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7/23/2019 abep2006_482 http://slidepdf.com/reader/full/abep2006482 1/18  Xakriabás - economia, espaço e formação de identidade *  Alessandro Medeiros Clementino  Roberto Luís Monte-Mór  Palavras-chave: desenvolvimento indígena Xakriabá; economia; ambiente; Minas Gerais Resumo A Reserva Indígena Xacriabá tem o seu território localizado no município de São João das Missões norte de Minas Gerais, na Região do Alto-Médio-São Francisco. Distante aproximadamente 730 km de Belo Horizonte, a reserva tem cerca de 7.000 índios, distribuídos por 29 aldeias ao longo de uma área de aproximadamente 53.014,92 hectares. Hoje, a comunidade Xacriabá vive um processo delicado de tomada de decisões sobre os rumos e perspectivas a serem trilhados na busca de melhorias e soluções para as difíceis condições de vida da comunidade. A propriedade coletiva da terra, o caráter comunitário das ações e decisões, e a inserção múltipla de seus membros em instituições e contextos econômicos e culturais diversos levantam questões de difícil compreensão e solução para sua organização sócio-espacial. Por outro lado, a precariedade de suas condições de vida diante de uma produção alimentar insuficiente, da crescente escassez de recursos hídricos, esgotamento das terras cultiváveis e carência de serviços básicos exige uma tomada de  posição no sentido de acelerar as transformações que já se anunciam fortemente, tanto internamente à comunidade quanto nas suas relações com o espaço municipal e regional. O Objetivo do artigo seria propor uma leitura dessas transformações, a partir das demandas, anseios e dúvidas da comunidade indígena Xacriabá, tentando lidar com suas realidades ricas em especificidades sócio-culturais e propondo uma leitura contemporânea, de orientação etnográfica, dos processos econômicos, espaciais e sociais ali presentes.  *  Trabalho apresentado ao XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú- MG – Brasil, de 18 a 22 de setembro de 2006  Economista, pesquisador no projeto (Cedeplar/FAE/UFMG) “Conhecendo a Economia Xakriabá”.  Professor e Pesquisador do Cedeplar/UFMG, coordenador da pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”.

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Xakriabás - economia, espaço e formação de identidade* 

Alessandro Medeiros Clementino† Roberto Luís Monte-Mór ‡ 

Palavras-chave: desenvolvimento indígena Xakriabá; economia; ambiente; Minas Gerais

Resumo

A Reserva Indígena Xacriabá tem o seu território localizado no município deSão João das Missões norte de Minas Gerais, na Região do Alto-Médio-São Francisco.Distante aproximadamente 730 km de Belo Horizonte, a reserva tem cerca de 7.000 índios,distribuídos por 29 aldeias ao longo de uma área de aproximadamente 53.014,92 hectares.

Hoje, a comunidade Xacriabá vive um processo delicado de tomada de decisões sobre osrumos e perspectivas a serem trilhados na busca de melhorias e soluções para as difíceis

condições de vida da comunidade. A propriedade coletiva da terra, o caráter comunitáriodas ações e decisões, e a inserção múltipla de seus membros em instituições e contextoseconômicos e culturais diversos levantam questões de difícil compreensão e solução parasua organização sócio-espacial. Por outro lado, a precariedade de suas condições de vidadiante de uma produção alimentar insuficiente, da crescente escassez de recursos hídricos,esgotamento das terras cultiváveis e carência de serviços básicos exige uma tomada de posição no sentido de acelerar as transformações que já se anunciam fortemente, tantointernamente à comunidade quanto nas suas relações com o espaço municipal e regional.

O Objetivo do artigo seria propor uma leitura dessas transformações, a partir dasdemandas, anseios e dúvidas da comunidade indígena Xacriabá, tentando lidar com suas

realidades ricas em especificidades sócio-culturais e propondo uma leitura contemporânea,de orientação etnográfica, dos processos econômicos, espaciais e sociais ali presentes.

 * Trabalho apresentado ao XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú-MG – Brasil, de 18 a 22 de setembro de 2006 † Economista, pesquisador no projeto (Cedeplar/FAE/UFMG) “Conhecendo a Economia Xakriabá”.‡ Professor e Pesquisador do Cedeplar/UFMG, coordenador da pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”.

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Xakriabás - economia, espaço e formação de identidade§ 

Alessandro Medeiros Clementino** Roberto Luís Monte-Mór †† 

1. Fragmentos (etno)históricos para introduzir o tema.

A Reserva Indígena Xakriabá tem seu território localizado no município de São Joãodas Missões1, norte de Minas Gerais, na Região do Alto-Médio-São Francisco. Distanteaproximadamente 730 km de Belo Horizonte, a Reserva tem cerca de 7.000 índios,distribuídos por 29 aldeias2 ao longo de uma área de aproximadamente 53.014,92 hectares.

São poucos os registros históricos e etnográficos sobre os Xakriabá. A dispersão dogrupo, a anacrônica utilização de critérios e princípios formados na observação de outros

 povos3

  – inclusive africanos e asiáticos – e o contato tardio dos viajantes e outrosnarradores que travaram conhecimento com os Xakriabá quando estes já haviam perdido aautodeterminação, contribuíram para que houvesse uma diluição dos registros, que namaior parte das vezes se restringiram a classificações gerais e à delimitação do território 4.

Os Xakriabá pertencem ao grupo lingüístico Macro-Gê, divisão Akuê5, composto porhabitantes das terras entre as Bacias dos rios São Francisco, Tocantins, Araguaia e Rio dasMortes, dispersos numa área que englobaria partes dos Estados de Minas Gerais, Goiás eMaranhão. Os grupos às margens do Tocantins seriam os Xerente; os que habitavam asmargens do São Francisco, Xakriabá; aqueles às margens do Araguaia e Rio das Mortes, osXavante (Marcato, 1978: 14).6 

A história dos povos indígenas de Minas Gerais é extremamente rica. Em 1965, Oilian

José (1965: 30) afirmava que, no início do século XVI, o atual território mineiro contavacom mais de 100 diferentes povos indígenas, dos quais apresenta o nome e a localização provável de 71 deles. Atualmente, dos grupos listados pelo autor que habitavam o atualterritório mineiro no início do século XVI, restam apenas três: Maxacali, Krenak eXakriabá7, identificados pelo autor como Formigas.

A história dos Xakriabá é, antes de tudo, um grande esforço de resistência e adaptação.Resistiram ao Brasil Colonial e Imperial e a suas várias “Repúblicas”; ao esforçoconcentrado e direto dos Bandeirantes, aos ataques de seus inimigos Cayapó, à políticaoficial das missões e aldeamentos que os forçavam à miscigenação e à catequese; àespeculação fundiária e às instabilidades do SPI8  e da Funai, e mais recentemente, aosataques dos fazendeiros e da própria Ruralminas, órgão estadual de regulação de terras.

Longe das florestas densas de regiões tardiamente povoadas, descobriram cedo que seachavam no olho de um furacão: habitavam a rota de abastecimento das Minas, no meio docaminho entre as regiões ‘antigas’ mais povoadas – Bahia e Pernambuco – e a nova área demineração, convertida no principal foco da economia colonial já no início do século XVIII.A região sanfranciscana, inicialmente usada como via de transporte entre as Minas e o

§ Trabalho apresentado ao XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú-MG – Brasil, de 18 a 22 de setembro de 2006 ** Economista, pesquisador no projeto (Cedeplar/FAE/UFMG) “Conhecendo a Economia Xakriabᔆ† Professor e Pesquisador do Cedeplar/UFMG, coordenador da pesquisa “Conhecendo a Economia Xakriabá”

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nordeste, logo converteu-se, nos planos gerais de ocupação e viabilização da atividademineradora, em lócus privilegiado da produção agrícola e pecuária (Santos, 1997:20).

