82
Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia Departamento de Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia Alírio Melo Urany AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIA Goiânia-Go Novembro/2008

AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

Faculdade de Ciências Humanas e FilosofiaDepartamento de Ciências Sociais

Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Alírio Melo Urany

AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIA

Goiânia-Go

Novembro/2008

Page 2: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

ii

Alírio Melo Urany

AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, da Universidade Federal de Goiás, para obtenção do título de mestre em Sociologia.

Orientador: Prof. Dr. Jordão Horta Nunes

Goiânia-Go

Novembro/2008

Page 4: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

iii

Alírio Melo Urany

Ação Coletiva e Movimento GLBT em Goiânia

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, da Universidade Federal de Goiás, para obtenção do título de mestre em Sociologia.

Goiânia,___de _____________ de 2008

Banca Examinadora

______________________________________Prof. Dr. Jordão Horta Nunes

Presidente da Banca

______________________________________Prof. Dr. Alecsandro J.P. Ratts

______________________________________Prof. Dr. Francisco C.E. Rabêlo

______________________________________Prof. Dr.

Page 5: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

iv

Como não dedicar aos analfabetos que me ensinaram a ler o mundo – Francisco, meu pai. Francisca, minha mãe.

Page 6: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

v

AGRADECIMENTO

Não é fácil lembrar de todos. Na verdade alguns nem

percebi que ajudaram – mantiveram-se em silêncio,

ausentaram-se para não incomodar, assumiram

responsabilidades das quais me ausentei e pagaram um preço

sem saber ao certo o que é um mestrado.

Outros incentivaram, orientaram e acreditaram que

era possível e importante. Foram professores, colegas e

amigos. O orientador fez de seu gabinete um divã – ouviu as

dores, contornou, ajudou e me incentivou.

Quanto ao movimento LGBT em Goiânia – não cito

nomes porque todos foram importantes. Mas posso dizer que

já não me sinto um estranho. Agradeço a forma como me

receberam, ao tempo que me dedicaram, aos momentos de

convívio que me proporcionaram – só não sei se o

agradecimento consegue chegar à altura do que fizeram por

mim.

Page 7: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

vi

Àqueles que no iniciou eram estranhos, eu devo tudo. Aceitaram o estranho e permitiram que esta dissertação acontecesse.

Page 8: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

vii

RESUMO

Esta dissertação realiza uma investigação acerca da ação

coletiva promovida pelo movimento LGBT em Goiânia,

buscando desmistif icar o caráter de unicidade que lhe é

atribuído, dando margem para a elaboração de um quadro

interpretativo capaz de perceber a pluralidade dos atores e

das lógicas de ação. Faço uso do conceito de habitus de

Bourdieu para visualizar os processos de agregação dos

sujeitos, bem como da formação de identidades homossexuais

posicionadas numa relação de dominantes e dominados numa

ordem social hegemonicamente heteronormativa. Mas para

sistematizar a forma como o movimento LGBT em Goiânia

busca promover a sua luta por reconhecimento positivo, é que

apresento uma divisão de sua força social em interna, semi-

externa e externa. Esta esquematização possibilita visualizar

um circuito de energias, de formação de redes de

solidariedade, util izada para manter a coesão da força social

dentro do campo de ativismo LGBT. Evidenciou-se ainda que

os atores não estão em plena harmonia, uma vez que

produzem novas hierarquizações dentro do campo de ativismo

LGBT, mas que também tendem a controlar as tensões de

modo a permitir a manutenção e ampliação do campo.

Page 9: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

viii

SUMÁRIORESUMO ............................................................................................................ vii

INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 9

CAPÍTULO I. UMA LANTERNA PARA ANDAR NA SALA ESCURA ............. 14

1.1.A busca de um enquadramento teórico. ................................................................. 14 1.2.Diferenciação social e formação de identidade ..................................................... 20 1.3.A de-formação de uma identidade social. ............................................................. 23 1.4.Dos estilos de vida à rede de ativismo GLBT. ...................................................... 25

CAPÍTULO II. UM CORPO NO ESCURO É CONSTRUÍDO PELO TATO ....... 30

2.1. A construção do objeto – teoria e prática ............................................................. 30 2.2.Metodologia – os desafios da observação ............................................................. 31 2.3.Uma metodologia para desconstruir a unidade e recompor o todo ....................... 36 2.4.Um histórico para o movimento LGBT ................................................................. 40 2.5.A Parada LGBT de Goiânia e seus habitus .......................................................... 41 2.6.Os segmentos LGBT encontrados no trabalho de campo ...................................... 44

CAPÍTULO III. HOMEM COM HOMEM – MULHER COM MULHER ............... 47

3.1Como caracterizar um movimento social ............................................................... 47 3.2Alguns elementos e categorias básicas dos movimentos sociais ............................ 48 3.3Os direitos humanos – a eticidade necessária ......................................................... 57

3.3.1. Como seria composta a força social interna? ................................................ 58 3.3.2. Como seria composta a força social semi-externa? ....................................... 59 3.3.3. Como seria composta a força social externa? ................................................ 60

3.4A formação de redes – homem com homem, mulher com mulher? ....................... 62 3.5Um campo de ativismo LGBT? .............................................................................. 66

CONCLUSÃO ..................................................................................................... 73

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 77

Page 10: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

9

INTRODUÇÃO

Quero sintetizar aqui as reflexões e os caminhos trilhados a

fim de delinear a consistência teórica e metodológica adotada, bem

como definir algumas peculiaridades do objeto empírico. Não tenho

a pretensão de esconder que no fundo-do-baú-da-mágica-científ ica,

estou realizando uma possível construção ou tradução da realidade.

Portanto, escrevo enquanto pesquisador situado que, ao apresentar

o trabalho, também se apresenta. Ainda que portador de uma ética e

de uma responsabilidade científ ica, sou antes de tudo um ser que se

esforça para enxergar uma realidade nebulosa e que, às vezes,

ingenuamente acredito estar clara. Mas também não posso desistir

de discorrer sobre o que “vejo”, pois o fazer científ ico precisa de um

ponto de partida, ainda que seja renegado num momento posterior.

A proposta foi problematizar a aplicabilidade do termo ação

coletiva a determinados fenômenos tidos como coletivos. Num

momento em que a realidade pós-industrial impõe dif iculdades para

o emprego dos conceitos de ação coletiva ou de movimentos

sociais, acredito ser proveitoso para a reflexão sociológica indagar

sobre o seu potencial interpretativo e explicativo de fenômenos

sociais que insistem em aparentar certa homogeneidade, ainda que

seus agentes sejam portadores de uma multiplicidade sexual,

religiosa, cultural, polít ica, racial, etária etc. O cenário de

dif iculdades impostas aos cientistas sociais vai desde a construção

de categorias analít icas e conceitos, até a multiplicidade empírica

dos fenômenos sociais. A idéia de compressão tempo-espaço, o

potencial reflexivo dos atores, sejam individuais ou coletivos, a

constante redefinição do local e do global, a fragilidade do Estado-

nação diante de um mercado financeiro transnacional, o surgimento

de um sujeito polít ico planetário (direitos difusos – ecologia,

pacifismo, etc) – todas são questões contemporâneas que desafiam

a capacidade do “fazer sociológico”. Os quadros interpretativos

Page 11: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

10

parecem se movimentar abaixo da velocidade dos acontecimentos

que buscam explicar.

Daí a necessidade de não abdicar da responsabilidade de

cientista social, mesmo consciente de certo alinhamento teórico

dualista improdutivo, que toma como orientação metodológica ora,

os princípios de um individualismo metodológico, ora os princípios

de um holismo metodológico. Isso acaba por estreitar a visão dos

fenômenos sociais, por um lado negando o potencial de “ser

coletivo”, portador de uma unidade que transcende o indivíduo, por

outro potencializando um “ser coletivo” que dilui o indivíduo. Como,

então, lidar teoricamente e levar para o plano empírico um estudo

que possa construir um instrumental de interpretação e explicação,

que não despreze a riqueza situada no espaço-relacional do ator

para e com o sistema? Ao levar esta proposta para o plano

empírico, este trabalho teve como objetivos: analisar como se

constituem e se relacionam os diversos segmentos que compõem o

movimento GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e travestis – uma

polêmica sobre a sigla será discutida à frente) em Goiânia; e

compreender como se constitui um campo de ativismo GLBT que

permite falar em ação coletiva.

O objeto de estudo nesta dissertação foi desenvolvido,

inicialmente como um elemento teórico, por se tratar da ação

coletiva, como conceito posto à prova numa construção teórica e em

sua aplicabilidade no estudo de fenômenos empíricos. Daí surgiram

questões práticas, advindas da realização da pesquisa e das

especificidades do objeto empírico (movimento GLBT), estimulando

um processo de adequação entre metodologia e teoria.

Num primeiro momento o campo de realização da pesquisa

parecia estar restrito à concretização da Parada GLBT de Goiânia.

Todavia, não só as implicações teóricas apontavam para a

dif iculdade em determinar o lócus da ação coletiva, como a

realidade do fenômeno apresentava um conjunto de eventos que

ocorriam ao longo do ano, e que contribuíam para o evento de maior

evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um

Page 12: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

11

alargamento do campo de estudo empírico, e conseqüentemente

mudanças nas estratégias metodológicas.

O trabalho de observação teve como ponto inicial as

instituições e grupos que compunham o núcleo de organização da

Parada, (Ipê Rosa, Fórum Goiano de ONG’s AIDS e Associação

Goiana de Gays, Lésbicas e Travestis – AGLT). Daí a observação se

estendeu para outros atores, sejam individuais ou coletivos,

públicos ou privados, que de certa forma estavam envolvidos na

organização, compondo um conjunto de forças sociais. Constatou-se

a formação de uma rede de relações, que acabou por configurar um

campo de ativismo GLBT. Portanto, não se tratou de somente

participar da Parada para entendê-la, mas também de visitar outros

espaços de sociabilidade homossexuais, como boates, bares,

cinemas, parques, festas, mostras cinematográficas e outros.

Isso permitiu t ipif icar a diversidade dos sujeitos

participantes do movimento GLBT, caracterizando-os em subgrupos

portadores de um habitus, que em certa medida os agregavam e

também os distanciavam. O habitus, segundo Bourdieu, constitui um

“sistema de disposições duráveis” que opera como “princípio

gerador e estruturador das práticas e das representações que

podem ser objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser o produto

da obediência a regras” (BOURDIEU, 1994, p.88).

Inicialmente o habitus serviu como um recurso heurístico

capaz de sintetizar grupos de atores, mas percebeu-se também que

os atores possuíam trajetórias diversas, implicando numa dinâmica.

Daí constatava-se a existência de um habitus GLBT, relacionado

com a constituição de uma das possíveis identidades homossexuais,

mas também de outro habitus, relacionado com identidade de

ativista GLBT. Ou seja, o primeiro habitus não levaria

necessariamente ao segundo, mas que o segundo dependeria de

saberes incorporados na vivência do primeiro. Portanto, os recursos

teórico-metodológicos deveriam se adequar ao constante movimento

de quebra da unidade, mas sem perder a possibilidade de falar

numa ação coletiva, que se revelava no ativismo GLBT.

Page 13: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

12

A distribuição dos capítulos da dissertação segue uma

lógica de construção teórica, construção metodológica e conclusão.

Faço uma pequena descrição dos capítulos para permitir uma

visualização dos principais temas tratados e traçar uma seqüência

de raciocínio.

