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ACADEMIA E TREINAMENTO DE OBREIROS APOSTILA DISCIPLINA: Hermenêutica Vitor Paulo Abdias Soares

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ACADEMIA E TREINAMENTO DE OBREIROS

APOSTILA

DISCIPLINA: Hermenêutica

Vitor Paulo Abdias Soares

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ACADEMIA E TREINAMENTO DE OBREIROS

CURSO BÁSICO EM TEOLOGIA

PROGRAMA GERAL DA DISCIPLINA

I. IDENTIFICAÇÃO

Disciplina: Hermenêutica

Professor: Vitor Paulo Abdias Soares

Carga Horária: 30 horas/aula

Turma: Única

Ano: 2014

Créditos: 02

Turno: Diurno

Semestre: 2014.1

II. EMENTA

Hermenêutica, sua natureza, história e necessidade, fundamentos e processo;

considerando algumas regras básicas para na sua aplicação.

III. OBJETIVO GERAL

Fornecer aos alunos condições para ler e interpretar a Bíblia de forma

responsável, séria e frutífera, seguindo os princípios de interpretação

consagrados pela história, e que derivam-se das convicções da Bíblia como

Palavra de Deus.

IV. OBJETIVO ESPECÍFICO

Proporcionar aos alunos um conhecimento básico de hermenêutica;

Despertar o aluno a compreender a importância do uso da hermenêutica;

Apresentar aos alunos algumas regras básicas para o uso da interpretação

bíblica.

V. CONTEÚDO PROGRAMÁTICO.

Unidade I - A NATUREZA DA HERMENÊUTICA.

1. A palavra hermenêutica

2. Objeto da hermenêutica

3. O processo hermenêutico

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Unidade II - SÍNTESE HISTÓRICA DA INTERPRETAÇÃO CRISTÃ DA BÍBLIA

1. Escola de Alexandria 2. Escola de Antioquia 3. Os Pais Latinos 4. A Idade Média 5. A Reforma Protestante 6. Período Pós-Reforma 7. Período Moderno e Contemporâneo

Unidade III - A NECESSIDADE DA HERMENÊUTICA.

1. O distanciamento causado pela natureza humana da Bíblia

2. O distanciamento causado pela natureza divina da Bíblia

Unidade IV - CONSCIENCIA PRÉVIA PARA UMA ELABORAÇÃO

HERMENÊUTICA.

1. A Bíblia é Inerrante.

2. Houve erros de copistas.

3. Os autores bíblicos não receberam conhecimento pleno e onisciente

acerca do mundo ao escreverem.

4. Existem partes difíceis de entender na Bíblia.

5. As traduções da Bíblia não são inerrantes.

Unidade V – ASPECTOS DA HERMENEUTICA BÍBLICA

1. Aspecto Pneumatológico

2. Aspecto Teológico

3. Aspecto Gramático

4. Aspecto Literário

Unidade VI – REGRAS BÁSICAS DA HERMENÊUTICA BÍBLICA

1. A Bíblica como autoridade máxima em questão de religião, fé e

doutrina.

2. Consideração da Bíblia como revelação de Deus em Jesus Cristo – a

história da redenção - como mensagem central.

3. Escritura com Escritura.

4. Experiência pessoal a luz da Escritura, e não Escritura a luz da

Experiência pessoal.

5. Os exemplos morais e éticos da Bíblia somente têm autoridade a sua

prática, quando recomendados pelo Novo Testamento.

6. O Antigo Testamento é interpretado pelo Novo. 7. O texto quer dizer o que o seu autor quis dizer.

8. O sentido natural deve ser preferido ao figurado.

9. Cada texto tem apenas um sentido, mas muitas aplicações.

10. Todo texto deve ser lido à luz do seu contexto

11. A história da Igreja, embora importante, não deve ser decisiva na

interpretação das Escrituras.

12. O texto descritivo só deve ser normatizado se for ensinado em textos

didáticos.

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VI. METODOLOGIA

Aulas expositivas-dialogais utilizando o projetor de mídia

Apresentação de vídeos

Círculos de debates

VII. AVALIAÇÃO

Observação participativa e proveitosa do aluno

Leitura da bibliografia básica

VIII. BIBLIOGRAFIA BÁSICA KAISER, Walter C; SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica Bíblica. São Paulo – SP: Ed. Cultura Cristã, 2002

IX. BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR VIRKLER, Henry A. Hermenêutica Avançada, Princípios e Processos de Interpretação Bíblica. SP: Vida Nova, 1996

BERKHOF, Louis. Princípios de interpretação bíblica. Trad. de Merval Rosa. 4a ed.RJ: JUERP, 1988.

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Introdução

O estudo da hermenêutica tem sido de fundamental importância ao cristão em

todas as eras, pois a sua falta nos púlpitos e nos devocionais tem gerado uma

infinidade de interpretações, heresias e confusão no seio da igreja. O biblicismo ou o

uso de textos bíblicos sem critérios apropriados, tem gerado muitas discrepâncias

interpretativas, não é a toa que alguém disse que ―a Bíblia é a mãe das heresias‖. O

conhecimento de textos bíblicos, embora necessário, não garante o uso adequado dos

mesmos, é preciso interpretação adequada. O apóstolo Pedro admite, falando das

Escrituras, que entre as do Novo Testamento "há certas coisas difíceis de entender, que

os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras [as

do Antigo], para a própria destruição deles" (2 Pe 3:16). E para maior desgraça e

calamidade, quando estes ignorantes nos conhecimentos hermenêuticos se apresentam

como doutos, torcendo as Escrituras para provar seus erros, arrastam consigo

multidões à perdição. Não há livro mais perseguido pelos inimigos, nem livro mais

torturado pelos amigos, que a Bíblia, devido à ignorância da sadia regra de

interpretação.

Toda leitura de um texto envolve um processo de interpretação do mesmo. Não

existe compreensão de um texto sem que haja interpretação, mesmo que esta leitura

seja do jornal e o processo de interpretação aconteça inconscientemente. Sendo um

texto, a Bíblia não foge a esta regra. Cada vez que a abrimos e lemos, buscando

entender a mensagem de Deus para nós, engajamo-nos num processo de interpretação.

A maioria de nós toma por certo que, enquanto lemos, também entendemos o que

lemos. Tendemos a pensar que nosso entendimento é a mesma coisa do Espírito Santo

ou o autor humano. Apesar disso, levamos invariavelmente para o texto tudo quanto

somos, com toda nossa experiência, cultura e entendimento prévio de palavras e idéias.

Às vezes, aquilo que levamos para o texto, sem o fazer deliberadamente, nos

desencaminha ou nos leva a atribuir ao texto idéias que lhe são estranhas.

Como Palavra de Deus, a Bíblia deve ser lida como nenhum outro livro. Mas,

tendo sido escrita por homens, ela deve ser interpretada como qualquer outro livro.

Além disto, a Bíblia está distante de nós em diversos aspectos, como veremos adiante,

o que faz com que nossa leitura dela exija um esforço consciente de interpretação.

Há muitas pessoas que consideram desnecessária o estudo e o esforço

intelectual para a compreensão da Bíblia, outras ficam desanimadas com as

controvérsias e as polêmicas que existem nos meios intelectuais onde se estuda a Bíblia.

Alguns até pensam que estudos acadêmicos da Bíblia são uma barreira à

espiritualidade e ao crescimento da Igreja. Podemos entender a atitude de pessoas

assim, pois realmente existem muito academicismo e intelectualismo árido e infrutífero

em muitos círculos evangélicos. Por outro lado, rejeitar o estudo da Bíblia não vai

resolver o problema, pois continuamos diante de um texto antigo, distanciado de nós,

escrito em outras línguas e que precisa ser interpretado para poder ser entendido.

Alguns dizem: "Vamos deixar de lado estas questões e simplesmente ler a Bíblia como

ela é". Infelizmente, uma leitura assim não é possível. Não existe leitura e

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entendimento de um texto sem que haja interpretação, mesmo que esta interpretação se

processe de forma inconsciente.

As Sagradas Escrituras tratam de temas que abrangem o céu e a terra, o visível e

o invisível, o material e o espiritual, o tempo e a eternidade. Foram registradas por

pessoas de variadas classes sociais, em países muito distantes, com diferentes

costumes, e linguagem tão simbólica que, para uma reta compreensão da sua

mensagem não podemos dispensar o valioso auxílio da hermenêutica. A liderança e a

Igreja deve se esforçar ao máximo para compreender e fazer uma boa interpretação da

Bíblia, tendo em vista que a saúde da nossa fé depende muito disto; pois a nossa visão

e prática de fé está intrinsecamente ligada a interpretação que fazemos da Bíblia.

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I. A NATUREZA DA HERMENÊUTICA

1.1. A Palavra Hermenêutica

A palavra ―interpretar‖ é a tradução de um verbo grego hermeneuo, que tem sua origem no nome de Hermes, um deus mensageiro na mitologia grega. Havia uma crença na mitologia grega de que havia um deus chamado Zeus, o pai de todos os deuses, que morava em panteão, uma espécie de mansão celestial, cercado por outros deuses que eram seus filhos; quando Zeus queria falar aos homens enviava Hermes, o deus mensageiro, que trazia a sua palavra; Hermes, por sua vez, falava a uma sacerdotisa que havia na cidade de Delfos e essa sacerdotisa interpretava para o povo a mensagem que ele trazia. Daí a palavra hermeneuo, que significa interpretar a mensagem trazida pelos deuses.

A palavra hermeneuo veio a ser usada com o sentido de explicar, interpretar, traduzir. No Novo Testamento temos: Lucas 24:27; 1 Coríntios 12:10; 1 Coríntios 14:28; Hebreus 7:2. Roy Zuck define assim hermenêutica: ―Hermenêutica é a arte e a ciência de interpretação. É ciência porque postula princípios seguros e imutáveis; é arte porque estabelece regras práticas e envolve uma tarefa.‖ 1.2. Objeto da Hermenêutica

O objeto da interpretação pode ser uma mensagem escrita (como na hermenêutica bíblica) ou oral (como na tradução ou na teoria da comunicação), ou pode ser um fenônemo ou ato realizado em outra cultura (como na análise transcultural). Em todos estes casos, procura-se entender algum símbolo ou ato simbólico desconhecido.

1.3. O Processo Hermenêutico

O processo da hermenêutica, ou o processo de como nós entendemos ou interpretamos outros símbolos (mensagens, costumes, rituais ou ações), pode ser representado graficamente. Vários autores já propuseram modelos visuais do processo hermenêutico: um círculo, dois horizontes, três planos, e um espiral.

II. SÍNTESE HISTÓRICA DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA.

A Interpretação da Bíblia no Período Pós-apostólico. Após a morte dos apóstolos, inicia-se a chamada era pós-apostólica, que vai do

século II até o século IV, época dos grandes concílios ecumênicos na Igreja. No período pós-apostólico, a Igreja de Cristo era liderada por pastores e bispos que vieram a exercer considerável influência sobre a Cristandade daquela época. São os chamados ―Pais da Igreja‖. É uma época de intensos debates teológicos sobre questões doutrinárias vitais para a sobrevivência da Igreja. Os Pais da Igreja procuravam entender qual a verdade de Deus examinando as Escrituras. Debates vigorosos acontecem quanto ao sentido exato das palavras dos apóstolos e profetas. Uma das questões hermenêuticas centrais era como a Igreja Cristã poderia interpretar as profecias, instituições, personagens e eventos do Antigo Testamento de forma a refletir a Cristo.

Duas linhas nítidas e diferentes de interpretação surgem nessa época. A primeira, mais alegórica, está relacionada com a cidade de Alexandria. A outra, que surge depois em Antioquia em reação à primeira, é mais voltada para o sentido literal do texto bíblico. Os problemas que enfrentaram de certa forma anteciparam as questões de interpretação que a Igreja iria encarar através da sua história, até o dia de hoje.

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2.1. A escola de Alexandria (Egito): O sistema interpretativo que veio a associar-se com a cidade de Alexandria tem

suas raízes históricas nas idéias de dois importantes filósofos gregos: Heráclito (Éfeso, 540?-475?) e Platão (Atenas, 427?-347?); que deram origem a um sistema de interpretação chamada de alegorese , termo que vem da palavra grega ―alegoria‖ que significa dizer uma coisa em termos de outra. É o conceito de que a verdade se encontra alegoricamente oculta além da letra e da realidade visível. Esse modo de interpretação influenciou mais tarde um judeu de Alexandria, chamado Filo que tentou fazer síntese entre as idéias de Platão e de Moisés, que os tinham como seus heróis, Filo escreveu diversas obras e comentários sobre a Lei de Moisés interpretando as Escrituras alegoricamente, em termos das idéias, virtudes e moralidade do platonismo.