Hoje, a comunidade Xakriabá vive um processo delicado de tomada de decisões sobre

os rumos e perspectivas a serem trilhados na busca de melhorias e soluções para as difíceiscondições de vida de sua comunidade. A propriedade coletiva da terra e o carátercomunitário das ações e decisões, de um lado, e a inserção múltipla e crescente de seusmembros em instituições e contextos econômicos, políticos e culturais diversos, de outro,levantam questões de difícil compreensão e solução para sua organização sócio-espacial.Paralelamente, a precariedade de suas condições de vida diante de uma produção alimentarinsuficiente, da crescente escassez de recursos hídricos, esgotamento das terras cultiváveise carência de serviços básicos sugere uma aceleração das transformações que se anunciamfortemente, tanto internamente à comunidade quanto nas suas relações com o espaçomunicipal e regional.

De fato, num ritmo variado de tensão e distensão, resistência e flexibilidade, os

Xakriabá começaram o ano de 2005 comemorando a vitória de Zé Nunes, índio Xakriabá, professor na comunidade e testemunha do assassinato de seu pai por grileiros em 1987,como prefeito pelo PT, recém-criado no município pelos Xakriabá e seus correligionários.Junto com Zé Nunes, cinco vereadores do PT constituíram a maioria na Câmara Municipalde nove representantes9. Assim, nova realidade se abre para os Xakriabá, rompendo o ciclode isolamento e marginalização e colocando-os à frente do processo de gestão, não apenasnas suas terras coletivas, como também no município onde constituem cerca de 75% da população (além dos seus vários parentes ‘não-índios’ que escolheram viver fora daReserva Xakriabá).

Diante dessas transformações, quando chamada a mediar as necessidades sócio-econômicas face às “realidades” locais, buscando respostas que melhorem as condições de

 produção e de reprodução ampliada da vida, a Economia - e seu repertório tradicional deinstrumentos de análise, intervenção e crítica - muitas vezes se depara com realidadessociais, econômicas e espaciais que escapam àqueles instrumentos. A partir das demandas,anseios e dúvidas da comunidade indígena Xakriabá, tentaremos apontar algumasdificuldades e limites da Economia em lidar com realidades ricas em especificidades sócio-culturais – um problema nas suas pretensões universalistas – discutindo a re-qualificação danatureza e do papel da Economia e suas possibilidade para uma leitura contemporânea dos processos econômicos que possa incorporar uma preocupação etnográfica,.

2 – O Longo Caminho

“A história é uma narrativa de eventos: todo o restoresulta disso. Já que é, de fato, uma narrativa, ela nãofaz reviver esses eventos, assim como tampouco o fazo romance; o vivido, tal como ressai das mãos dohistoriador, não é dos atores; é uma narração.  (...)Como o romance, a história seleciona, simplifica eorganiza”. (VEYNE, 1998: 18)

Entender em algum nível a conformação da comunidade Xakriabá – o entendimentocompleto é tomado aqui como quimera, uma vez que nosso objetivo é realizar uma leitura,dentre muitas possíveis, daquele grupo social - nos obriga a falar da história das relações

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desse povo com a sociedade envolvente. Tentaremos organizar uma leitura geral que nosajude a pintar importantes matizes dessa história e dessa rede de acontecimentos que, aolongo dos anos, foram moldando a comunidade.

O primeiro registro oficial de contato entre portugueses e índios daquela Região data de1553 e 1554, quando o padre jesuíta Aspicuelta Navarro, capitão da Entrada de Franciscode Espinoza, em expedição pelo norte de Minas, deparou-se com várias tribos ao longo deseu trajeto10. Esse contato não produziu informações de grande relevância, além daconstatação da presença de indígenas naquela área.

As primeiras notícias específicas sobre os Xakriabá surgiram apenas no final do séculoXVII, na esteira das estratégias sistemáticas de ocupação e povoamento da Região do SãoFrancisco. Em 1674, o Bandeirante paulista Fernão Dias já havia incorporado várias faixasdo território mineiro. Mas foi seu filho, Matias Cardoso, quem produziu o primeiro relatohistórico específico sobre os Xakriabá.

Convocado pelo Governador Geral e Arcebispo do Brasil D. Manuel da Ressurreição a

combater e eliminar os índios que haviam se refugiado ao longo do São Francisco, MatiasCardoso, em 1690, doou 80 léguas de terra a 19 companheiros de Bandeiras. No processode incorporação dessas terras, iniciou-se uma guerra contra várias tribos locais e nessemesmo ano a aldeia de Itapiraçaba (onde se localiza o atual município de Januária) foidestruída, inaugurando a guerra dos Xakriabá com os homens de Matias Cardoso (Paraíso,1987: 20 e seguintes; Santos, 1997:18).

Matias Cardoso e seus homens escravizaram os Xakriabá utilizando-os como mão deobra na abertura de fazendas, na fundação do Arraial de Morrinhos e na guerra contraoutros índios da Região (Santos, 1997: 19-21). Há um hiato nos registros e a figura deMatias Cardoso cedeu lugar à aparição de seu filho, o mestre de campo Januário Cardoso, aquem os Xakriabá se aliaram já nos primeiros anos do século XVIII, entre outras razões,

 por conta da presença ameaçadora dos Caiapós, seus tradicionais inimigos (Marcato,1978:421).

Aliados de Januário Cardoso, os Xakriabá teriam ajudado na reconstrução do Arraial deMorrinhos11, em 1704, que teria sido remanejado para o atual distrito de Matias Cardoso,município de Manga (Santos, 1997:19). Em reconhecimento pelos trabalhos prestados nacampanha contra os Cayapós e outros serviços, mas também como forma de delimitar econfinar, aumentando o controle sobre os mesmos, Januário Cardoso “doou” aos Xakriabá,em 1728, uma vasta extensão de terras que equivaleria hoje a todo o território do municípiode Itacarambi, parte de Manga e São João das Missões.

O Termo de Doação explicitava também que os Xakriabá deveriam ser recolhidos aoaldeamento da Missão de São João (atual município de São João das Missões), refletindo a

autoridade colonial imposta aos índios: confinados, seriam mais bem controlados.Para os Xakriabá, o Termo de Doação representa um momento fundante, crucial de sua

história e guarda um sentido prático – a posse da terra – e um forte sentido simbólico. Adoação, que foi registrada em Ouro Preto em 1856, apenas seis anos após a Lei de Terrasque estabelecia como devolutas as terras não registradas em Cartório, é o documento que setransformou num aglutinador da comunidade e referência de identidade e reconhecimento.Ainda hoje as palavras iniciais do Termo de Doação são citadas oralmente – de maneiraexata ou levemente alterada – por muitos deles.

Entretanto, não há muitos registros, sobretudo claros, do que aconteceu aos Xakriabáentre 1728 e o final do século XVIII. O Século XIX irrompeu com a Carta Régia de 13 demaio de 1808, que autorizou e lançou os princípios da política de extermínio dos índios

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Botocudos12; no mesmo ano, foi criada a Junta Militar de Civilização dos Índios pararealizar aquela tarefa, marcando novo recrudescimento nas relações entre índios e o podercolonial e eclesiástico. Com a péssima repercussão, até internacional, dessas iniciativas a

 política indigenista passou a cargo, em Minas Gerais, do militar francês Guido Marliére13,que inaugurou a política da boa vizinhança e obteve a rendição dos Botocudos em 1826(José,1965: 75)14.