No primeiro capítulo buscou-se elaborar uma construção

teórico-metodológica, que permitisse util izar o termo ação coletiva,

os conceitos de campo de ativismo GLBT, movimentos sociais e

outros construtos teóricos necessários para preencher possíveis

lacunas no percurso teórico-metodológico. Foram retomadas

questões acerca da formação de uma ordem social a partir de

mecanismos de distinção social; os conflitos identitários provocados

pelo ajuste entre atribuição e reconhecimento; a alocação de

recursos culturais que permitam questionar a hierarquia imposta a

partir de uma heteronormatividade. Daí recorreu-se a princípios

teóricos que intermediaram a abordagem da ação coletiva, numa

realidade dotada de mecanismos estruturais que se colocam numa

relação dialógica com os mecanismos de mudança e expressão de

singularidades e subjetividades. Procurou-se analisar como se

efetivava a sustentação do fato coletivo ou do objeto portador de

unidade, tendo em vista as múltiplas formas de construção

identitária possíveis, a readequação dos fins buscados, dos meios

util izados e da fluidez do ambiente humano e não-humano.

No segundo capítulo propõe-se uma aproximação com o

contexto empírico, para enfatizar as dif iculdades de adequação do

construto teórico, mas ao mesmo tempo sua possível sustentação.

Problematiza-se o próprio trabalho de campo, onde a descrição do

processo de interação entre observador e observado é

apresentada, delimitando suas virtudes e incompletudes. Busca-se

identif icar a complexidade dos elementos que compõem a

“fabricação” da Parada GLBT e os recursos metodológicos

necessários para tornar viável a realização da pesquisa.

Empreende-se um histórico do movimento GLBT e da Parada de

Goiânia, bem como uma identif icação dos diversos segmentos que a

Page 14: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

13

compõem e seus habitus e espaços de sociabilidade. Com isso

pretende-se realizar a decomposição do objeto e sua posterior

recomposição a luz dos princípios teóricos adotados.

No terceiro capítulo efetiva-se uma aplicação das premissas

teóricas, verif icando sua eficácia na compreensão e na explicação

do objeto. Retoma-se os objetivos propostos, a fim de verif icar se

foi realizada a proposta do trabalho. Aqui intervêm os recursos

empíricos, como entrevistas, material gráfico e informações colhidas

na observação participante a fim de permitir a articulação entre o

teórico e o objeto empírico.

Nas considerações finais busca-se enfatizar os limites do

termo ação coletiva para os objetos empíricos portadores de

características próprias de movimentos sociais e formadores de um

campo de ativismo. Aponta-se recursos teóricos e metodológicos

que sejam eficazes para captar a diversidade de sentidos e sujeitos,

possibilitando traduzir os momentos de unidade. Busca-se

estratégias capazes de entender, ou pelo menos respeitar, o

movimento de circularidade entre ator e estrutura.

Page 15: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

14

CAPÍTULO I. UMA LANTERNA PARA ANDAR NA SALA ESCURA

1.1. A busca de um enquadramento teórico.

A alusão que faço sobre a lanterna para andar na sala

escura se refere em parte, da experiência de entrar numa

“darkroom”, típica das boates GLS, mas que trago para o plano da

prática desta pesquisa, como o desafio de iluminar o objeto que se

procura entender. Numa sala escura, aquele que util iza uma

lanterna, somente terá a imagem completa da sala, através de

pequenos fragmentos, ou mosaicos, visto que não é possível

i luminar a sala por completo. Da mesma forma na pesquisa, só

tenho a dimensão do objeto aqui estudado, através de pequenos

recortes, que acabo por traduzir em um todo. E é esta tradução em

um todo, que chamo de enquadramento teórico e que busco realizar

neste capítulo.

O primeiro contato com o movimento GLBT foi através da

minha atividade profissional, enquanto agente de trânsito. Ajudava a

bloquear a rua para que a “Parada Gay” pudesse passar. No

comentário das pessoas, nas páginas do jornal do dia seguinte, o

assunto era a Parada Gay. O olhar de cientista social insistia em

perceber a diversidade daquilo que parecia tão bem explicado, ou

“tão gay”. Então, o primeiro encantamento foi com a força da

produção da ação coletiva. Como se formou aquilo? Como sujeitos

com práticas homossexuais adquirem motivação para saírem na rua

reivindicando seus direitos? O segundo encantamento só ocorreu

após iniciar os estudos teóricos e a pesquisa empírica. Foi a

descoberta de que a denominada “Parada Gay”, ainda que

apresentando uma unidade, era dotada de uma grande diversidade

de sujeitos. Fui percebendo que se tratava de um evento

emblemático da diversidade de um movimento muito maior. Se o

senso comum e mesmo a mídia denominava o evento como algo

único, reduzindo as práticas sexuais ao nome “gay”, os sujeitos

participantes se apresentavam como portadores de identidades

Page 16: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

15

sexuais diversas. Seriam homossexuais, mas também bissexuais e

heterossexuais. Seriam sujeitos que estavam na avenida por uma

causa meramente relacionada com a sexualidade? Não. Somente

com o aprofundamento da pesquisa é que pude notar que muitos

eram ativistas dos direitos humanos ou de outros segmentos

chamados minorias (feminismo, movimento negro, deficientes

auditivos) ou lideranças polít icas. A constatação de que havia uma

diversidade de ativismos, ocupando posições diferenciadas no

espaço social, seja em relação ao poder, ao status, é que motivou a

construção de um enquadramento teórico peculiar que pudesse

captar a produção de uma ação coletiva.

Num primeiro momento, a intenção era realizar uma

reconstrução teórica do termo ação coletiva, mas percebeu-se que

bastava delimitar os parâmetros util izados neste trabalho,

justif icando sua capacidade de explicar as características do objeto

estudado. Assim, emprega-se o termo ação coletiva e o procura-se

justif ica-lo como conceito fundamental num quadro teórico, que

respeite ou coadune com as características empíricas do objeto que

se propõe a compreender. Busca-se, então, num primeiro momento,

f ixar o termo ação coletiva num elenco de possíveis acepções.

Existem basicamente duas linhas de explicação quando se trata de

fenômenos tidos como coletivos, tais como a moda, o pânico, a

manifestação polít ica, o movimento revolucionário, o terrorismo e

outros. Na primeira linha explicativa o fenômeno social é tomado

como um dado, como portador de uma unidade natural, tendo como

os princípios estruturais de um holismo metodológico como

formadores da realidade coletiva. Nessa linha Jeffrey Alexander

(1998) cita o exemplo de estudos realizados por Durkheim acerca

das assembléias públicas e dos movimentos de massa, onde eram

comparados com os rituais primitivos, o que reduzia o espaço para

uma possível racionalidade ou contingência. Na outra linha se

encontra a explicação do fenômeno coletivo, a partir da soma de

desejos individuais, da escolha racional, onde os atores buscam

maximizar seus ganhos e minimizar suas perdas, ou os esforços

Page 17: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

16

para atingir o “bem coletivo”. Um exemplo dessa linha é o marxismo

analít ico, em que se tenta “explicar as estruturas sociais agregadas

como o resultado de indivíduos racionais perseguindo seus

interesses materiais” (DANIEL LITTLE, 1990, p.1). Mancur Olson,

em sua obra A Lógica da Ação Coletiva, contribuiu muito na

problematização da racionalidade privada e da ação coletiva no

contexto da aquisição de um bem público. Este autor vê uma falácia

lógica na afirmação de que grupos ou organizações agiriam

coletivamente à procura do interesse comum, pois tais grupos se

constituem de indivíduos que tomam decisões independentes. Daí,

para Olson, não seria

suficiente mostrar que uma ação servir ia aos interesses do grupo se todos ou a maioria dos membros do grupo a desempenhassem: é necessário mostrar, além disso, que todos (ou a maioria) dos indivíduos no grupo têm um interesse racional em agir dessa forma (LITTLE, 1990, p.1).

Disso decorrem outras implicações, como a tendência à

não-participação na ação, e a postura de “carona” ( free rider), a

diferença de ganhos relativos dos participantes da ação, em grupos

grandes ou pequenos.

Percebe-se, em vista das considerações efetuadas, uma

dualidade explicativa do fenômeno coletivo: na primeira linha não há

espaço para a subjetividade, para a individualidade, enquanto que

na segunda tem-se a diluição dos mecanismos de sistema, os

princípios estruturantes. Torna-se necessário construir um

referencial teórico propositivo que estabeleça uma relação circular

entre ator e sistema, respeitando a dualidade, mas não se

estreitando ao posicionamento dualístico.

Segundo Margareth Gilbert a ação coletiva envolve uma

intenção coletiva:

[ . . . ] eu considero a ação coletiva como envolvendo uma intenção coletiva e, portanto, inicio com uma proposta sobre o que signif ica para nós ter uma intenção particular ou, num sentido mais comum, pretender algo coletivamente (GILBERT, 2006, p. 05).

Page 18: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

17

Tal afirmação envolve a questão da distinção entre agência

individual e agência coletiva, da racionalidade, da não-

intencionalidade e de outros problemas teóricos e metateóricos da

sociologia moderna. Ir a uma procissão religiosa, participar de uma

maratona esportiva, participar de um baile de formatura; cada uma

dessas ações envolve uma intenção coletiva, mas a preocupação

aqui é com eventos onde os atores ao realizarem algo juntos,

acabam promovendo um fato supra-individual. Não é objetivo deste

trabalho incluir todos os inúmeros tipos de ação coletiva orientados

por intenções coletivas. O fato é que, dentre as diversas tentativas

de se definir a ação coletiva, existe um quadro conceitual que está

mais próximo de ações realizadas no interior de movimentos sociais,

ou visando uma intervenção social. E é este esquema conceitual de

ação coletiva que se pretende identif icar. Para isso, propõe-se

elaborar um construto de ação coletiva que esteja peculiarmente

relacionado com o universo dos movimentos sociais, por intermédio

de uma construção da literatura metodológica a respeito de

movimentos sociais, tentando identif icar e explorar as referências ao

conceito de ação coletiva.

A contribuição de Alberto Melucci para o estudo da ação

coletiva é fundamental neste trabalho, uma vez que o seu

referencial teórico parece captar melhor a complexidade identitária e

cultural, das motivações, dos sentidos e dos componentes da ação

coletiva (MELUCCI, 2001, p.29). Além disso, Melucci não estuda a

ação coletiva sem uma referência ao empírico, pois está sempre

referindo-se à configuração de movimentos sociais:

Quando se fala de um movimento social, refere-se geralmente, a um fenômeno coletivo que se apresenta com uma certa unidade externa, mas que, no seu interior, contém signif icados, formas de ação, modos de organização muito diferenciados e que, frequentemente, investe uma parte importante das suas energias para manter unidas as diferenças (MELUCCI, 2001, p. 29).

Page 19: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

18

Assim, é possível desconfiar de uma “unidade externa”,

tomando-a como aparente, e investigar o circuito das energias

util izadas para manter a coesão interna, ou a união das diferenças.

Pensar a ação coletiva num contexto de movimento social implica

em construir um referencial interpretativo que vá além daquilo que

Alain Touraine identif icou como base de um movimento social, ou

seja, a identidade, o adversário e a meta societal.

