginário da cidade através de edifícios e monumentos fantasmáticos.

A imaginação aqui se torna possível na aproximação dialética dos rastros do passado que se configuram pelo registro presente. Da mesma forma se comportam os objetos e imagens que retiramos dos acervos públicos, que falam tanto de si quanto dos acervos aos quais foram “retirados” – eles são aquilo que permanece, enquanto símbolo mas também enquanto instituição, conseguinte à história, ferramentas de legitimação. Ao colocar esses fragmentos de apropriação na exposição não estamos, no entanto, corroborando para a certificação de um acontecimento, mas apresentando-a em um contexto mais aberto, passível de novas leituras e associações como objeto artístico.

A imagem dialética irá carregar, portanto, não somente o acontecimento como índice, mas sua relação com o acontecimento a partir daquilo que ela seleciona – e aquilo que opta por não mostrar. Mostrar é afirmar tudo aquilo que está escondido:

o passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?36

não há portanto imagem dialética sem o trabalho crítico da memória, confrontada a tudo o que resta como indício de tudo que foi perdido. 37

Em Guerra dos Perdidos, a noção de passado em lidar com aquilo que não foi registrado se torna ainda mais premente, deliberando a construção de uma memória inventada, utilizando objetos reais para a construção de um trajeto ficcional. A guerra a que fazemos alusão jamais existiu, mas - voltando à proposição de Löwy – nem por isso, no mundo em que vivemos, poderíamos afirmar ter existido. Escolhemos contá-la pelos sulcos que convivem na incapacidade absoluta da história, na memória incontida dos livros e acervos públicos, sulcos que não seriam alcançados a não ser pela experiência

37 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos... Op. Cit. p.174

36 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 223

38 Ibid. p.172

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contaminada pela lógica da guerra.

A narrativa engendrada em Guerra dos Perdidos considera válidas todas as nuances repercutidas em um contexto de barbárie, atentando a uma acepção transversa dos fatos, dotando objetos e imagens de um lugar de autenticidade, tal qual a definição de Didi-Huberman:

uma imagem autêntica deveria se apresentar como uma imagem crítica: uma imagem em crise, uma imagem que critica a imagem – capaz portanto de um efeito, de uma eficácia teóricos -, e, por isso uma imagem que critica nossas maneiras de vê-la, na medida em que, ao nos olhar, ela nos obriga a olhar verdadeiramente. E nos obriga a escrever esse olhar, não para “transcrevê-lo”, mas para constituí-lo38

Neste sentido, ao espectador que se aproxima da instalação de Guerra dos Perdidos, não temos a intenção em reproduzir um passado, mas em colocar a imagem do passado como em um lance de dados. Cá estão, novamente, as lascas fortuitas do mundo. Elas dizem tanto sobre a guerra porque pertencem a esta cultura que os fazem reconhecer como instrumentos de barbárie.

O percurso de apreensão dos elementos compositivos de Guerra dos Perdidos são montados através do acúmulo de fragmentos. As imagens se prendem nas paredes como um imenso painel que é formado por imagens de arquivo, textos e gravuras de documentos.

As imagens de arquivo, retiradas de acervos públicos, vão retratar os vestígios da guerra levantando cenários ambíguos. Vemos um exército de carros-cozinha, enfileirados frente a um edifício monumental e vazio; um carro-forte fechado por tábuas de madeira, cuja forma se aproxima de uma escultura minimalista; três homens caracterizados como personagens de guerra, posando para uma fotografia em estúdio. Amparadas em diferentes contextos, as imagens denotam situações que poderiam ser ancoradas como um amontoado de cenas incomuns, e no entanto identificamos a temática da guerra a partir de sua justaposição. É através do estranhamento, da veladura que se segue sobre o propósito daquelas imagens, é que as permitem pertencer, dentro do espaço da narrativa, partes de um mesmo lugar/nicho.

Das fotografias que compõem Guerra dos Perdidos vemos desde instrumentos incomuns utilizados em batalhas até registros de trabalhadores de fábrica que representam um contexto de opressão. A apresentação de uma imagem como nova é posta para reinvenção de seu contexto originário, de modo a transformar e inquietar os campos discursivos que a compõem. Ela não irá informar acerca desta guerra – até porque não há nenhuma pista que a situe dentro de um período histórico específico – mas sua construção se dá pelo inserção formal desses objetos e imagens em conjunto.

