A umbanda um enquadre histórico-crítico

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    A umbanda

    2.1-

    A umbanda: um enquadre histrico-crtico

    Antes de falarmos propriamente da umbanda, necessrio situar o tema em meio

    aos estudos acadmicos produzidos no Brasil sobre as religies de matriz africana em geral

    produzidos no Brasil. Dessa forma, ser possvel obter um panorama da constituio dessa

    que a mais jovem dentre as religies afro-brasileiras (com menos de um sculo) e

    esclarecer por que foi relegada a segundo plano por alguns estudiosos brasileiros. No se

    trata de uma densa reviso bibliogrfica acerca do tema, mas, sim, de recortes que fizemos

    das obras que julgamos importantes para a compreenso do que nos propusemos a estudar.

    Visitamos os autores pioneiros, ou clssicos: Nina Rodrigues, Arthur Ramos, dison

    Carneiro e Roger Bastide, que produziram seus trabalhos nas primeiras cinco dcadas do

    sculo passado; passando, em seguida, a trabalhos mais recentes e pontuais sobre a

    umbanda produzidos nas dcadas de 1970, 1980 e 1990, por Renato Ortiz, Diana Brown eLsias Negro. Ainda est entre os autores que escolhemos Beatriz Dantas que, embora no

    tenha a umbanda como tema como esses ltimos, nos traz importante contribuio para

    pensar o lugar que ela ocupa no campo religioso brasileiro.

    mister pontuar que o interesse pelo negro e sua cultura por parte dos primeiros

    estudiosos no produto de um encantamento, mas sim da busca de um entendimento

    acerca desse que agora no mais escravo, mas cidado, que tem um novo lugar na

    sociedade e, por isso, torna-se uma ameaa ao branco, o que se expressa nos dizeres deNina Rodrigues:A escravido se extinguiu, o negro um cidado como qualquer outro, e

    entregue a si poderia suplantar ou dominar o branco (1977, p.4). A monografia de Nina

    Rodrigues1 ,L`animisme ftichiste ds ngres de Bahia,publicada em 1900, foi dirigida

    comunidade internacional. A discusso a que se props abordava a inferioridade do negro

    1 indiscutvel o pioneirismo do mdico-legista Raymundo Nina Rodrigues nos estudos das religies afro-africanas, em particular o candombl. Antes mesmo da publicao de sua monografia dedicada SocitMdico-psycologique de Paris em 1900, j havia publicado parceladamente e em lngua portuguesa o textonuma revista brasileira quatro anos antes (cf. Augras, 2000b, p. 48).

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    como raa e pretendia justificar por isso os atrasos da sociedade brasileira em relao

    europia que no sofreu influncias do negro.

    Foram os candombls de Salvador nos fins do sculo XIX que Nina Rodrigues toma

    como campo de pesquisa. Esse campo era privilegiado para o estudo do negro, j que se

    caracterizava em espaos de moradia, reunio e vivncias culturais e religiosas dele. No

    podemos falar da origem dos candombls a no ser num campo de probabilidades. Assim

    sendo, os primeiros candombls da Bahia remetem as suas fundaes a meados do sculo

    XIX. Os candombls se caracterizavam por uma tentativa de reinventar a frica no Brasil

    (uma frica mtica). Desde o espao fsico utilizao do tempo, nos candombls se

    resgataram (e criaram) famlias e povos, tradies, costumes e lnguas, antepassados edeuses, e o culto desses ltimos o cerne dessa tradio.

    Trs a cinco milhes de negros foram trazidos para o Brasil com o trfico negreiro.

    Parte deles era provinda da Nigria, Nger, Benin, Gana... e outros, os bantos, de Angola,

    Congo, Moambique, Zmbia ... Os candombls dividiram-se em naes que se

    estabeleciam no agrupamento de etnias com lnguas e costumes comuns, fazendo assim

    uma bricolagem afro-africana. Entre elas, Nina Rodrigues e seus seguidores privilegiaram a

    tradio gge-nag2, criando uma hegemonia que s foi questionada na dcada de 19803.

    Para Nina Rodrigues (1935), o negro, pela prpria inferioridade de sua raa, no

    teria capacidade de alcanar as elevadas abstraes do monotesmo. A converso ao

    catolicismo por parte desse no passava de justaposio de exterioridades, uma

    adaptao fetichista ao catolicismo. Por isso, apontava o empreendimento catequtico

    como iluso. Buscava demonstrar que o fetichismo africano dominava as prticas

    religiosas de negros crioulos e mestios na Bahia, atraindo mesmo brancos e mulatos.

    Ainda assinala (1977) a extraordinria resistncia e a vitalidade destas crenas negras,

    apesar dos preconceitos e perseguies.As obras de Nina Rodrigues inauguram com maestria os estudos nesta rea, embora

    tenha aceitado sem discutir a perspectiva evolucionista e racista de sua poca. Alm destas

    duas grandes obras, ele ainda nos deixa algumas outras publicaes de menor porte.

    2 Apresentaremos esta grafia somente quando apresentada pelos autores, optamos por usar a grafia jeje-nag.3 Beatriz Gis Dantas, no ano 1982, defende na Unicamp a sua dissertao de mestrado, que questiona ahegemonia religiosa do modelo (jeje) nag. Aponta este fato como uma articulao do grupo dominante emrelao aos demais.

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    Seguindo os passos de Nina Rodrigues, o seu colega de trabalho Arthur Ramos dedica-se

    aos estudos do negro. No entanto, esse autor coloca a discusso de seu predecessor em

    termos culturais e no mais raciais: No endosso absolutamente, como vrias vezes tenho repetido, os postulados deinferioridade do negro e da sua incapacidade de civilizao. Essas representaescollectivas existem em qualquer grupo social atrazado em cultura. uma conseqencia dopensamento magico e pre-logico, independente da questes anthropologico-racial(1988,p.23).Outro passo adiante de Nina Rodrigues que Arthur Ramos estende o alcance de

    sua pesquisa. Diz em O negro brasileiro:

    O presente trabalho o primeiro resultado de um largo inqurito procedido diretamentenos candombls da Bahia, nas macumbas do Rio de Janeiro e nos catimbs de alguns

    Estados do Nordeste, sobre as formas elementares do sentimento religioso de origem negrano Brasil (1988, p. 22).

    Arthur Ramos tambm elege a tradio gge-nag como referncia. Isso fica

    nitidamente marcado em sua obra, quando, nos captulos referentes a essa, fala em religio,

    enquanto nos demais aponta tal tradio como culto (seita). Este autor nos oferece um

    extenso texto etnogrfico com informaes acerca do panteo de algumas cerimnias, da

    hierarquia, da diversidade religiosa entre os negros etc.

    Estudando os cultos de procedncia banta que estavam concentrados no Sudeste dopas, Arthur Ramos classifica-os como contraparte dos candombls baianos. Isso por julgar

    que eles apresentam uma ritualstica empobrecida, sendo quase que absorvidos por outros

    sistemas religiosos mais sofisticados. O autor considerava quase inexistente a

    independncia desses cultos: No entanto, elles existem deturpados e transformados nos

    candombls e nas macumbas de vrios pontos do Brasil, quasi irreconhecveis pela obra

    rpida de symbiose das espcies mytichas (idem, p.76). Nina Rodrigues j acenava para a

    dificuldade em encontrar elementos propriamente bantos entre os negros, o que enuncia

    taxativamente: eu procurei em vo, entre os afro-bahianos idias religiosas, pertencentes

    aos negros bantus (citado por Ramos, 1988, p.76). Arthur Ramos, entretanto, encontra, em

    literatura internacional4 sobre os povos de Angola e Congo, informaes de que esses

    povos tm um verdadeiro culto aos antepassados e espritos, o que ele entende como causa

    de os cultos bantos terem se fundido s prticas do espiritismo. Observa que Em algumas

    4 Faz referncia aos estudos realizados por Chatelein em Angola e E. Taylor no Congo, respectivamente notasde rodap 22 e 23 da p. 83.

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    macumbas cariocas, as sacerdotizas do culto so mesmo chamadas mediuns (medias,

    dizem os negros) e o ritual o processo clssico de evocao dos espritos (idem,p. 83).