O termo movimentos sociais diz respeito aos processos não insti tucionalizados e aos grupos que os desencadeiam, às lutas polít icas, às organizações e discursos dos l íderes e seguidores que se formaram com a f inalidade de mudar, de modo freqüentemente radical, a distr ibuição vigente das recompensas e sanções sociais, as formas de interação individual e os grandes ideais culturais (ALEXANDER, 1998).

A consideração anterior implica uma classif icação entre

novos e velhos movimentos sociais. Ao “velho” movimento social,

corresponde o modelo clássico, que compreende as ações coletivas,

onde os atores buscam mobilizar as massas para tomar o poder

opressor de um Estado. Há uma posição antagonista, onde os

atores estão preocupados com o controle, o poder e a violência, que

são fatores estratégicos na distribuição dos recursos tecnológicos e

econômicos. Desta forma, a mudança na ordem social deveria antes

de tudo passar pelo campo econômico, promovendo a equidade na

distribuição dos bens e serviços, para depois se estender ao campo

da ética, da moral e da cultura. Alain Touraine foi um dos

precursores na construção histórica deste modelo clássico. De fato,

as interpretação que os diversos teóricos dão aos movimentos

sociais consideram-nos como respostas à desigualdade na

distribuição dos recursos gerados pela sociedade, sejam eles bens

materiais ou simbólicos. Talvez seja esta idéia de bens simbólicos

que permita falar em novos movimentos sociais, e para caracterizar

os elementos presentes nessa nova configuração cito o seguinte

texto de Boaventura de Souza Santos:

A novidade maior dos NMSs [Novos Movimentos Sociais] reside em que consti tuem tanto uma crít ica de regulação social

Page 20: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

19

capital ista, como uma crít ica de emancipação socialista tal como ela foi definida pelo marxismo. Ao identi f icar novas formas de opressão que extravasam das relações de produção e nem se quer são especif icas delas, como sejam a guerra, a poluição, o machismo, o racismo ou o produtivismo, e ao advogar um novo paradigma social menos assente na riqueza e no bem-estar material do que na cultura e na qualidade de vida, os NMSs denunciam, com a radical idade sem precedentes, os excessos de regulação da modernidade (SANTOS, 2003, p.258).

Tudo isso não só influencia o modo de como se trabalha,

como se produz, como se vive, como se descansa, ou como se

consome, mas também gera formas de opressão transclassistas,

que podem atingir até a sociedade como um todo. A dominação não

advém exclusivamente das relações de produção econômica; a

“mais-valia” pode ser polít ica, racial, sexual, etária, cultural,

religiosa. Ainda que o modelo de Touraine tenha contribuído

significativamente, é preciso reorientar o quadro de interpretação

para esta realidade dita pós-industrial, como afirma Alexander

(1998). Ocorre que “meta-societal”, “identidade” e “adversários” não

são tão facilmente definíveis, porque dependem de um movimento

relacional e reflexivo. Daí Melucci reivindicar que se dê maior

atenção às dimensões subjetivas, cognitivas e culturais dos

movimentos sociais contemporâneos. Eis uma das caracterizações

que o autor faz da ação coletiva:

A ação coletiva é um sistema de ação multipolar que combina orientações diversas, envolvendo atores múlt iplos e implica um sistema de oportunidades e de vínculos que dá forma às suas relações. Os atores produzem a ação coletiva porque são capazes de definir-se e de definir a sua relação com o ambiente. (MELUCCI, 2001, p. 46)

Ainda retomando Melucci, o sistema de ação multipolar

pode ser descrito como um conjunto formado por três vetores

interdependentes, os quais se encontram num constante movimento

de ajuste das tensões existentes entre eles. Esses vetores seriam

os fins, os meios e o ambiente da ação. Os fins constituiriam o

sentido que a ação tem para o autor, e que pode se desdobrar em

fins de curto, médio ou longo prazo; os meios seriam as

Page 21: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

20

possibilidades, os caminhos e os limites da ação; o ambiente da

ação seria o espaço social compreendido pelo o humano e o não-

humano, ou seja, outros atores, recursos disponíveis, e ainda,

possibilidades e limites onde a ação se realiza. Para que o ator,

num contexto de movimento social, possua ou (re)dimensione um

fim para sua ação é necessário que se produza uma identidade, ou

se situe na ordem social (o definir-se de Melucci). Daí, se os fins

dependem de uma identidade, para interagir com os meios e o

ambiente, então se faz necessário problematizar a questão da

identidade.

1.2. Diferenciação social e formação de identidade

Sabe-se que somente a partir de um sistema de

diferenciação social é que a idéia de identidade pode ser

sustentada. E que essa idéia de diferenciação social, também, só

pode ser sustentada a partir de um dado conjunto de relações

sociais. Mas para categorizar esta diferenciação, deve-se recorrer a

outros autores, uma vez que Melucci não está preocupado em

aprofundar esta questão.

A sistematização realizada por Bourdieu acerca dos

princípios de diferenciação no espaço social e espaço simbólico

configura-se adequada para compor esta lacuna ainda presente

nesta construção teórica. Bourdieu afirma que toda sociedade se

apresenta como um espaço social, ou seja, como estruturas de

diferenças, e que só podem ser compreendidas a partir da

elaboração do princípio gerador que funda as diferenças na

objetividade (BOURDIEU, 1997, p.50). Este autor tem o cuidado

metodológico de apontar que o uso de princípios classif icadores,

ainda que pautados na realidade, só podem existir teoricamente,

mas que se fazem necessários para atingir a tarefa explicativa e

permitir que se distinga e se agrupe “os agentes que mais se

pareçam entre si e que sejam tão diferentes quanto possível dos

integrantes de outras classes, vizinhas ou distantes.” ( idem, ibidem,

p.24). Num primeiro momento o espaço social é tomado como uma

realidade invisível, mas que pode ser captada através da construção

Page 22: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

21

de classes teóricas que dêem conta de sintetizar as práticas e as

representações dos agentes. Isto ocorre através da relação,

observada pelo pesquisador, entre as posições sociais, as

disposições (ou habitus) e as tomadas de posição. O habitus é um

princípio gerador e unificador capaz de retraduzir as características

intrínsecas e relacionais de uma posição social, em um estilo de

vida, compreendendo um conjunto determinado de pessoas, de bens

e de práticas. As tomadas de posição seriam as escolhas que os

agentes sociais fazem nos domínios mais diferentes da prática ( id.

Ibid., p.21-22). A posição social seria definida pela posição em que

um determinado agente ocupa nos diferentes campos, ou seja, na

distribuição dos poderes que atuam em cada um dos campos,

considerando o capital econômico, o capital cultural, o capital social

e também o capital simbólico. Segundo Bourdieu o capital

econômico seria constituído pelos diferentes fatores de produção e

pelo conjunto de bens econômicos que os sujeitos possuem, seja,

renda, patrimônio e outros bens materiais. O capital cultural seria o

conjunto das qualif icações intelectuais disponibilizadas aos sujeitos

pelo sistema escolar ou transmitidas pela família. Compreende

habilidades intelectuais, posse de bens culturais, títulos

acadêmicos, etc. O capital social é definido pelo conjunto das

relações sociais de que dispõe um indivíduo ou grupo. O que implica

na instauração e manutenção de relações através de um espaço de

sociabilidade, constituído por eventos em comum, onde os

indivíduos compartilham um estilo de vida. Quanto ao capital

simbólico , seria um conjunto de rituais (como boas maneiras)

diretamente relacionados com a honra e o reconhecimento. E é o

capital simbólico que assume maior significado neste trabalho.

Acontece que esta modalidade de capital, ainda que esteja numa

relação de interdependência com os demais tipos, acaba assumindo

preponderância na hierarquização dos agentes dentro do campo

social. É no capital simbólico que se atribui valores aos agentes,

que é transformado em prestígio, reputação, fama e etc.

(BOURDIEU, 2001, p.134). Assim, ocorre uma luta simbólica “pelo

Page 23: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

22

monopólio da nomeação legítima como imposição social”. Seria uma

visão legítima do mundo social. É esta hierarquização dos agentes

que permite, neste ponto, retornar à questão da identidade. Esta

hierarquização é sustentada por uma violência simbólica, onde

ocorre o conhecimento e o reconhecimento dos agentes, numa luta

pela revelação, construção, e posicionamento de si e do outro na

ordem social. Segundo Bourdieu, “o poder sobre o grupo que se

trata de trazer à existência enquanto grupo é, a um tempo, um poder

de fazer o grupo impondo-lhe princípios de visão e de divisão

comuns, portanto, uma visão única da sua identidade, e uma visão

idêntica da sua unidade” (2001, p.117).

Remetendo as considerações anteriores ao objeto desta

investigação, ou seja, o estudo da ação coletiva delineada pelo

movimento GLBT em Goiânia, pode-se afirmar que existe um conflito

baseado no capital simbólico adquirido e atribuído aos indivíduos

homossexuais que pode levá-los a agir coletivamente. Assim,

admite-se que a identidade social seja composta por um conjunto de

atribuições e identif icações, e que a hierarquização só se torne

possível a partir do momento em que as relações sociais elegem

uma dessas atribuições ou categorizações sociais como fator

relevante para o indivíduo usufruir ou não de prestígio, status ou

honra social. No caso aqui problematizado, a orientação afetivo-

sexual dos indivíduos seria o fator principal de sua classif icação, e

de posicionamento desses indivíduos no campo social, mesmo

respeitando a variação no campo econômico, cultural, ou

profissional. Seria uma hierarquização entre heterossexuais e

homossexuais, para ficar numa classif icação simplista como

dentro/fora, superior/inferior. Mas na verdade se trata de uma

classif icação muito mais complexa, onde envolve não só o fato de

ser heterossexual ou homossexual, mas também a forma como

realiza sua orientação afetivo sexual, praticando um sexo “sadio” ou

“doentio”. Daí decorre que, mesmo aqueles indivíduos que não

contrariam a heteronormatividade, mas que praticam sexo fora do

casamento ou outro tipo de “promiscuidade” seriam classif icados

Page 24: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

23

num patamar da “pirâmide da prática sexual”, inferior aos demais

heterossexuais.

1.3. A de-formação de uma identidade social.

A existência da hierarquia e de uma distribuição desigual

dos recursos valorizados por uma sociedade não garante a

mobilização dos agentes ditos em situação de dominados. É preciso

investigar melhor a constituição dos “posicionamentos” ou

“rotulações”. Numa definição de Claude Dubar, “a identidade nada

mais é que o resultado a um só tempo estável e provisório,

individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos

diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem

os indivíduos e definem as instituições” (2005, p.136).

Esta definição permite vislumbrar a identidade numa

perspectiva capaz de captar os elementos estruturais, de construção

objetiva, macro-sociológica, mas também os elementos micro-

sociológicos, de construção subjetiva, do agir dos indivíduos na vida

cotidiana, através de suas escolhas ou histórias. Dubar

complementa essa perspectiva dinâmica de identidade, através da

articulação entre dois processos heterogêneos, seja, os “atos de

atribuição” e os “atos de pertencimento”. Nestes, a pessoa exprime

o que ela quer ser, ou a “identidade para si”. Já os atos de

atribuição visam definir aquilo que você é, a “identidade para o

outro”. Isto indica uma dualidade do social, pois é na relação com e

para os outros, que o indivíduo é identif icado e levado a endossar

ou a recusar a identif icação que recebe dos outros ou das

instituições. É nesse provável desajuste entre identidade atribuída e

identidade reconhecida que pode residir o conflito, que

posteriormente conduzirá ou não ao tipo de ação coletiva que se

pretende estudar neste trabalho.