Diversas associações surgem pela aproximação de imagens distintas, acarretando na interferência do sentidos de umas pelas outras. No mural de Guerra dos Perdidos, há uma fotografia de grande formato que retrata um vagão de trem parado, tendo

39 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Prefácio. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 223

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em sua frente alguns homens de pé com uniformes oficiais. No chão, sobre os trilhos, centenas de cachos de bananas se amontoam avançando pela cena. Ao lado desta, outra fotografia, bem menor, revela uma ossada humana pairando sobre o solo. Ao propor a leitura das duas imagens, sua parecença pictórica sugere ver na primeira imagem que o que está sobre o solo não são cachos de bananas - mas esqueletos humanos. O que condiciona tal semelhança entre as imagens, no entanto, não é somente a condução formal semelhante das duas cenas, mas a condição do espectador em alcançar nesta imagem códigos e referências reconhecíveis a partir de outras imagens de guerra. Ele conecta com o fora, com o mundo e a experiência pelos meios de comunicação e cultura, e mesmo que reconheça na fotografia as bananas, poderia entendê-la como uma metáfora para um cenário horrendo típico de uma guerra. Temos então uma leitura que é condicionada pela perda, assim como pelos pedaços que se entrelaçam mediante a imposição de um motivo:

poderíamos arriscar um paradoxo e dizer que a obra de Kafka, o maior “narrador” moderno, segundo Benjamin, representa uma “experiência” única: a da perda da experiência., da desagregação de uma tradição e do desaparecimento primordial. Kafka conta-nos com uma minúcia extrema, até mesmo com certo humor, ou seja, com uma dose de jovialidade, que não temos mais nenhuma mensagem definitiva para transmitir, que não existe mais uma totalidade de sentidos, mas somente trechos de histórias e sonhos. Fragmentos esparsos que falam do fim da identidade do sujeito e da univocidade da palavra, indubitavelmente uma ameaça de destruição, mas também – e ao mesmo tempo – esperança e possibilidade de novas significações.39

O que Benjamin irá evocar com a perda, identificada na narrativa da obra de Kafka, é uma leitura que costura os sentidos a partir de fragmentos, vestígios, ruínas. A destruição se dá no âmbito do sentido, e não da linguagem – quando não é possível contornar absolutamente o acontecimento a partir somente do fato narrado, há que considerá-lo como um pedaço (dentre tantos) usados para se contar uma história.

Sabendo que Benjamin considera a experiência o “que passa de pessoa a pessoa”, ou aquilo que se opõe ao individualismo, o desaparecimento da troca de experiências surge aliada à impossibilidade de comunicação na consolidação da cultura moderna. Ele atenta para uma conduta do sujeito desvinculado do modo de vida coletivo, o que ocasionaria na extinção dos narradores tradicionais, e com elas o que considera as melhores narrativas, pois ”são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.” 40 Essa dimensão do anonimato fica menos evidente nessa sociedade marcada por uma ideia progressista da história, onde predominam a previsibilidade cientificista e o progresso inevitável que irá, de certo modo, pulverizar e fragmentar a tradição.

Ao apontar para a modernidade o surgimento de um novo homem, embora o detenha com certa melancolia, não ampara na tradição o caminho a ser buscado. A mudança observada dentro da própria sociedade irá denotar em uma mudança dela própria à percepção e à absorção do tempo, o que irá criar a necessidade de outra forma de se

40 BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política... Op. Cit. p. 19841Ibid. p. 223

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contar a história. Benjamin propõe, no entanto, uma leitura que vá acompanhar a ideia progressista da história – leitura esta identificada na narrativa de Kafka, posta a gerar na sua expressão aberta, a apresentação de um fato pelo amplo espectro de suas possíveis conexões e significações.

A verdadeira narração, para Benjamin, está ligada à noção arcaica, artesanal, da sociedade pré-industrial. O narrador deste novo tempo, pós-industrial, deverá lançar-se ao encontro de sua matéria primordial para edificação dos sentidos proposto pela história moderna, que utilizaria como elemento a própria vida humana. Cunhando uma relação artesanal com a realidade, todo gesto é considerado uma ação que modifica aquilo que é tocado; ao se basear na experiência de uma vida estaria, portanto, se baseando em uma vida que pertence a todos. Neste caso, a transmissão dessa experiência será calcada na impossibilidade da experiência do coletivo, em sua ausência.

A ligação entre a vida e o acontecimento histórico se localiza no interior dessas imagens e objetos, que irão estremecer a partir da formação do olhar em cima de um conjunto que diz, não só do fato, mas da dimensão mais ordinária que pode atravessar o ser humano. A autenticidade se dará pelo valor de tais conexões, abarcando sua potencialidade dialética na criação de vários mundos suscitados a partir desses fragmentos de realidade.

a força revolucionária do dadaísmo estava em sua capacidade de submeter a arte à prova de autenticidade. Os autores compunham naturezas-mortas com o auxílio de bilhetes, carretéis, pontas de cigarro, ao quais se associavam elementos pictóricos. O conjunto era posto em uma moldura. O objeto então era mostrado ao público: vejam, a moldura faz explodir o tempo; o menor fragmento autêntico da vida diária diz mais que a pintura.41

Quando elaboramos como obra uma instalação feita de apropriações, é como se colocássemos esta moldura sobre os objetos e imagens ali dispostos, configurando, sobretudo, um território de sensações construídas a partir da experiência única e subjetiva daquele que adentra o espaço expositivo.