Após a ‘posse’, e ‘propriedade’ a partir de 1856, de um território definido pela faixa deterra doada em 1728, os Xakriabá assistiram à progressiva expropriação de seu espaço devida ao longo dos séculos XIX e XX. Com o esgotamento das fronteiras agrícolas no sul esudeste do país e nas regiões mais centrais e dinâmicas de Minas Gerais, cresceu a cobiça pelas terras dos sertões e dos cerrados intensificando, até o ambiente de confronto armado,as tentativas de expulsá-los de suas terras, apesar da legalidade do Termo de Doação.

 Na segunda metade do século XIX, um grupo Xakriabá viajou armado até o Rio deJaneiro para pedir ao Imperador auxílio contra a invasão de suas terras. Como resultado, as

autoridades imperiais teriam enviado ao município de Januária um documento oficialexigindo providências, segundo relatos de Frei Maurício Gaspar (Santos, 1997:23; Marcato,1978: 425).

 No final do século XIX e início do XX, um grande número de migrantes nordestinos,sobretudo baianos, fugindo da fome e da seca, penetraram no território Xakriabá. Apesardas fricções iniciais, foram lentamente se integrando ao grupo, através de casamentos eoutras associações, dando origem a um pequeno número de posseiros, com variados grausde identificação e de relação com os índios.15 

 Na primeira metade do século XX, houve uma série de conflitos entre Xakriabás e populações não-índias regionais, dos quais o mais marcante teria ocorrido na atual aldeia deRancharia. Em resposta às invasões dos fazendeiros e grileiros, os Xakriabá atearam fogo

num grande curral construído por eles em seu território.16 Este episódio, conhecido aindahoje como “queima dos currais”, gerou uma onda de violência, perseguição e vingançacontra os Xakriabá, que durou muitos anos e inaugurou um novo ciclo de atritos, queculminam na proibição da prática do Toré17, em 1944, e do uso da língua nativa, em 1950(Santos, 1997: 52).

 Na segunda metade do século XX, a valorização das terras ainda em posse dosXakriabá intensificou os avanços e pressões da sociedade capitalista envolvente sobre eles,em sentidos diversos. No entanto, foi a possibilidade da inclusão de inúmeras aldeiasindígenas num projeto de colonização capitaneado pela Ruralminas18 que atraiu fazendeirose agroempresários a partir de 1969, o catalisador de inúmeros conflitos já latentes.

A atabalhoada intervenção da Ruralminas é também um evento fundante na história do

grupo, porque além de avalizar - como representante e órgão institucional competente doEstado de Minas Gerais - a expropriação das terras indígenas, fornecendo apoio legal, político e policial aos invasores, aquela instituição centrou sua ação no questionamento daidentidade étnica e cultural do grupo. Não os reconhecendo como índios, insistiu em tratá-los como meros posseiros que deveriam ser enquadrados nas novas diretrizes de uso daterra – pagamento de impostos, registro em cartório, prova de permanência, etc. Ao proporo fracionamento da terra em bases de famílias nucleares, esbarrou em outro ponto central para a comunidade Xakriabá: o uso comum das terras e a posse coletiva do territóriosempre foram elementos importantes da identidade sociocultural do grupo19.

Grileiros, fazendeiros e agroempresários usaram de diversos métodos para conseguiremáreas cada vez maiores do território indígena, destacando-se a violência direta e outras

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formas de coerção, num processo já por demais conhecido. Com a assistência do CIMI20, osXakriabá iniciaram, em fins da década de 1960, uma série de viagens a Brasília parareivindicar a proteção da Funai. Como resultado dessa movimentação, foi criado o Posto

Indígena Xakriabá, em dezembro de 1973 (Santos, 1997: 85). No entanto, a presença do CIMI na Área não impediu a continuidade da violência, das

ações intimidadoras e do processo geral de titulação de terras conduzido pela Ruralminas.A Funai, nessa ocasião, não tinha uma visão clara da situação dos Xakriabá e ainda não osreconhecia como índios, adotando uma postura ambígua e recalcitrante: reconhecia oterritório como indígena, aceitava a presença de remanescentes indígenas, mas seusRelatórios ora afastavam a possibilidade de que aqueles que se arvoravam a identidadeXakriabá fossem de fato índios, ora diziam que eram índios já perfeitamente integrados(Santos, 1994: 10).

Apenas em 1979, após um longo processo de reconhecimento da identidade indígena a partir de laudos antropológicos encomendados, a Funai homologou o território Xakriabá,

inicialmente em 46.414,92 ha – menos de um terço do território doado em 1728. Ahomologação do território aumentou as chances e o repertório de defesa jurídica dosXakriabá, mas provocou também o aumento da violência daqueles que queriam suas terras.Antes da homologação, os invasores possuíam, além da violência, outros canais dereivindicação, já que a posse da terra estava em disputa. Com a Homologação, sobraramapenas a violência e a coerção.

Um grande imobilismo das autoridades locais, influenciadas pelas pressões políticas eeconômicas da Região, atrasava a retirada dos invasores tolerando uma sorte grande dedesmandos e desrespeitos à lei. Em 1985, segundo dados do CIMI21, 47% das terrasindígenas estavam ainda irregularmente ocupadas.

Com a falta de resposta das autoridades, houve uma grande mobilização da comunidade

 para conter os invasores e resistir aos abusos. Rosalino Oliveira, importante liderançaXakriabá, organizava, desde 1985, mutirões para derrubar cercamentos e outras construçõesfeitas por invasores dentro da Área Homologada. Como resposta, foi assassinado em 1987 por um bando armado que invadiu a Reserva durante a noite22.

A repercussão dos assassinatos e da violência atraiu o governo federal para o centro daação. Com isso, em 1988, iniciou-se a expulsão dos invasores da Área Xakriabá, com ajudada Polícia Federal e acompanhamento de Procuradores da República. Apenas em 2001 aárea da aldeia de Rancharia foi homologada, somando mais 6.600 hectares à ReservaIndígena, que passou a contar com 53.014,92 ha.

Em outubro de 2004 o município de São João das Missões elegeu o professor Zé Nunesde Oliveira, do PT, como prefeito. Índio Xakriabá, irmão do atual Cacique Domingos e

morador da aldeia do Brejo do Mata Fome, Zé Nunes foi eleito com quase 70 % dos votosapós uma campanha desigual, permeada de ameaças e agressões, e transformando-se no primeiro índio eleito prefeito municipal no Estado de Minas Gerais.

3 - Índio, índios: o direito de se transformar

“Se não existisse história, não existiaíndio. Então, se existe a história, é

 porque nós somos índios” José ReisXakriabá (Oliveira, pág. 79).