Eis alguns exemplos da interpretação de Filo em seus comentários sobre Gênesis:

A criação do jardim do Éden (Gn 2.8-14) - O rio Gion (2.13) significa ―coragem‖ e circunda a terra de Cuxe, que significa ―humilhação‖; o sentido alegórico é que a coragem dá demonstrações de bravura diante da covardia. Já o rio Tigre (2.14) significa temperança, pois como um tigre, resiste resolutamente ao desejo. Eufrates (2.14) não se refere ao rio. O sentido alegórico é justiça. O rio Pisom (2.11) significa ―mudança na boca‖ e Havilá ―tagarelar‖, que Filo interpreta como significando ―insensatez‖. A interpretação alegórica da passagem é que a insensatez é destruída pela ―mudança na boca‖, que é o falar com prudência!

A criação e queda do homem (Gn 2-3) - Filo considera fábula a narrativa da criação da mulher da costela de Adão, após o mesmo haver adormecido. Ele rejeita a interpretação literal da passagem. O sentido verdadeiro é que Deus tomou o poder dos sentidos externos (Eva) e o conduziu à mente (Adão). Esse poder é sempre ameaçado pelo prazer (a serpente). A promessa messiânica, ―Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar‖ (3.15) é interpretada como Deus dizendo ao prazer (serpente) que a mente (o homem) vai vigiá-la e que em troca, o prazer (serpente) vai atacar a mente (homem) oferecendo os prazeres mais básicos (morder o calcanhar)!

Quando o Evangelho alcançou Alexandria, muitos se tornaram cristãos. Um dos líderes foi Barnabé (150? AD) que ficou conhecido pela Carta de Barnabé, onde interpreta alegoricamente o Antigo Testamento seguindo os métodos de Filo. O exemplo mais famoso da carta é a interpretação que ele faz de Gênesis 14.14 (onde se mencionam os 318 homens de Abraão) para provar que Abraão sabia não somente o nome de Cristo, mas até que ele haveria de morrer na cruz:

Barnabé 9:6 – Portanto, filhos do amor, aprendam abundantemente a respeito de Abraão. Ele, que primeiro estabeleceu a circuncisão, olhava em espírito para Jesus, quando circuncidou a sua casa. Pois a Escritura diz ―Abraão circuncidou 318 homens da sua casa‖ [―Ouvindo Abrão que seu sobrinho estava preso, fez sair trezentos e dezoito homens dos mais capazes, nascidos em sua casa, e os perseguiu até Dã‖, Gn 14.14]. Que conhecimento lhe foi dado naquela ocasião? Compreendam: Ele [Deus] disse primeiro 18 e depois do intervalo, 300. No 18, o número 10 equivale a ―I‖ (no alfabeto grego) e 8 a ―H‖. Aqui tu tens JESUS (IHSOYS). 300 equivale a ―T‖ e aqui tens a cruz. Então, Ele [Deus] revelou Jesus nas duas letras e a cruz na última.

Um outro líder foi Pantenus. Inicialmente um filósofo estóico, Pantenus converteu-se e fundou uma escola cristã catequética em Alexandria no século II. O sistema utilizado na escola para interpretar a Bíblia era alegórico. Desde o seu nascimento, a escola de Alexandria estava influenciada pelo neoplatonismo, uma escola filosófica que segue as idéias de Platão. Os principais representantes cristãos com esse sistema de interpretação foram: Pantenus, Clemente de Alexandria, Origenes. Orígenes dizia que os cristãos detinham o sentido mais profundo das Escrituras, que havia sido ocultado dos judeus incrédulos.

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Orígenes dizia haver três níveis de sentido nas Escrituras, correspondentes às três dimensões da personalidade humana: 1) Carne – a interpretação literal e óbvia corresponde à carne ou ao corpo humano, que é visível e evidente a todos que o vêem. Esse tipo de interpretação é para os indoutos. 2) Alma – aqueles que já fizeram algum progresso na vida cristã começam a discernir sentidos mais além do óbvio. 3) Espírito – a interpretação alegórica, própria dos que são espirituais.

Alguns exemplos de sua interpretação das Escrituras:

Rebeca vem tirar água do poço e encontra os servos de Abraão (Gn 24.15-17) - significa que diariamente devemos vir aos poços da Escritura para ali nos encontrarmos com Cristo.

Faraó mandando matar os meninos e preservando as meninas hebréias (Ex 1.15-16) - os meninos significam o espírito intelectual e sentidos racionais enquanto que as meninas significam paixões carnais.

As seis talhas de pedra, que os judeus usavam para as purificações (Jo 2.6), significam os sentidos moral e literal das Escrituras e às vezes, o espiritual.

O sentido verdadeiro (alegórico) da passagem sobre o divórcio (Mt 19.9) é a separação da alma do seu anjo da guarda.

Devemos nos lembrar que Origines e outros estavam tentando defender a Igreja dos ataques dos judeus e dos pagãos, e achavam que alegorizar as passagens difíceis da Bíblia era o caminho. Por exemplo, quando os pagãos acusavam Deus de ser desumano por mandar matar mulheres e crianças, Origines respondia com uma interpretação alegórica das passagens, dizendo que não eram para ser entendidas literalmente.

Origines influenciou muitos Pais da Igreja como Dionísio o Grande, Eusébio de Cesaréia, Didimo, o Cego, e Cirilo de Alexandria, que seguiram sua interpretação alegórica. Embora Origines tivesse um alto apreço pelas Escrituras (que ele considerava como Palavra de Deus inspirada) e reconhecesse a presença de Cristo nas Escrituras do Antigo Testamento, defendeu, sistematizou e promoveu um sistema de interpretação que ao fim diminuía o caráter histórico de algumas passagens e que não dispunha de controles adequados contra o subjetivismo. Entretanto, a reação viria alguns séculos depois, em Antioquia.

2.2. Escola de Antioquia (Síria):

A escola de Antioquia foi fundada por Luciano de Samosata (240-312 AD), teólogo cristão que deu origem a uma tradição de estudos bíblicos que ficou conhecida pela erudição e conhecimento das línguas originais. Luciano fundou em Antioquia da Síria uma escola de estudos bíblicos em oposição consciente ao método alegórico ligado a Alexandria, particularmente ao método de Orígenes. Essa escola tornou-se famosa por sua abordagem literal das Escrituras.

O sistema de interpretação adotado por Antioquia teve muitos e ilustres defensores entre os Pais da Igreja. Alguns dos mais conhecidos e importantes foram: Deodoro de Tarso (m.390 AD) ,Teodoro de Mopsuéstia (m.428 AD) ,João Crisóstomo (m.407 AD)

Podemos resumir os principais princípios de interpretação desenvolvidos e utilizados pela escola de Antioquia e por seus representantes da seguinte forma: 1. Sensibilidade e atenção ao sentido literal do texto. Era uma abordagem que poderia ser chamada de "gramático-histórica".

2. Desenvolvimento do conceito de theoria. Esse termo designava o estado mental dos profetas em que recebiam as visões, em oposição à alegoria. Era uma intuição ou visão

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pela qual o profeta podia ver o futuro através das circunstâncias presentes. Depois da visão, era possível para ele descrever em seus escritos tanto o significado contemporâneo dos eventos bem como seu cumprimento futuro. A theoria era o princípio usado pelos antioquianos para se descobrir um sentido mais que literal nas palavras dos profetas do Antigo Testamento, permanecendo-se fiel ao seu sentido literal. Entretanto, embora reconhecessem que havia um sentido mais profundo e completo nas palavras dos profetas, estavam bem distantes da alegorese alexandrina.

3. Não negavam o caráter metafórico de algumas passagens: reconheciam que havia um sentido mais profundo nas profecias do Antigo Testamento e que havia tipologias, como a que Paulo fez em Gálatas 4.21-31. Entretanto, afirmavam a historicidade da narrativa vétero-testamentária e procuravam em seguida descobrir o sentido teológico da mesma.

4. Buscavam determinar a intenção do autor, pela atenção cuidadosa ao sentido histórico das palavras em seu contexto original.

5. Eram contra descobertas arbitrárias de Cristo no Antigo Testamento, como as feitas pela alegorese alexandrina. Concordavam que Cristo estava presente nas Escrituras do Antigo Testamento, mas reagiam contra a idéia de que cada palavra, evento, número, personagem ou instituição das mesmas poderia ser interpretada de forma alegórica de modo a sempre encontrar-se a Cristo nelas.

Exemplos de interpretação Teófilo de Antioquia, um dos precursores da escola de Antioquia, numa obra

entitulada ―A Autólico‖, enfatiza que o Antigo Testamento é um livro histórico contendo a história autêntica dos atos de Deus para com Israel. Ele esforça-se para traçar uma cronologia bíblica, da criação até seus dias. A mensagem do Antigo Testamento é que o Deus de quem ele dá testemunho é o criador dos céus e da terra. Isso é possível porque os autores humanos foram inspirados por Deus e podiam portanto escrever sobre coisas que aconteceram antes e depois de sua época. Lembremos que muitos intérpretes alexandrinos tendiam a rejeitar a importância da historicidade do relato da criação (Gen 1 e 2), valorizando o sentido mais profundo ou espiritual do mesmo. Deodoro de Tarso, que viveu 200 anos após Teófilo, deixou-nos um comentário dos Salmos onde a interpretação cristológica moderada de Antioquia reflete-se claramente. Ali vemos em ação o princípio antioquiano de não atribuir a um texto do Antigo Testamento uma interpretação cristológica que não possa ser provada e demonstrada pelo Novo Testamento. Comentando o Salmo 22, Deodoro nega que o mesmo seja messiânico, pois a descrição literal dos sofrimentos do autor do Salmo não combinam com os sofrimentos de Cristo. O Salmo 24 também não é messiânico, mas refere-se ao judeus que voltaram do cativeiro babilônico.

Teodoro de Mopsuéstia é provavelmente o intérprete que seguiu mais rigidamente os princípios de interpretação da escola de Antioquia quanto à abordagem cristológica do Antigo Testamento. Para ele, uma passagem no Antigo Testamento só pode ser considerada messiância se for usada como tal no Novo Testamento. Meras alusões não são suficientes. Assim, passagens como o sacrifício de Isaque, que nunca são referidas no Novo Testamento como referindo-se a Cristo, não são consideradas messiânicas.

Podemos perceber vários aspectos positivos na obra dos antioquianos. A escola de Antioquia adotou uma leitura das Escrituras que pode ser chamada de ―gramático-histórica‖, pois buscava principalmente descobrir a intenção do autor humano como

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meio de determinar-se o sentido de uma passagem bíblica. Os antioquianos procuravam fazer justiça ao caráter histórico da Escritura.

Um ponto negativo é que em alguns casos, a rigidez da abordagem restringia o alcance das profecias do Antigo Testamento somente aos tempos de Israel e produziu uma tipologia cristã muito pobre.

Em que pese a influência de sua interpretação especialmente nas igrejas sírias, a escola de Antioquia não prevaleceu na Igreja Cristã como o sistema interpretativo mais aceito. Uma das razões foi que alguns líderes heterodoxos ou heréticos condenados pelos concílios ecumênicos eram seguidores do método de Antioquia. Dois exemplos:

1. Nestório (morreu em 451 AD), o patriarca sírio de Constantinopla. Foi condenado pelo Concílio de Éfeso por fazer uma distinção por demais exagerada entre as duas naturezas de Cristo, ao ponto de quase admitir a existência de duas pessoas no mesmo Cristo. 2. No Ocidente, Juliano, o bispo pelagiano de Eclano (morreu em 454 AD), era o principal defensor dos princípios de Antioquia.

Apesar do fracasso da escola de Antioquia em estabelecer o seu método de interpretação, sua influência foi muito além dos limites da cidade de Antioquia. Os Pais Latinos, estudiosos que escreveram em latim e cuja influência haveria de perpetuar-se na Igreja, seguiram via de regra um sistema de interpretação semelhante ao desenvolvido pelos antioquianos.