    O sincretismo sinalizado por Arthur Ramos constitui-se de uma curiosa mescla;

    primeiro, os vrios cultos africanos que se amalgamaram entre si; depois, com as religies

    brancas: o catolicismo e o espiritismo e, por fim, com elementos amerndios, aparecendo

    ainda vultos do folclore europeu. As culturas mais adiantadas eram absorvidas pelas mais

    atrasadas. Esse autor faz uma classificao em ordem crescente desse sincretismo (que

    entende como degradao): ocupa o primeiro lugar o modelo gge-nag e o ltimo,

    gge-nag-musulmi-bantu-caboclo-esprita-catlico. E ainda diz que esta ltima

    modalidade que predomina no Brasil, entre as classes atrazadas negros, mestios ebrancos da populao (idem, p. 127). nessa que inconteste est situada amacumba

    carioca. Observamos que o termo macumba (de traduo imprecisa, sendo, por vezes,

    identificado como um instrumento de percusso), desde cedo se tornou genrico das mais

    variadas formas de cultos negros, exceto os candombls jeje-nag, e comumente se lhe

    atribui um sentido pejorativo.

    Os termos quimbanda, umbanda e embanda (do mesmo radical mbanda) to

    comuns hoje como designativos desses cultos, foram registrados por Arthur Ramos como

    variaes de um mesmo ttulo sacerdotal entre os povos de Angola, significando o

    feiticeiro, o curandeiro, o evocador dos espritos, o que dirige as cerimnias (idem,p. 88 e

    94). Nas macumbas cariocas, esses termos aparecem com significaes ampliadas: tanto

    pode ser o curandeiro quanto arte, lugar de culto ou processo ritual. Falam ainda em linha

    de umbanda no sentido de prtica religiosa; alguns apresentaram como nao e outros,

    como um esprito poderoso da nao umbanda. O autor pe-se ento a traar linhas de

    diferenciao entre a macumba e o candombl. Refere-se primeiramente simplicidade do

    culto: o chefe de macumba ou Umbanda chamado tambm pae do terreiro porinfluncia nag. Mas o ritual de uma extrema simplicidade, em parallelo com a

    complexidade da liturgia gge-nag (idem, p.94). Pontuamos que esta simplicidade

    entendida como simplificao uma progressiva desafricanizao da bruxaria nos

    termos de Fernando Ortiz5, passando mesmo ao lugar de folclore. Esse autor igualmente

    assinala que Os terreiros tambm so toscos e simples, sem aquela theoria de corredores e

    5 Citado por Ramos, idem,p.130.

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    compartimentos dos terreiros gge-yorubanos (idem, p.94). Isso aponta para um

    esvaziamento da dimenso social em detrimento das prticas rituais mgico-fetichistas

    individualizadas. Observa ainda que os terreiros Quasi sempre tomam o nome do santo

    protector ou do esprito familiar que evocado successivamente por vrias geraes de

    paes de santo (idem); o que denota a expressividade do sincretismo nesses cultos.

    Foi no terreiro de Honorato6, situado poca no alto de um morro de Niteri (RJ),

    que Arthur Ramos realiza parte de suas observaes. Esse terreiro era dedicado a Ogum

    Meg7; para o autor, em conseqncia do sincretismo gge-nag: Mas no o fetiche de

    Ogun que est l, como aconteceria num pegi yorubano8. o seu correspondente

    catholico, que no Rio (...) S. Jorge (idem,p. 96). Arthur Ramos ainda pontua:O que caracteriza, porm, a macumba de influencia bantu, no o santo protector, mas umesprito familiar que, desde tempos immemoriaes, surge invariavelmente, encarnando-se noUmbanda (...). No terreiro do Honorato, esse esprito o Pae Joaquim9 (...). ele quem,aps os cnticos iniciaes ao santo protector, d incio aos trabalhos (idem).

    E relata o registro que fez da presena de Pae Joaquim no terreiro de Honorato:

    sua passagem, todos se curvam e lhe pedem a bno. Elle vae abraando velhosconhecidos. Como se tivesse chegando de uma longa viagem. Interroga pelo estado desade de cada um, d conselhos, resolve dificuldades, exactamente como em Angola, osespritos familiares, como vimos, intervinham nas tricas e negcios domsticos para

    resolv-los com conselhos avisados (idem,p. 99).

    H uma infinidade de santos e espritos cultuados em falanges, esses de procedncia

    igualmente mltipla, pertencentes a vrias naes ou linhas:

    H a linha da Costa, linha de Umbanda e de Quimbanda (termos estes j de significaotranslata), linha de Mina, de Cambinda, do Congo, linha do Mar, linha cruzada (unio deduas ou mais linhas), etc. (idem,p. 96s).

    Quanto mais poderoso o sacerdote maior o nmero de linhas em que trabalha10.

    No terreiro de Honorato, as filhas e os filhos de santo so tambm chamados mdiuns, por

    influncia do espiritismo. Arthur Ramos, como vimos, j havia registrado noutras

    6 Importante personagem na constituio da umbanda no Rio de Janeiro.7 Orix da Guerra, cultuado nos terreiros gge-nag.8 Referente a etnia yorub dos povos da Nigria, Niger etc, que aqui ficaram conhecidos por nags.9 Trata-se de um dos mais aclamados pretos-velhos cultuados na umbanda at os dias atuais. tambm a este

    preto-velho que vem sendo destinado o culto no tmulo de Jos Joaquim de Almeida no cemitrio So JooBaptista, zona sul do Rio de Janeiro, a partir da associao feita entre a esttua em bronze sobre o tmulo e oPai Joaquim.10Observamos que esta uma referncia vlida at hoje para os umbandistas.

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    macumbas. E os cnticos so acompanhados de palmas e instrumentos de percusso. O

    culto observado pelo autor se d primeiro com a invocao do santo protetor, seguido da

    invocao aos espritos dos antepassados, dos deuses familiares e de outras divindades

    amigas (idem, p. 98).

    Arthur Ramos finaliza o seu captulo dedicado aos cultos de procedncia banta

    falando que existem sim esses cultos, mas, como j havia observado, de difcil

    identificao, haja vista a simbiose religiosa: Com effeito, a religio dos negros e mestios

    brasileiros, resultante, como temos affirmado repetidas vezes, de um vasto sincretismo.

    Vale-nos ressaltar que, na compreenso de Arthur Ramos, essa inferioridade do negro

    brasileiro (to bem expressa no sincretismo religioso criado por ele) era passvel desuperao, sendo que no se tratava de um problema tnico, mas cultural. Ele acreditava

    que os padres da sociedade moderna (e racionalista) iriam modificar e substituir os

    elementos componentes da sua mentalidade atrasada.

    Outro autor importante entre os pioneiros nos estudos das religies afro-brasileiras

    Edison Carneiro, que concentra seus estudos na cidade de Salvador. Interessado no folclore

    e na cultura popular, sobretudo, de origem africana, no incio dos anos 1930, comea suas

    observaes, registrando neste perodo seus escritos em forma de artigos e crnicas em

    jornais locais11 e, mais tarde, escreve em coletneas e revistas especializadas no Brasil e no

    exterior. Teve um papel importante no estudo e divulgao do folclore brasileiro, deixando

    extensa bibliografia. Carneiro marca seu trabalho pela ausncia de discusses tericas

    explcitas; o que no tira o mrito de suas sbrias e sensveis observaes etnogrficas. De

    partida, o que o diferencia de seus predecessores a simpatia com que se prope a estudar

    os cultos bantos, como os candombls de caboclo. Tenta mesmo tirar-lhes da posio de

    inferioridade a que foram dispostos em estudos anteriores. Contudo, parece no realizar seu

    intento; ao contrrio, incide nos mesmos enganos e preconceitos de seus pares.Edison Carneiro acredita na superioridade do modelo jeje-nag e que este se

    expande por todo o pas como modelo dominante. Com isto, considera que A liturgia de

    influncia banta, no Brasil, no difere muito da jeje-nag, de que , mesmo, uma imitao

    servil (1981, p.185). A cultura banta mais uma vez tomada como no tendo consistncia

    prpria; o que favoreceria sua abertura obra do sincretismo religioso, como j assinalara

    11 Em 1936 escreveu para O Estado da Bahia e em 1937 para oBahia-Jornal.

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    Arthur Ramos. Quanto influncia do catolicismo, por exemplo, Edison Carneiro aponta

    que os bantos no fazem simplesmente uma associao dos orixs aos santos catlicos, o

    que observa ser geral em todas as religies negras. Ao contrrio, apropriam-se dos

    smbolos, das crenas e dos personagens dessa tradio como se lhes fossem prprios. Ele

    diz:Nos candombls afro-bantos, notei a presena dos mais altos smbolos do catolicismo,

    cercados pelo mesmo respeito que lhes dedicam os cristos de todo o mundo (idem). A

    apropriao desses outros valores lhe afirma a inconsistncia mitolgica e ritual dos

    bantos, que entende como degradao (distanciamento das origens).