O movimento que os indivíduos realizam para reduzir a

distância entre a identidade atribuída e a reconhecida pode ser

denominado de “estratégias identitárias” (DUBAR, 2005, p.140).

Tais estratégias podem assumir duas formas:

Page 25: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

24

transações “externas”: ocorrem entre o indivíduo e os

outros significativos e constituiriam uma tentativa de

acomodar a identidade para si à identidade para o outro

(transação considerada objetiva);

transações “internas” ao indivíduo (considerada

subjetiva), que constituiriam “a necessidade de

salvaguardar uma parte de suas identif icações anteriores

(identidades herdadas) e o desejo de construir para si

novas identidades no futuro (identidades visadas)”, com o

objetivo de “assimilar a identidade-para-o-outro à

identidade-para-si” (DUBAR, 2005).

Para elucidar melhor a dinâmica dessa relação segue o

comentário de Dubar:

A transação subjetiva depende, de fato, das relações para com o outro, consti tutivas da transação objetiva. A relação entre as identidades herdadas, aceitas ou recusadas pelos indivíduos, e as identidades visadas, em continuidade às identidades precedentes ou em ruptura com elas, depende dos modos de reconhecimento pelas insti tuições legít imas e por seus agentes que estão em relação direta com os sujeitos envolvidos. A construção das identidades se real iza, pois, na art iculação entre os sistemas de ação, que propõem identidades virtuais, e as ‘ trajetórias vividas’, no interior das quais se forjam as identidades ‘reais’ às quais os indivíduos aderem (2005, p.140).

Este construto teórico é muito importante para o

entendimento de identidades homossexuais, não só porque permite

pensar numa configuração identitária ao mesmo tempo

relativamente estável e evolutiva, mas porque a identidade social

dos indivíduos que compõem o movimento GLBT apresenta uma

multiplicidade que transcende a oposição hetero/homossexual.

Numa perspectiva construtivista radical esta oposição seria diluída

ao ponto de não permitir falar em identidade, como na teoria queer,

mas tais implicações não serão abordadas neste trabalho.

A concepção construtivista da identidade aqui adotada

comporta dois processos concorrentes, o biográfico (identidade para

si) e o processo relacional, sistêmico, comunicativo (identidade para

o outro), mas que util izam um mecanismo comum: o recurso a

Page 26: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

25

esquemas de tipif icação. Isto implica na existência de “um número

limitado de modelos socialmente significativos para realizar

combinações coerentes de identif icações fragmentárias” (Erikson

apud Dubar, 2005, p.143). Somente a análise empírica permite

estabelecer e verif icar correlações significativas e possíveis

hierarquizações. A capacidade de categorização realizada por

sociólogos deve surgir a partir das tipif icações recíprocas, já

realizadas pelos próprios indivíduos. Falar de identidades

homossexuais, de movimento GLBT, implica em desconstruir uma

identidade coletiva, para captar suas especificidades identitárias e

novamente reconstruir uma possível “identidade coletiva”, que seja

capaz de promover a ação coletiva.

Para retornar a realidade empírica, a que Melucci designa

como pós-empírica, porque é uma realidade em constante mutação,

permeada por subjetividades, inclusive a do próprio pesquisador, é

necessário um arcabouço que permita proceder na categorização

dos tipos identitários. Assim, a pesquisa de estilos de vida , de

habitus pode servir como ponto de partida para uma categorização

dos diversos segmentos formadores do movimento GLBT, e

constituintes das leis gerais de um campo de ativismo GLBT.

1.4. Dos estilos de vida à rede de ativismo GLBT.

Identif icar os espaços sociais, as práticas, os gostos, a

cultura, a linguagem e outros elementos do cotidiano dos sujeitos

homossexuais, permite compor as tipif icações ou categorias sociais

(nativas). Nas palavras de Bourdieu, a apropriação material ou

simbólica “de uma determinada categoria de objetos ou práticas

classif icadas e classif icadoras, é a fórmula generativa que está no

princípio do estilo de vida” (1994). Assim, o espaço inicial de estudo

(campo de observação) torna-se circunscrito mais ao campo de

“culturas da homossexualidade” do que propriamente a outros

campos, seja da polít ica ou da economia. Adentrar nestes estilos de

vida constitui o caminho para entender não só a formação da ação

coletiva, mas a sua extensão e dinâmica. Percebe-se que as

atividades do movimento GLBT não são somente conflituais; parte

Page 27: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

26

de suas energias se direciona para o exterior, opondo-se a um

modelo cultural, polít ico e social excludente, mas ao mesmo tempo

outra parte de suas energias se direciona para o interior,

fomentando a formação, ou sustentação de uma “cultura”, dos

estilos de vida. Já é possível diagnosticar que este movimento

social, ao mesmo tempo que inclui o modelo formal de organização,

também busca novas formas organizativas, configurando redes de

sociabilidade e solidariedade, cujo maior peso está na conotação

cultural. É disso que resulta um modelo de entendimento do ator

coletivo, ou seja, é preciso analisar os processos de mobilização, as

formas organizativas, os modelos de liderança, as ideologias e as

formas de comunicação. Percebe-se que, para a concretização da

ação coletiva (Parada GLBT e sua extensão), ocorre uma

articulação de atores localizados em ONG’s, fóruns, associações,

redes de redes, que formam um núcleo capaz de agregar no seu

entorno, atores aliados, que muitas vezes compõem segmentos

diferenciados dos novos movimentos sociais.

Nas sociedades globalizadas, mult iculturais e complexas, as identidades tendem a ser cada vez mais plurais e as lutas pela cidadania incluem, freqüentemente, múlt iplas dimensões do self: de gênero, étnica, de classe, regional, mas também dimensões de afinidades ou de opções polít icas e de valores: pela igualdade, pela l iberdade, pela paz, pelo ecologicamente correto, pela sustentabi l idade social e ambiental, pelo respeito à diversidade e às diferenças culturais, etc. (SCHERER-WARREN, 2006, 115).

A ação coletiva está permeada por esta diversidade de

sujeitos, de situações e de significados. Então, retorna-se àquela

dif iculdade apontada por Melucci, entre manutenção dos meios, dos

fins e do ambiente da ação. A complexidade, advém exatamente da

maior capacidade dos sujeitos se movimentarem, produzindo um

ambiente de alta reflexividade.

A contribuição de Axel Honneth, com relação a sua teoria

do reconhecimento, num contexto pós-tradicional, pode ajudar a

entender como esses sujeitos diversos teriam uma premissa básica

que os levariam a promover ações coletivas e a compartilhar

Page 28: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

27

projetos sociais. Para Honneth a abordagem de sua teoria do

reconhecimento

Encontra-se no ponto mediano entre uma teoria moral que remonta Kant e as éticas comunitaristas: ela parti lha com aquela o interesse por normas as mais universais possíveis, compreendidas como condições para determinadas possibi l idades, mas parti lha com estas a orientação pelo f im da auto-real ização humana (HONNETH, 2003 p.271).

Honneth util iza o termo eticidade para se referi “ao ethos de

um mundo da vida particular que se tornou hábito”, mas do qual só

podemos fazer juízos normativos, na medida em que ele é capaz de

se aproximar das exigências de princípios morais universais. Então,

que eticidade seria esta capaz de promover e legit imar moralmente

a ação coletiva do movimento GLBT? Surge aqui a necessidade de

formular a compreensão de um campo moralmente maior que o

campo do ativismo GLBT. Trata-se do campo do ativismo dos

direitos humanos. O próprio Honneth, util izando-se de Hegel e

Mead, sintetiza três padrões necessários de reconhecimentos que

permitem aos sujeitos humanos chegarem a novas formas de auto-

relação positiva. Seria o reconhecimento no amor, o reconhecimento

jurídico e o reconhecimento na solidariedade. Na experiência do

amor estaria a possibilidade da auto-confiança, na experiência do

reconhecimento jurídico estaria a possibilidade do auto-respeito e

na experiência da solidariedade estaria a possibilidade da auto-

estima. Ora, não estariam os sujeitos da ação coletiva do movimento

GLBT reivindicando exatamente a ampliação desses padrões de

reconhecimento?

Então a existência de um campo de ativismo de direitos

humanos poderia ser entendida como uma premissa de

possibilidades de surgimento, manutenção ou empoderamento de

um sub-campo que seria o do ativismo GLBT? Seguindo, ainda as

premissas de Honneth a atuação dos sujeitos na luta pelo

reconhecimento é que poderia abrir possibilidades de um

desenvolvimento normativo mais elevado. E Bourdieu, também

aponta que

Page 29: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

28

A história só pode produzir a universalidade trans-histórica produzindo, por meio das lutas tantas vezes impiedosas dos interesses particulares, universos sociais que, por efeito da alquimia social das suas leis históricas de funcionamento, tendem a extrair da defrontação dos interesses particulares a essência sublimada do universal (BOURDIEU, 1989, p. 73).

Desta forma o ativismo dos direitos humanos seria uma

espécie de guarda-chuva, que daria o suporte teórico e prático, a

outros ativismos, tais como movimento negro, feminista, movimento

GLBT e outros. A dissertação de Michelle Conde1 intitulada: O

movimento homossexual brasileiro, sua trajetória e seu papel na

ampliação do exercício da cidadania, também apresenta

contribuição neste sentido. A util ização do conceito de campo, seria

aqui, elemento fundamental para a percepção que se busca

apreender acerca da ação coletiva promovida pelo ativismo GLBT.

Segundo Bourdieu,

um campo pode ser definido como uma rede ou uma configuração de relações objetivas entre posições. Essas posições são definidas objetivamente em sua existência e nas determinações que elas impõem aos seus ocupantes, agentes ou insti tuições, por sua situação (situs) atual e potencial na estrutura da distr ibuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja posse comanda o acesso aos lucros específ icos que estão em jogo no campo e, ao mesmo tempo, por suas relações objetivas com as outras posições (dominação, subordinação, homogologia, etc) (BOURDIEU apud BONNEWITZ, 2003, p.60).

Para desenvolver empiricamente esta noção de campo,

aplicada ao ativismo GLBT é necessário, primeiramente, buscar “as

leis gerais”, “as variáveis funcionais” ou a “estrutura do campo” aqui

estudado. Num segundo momento, é necessário também perceber a

relação com outros campos (polít ica, cultura, ciência, economia, e

outros ativismos relacionados aos direitos humanos).

A construção de um campo de ativismo homossexual passa

por uma aliança de movimentos sociais e sujeitos diversos,

governamentais, não governamentais ou privados, entorno de uma 1 Dissertação defendida no Mestrado em Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da UFG em 2004.

Page 30: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

29

“pauta multidimensional”. As ações desses movimentos seriam

voltadas para temas transversais, relacionados com as diversas

formas de exclusão social ou novas demandas de direitos. Além

disso, o modelo de entendimento da ação coletiva não deve se

esquecer de gerar uma combinação ou captar a combinação

existente entre os elementos diacrônicos e sincrônicos, que

permeiam indivíduo e estrutura. Isto dá força aos argumentos de

Melucci, em relação a dif iculdade de se produzir uma ação coletiva

genuinamente antagonista. E é isto que se propõe realizar no

próximo capítulo, recorrendo ao concreto, para explicar melhor os

aspectos múltiplos da ação coletiva. Como percebemos

concretamente, esses aspectos múltiplos da ação coletiva no

movimento GLBT? Como se verif ica a existência e a dinâmica desse

campo de ativismo GLBT?