2.3. Os Pais Latinos É a designação que se dá aos Pais da Igreja que viveram nos séculos IV e V,

cujas obras foram escritas em latim. Os mais relevantes para nossa História da Interpretação são: Tertuliano (155- após 220 AD); Jerônimo (c.347-420 AD) na Palestina (Belém); Agostinho (354-430 AD) em Roma, Ticônio, que viveu no Norte da África; Ambrosiaster, nome dado ao autor desconhecido de um comentário sobre as cartas de Paulo datando do séc. IV.

Principais características hermenêuticas

1. Favoreciam a interpretação literal Os Pais Latinos seguem no geral a linha de interpretação da escola de

Antioquia, ou seja, mais atentos ao sentido gramático-histórico do texto bíblico. Alguns exemplos:

2. Davam atenção ao contexto histórico da passagem Muito embora respeitassem as Escrituras como a Palavra de Deus, os intérpretes

alegoristas tendiam a desprezar o contexto histórico e cultural em que elas foram escritas, tratando-as via de regra quase que como um livro que havia caído já pronto do céu. Os Pais Latinos eram mais sensíveis ao contexto em que as Escrituras foram produzidas:

Jerônimo, por exemplo, declarou que o Antigo Testamento era um livro oriental, escrito numa língua oriental e num contexto oriental – coisas que precisavam ser levadas em consideração pelo intérprete.

Em sua obra Cidade de Deus, Agostinho, tentando explicar o mais terrível evento de sua época – a queda de Roma – demonstra sensibilidade para com a maneira pela qual Deus lida com Israel na história (história da redenção) como princípios da ação de Deus na história que explicariam a queda do Império Romano. Em contraste com a ―cidade terrena‖ (civitas terrena) representada por Roma, mas energizada pelos desejos humanos de receber glória e honra,

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Agostinho projeta a civitas dei, construída para o louvor e glória de Deus, a Jerusalém celestial, da qual a nova Roma da Igreja Católica era a imagem.

3. Algumas vezes alegorizavam o Antigo Testamento Os Pais Latinos não estavam de todo livres da maior tentação hermenêutica da sua

época, que era interpretar as Escrituras alegoricamente. Uma das ocasiões em que acabavam alegorizando o texto bíblico era quando respondiam aos ataques dos judeus de que os cristãos torciam o sentido do Antigo Testamento para provar que Cristo era o Messias. No afã de provar que Cristo estava em todas as passagens do Antigo Testamento, eles acabavam forçando algumas passagens, dando-lhes uma interpretação alegórica, para ―achar‖ a Cristo nelas. De qualquer forma, era menos ruim do que alegorizar os textos bíblicos para encontrar neles as virtudes e as teses do platonismo!

A espiritualização do Antigo Testamento se dava principalmente por causa da convicção de que o Novo Testamento está oculto no Antigo Testamento, e o Antigo é iluminado pelo Novo. Nas palavras de Agostinho, In vetere novum lateat, et in novo vetus pateat (―No Velho o Novo está subentendido e no Novo o Velho se torna patente‖, Quaest. in Heptateuchum 2.73).

4. Passagens mais obscuras devem ser interpretadas à luz das mais claras Para muitos intérpretes nessa época, a solução para resolver contradições entre

passagens das Escrituras era alegorizar as que fossem mais obscuras. Os Pais Latinos, ao contrário, adotam outra solução. Procuravam interpretar uma passagem obscura e difícil à luz de outras que tratassem do mesmo assunto e que fossem mais claras. Era essa a regra que procuravam seguir. O que estava por detrás dessa regra era a crença na unidade da Escritura, ponto que Agostinho faz explicitamente em seu comentário em Gênesis 22.

5. Harmonia com a regra da fé da Igreja Os Pais Latinos viveram numa época em que a Igreja estava começando a

adquirir uma estrutura fixa em Roma. Ao contrário da tradição oriental, que era influenciada por Alexandria e que via o texto como ―aberto‖ (no sentido de ser uma rica mina de sentidos), os Pais Latinos praticavam uma exegese ―fechada‖, seguindo os dogmas dos concílios da época, onde o texto aceitava apenas uma interpretação, que devia ser crida e recebida por todos.

De entre os Pais Latinos, aquele cujas idéias e cuja hermenêutica mais influenciou a Igreja Ocidental foi Agostinho. Infelizmente, foi somente um aspecto da sua hermenêutica que prevaleceu, o reconhecimento de que havia um sentido além do literal nas palavras da Bíblia. Na Idade Média, a preocupação por sentidos além do literal dominou quase que completamente; isso não quer dizer que houve somente interpretações alegóricas da Bíblia durante a Idade Média. Em meio a esse período, uma pequena, mas forte tradição interpretativa, em muito similar à de Antioquia, surgiu e acabou por preparar o caminho da hermenêutica utilizada pelos reformadores.

2.4. A Idade Média Nesse período (séculos VI a XVI). No geral, prevaleceu o sistema de

interpretação difundido por Alexandria (alegórico), Entretanto, nem toda exegese dessa época foi alegórica.

Um dos primeiros representantes dessa época é João Cassiano (m. cerca de 435 AD). Cassiano foi um dos maiores defensores do semi-pelagianismo naquela época. É atribuída a ele a famosa distinção entre os 4 sentidos da Escritura, também chamada de ―quadriga‖:

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1. Histórico ou literal - o sentido evidente e óbvio do texto

2. Alegórico ou cristológico - o sentido mais profundo, geralmente apontando para Cristo

3. Tropológico ou moral - o sentido que determinava as obrigações do cristão e a sua conduta

4. Anagógico ou escatológico - o sentido que apontava para as coisas vindouras que o cristão deveria esperar

Características da Interpretação Bíblica dessa época

Apoio à liturgia da Igreja O ponto interpretativo central era o lugar da lei de Moisés especialmente nas

cerimônias litúrgicas da Igreja. Para justificar o seu uso, era preciso alegorizar o texto do Antigo Testamento de forma a permitir que as cerimônias do culto do Antigo Testamento pudessem ser aplicadas ao contexto cristão. Práticas como uso de corais, velas, imagens, etc., passaram a ser justificadas com base em textos da Escritura interpretados alegoricamente.

Apoio ao dogma eclesiástico O ensino bíblico feito na Igreja tinha como alvo primário sustentar os dogmas

eclesiásticos. Assim, o ensino da Bíblia passou a ser identificado com tais dogmas. Para isso, era preciso muitas vezes alegorizar o texto sagrado. Uma relativa falta de criatividade marcou o período. A maioria dos comentaristas perpetuava os comentários antigos, citando-os e não produzindo nada novo a não ser inventando criativamente novos sentidos para justificar os novos dogmas e cerimônias.

Aplicações Práticas A preocupação principal era prática. O período das polêmicas havia passado

após o Concílio de Calcedônia (451 AD, sobre a pessoa de Cristo). No desejo de aplicar as Escrituras, espiritualizava-se seu sentido para permitir a acomodação.

Ênfase na obscuridade das Escrituras Segundo Farrar nos informa em seu livro de história da interpretação, com o

objetivo de proteger a usurpação hierárquica, os monges, bispos e padres exageraram o fato de que existem passagens obscuras na Bíblia e assim a mantiveram longe das multidões. Transformaram-na em algo semelhante ao livro fechado a 7 chaves mencionado em Apocalipse, cujo sentido somente os bispos e monges podiam desvendar. Exemplos da interpretação alegórica da Idade Média

A interpretação alegórica de Jó 1.1-5 feita por Gregório é bem representativa. Jó teve 7 filhos e 3 filhas; 7 representa os apóstolos, já que 7 é composto de 4 e 3, que multiplicados dão 12. Os números 3 e 4 indicam que a Trindade é pregada nos 4 cantos da terra. As 3 filhas representam os 3 santos de Ezequiel 14.14, Noé, Daniel e Jó, que por sua vez representam os sacerdotes, o celibato e o que é fiel no casamento!

A ressurreição da filha de Jairo na presença de umas poucas testemunhas provava a confissão auricular privada a um sacerdote.

O sistema levítico era empregado para defender a idéia de que cada presbítero cristão era um sacerdote apto a realizar o santo sacrifício da missa.

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―Do SENHOR são as colunas da terra‖ (1 Sm 2.8) defendia a existência de cardeais.

Salmo 8.7-8: ―Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo; as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as sendas dos mares‖. Essa passagem foi usado por Antônio, bispo de Florença, para provar que Deus havia posto todas as coisas debaixo dos pés do papa: as ovelhas são os cristãos; os bois, são os judeus e os heréticos; os animais do campo são os pagãos; os peixes do mar são as almas no purgatório.

As duas varas mencionadas em Zacarias 11.7 são os Franciscanos e os Dominicanos.

Salmo 74.13: ―Esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos‖ era usado para defender a expulsão de demônios através do batismo.

Presença de uma tradição hermenêutica gramático-histórica O tipo de interpretação praticado durante a Idade Média era alegórico,

fantasioso, arbitrário, como os exemplos acima demonstram. Isso não quer dizer que nada desse período foi de algum proveito. Uma nova apreciação pelo sentido literal das Escrituras surgiu no período Medieval, devido a alguns fatores: Surgimento das escolas de teologia nos mosteiros, A influência de Rashi um judeu erudito famoso, Publicação de obras que favoreciam a interpretação literal (a exemplo as obras de Aristóteles), Surgimento das ordens mendicantes (O que levou Francisco de Assis a vender tudo o que tinha, dar aos pobres e sair pelo mundo pregando o Evangelho como ele o entendia), A tradução das Escrituras para o vernáculo (obra pioneira de João Wycliffe, que foi traduziu a Vulgata (em latim) para o inglês, a língua do seu povo).

O apreço renovado pelo sentido literal por parte de estudiosos e monges não representou o abandono do método alegórico. Este permaneceu inatacado na Idade Média, como o principal método empregado. Os que haviam descoberto a importância do sentido literal mantiveram também o sistema alegórico de interpretação.

O ressurgimento do interesse no final da Idade Média pela interpretação gramático-histórica preparou, em certo sentido, a grande revolução hermenêutica que foi a Reforma protestante.

2.5. A Reforma Protestante A Reforma protestante foi, em muitos sentidos, um movimento hermenêutico.

Representa um momento crucial na história da interpretação cristã das Escrituras. O domínio de séculos de interpretação alegórica é finalmente quebrado. O retorno aos princípios de interpretação defendidos pela escola de Antioquia marca a pregação, o ensino e os princípios dos reformadores.

A Bíblia na Reforma Os reformadores rejeitaram e combateram o conceito de que a hierarquia da

Igreja era a autoridade máxima em questões religiosas, com um papa decidindo infalivelmente as questões. Os reformadores insistiram que a Bíblia era o juiz maior de todas as controvérsias religiosas, interpretando-se a si mesma através de suas partes. Ela passou a ser central e crucial no pensamento e na prática dos seguidores da Reforma, ao contrário do lugar secundário que ocupava no catolicismo da Idade Média.

Com o resgate da posição central da Bíblia na fé e na prática da Igreja, a sua certeza, divindade, veracidade e autoridade ganharam ainda mais destaque, já que os cristãos agora tinham de apelar a ela para resolver debates teológicos. Antes, era uma

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hierarquia infalível encabeçada por um papa infalível que decidia todas as questões religiosas. A Reforma protestante, agora, sabia que a decisão destas questões somente podia ser alcançada através do Espírito Santo falando através da Palavra de Deus inspirada e infalível.

A tendência então passou a ser a harmonização das passagens difíceis da Bíblia. Na época medieval as passagens difíceis eram interpretadas e resolvidas em harmonia com a tradição e os dogmas da Igreja. No passado, Origines havia recorrido à alegoria nesses casos. Mas os Reformadores tinham de achar uma outra solução, já que rejeitavam a autoridade da hierarquia eclesiástica e a alegorese. E esse caminho foi o de interpretar a Escritura com a Escritura visando harmonizar as aparentes contradições.

A ênfase à infalibilidade da Escritura (doutrina nunca negada por Roma, mas subjugada pela tradição medieval) evitou que ela recebesse um tratamento crítico como um livro comum de religião. Os Reformadores estavam conscientes de que a Bíblia era um livro humano, isto é, foi escrito por homens em uma linguagem humana, vivendo numa época e cultura específicas. Por outro lado, reconheciam o caráter divino da mesma. Empregaram todos os recursos disponíveis na época para o estudo bíblico, mas suas conclusões eram controladas pela doutrina da inspiração, veracidade e infalibilidade das Escrituras. Foi somente após o Iluminismo e a chegada do racionalismo na Igreja que o método histórico-crítico foi desenvolvido. A partir daí,a Bíblia passou a ser examinada sem os pressupostos que controlavam a exegese da Reforma, mas com os pressupostos do racionalismo.