    Os candombls bantos so os candombls de caboclo12, tidos como resultado da

    fuso da mitologia banta (influenciada pela jeje-nag e mal) com a mitologia dosselvagens da Amrica Portuguesa. Neles, so cultuados os novos orixs, alheios ao

    panteo africano, vestidos em penas e trazendo nas mos arcos, flechas e lanas: os

    caboclos, que se multiplicam e diversificam a cada dia e so apresentados to poderosos

    quanto os outros. Edison Carneiro diz que e stes candombls de caboclo so formas

    religiosas em franca decomposio (1981, p.136). Entende que esses, aceitando essa

    intromisso de vrios elementos estranhos, s tendem a perder a sua precria independncia

    e vitalidade, acreditando que venham a sobreviver to somente sombra dos candombls

    jeje-nag.

    Sua opinio se agrava a esse respeito quando observa a passagem dos candombls

    de caboclo s sesses de caboclo, que so marcadas pelo exerccio da medicina mgica e

    nas quais se sobrepe a influncia esprita kardecista s demais (amerndia, africana e

    catlica):

    Por isso chamei essas sesses de ponte para a adeso completa ao baixo espiritismo,ltimo cadinho porque passaro as concepes mticas antes de se incorporarem aoinconsciente coletivo da nacionalidade (1981, p.238s).

    Embora tenha realizado diversos registros dos cultos bantos: candombl, capoeira,

    jongo, samba, festa do boi etc., apontando assim para a presena expressiva dessa cultura

    em meio cultura nacional, logo, para a sua importncia, Edison Carneiro interpreta, pelos

    pressupostos da inconsistncia desse modelo calcado na supremacia jeje-nag, que todo

    12 Edison Carneiro adota o termo candombl de caboclo, generalizando a todos os candombls afro-bantos;por deduzir, na poca de suas pesquisas, que existia apenas um candombl propriamente banto, no-caboclo,que era o candombl de Santa Brbara, chefiado por Manuel Bernardino da Paixo, no Bate-Folha (1981,133).

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    esse complexo cultural est fadado ao fim: ser definitivamente desarticulado pela cultura

    (nacional) dominante e anonimamente incorporado coletividade.

    A partir das observaes feitas pelos intelectuais baianos13, nas quais os cultos

    bantos so apresentados, nos dizeres de Arthur Ramos, como de uma mythologia

    pauperrima, comparando-se aos candombls jeje-nag, o socilogo francs Roger Bastide,

    um dos principais estudiosos das religies afro-brasileiras, prope outras interpretaes,

    embora no v desconsiderar o juzo emitido pelos que lhe antecederam.

    As religies africanas no Brasil, para Bastide (1971), moldaram-se sob os efeitos

    das mudanas da sociedade brasileira, em particular no regime escravocrata e na ascenso

    do capitalismo nos centros urbanos. a partir das diferenas sociais entre as capitais doNordeste e do Sudeste brasileiro que Bastide lana seus pressupostos tericos. Para esse

    autor, as capitais litorneas do Nordeste (principalmente Recife, Salvador e So Lus)

    apresentavam um modo de vida mais provinciano, em que os valores tradicionais e

    comunitrios prevaleciam, ou seja, aquilo em que ele acreditava mais prximo das terras

    africanas de onde provinham os negros. Entende que, por isso, nos candombls nordestinos,

    os negros puderam ser mais fidedignos conserva cultural africana. J, nas capitais do

    Sudeste (principalmente Rio de Janeiro e So Paulo), que sofreram rpido processo de

    urbanizao a partir do final do sculo XIX, com a proliferao das indstrias, sobretudo,

    aps o fim do regime escravocrata, o negro encontrava-se sem lugar, sem amparo, sem

    estrutura. Bastide comenta a respeito da situao deles poca:

    Formaram uma espcie de subproletariado14 e o desenvolvimento da urbanizao, quedestruiu os antigos valres tradicionais sem lhes propiciar um nvo sistema de valores emsubstituio, para eles se traduziu apenas numa intensificao do processo de desagregaosocial.(1971, p. 406).

    A cidade, portanto, ganha na obra de Bastide lugar especial15, seja como espao de

    preservao ou de desagregao scio-cultural, e a partir das influncias dessas que

    podemos diferenciar e falar das religies afro-brasileiras. Para Bastide, suplanta-se a

    solidariedade de cor em nome de uma solidariedade em termos das condies sociais: a

    13 Nina Rodrigues natural do Estado do Maranho, contudo foi na Bahia que teve sua formao acadmica edesenvolveu suas pesquisas, escritos e trabalhos.14 Os negros foram preteridos na concorrncia econmica pelo branco pobre e pelo imigrante15 Observamos que seus antecessores j haviam sinalizado paras as religies afro-brasileiras comofenmenos urbanos, embora sem nenhuma anlise mais profunda (ou sociolgica).

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    misria, a adaptao ao mundo novo, o desamparo (idem):A macumba reflete esse mnimo

    de unidade cultural necessrio solidariedade dos homens em face de um mundo que no

    lhes traz seno insegurana, desordem e mobilidade (idem). Ele busca, ento, fazer uma

    diferenciao entre macumba e umbanda, explicando a correspondncia de cada uma dessas

    situao scio-econmica do povo brasileiro:

    A macumba a expresso daquilo que se tornam as religies africanas no perodo deperda dos valres tradicionais: o espiritismo de umbanda, ao contrrio, reflete o momentoda reorganizao em novas bases, de acordo com os novos sentimentos dos negrosproletarizados, daquilo que a macumba ainda deixou subsistir da frica nativa (idem,p.407).

    Pontuamos que, at os dias de hoje, muito imprecisa esta diferenciao entremacumba (organizada) e umbanda. Bastide acreditava que, nos candombls, o sagrado se

    sobrepunha s outras esferas sociais, enquanto, na macumba, os interesses individuais eram

    determinantes. Por isso, a religio (candombl) teria se esfacelado em magia (macumba):

    A macumba do Rio se desnatura, por conseguinte, cada vez mais: acaba perdendo todo

    carter religioso, para terminar em espetculos ou se prolongar em pura magia negra

    (idem,p. 411).

    Essa degradao apontada por Bastide aparece em sua obra em dois sentidos

    diferentes: degradao cultural, onde ele entende que um empobrecimento geral e

    progressivo da frica o que constitui a primeira desorganizao [da qual os bantus seriam

    as principais vtimas] (idem, p. 414), idia que j se encontrava presente nos seus

    antecessores; e asocial, que aponta como o fenmeno mais amplo, que atinge no somente

    os negros como ainda outros estratos da populao em certas circunstncias histricas e

    geogrficas: Trata-se do relaxamento da solidariedade entre os homens, do

    enfraquecimento dos laos de comunho ou de comunidade, do isolamento dos indivduos

    no interior desses setores (idem). Por isso, diferencia o candombl da macumba, numa perspectiva de ruptura radical, ainda que entenda essas diferenas como produto das

    condies scio-culturais (e econmicas) prprias de cada regio:

    O candombl era e permanece em meio de um controle social, um instrumento de

    solidariedade e de comunho; a macumba resulta no parasitismo social, na

    explorao desavergonhada da credulidade das classes baixas ou no

    afrouxamento das tendncias imorais, desde o estupro, at freqentemente, o

    assassinato (idem).

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    Vale comentar que, encantado com os candombls apolneos do Nordeste, Bastide

    relega a macumba ao lugar de culto dionisaco (catico). O autor destaca que o que posto em evidncia nas macumbas do Sudeste a eficincia do feiticeiro:

    Urbano Mendes Falcano cura os doentes, arranja casamentos, ou os impede, a gosto docliente; procura emprego para os grevistas e indica os nmeros que vo ganhar na loteria.O feiticeiro branco Paulino Antonio de Oliveira faz encontrar amantes, reconcilia oscasais brigados, costura hrnias, d remdios para doenas do estmago, do corao e dosdentes (idem, p. 413).

    Observamos que a macumba, nascida no Rio de Janeiro, logo ganha espao

    tambm nos Estados do Esprito Santo e de So Paulo. Entretanto, por uma observao

    apressada, Bastide no pde registrar, na capital paulista, a presena desse movimento em

    sua forma organizada, mas to somente individual; no lhe dedicando, por isso, nenhum

    estudo mais atencioso. Finalizando os seus escritos nesta obra acerca da macumba urbana,

    Bastide a apresenta como produto de um marginalismo social que atinge tanto o branco

    pobre como o negro, o imigrante fracassado e o que acaba de desembarcar: entre esses

    que a macumba tem seus sacerdotes e clientes. Acreditava, no entanto, que esse

    marginalismo era apenas um momento de transio, devido s rpidas transformaes da

    sociedade brasileira:Com a proletarizao do negro, a assimilao do imigrante, o geral reerguimento do nvelde vida das massas, outros fenmenos vo aparecer, de reintegrao cultural e social; enessa reestruturao, o que restou das religies africanas ser por sua vez retomado ereestruturado para dar nascimento ao espiritismo de Umbanda (idem).