Page 31: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

30

CAPÍTULO II. UM CORPO NO ESCURO É CONSTRUÍDO PELO TATO

2.1. A construção do objeto – teoria e prática

A idéia de um escuro prevalece também no aspecto prático

da construção do objeto. Então o objeto aparece como um corpo que

precisa ser definido, mas o ambiente não está claro. As curvas, as

marcas, as dimensões, as cicatrizes precisam ser percebidas pelo

tato. Aqui, dois desafios. A postura do pesquisador, com sua leveza,

sensibilidade para tocar o corpo que lhe é estranho, tendo o cuidado

para não provocar a repulsa. O outro desafio pertence ao próprio

objeto, que se deixa ou não tocar. É o corpo impondo limites ou a

forma de ser tocado. Alertando para o que pode ser visto. o que é

parte íntima, inviolável, intocável. Um corpo que se recusa a ser

“coisa”, “objeto” – Ora quer ser entendido, explicado, e ora não.

Entendido sim, violentado não. Tudo isso ocorre num processo de

interação entre pesquisador e pesquisado, permeado pela

reflexividade. A implicação desse processo é o resultado da

descrição do objeto, ou da construção do corpo. Um movimento (do

corpo-objeto) ou um toque (do pesquisador-tato) inesperado pode

distorcer a forma do corpo e inviabilizar uma melhor compreensão.

Mas de quem é este corpo? É o corpo do movimento GLBT.

Então, existe outra implicação. Discernir as formas desse corpo.

Caracterizar separadamente essas letrinhas. É aqui que os estudos

sobre sexualidade aparecem como balizadores. Eles permitiram

formular uma definição teórica e conciliá-la com a formação

empírica do que seria o gay, a lésbica, o bissexual, a travesti e o

transexual. Posteriormente esse objeto será ampliado, tornando-se

duas categorias – homossexuais (categoria central e sub-dividida) e

não-homossexuais (categoria secundaria).

Page 32: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

31

2.2. Metodologia – os desafios da observaçãoNa prática da observação foi util izado muito da contribuição

de Melucci, sintetizada em seu texto, Métodos qualitativos e

pesquisa reflexiva (2005). A noção de Teoria dos Sistemas, por ele

apontada como um recurso teórico necessário para interpretar uma

realidade muito diferenciada, pareceu se ajustar ao propósito dessa

investigação. Em seu conjunto, as formulações de Melucci,

alertaram para o cuidado na “mediação lingüística”, a noção de que

a realidade social, além de estar em continuo movimento enquanto é

observada, também interage com o observador, e que, portanto o

ato de observar também é um ato de intervenção. A pesquisa não é

capaz de tornar inteiramente transparente a modificação que pode

provocar no campo, mas é responsabilidade do pesquisador

controlar o grau de transparência e de opacidade que a pesquisa

comporta. Segundo Melucci, a opacidade se refere a intenções ou

expectativas não explicitas tanto de pesquisador quanto de

pesquisados. Inevitavelmente constrói-se uma opacidade nas

relações sociais, pois sem isto, não haveria uma definição de quem

é o observador e o observado. É como se a observação trabalhasse

sobre um campo artif icial que é modificado pela própria observação.

E isto não é algo tão simples de ser construído. Enquanto

pesquisador sempre me posicionei como heterossexual, e como não-

militante do movimento LGBT, o que já estabelecia distância –

“outridade” – para com sujeitos homossexuais. O desafio era

negociar essa relação. Como este posicionamento poderia gerar um

ambiente de cooperação ou não dentro do campo da pesquisa.

Melucci fala em “contrato” para se referir a uma situação de

confiança onde o pesquisador “pode pedir aos sujeitos para colocar

a sua disposição informações que, de outro modo, não teria acesso”

Melucci, 2005, p.337.

Os apontamentos anteriores estão relacionados com os

aspectos metodológicos da pesquisa, e são de fundamental

importância para se juntarem às questões epistemológicas. Ao fazer

uso de uma teoria dos sistemas, implica já ter diagnosticado a

presença de uma complexidade na realidade estudada. Ao mesmo

Page 33: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

32

tempo em que a noção de sistema é necessária para interpretar uma

realidade muito diferenciada, ela também depende da figura do

observador. Não seria possível fundar a noção de sistema senão

instituindo um ponto de vista situado que introduza a distinção entre

o que pertence ao sistema e o que está em seu exterior. Mas estes

aspectos teóricos serão retomados posteriormente no capítulo

seguinte.

Quanto ao trabalho empírico, também observou-se muito do

que Melucci chamou de “virada epistemológica” ao se referir aos

processos de redefinição do campo da pesquisa social. O autor cita

quatro características principais desta redefinição, sendo a primeira,

a centralidade da linguagem – “tudo que é dito, é dito para alguém

em algum lugar” (MELUCCI, 2005, p.33). Trata-se de perceber que

não existe conhecimento sociológico que não passe por uma

linguagem, e que esta linguagem também está situada. Quem fala,

fala de um determinado lugar e de um determinado modo. A

linguagem é sempre culturalizada, portanto, no campo, os sujeitos

do movimento GLBT sempre tinham um lugar ou tempo específico ao

qual suas falas estavam relacionadas. Um exemplo disso são as

classif icações êmicas (internas aos sujeitos GLBT) que possibilitam

uma diversidade identitária muito maior que a catalogação de

documentos oficiais podem oferecer. Existem subgrupos, como gays

“barbies”, “ursos”, “ladies” e outros.

Uma segunda característica seria a relação entre

observador e o campo. Segundo Melucci existe um momento de

conexão, o qual chama de “observador-no-campo”. Trata-se de

perceber que o pesquisador não está isolado e sim inserido no

campo da pesquisa. Isto remete a terceira característica - a “dupla

hermenêutica”. Significa que não produzimos conhecimentos

absolutos, mas interpretações plausíveis. O pesquisador, através

dos comportamentos dos sujeitos, busca entender como estes

sujeitos interpretam suas próprias ações. Assim, a pesquisa só

produz interpretações que buscam dar sentido aos modos pelos

quais os sujeitos dão sentido às suas ações. Para Melucci, isto seria

Page 34: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

33

“narrações de narrações”. Em termos metodológicos, isto abre mais

questões do que fecha, pois não se trata somente da relação

observador e realidade, mas também de questionar quais os

critérios (cognitivos, polít icos, éticos, técnicos) da interpretação

produzida.

A quarta e últ ima característica da pesquisa social

contemporânea é a forma de apresentação dos resultados. A

linguagem cientif ica seria uma das estratégias possíveis e que não

estaríamos diante de narrações objetivas, mas de formas de relato

que adotaram uma certa estratégia retórica. O cientista deve estar

consciente de que ao traduzir a realidade social dos sujeitos

estudados para uma linguagem científ ica, acaba também

distanciando, limitando ou ampliando o entendimento que os

próprios sujeitos estudados possuem de sua própria realidade.

Então a forma de apresentação dos resultados deve levar em

consideração o público para o qual está sendo apresentada.

Segundo Melucci,

O objetivo da pesquisa social não tem mais a pretensão de explicar uma real idade em si, independente do observador, mas se transforma em uma forma de tradução do sentido produzido pelo interior de um certo sistema de relações sobre um outro sistema de relações que é aquele da comunidade cienti f ica ou do público (2005, p.34).

O que se buscou estabelecer foi, então, esse consenso

capaz de permitir que a observação acontecesse. São duas direções

da reflexão: uma epistemológica e outra metodológica. Uma

representa a auto-observação do observador, onde o problema é

adequar a quantidade de reflexividade aplicada a si mesmo. A outra

representa o questionamento de “como é possível observar

acontecimentos e processos, tais como as dimensões significativas

do campo, diferentes da sua estrutura, das suas regras e da sua

continuidade e permanência” (MELUCCI, 2005, p. 320).

A util ização da técnica de pesquisa qualitativa deve-se ao

fato de que esta possui uma formulação que permite dar maior

atenção à reflexividade, ou seja, de relatar reorientações e

Page 35: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

34

negociações a que os indivíduos são direcionados em virtude de sua

própria inserção na pesquisa, como “objetos”. Através da

observação participante foi possível um maior envolvimento com os

sujeitos estudados, o que também aumentou a capacidade reflexiva

dos sujeitos (aqui, pesquisador e pesquisados): o pesquisador

lidava com a dif iculdade de não ver os fatos enquanto ativista,

enquanto os ativistas, por sua vez, não viam os fatos como um

pesquisador. Então, ora ou outra, o pesquisador se via participando

de uma atividade como se fosse um ativista: decorando veículo para

a Parada2, segurando cartazes e dando gritos de ordem em

manifestações. Isso exigia um esforço para retomar o

posicionamento de pesquisador. Também, muitos ativistas que

sabiam das atividades do pesquisador, davam opinião sobre os fatos

ocorridos e acabam “teorizando”, como se fossem também

pesquisadores. Isto era uma demonstração de que o contato com

pesquisador estimulava os pesquisados a produzirem um

entendimento de suas ações. Outra questão era a cobrança

apontada diretamente pelos sujeitos pesquisados acerca do retorno

que a comunidade acadêmica deveria produzir para o movimento.

Várias vezes os pesquisados afirmaram que diversos estudantes e

professores universitários já haviam realizado algum estudo

(pesquisa participante), mas que nunca retornaram para divulgar os

resultados da pesquisa. Chegavam a afirmar que eram tratados

como “ratos de laboratório” pelos pesquisadores. Isto era um fato

concreto que diretamente me chamava para um maior envolvimento

ou compromisso com o grupo estudado. Daí o fato de ter participado

de eventos não como mero espectador, mas como um agente. Fui

voluntário na organização de três paradas, ajudando na decoração,

distribuindo panfletos nas ruas, f ixando cartazes em instituições;

participando de manifestações públicas, tais como Parada

Universitária e Manifestação no Banana Shopping.

Esse engajamento permitiu entender melhor os segmentos

que formavam o movimento, até então denominado GLBT e suas

2 Isto correu nas paradas de 2006, 2007 e 2008 de Goiânia.

Page 36: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

35

lutas internas. Falo posteriormente da mudança ocorrida nesta sigla.

A definição oficial dessas letras conforme documento elaborado por

equipe do Ministério da Saúde, cuja redação recorreu inclusive a

membros da comunidade de homossexuais:

Gays: são indivíduos que, além de se relacionarem

afetiva e sexualmente com pessoas do mesmo sexo, têm

um estilo de vida de acordo com essa sua preferência,

vivendo abertamente sua sexualidade.

Bissexuais: são indivíduos que se relacionam sexual e/ou

afetivamente com qualquer dos sexos. Alguns assumem

as facetas de sua sexualidade abertamente, enquanto

outros vivem sua conduta sexual de forma fechada.

Lésbica: Terminologia util izada para designar a

homossexualidade feminina.

Transgêneros: terminologia util izada para descrever

pessoas que não se enquadram nas definições de hetero,

homo ou bissexual, gay ou lésbica. São pessoas cuja

identidade de gênero transcende as definições

convencionais da sexualidade.

Transexuais: são pessoas que não aceitam o sexo que

ostentam anatomicamente. Sendo fato psicológico

predominante na transexualidade, o indivíduo identif ica-

se com o sexo oposto, embora dotado de genitália

externa e interna de um único sexo (BRASIl, Ano 2005,

Projeto Somos – Guia Prático – Série manuais 65. p.