Características da interpretação dos reformadores Associada à essa perspectiva das Escrituras, e mesmo em decorrência dela, os

reformadores desenvolveram um sistema de interpretação que representou um rompimento radical com a hermenêutica alegórica medieval. Eis suas principais características: 1) Ênfase no sentido literal, gramático-histórico do texto

Havia a preocupação dos reformadores em chegar ao sentido óbvio, claro e simples de cada passagem das Escrituras. Eles ensinavam que cada texto tem um só sentido, que é o literal — a não ser que o próprio contexto ou outro texto das Escrituras requeiram claramente uma interpretação figurada ou metafórica 2) Rejeição da alegorese

Os reformadores rejeitaram o conceito que prevaleceu na Idade Média de que o texto tinha diversos sentidos, sendo o alegórico o mais importante. Rejeitaram o uso da alegorese por parte dos escolásticos medievais. Lutero costumava referir-se às alegorias dos escolásticos em termos como "fábulas nojentas". 3) A necessidade da iluminação do Espírito Santo

Os reformadores enfatizaram a natureza divina das Escrituras, isto é, que elas foram dadas por inspiração divina. A natureza espiritual da mensagem das Escrituras era a principal barreira à sua compreensão por parte de pessoas que não tinham o Espírito. Assim, enfatizaram o papel indispensável do Espírito Santo no processo de interpretação da mensagem da Bíblia. 4) A necessidade de estudar as Escrituras

Igualmente, os reformadores reconheciam que a Bíblia era um livro humano. Muito embora insistissem na clareza das Escrituras, já que eram divinas quanto à origem, reconheciam por outro lado a necessidade de estudar e pesquisar as Escrituras, visto que também eram humanas. Isto é, haviam alguns pontos obscuros nelas que precisavam de maior atenção para serem elucidados. 5) Escritura com Escritura

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"Se são obscuras num lugar, são claras em outros", disse Lutero com referência às Escrituras. Esse princípio da Reforma estabeleceu que a única regra infalível de interpretação das Escrituras é a própria Escritura. Ela se auto-interpreta, elucidando, assim, suas passagens mais difíceis.

O ponto de Lutero e dos demais reformadores era que o sentido das Escrituras não poderia mais ser determinado por tradição, nem por decisão eclesiástica, nem por argumento filosófico, nem por intuição espiritual, mas sim, unicamente, por outras partes das mesmas que explicassem e esclarecessem o seu sentido. 6) Intenção do autor humano

Todos os reformadores se preocuparam em determinar a intenção do autor, que era geralmente o sentido literal de uma passagem, a menos quando o próprio autor indicava em contrário. Essa era a chave que abria o sentido do texto e determinava o seu sentido. 7) Uso de outras obras

Os reformadores fizeram uso abundante da erudição antiga, citando comentaristas medievais, as obras dos pais apostólicos e obras de contemporâneos. Apesar de insistirem na necessidade da iluminação do Espírito para a correta interpretação das Escrituras, não desprezaram o que o Espírito já havia revelado a outros antes deles.

Foram esses princípios que serviram de base para o surgimento da interpretação gramático-histórica que veio a prevalecer na Igreja após a Reforma. Estes e outros princípios de interpretação praticados pelos reformadores (Lutero, Calvino e demais reformadores alemães, suíços, franceses e ingleses), viriam a ser desenvolvidos e adotados pelo protestantismo ortodoxo em geral desde então, e se tornaram conhecidos pelo nome de método gramático-histórico de interpretação bíblica.

Entretanto, o grande ímpeto hermenêutico da Reforma, que representou um retorno às Escrituras, sofreu diversas influências no período pós-reforma.

2.6. Período Pós-Reforma Alguns estudiosos consideram que o período após a Reforma protestante foi

negativo para a interpretação cristã das Escrituras e representou, em vários aspectos, um retrocesso das conquistas hermenêuticas dos reformadores. Podemos concordar que nem tudo correu bem nos arraiais protestantes nessa área, mas seria uma radicalização injustificada rejeitar o trabalho dos estudiosos dessa época.

Dogmatismo e controvérsias Um dos estudiosos mais críticos dessa época é Frederic Farrar, que escreveu uma obra sobre a história da interpretação da Bíblia pelos cristãos. A opinião de Farrar representa bem a de outros estudiosos, que podemos resumir em 4 pontos:

1. A academia pós-reforma reintroduziu o escolasticismo cristão da Idade Média, pois promoveu o confessionalismo, o sobrenaturalismo (em detrimento do aspecto humano das Escrituras) e a crença num conceito de inspiração verbal das Escrituras que ia além daquele dos reformadores. Um exemplo citado é a "Fórmula Consensual Helvética", feita por François Turretini e dois outros teólogos em 1675, onde afirmam que até mesmo os sinais usados para a vocalização do texto hebraico (que certamente não faziam parte dos manuscritos originais do Antigo Testamento) foram divinamente inspirados e por isso eram inerrantes.

2. A exegese passou a ser controlada pela dogmática, isto é, pelo conjunto de doutrinas características dos reformadores. Com isso, o lado humano das Escrituras foi minimizado e foram impostos limites doutrinários à liberdade de investigação.

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3. Já que a autoridade da hierarquia da Igreja católica para interpretar corretamente as Escrituras havia sido rejeitada, o caos instalou-se com as muitas e diferentes interpretações e idéias entre os protestantes.

4. Tornaram a Bíblia num "papa de papel", ao colocá-la no lugar da interpretação infalível da Igreja. Como vimos na aula anterior, os Reformadores rejeitaram a doutrina de que a interpretação final das Escrituras era dada pela hierarquia católica, encabeçada pelo papa, e sujeitaram-se à autoridade unicamente das Escrituras, como a melhor intérprete de si mesma. Para Farrar e outros, isso representou apenas a transferência do conceito de infalibilidade do papa para um livro, ou seja, a troca de um "papa" humano por outro de papel.

Segundo alguns críticos, foi esse tipo de interpretação que veio a dominar o período subseqüente e a marcar a hermenêutica reformada.

Entendendo a hermenêutica da Pós-Reforma

Sem negar que houve extremos e radicalizações em setores da academia pós-Reforma, dizemos que o momento que ela viveu não permitia caminhos muito diferentes dos que ela tomou.

A tendência à sistematização do ensino bíblico e o surgimento de confissões e tratados teológicos nasceu das controvérsias doutrinárias entre os protestantes. Essas controvérsias eram inevitáveis, desde que a Reforma havia rejeitado a autoridade final da hierarquia da Igreja de Roma e introduzido o conceito do livre exame das Escrituras. Com isso, vários entendimentos diferentes apareceram, provocando o desejo de uma formulação sistemática cada vez mais detalhada.

O desejo de sistematizar em detalhes a doutrina cristã era também uma questão de sobrevivência: a Contra-Reforma, movimento católico de reação aos protestantes, vinha desde o século XVI recuperando o terreno perdido, através dos Jesuítas. Era preciso que as igrejas reformadas tivessem respostas claras e prontas para seus membros. Catecismos e tratados eram a saída mais rápida e fácil.

Também devemos lembrar que no período da pós-Reforma havia uma preocupação maior entre os estudiosos protestantes de harmonizar e sintetizar o ensino das Escrituras de forma racional, para que o mesmo pudesse ser melhor compreendido e ensinado. Um outro fator a ser lembrado é o profundo desejo dos estudiosos protestantes daquela época de preservar a doutrina bíblica e rechaçar os falsos ensinos de Roma. A melhor maneira era organizar cuidadosamente a doutrina protestante, de forma sistemática, para que pudesse servir de manual doutrinal e confessional da Igreja. Foi nesse contexto que apareceram as confissões protestantes mais importantes, que serviriam mais tarde para a preservação doutrinária do Protestantismo histórico.

Finalmente, existem profundas diferenças entre a doutrina reformada da autoridade das Escrituras e a católica da infalibilidade papal, e as conseqüências de ambas para a vida da Igreja. A crítica de que os reformadores adotaram um "papa de papel" parece-nos na verdade dirigida à doutrina reformada da infalibilidade das Escrituras.

De fato, a hermenêutica da pós-Reforma teve seus problemas. Seria um exagero, entretanto, dizer que toda exegese que foi feita naquela época era ruim. Veja-se o clássico comentário de Matthew Henry e o sério trabalho de exegese feito pelos autores da Confissão de Fé de Westminster.

Vemos também que qualquer que seja o sistema religioso ou hermenêutico, a questão final é quem decide qual a interpretação correta. A Igreja Católica resolveu essa questão criando a idéia de uma hierarquia eclesiástica encabeçada por um papa

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infalível e descendente espiritual dos apóstolos de Cristo. Seitas geralmente têm seus líderes e fundadores. Para nós, reformados, a autoridade máxima é o Espírito de Deus falando através das Escrituras. Por mais subjetivo que isso possa parecer, essa abordagem tem garantido nos anos de existência da Igreja reformada uma coesão de pensamento nos pontos fundamentais do Cristianismo, em meio à enorme variedade que caracteriza os protestantes.

2.7. Período Moderno e Contemporâneo O impacto do Iluminismo e do Racionalismo na Hermenêutica bíblica O Iluminismo, movimento surgido no início do século XVIII, era em vários aspectos uma revolta contra o poder da religião institucionalizada e contra a religião em geral. As pressuposições filosóficas do movimento eram, em primeiro lugar, o Racionalismo de Descartes, Spinoza e Leibniz, e o empirismo de Locke, Berkeley e Hume. Os efeitos combinados dessas duas filosofias -- que mesmo sendo teoricamente contrárias entre si concordavam que Deus tem de ficar de fora do conhecimento humano -- produziu profundo impacto na hermenêutica bíblica. Não é que os teólogos se tornaram ateus ou agnósticos, mas sim que tentaram combinar o Racionalismo com as verdades da fé cristã. Surge então o deísmo. Deísmo é o termo aplicado ao pensamento dos livre pensadores dos séculos XVII e XVIII que procuraram compatibilizar a crença em Deus e o Racionalismo do Iluminismo. O deísmo afirma a existência de Deus, mas nega sua intervenção na história humana, quer através de revelação, quer através de milagres ou da providência.

Podemos destacar dois importantes resultados da influência do Iluminismo sobre a interpretação bíblica: Rejeição do sobrenatural e da revelação, Exegese controlada pela razão.

Assim, muitos pastores e teólogos que criam que a Bíblia era a Palavra de Deus, influenciados pela filosofia da época, tentaram criar um sistema de interpretação da Bíblia que usasse como critério o que fosse racional ao homem moderno. Muitos desses estudiosos passaram a ser "deístas". Seguiram-se várias tentativas hermenêuticas de unir fé e Racionalismo, dando origem ao chamado "método histórico-crítico" de interpretação bíblica.

Características da interpretação bíblica desenvolvida nesse período 1) Reação contra o dogmatismo e o controle da exegese feito pela teologia sistemática 2) Surgimento do conceito de "mito" na Bíblia 3) Exige-se a separação entre os dois Testamentos -- Houve reação dos estudiosos críticos contra a interpretação do Antigo Testamento feita do ponto de vista do Novo 4) Abandono da doutrina da inspiração e inerrância das Escrituras. 5) A influência da dialética de Hegel marcou o final desse período.

A tentativa de unir o Racionalismo com a exegese bíblica não produziu um resultado satisfatório. Muito embora o método histórico-crítico tenha avançado em alguns aspectos nosso conhecimento de como a Bíblia foi feita, seus pressupostos acabaram por tirar o sobrenatural da Bíblia.

Ficamos com uma Bíblia que deixou de ser a Palavra de Deus para se tornar o testemunho de fé do povo de Israel e da Igreja Primitiva. Quando leio a Bíblia, não é Deus quem eu encontro, mas a fé dos antigos. Foi Deus quem nos deu a capacidade de raciocinar e de analisar logicamente as coisas. Entretanto, o Racionalismo esqueceu-se de que a razão do homem está corrompida pelo pecado. A simples análise racional, não pode trazer o verdadeiro conhecimento de Deus ao homem. "O homem natural não entende as coisas do Espírito de Deus" (1 Co 2.14). É somente com a assistência do Espírito, trazendo cativo todo pensamento à obediência de Cristo (2 Co 10.5), que podemos apropriadamente entender as coisas de Deus.A exegese racionalista

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predominou por muitos anos na Igreja. Mas seu predomínio começou a ser quebrado quando os próprios racionalistas começaram a perceber as limitações do método histórico-crítico. Aí, entramos no período chamado de pós-moderno.