    Com certeza a obra de Roger Bastide um marco no referente a esses estudos.

    Partindo da tradio intelectual de seus predecessores, lana novas questes e, sobretudo,

    novos pressupostos tericos para a interpretao das religies afro-brasileiras. Vai alm do

    Evolucionismo proposto por Nina Rodrigues e do Culturalismo partilhado por ArthurRamos e Edison Carneiro. Prope uma anlise sociolgica sem dispensar a anlise

    antropolgica, sugerindo assim uma anlise da relao entre infra e superestrutura daquilo

    que aponta no clssico As Religies africanas no Brasilcomo causa e ordenao dessas

    formas religiosas, ou seja, o trfico negreiro, o trmino da escravido e o desenvolvimento

    industrial da regio sudeste.

    Segue a Roger Bastide seu discpulo Renato Ortiz, que defende em Paris, no ano de

    1975, sob orientao daquele, a sua tese de doutorado na qual se ocupou da umbanda (no

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    Rio de Janeiro e So Paulo): como essa se integrou e se legitimou no seio da sociedade

    brasileira.

    Bastide, como falamos acima, j havia introduzido a necessidade de uma anlise

    sociolgica somada anlise antropolgica. Observa que os resultados da aculturao,

    assimilao, sincretismo so fenmenos de cunho cultural, entretanto estes fatos

    incontestveis dependem em ltima instncia das situaes nas quais o contato se efetua:

    com esta nova varivel, as situaes sociolgicas de contato, a sociologia vai romper com

    o crculo encantado do culturalismo16. A partir disso, Ortiz assinala que s possvel um

    estudo do processo de mudana cultural referente umbanda se for situado no quadro de

    transformao da sociedade global. O autor compartilha da opinio de Bastide de que ocandombl baseia-se numa solidariedade de cor, enquanto a umbanda um esforo da

    comunidade negra e mulata para se dar um cosmo simblico coerente diante da incoerncia

    da sociedade:

    No entanto o momento de desagregao social substitudo por um outro, o daconsolidao da sociedade de classes; aparece assim um movimento de reinterpretaodas prticas africanas, o que afro-brasileiro torna-se negro-brasileiro, integrado numasociedade de classes, com todas as contradies que esta carrega em seu bojo (idem, p.30).

    Mas discorda da anlise de Bastide de que a umbanda seria uma religio negra, produto da integrao do homem de cor na sociedade brasileira. No vai negar a

    influncia do negro, mas vai apontar a umbanda como religio nacional; haja vista os

    esforos dos chefes das tendas para a constituio de uma sntese umbandstica

    (embranquecida, refletida, coerente das diversas religies que se afrontam no Brasil) e, em

    afirmar a brasilidade da umbanda (como reflexo da sociedade global brasileira):

    A formao da umbanda segue as linhas traadas pelas mudanas sociais. Ao movimentode desagregao social corresponde um desenvolvimento larvar da religio, enquanto que

    ao da nova ordem social corresponde a organizao da nova religio(...). O nascimentoda umbanda deve ser apreendido nesse movimento de transformao global dacidade (idem,p. 32).

    Ortiz observa que a dcada de 1930, poca de grandes transformaes sociais (e

    polticas) no cenrio nacional, tambm o perodo de consolidao da religio

    umbandstica, fato que refora seus pressupostos. Para compreendermos o nascimento da

    16 Citado por Ortiz, 1999, p. 13.

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    umbanda como religio, Ortiz sugere a sua anlise no quadro dinmico de um duplo

    movimento: primeiro, o embranquecimento das religies afro-brasileiras, segundo, o

    empretecimento de algumas prticas espritas. Esse embranquecimento entendido no

    mesmo sentido proposto por Bastide, ou seja, como forma do negro ascender

    individualmente na estrutura social, precisando, portanto, aceitar os valores do branco e

    renegar os dos negros. Por outro lado, esse empretecimento refere-se ao movimento de uma

    camada social branca em direo s crenas tradicionais afro-brasileiras (idem,p.33s).

    O processo de embranquecimento, observa Ortiz, no se traduz unicamente pela

    presena do catolicismo e do espiritismo; o imigrante branco, prximo do negro, vai

    penetrar o universo afro-brasileiro, e apoderar-se muitas vezes da chefia do culto (idem,p.39). J o processo de empretecimento se marca por alguns casos isolados. Foram alguns

    espritas que receberam espritos da macumba (tambm identificada como baixo-

    espiritismo) em mesas kardecistas, nas quais esses espritos foram recusados, de modo que

    esses mdiuns iniciaram cultos prprios, a exemplo de Benjamin Figueiredo, que recebe o

    Caboclo Mirim e funda, em 1924, a Tenda Esprita Mirim, no Rio de Janeiro e Zlio de

    Moraes 17, que recebe o Caboclo das Sete Encruzilhadas e funda, em 1908, a tenda Esprita

    N. Sra. Da Piedade, em So Gonalo; havendo ainda tantos outros exemplos Brasil afora.

    importante esclarecermos que Ortiz faz uma diferenciao entre empretecimento e

    enegrecimento. O primeiro trata-se de uma aceitao do fato social negro, e no de uma

    valorizao das tradies afro-brasileiras. Tanto que, nesses casos, embora as entidades

    sejam de provenincia negra e mestia, lhes so dadas novas roupagens e os elementos

    prprios das religies afro-brasileiras so rejeitados. O enegrecimento diz respeito ao que o

    negro traz de caracterstico de uma frica pr-colonial.

    Ortiz assinala a presena dos (pseudo) intelectuais que se dedicaram a fundamentar

    a religio umbandstica, geralmente brancos e mulatos de alma branca (mesmo de altosestratos sociais, sobretudo militares), que, com esse embranquecimento e racionalidade,

    conquistaram um lugar diferenciado na sociedade (a aceitao dessa). J, em 1936, Nicolau

    Rodrigues18 constata a presena difusa dessa religio Umbanda, que aceitava os espritos de

    17 Em publicaes posteriores, esse mdium chega mesmo a ser apontado como pioneiro da umbanda. Cf.Giumbelli, E. Zlio de Moraes e a origem da umbanda no Rio de Janeiro. In: Caminhos da alma, 2002,

    pp.183-218.18 Citado por Ortiz, idem, p.49.

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    caboclos e pretos-velhos, mas que tinha por finalidade uma ideologia espiritual mais

    elevada que os estreitos e grosseiros crculos da magia negra (idem, p.213), isto , das

    prticas da macumba. De modo que neste processo, os umbandistas vo orgulhosamente

    identificar umbanda e magia branca. Ortiz ainda observa que a aproximao Umbanda-

    Estado importante para a sua aceitao e legitimao, expressa, por exemplo, no

    reconhecimento oficial das federaes. Enfim, diz o autor: a ideologia umbandstica

    conserva e transforma os elementos culturais afro-brasileiros dentro de uma sociedade

    moderna; desta forma existe ruptura, esquecimento e reinterpretao dos antigos valores

    tradicionais (idem, p.212).

    O trabalho desempenhado por Renato Ortiz considerado de grande valor poralguns aspectos especficos, dos quais enumero trs: primeiro, por ser um estudo destinado

    a umbanda propriamente, um dos poucos trabalhos acadmicos, mesmo contando os dias

    atuais, dedicados a esse tema. Segundo, por apontar a umbanda no como uma religio de

    origem negro-africana (banta), mas brasileira, em suas diversas composies de etnia, cor,

    classe etc., marcada por um esforo intelectual de sntese da multiplicidade do pensamento

    religioso brasileiro. Finalmente, o terceiro, por mostrar que a umbanda se constitui como

    religio, nas trocas (explcitas e implcitas) com a sociedade mais ampla, refletindo, em seu

    bojo, traos dessa num determinado momento social (e histrico), de forma que suas

    prticas religiosas reproduzem as contradies da sociedade brasileira (urbana).

    Ainda nos anos 70, destaca-se entre os estudos sobre as religies afro-brasileiras a

    pesquisa realizada pela antroploga americana Diana Brown que se intitulou Umbanda,

    Politics of an Urban Religious Movement. Seus estudos tambm investigam a fundao e

    expanso da umbanda no Rio de Janeiro, cidade que iria apontar como bero da umbanda.