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 O grupo populacional que hoje se reconhece como o povo Xakriabá resulta de forte

miscigenação com outros grupos indígenas, desde o aldeamento nos séculos XVI e XVII, e

com brancos, negros, mamelucos, cafuzos e caboclos de vários tipos que, ao longo dosúltimos séculos, foram se misturando aos Xakriabá através de matrimônios e outrasvariadas formas de associação familiar e comunitária. No século vinte, os grupos Xakriabáficaram conhecidos como ‘grupos de caboclos’ que partilhavam com posseiros e retirantesnordestinos as terras condominiais da Região. Se observados de longe, poderiam serconfundidos com outras centenas de comunidades rurais de agricultores pobres dos sertõesde Minas Gerais e Bahia. Entretanto, não se faz necessária uma análise etnográfica ehistórica profunda para perceber que os Xakriabá possuem uma identidade própria e umaaguçada e complexa consciência de sua indianidade. A religiosidade, a posse comum daterra e o apego ao território ancestral são apenas os aspectos mais evidentes.

Apesar disso, ao longo dos anos, sofreram constante e sistemático questionamento de

sua identidade, motivados pelo desejo de que não obtivessem a posse da terra, mas também,e não menos traumático, por não reconhecerem neles as características que o senso comume o repertório dos “especialistas” atribuem aos índios. Por escaparem às classificações padrão23, causando uma desconfiança nos “outros”, numa típica crise de alteridade24, acomunidade Xakriabá se vê imersa numa constante re-elaboração de seu papel social e desua identidade. E a identidade e a história do grupo são centrais para mediar sua relaçãocom a produção e com o mercado – portanto, com escolhas que devem ser feitas parasuperar as difíceis condições de vida do grupo.

Os Xakriabá não poderiam ser abordados como se fossem uma comunidade pré-moderna. Tampouco, poderiam o ser pela ótica da modernidade. A perspectiva da pós-modernidade25 seria talvez a mais indicada, na medida em que incorpora tanto uma crítica

do moderno, sem descartá-lo, como também o resgate do pré-moderno, sem imitá-lo. Nãose trata de substituir uma dicotomia por outra, mas de considerar que a descontinuidadeentre as duas condições - pré-moderno versus moderno - é bem menos radical do que sesupõe. Trata-se, de fato, de buscar eliminar as dicotomias, de tratá-las relacionalmente,como o faz o enfoque pós-moderno; não é mais isto ou aquilo (tempos, enfoques, métodos,lógicas) mas ambos, combinados segundo as necessidades efetivas da realidade com a qualse está lidando e à qual se busca responder e/ou intervir. Como dialogar com a sociedade“oficial” , como lidar com o mercado, aproveitar suas oportunidades e articular formas de produção e trabalho e ao mesmo tempo re-afirmar e re-elaborar formas passadas e presentescomuns em direção a um futuro incerto? Entretanto, não se trata aqui de discutir novascategorias teóricas, mesmo pós-modernas, para tratar de realidade social e econômica tão

dúbia, ‘misturada’ e em rápida transformação como a sociedade Xakriabá. Sua diversidadeintrínseca e a ‘identidade pós-moderna’ (Hall, 1999) que podem vir a construir (ou mesmoestar já construindo) nos seus contatos e transformações face à sociedade hegemônica naqual vêm se inserindo celeremente não eliminam ainda sua condição precária e subalternade vida, distante dos benefícios da vida moderna. Sem poder efetivamente resgatar sua pré-modernidade e ainda sem condições de construir alternativas à modernidade, mesmo diantedos instrumentos contemporâneos que lhes são oferecidos (computadores, acesso à web,telefonia celular, formas de organização econômica e social alternativas de base solidária,entre outros), podem ter que se jogar nos braços de uma modernidade perversa para buscareventualmente sua superação.

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Lévi-Strauss (1976:61) menciona o fato de economistas e sociólogos terem sido muitasvezes mais bem recebidos do que os antropólogos "em certos países da África e da Ásia".Esse fato curioso e aparentemente paradoxal ocorreria exatamente por que aqueles

representavam a civilização ocidental e muitos nativos prefeririam a condição de"provisoriamente atrasados" do que a de "permanentemente diferentes" (ibidem), temendoque a ênfase numa "diversidade desejável" fosse fazer passar como "aceitável (...) o quelhes parece uma insuportável desigualdade" (Lévi-Strauss, 1962: 24).

4 –Transformações necessárias nas esferas de produção e consumo

A principal atividade econômica dos Xakriabá é a agricultura, cultivada de modotradicional e voltada para a subsistência da família nuclear e ampliada. O excedenteeventual na maior parte das vezes não é vendido, mas trocado ou mesmo doado, numa redede relações baseada no compadrio, no parentesco e no compromisso mútuo que o grupo

mantêm entre si. Durante um longo tempo, a remuneração monetária era obtida comtrabalhos temporários para fazendeiros do entorno da Área. Com o recrudescimento dosconflitos nas relações entre índios e regionais, principalmente ao longo da segunda metadedo século XX, muitos Xakriabá preferiram trabalhar em outros Estados a se empregarem junto aos invasores de suas terras. Assim, com uma longa tradição, muitos homensXakriabá saem todos os anos do seu território para trabalharem alguns meses em São Paulo,Mato Grosso e Bahia, cortando cana e participando de outras colheitas. Hoje essa atividadeadquiriu uma magnitude considerável. Em algumas aldeias, a maioria dos homens estáengajada nesses trabalhos sazonais por até oito meses ao longo do ano.

Mas foram as escolas indígenas as grandes responsáveis por uma grande mudança nacomunidade. As escolas demandaram a formação de um grande grupo de jovens

 professores26, além de um conjunto de apoiadores – merendeiras, secretárias, faxineiras -,todos assalariados. A escola indígena, ao se tornar parte da vida cotidiana das aldeias, crianão somente novas possibilidades de inserção profissional (os professores formam umaelite profissional e cultural), mas ampliam os horizontes e expectativas daquelas crianças e jovens estudantes.

A escola inaugura a possibilidade de outros modos de vida – imediatamente para professores e apoiadores – que precisa dialogar com outros modos tradicionais, ligados aotrabalho com a terra e com as roças. E esse diálogo não é isento de tensões e de ruídos decomunicação. Muitos jovens já sabem – ou intuem – que o território é, ao mesmo tempo,garantia e confinamento. O crescimento demográfico limita a terra disponível, ao mesmotempo em que suas novas expectativas ultrapassam as possibilidades do território, na sua

atual dinâmica. Mais educados, com maiores perspectivas e necessidades de consumo, os jovens se deparam com a possibilidade de continuarem a tradição de suas famílias,trabalhando nas roças e em outras atividades agrícolas, com baixa monetarização, consumorestrito e diversas dificuldades de realização – faltam instrumentos, sementes, transporte,água para irrigação, etc. – ou buscarem novas possibilidades de atividade produtiva.

A recente presença da escola na Reserva Indígena instaurou – ou precipitou – umadiscussão importante: quais as alternativas de produção e de inserção econômica para os jovens recém saídos das escolas? Na tentativa de responder a essa pergunta, a comunidadese viu forçada a olhar sua organização, seu espaço, e suas relações internas e externas, na busca de um entendimento que apontasse caminhos. No amadurecimento desse processo, acomunidade sentiu a necessidade de um levantamento abrangente e sistemático de sua

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dinâmica socioeconômica, o que levou o cacique Xakriabá (à época também presidente daAIX – Associação Indígena Xakriabá) a propor ao Ceris27 a realização de um levantamento,uma pesquisa que ficaria conhecida como “Conhecendo a economia Xakriabá”, financiada

 por aquela instituição e elaborada e realizada em conjunto pela UFMG (FAE, Faculdade deEducação e Cedeplar/Face (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, daFaculdade de Ciências Econômicas) e pelas AIXs, as Associações Indígenas Xakriabá28.