O pós-modernismo Os estudiosos da nossa época situam em algum lugar das décadas de 70 e 80 o

nascimento da pós-modernidade. Alguns historiadores e cientistas políticos têm tomado como símbolo da queda da modernidade a queda dos muros de Berlim, que separava as Alemanhas Oriental e Ocidental, inaugurando uma nova era na Europa e posteriormente no mundo.

Como o nome indica, a pós-modernidade é o período da história que veio para tomar o lugar do período moderno. Como já vimos nas aulas anteriores, a hermenêutica bíblica sempre acompanhou os movimentos da história. E não tem sido diferente no caso da pós-modernidade: profundas mudanças têm acontecido na hermenêutica em anos recentes.

Para melhor entendermos essas mudanças, notemos algumas das características da pós-modernidade.

1. A pluralidade da verdade. 2. A rejeição do ideal racionalista da busca da verdade. 3. O abandono do conceito de neutralidade na pesquisa científica. 4. A defesa do pluralismo inclusivista. 5. O conceito do "politicamente correto".

O impacto na interpretação cristã das Escrituras Como era de se esperar, essa mudança afetou profundamente a academia cristã

com reflexos na hermenêutica bíblica. É verdade que as "novas luzes" (novos conceitos) trazidas pela pós-modernidade têm sido recebidas com cautela e cuidado pelos estudiosos reformados conservadores, que ainda relutam em aceitá-las, especialmente por causa dos efeitos que terão na pregação, na evangelização e na vida das igrejas cristãs. Mas os novos conceitos hermenêuticos da pós-modernidade conseguiram entrar em muitos círculos acadêmicos de estudo da Bíblia e produziram diversos tipos novos de interpretação e abordagem das Escrituras, como veremos nas aulas seguintes.

Em linhas gerais, podemos destacar os seguintes efeitos da pós-modernidade na hermenêutica bíblica:

1. O abandono do uso de métodos críticos para reconstruir o processo histórico da formação dos textos bíblicos.

2. A abertura para a pluralidade de interpretações. 3. Mudança na natureza da hermenêutica. 4. Impossibilidade da recuperação do sentido original do texto. 5. Emprego das teorias atuais de lingüística e de obras de hermenêutica

filosófica. 6. Retorno à Alexandria? 7. Deslocamento do foco do sentido.

As principais idéias e autores desse período foram: mantendo a tradição da interpretação literal F. Turrentin, John Wesley, J. A. Turretin, Cappell, Ernesti, Bengel e Wettstein; o racionalismo com a rejeição do sobrenatural e da revelação de Descartes, Spinoza e Leibniz influenciou uma hermenêutica marcada 1. Reação contra o dogmatismo e o controle da exegese feito pela teologia sistemática 2. Surgimento do conceito de "mito" na Bíblia 3. Exige-se a separação entre os dois Testamentos 4. Abandono da doutrina da inspiração e inerrância das Escrituras 5. A influência da dialética de Hegel; na pós-

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modernidade a hermenêutica está marcada pela 1. Pluralidade da verdade 2. A rejeição do ideal racionalista da busca da verdade 3. O abandono do conceito de neutralidade na pesquisa científica. 4. A defesa do pluralismo inclusivista. 5. O conceito do "politicamente correto". Essa hermenêutica da pós modernidade foi influenciada por Friedrich Schleiermacher (1768-1834); Rudolf Karl Bultmann (1884-1976); Ferdinand de Saussure (1857-1913); Hans-Georg Gadamer (n. 1900); Jacques Derrida (francês, n. 1930).

As mudanças acontecidas no mundo acabam por afetar a Igreja, quer queiramos ou não. Isso não significa dizer que todas as igrejas, seminários, pastores e estudiosos evangélicos foram afetados pela pós-modernidade ao ponto de conscientemente alterar a abordagem das Escrituras e adotar os seus postulados. Muitos seminários e eruditos evangélicos, conservadores e reformados permanecem cautelosos diante do entusiasmo precoce de outros que abraçaram rapidamente o espírito da pós-modernidade.

Observemos que o pêndulo hermenêutico do relógio da história da Igreja está movendo-se outra vez, saindo do campo mais literalista para o do além-do-literal, numa versão pós-moderna da antiga alegorese alexandrina. Essa é a tendência atual. E como na Antigüidade, podemos apreciar o que há de positivo nessas tendências e usá-las a serviço do Reino, examinando-as, é claro, com critério e cautela.

Em nossos labores como professores, pastores e crentes, devemos manter juntas essas três coisas que vão nos guiar no caminho de uma hermenêutica sadia: compromisso e fidelidade à Palavra de Deus, conhecimento da história da Igreja, disposição para aprender com a nossa geração.

III. A NECESSIDADE DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

Alguém pergunta: por que devemos interpretar a Bíblia, ela não é a Palavra de Deus? E não foi dada por Ele com o objetivo de se fazer conhecido, portanto a leitura não deveria ser algo de simples compreensão?De fato, embora a Bíblia tenha sido dada por Deus com objetivo de se revelar é notório que ao longo dos séculos na história da interpretação da Bíblia, determinados textos suscitaram diferentes interpretações às vezes contraditórias causando confusão e divisão. Existe, portanto, algo na Bíblia que não a torna assim tão óbvia e tão fácil ao leitor superficial, daí a importância de entendermos o que é a Bíblia e da necessidade que temos de interpretar.

Existem alguns obstáculos que distanciam uma compreensão adequada das Escrituras que precisam ser superados.

3.1. O Distanciamento Causado Pela Natureza Humana da Bíblia. O fato de que a Bíblia não caiu pronta do céu, mas que foi escrita por diferentes

pessoas em diferentes épocas, línguas e lugares, alerta-nos para o que alguns estudiosos têm chamado de distanciamento. O fenômeno do distanciamento aparece em diversas áreas:

Distanciamento temporal - A Bíblia está séculos distante de nós. Seu último livro foi escrito pelo final do século I da Era Cristã, o que nos separa temporalmente em cerca de dois milênios. A distância temporal, num mundo em constantes mudanças, faz com que a maneira de encarar o mundo, os aspectos culturais e linguísticos dos escritores da Bíblia se percam no passado distante. Portanto, como qualquer documento antigo, a Bíblia precisa ser lida levando-se isto em conta. Os princípios de interpretação da Bíblia procuram condições de transpor este abismo temporal.

Distanciamento contextual - Os livros da Bíblia foram escritos para atender a determinadas situações, que já se perderam no passado distante. É verdade que ao serem incluídos no cânon bíblico, eles passaram a ser relevantes para a Igreja

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universal. Por outro lado, recuperar o contexto em que estes livros foram escritos é essencial para entendermos melhor a sua mensagem. As cartas de Paulo foram escritas visando atender às necessidades de igrejas locais. Não posso entender corretamente o ensinamento do apóstolo sobre o uso do véu pelas mulheres (1 Coríntios 11) se não estiver consciente do problema que estava acontecendo na Igreja relacionado com a participação das mulheres no culto. Igualmente, 1 João toma outra relevância quando fico consciente de que João estava escrevendo contra a influência de uma forma incipiente de Gnosticismo nas igrejas da Ásia Menor. Ou ainda, que o livro de Habacuque foi escrito num contexto de iminente invasão por potências estrangeiras. A mensagem do evangelho de Marcos fica mais clara quando descobrimos que Marcos escreveu provavelmente para ajudar os crentes romanos a enfrentar as provações que sofriam por causa de Cristo. E o livro de Jonas - especialmente a atitude de Jonas contra os ninivitas - ganha maior clareza quando descubro que havia uma antipatia natural dos judeus contra os ninivitas por causa dos seus grandes pecados. Os princípios de interpretação da Bíblia procuram transpor as dificuldades criadas pela distância contextual.

Distanciamento cultural - O mundo em que os escritores da Bíblia viveram já não existe. Está no passado distante, com suas características, costumes, tradições e crenças. Muito embora a inspiração das Escrituras garanta que sua mensagem seja relevante para todas as épocas, devemos lembrar que esta mensagem foi registrada numa determinada cultura, da qual traços foram preservados na Bíblia. Os princípios de interpretação da Bíblia devem levar em conta o jeito de escrever daquela época, a maneira de expressar conceitos e ilustrar as verdades, para poder transpor a distância cultural.

Distanciamento linguístico - As línguas em que a Bíblia foi escrita também já não existem. Não se fala mais o hebraico, o grego e o aramaico bíblicos nos dias de hoje, mesmo nos países onde a Bíblia foi escrita. Como cada língua tem seu jeito próprio de comunicar conceitos (apesar de uma estrutura comum a todas), princípios de interpretação da Bíblia devem levar em conta estas peculiaridades. O conhecimento do paralelismo hebraico certamente nos ajuda a entender os Salmos melhor, bem como os profetas.

Distanciamento autorial - Devemos ainda reconhecer que teríamos uma compreensão mais exata da mensagem de alguns textos bíblicos reconhecidamente obscuros se os seus autores estivessem vivos. Poderíamos perguntar a eles acerca destas passagens complicadas que escreveram e que continuam até hoje dividindo os melhores intérpretes quanto ao seu significado. Por exemplo, Pedro poderia nos esclarecer o que ele quis dizer com "Cristo foi e pregou aos espíritos em prisão". Ou ainda, Paulo poderia nos dizer o que ele quis dizer com "o que farão os que se batizam pelos mortos?". Mateus poderia finalmente tirar a dúvida sobre o sentido da frase de Jesus "não terminarão de percorrer as cidades de Israel até que venha o Filho do Homem". Daniel poderia nos esclarecer a quem ele se referia por Ciro (de quem não temos registro fora da Bíblia) e porque considerava Belsazar filho de Nabucodonosor, quando era filho de Nabonido. Não endossamos o que alguns estudiosos afirmam, que com a morte do autor perdeu-se a possibilidade de recuperar-se a intenção dos mesmos. A razão é que a intenção deles sobrevive no que escreveram. Mas certamente a ausência do autor faz com que a interpretação de textos obscuros seja necessária. Princípios de interpretação devem levar em conta o distanciamento autorial, e buscar meios de recuperar a intenção deles nos próprios textos que escreveram.

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O distanciamento, portanto, exige de nós a tarefa de interpretar. Interpretar é exatamente tentar transpor o distanciamento em suas várias formas, como mencionadas acima, e chegar ao sentido exato do texto. De forma geral, o ponto central da mensagem da Bíblia é tão claro que pode ser entendido por todos, mesmo os que não estão conscientes do distanciamento. A prova disto é que a Igreja vem se mantendo viva e ativa através dos séculos, sendo composta em sua quase absoluta maioria de pessoas que não têm treinamento teológico, histórico e lingüístico que permitiriam uma leitura mais informada das Escrituras. Por outro lado, uma maior exatidão e clareza acerca de todos os aspectos da mensagem bíblica não poderá ser alcançada sem interpretação consciente.

3.2. O Distanciamento Causado Pela Natureza Divina da Bíblia. Por outro lado, o fato de que a Bíblia foi inspirada por Deus, sendo assim a Sua

Palavra, deve ser levado em conta por aqueles que desejam interpretá-la corretamente. A divindade e a humanidade das Escrituras devem ser mantidas em equilíbrio. Quando enfatizamos uma em detrimento da outra, acabamos por cair em algum dos erros hermenêuticos que caracterizam a história da interpretação cristã das escrituras.

Distanciamento natural - a distância entre Deus e nós é imensa. Ele é o Senhor, criador de todas as coisas, do céu e da terra. Somos suas criaturas, limitadas, finitas. Nossa condição de seres humanos impõe limites à nossa capacidade de entender e compreender as coisas de Deus. Não impede a possibilidade deste conhecimento, com certeza, mas o limita. O fato de sermos seres humanos tentando entender a mensagem enviada pelo Deus criador em si só representa um distanciamento. A distância entre a criatura e o Criador, tão freqüentemente mencionada nas Escrituras, tem seus efeitos também na nossa hermenêutica. Princípios de interpretação não podem ignorar isto e pensar que bastam ferramentas hermenêuticas corretas para que possamos entender a Deus. O distanciamento provocado pela nossa humanidade deve procurar ser transposto por princípios de interpretação que reconheçam a necessidade da iluminação do Espírito.

