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A SITUAVAO LlNGUiSTICA NACIONAL - Catedra Português1989).pdf · que pode caracterizar-se como sendo urn pais plurilingue, onde a grande maioria da populacao (mais de 95%) tern como

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OEZEt18RO 1989 N~2 C==:::::::3:~••••••••• 1

Situa9QO Linguistica em M09ambiqueOpQoes de Escrita (')

O. PROPOSTA DE BASE

AfJ1 est. comunicacao, gostaria de pro-por uma reflexao sobre 0 fen6-meno literario rnocambicano, apartir de uma perspectiva linguis-

tica. Procurarei assim captar a diversidadede opcoes de escrita que se exibem na lite-ratura produzida em Mocambique nao ape-nas no que diz respeito a lingua que cadaescritor adopta na sua obra, mas relativa-mente a outras componentes Iinguisticas,cuja compreensao parece beneficiar dumaabordagem que tome como base a situa-c;ao linguistica nacional.

Considero pressuposto de base para estaanalise distinguir os rnetodos, necessaria-mente diferentes, utilizados no tratamentoda linguagem, conforme se trata de exami-nar 0 seu uso corrente ou na literatura.

Perperua Gonra1ves

Assim, os jufzos formulados pelo linguistasobre as propriedades dos textos, orais ouescritos, produzidos pelos falantes em situa-coes sociais de comunicacao, sao juizos degramaticalidade ou aceitabilidade, em quese procuram identificar as regras e princi-pi os que regulam 0 usa das Hnguas natu-rais. E este tipo de investigacao que podeconduzir a estabelecer a chamada norma--padrao, a partir da qual se definem osfen6menos de variacao, constituidos por«desvios» ou «derivas» a essa norma. Poroutro lado, no que diz respeito a lingua-gem literaria, esta nao se deixa descrevera partir de tais juizos Iingulsticos, sendonecessario utilizar outros instrumentos depesquisa que permitam a identificacao dosseus aspectos criativos e a caracterizacaoda sua estetica.

Ao propor uma observacao da escrita lite-raria mocambicana a partir de um pontode vista lingufstico, nao pretendo, por con-seguinte, sobrepor estas distintas metodo-logias de trabalho, mas colocar de algummodo a inforrnacao lingufstica ao serviceda literatura mocambicana. Esta perspectivaperrnitira assim uma leitura das suas obras,a partir da qual se definem elos de conti-nuidade, pontos de ruptura e solucoes ino-vadoras relativamente ao panorama linguis-tico nacional.

(I) Comunicacao apresentada ao I Congresso de Escritores de Lingua Portuguesa (Lisboa, Marco de 1989) e publicada narevista Tempo (Maputo, Abril de 1989).

• Universidade Eduardo Mondlane. Por lapso, a cornurucacao da aurora ao 1.0 Encontro da AULP, foi publicada no nurnero1 desta revista com 0 titulo «Vartacoes do Portugues dentro do Ponugues», cabe-nos agora ernendar esse erro: leia-se.conforme foi entao indica do no indice, -vanacces do Portugues por dentro do Portugues •.

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social tsonga, mas que os falantes adoptamna sua comunicacao em ronga ou changane.

1. A SITUAVAO LlNGUiSTICA NACIONAL

Do ponto de vista linguistico, Mocambi-que pode caracterizar-se como sendo urnpais plurilingue, on de a grande maioria dapopulacao (mais de 95%) tern como Iinguamaterna uma Iingua da familia designadacomo «banto». Nos cas os de exodo rural,em que os falantes destas lfnguas deixama sua zona de origem e se instalam nos cen-tros urbanos, a primeira geracao (e talvezainda a segunda) conserva a sua linguamaterna, pelo menos em situacoes decornunicacao em meio familiar. Neste caso,entretanto, ocorrem geralmente fenomenosde variacao, em que estas linguas sao afec-tadas a nivel lexical, morfologico e sintac-tico. Nas lfnguas de longa tradicaourbana - como 0 ronga e 0 changane nacidade de Maputo - e comum 0 fenornenodesignado como «alternancia de codigos»(<<code switching») verificando-se que, noseu discurso corrente, os falantes introdu-zem frequentemente termos, expressoes eate mecanismos gramaticais retirados da lln-gua portuguesa. A titulo exemplificativo:

- ha process os gramaticais com tendenciaa desaparecer, como acontece no caso dosufixo verbal - eta, atraves do qual seinsere na estrutura argumental do verba urnnovo complemento com a funcao de «bene-ficiario», 0 verba Ku sweka (cozinhar) podeassim significar cozinhar para (alguem)desde que seja inserido 0 sufixo - eta,usando-se neste caso a forma Ku sweketa.as falantes de ronga ou changane da cidadede Maputo tendem actualmente a substituirsistematicamente este sufixo por urn pro-cesso sintactico, realizado pela preposicaoportuguesa para, introduzida no seu dis-curso sem qualquer rnodificacao fonetica,- a nivel lexical, pode observar-se 0 usode termos do Portugues, mesmo em casosem que estes ernprestimos nao se devema inexistencia no lexico destas linguas deitens que desempenhem uma funcao refe-rencial identica. Estao neste caso verboscomo Ku gwenta ou Ku limoa, respectiva-mente aguentar e lirnpar, que nao desig-nam obviamente accoes alheias ao mundo

Quanto ao Portugues, lingua oficial, dadoo panorama lingulstico arras apresentado,facilmente se deduz que este funciona, anivel nacional, essencialmente como linguasegunda. De acordo com 0 Recenseamentode 1980, cerca de 25% dos falantes de lin-guas do grupo banto teve acesso a apren-dizagem do Portugues, sendo muito variadoo grau de dorninio desta lingua. A normaestabelecida como alvo para adopcao noensino, nos meios de comunicacao e nostextos oficiais e a norma-padrao europeia.A sua situacao de lfngua segunda, entre-tanto, da, naturalmente, origem a alteracoesas regras que regulam 0 seu uso na varianteeuropeia. Estas modificacoes situam-se nosniveis lexical, morfologico e sintactico,como acontece com as Iinguas maternas,e ainda no plano fonologico, aparecendosobretudo afectado 0 seu sistema vocalico.A titulo exemplificatico:

- a nivel sintactico, verifica-se a ocorren-cia de construcoes que nao sao permitidaspelas normas do Portugues, como no casode passivas «dativas» do tipo «Iiu jui ditoque...», em que 0 complemento com a fun-cao gramatical de objecto indirecto ocupaa posicao sintactica de sujeito;

- as inovacoes lexicais sao frequentes epodem, entre outros processos, ser produ-zidas a partir de mecanismos de derivacao(fazer bicha - bichar) ou pelo uso de ter-mos existentes em Portugues, com senti dodiferente (eacabar urn mes num lugar. =

«[icar num lugar ate passar um mes).

Em suma, independentemente da suaimportancia quantitativa, parece legitimoconsiderar que existem em Mocambiquedo is grandes grupos linguisticos. dum lado,as lfnguas maternas da maior parte dosfalantes, pertencentes ao grupo banto e, dooutro, a lfngua oficial, 0 Portugues, usadoem geral como lingua segunda. Em cadaurn destes grupos lingufsticos, podemestabelecer-se duas formas de utilizacao: 0

seu uso segundo a norrna-spadrao» e 0 seuuso «desviante». Como seviu, quer se 7

"'OUfflMO~MNY""""""II""""""""""trate do Portugues au das lfnguas bantas,as fen6menos de variacao que ocorremnestas lfnguas sao produzidos pelas multi-plas situacoes de contacto linguistico,criadas pela dinamica social existenteactualmente em Mocarnbique (exodorural/urbanizacao: escolarizacao em Portu-gues, unica lingua permitida no ensinooficial...).

Tomarei este breve percurso pela reali-dade linguistica mocambicana, apresentadoduma forma deliberadamente nao exaustivaa fim de nao bloquear a visao de conjunto,como base, suficiente, para a estabeleci-menta das relacoes entre lfngua(s) e litera-tura, anunciado inicialmente.

A minha proposta e a de observar a fen6-meno literario mocambicano a partir destasituacao Iinguistica, procurando identificara representatividade nao tanto das variaslinguas usadas em Mocambique, mas sobre-tudo a modo como - no seu usa «padrao»au «Iesviante» - elas estao presentes ausao retomadas pelos escritores. Tendo emconta a especificidade da escrita em poe-sia, construida em geral a partir de ruptu-ras e transgressoes as normas discursivas,parece-me prudente que esta analise sedebruce essencialmente sabre as obras lite-rarias em prosa.