Lançamos mão, através da proposição histórica, uma tentativa de resgate da relação artesanal das pessoas com a memória desses objetos e imagens, para além de sua significação oficial ou informativa. Com a desterritorialização deste objeto histórico, lançamos ao encontro do espectador a matéria em seu estado mais ordinário, de modo a que possa deflagrar sentidos a partir dos laços de articulações. Ou seja, o punctum, ou a aura dessas imagens se faria localizar nas camadas não visíveis, nas nuances dos encontros, das perguntas e dos vazios ali deixados.

Ao trabalhar com o objeto memorial, considerando o passado a que se volta, passamos a percebê-lo pelo que suscita a partir de sua presença no espaço expositivo - não tentamos incumbi-lo um valor aurático, a não ser pelo que sua existência denote na direção das memórias de quem o observa. Deste modo, empunhamos a luz daquilo que resta pela sua atuação presente, afim de lançá-los dentro de sua capacidade crítica e criativa inerente, em uma relação inventiva e ao mesmo tempo direta com o mundo.

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conclusão

Da trajetória findada na universidade, levo questões que se ampliam a cada passo que percorro. Quero libertar os objetos e as imagens de seu sentido primevo, de sua aura divina, de sua superfície produtiva. Pretendo o alcance do detalhe invisível, da pretensa identificação da sensibilidade nos corredores da memória.

À luz das palavras de Lúcia Castello Branco, que ensaia sobre a memória constituída da perda como sedimento para construção da história, procuro lançar minha reflexão acerca das inconclusões que contornam meu trabalho.

Sem medo de lançar-me dentro da história, torno meu corpo fragmento, subjetivando a ausência através de restos como matéria. Naquilo que falta, que não podemos al-cançar, no ruído passado como forma viva. Busco um gesto fracassado, que alcance a amplitude de significados de um vazio que não é falta, mas um intervalo entre sentidos. Ao ter que eleger trabalhos como decorrências de meus interesses, vou de encontro com a descontinuidade de minha própria memória, fazendo ficar aquilo que significa. Considero enfim, o processo do pensamento como uma ficção. Enuncio em minhas palavras uma edificação sistemática na qual busco me libertar de qualquer significa-ção oclusa. Se estou a falar de passado no presente, devo entender minha obra como um corpo vivo. Temo mortificá-lo através de percepções lançadas por ele e pretendo, sobretudo, que me encontrem através das migalhas que sejam atravessadas pelo aca-so. Quando me encontrarem, nos trabalhos dos outros artistas, na leitura de um verso, ou na incompletude de uma imagem, quando houver por mim a lembrança a partir de qualquer outra coisa do mundo que não seja eu, aí sim, começará a valer meu gesto enquanto trabalho.

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Inga #03 | série LITVALise Sarfati

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Retrato de Kafka ainda criança, mencionado por Walter Benjamin

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série L’HotelSophie Calle

1981

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série L’HotelSophie Calle

1981

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série FaunaJoan Fontcuberta

1987

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série FaunaJoan Fontcuberta

1997

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série Pré-HistóriaSofia Borges

2010

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fotografia de Timothy O’Sullivan mencionada por Rosalind Krauss

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série Seu Mundo ao Meu Redor2009

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série Self-Portrait Investigation2009

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estudo para série Paisagens de Memória2011

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série Fronteiras2010

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frames da instalação LugarAlgum2011

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vista geral da instalação Arquivo de Obras em Acabamento no Centro Cultural da UFMG (acima) e no Museu Nacional de Brasília

2012

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vista geral da instalação Guerra dos Perdidos no Museu Memorial de Minas2013

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detalhe da instalação Guerra dos Perdidos no Museu Memorial de Minas2013

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Atlas de Construção (detalhe) | Arquivo de Obras em Acabamento2012

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Silêncio | Arquivo de Obras em Acabamento2012

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Souvenir (detalhe) | Arquivo de Obras em Acabamento2012

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Janela | Arquivo de Obras em Acabamento2012

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detalhe da instalação Guerra dos Perdidos no Museu Memorial de Minas2013

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Guerra dos Perdidos2013

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