Distanciamento espiritual - o fato de que somos pecadores impõe ainda mais limites à nossa capacidade de interpretação da Bíblia. Somos seres afetados pelo pecado tentando entender os desígnios do Deus puro e santo. A Queda é um conceito espiritual, mas com certeza não pode ser deixado de lado em qualquer sistema interpretativo das Escrituras. Transpor o abismo epistemológico causado pela Queda é certamente o ponto de partida. A regeneração e a conversão são a resposta de Deus a esta condição.

Distanciamento moral - é a distância que existe entre seres pecadores e egoístas e a pura e santa Palavra que pretendem esclarecer. A corrupção de nossos corações acaba por introduzir na interpretação das Escrituras motivações incompatíveis com o Autor das mesmas. Infelizmente a história da Igreja mostra como diferentes grupos manipulam as Escrituras para defender, provar e dar autoridade a seus pontos de vista. Certamente existem pessoas sinceras, embora equivocadas. Mas não podemos negar que o distanciamento moral acaba nos levando a torcer o sentido das Escrituras, procurando usá-la para nossos fins nem sempre louváveis. No parágrafo seguinte mencionamos alguns exemplos.

A Bíblia tem sido usada como prova das mais conflitantes teorias e idéias, o que mostra que ler e entender imparcialmente a sua mensagem não é tão fácil e costumeiro assim. A Bíblia foi usada pelos protestantes de países colonizadores para justificar a

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escravidão, usando textos do Antigo e Novo Testamentos que falam da escravidão sem contudo aboli-la (Ex. 21.2-6). Os seus opositores usaram também a Bíblia para defender as idéias abolicionistas, usando a parábola do bom samaritano e "amarás o teu próximo como a ti mesmo".

A Bíblia também foi usada para provar que os judeus deveriam ser perseguidos, que a guerra santa contra os muçulmanos era a vontade de Deus, que os protestantes brancos são uma raça superior, para executar as bruxas, para impedir o casamento dos padres, para defender a masturbação, para justificar o aborto e a eutanásia, para regular o tamanho das saias e do cabelo das mulheres cristãs, para prover aceitação e fortalecimento dos homossexuais, para proibir ingerência de qualquer tipo de bebida alcoólica, para proibir transfusão de sangue, para proibir o serviço militar, para defender a poligamia nos dias de hoje, para defender o suicídio religioso em massa, etc. O catálogo é imenso.

Tudo isto mostra que não é tão fácil "simplesmente ler a Bíblia e fazer o que ela diz". Nunca desanimemos da possibilidade (muito real!) de entendermos com clareza o ensinamento das Escrituras, mas reconheçamos humildemente que nunca poderemos ter uma compreensão unânime de todas as suas passagens complicadas. Sabendo que a Bíblia vem de Deus, temos ânimo para buscá-lo em oração, suplicando a Sua graça e Sua iluminação em nossa tarefa como intérpretes.

IV. CONSCIENCIA PRÉVIA PARA UMA ELABORAÇÃO HERMENÊUTICA.

Alguns esclarecimentos são imprescindíveis a uma boa trajetória interpretativa do estudante bíblico, a seguir listaremos alguns:

4.1. A Bíblia é Inerrante. Por toda história da Igreja tem se aceitado o fato de que a Bíblia, como Deus no-

la concedeu, está livre de erro. Desde os dias dos primeiros gnósticos, com quem Paulo contendeu, até o advento do deísmo, no século XVIII, não havia contestação, porém, o racionalismo e o movimento deísta do século XVIII, conduziu a uma modificação drástica da posição de inerrância atribuída a Bíblia. A Bíblia como Palavra de Deus assume a prerrogativa de ser infalível e digna de confiança. Esta doutrina é fundamental, pois sem ela nos perderíamos sobre o que e não crer. Contudo se faz necessário alguns esclarecimentos.

4.2. Houve erros de copistas. Existem cerca de 5000 manuscritos do N.T. hoje e sempre aparecem outros a

medida que avançam as descobertas, estes manuscritos consiste em livros inteiros da Bíblia ou fragmentos tanto dos evangelhos como das cartas de Paulo ao serem comparados se percebe diferenças de palavras, inversão de frases, ausência ou duplicação de frases. Depois que os autores bíblicos escreveram os textos começaram a ser copiados pelas Igrejas, não havia Xerox nem imprensa na época, esses escritos eram feitos a mão e com isso, naturalmente, ao copiarem os textos acabaram tendo certos descuidos incorrendo em certos erros. Contudo os estudiosos da manuscritologia afirmam que esses erros não afetam a mensagem essencial das Escrituras, e que esses erros chegam de 5% a 7% apenas, de toda a Bíblia.

4.3. Os autores bíblicos não receberam conhecimento pleno e onisciente acerca do

mundo ao escreverem.

Na sua revelação Deus respeitou a cultura e o conhecimento que os escritores possuíam em seu tempo. Um exemplo está em Lv 11:19 quando Moisés escreve a respeito das aves impuras colocando o morcego como ave, ou em Josué 10:13 onde se fala que o sol e a lua parou ou em vários momentos onde se descreve o sol se

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levantando ou se pondo. A Bíblia não foi escrita em linguagem científica moderna, mas em linguagem comum partindo da observação do escritor de sua época.

4.4. Existem partes difíceis de entender na Bíblia. É preciso está ciente que na Bíblia existem muitos trechos difíceis de entender e até mesmo de harmonizarem-se é preciso um esforço mais detido e uma pesquisa mais aplicada para que possa chegar a uma compreensão mais razoável. Ex: a descrição do cego de Jericó Mt 20:29-30 e Lc 18:35, o pedido da mãe de Tiago Mt 20:20 e Mc 10:35, a geneologia de Jesus descrita diferente entre Mt 1:1-16 e Lc 3:23-37. Textos dessa natureza existem vários; para um maior conhecimento indico o livro: Gleason Archer, Enciclopédia de Temas Bíblicos, Ed: Vida, 2001. O fato de haver partes difíceis ou aparentes contradições na Bíblia, não significa que ela tenha erros ou não seja a verdade, apenas que não temos informações suficientes para compreendê-la melhor, em virtude do distanciamento que temos, porém, as grandes verdades da Bíblia são muito claras e se repetem várias vezes ao longo das Escrituras.

4.5. As traduções da Bíblia não são inerrantes. A Bíblia não foi escrita em Português as nossas Bíblias é a tradução de um texto escrito em Hebraico, Aramaico e grego. É preciso está ciente de que nenhuma tradução consegue captar todas as nuances de maneira precisa os conceitos da língua original pra língua receptora.

V. ASPECTOS DA HERMENEUTICA BÍBLICA.

5.1. Aspecto Pneumatológico. Podemos dividir em três etapas a obra do Espírito Santo em comunicar a verdade de Deus:

Revelação, que foi o primeiro estágio, objetivo em sua natureza. Consistiu na atuação do Espírito nos autores bíblicos (sonhos, visões, teofanias etc.) e no texto que produziram, de tal forma a termos o registro infalível da Palavra de Deus.

Inspiração, diz respeito o momento em que o autor bíblico foi registrar a revelação; ele contou com a supervisão do Espírito de Deus de tal maneira que foi preservado de errar.

Iluminação, que é subjetivo, consiste na iluminação de nossa mente para compreender a verdade revelada nas Escrituras. Esta é a etapa em que o intérprete da Bíblia se ocupa, nesse sentido o que temos agora nem é revelação nem inspiração, mas iluminação para compreender a Palavra de Deus.

Portanto, embora o processo hermenêutico seja um processo mecânico de aplicações de regras, a atuação do Espírito é de fundamental importância para a tarefa interpretativa sadia. . Há uma série de textos bíblicos que tratam desta relação. (Jo 14:26, 16:13-15; 1Co 2:10-11,13; 2Co 3:14-16, 1Jo 2:20,27). Porém para não cair em um extremismo carismático nocivo se faz necessário traçar um caminho de equilíbrio:

1. É necessário orar e labutar (o lema de Calvino) para entendermos corretamente as Escrituras: orar por iluminação do Espírito e labutar estudando as Escrituras, usando todos os recursos disponíveis.

2. Quanto mais alguém entristece o Espírito de Deus, desobedecendo as Escrituras e diminuindo o respeito por sua autoridade, mais e mais tenderá a torcer o texto (2 Pe 3.15-16).

3. Os que crêem que o Espírito de Deus intervém de forma direta no mundo, estarão em melhor condição de interpretar os relatos bíblicos sobre profecias e

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milagres. Os incrédulos tenderão a interpretar estas passagens como vaticinia ex eventu e mitológicas, perdendo de vista a intenção do texto.

4. O objetivo da exegese não é somente adquirir conhecimento, mas sermos transformados pelo poder do Espírito, através da Palavra. Assim, devemos ler as Escrituras abertos para sermos transformados pelo Espírito (2 Co 3.18).

5. Não devemos pressupor que nossa exegese será correta se simplesmente orarmos e somos espirituais. O castigo para a preguiça e falta de estudo sério será uma exegese forçada e superficial. O Espírito de Deus não me transmitirá miraculosamente conhecimentos que eu posso adquirir estudando.

5.2. Aspecto Teológico.

Um outro importante aspecto dentro dos princípios de interpretação da Bíblia é a influência dos pressupostos, da experiência e de outros fatores inconscientes na leitura do texto sagrado, especialmente daquilo que cremos em relação a Deus e às Escrituras.

As afirmações abaixo têm como alvo abordar alguns pontos essenciais deste aspecto da interpretação.

1. Não existe interpretação "neutra" -- Os estudiosos racionalistas, entusiasmados com o pretenso poder da razão para alcançar a verdade através da análise lógica, condenaram qualquer atitude ou convicção anterior à investigação, que pudesse já condicionar o resultado da mesma. Neste sentido, insistiram em deixar de fora da exegese "científica" da Bíblia idéias pré-concebidas sobre ela, como a sua inspiração e infalibilidade. O que não quiseram ver na época foi que simplesmente substituíram pressupostos teológicos por filosóficos, como a concepção do universo como sendo um sistema fechado de causa e efeito e uma concepção dialética (hegeliana) da história.

2. O papel dos pressupostos teológicos sempre foi destacado pela Igreja -- Em nossos dias, depois da obra de Schleiermacher, Gadamer, Saussure, Bultmann e Derrida, vemos um abandono gradual da utopia racionalista e uma nova apreciação pelo envolvimento do intérprete na exegese. Pode parecer a alguns que seja uma conquista da hermenêutica pós-moderna. Mas, na verdade, a Igreja reformada sempre ensinou que sem fé e sem o auxílio do Espírito não se pode entender a Bíblia corretamente.

3. A natureza da revelação e do entendimento garantem a validade na interpretação -- Muito embora nossos pressupostos teológicos formem perspectivas dentro das quais o conhecimento da verdade revelada se faz possível, isto não torna viciados os resultados da nossa investigação, ao ponto de se relativizar irremediavelmente toda interpretação. Na verdade, os pressupostos teológicos corretos acerca de Deus e da Escritura nos colocam numa posição de melhor entender a sua mensagem. É isto que faz com que cristãos do mundo todo, com diferentes horizontes de compreensão, vindos de diferentes culturas e que passaram por diferentes experiências, consigam interpretar a Bíblia da mesma forma, ao ponto de chegarem aos mesmos resultados (adaptados e acomodados à sua linguagem e cultura): Cristo morreu pelos nossos pecados, ressuscitou literalmente de entre os mortos, está a direita de Deus e virá para julgar os vivos e os mortos.

4. É essencial o uso correto do círculo hermenêutico - "Círculo hermenêutico" refere-se à interação entre o texto e o leitor. O leitor se aproxima do texto trazendo seu horizonte de compreensão e lê o texto dentro dos limites deste horizonte. O texto, em troca, desafia o leitor a rever criticamente seus pressupostos e mudá-los. Após estas mudanças, o leitor novamente aproxima-

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se do texto, com seu horizonte agora mais definido pelo próprio texto. E aí fecha-se o círculo. Já que pressupostos são inevitáveis, bem como o círculo hermenêutico, devemos estar constantemente revendo estes pressupostos à luz do texto, deixando que a Palavra de Deus nos transforme. O problema não são os pressupostos, mas pressupostos incompatíveis com a natureza do texto bíblico. O problema com os exegetas histórico-críticos é que não se deixam desafiar nem transformar pela Bíblia.

Pressupostos Reformados

Na tabela abaixo mencionamos alguns dos principais pressupostos teológicos

que nos dão perspectivas dentro das quais podemos interpretar as Escrituras com

competência:

A existência de Deus Deus existe e atua na história. Milagres e profecia são possíveis. Portanto, podemos interpretar os relatos da atividade sobrenatural de Deus como história e não mito. Nada impede que o Cristo da fé tenha sido o mesmo Jesus da história.