Ao propor uma tentativa de entendimento de sua economia, a comunidade indígena jásabia de antemão que as respostas ajudariam na formulação de propostas voltadas paramelhorar as difíceis condições de vida do grupo e criar novas alternativas de produção etrabalho. Mas quais seriam essas alternativas, qual seu grau de inserção com a sociedaderegional e nacional? Quais os impactos dessas alternativas na cultura e no territóriocomuns? E mais: como conciliar a viabilidade econômica dessas alternativas com aconsonância de especificidades sociais, culturais e históricas? Quais as respostas e quais asopções que a economia poderia sugerir ou indicar?

O instrumental analítico tradicional da economia, moldado nos padrões formalistasliberais, se apóia no entendimento de sistemas econômicos avançados. Em tais sistemas, otrabalho assalariado, o lucro, o capital, a tecnologia, o mercado, a propriedade privada, aescala de consumo e produção, entre outros, são categorias aptas a serem manipuladas ereordenadas com vistas à maximização do bem estar, realizado através das escolhasracionais dos agentes envolvidos. Nesse tipo de abordagem, as soluções sugeridas para semelhorar as condições de vida material de uma sociedade, prescindem da existênciadaquelas categorias já mencionadas, já que todo seu arcabouço teórico se constitue a partirdelas.

Ao se deparar com grupos sociais onde aquelas categorias não se manifestam ou nãosão facilmente perceptíveis, essa tradição de abordagem econômica os situa no estágio pré-

capitalista (pré-moderno) e, portanto, como ainda inaptos a receberem suas recomendaçõese análises. Para que estas possam ser dadas, é preciso que o “objeto” se adeqüe àabordagem. Em outras palavras, o primeiro passo seria instaurar um modo socioeconômicode vida fundado naquelas categorias econômicas já citadas. Há uma clara noção detransição, de um movimento do arcaico (que não possui sequer os requisitos básicos passíveis de reorganização) para o moderno, o que implica a idéia de superação ehomogeneização. Supera-se aquilo que é considerado arcaico e naturalmente fadado a seacabar, e iguala-se a organização espacial e socioeconômica, compatibilizando aseconomias e permitindo a operacionalidade do sistema como um todo.

Essas noções de superação e homogeneização, centrais na abordagem econômicatradicional, têm duas grandes implicações para grupos sociais como os Xakriabá. A

 primeira delas se relaciona com o desrespeito às suas especificidades socioculturais ehistóricas, na medida em que são consideradas apenas como empecilhos a serem vencidos, peculiaridades a serem esquecidas – o que denota uma forte limitação e incapacidade do pensamento econômico tradicional, excessivamente preso a certos pré-requisitos demodelagem instrumental. A segunda implicação se relaciona à viabilidade dessas propostasde desenvolvimento econômico, sempre pautadas no lucro, na produtividade e naconcorrência no mercado, que por definição exclui a economia Xakriabá, dadas suascondições não capitalistas: propriedade coletiva da terra e dos meios de produção em geral,ausência de mecanismos de mercado, relações de produção pré-capitalistas mesmo que permeadas perifericamente por relações capitalistas e/ou da economia do setor público(transferências, benefícios sociais, etc.).

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Além disso, em países como o Brasil, com uma economia central cheia de sobressaltos,em que a capacidade de investimento e mobilização tanto do Estado como do setor privadoé limitada, a pretensa indução da superação de um estágio arcaico para outro moderno e

dinâmico não se realiza com a facilidade com que a teoria econômica tradicional pontua, namedida em que os pólos de modernidade (o Estado moderno e as empresas privadas) não possuem magnetismo suficiente para atrair e incorporar todo o conjunto social da nação, porque aqueles setores modernos e dinâmicos também guardam incontáveis contradições.

Uma saída pelos caminhos da economia política apresenta também algumasdificuldades, uma vez que a crítica marxista, mesmo com seus avanços e re qualificações, é portadora também de um projeto de modernidade. Um projeto alternativo ao projeto do pensamento econômico tradicional, de matiz liberal, mas que ainda assim traz consigo aidéia de superação e homogeneização. Suas categorias clássicas de análise e crítica tambémforam pensadas e formadas na observação de economias modernas e avançadas. A divisãode classes, os conflitos e as lutas pela apropriação dos meios de produção, a produção

voltada principalmente para mercadorias e toda a implicação conceitual e teórica queadvém daí, criam certos anacronismos se demandados para dar conta de uma realidadeespacial e socioeconômica como a dos Xakriabá.

 No entanto, a economia política avança e abre possibilidades – e seria essa sua grandecontribuição - quando propõe uma abordagem totalizante da compreensão dos processos eleis que regem a produção e a distribuição de bens e serviços e, mais ainda, quando se preocupa com a gestão desses processos, um requisito parcial para se pensar uma“economia indígena” onde a produção se dá, no mais das vezes, de forma coletiva, sobreuma terra de uso comum e indivisível. A preocupação com a gestão dos processos produtivos abre uma janela de oportunidade para grupos como os Xakriabá, pois permiteque se vislumbre possibilidades de potencialização da produção com base numa cooperação

mais ordenada e dirigida e baseada noutros tipos de incentivos, que não o lucro e arealização no mercado.

5. Para concluir o início da discussão: por uma “nova economia” (indígena)?

Uma economia que incorpore aspectos, potencialidades e problemas centrais dascamadas populares e dos povos tradicionais – em particular das populações indígenas – temque tratar de questões relacionadas à organização familiar e comunitária da vida quotidiana,incluindo necessariamente a capacidade de mobilização de seus membros para o trabalho, a preocupação com a reprodução dos grupos familiares e comunitários e a gestão dosrecursos disponíveis, inclusive a base territorial e ecológica onde se inserem.

A abordagem que a literatura especializada vem chamando de economia popular esoldaria oferece, embora não o afirmemos de modo definitivo, várias possibilidades paraincorporar realidades espaciais e socioeconômicas similares em vários aspectos com a dosXakriabá. Nessa(s) abordagem(ns)29, especificidades de economias locais não diretamentecomprometidas com os processos de organização e de acumulação capitalistas são tratadascomo elementos estruturais e viabilizadores de estratégias alternativas de desenvolvimentosócio-espacial e econômico, e não como obstáculos a serem transpostos para integração aouniverso do capitalismo. Por essa razão, vamos nos deter um pouco sobre ela(s).

Definir o que tem sido chamado de ‘economia popular e solidária’ é tarefa delicada.Embora tenham em comum as críticas que fazem às formas capitalistas tradicionais deorganização da produção e à necessidade de se valorizar os esforços de mobilização dos

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setores populares, particularmente privilegiando a valorização do trabalho, há poucosconsensos no que se refere às suas conceituações mais específicas.

Existe uma diversidade de denominações para, supostamente, um mesmo fenômeno.

Trata-se de um conceito em construção onde os termos utilizados tanto refletem o esforçode sistematização e elaboração teórica, como expressam as novas utopias e perspectivasideológicas: economia solidária, economia popular e solidária, economia dos setores populares, socioeconomia solidária, economia do trabalho, para ficarmos apenas com osmais comuns.

A opinião predominante, ou da teoria econômica tradicional, é que essa seria umatentativa de juntar coisas que se repelem, que se opõem. A economia seria o mundo dacompetição, da concorrência e da guerra de todos contra todos. O comportamentoeconômico e racional seria apenas aquele movido pelo egoísmo e pelo auto-interesse.