    Seu foco, numa perspectiva histrica, como a umbanda participou e se desenvolveu no

    processo poltico brasileiro. Essa autora considera que a umbanda surgiu no Rio de Janeiroem meados da dcada de 20, por iniciativa de um grupo de kardecistas da classe mdia que

    comeou a incorporar tradies afro-brasileiras em suas prticas religiosas, mas observa

    que o surgimento dela como religio no mera obra do sincretismo afro-kardecista, que

    j existia em diversos centros urbanos, desde o final do sculo XIX. Diana Brown marca,

    ento, o que entende como essencial para o seu surgimento:

    A importncia da Umbanda reside no fato de que, num momento histrico particular,membros da classe mdia voltaram-se para religies afro-brasileiras como uma forma de

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    expressar seus prprios interesses de classe, suas idias sociais e polticas e seus valores(1985, p.10).

    Dentre os iniciadores da umbanda se destaca a figura de Zlio de Moraes, queacredita ter recebido a misso de fundar essa nova religio. O jovem, de ento 17 anos, fora

    acometido de uma paralisia inexplicvel e, mais tarde, curado igualmente sem explicao.

    Em busca de entendimento do que se passara, Zlio busca um centro kardecista. Sentado

    mesa na formao da corrente19, sente-se impelido a sair e trazer algo que disse estar

    faltando. Levanta-se, ento, causando desconforto e estranhamento nos mdiuns ali

    presentes. Quando retorna traz consigo uma flor, que pe sobre a mesa. Pouco depois,

    contido o pequeno tumulto, retomam a sesso. Logo em seguida, vrios dos mdiuns so

    possudos20 por espritos que se diziam de ndios e negros escravos, que foram repreendidos

    pelo dirigente e convidados a se retirar, ao que Zlio, tomado de uma fora estranha, se pe

    numa discusso calorosa em favor daqueles, questionando por que no eram aceitos, pela

    cor ou pela classe? O dirigente, vendo que ele, Zlio, tambm estava possudo, interroga-

    lhe qual era seu nome, ao que ele responde: Eu sou o Caboclo das Sete Encruzilhadas, pois

    para mim no haver caminhos fechados. E declara que no dia seguinte, s 20 horas,

    retornaria casa (e cabea) de Zlio, para fundar uma nova religio, na qual os espritos

    dos ndios e escravos poderiam cumprir com sua misso espiritual. Dia e hora marcados,

    muitos foram casa de Zlio: dirigentes da Federao Esprita, amigos e familiares,

    tambm os incrdulos e curiosos. Na hora marcada, o Caboclo das Sete Encruzilhadas se

    fez presente, deu as diretrizes de como seriam as sesses e o nome da nova religio que

    soou algo parecido com umbanda tal como ficou conhecida. Naquela mesma noite

    dedicou-se a cuidar dos enfermos ali presentes. Mais para o fim, outro esprito se faz

    presente em Zlio, trata-se de Pai Antnio, o seu preto-velho que viera completar as

    curas21

    .Essa a histria do nascimento da umbanda no Rio de Janeiro, que a autora

    denomina mito de origem. A eleio de Zlio de Moraes como sujeito- chave de sua

    19 Expresso comum nos centros kardecistas, que se refere a um momento de concentrao e orao em quetodos ficam de mos dadas, preparando-se para os trabalhos espirituais.20 Optamos por usar expresses comuns ao campo de pesquisa, possudo, portanto, se refere ao estado detranse.21 Essa histria do nascimento da umbanda , por assim dizer, de domnio pblico. Amplamente difundida em

    produes nativas, sites de umbanda na Internet; to como a ouvimos de alguns umbandistas com quemtivemos oportunidade de conversar, tambm tendo sido registrada por Brown (1985).

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    pesquisa no se relaciona veracidade ou no de sua histria, mas por este ter

    desempenhado importante papel junto ao seu grupo de amigos e seguidores, na

    institucionalizao da umbanda.

    Como j mencionamos, os iniciadores da umbanda e grande camada de seguidores

    eram pessoas provenientes de setores mdios da sociedade: comercirios, profissionais

    liberais, militares e outros; todos brancos e homens; o que se pode notar num

    apontamento feito por Brown: Dos 17 homens retratados numa fotografia oficial dos

    fundadores e principais lderes da umbanda, tirada em 1941, meus informantes

    identificaram 15 como brancos e apenas dois como mulatos. Nenhum era negro (idem,

    p.11). Os integrantes desse grupo de fundadores, assim como Zlio, eram kardecistasinsatisfeitos que, em constantes visitas s macumbas dos subrbios e favelas do Rio e

    Niteri, passaram a preferir esses espritos queles presentes nas mesas kardecistas, que

    comparados lhe pareciam estticos e inspidos. Ao mesmo tempo, incomodavam-lhes

    aspectos prprios (leia-se africanos) das macumbas, como os sacrifcios animais e a

    presena dos exus, identificados como espritos diablicos. Brown observa :No para

    se espantar, portanto, que a umbanda viesse a expressar as preferncias e as averses dos

    seus fundadores (idem). Nota-se ainda, em sua pesquisa, a partir dos escritos nas Atas do

    Primeiro Congresso de Espiritismo de Umbanda, que era ntida a preocupao com a

    criao de uma umbanda desafricanizada, ou seja, dissociada da cultura africana tida como

    primitiva e brbara. O que pode soar como paradoxal uma vez que dois elementos

    centrais da umbanda, os caboclos e os pretos-velhos, foram tirados do seio das

    macumbas. Mas a autora aponta que eles aderiam a esses elementos de forma

    extremamente seletiva, o que podemos perceber em sua fala acerca da preferncia dos

    pretos-velhos:

    No entanto, os pretos velhos, celebrados como as presenas africanas mais significativasna Umbanda, so escravos, subjugados e aculturados vida brasileira, muito embora prticas associadas com africanos no aculturados fossem rejeitados dessa forma deprtica da umbanda (idem).

    Diana Brown destaca que a adoo por parte dos kardecistas destes smbolos

    criados nas macumbas, forma religiosa das classes subalternas, sugere um importante

    paradoxo das relaes de classe no Brasil: em termos espirituais, a classe mdia no se via

    suficientemente poderosa para solucionar seus prprios problemas, e voltava-se para a

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    maior vitalidade das religies dos pobres e, conseqentemente, para a vitalidade das

    massas (idem, p.12). Tambm observa que a confluncia que, na umbanda, se d dos

    smbolos das diversas tradies religiosas propicia aquilo que Gilberto Freyre apontava

    como a identidade cultural nacional brasileira (idem).

    A ascenso de Getlio Vargas ao poder em 1930 e a criao do Estado Novo,

    marcado pelo firme propsito de uma nacionalizao dos interesses econmicos e culturais

    das vrias regies do pas num regime de Estado fortemente centralizado, atraiu os

    iniciadores e primeiros lderes da umbanda, o que lhe incutiu esse mesmo sentimento de

    nacionalismo, a preocupao e a tentativa de se caracterizar como a religio nacional. Nos

    folhetos de poca produzidos pelos umbandistas, eram correntes os termos uma religiobrasileira, Umbanda, Religio Nacional do Brasil e similares.

    Embora comumente fossem defensores entusisticos do governo Vargas, os

    umbandistas no deixaram de ser alvo da perseguio policial destinada s diversas casas

    de religies afro-brasileiras, o que na verdade acabou impulsionando-os, no final dos anos

    1930, a fundar a primeira federao, a Unio Esprita de Umbanda do Brasil (UEUB), com

    o objetivo expresso de proteger os centros e seus afiliados da ao repressora da polcia. A

    afiliao a essas federaes, no entanto, no era expressiva, como at hoje no o , de modo

    que a maior parte dos centros de umbanda preferia a autonomia. Contudo, as alianas

    polticas e acesso mdia que tinham as federaes permitiram-lhes exercer certo grau de

    influncia na umbanda do Rio de Janeiro e na sociedade mais ampla tambm, uma vez que

    ajudaram no abrandamento das relaes com os no-umbandistas, permitindo que essa

    sociedade tivesse uma imagem melhor da umbanda.

    As federaes encontram ainda a dificuldade de no conseguir unificar as prticas

    religiosas umbandistas. Essas federaes sempre pretenderam que houvesse um corpus

    teolgico e ritual da umbanda, assim como h no catolicismo e em algumas federaesespritas, a exemplo da FEB Federao Esprita do Brasil. Diana Brown tambm cita as

    competies polticas e rivalidade entre as diversas federaes. Em geral, as federaes e os

    centros sempre resistiram a essa tentativa de unificao e centralizao:

    O fato que as federaes de umbanda continuam a representar interpretaes diferentes econflitantes do ritual e diferentes setores sociais e a reside, indubitavelmente, uma dasfontes do dinamismo, da flexibilidade e do esprito inovador que caracterizam esta religio(idem, p.23).