135).

Observe que o segmento travesti não foi apontado, talvez

porque o documento parece incluí-lo na categoria de sujeitos

transgêneros, coisa que os próprios sujeitos travestis se recusam a

aceitar. Observe também que a ordem para definir os segmentos

não foi a mesma da sigla GLBT. O “B” foi definido logo após o “G”.

Acontece que o posicionamento dessas letras possui grande

importância para os sujeitos do movimento.

Page 37: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

36

A observação participante foi crucial no entendimento das

tipif icações desses segmentos. Além de uma orientação sexual

peculiar, esses sujeitos possuíam uma prática comum, aquilo que

Bourdieu chama de estilo de vida , formado por um conjunto de

práticas, de lazer, de gostos, de propriedades, de maneiras de agir,

de modos de vestir, de linguagem em comum, que permitiria

caracterizar o segmento ao qual o indivíduo pertencia. Percebeu-se

também que além deste habitus relacionado com a orientação

sexual, também havia um habitus relacionado com a prática polít ica,

que seria o habitus do ativista do movimento GLBT. Trata-se de uma

“rotina”, uma situação de repetição, que possibilita a construção

social, não somente de hábitos corporais, gestuais, sensório-

motores (relacionados com a construção de um corpo homossexual),

mas também de hábitos reflexivos, deliberativos, racionais ou

calculadores (relacionados com a construção de um ator polít ico).

Nas palavras de Bernard Lahire “de fato não são atores ‘inteiros’,

com habitus homogêneos, que se relacionam, mas atores que se

adaptam ou concordam entre si, às vezes, em pontos precisos e em

situações muito limitadas” (2002. p.26). Isto não significa a

existência de uma separação mecânica, capitada instantaneamente,

entre os atores, mas que há uma diversidade de esquemas de ação

permeados pelas diversas trajetórias dos atores.

2.3. Uma metodologia para desconstruir a unidade e recompor o todo

Uma das preocupações é entender como se processa o

movimento e como se dá a definição dessas letras na sigla. Seria

entender como essas letrinhas “fazem a sopa”, ou melhor, se

misturam como na obra de Regina Facchini (FACCHINI, 2005). Uma

das lutas internas dos segmentos é o posicionamento das letras.

Somente após a Conferência Nacional LGBT em junho de 2008, a

letra L veio para o início conforme reivindicação do segmento

lésbico. Havia dois motivos básicos. Primeiro uma conotação de

machismo ao manter o G na frente. O segundo seria uma

Page 38: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

37

necessidade de empoderar as lésbicas, que geralmente se

encontram em situação menor visibil idade. A letra T no final passou

a abranger travestis e transexuais. Antes era reivindicado mais de

um T na sigla. Lembro que a Parada de 2006 util izou a sigla GLBT,

já em 2007 a sigla foi GLBTT. Então estes são exemplos da tensão

entre os segmentos3 e também tem grande implicação para este

trabalho. Quando se iniciou a pesquisa empírica a sigla era GLBT,

daí o motivo de tê-la mantida no titulo deste trabalho. Não deixa de

ser um embaraço, pois que doravante util izarei somente o LGBT

neste texto. Mas também serve como mais uma prova empírica da

constante movimentação e tensão que permeia o objeto estudado.

Na dinâmica da relação entre os segmentos é que se

percebeu a configuração de um sistema de organização do ativismo

LGBT em Goiânia. Constatou também que a existência de um campo

maior, formado por organizações governamentais ou não que

pautavam pela garantia dos direitos humanos e de outros direitos

polít icos, sociais e civis, que acabavam por formar aquilo que

Honneth chama de eticidade . Um conjunto de normais universais

que permitem a sujeitos com práticas particulares, reivindicarem sua

condição de equidade dentro de um grupo diverso. Ao realizarem

ações que reivindicavam essa condição de equidade é que os

sujeitos produziram um campo de ativismo LGBT.

3 Conforme relato de participante da Conferência Nacional GLBT, somente após uma discussão exaustiva é que se chegou ao acordo de padronização da sigla: LGBT. Um participante gay afirmou que continuaria usando GLBT em sua cidade. Ele foi veemente repreendido e ridicularizado por uma participante lésbica. Parece que a padronização acaba desconsiderando as peculiaridades locais.

Força semi-externaComposta por ativistas de outros

movimentos sociais

Força internaComposto por sujeitos do

movimento LGBT

Força externaComposta por instituições

governamentais, classe política e empresarial GLS

Sistema de organização do ativismo LGBT

Page 39: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

38

Figura 1. Sistema de organização do ativismo LGBT.Fonte: URANY, 2008.

Ainda que o sistema esquematizado na Figura 1 não

permita visualizar a dinâmica, quero enfatizar que existe um

conjunto de movimentos (ação, agir) e que essas forças se realizam

numa situação de interdependência.

A camada externa (o governamental e empresarial), precisa

se legit imar, através da incorporação das reivindicações das

camadas mais internas. E estas, por sua vez precisam somar forças,

para ampliar o campo de ação e legit imar suas carências em relação

a um campo mais universal de direitos. A camada interna (ativistas

do movimento LGBT) faz um esforço para manter a coesão. Ainda

que ocorram divergências internas, é necessário fortalecer o campo

do ativismo. Assim, a luta de sua ação coletiva é para estabelecer

um campo de ativismo. Por isso que o antagonismo deve ser

controlado. Deve haver tensão, mas esta tensão não pode ser forte

ao ponto de prejudicar a construção do campo do ativismo LGBT.

Page 40: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

39

Por outro lado, os ativistas dos direitos humanos,

governamentais ou não, precisam inserir na sua pauta, as

reivindicações do ativismo LGBT, pois assim garantem a existência

do campo mais amplo.

A outra dinâmica a ser analisada é como surgem as

hierarquias, ou os posicionamentos dentro do campo do ativismo

LGBT. Quem, como e onde se estabelecem as posições de poder,

de status, de honra que formam o campo do ativismo. E de maior

importância ainda, para sustentar a idéia de ação coletiva sem cair

nas teias do racionalismo, é perceber a complexidade dos

determinantes da ação social. Bourdieu afirma que para um campo

funcionar,

[ . . . ] é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc (1983, p.89).

Então, para se referir ao campo do ativismo LGBT, teríamos

que identif icar quais seriam as leis do jogo, que objetos seriam

disputados, quem possuiria o habitus necessário para participar do

jogo. Também implica na composição e no volume do capital social,

econômico, simbólico e cultural que os sujeitos possuem. Isso é o

que permite identif icar as tomadas de posição na ordem social.

Entender como os sujeitos se posicionam no campo do ativismo

LGBT.

O fato é que existe um conjunto de regulamentações do

campo de ativismo. Algumas posições são legitimadas pelo próprio

Estado, assim, poderíamos dividir em dois grupos:

institucionalizados – formados por instituições

devidamente registradas e que por isso podem buscar

recursos junto ao poder público com maior eficiência e

legit imidade;

não-institucionalizados – grupos de ativistas

organizados, mas que não possuem registro formal.

Page 41: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

40

Sua capacidade de buscar fundos é limitada e, na maioria

das vezes dão suporte polít ico e mobilizador aos grupos

institucionalizados.

Internamente, os grupos também são dotados de um

sistema de posições dos sujeitos. O exercício do ativismo exige uma

assimilação do habitus existente. O poder de fala exige uma

formação, um histórico, que seria um capital social. Os sujeitos que

falam pelo movimento são dotados de um status, de uma honra, ou

título que permitem a eles representar o movimento.

Então, percebe-se que existem duas fontes de legitimidade.

A interna, que é construída dentro de cada grupo e na interação dos

grupos. E a legit imidade externa, que é conferida através de

mecanismos legais (jurídicos) estabelecidos pelo Estado.

2.4. Um histórico para o movimento LGBTSomente em 1978, na cidade de São Paulo, é que surge o

primeiro grupo polit icamente organizado para defender os interesses

de homossexuais brasileiros. Tratava-se do SOMOS – Grupo de

Afirmação Homossexual de São Paulo, que se desfez em 1980. Daí

o eixo de atuação do movimento homossexual mudou para o Rio de

Janeiro, com o grupo Triângulo Rosa e para a Bahia com o Grupo

Gay da Bahia. O foco das ações desses grupos era buscar apoio

institucional para o combate à AIDS, inicialmente chamada de

“Peste Gay”.

Os anos 90 permitiram a construção de um relacionamento

mais estreito entre o movimento LGBT e o Estado, em todas as suas

esferas. As ações de combate à AIDS passaram a ser

desenvolvidas, em parte, com parceria entre Estado e movimento

LGBT, e isso fortaleceu o movimento, forçando-o a se organizar

polít ico e administrativamente.

A primeira década do século XXI assiste ao crescimento

gigantesco do movimento. O maior exemplo disso é o tamanho e a

quantidade das paradas no país inteiro. O governo contribuiu muito

através do Ministério da Cultura ou Ministério da Saúde, f inanciando

projetos que buscassem melhorar a visibil idade e a saúde da

Page 42: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

41

população LGBT. O projeto SOMOS do Governo Federal ofereceu

financiamento para ONG’s e sistematizou um modelo de formação

de lideranças que foi amplamente implantado. Isso permitiu dar

maior capilaridade ao movimento, uma vez os sujeitos eram

orientados sobre seus direitos, as formas de constituir, gerenciar e

capitalizar uma ONG. Até 2008 o fortalecimento do movimento LGBT

se evidenciava a partir de vários aspectos: formação de um trabalho

em rede, com cerca de 141 Ong’s GLT e 62 entidades

colaboradoras; realização de diversos congressos, seminários e

assembléias; construção conjunta (governo e movimento) do Projeto

Brasil sem Homofobia; aprovação de lei contra discriminação por

orientação sexual, em diversos municípios da federação; formação

de uma Frente Parlamentar pela Cidadania LGBT, constituída por

209 deputados e 16 senadores; realização de 178 eventos e

paradas só em 2008; além de outras vitórias no âmbito normativo 4.

Então observa-se que o movimento cresce ao mesmo tempo em que

pressiona o Estado e também é fortalecido por este.

2.5. A Parada LGBT de Goiânia e seus habitus

Na fala dos entrevistados a parada aparece como um

momento revelador da dinâmica do ativismo LGBT:

Eu gosto muito! O dia da parada é um dia dos mais felizes que eu acho do ano, porque é um único momento que você vê na rua pessoas que você não vai ver em nenhum outro momento. Aquela quantidade de pessoas se expressando livremente. E eu acho muito divertido [... ] (Entrevista nº 3).

Também no trabalho de campo, em que acompanhei a

organização das paradas de 2006 e 2007, evidenciou-se que os

esforços para a realização desse evento aproximam-se muito da

dinâmica necessária para que o movimento possa continuar

atuando. 4 Fonte de informação: apresentação do Presidente da AGLBT no seminário “Das margens ao Centro”, ocorrido em Goiânia, e promovido pelo Sertão – Núcleo de estudos e pesquisas em gênero e sexualidade, de 25 a 27 de setembro de 2008, na Faculdade de Direito da UFG.

Page 43: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

42

A Parada do Orgulho GLBT5, ocorre anualmente no mundo

inteiro, sempre em torno de uma data específica (28 de junho).