Revelação Progressiva

Deus se revelou progressivamente. A revelação não foi dada de uma única vez, da mesma forma, numa mesma época e às mesmas pessoas. Portanto, devo ler o texto bíblico comparando as suas diferentes partes, considerando que as mesmas têm uma unidade básica, mas que existe desenvolvimento dentro delas.

Inspiração e Autoridade

Os escritores bíblicos foram movidos pelo Espírito, de tal forma que seus escritos são inspirados por Deus. Portanto, são autoritativos e infalíveis. Devemos interpretar suas partes difíceis sem recorrer a soluções que impliquem na presença de erros, contradições ou inverdades nelas.

História da Redenção

A Bíblia deve ser lida como o registro dos atos redentores de Deus na história. Estes atos foram interpretados e registrados por escritores inspirados por Deus. Portanto, a Bíblia deve ser lida, não como um manual de ciências, astronomia, geografia ou física, mas como um livro teológico.

Cristo Devemos ler a Bíblia sabendo antecipadamente que Cristo é a substância de todos os tipos e símbolos do AT, do pacto da graça e de todas as promessas. Que os sacramentos, genealogias e cronologias da Escritura nos mostram as épocas e tempos de Cristo. Cristo, portanto, é a própria substância, centro, escopo e alma das Escrituras.

Cânon O cânon protestante das Escrituras é a coleção feita pela Igreja de livros que ela reconheceu que foram dados pela inspiração de Deus. Cada livro deve ser lido e entendido dentro deste contexto canônico, que é o contexto apropriado para a interpretação. Podemos usar material extra-bíblico para esclarecer determinadas passagens, mas os limites do cânon determinam o horizonte da exegese.

5.3. Aspecto Gramático.

As Escrituras foram escritas em línguas humanas: O Antigo Testamento em hebraico e aramaico e Novo em grego. Estas línguas não são mais faladas em nossos dias. Cada uma delas tinha suas peculiaridades, formas de transmitir conceitos. Princípios de interpretação devem levar em conta o papel e a importância do conhecimento das línguas originais.

Além disto, já que não temos os autógrafos, é preciso também considerar a importância da crítica textual para o estabelecimento do texto bíblico e para nossa

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compreensão adequada das Escrituras. Um outro elemento é o trabalho de tradução da Bíblia feito pelos especialistas. Em resumo, sob o aspecto gramático devemos abordar:

gramática das línguas originais

crítica textual

tradução

Infelizmente prevalece nos meios evangélicos brasileiros um preconceito contra o estudo sério e acadêmico da Bíblia. Em muitos círculos acredita-se que basta ter comunhão com Deus e vida de oração, para que a leitura da Bíblia, mesmo em português, produza um conhecimento exato do seu sentido primário. Conforme já enfatizamos antes, a mensagem geral da Bíblia é clara para todos que não conhecem outra língua senão o português. A maior parte de nossas traduções é confiável. Mas, para os que desejam especializar-se em Bíblia, ter algum conhecimento das línguas originais é indispensável.

Muitos pastores e obreiros simplesmente desejam aprender como fazer as coisas, dando pouca ou nenhuma importância ao estudo sério de gramática, esquecendo que conhecimento sólido da Palavra de Deus é a base de toda a prática correta na Igreja. Os seguintes argumentos visam estimular nossos alunos a estudar hebraico e grego, ainda que apenas para conhecer seus fundamentos:

1. Toda prática precisa de um sólido fundamento teórico. Os que abandonam o estudo sério da Bíblia e vão diretamente para a "prática" cedo ou tarde sentirão falta de fundamentos teóricos e doutrinários. A Palavra de Deus é o fundamento da prática missionária, do aconselhamento, do culto, do serviço cristão. Estudá-la com seriedade e profundidade é dever de todo aquele que usa a Bíblia como base do que faz.

2. Como pastores e obreiros, deveríamos ser mais profissionais, e conhecer melhor aquilo que usamos diariamente em nosso ministério. Confiaríamos nossas vidas a um médico que não leva a sério o estudo de anatomia, de medicina, etc.? E confiaremos nossas almas a pastores e líderes que não sabem com exatidão o que está escrito no Livro que usam para falar ao povo?

Avaliando as Traduções Desde que a maioria dos estudantes da Bíblia realmente se utiliza de traduções,

visto não serem treinados para ler a Bíblia nos originais, é uma parte importante do aspecto gramático da interpretação avaliar as traduções disponíveis. Os seguintes critérios podem ser utilizados pelos estudantes para selecionar as traduções que vai usar para interpretar a Bíblia.

1. A identidade e a capacidade dos tradutores -- escolha traduções que foram feitas por comitês ou equipes de estudiosos de várias orientações teológicas, como a Almeida e a NVI. Traduções feitas por uma única pessoa são limitadas pelo conhecimento do tradutor. Traduções feitas por um comitê de pessoas de uma mesma ideologia são tendenciosos. A tradução das Testemunhas de Jeová é um exemplo, ao tentar apagar traços da divindade de Jesus em cada passagem que sugira isto.

2. O texto que foi usado como base para a tradução -- adquira traduções que foram baseadas em diferentes textos. Muito embora as diferenças entre os principais textos hebraico, aramaico e grego representem uma pequena porcentagem, elas podem determinar uma leitura diferente de uma passagem. Use estas traduções comparativamente. Por exemplo:

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Nova Versão Internacional (Texto Crítico) Almeida Corrigida (Texto Majoritário) Rm 8.1 - Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus

Rm 8.1 - Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito.

1 João 5.7-8 - Há três que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue; e os três são unânimes.

1 João 5.7-8 Porque três são os que testificam no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na terra: o Espírito, e a água, e o sangue; e estes três concordam num.

A maioria das traduções orienta seus leitores quando ocorrem variantes significativas, como as mencionadas na tabela acima, colocando as palavras duvidosas entre colchetes, ou em itálico, ou ainda fazendo referências ao problema em notas textuais. O estudante que não está familiarizado com questões críticas textuais terão grande proveito se empregarem traduções que adotaram diferentes textos como base, comparando-os e estudando as notas explicativas.

3. A filosofia de tradução empregada -- as traduções seguem duas filosofias de tradução diferentes. O estudante deveria adquirir Bíblias que adotem cada uma delas, para comparação e estudo. Existem duas filosofias de tradução: (1) Equivalência formal, que tem como alvo permanecer o mais próximo possível da ordem das palavras e da construção da frase no original. Prefere sacrificar o estilo e a elegância na tradução para seguir de perto o texto original. Seguem esta orientação a versão da Sociedade Bíblica Trinitariana, a Almeida Corrigida (antiga). (2) Equivalência Dinâmica, que coloca a ênfase no conteúdo da mensagem em vez da forma do texto. Seu maior defensor é Eugene Nida, missionário e tradutor da Sociedade Bíblica Unida. Nesta teoria, a idéia é traduzir conceitos e não palavras. O tradutor deve primeiro descobrir qual o sentido do texto original e em seguida, procurar um equivalente na língua receptora. Seguem esta orientação a Bíblia na Linguagem de Hoje, a Bíblia Viva, e as paráfrases em geral. A maioria das traduções procura seguir um meio termo, aproveitando o que há de melhor nas duas filosofias.

Em conclusão, eu diria que o estudante deve ter e usar diferentes versões, comparando-as para ver onde elas divergem de forma significativa, o que via de regra indica dificuldades textuais ou gramaticais. Por exemplo, compare as versões abaixo em 1 Tessalonicenses 4:4

Almeida Corrigida "que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santificação e honra"

Almeida Atualizada "que cada um de vós saiba possuir o próprio corpo em santificação e honra"

Bíblia na Linguagem de Hoje

"Que cada um saiba viver com a sua esposa de um modo que agrade a Deus, com todo o respeito"

Bíblia Ecumênica "que cada um de vós saiba casar-se para viver com santidade e honestidade"

5.4. Aspecto Literário

O aspecto anterior tratava das palavras das Escrituras. Esse aborda o texto como um todo, em sua forma. Trata das questões relacionadas com o gênero literário

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dos textos bíblicos e inclui os estudos dos artifícios literários usados na Bíblia. Esta questão é muito importante, e será discutida e abordada mais para a frente em nosso curso. Por enquanto vamos tratar somente do princípio geral, ou seja, que na interpretação das Escrituras deveremos levar em conta os gêneros literários utilizados.

O que é Gênero Literário? Quando você vai para sua caixa postal e a abre, está sujeito a achar vários tipos

de literatura: contas, anúncios, cartas, revistas e outros. Entretanto, você nunca os trataria todos do mesmo jeito. Você nunca trataria uma conta como um anúncio ou uma carta pessoal como uma conta. Você pode distinguir entre estes gêneros ―literários‖ e pode interpretá-los adequadamente.

O termo gênero significa simplesmente "tipo", "espécie" e refere-se às diferentes formas, figuras de linguagem e estilo empregados na comunicação escrita em geral. Embora inconscientemente na maior parte dos casos, lemos as coisas já sabendo que são poesia, reportagem, piada, um sermão, uma narrativa, estatísticas, novela, ficção, aventura, etc. Tudo isto são gêneros literários. Ler a Bíblia com competência é lê-la estando consciente dos gêneros nela presentes. Este é um aspecto fundamental da interpretação bíblica. Se não levarmos em conta a análise literária, podemos cair em erros graves de interpretação.

Exemplos da Importância da Análise Literária No Livro de Salmos, por exemplo, há salmos pessoais de lamento, lamentações

comunais, ações de graças, salmos de sabedoria, e outros. Nos Evangelhos encontramos narrativas de cura, paradigmas, declarações, histórias de pronunciamento, parábolas, declarações de sabedoria, textos messiânicos, e outros. Nas Cartas do Testamento Novo nós temos exortação, confrontação, e outros. Precisamos, entretanto ter cuidado para não atribuir à literatura bíblica tipos de forma identificados em outras culturas e em épocas diferentes.

Por exemplo, a maior parte dos problemas relacionados com a historicidade do livro de Jonas - ou seja, se os fatos ali narrados aconteceram realmente - têm a ver principalmente com a questão do gênero do livro. Muitos estudiosos acreditam que se trata de uma narrativa poética e que o livro nunca teve a intenção de transmitir a idéia de que Jonas havia sido realmente engolido por um peixe grande. O livro, dizem, é uma espécie de drama épico, um poema dramático, com o propósito de comunicar uma mensagem, não fatos históricos. Outros afirmam que o livro é histórico e não poético, mas rejeitam a genuinidade da narrativa por não acreditarem em milagres do tipo ali narrados. Por outro lado, muitos estudiosos que acreditam em milagres entendem que Jonas é um relato ou depoimento histórico de fatos que realmente aconteceram. A autoridade de Jesus, ao citar o livro como se fosse histórico, acaba também sendo decisivo sobre este ponto (cf. Mt 12.39-41; Lc 11:29-32). Vemos como a determinação do gênero literário de Jonas é crucial para sua interpretação. O mesmo é verdade da literatura em geral e da Bíblia em particular.

Outro exemplo é o uso bíblico de hipérboles. A hipérbole é um exagero de algum tipo, geralmente usado na linguagem comum e na literatura, simplesmente com o objetivo de reforçar algum ponto. Por exemplo, quando eu digo "todo mundo sabe disto", está óbvio que é uma hipérbole. Fazemos isto diariamente. Na Bíblia também encontramos hipérboles. Por exemplo, Mateus diz que Jesus percorria todas as cidades e povoados da Galiléia (Mt 9.35) e Paulo, que o Evangelho havia sido pregado a toda criatura debaixo do céu (Cl 1.23). Paulo afirma que ainda que fosse capaz de falar nas línguas dos homens e dos anjos, e se tivesse todo conhecimento, nada seria sem amor (1 Co 13.1) – uso evidente de hipérbole.

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Outro exemplo é a personificação. A Bíblia diz que os montes batem palmas, os rios dançam e as árvores jubilam. Ou seja, emprega-se linguagem humana para objetos inanimados ou seres irracionais. Estas coisas são fáceis de ser reconhecidas como personificação. Entretanto, há coisas mais difíceis. Por exemplo, a narrativa do diálogo de Balaão com a jumenta: trata-se de uma personificação ou relato de evento histórico? Jumentas não falam, via de regra... quis o autor personificar a voz de Deus e usou a personificação em meio a uma narrativa histórica? Ou ainda, será que a serpente que enganou Eva era um animal de verdade? O evento aconteceu mesmo? Ou será que não foi uma personificação para transmitir o conceito do pecado? E por falar nisto, Adão foi histórico? Não poderia ser uma personificação usada pelo autor para representar a humanidade em geral?