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    Diana Brown, em sua pesquisa, menciona a institucionalizao e legitimidade da

    umbanda a partir das articulaes polticas das federaes, que at mesmo vm lanar seus

    prprios candidatos, os quais mais tarde conseguiram chegar aos cargos pblicos, a

    exemplo de tila Nunes, que foi o primeiro Deputado Estadual umbandista do Estado da

    Guanabara, atual Rio de Janeiro, e teve ampla vida poltica. Seu eleitorado sempre foram os

    umbandistas que, antes de qualquer coisa, votavam nele, por ele tambm s-lo. Essa relao

    da umbanda com o Estado e a vida poltica de forma geral tambm ficaria marcada no

    perodo da Ditadura Militar, o que veremos em seguida com Lsias Negro.

    A respeito dessa relao, Diana Brown nos diz:

    O envolvimento da umbanda na vida poltica brasileira contempornea, por conseguinte,no somente uma fonte de sua crescente legitimidade, mas tambm uma fonte dedinamismo que marcam sua heterodoxia permanente (idem, p.40).

    Essa participao na vida poltica, no processo eleitoral, foi tambm importante por

    modificar um movimento que, em meados dos anos 50, parecia ser um caso tpico de

    separatismo religioso. Diana Brown aponta para duas umbandas: uma nova, caracterizada

    por branca, distante dos africanismos e prpria da classe mdia; a outra mais prxima das

    antigas tradies africanas e difundida entre a classe baixa. Nos jogos polticos e de

    eleitorado, a hostilidade entre elas diminui e os dois diferentes grupos tornam-se prximosinfluenciando-se mutuamente, vindo constituir embora de forma heterodoxa uma nica

    tradio religiosa, da qual diferentes setores participam, e esto ligados por elos verticais

    de clientelismo e patronagem (idem, p.41).

    Diana Brown assinala que a estruturao vertical da umbanda e sua formao

    poltica no-ideolgica ocasionaram uma orientao poltica fortemente conservadora, mas

    frisa uma importante contradio: A despeito de suas estruturas verticais, a umbanda

    resistiu unificao, codificao, institucionalizao, e neste sentido continua sendo

    uma religio popular (idem, p.41).

    Soma-se a essa lista de estudiosos (expressivos) do tema Beatriz Gis Dantas, que,

    no ano de 1982, defende, na Unicamp-SP, sua dissertao de mestrado em Antropologia

    Social sob o ttulo de Vov Nag e Papai Branco. A autora busca, em seu trabalho,

    compreender como o modelo nag se estabelece dominante no universo das religies

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    afro-brasileiras. Seu campo de pesquisa uma casa de Xang22 em Laranjeiras, uma

    pequena cidade no interior de Sergipe. Nessa casa que se auto-identifica e era reconhecida

    pelos demais como nag puro, Dantas observa aspectos estruturalmente diversos de

    outros modelos, como alguns candombls baianos, que eram assinalados sob o mesmo

    signo o que lhe remete ao questionamento do que caracteriza esse conceito de pureza

    nag.

    Os estudos sobre as religies afro-brasileiras, inaugurado com Nina Rodrigues,

    privilegiaram a anlise dos contedos culturais e as especificidades desses contedos.

    Caracterstica importante desses estudos foi a busca das sobrevivncias africanas nessas

    formas religiosas. As semelhanas encontradas eram interpretadas como resistncia(cultural/ideolgica) do negro. Para Dantas, dessa busca de frica que emerge a

    valorizao do modelo nag. Os estudiosos, partindo dessa perspectiva da resistncia

    cultural, elegem os nags como os que melhor mantiveram a conserva cultural africana, de

    modo que, quando se ocuparam dos outros modelos religiosos, como os candombls de

    caboclo, macumba, umbanda etc., tomaram o nag como ponto de referncia e, medida

    que esses outros se afastavam desse modelo foram (des) classificados em degenerados,

    deturpados, tidos como mais integrados. Observa Dantas: Obviamente integrao e

    resistncia passam a ser avaliadas pelo grau de pureza, esta definida a partir dos traos

    culturais encontrados nos terreiros, e tidos como africanos (idem, p.21).

    Essa diferenciao entre resistncia (tradicional) e integrao (moderno) de certa

    maneira se traduz na diferenciao entre religio e magia, bem e mal. Conseqentemente,

    os puros so vistos como cultores de suas tradies, enquanto os misturados, como

    aproveitadores do sagrado e da credulidade alheia. nessa oposio que reside o esforo

    dos intelectuais em legitimar o candombl africano idealizado. Essa busca de legitimao

    pela frica, empreendida pelos intelectuais, no absorvida pelos nags s quanto aodiscurso. Por isso, encontramos vrios casos, especialmente em Recife e Salvador, de mes

    e pais de santo, que viajam a frica a fim de consolidarem e enriquecerem seus saberes

    tradicionais. Quanto disputa de espao no mercado religioso (de bens simblicos), Dantas

    observa:

    22 Nome pelo qual so conhecidos os cultos equivalentes aos candombls baianos, nos estados dePernambuco, Alagoas e Sergipe.

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    Essa volta frica poder ser pensada como um reforo dos sinais diacrticos que vo permitir aos terreiros mais tradicionais marcar melhor suas diferenas em relao aoscandombls de caboclo que, dotados de uma estrutura organizacional muito mais fluda e

    melhor adaptados s exigncias da sociedade moderna, multiplicam-se rapidamente e lhesfazem concorrncia(idem, p.204).

    Ao mesmo tempo em que a frica era exaltada no Nordeste, era negada no Sudeste.

    Ainda que tais diferenas culturais sejam marcadas pelas particularidades nos modos de

    insero social, revelam, segundo Durhan: manifestaes de oposies ou aceitaes que

    implicam em constante reposicionamento dos grupos sociais nas dinmicas de relaes de

    classes (citado por Dantas, 1988, p.210). Essas diferenas regionais assinalam as diferentes

    construes ideolgicas das elites do Nordeste e Sudeste. No Nordeste, o negro era visto

    como portador de cultura e, posto neste gueto cultural, eram desconsiderados os

    agentes sociais, suas condies de vida e sua insero na sociedade mais ampla, sendo

    transformado em nosso primitivo interno e erigido em objeto de cincia . J o Sudeste,

    onde o ideal de branqueamento buscado desde o fim do sculo XIX se formaliza com a

    entrada dos imigrantes europeus, abre ao negro a possibilidade de ser ele tambm branco,

    o que percebemos no esforo dos decodificadores da umbanda em livr-la das influncias

    negativas associadas ao passado africano, assim se tornando mais limpa, pura,

    branca, portanto, apta a ser aceita pela sociedade mais ampla.A obra de Dantas, marcada de rica e diversa elaborao intelectual, torna-se marco

    por questionar e, portanto, romper academicamente com a tradio da hegemonia do

    modelo nag. Em sua concluso, fazendo contraponto de seus estudos realizados no interior

    de Sergipe queles realizados ao longo de quase um sculo, na capital baiana, a autora

    observa:

    A existncia de terreiros que definem sua vinculao frica, especialmente tradionag mais pura reconhecida pelos demais, invocando um acervo de traos culturais que

    difere do modelo nag baiano, indica que a normatizao da pureza nag, a partir dacristalizao efetuada na Bahia, com o concurso dos intelectuais, , se no arbitrria, pelomenos complicada, quando se pensa a identidade como algo que se constri no processo deinterao social, atravs de fronteiras estabelecidas pelo grupo, e no como algo dado quese confunde com uma unidade cultural reificada (idem, p.243).

    Embora Dantas admita a fora simblica da frica para o negro brasileiro, ressalva

    que a origem no define necessariamente o significado e a funo das formas culturais;

    sendo possvel que essas se construam e se signifiquem, to somente, no processo efetivo

    da vida social.

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    Dentre os trabalhos mais recentes sobre as religies afro-brasileiras, Lsias Negro

    defende sua tese de livre docncia na Universidade de So Paulo, em 1993, tendo como

    tema a umbanda (a questo moral, formao e atualidade do campo umbandista em So

    Paulo). Como o ttulo prope, Negro fornece, em seu trabalho, uma viso histrica da

    umbanda em So Paulo e de sua conformao atual. Busca um entendimento no s da

    dinmica interna do campo religioso umbandista, mas tambm das relaes exgenas a esse

    campo.