Sen (1999) aponta essa visão estreita sobre os seres humanos como uma das principaisdeficiências da teoria econômica contemporânea, um empobrecimento que demonstra o

quanto a economia moderna se distanciou da ética, negando-se a possibilidade de valoreshumanos e éticos para além da lógica do mercado, onde a ética tem sido freqüentementereduzida a uma questão técnica e adjetiva.30 Segundo ele, "o egoísmo universal como umarealidade pode muito bem ser falso, mas o egoísmo universal como um requisito daracionalidade é patentemente um absurdo".

Ao afirmar a importância dos empreendimentos econômicos associativos como fator demudanças sociais, não apenas em termos de benefícios econômicos, mas no modo de pensar das pessoas envolvidas, Sen (1999) faz um esforço para que o restabelecimento da junção entre ética e economia contribua para vislumbrar novas perspectivas teóricas e práticas – que vem sendo chamadas de economia popular e solidária.

Poderíamos definir a economia popular e solidária como o conjunto de atividades que,

diferentemente da empresa capitalista tradicional, possuem uma racionalidade econômicaancorada na geração de recursos (monetários ou não) destinados a prover e repor os meiosde vida e na utilização de recursos humanos próprios, agregando, portanto, unidades detrabalho e não de inversão de capital. Na economia dos setores populares convivem tanto asatividades realizadas de forma individual ou familiar como as diferentes modalidades detrabalho associativo, formalizadas ou não, a exemplo das cooperativas, empresasautogestionárias, centrais de comercialização de agricultores familiares, associações deartesãos, fundos rotativos, clubes de troca, etc. Essa designação, portanto, pretendeexpressar um conjunto de atividades heterogêneas, sem idealizar, a priori, os diferentesvalores e práticas que lhe são concernentes.

Singer (2000) tem uma clara preferência pelo termo de economia solidária. Sua entrada

nesta discussão se dá pelo grande interesse nas atividades cooperativas. Seguindo seuraciocínio, o que caracterizaria a economia solidária seria sua natureza autogestionária edemocrática. Para Singer (2002), a maioria dos empreendimentos solidários é de caráterintersticial, ou seja, surgiram como resposta a crises nas empresas, ao desemprego e àexclusão social. Para a viabilidade das atividades associativas e autogestionárias serianecessário que a economia solidária gerasse sua própria dinâmica, em vez de depender dascontradições do modo dominante de organização da produção. Para isso, teria que aliar umaforma industrial de produção com a organização comunitária da vida real.

 Não passam despercebidos, a Singer (2000), os flertes com a utopia que suas proposições lançam. De certa forma, há em suas idéias a percepção da economia solidáriacomo uma espécie de elo perdido entre o socialismo e o capitalismo; não é à toa que ele dá

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muita ênfase ao ethos que deve permear a condução dessa forma de empreendimento, assimcomo aos incentivos para a emergência de novas mentalidades baseadas na lógicacooperativa.

Para Coraggio (1994), a perspectiva que define o que ele denomina economia popular éseu foco central na ‘reprodução ampliada da vida’31, em contrapartida à busca de realizaçãode excedentes que predomina na economia tradicional. Um conceito fundamental e muito poderoso na obra de Coraggio é o que ele denomina de economia do trabalho, que só podeser compreendida integralmente em contraponto com a economia tradicional, baseada nocapital.

A economia do trabalho seria uma possibilidade de desenvolvimento que parte dascontradições internas dos setores econômicos mais dinâmicos. Assim como a empresacapitalista é a forma elementar de organização microeconômica do capital, Coraggio (1994)sugere que as ‘unidades domésticas’32  seriam as formas microeconômicas próprias dotrabalho. Na economia do capital se vê o conjunto da economia a partir da lógica do capital

e de sua acumulação, com o sistema de interesses da sociedade hegemonizado pelosinteresses gerais ou particulares dos setores capitalistas mais dinâmicos. Já na economia dotrabalho, o conjunto da economia se pauta a partir da lógica do trabalho e da busca dareprodução ampliada da vida, confrontando aquela hegemonia com o interesse do conjuntodos trabalhadores e de suas múltiplas identidades e agrupamentos.

A Unidade Doméstica, formada por uma ou mais pessoas, ligadas por relações de parentesco ou outros tipos de afinidade, teria por objetivo precípuo a reprodução ampliadada vida de seus membros33. As satisfações obtidas com os produtos produzidos por eles próprios ou os produtos e serviços que vendem em alguns mercados, resultam do exercíciodas capacidades que conformam o Fundo de Trabalho das unidades domésticas: energiafísica, habilidades, disposição, conhecimentos adquiridos através da educação formal,

informal ou transmitidos entre gerações. São capacidades que possuem os membros dasunidades domésticas e que têm grande potencial como meio de produção ou como insumo para a produção de bens (Coraggio, 1994).

O Fundo de Trabalho seria o principal recurso que a economia dos setores populares – edas unidades domésticas que a compõem – dispõem, ainda que possam, eventualmente,lançar mão de outros recursos. A idéia básica da economia do trabalho, de Coraggio(1994,2000), se refere à percepção de que é através de seu Fundo de Trabalho – um rol de potencialidades de atividades que podem ser exercidas, remuneradas ou não – que ossetores populares garantem sua reprodução e firmam sua identidade.

Ainda segundo Coraggio (1994), os empreendimentos populares deveriam serencarados como menos conjunturais e mais permanentes. Não como um paliativo para a

 pobreza extrema, mas como alternativa de autonomia e um ingrediente importante emqualquer esforço de desenvolvimento econômico.

Ao trazermos para a discussão os aspectos ambientais e ecológicos – centrais para umacomunidade que tem no manejo do território uma necessidade vital – percebemos umaafinidade e um caminho comuns aos princípios da economia popular e solidária. Aeconomia ambiental (como a economia ecológica34) é uma área de estudo ainda emconstituição que, apesar de reconhecida como fundamental para o estudo dos problemascontemporâneos, encontra dificuldades em se definir e afirmar no campo interdisciplinaronde pretende se inserir.

De fato, historicamente a economia veio sofrendo reduções no seu objeto de estudo,eventualmente reduzindo-se ao que era denominado na Grécia antiga de crematística35, ou

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seja, a formação dos preços no mercado. Tomada desta forma, a economia reduz seuuniverso de atuação e preocupação aos bens econômicos, ou seja, aos bens úteis e escassos, porém passíveis de serem mercantilizados. Neste sentido eminentemente restrito e analítico,

a economia (ou a análise econômica) se preocupa apenas em analisar os impactoseconômicos que os recursos naturais – e eventuais limitações naturais e ecológicas –impõem aos processos de produção, distribuição e consumo.

Vista da ótica da economia tradicional, a ecologia constitui uma limitação a sersuperada pela economia, seja através da eliminação dos entraves à adequada utilizaçãoeconômica dos recursos naturais, seja através da precificação dos recursos a seremapropriados (ou contabilizados) nos vários processos produtivos. Da ótica da superação doslimites, o próprio mercado impulsionando a tecnologia deveria ser capaz de gerar novosarranjos institucionais, determinar o uso de novos materiais substitutivos, determinar arestrição (via preço) no uso dos recursos em vias de exaustão, provocar a reciclagem derecursos e dejetos não aproveitados, entre outras dinâmicas próprias dos mercados

econômicos. Em suma, os problemas ambientais constituem, nessa ótica, imperfeições demercado, seja por exclusão, como no caso dos bens livres (ar, água, recursos abundantes,etc), seja por dificuldades metodológicas em quantificação, determinação de propriedade,ou processos similares.