2. OPQOES DE ESCRITA

Por razoes que nao cabe no ambito destacomunicacao examinar, pode dizer-se que,em Mocambique, a literatura escrita e, nosnossos dias, uma literatura em Portugues.

Ate hoje, apenas GABRIEL MAKAVI naAfrica do Sui e BENTO SITaE em Mccarn-bique escreveram e publicaram numa lfn-gua banta, a Tsonga. Na obra deste ultimoescritor, em prosa, e usada a norma queconsidera «padrao», havendo mesmo a

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preocupacao de nao s6 evitar as formas«desviantes» como ate de recuperar estru-turas que, actualmente, as falantes parecemter tendencia a abandonar. Estes dais escri-tares sao, nos nossos dias, as unicos repre-sentantes, na literatura escrita, do grandegrupo populacional que usa, como princi-pal meio de comunicacao, lfnguas do grupobanta. Par outro lado, nenhum escritormocambicano pretendeu ainda retomar o(s)uso(s) desviante(s) de algumas destas lin-:guas, nao parecendo sequer que existamcandidatos a urn tal tipo de escrita.

as outros escritores mocarnbicanosescrevem em Portugues. Porem, optar parescrever em Portugues em Mocambique etalvez a primeira decisao, eventualmente aprincipal opcao de escrita, mas nao signi-fica em todos as casas a mesma forma deutilizacao desta lfngua. Com efeito, veri fica--se que, no ambito do panorama linguis-tico aqui apresentado, a escrita em Portu-gues acaba par reflectir au, pelo menos,dar indicacoes sabre esse complexo painel,quer se trate au nao de urn acto deli be-rado par parte dos varies escritores.

Sem pretender hierarquizar as obras lite-rarias segundo algum criteria que as dis-tinga quanta a sua qualidade au valor este-ticos e, par outro lado, sem pretenderapresentar aqui urn levantamento exaustivo,procurarei em seguida identificar varias for-mas de apropriacao do Portugues pel asescritores mocambicanos.

Em primeiro lugar, e dum modo aindamuito geral, podem estabelecer-se na lite-ratura mocambicana duas tendencias prin-cipais: existe urn grupo de obras produzidopar escritores que parecem optar pelo usanormativo do Portugues, au melhor, quenao parecem querer adoptar na sua escritaas alteracoes a «norma" europeia, observa-veis no discurso dos falantes (I); a outrogrupo de obras integra as escritores quepare cern querer retomar a ja referido usa«desviante» do Portugues.

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(I) Refiro-me a opcao de escrita que parece estar subjacente na obra destes escritores e nao ao -resultado- linguistico pro·priamente dito, ja que ocorrem nas suas obras alguns casos de «iesvios- a norma estabelecida como alvo.

A tiliter

_ IOFoeOI OUVIR f FAlAR •••••••••••••••

Quanto as obras inclufdas no primeirogrupo, verifica-se que estas nao constituemum todo homogeneo, ja que, por dentrodo tecido discursivo e!aborado em Portu-gues (nao «desviante»), se detectam diferen-cas significativas:

- hi escritores, como ALBINO MAGAIApor exemplo, que representam, por assimdizer, 0 usa oficial do Portugues. os temase as personagens sao de inspiracao mocam-bicana mas a lingua e usada segundo asregras da norma europeia, incluindo 0lexico utilizado;

- noutras obras, como em ANIBAL ALE-LUlA, escritas segundo a mesma norma, saousados termos de varias Ifnguas bantasmocambicanas, que nao parecem ter equi-valente em Portugues e que sao explica-dos atraves de um glossario. Trata-se assimda insercao de termos lexicais dessas lfn-guas num discurso literario produzido emPortugues-padrao,

- por fim, e necessario assinalar umoutro tipo de texto, de UNGULANI BA KAKHOSA, que parece ser ainda um caso iso-lado na literatura mocambicana, emboraesteja igualmente inserido neste grupo queadopta a norma - «padrao- europeia. Esteescritor emprega estrategias de escrita quetrazem para 0 texto em Portugues essaoutra realidade lingufstica nacional, consti-tuida pelas Ifnguas bantas. Assim, em Uala-lapi, BA KA KHOSA nao s6 usa termos des-sas Ifnguas, como incorpora, no pr6priotexto (e nao atraves de um glossario, porexemplo), a explicacao do significado detais termos, utilizando a mesma linguagemliteraria que caracteriza a sua narrativa:

«0 odor nauseabundo do sangue quecobriu a aldeia durante aque!es mesesfatidicos em 0 nkuaia (ritual anual esagrado em que os subditos, provenien-tes de todos os cantos do imperio, acorte se dirigiam)» [UALALAPI: 41]

Alern deste processo, as Ifnguas (e ate acultura) bantas estao presentes na sua obra

..Eat raves de uma especie de traducao literalde formas retiradas do seu usa social. Nestecaso, 0 escritor nao se limita a irnportacaode term os lexicais das Ifnguas bantas, maselabora ja um discurso literario em Portu-gues, que s6 parece possivel produzir a par-tir desse substracto lingufstico:

«- Para onde vai 0 fumo vai 0 fogo,Malule.

- Nunca his-de encontrar agua raspandouma pedra. Deixa-me falar. Euconheco a verdade. Vivi na corte.

- Mas qual e 0 homem que nao temranho no nariz, Malule?» [UALALAPI:44]

Quanto aos escritores que optam porincluir nas suas obras as alteracoes lexicais,morfol6gicas ou sintacticas que ocorrem nodiscurso corrente, e interessante assinalarque, em todos os casos se trata de falantesque conhecem e dominam as regras davariante europeia do Portugues. Por estarazao, pode considerar-se que, neste grupo,o usa de formas «desviantes» constitui ple-namente uma opcao da sua escrita litera-ria. Entretanto, tal como no caso anterior,tambern neste grupo se distinguem diferen-tes formas de utilizacao deste «codigo» lin-gufstico,

- alguns escritores parecem pretender«conservar», na sua obra, as construcoes talcomo os falantes as utilizam, sem uma ree-laboracao muito evidente desse discurso.Esta opcao, historicamente datada, parececonstituir essencialmente um acto polftico,at raves do qual 0 escritor reconhece a essaforma de usar 0 Portugues um estatuto taovalido - mesmo para a expressao litera-ria - quanta 0 da sua norma-vpadrao».Incluo neste grupo poemas como «Eubebeu suruma no teu olho» (I) de RUINOGAR ou 0 texto «Rosita ate morrer» deLUIS BERNARDO HOMWANA;

- noutros casos, como em MIA COUTO,o escritor parece regular-se pelas «regras»

(I) A titulo excepcional, incluo aqui urn texto de poesia, dado 0 caracter quase sirnb6lico que este poerna adquiriu na 29literatura escrita em Mocambique.

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_ OEZE!18RO 1989 N22 -_~ __ --~~.--:;,.~--- .-J

que se detectam nos fenomenos de varia-c;:aodo Portugues, para conduzir 0 seu pro-prio processo criativo. As propriedades douso «desviante» - desde as inovacoes lexi-cais ate a adopcao de mecanismos sintacti-cos deste discurso nao normativo - saoassim retomadas como base para a produ-c;:ao da escrita literaria:

«ESCREVENCIAS DESINVENTOSASEstava eu predispronto a escrever maisuma cronica quando recebo a ordem:«nao se pode inventar palavra». Nao souhorn em de argumento e, par isso, medeixei». [CORONICANDO: 21]

3. HORIZONTES DA ESCRITA

Estas sao algumas pistas que podem con-tribuir para alargar 0 nosso conhecimentoda literatura escrita mocambicana, sem con-tudo dar conta dos processos esteticosenvolvidos em cada urn dos niveis de usodo Portugues que aqui faram referidos.

A literatura mocarnbicana escrita em Por-tugues constitui, como se pede observar,urn corpo heterogeneo, em que nao parecepossivel, na fase actual pelo menos, esta-belecer, a nfvel iinguistico, linhas dorninan-tes ou tendencias evolutivas definidas. Nointerior da propria obra de cada escritor,parece haver ainda indecisao sobre 0 usoda lingua ou das Ifnguas que compoern 0

mosaico lingufstico mocambicano. A estenivel, a literatura moc;:ambicana escrita emPortugues exibe ainda urn certo caracterexperimental que abre urn rico campo acriatividade individual. A exploracao pelosescritores das potencialidades proporciona-das pela realidade linguistica do pais podeainda vir a surpreender-nos, atraves decombinacoes inesperadas das pecas dessemosaico. No momenta actual, nao estao demodo algum esgotadas as possibilidades deaparecimento de novas formas de apropria-cao dessa realidade, que nao queremos ounao somos talvez capazes de predizer.

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