    Negro debrua-se sobre a concepo da umbanda na viso do outro; ento, faz um

    vasto levantamento das reaes da sociedade hegemnica frente s prticas de rituais

    africanos, segundo os jornais da poca. Nas duas primeiras dcadas do sculo XX, o que oautor observa so tons de denncia, ironia, deboche e preconceito a sociedade moderna

    precisava livrar-se desses que maculavam a sua evoluo. Tanto os jornais conservadores

    como o Estado de So Paulo quanto os da pequena imprensa ocupavam-se nas denncias

    e exortaes contra os negros feiticeiros. Citamos, como exemplo, uma notcia do jornal A

    Rolha, registrada por Negro (1993, p.26):

    Sabemos que nossas vitrias dependem do concurso do povo e da polcia. Do povo,quando ele no completamente irracional e nos d ouvidos, pondo-se de atalaia paradefender-se dos assaltos que partam de curandeiros, charlates, feiticeiros ou patres. Depolcia, quando ela, senhora de uma informao ou de uma denncia, passa a agir para aelucidao da primeira ou a certeza da segunda (A Rolha, 09/04/1918).

    Esse perodo que corresponde ao da Repblica Velha, como assinala Negro,

    marcou-se numa atitude hostil e repressiva frente s crenas e prticas mgico-religiosas

    populares. O autor pontua que, a partir de 1929, no Estado Novo, comeam a ser

    encontrados os terreiros de umbanda, ainda que, at a dcada de quarenta, registrados sob o

    disfarce de centros espritas. Esse autor marca o perodo de 1929 a 1952 como tempos

    hericos, ou seja, foi esse o perodo de grande expanso da religio umbandista nasociedade paulista (to como na sociedade fluminense). nele que so criadas as

    federaes e organizam-se os primeiros congressos23, que criaram conformaes tericas e

    prticas (rituais) para os centros umbandistas que se estabeleciam. Tambm comeam a

    circular as primeiras publicaes umbandistas: folhetos, jornais e livretos.

    23 O primeiro Congresso Nacional de Umbanda aconteceu em 1941 na cidade do Rio de Janeiro, organizadopela Unio Esprita de Umbanda do Brasil- UEUB

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    O perodo que Negro vai apontar como da consolidao das federaes, da sua

    institucionalizao, abrange de 1953 a 1970. s a partir de 1953 que essas federaes no

    Estado de So Paulo so registradas legalmente, em cartrio, sob designaes que incluem

    a expresso umbanda, por exemplo, a Fundao Umbandista de So Paulo FUESP.

    Ainda na dcada de cinqenta, a CNBB lana a campanha anti-esprita, como

    sugere Diana Brown24, provavelmente preocupada com o senso do IBGE de 1950 no qual

    foi registrado um aumento na populao de espritas. No final dessa dcada, embora no

    mais vtima da violncia do Estado e tendo mesmo conseguido algumas prerrogativas

    legais, a umbanda ainda se via sob forte contestao, entre dois fogos cruzados da

    ortodoxia religiosa e do intelectualismo positivista (idem, p.41), segundo Negro.O movimento de uma valorizao do que do branco tambm se evidencia na obra

    de Negro. As federaes se vem ante a difcil tarefa de legitimar a umbanda; ento,

    entendem como necessrio fugir dos estigmas de sua origem, tentando extirpar de seus

    rituais tudo aquilo que pudesse ser percebido como primitivo, brbaro, ou seja, negro.

    Tomam o catolicismo como modelo ideal, tentando absorver a sua racionalidade

    institucional e sua moralidade crist. Como modelo real, tomam o kardecismo, com suas

    federaes de centros e noes de caridade a partir da tica esprita. Diz o autor:

    Para afirmar-se em sua especificidade, a umbanda das federaes paradoxalmenteconformou-se imagem e semelhana de seus detratores. Para fugir marginalizao,internalizou cdigos que presidiram a lgica repressiva e excludente (idem).

    Nesse perodo, ainda acontece a revoluo de 1964, que no deixar de repercutir

    sobre a umbanda. Havia uma necessidade do Estado Militar em manipular as classes

    populares. Sendo invivel junto aos sindicatos e partidos por ele reprimidos, o regime

    aproxima-se das religies populares, em especial a umbanda, que, nesse mesmo ano,

    includa no Anurio do IBGE, o que denota o seu reconhecimento como oficial. Ainda

    nesse ano, no Estado de So Paulo, as festas umbandistas passaram a ser includas nos

    calendrios tursticos regionais, a exemplo das festas de Iemanj. Negro observa que a

    atitude da imprensa tambm se mostra diferente, informativa e analtica, entre neutra e

    discretamente simptica. A Igreja, por sua vez, inspirada no Conclio Vaticano II, quando

    dirigida por Joo XXIII e Paulo VI, apresenta uma inteno de congregar os irmos

    24 Cf. 1985, p.31.

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    separados, incluindo os umbandistas. Cessa o fogo da violncia da represso simblica.

    Podemos notar estes dois aspectos em notcia registrada por esse autor:

    A umbanda realmente forte, no pra de crescer. Os catlicos j no a hostilizam, suaimportncia reconhecida, quase todos a respeitam, ela no mais uma religioclandestina. Todas as noites, depois que uma campanha toca pela terceira vez, a AveMaria de Gounod comea a ser suavemente percebida, milhares de pessoas se concentramem tendas e terreiros espalhados por todo o pas (idem,p.51).

    A dcada de setenta se marca pela intensificao dos laos polticos da umbanda

    com os governos revolucionrios e com a Igreja, movimento que se estendeu aos cultos

    afro-brasileiros em geral. Negro chama ateno para o momento culminante do

    crescimento da umbanda e candombl, de 1974 a 1976, com seus terreiros compondo

    96,8% do total das unidades religiosas. No entanto, ainda no final dessa dcada ( 1977 a

    1979 ), marca-se um refluxo da umbanda e do candombl, que se estender aos dois

    primeiros anos da dcada de oitenta. Igualmente so reduzidas as notcias sobre a umbanda.

    Pontuamos que aqui a Igreja no mantm a mesma amistosidade de antes, agora liderada

    por Joo Paulo II, auxiliado para esses assuntos pelo ento Cardeal Ratzinger, atual Papa

    Bento XVI ( poca, titular da Congregao para a Doutrina da F, antigo Tribunal de

    Inquisies), Ela se afirma detentora da verdade absoluta sobre as outras religies,

    regredindo nos passos ecumnicos trilhados por seus predecessores. A umbanda, nessesanos recentes, voltou a ser alvo da perseguio religiosa, promovida principalmente por

    parte dos grupos pentecostais, em especial a Igreja Universal do Reino de Deus25.

    J, no final da dcada de 1980, notado um pequeno crescimento nos registros de

    terreiros de umbanda em cartrio. Esses aumentos e diminuies no campo umbandista

    deflagram um montante de articulaes polticas tanto no meio endgeno quanto exgeno

    ao campo religioso do Estado de So Paulo, particularidades as quais no vamos nos ater,

    haja vista no serem relevantes para o nosso atual trabalho. Observamos ainda que Negrodividiu pormenorizadamente essa trajetria histrica da umbanda em 12 perodos, dos quais

    falamos brevemente e sem a mesma preciso, pelo mesmo motivo. Ao final de toda essa

    trajetria histrica, o autor destaca as mudanas no quadro da religio umbandista, que se

    denota em quase uma inverso.

    25 Cf. Augras (2005) Umbanda revisite Palestra no Colloque Internacional: Roger Bastide: UN BILAN,CAEN, 29/11/05.

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    A auto imagem da umbanda foi se moldando ao longo desses sessenta anos em que, de formaconduzida, passou do extremamente fragmentado ao relativamente unificado, do predominante negro ao intencionalmente branco, de construo social de quase

    marginalizados a expresso dos interesses de classes mdias(idem,p.92).

    O trabalho desse autor, de mdio alcance, assim por ele definido, articulou anlises

    macrossociolgicas s microssociolgicas e buscou compreender a religio nas diversas

    redes de relaes e nas articulaes que se fazem no interior dessas, denotando toda a

    complexidade, inteireza tensa e contradio da umbanda.

    Neste captulo, buscamos demonstrar, em linhas gerais, como, ao longo do sculo

    XX, as religies afro-brasileiras, em especial a umbanda, foram abordadas pelos estudos

    acadmicos; o que nos permitiu vislumbrar o lugar social e religioso do negro, nag e bantono interior de nossa sociedade.