Uma economia para tratar da questão indígena há que ser uma economia que incorporequestões ligadas à gestão do ambiente de vida e ao desenvolvimento da produção econsumo comunitários (e familiares), ligadas à vida quotidiana e à reprodução coletiva.Esta ‘disciplina’, a que chamamos ‘nova economia’, terá que resgatar (e certamente ampliare redefinir) o sentido etimológico original da oekonomia, isto é, da nomia do oikós, cujatradução livre (e imprecisa) vamos tomar como sendo a “gestão do espaço de vida”36. Aênfase crescente nos aspectos ligados à qualidade de vida, nos aspectos da reprodução

coletiva e da vida comunitária, nas alternativas de organização social e econômica para a produção (e consumo), em articulação mas essencialmente externas ou periféricas aosaspectos centrais do capitalismo internacional sugerem que algo novo está em gestação nomundo contemporâneo, articulando as escalas local e global, as instâncias sócio-espaciais eculturais, e as questões ambientais e econômicas. Suas implicações e desdobramentos paraos povos tradicionais e excluídos, e em particular, para os Xakriabá no Norte de MinasGerais, ainda estão por ser (re)definidas, investigadas e compreendidas.

Notas

1

 Emancipado do município de Itacarambi em 1996, do qual até então era um distrito, o município de SãoJoão das Missões tem 10.230 habitantes (IBGE, 2000).

2  O número de aldeias pode variar segundo os critérios utilizados, já que ao redor das aldeias maiores pequenas concentrações podem ou não ser consideradas aldeias ou sub-aldeias, dependendo do prestígio deum ou mais membros dessas comunidades. Aqui, usamos o número de aldeias listadas pelas principaislideranças Xakriabá numa reunião realizada em outubro de 2004.

3 A observação e interpretação de aspectos da vida dos povos indígenas do interior do Brasil com base nos povos indígenas do litoral e das florestas também foi fonte recorrente de equívocos. Ver a savana com osolhos da floresta ou do litoral foi uma constante na história da colonização do Brasil, uma visão emcontinuidade àquela dos Tupinambá, habitantes da costa atlântica, que desprezavam seus vizinhos do interior,chamados genericamente de Tapuia, a maioria deles povos de língua Macro-Jê (Lanna, 1996). 

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4 Apenas no século XX surgiram trabalhos de fôlego sobre os Xakriabá, entre os quais se destacam Marcato

(1978), Paraíso (1987) e Santos (1997). Embora sejam trabalhos de qualidade e apuro, refletem a fragilidadedas informações disponibilizadas por viajantes e historiadores dos séculos XVI ao XIX.

5  Grupos etno-linguísticos do agrupamento Akuê: Apinayé, Kayapó, Panará, Suyá, Xakriabá, Xavante,Xerente e Xokléng (ISA, Dicionário dos Povos Indígenas, disponível em www.isa.org.br)

6 Pelas descrições dessa autora, o atual Estado de Tocantins, outrora norte de Goiás, também faria partedaquela área.

7 Os Xakriabá eram também chamados de Gamelas e são assim referidos no Relatório de Viagem da Funai de1969 (Funai, 1969).

8 O SPI – Serviço de Proteção aos Índios, criado em 1910 pelo Marechal Rondon sob inspiração positivista,apesar da boa vontade de seu criador sempre teve uma atuação polêmica e se pautava por uma política deintegração dos grupos indígenas à “sociedade nacional”.

9 O prefeito José Nunes de Oliveira é também irmão do atual cacique Xakriabá, Domingos de Oliveira.

10 Parte do Relatório de Aspicuelta é reproduzido em José (1965: 20).

11 Diz Saint-Adolphe, a respeito de Morrinhos: "É a mais antiga povoação de ambas as margens do rio deSão-Francisco, entre a confluencia do rio Guaicuhi ou das Velhas e do Rio Verde. Deo-lhe principio JanuárioCardoso em 1704, o qual, acompanhado dos seus, de seu filho Matheos Cardoso e de seu sobrinho ManoelFrancisco de Toledo, (...) fizerão um estabelecimento rural nas terras dos Indios Chacriabás com os quaistravarão alliança depois de os terem combatido" (Saint-Adolphe,1845: Verbete `Morrinhos').

12 Os Botocudos não eram um povo, mas sim uma confederação de povos que habitavam a Mata Atlântica,

concentrados principalmente na Zona da Mata e Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia.Cada povo tinha seu nome, mas a maioria falava a mesma língua, do tronco Macro-Gê, com pequenasvariações. Ao que parece, a maioria destes grupos eram distintos etnicamente, mas se uniram para somarforças na defesa e expansão do seu território. As primeiras notícias sobre os Botocudos datam de 1505 e essadenominação se deve a uma generalização portuguesa, já que o primeiro grupo contactado usava alargadoresnos lábios e na orelha, semelhantes aos botoques (rolhas) usados nas garrafas de vinho (Paraíso, 1987:414).

13 Guido Marlière foi um militar francês que prestou serviços à Coroa Portuguesa. Ao contrário da violênciados seus pares, usava uma estratégia diferenciada para se aproximar dos indígenas, que consistia em lhes daralimentos e ferramentas, ensinar-lhes a agricultura, aprender-lhes a língua e atraí-los aos aldeamentos.Embora a pacificação e o aldeamento dos Botocudos seja creditada como sua maior conquista, destacou-se na

 produção de literatura etno-histórica em Minas Gerais, ao longo do século XVII, apresentando umasensibilidade que, para a época e o estado das artes das ciências sociais, se destacava – razão pela qual sua

 política era identificada por ser a da “boa vizinhança”. Hoje sabemos que essa política era boa, sobretudo, para os portugueses. Um livro curioso sobre Marliére é “Marliére – o Civilizador”, de Oilian José (1958).

14 Teófilo Ottoni (2002 [1858]), escrevendo sobre os botocudos do vale do Mucuri, ressalta que em meadosdo século XIX não mais se tratava de dominar o corpo dos índios para forçá-los ao trabalho, mas sim de ‘criarlaços de amizade’ para ‘ganhar’suas terras.

15 Como relata Fernandes Ribeiro, índio Xakriabá: “Sempre os brancos mineiros não queriam saber desta terramas com a continuação dos tempos, houve uma grande fome no Estado da Bahia, por falta de chuva que searretirou muitos baianos brancos e outros pretos e se arrancharam numa parte da Serra dos Xakriabá e muitos

 brancos pobres e negros se casaram nas famílias dos índios e quando eles se arranjaram na forma deagregados dos índios faziam a maior amizade com os índios e se foi apoderando das terra” Transcrição derelato em Santos (1994:9).

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16  A construção do Curral de Varas na aldeia de Rancharia, no início do século XX, significou não só a

invasão da terra indígena em busca de novas posses. O Curral fora construído numa área considerada sagradae que era usada para os rituais do Toré. A invasão tem, portanto, também um sentido de repressão religiosa esocial (Santos, 1997, 55).