Incluído entre os chamados novos movimento sociais, o movimento

homossexual tem como marco de nascimento a Revolta de

Stonewall, ocorrida em Greenwich Village, bairro de Nova York, em

27 de junho de 1969. O bar gay Stonewall Inn foi violentamente

invadido por uma força policial, que encontrou forte resistência por

parte de centenas de homossexuais que lutaram durante três dias

seguidos. Foi a primeira vez que um grupo de gays reagiu

publicamente contra uma força institucional, tornando, também,

pública a resistência diante da discriminação. A partir de então o

movimento cresceu de forma extraordinária, principalmente nas

grandes metrópoles.

No Brasil a primeira Parada do Orgulho LGBT ocorreu em

1997, reunindo 2.000 pessoas em São Paulo. Em Goiânia, o evento

também se iniciou em 1997, ainda que nos seus dois primeiros anos

tenha tido um caráter mais restrito. Segundo um dos participantes

em 1997, não ocorreu uma parada.

De fato, a intenção era fazer uma manifestação pública,

aonde iria ocorrer uma performance com o Monumento às Três

Raças, situado na Praça Cívica de Goiânia. Como o monumento é

composto por três homens, sendo o negro, o branco e o índio, os

manifestantes iriam vestir esses homens com roupa de mulher. Mas

isso não foi possível, uma vez que havia somente 9 manifestantes e

cerca de 20 policiais. Então, impedidos de realizar a manifestação,

porque a polícia alegou que estariam provocando um dano ao

patrimônio público, os manifestantes acabaram vestindo as roupas e

perucas para fazerem a manifestação acontecer. Somente alguns

anos depois é que a releitura do evento, feita pelo próprio

movimento, considerou-o como sendo a primeira parada gay de

Goiânia

Um breve relato histórico das paradas em Goiânia pode

ajudar a evidenciar a relação de construção do campo do ativismo

5 pode haver variação na denominação devido ao aspecto e histórico do movimento.

Page 44: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

43

com o fenômeno de construção e organização das paradas LGBT. A

alocação de recursos, os sujeitos acionados e o ambiente formado,

se aproximam do mesmo processo de sustentação do campo de

ativismo LGBT. A organização das paradas em Goiânia sempre

tiveram duas instituições como protagonistas – a Associação Ipê

Rosa e a AGLT – Associação Goiana de Gays, Lésbicas, Travestis e

Transexuais. Geralmente essas instituições revezavam a

responsabilidade pela organização, alternando cada ano. No

primeiro ano que acompanhei6, 2006, a AGLT foi quem articulou,

buscou os recursos e gerenciou todo o evento. Isto porque no ano

anterior o gerenciamento do evento teria sido realizado pela

Associação Ipê Rosa. Ainda que existissem outras instituições,

formais ou não, havia um consenso nesse revezamento e na

concentração dos recursos entre essas duas instituições. No ano

seguinte teve uma mudança significativa, pois outra instituição, que

não representava a força interna do movimento LGBT, acabou

assumindo o gerenciamento da XI Parada. O Fórum Goiano de

ONG’s AIDS acabou recebendo os recursos do Ministério da Cultura

para custear os principais gastos da Parada. Ainda que este fórum

congregasse outras instituições ditas LGBT, muitos militantes

afirmavam que não se tratava de uma instituição LGBT. Então a

parada de 2007 acabou sendo organizada oficialmente pelo Fórum,

mas paralelamente uma frente de instituições LGBT promoveu e

organizou a participação de autoridades, empresas do mercado GLS

e de figuras historicamente importantes para o movimento em

Goiânia. Essa situação de conflito na organização da parada de

2007 serviu para evidenciar a disputa por espaço no campo de

ativismo LGBT, promovendo uma discussão acerca da legitimidade

das instituições representantes. Outro fato importante, é que a

situação evidenciou uma certa dependência do movimento para com

o Estado. Para concorrer aos recursos as instituições deveriam se

enquadrar em vários requisitos legais. E foi isso que dif icultou a

participação de algumas das instituições que constituem a força

6 Foi a “X Parada GLBT” ocorrida em 02 de julho de 2006. Ainda que o movimento homossexual tenha adotado a sigla LGBT em 2008, todas as paradas em Goiânia tiveram o nome de GLBT.

Page 45: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

44

interna do movimento. Então, alguns mecanismos legais (jurídicos),

que são externos ao movimento, ajudam na constituição do campo

de atuação, mas também necessidades de ajustamento e mudanças

no formato organizativo.

2.6. Os segmentos LGBT encontrados no trabalho de campo

Durante o período de 2006 à 2008, realizei diversas

atividades de campo, participando de manifestações polít icas,

eventos culturais, reuniões, festas, grupos de estudos, realizando

entrevistas (total de 12 entrevistas), recolhendo material gráfico,

etc. O fato é que isto permitiu identif icar boa parte dos segmentos

que compõem o movimento LGBT em Goiânia. É possível afirmar

que o movimento possui um número muito reduzido de participantes,

e mesmo de grupos organizados. Contudo, mesmo sendo composto

por poucos grupos, o movimento consegue se sobressair

qualitativamente e se apresenta muito atuante e capaz de permear

segmentos polít ico-partidários, religiosos, acadêmicos,

empresariais, governamentais, meios de comunicação, e outros

movimentos sociais. No referido período de estudo pude identif icar

os seguintes grupos que compõem a força social interna7:

AGLT (Associação Goiana de Gays, Lésbicas, Travestis e

Transexuais);

Associação Ipê Rosa;

Grupo Oxumaré (Direitos Humanos, Negritude e

Homossexualidade);

Astral;

Fórum Goiano de Transexuais;

Lilases (Articulação Feminista Lésbica de Goiânia);

Grupo Colcha de Retalhos – A UFG saindo do armário;

Nação Maria Retalho.

Também identif iquei a existência de grupos relacionados

com outros movimentos sociais, tais como movimento negro,

feminista e de tratamento e prevenção à AIDS, que incluem em suas 7 Observe esquema na figura 1.

Page 46: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

45

pautas de reivindicação as questões do movimento LGBT. Exemplo

é o Fórum de ONG’s AIDS e a Laços – Associação Solidária ao

HDT. Juntas essas duas instituições concentraram a maior parte da

organização da Parada de 2007, cuja organização foi fragmentada.

Não tratarei desses grupos aqui, porque acredito que fazem parte

de um grupo maior, que está relacionado com a construção do

campo de ativismo em rede, uma vez que tratam da

homossexualidade numa perspectiva da transversalidade dos

direitos humanos. Estes grupos apresentam características bem

diversas e estariam tanto na composição da força semi-externa

quanto da força externa que ajuda a promover a formação do campo

do ativismo LGBT.

O entendimento produzido sobre cada grupo que compõem

a força social interna, não chega a ser aprofundado, uma vez que o

objetivo não é entendê-los plenamente e separados, mas sim deter-

se sobre os aspectos relevantes de suas interações. Para uma

sistematização inicial, contudo, poderiam ser divididos em formais e

informais. Ou seja, parte deles (formais) possuem uma existência

jurídica, institucionalizada, com CNPJ, estatuto, definição de cargos

e funções. Estes grupos conseguem concorrer e às vezes ter acesso

direto a financiamento de projetos e atividades. No geral, possuem

entorno de uma década de existência e devido a formalidade

jurídica possuem grande preocupação com as questões

administrativas e a prestação de contas. Tais grupos conseguiram

se estruturar ao longo do tempo, constituindo sede, site,

atendimento por telefone, mobiliário e outros equipamentos, mas

também passaram por momentos de dif iculdades financeiras que

levaram a perder parte de sua estrutura. Ou seja, uma das

dif iculdades maiores é de se manterem dentro dos parâmetros da

institucionalidade. Apresentam também uma dependência muito

grande das articulações promovidas pelos sujeitos que ocupam a

liderança.

Quanto aos grupos informais, possuem menos de 5 anos de

existência e por não serem devidamente registrados, possuem

Page 47: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

46

dificuldades para obter f inanciamento de projetos, uma vez que não

podem concorrer diretamente junto as instituições financiadoras.

Com isso, acabam participando indiretamente de atividades

propostas pelos grupos formais ou junto a outras instituições que

não estão diretamente relacionadas com o movimento LGBT. Devido

a informalidade jurídica acabam produzindo uma estrutura

administrativa mais flexível, sem determinar cargos, mas

distribuindo funções e tarefas de acordo com a possibilidade e

capacidade dos participantes. Percebe-se que os participantes se

encontram numa certa horizontalidade de poder administrativo e que

as hierarquizações são construídas e reconstruídas dentro do

contexto vivido. Estes grupos também se caracterizam por uma

pluralidade maior de idéias e por produzirem questionamentos mais

teóricos, talvez pelo fato de se originarem e atuarem junto ao

ambiente acadêmico.

Esses segmentos encontrados no trabalho de campo, e que

se caracterizam como formais e informais, compõem o núcleo do

movimento LGBT em Goiânia. Seria a força social interna do

movimento.responsável pela definição dos projetos, da ideologia,

dos arranjos polít icos e partidários, que definem sua relação com as

demais forças sociais, representadas pelo Estado, pelo segmento

empresarial, pelo terceiro setor e outros movimento sociais.

Page 48: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

47

CAPÍTULO III. HOMEM COM HOMEM – MULHER COM MULHER

3.1 Como caracterizar um movimento social

Na verdade não há uma teoria única acerca dos movimentos

sociais, como também não há um tipo único de movimento social. O

que se pode fazer é historicizar as diversas formas como este

conceito foi util izado, procedendo numa espécie de arqueologia que

viabilize a liberação e expansão de significados que ainda possam

estar encobertos dentro do campo discursivo.

Uma entendimento bem sucinto e objetivo acerca do que

seriam os movimentos sociais, pode ser encontrado em Maria da

Gloria Gohn, quando afirma ver os movimentos sociais

[ . . . ] como ações sociais coletivas de caráter sócio-polít ico e cultural que viabi l izam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas (GOHN, 2003, p.13).

Mas qualquer tentativa de promover uma definição corre o

risco de excluir aspectos relevantes. A referida autora afirma, ainda

que em termos epistemológicos os estudos acerca dos movimentos

sociais estão indissoluvelmente relacionados com o processo de

institucionalização da sociologia, onde sempre ocupou um espaço

de relevância nos estudos das questões sociopolít icas. Os

movimentos sociais sempre foram estudados dentro da problemática

da ação coletiva, e por vezes foi até incluso, por alguns autores,

numa teoria da ação social (GOHN, 1997). Melucci afirma que um

movimento social é sempre uma ação coletiva; então teríamos que

situar as características de um determinado movimento social a fim

de entender seu sistema de ação, sua demarcação de identidades,

de interesses, de subjetividades, e de projetos de grupos sociais

específicos, que constituem, por f im, repertórios de ações coletivas.

Como um recurso heurístico toma-se como ponto de partida um

modelo de entendimento dos movimentos sociais, de forma que

possa também servir como modelo de entendimento de ações

Page 49: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

48

coletivas. Basca-se portanto, neste capitulo, sintetizar os diversos

princípios que caracterizam a formação ou dinâmica de movimentos

sociais, para daí entender como a ação coletiva promovida pelo

movimento LGBT, não se encaixa num padrão único, possibilitando

que seu entendimento só se realize através da util ização de um

referencial teórico pluralístico.