    2.2-

    O cosmos da umbanda

    A umbanda tem como base religiosa o culto aos espritos. , na manifestao

    desses, no corpo de seus adeptos, que se abre a passagem que une o mundo espiritual ao

    mundo fsico, sendo, portanto, a possesso elemento central ao culto.

    Essa prtica inspirada no candombl, na qual as divindades vm gracejar com os

    seus, rememorando suas mitologias de guerreiro, caador etc., se esvazia na umbanda. As

    divindades se metamorfosearam nos espritos que cavalgam o corpo dos mdiuns e vm

    assistir a eles. A partir disso, evocaro simplesmente o nome das vrias linhas s quais os

    espritos pertencem.

    Em princpio, quatro gneros de espritos compem o panteo umbandista26 que,

    segundo Ortiz, podemos agrup-los em duas categorias: primeira, a dos espritos de luz, que

    so os pretos-velhos, os caboclos e as crianas; e a segunda, a dos espritos das trevascompostas pelos exus. Esse autor nos sugere que essa diviso seja produto da concepo

    dicotmica de bem e mal assimilada do cristianismo.

    Os pretos-velhos representam os antigos escravos das senzalas. Tornam-se presentes

    sob a forma de velhos alquebrados, cansados com o peso da idade e dos inmeros trabalhos

    26 Observamos que, no quadro atual da umbanda, ainda h uma infinidade de outros gneros de espritos; boiadeiros, marinheiros, malandros, ciganos, mdicos etc., dos quais no nos ocuparemos por nointeressarem a especificidade de nosso trabalho. Cf. Negro, 1993.

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    espirituais que prestam (Ortiz fala em fadiga espiritual), de modo que, logo que chegam aos

    terreiros, lhes so providenciados banquinhos para que descansem. Ainda lhes trazem os

    cachimbos, por eles to apreciados, e podem vir a beber caf (puro e amargo) ou vinho

    tinto. Marcam o preto-velho a humildade e a familiaridade com que acolhe a todos os

    presentes.

    Os caboclos so espritos de nossos antepassados ndios, que, como aponta Ortiz,

    passaram depois da morte a militar na religio umbandista (idem). Essa observao do

    autor tangente ao vigor, energia e vitalidade to expressas na incorporao desses por

    seus mdiuns. Logo que chegam, emitem fortes brados que denotam a sua fora e, com os

    punhos serrados, batem contra o peito em forma de saudao. Os caboclos so altivos,passeiam entre as pessoas numa atitude mesmo de arrogncia, so indceis e rebeldes, so

    guerreiros, representam o ideal de liberdade.

    As crianas manifestadas em seus mdiuns apresentam comportamentos de

    crianas: engatinham, choram, chupam os dedos e falam num linguajar infantil. Do ao

    culto uma dimenso de alegria e de folguedo. Representam a pureza e a inocncia.

    Acolhidas com brinquedos e guloseimas, fazem do culto uma agradvel algazarra

    prestigiada por todos. Entretanto, geralmente, as crianas so afastadas dos trabalhos

    espirituais propriamente ditos, seguindo a idia de que so crianas (espritos infantis) e

    crianas no trabalham. Assim, so chamadas para a limpeza do terreiro, ou seja, aps

    trabalhos pesados dos quais possam ter restado resduos malficos, os umbandistas

    acreditam que a presena alegre das crianas possa dissip-los.

    Os exus so a contraparte desses outros que representam o tringulo da umbanda

    (Ortiz, idem). Esses espritos so considerados potencialmente perigosos e malficos,

    havendo mesmo uma identificao com o demnio cristo. Quando no so classificados

    como demnios, geralmente so tomados como a mando desses. Apresentam umcomportamento agressivo, libidinoso; sua linguagem repleta de obscenidades, fumam e

    bebem muito. So tomados como os mais prximos dos humanos (maus, odientos,

    vaidosos, vingativos, ciumentos, invejosos...), so habitantes da terra como ns. Talvez, por

    essa proximidade, sejam to populares e requisitados. A sua maldade apontada como mal

    necessrio. S diante dela, pode-se ver a grandiosidade do bem. No entanto, por serem

    ambivalentes, tambm trabalham para o bem. Se eles iro fazer o bem ou o mal, determina

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    quem vem lhes pedir. Nessa categoria, tambm se enquadram as pombas-gira, apontadas

    como a mulher de exu ou exu fmea.

    Como vimos, a umbanda, no registro feito por Ortiz, opera essencialmente com

    esses quatro gneros de espritos. Cada um desses esteretipos corresponde a um nmero

    infinito de entidades particulares, com personalidades e nomes prprios. Assim

    encontraremos, por exemplo, entre os pretos-velhos, pai Joaquim, pai Cipriano etc.; entre

    os caboclos, caboclo Pedra-Preta, caboclo Arranca-Toco etc.; entre as crianas, Joozinho,

    Zezinho etc. e, entre os exus, exu Tranca-Ruas, exu Caveira, pomba-gira Maria Padilha etc.

    Ortiz aponta que esse sistema religioso adotado pela umbanda ganha em extenso, mas

    perde em compreenso, tornando-se muito menos complexo numa analogia ao candombl.A personalidade espiritual que se destaca atravs do nome uma personalidade vazia. pai

    Joaquim e caboclo Pedra-Preta, por exemplo, representam uma massa annima de negros e

    ndios que participaram da formao da sociedade brasileira. Segundo Ortiz, a

    indeterminao do modelo religioso incorre em manifestaes individuais dos espritos:

    Resulta disso que a personalidade espiritual sobretudo personalidade do mdium que a

    encarna (idem,p.77).

    Passemos, ento, a um breve entendimento do cosmos umbandista. A umbanda

    professa f em um nico Deus, que pode ser designado por vrios nomes. Os mais comuns

    so: Olorun, expresso assimilada da tradio jeje-nag; Zambi, da tradio banta, ou

    simplesmente Deus, tal como chamado pelos catlicos. A funo de Deus restringe-se a

    estabelecer os fundamentos da religio e a existncia do mundo, sendo praticamente

    esquecido, pois o culto todo se volta aos espritos subordinados a Deus. Nesse aspecto,

    assemelha-se concepo dos candombls, nos quais Deus tambm se encontra afastado

    das necessidades e afazeres humanos. So as divindades secundrias (orixs) que governam

    o mundo. Ortiz aponta ainda para a semelhana com o catolicismo popular, onde os santos,vistos como intermedirios entre o sagrado e o profano, recebem um culto particular que

    muitas vezes ofusca o prprio criador do mundo (idem, p.79).

    Anloga ao catolicismo, a umbanda reproduz uma Santssima Trindade com

    divindades do panteo gge-nag, expressa na forma de Obatal-Oxal-If27,

    27 Na tradio gge-nag , Obatal (o rei do pano branco) corresponde divindade responsvel pela criaodos homens; Oxal uma possvel corruptela de Orisanla (significa o grande orix), um ttulo do mesmo

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    correspondendo respectivamente ao Pai, Filho e Esprito Santo dos cristos. Essa no tem,

    entretanto, nenhum papel importante nesse universo religioso, mas indica o grau de

    legitimidade do catolicismo que serve de modelo ao pensamento umbandista, como aponta

    Ortiz (idem).

    Abaixo de Olorun, ou da Santssima Trindade umbandista, vm as linhas de

    umbanda, que so entendidas como exrcitos de espritos que obedecem a um chefe

    (orix/santo catlico). Esses espritos teriam uma misso, uma tarefa, uma funo. Cada

    linha liderada por um orix composta de sete legies; cada legio se subdividindo em sete

    falanges; cada falange, em sete subfalanges e assim por diante.

    Na umbanda , como j mencionamos, os orixs deixam de ser os heris das histriasmticas africanas, sequer se ocupam dos humanos, pois, nessa nova ideologia religiosa, so

    impedidos de descer sobre os corpos de seus adeptos. Ortiz aponta para um esforo

    constante dos umbandistas de despersonalizao do universo afro-brasileiro, registrado na

    tentativa gradativa de substiturem a expresso linha por vibrao; o que remete a um

    sentido mais abstrato.

    Dentro desse emaranhado de linhas hierarquizadas, a ascenso espiritual se d

    segundo o princpio de reencarnaes sucessivas proposto por Kardec. A reencarnao

    funciona como uma forma de aprimoramento espiritual, o caminho pelo qual os espritos

    evoluem na direo de Deus. A caridade (o amor ao prximo) se torna o fundamento da

    doutrina e da prxis religiosa. A prtica caritativa aparece como nica soluo para se

    escapar ao ciclo reencarnacionista.

    Obatal, j If a divindade guardi do destino dos deuses e dos homens. No existe, nessa tradio,nenhuma formulao semelhante da Trindade crist.

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