17 Dança cerimonial que envolve cantorias e danças rituais, embaladas pelo consumo de uma bebida com propriedades alucinógenas, que propicia o ambiente de contato com entes sobrenaturais. A cerimônia misturaelementos de cultura indígena e afro. Só podem participar do Toré membros aceitos como efetivos, o queexclui aqueles de fora que tenham se casado com os índios. O Toré seria a mais pura manifestação deindianidade, que segundo os Xakriabá, deve ser preservada e protegida. A presença de um não índio nosterreiros cerimoniais inviabilizaria o ritual, uma vez que as entidades sobrenaturais não se manifestariam. Nacosmologia Xakriabá, a entidade da onça Yaya cabocla é fundamental. Uma índia chamada Yndaia sofreu umencantamento e se transformou numa onça para defender sua família. Como o encantamento não se desfez,ela continua vivendo em harmonia com seu povo, a quem protege. Apesar de um forte sincretismo, sobretudo

 por conta da herança católica, não crer no Toré e na Onça Yaya é motivo de ostracismo e até de represálias nacomunidade. No Dicionário do Folclore Brasileiro, à página 531, Câmara Cascudo discorre sobre o papel daonça Yaya, também conhecida como onça cabocla, na religião dos índios do São Francisco.

18 A Ruralminas é o órgão de terras do Estado de Minas Gerais, encarregado de regularizar a propriedade daterra no Estado e promover a colonização de Áreas não ocupadas lançando mão de incentivos de vários tipos.Como aconteceu também com instituições similares em outros Estados, sua atuação foi marcada por fortesinteresses políticos, beneficiando grandes proprietários e grupos políticos. Fundada na década de 1960, aindahoje se lê em seu sítio oficial: “Minas Gerais, final da década de sessenta. Enormes vazios econômicos edemográficos ainda pontuam o Estado. Regiões inteiras permanecem isoladas, sem recursos e sem infra-estrutura. É preciso criar mecanismos capazes de promover a integração dessas áreas esquecidas do territórioestadual”, disponível em http://www.ruralminas.mg.gov.br/.

19 Não por acaso a prática do Toré voltou a ser encenada regularmente no ano de 1969, momento de ataque

sistemático ao grupo. Retomar as práticas religiosas comuns aos antepassados foi, ao mesmo tempo,reafirmação cultural e ato político de resistência e organização.

20 CIMI – Conselho Indigenista Missionário, braço da Igreja Católica, atua junto a povos indígenas no Brasil, produzindo informações e assessorando os em diversas atividades, sejam jurídicas, assistenciais, políticas eeconômicas. Espalhado em todo o território nacional, têm um trabalho junto aos Xakriabá desde a década de1960, tendo inaugurado um escritório junto à comunidade no início da década de 1980.

21 Em 1985 o CIMI registrou ao menos 3 situações de conflito direto por mês na Área. Nesse mesmo ano, oscinco maiores “proprietários-invasores” detinham 60% da Área Homologada (CIMI-1985).

22 O assassinato de Rosalino de Oliveira causou grande comoção na comunidade. Além dele, mais dois índiostambém foram mortos. Antes deles, em 1985, Zé de Benvindo havia sido emboscado por razões parecidas,

sobrevivendo e fugindo da Região. Cabe também ressaltar a atuação do falecido Cacique Rodrigão. Figuracontroversa, esteve sempre presente nas disputas do povo Xakriabá e desenvolveu grande habilidade paralidar nos interstícios da burocracia estatal. Foi funcionário da Funai e vice-prefeito do município de São Joãodas Missões, no primeiro pleito após a emancipação da cidade. Faleceu em 2003.

23 Nos últimos anos, aumentou o número de populações que passaram a reivindicar pública e oficialmente acondição de indígenas no Brasil. Trata-se de famílias que, miscigenadas e territorialmente espoliadas,deslocadas e concentradas ao longo do tempo, reencontram, no presente, contextos políticos e históricosfavoráveis à retomada de identidades coletivas indígenas.Os pesquisadores utilizam expressões variadas para se referir ao fenômeno: "identidades emergentes", "índiosemergentes", “’indios misturados”, “etnogênese”, “viagem da volta" ou "comunidades indígenas ressurgidas".

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 24 “... existe um ele que se pensa em mim, e que me faz duvidar de que sou eu quem pensa" (Levi Strauss,1976: 45)25

 A possibilidade de relação entre novos modos de acumulação do capital e novas práticas e formas culturaisdentro da organização do capitalismo é apontada por David Harvey (1989) como central à condição pós-moderna.

26 Os primeiros professores Xakriabá se formaram na segunda metade dos anos de 1990. Desde então, muitosdeles emergiram como lideranças e importantes articuladores, em contraste com as lideranças tradicionais,composta pelos índios mais velhos, legitimados pela experiência de vida e pelo respeito conquistado junto aosdemais. A relação das lideranças emergentes – a maioria entrando agora na casa dos 30 anos – com aslideranças tradicionais é muito complexa e marca claramente, com freqüência, as diferenças de projetos eexpectativas da comunidade.

27 O CERIS - Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, é um organismo não governamental, decaráter religioso e com sede no Rio de Janeiro que, a exemplo do CIMI, apóia projetos comunitários ligados a

 populações tradicionais e/ou excluídas.28 A Associação Indígena Xakriabá, inicialmente criada na aldeia Brejo do Mata Fome, onde reside o caciquee se situam a maior escola, posto e serviços da Funai e hospital, logo foi seguida da AIX do Barreiro/Sumaré.Outras associações foram criadas mais recentemente e hoje são oito AIX em toda a área, além dos Grupos deRoça e a Associação Escolar.

29 A “economia popular” e a “economia solidáira”, apesar de muitas vezes tratadas juntas ou ligadas em umaúnica terminologia, partem de vertentes e pressupostos diferenciados. Kraychete (2000) reuniu alguns debatesque se colocavam sobre o tema, sem esgotá-los, seja em suas definições iniciais seja em seus desdobramentos.

30 Sobre este tema, ver Cerqueira (2004).

31 Coraggio fala em reprodução simples e ampliada da vida. Por reprodução simples, entende o acesso a bense serviços que garantem uma reprodução física, de continuidade da vida. Por reprodução ampliada, situa o usoe o consumo daquilo que é, socialmente considerado, em diferentes tempos históricos, necessário para uma

 boa existência física e social.

32  A idéia de Unidade Doméstica ultrapassa o domicílio e abarca diversas formas de afinidade que potencializam associações, sejam essas afinidades de caráter comunitário, religioso, ideológico, etc.

33 Para Coraggio (1994), a economia capitalista internacional teria como objetivo precípuo a acumulação decapital, enquanto a economia do setor público teria como objetivo precípuo a manutenção do ‘status quo’.

34 A “economia ecológica” vem se constituindo como um campo específico dentro da economia ambiental e privilegia abordagens centradas no processo de valoração da natureza como forma de preservação dosrecursos naturais através de sua inserção nos mercados capitalistas, buscando assim ‘economicizar a ecologia’(Colby, 1990);.sobre economia ecológica, ver Constanza et al. (1991, 1996, 1997).

35 A este respeito, ver Martinez-Alier (1992) e Jacobs (2001).

35 O conceito de oikós, na Grécia antiga, (assim como o conceito de  polis), é muito mais amplo do que astraduções usualmente utilizadas de ‘casa’ (e ‘cidade’). A dissociação entre a dimensão social e a organizaçãoespacial não cabia nas sociedades antigas. Cerqueira (2000) discute como o conceito de economia reapareceucom um sentido da ética na gestão da vida familiar, na Inglaterra do século XVIII, e Jacobs (2001) discute osurgimento e a transformação do conceito de ecologia, no século XIX.

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