A resposta a estas questões será influenciada em parte pelo pressuposto que alguém tenha em relação à possibilidade da existência de milagres, da atuação de Deus na história e pela autoridade da ciência em determinar o que pode ou não acontecer. Mas, a regra objetiva é esta: se o texto nos é apresentado com todas as marcas de uma narrativa histórica e procura nos persuadir que estas coisas realmente aconteceram, não devo descartar a historicidade delas a priori, como muitos cépticos fazem.

No caso particular da tentação e da Queda, bem como da existência de Adão, mais uma vez é importante lembrar a autoridade de Jesus, que referiu-se a todos estes eventos como tendo realmente acontecido e existido.

Alguns Exemplos Quando o estudante da Bíblia confronta o texto tem que perguntar "que tipo de

forma (gênero) é essa aqui; e como deve ser interpretada"? Ao fazer isso, o estudante está conscientemente exercitando este importante aspecto da interpretação. O questionamento sobre o gênero fixa os limites interpretativos ao redor do texto, evitando que o intérprete trate o texto como se fosse outra coisa. Quer dizer, quando a pessoa sabe que está lendo uma fábula (como na fábula de Jotão), vai interpretá-la como as fábulas devem ser interpretadas, ou seja, buscando a lição ou mensagem moral que elas transmitem:

Avisado disto, Jotão foi, e se pôs no cimo do monte Gerizim, e em alta voz clamou, e disse-lhes: Ouvi-me, cidadãos de Siquém, e Deus vos ouvirá a vós outros. Foram, certa vez, as árvores ungir para si um rei e disseram à oliveira: Reina sobre nós. Porém a oliveira lhes respondeu: Deixaria eu o meu óleo, que Deus e os homens em mim prezam, e iria pairar sobre as árvores? Então, disseram as árvores à figueira: Vem tu e reina sobre nós. Porém a figueira lhes respondeu: Deixaria eu a minha doçura, o meu bom fruto e iria pairar sobre as árvores? Então, disseram as árvores à videira: Vem tu e reina sobre nós. Porém a videira lhes respondeu: Deixaria eu o meu vinho, que agrada a Deus e aos homens, e iria pairar sobre as árvores? Então, todas as árvores disseram ao espinheiro: Vem tu e reina sobre nós. Respondeu o espinheiro às árvores: Se, deveras, me ungis rei sobre vós, vinde e refugiai-vos debaixo de minha sombra; mas, se não, saia do espinheiro fogo que consuma os cedros do Líbano. (Juízes 9)

Esta fábula é simplesmente uma "história anti-monárquica". Deve ser interpretada como tal, sem que se busque sentidos que não são comportados pela sua forma ou gênero literário. O mais importante de tudo é notar a forma e interpretar adequadamente o material. Assim teremos a mensagem correta da passagem.

VI. REGRAS BÁSICAS DA HERMENEUTICA BÍBLICA. Considerando tudo aquilo que temos falado até aqui, algumas orientações

práticas e básicas, para interpretação da Bíblia são de fundamental importância. Sem elas não é possível garantir uma boa interpretação, que são as seguintes:

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6.1. A Bíblica como autoridade máxima em questão de religião, fé e doutrina. Em assunto de religião o indivíduo se submete a tradição, razão ou as Escrituras. A autoridade que ele se submeter como superior irá determinar o tipo de crença que possa esposar. Se o cristão não tem as escrituras como a maior autoridade, as conclusões de fé não refletirão o ensino de Cristo nem o que essencialmente ensina cristianismo.

6.2. Consideração da Bíblia como revelação de Deus em Jesus Cristo – a história da redenção - como mensagem central.

Faz-se necessário ao lermos um livro termos a idéia básica do que ele está falando, ler um livro de geografia pensando que ele é um livro de física certamente haverá problemas. Os livros da Bíblia carregam uma mensagem central, que é a história da redenção.

6.3. Escritura com Escritura.

A Bíblia interpreta a si mesma. Ela possui o melhor comentário a respeito de si mesma. Quando uma passagem não estiver muito clara, deve-se então, buscar outras que tratem do mesmo assunto para uma compreensão mais ampliada. Ex: Em Lucas 6:20 diz: ―... bem aventurado vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus‖ lendo apenas Lucas poderíamos desenvolver a idéia de que Jesus ensina que pobreza material é condição para entrar em seu Reino, mas quando lemos Mateus 5:3 ―bem

aventurado os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos céus.‖ Nesse texto a idéia se completa, a pobreza; que Jesus se refere, tem haver com humildade, com despojamento interior.

6.4. Interprete a experiência pessoal a luz da Escritura, e não a Escritura a luz da experiência pessoal.

A experiência pessoal é relativa e subjetiva, pode ser motivada por qualquer coisa. Apenas a Palavra de Deus deve ser normativa, toda experiência deve passar pelo filtro das Escrituras.

6.5. Os exemplos morais e éticos da Bíblia somente têm autoridade a sua prática, quando recomendados pelo Novo Testamento. Muitos homens e mulheres de Deus na Bíblia se envolveram em situações reprováveis: mentiras, adultério, prostituição, assassinato etc. O referencial do cristão é o Novo Testamento em especial a pessoa de Jesus.

6.6. O Antigo Testamento é interpretado pelo Novo. Não somos judeus, somos cristãos o Novo funciona como um filtro para uma

compreensão. Tudo aquilo que está no Antigo Testamento e que não é confirmado a sua permanência no Novo Testamento não é válido para nós, o Novo Testamento é uma revelação superior. Ex: Sl 122:1 ―Alegrei-me quando me disseram: Vamos à casa do Senhor.‖ Para o judeu a casa do Senhor ou a casa de Deus era o templo e Deus tratava assim; já no N.T. 1Co 3:16 Não sabeis vós que sois santuário de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?.

6.7. O texto quer dizer o que o seu autor quis dizer. O alvo da boa interpretação é simples, não tem a presunção de originalidade,

mas apenas dizer o que o texto quer dizer. Não se quer dizer com isto que o entendimento de um texto não possa frequentemente parecer sem igual para alguém que o ouve pela primeira vez. O que queremos dizer mesmo é que a originalidade não é o alvo da nossa tarefa.

Dois exemplos de interpretação de uma parábola onde um texto é alegorizado e dado uma idéia que é estranha a intenção do autor, a parábola do bom samaritano.

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O homem descendo para Jericó

Adão O homem descendo para Jericó

O homem se afastando de Deus

Jerusalém, de onde ele partiu

Cidade da paz celestial

Jericó A lua, que significa nossa moralidade. Em hebraico há um jogo de palavras dos termos "lua" e "Jericó".

Ladrões O maligno e seus anjos Os salteadores O pecado

Desnudar Levar sua imortalidade

Bater Convencer a pecar

Deixar semi-morto Por causa do pecado ele estava espiritualmente morto, mas meio vivo, devido ao conhecimento de Deus.

A margem da estrada

O homem que caiu no pecado

Sacerdote A Lei. O sacerdote e o levita A lei que não pode salvar

Levita Os profetas

Bom samaritano Cristo Bom samaritano Jesus

Curar as feridas O pecado sendo contido Derramou o vinho O sangue

Óleo Conforto e esperança Levanta o ferido O novo nascimento

Vinho Exortação ao trabalho corajoso Coloca sobre cavalgadura

O evangelista

Hospedaria Igreja Leva a hospedaria Igreja

Dois denários Dois mandamentos de amor Diz ao dono da estalagem: cuida dele

pastor

Dono da hospedaria

Apóstolo Paulo Duas moedas Batismo e santa ceia

Retorno do bom samaritano

Ressurreição de Cristo Cuida dele até que eu volte

Segunda vinda de Jesus

A pergunta é o que Jesus quis dizer com essa história? Em Lucas 10:29-30 nos diz que Jesus contou essa história para responder a pergunta ―quem é o meu próximo?‖ feita por um doutor da lei. O texto quer dizer apenas que o meu próximo é qualquer pessoa que precisa de minha ajuda ainda que seja meu inimigo. Na parábola do bom samaritano, não importa se o homem subia de Jericó. O significado da parábola não mudaria se fosse outra cidade, ou se o homem da hospedaria tivesse recebido três denários! Esses detalhes foram acrescidos para proporcionar vividez e colorido para atrair o interesse. Esses detalhes adicionais não transformam uma parábola em alegoria. Similarmente, na parábola do filho pródigo, detalhes como a melhor roupa, o anel, as sandálias e o novilho cevado, não possuem uma correspondência com a realidade. É verdade que a igreja, em seu início, viu nesses detalhes o retorno à justiça original perdida (a roupa), o batismo cristão (o anel), e a Ceia do Senhor (novilho), mas os fariseus e escribas é que eram a audiência de Jesus (Lc 15.2). E eles nunca teriam interpretado a parábola desta forma. Todas as partes apontam para o grande amor do pai e a plena aceitação de seu filho. Assim, os detalhes auxiliam na ilustração do ponto focal da parábola (O amor de Deus também pelos excluídos), mas não possuem qualquer significado especial.

Ainda que as conclusões alegóricas não sejam erradas, porém a interpretação segura de um texto requer que nos detenhamos a intenção do autor.

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6.8. O sentido natural deve ser preferido ao figurado. A primeira abordagem interpretativa do texto deve ser literal, apenas quando o

sentido natural for impossível é que devemos concluir que o texto é simbólico buscando, então, o sentido do texto por traz do símbolo. Ex: Jo 10:9 ―eu sou a porta...‖; Jo 8:12 ―Eu sou a luz do mundo...‖

6.9. Cada texto tem apenas um sentido, mas muitas aplicações. Cada texto tem uma intenção, não são várias, porém o texto pode ter muitas aplicações. Ex: ―O Senhor é meu pastor e nada me faltará...‖; qual o sentido desse texto? O Senhor cuida de mim como o pastor cuida das ovelhas, mas esse texto pode ser aplicado sobre o cuidado de Deus quando estou doente, desempregado, triste, sozinho etc.

6.10. Todo texto deve ser entendido a luz do seu contexto. Uma palavra retirada de seu contexto pode prejudicar, terminantemente, o

sentido e a intenção de um texto. Na Bíblia o contexto pode ser: imediato = que são os versículos que vem antes e o que vem depois; contexto remoto = o capítulo todo e às vezes o livro todo. Um exemplo simples é o que está escrito em Fp 4:13 ―posso todas as coisas naquele que me fortalece‖ muita gente usa esse texto como se Paulo tivesse dizendo, que nós cristãos, podemos conseguir qualquer coisa, pois Deus vai nos ajudar, mas se olharmos o contexto imediato nos versículos 11 e 12 constataremos que Paulo está falando do seu aprendizado de se contentar em todas as circunstâncias da vida sejam boas ou ruins, pois Deus o sustenta fortalecendo a sua vida.

6.11. A história da Igreja, embora importante, não deve ser decisiva na interpretação das Escrituras. Apesar de reconhecermos os méritos da história da Igreja, por ela registrar o denodo e a bravura com que os princípios sagrados foram defendidos e mantidos, devemos afirmar, contudo, que a Igreja não determina o que a Igreja ensina; antes, a Bíblia é quem determina o que a Igreja ensina. A história, aliás, serve também para revelar as periodizações nas quais a Igreja se afastou da Bíblia e suas trágicas consequências.

6.12. O texto descritivo só deve ser normatizado se for ensinado em textos didáticos. Textos descritivos são aqueles que apenas narram fatos os didáticos instruem como regra a Igreja. Exemplo de um texto didático Rm 8:1 ―Portanto, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus‖ esse é um texto que traz um ensino que deve ser repassado e normatizado na Igreja, porém existem muitos textos na Bíblia que são apenas narrativas descritivas, mas que não pretende tornar aquilo algo padronizado na experiência cristã. Ex: A conversão de Paulo descrita em Atos 9; Paulo vê uma luz, ouve a voz de Deus, fica cego por três dias, tem uma visão de alguém orando por ele, é óbvio que isso não pode ser usado como regra para legitimar uma conversão de alguém, porque não há nenhum ensino Bíblico quanto a isso. E assim deve-se proceder com as várias passagens descritivas existentes na Bíblia.