Quando se fala em movimentos sociais a primeira

diferenciação necessária se dá entre aqueles movimentos que

possuem um eixo único de reivindicação e que são protagonizados

por sujeitos bem definidos identitariamente, e aqueles movimentos

constituídos por sujeitos diversos, portadores de identidades

diversas, que apresentam uma uniformidade momentânea ou parcial.

Esta discussão permitiria denominar estes de novos movimentos

sociais e os primeiros de velhos movimentos sociais. Há teóricos

que discordam desta divisão, e afirmam que as demandas dos novos

movimentos sociais já existiam anteriormente, só não estavam

incorporadas às lutas sociais do século XIX e inicio do século XX,

porque naquele momento priorizavam as relações de classe. Mas o

interesse aqui não é fechar esta questão, e sim construir um modelo

analít ico da ação coletiva perpetrada pelo movimento LGBT.

3.2 Alguns elementos e categorias básicas dos movimentos sociais

Quero sintetizar alguns elementos e categorias necessárias

para o entendimento dos movimentos sociais, mas também tecer

uma descrição e principalmente demonstrar um pouco da dinâmica

do movimento LGBT de Goiânia. Isto permite não só verif icar como

este movimento concreto se enquadra no referencial teórico

util izado, mas também perceber como é o seu fazer cotidiano, suas

complexidades e diversidades de sujeitos e ações. O ponto de

partida é uma metodologia de estudo dos movimentos sociais, mas

não quero perder de vista o fato de se tratar de uma ação coletiva.

Acredito que este procedimento pode evidenciar como as

características da ação coletiva promovida pelo movimento LGBT

Page 50: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

49

vão além do modelo teórico, permitindo uma extrapolação do modelo

e uma possível aproximação com um enquadramento teórico que

visualiza a formação de um ativismo LGBT mais universalizante,

capaz de se inserir e de ser inserido no ativismo dos direitos

humanos, e contribuir para a formação do campo de ativismo LGBT.

A primeira decisão metodológica com vista a analisar um

movimento social é perceber que sua composição está divida em

elementos internos e externos. Segundo Gohn é internamente que

eles “constroem repertórios de demandas segundo certos valores,

crenças, ideologias etc. e organizam as estratégias de ação que os

projetam para o exterior” (1997, p.255). Então é necessário

perceber como se constitui essa força interna e como ela consegue

expandir seu ambiente, provocando ressonância no sentido do

centro para a margem. Externamente deve-se perceber o contexto

sociopolít ico e cultural em que o movimento se insere, considerando

seus opositores, as articulações, as redes externas construídas

pelas lideranças e militantes, e suas relações com outros

movimentos e lutas sociais, com órgãos estatais e demais agências

da sociedade polít ica, com igrejas e outras formas de religião, com

outras instituições e atores da sociedade civil, e mesmo suas

relações com a mídia em geral.

Para sistematizar melhor o entendimento do movimento

LGBT, buscou-se visualizar a configuração desses elementos,

permitindo traçar uma espécie de roteiro.

As demandas e os repertórios da ação coletiva: a demanda

só existe a partir do momento em que existe uma carência.

Entendendo que as carências podem ser bens materiais ou

simbólicos. “A luta contra as desigualdades no tratamento das

pessoas em relação a cor, raça, nacionalidade, religião, idade, sexo

etc. situa-se no plano do simbólico, dos valores sociais existentes”

(GOHN, 1997, p.256). No caso da carência de bens simbólicos, o

êxito maior dessas lutas, seria a demarcação, ampliação ou

redefinição de relações sociais, através de leis (mecanismos

legítimos). Ora, isto é facilmente percebido no movimento LGBT,

Page 51: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

50

quando buscam a legitimação da união civil entre sujeitos do mesmo

sexo (como no Projeto de Lei da Câmara -PLC 122/2006) 8. É claro

que isto também leva implicação para a carência de bens materiais,

uma vez que a união civil permitiria acesso à saúde (relação titular

e dependente), definir o direito a herança em caso de óbito de um

dos parceiros, ou mesmo na divisão de bens no caso de separação.

Os repertórios são construídos a partir da agregação das

demandas. Se constituem, então, quando as demandas se

explicitam em forma de reivindicação, constituindo também, o

projeto do movimento e todo seu conteúdo polít ico-idelógico. No

movimento LGBT isto se evidencia na busca por direitos civis, pela

constituição dos espaços de sociabilidades, pela ampliação e apoio

aos eventos culturais, pela liberdade de exercício da

homoafetividade no espaço público. Em uma das Paradas um dos

apelos dos participantes era: “direitos iguais, nem menos, nem

mais.” Então há uma demanda por equidade de direitos compondo o

repertório do movimento.

A composição de um movimento pode ser entendida a partir

de dois aspectos: devido a origem social dos participantes, ou a

partir do princípio articulatório que os aglutina. A origem social está

relacionada com a classe ou camada social, mas no caso do

movimento LGBT o fator que determina a composição está no

principio articulatório de suas demandas, que é o reconhecimento

positivo das práticas sexuais homoeróticas.

O princípio articulatório do movimento se divide em interno

e externo. A articulação interna depende de três elementos: as

bases demandatárias e as lideranças – que são elementos nativos,

naturais, propriamente internos ao movimento. E o outro elemento é

a assessoria – que possui um caráter externo, pois se articula ao

movimento somente em algumas etapas ou momentos. Com o

movimento LGBT, percebe-se que a relação com as assessorias

possui um caráter superficial, não permitindo que estas se tornem

8 Projeto da Dep. Iara Bernardi, que basicamente define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero.

Page 52: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

51

parte constitutiva do movimento, ainda que alimentando sua força

social. Quanto às bases demandatárias, eles não possuem uma

relação também intensa com as lideranças. A responsabilidade da

efetivação de eventos e promoção de manifestações depende

necessariamente das lideranças.

Quanto ao princípio articulatório externo resulta das

relações entre as diferentes redes de movimentos sociais. Seriam as

alianças externas com outros movimentos sociais constitutivos de

matrizes geradoras de discursos e práticas. No caso do movimento

LGBT seriam os sindicatos, organizações não governamentais,

coletivos de estudantes, universidades, órgãos governamentais das

esferas municipal, estadual e federal, empresas privadas.

Os princípios articulatórios internos e externos são

fundamentais para definir o potencial da força social de um

movimento social. Esta força social se configura a partir da análise

do cenário do processo polít ico mais amplo em que o movimento se

desenrola pela análise de suas redes e articulações. A força social é

avaliada pela sua capacidade de contribuir para o processo de

mudança social. Gohn enfatiza a necessidade do investigador

compreender esta categoria da seguinte forma:

Por ser uma categoria que originalmente advém da física, força denota densidade, condensação de energia e combinação de elementos. Nas ciências sociais só será úti l se for historicizada e poli t izada. Analisar a conjuntura polít ica e o campo de forças das propostas e dos projetos dos atores que estão vivenciando certas problemáticas com certa expressividade, que estão se destacando e não são meros coadjuvantes, mas interlocutores com poder de influência e decisão (1997. p. 258).

A ideologia do movimento seria o conjunto de crenças,

valores e ideais que fundamentam as reivindicações e possibilitam

criar identidades. Esta ideologia é captada através da análise dos

discursos e mensagens dos líderes e de toda produção material e

simbólica do movimento. Existem argumentos centrais e periféricos

que podem ser captados nos discursos, e que expressam

principalmente a luta pela criação ou alteração de significados

Page 53: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

52

culturais. Isto pode ser verif icado nas frases de ordem nos eventos,

cartazes, manifestações públicas e outros materiais de divulgação.

Exemplo: “direitos iguais, nem menos, nem mais”, “homofobia é

crime”, “se Deus é pai de todos, então somos irmãos”.

A cultura polít ica é gerada pelo “conjunto das práticas

sociais, informadas pelas ideologias e representações que

configuram o projeto do movimento” (GOHN, 1997,p.259). Ela é

construída ao longo de uma trajetória, considerando as experiências

vivenciadas no cotidiano e não somente as tradições ou heranças

passadas. Observa-se que esta categoria opera nos âmbitos dos

princípios articulatórios internos e externos ao movimento. Então,

ela se constitui a partir de um conjunto de interações internas,

considerando as práticas e interesses polít icos e culturais dos

diversos grupos que compõem o movimento e também a partir de um

conjunto de interações externas, considerando a rede de parceiros

posicionados no ambiente externo ao núcleo do movimento.

No caso do movimento LGBT em Goiânia, percebe-se

dentre os diversos grupos uma hegemonia do segmento gay,

possuindo maior representatividade e maior poder de mobilização. O

próprio segmento produz um discurso que busca minimizar esta

hegemonia, propondo ações que visibil izem ou empoderem outros

segmentos, como lésbicas e travestis. No decorrer da organização

que antecedia a parada de 2006, havia uma propositura de que um

grupo de lésbicas formassem a comissão de frente na abertura da

parada. A idéia não foi colocada em prática porque não conseguiram

mobilizar os participantes necessários. Isto é só um exemplo de que

alguns segmentos possuem maior capacidade na definição da

cultura polít ica, seja através do posicionamento de seus lideres ou

da maior capilaridade junto aos atores de outros movimentos sociais

ou organizações governamentais.

Um elemento externo de grande importância na cultura

polít ica do movimento LGBT em Goiânia é diversidade de

orientações partidárias. Nas reuniões que antecediam a organização

da parada de 2008 (ano de eleições municipais), f icou muito claro,

Page 54: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

53

que os grupos (através de seus lideres) eram permeados por

ideologia partidárias diversas (os da situação, da direita, da

esquerda) e também por posicionamentos não partidários. Isto tem

relevância porque demonstra não só arranjos diacrônicos, pautados

por uma conjuntura polít ica mais ampla, mas também

posicionamentos que reafirmam um compromisso polít ico

sincronicamente constituído por uma força ideológica. As lideranças

possuem origens ou laços polít icos diversos e isto é respeitado no

momento de construção de uma atividade conjunta. Mas observa-se

também uma dependência dos segmentos em relação ao apoio

material dos polít icos, que subsidiam os mais diversos itens

necessários na estruturação de um evento como na parada LGBT.

Quanto à organização do movimento pode-se identif icar

duas maneiras de se estruturar – formal e informalmente. A primeira

se refere a constituição de regras, funções, divisões de tarefas,

cargos, tempo de mandato etc. Seria a constituição legal de uma

instituição devidamente registrada e submetida às normas gerais da

sociedade civil organizada. Esta forma permite maior credibilidade

da instituição junto a outras organizações governamentais ou não,

no momento de buscar recursos ou parcerias na realização de suas

atividades fim. O preço que se paga é que os lideres ou

participantes devem direcionar parte de seus esforços para manter

uma qualidade ou transparência administrativa, deixando, às vezes

de participar ativamente da atividade fim.

Pode-se afirmar que o modelo de organização formal seria

uma etapa posterior para os movimentos de organização informal (o

inverso pode acontecer). Como a informalidade permite maior

mobilidade geográfica, maior rotatividade de participantes,

produzem atividades menos sistematizadas, geram baixo custo de

funcionamento, acabam perdurando por longo tempo. Geralmente

estes movimentos tornam-se formais quando a institucionalização

torna-se também uma exigência ou uma opção vantajosa, para dar

continuidade as atividades. Alguns segmentos do movimento LGBT

vivem na informalidade e outros tornaram-se formais, porém tiveram

Page 55: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

54

dificuldades para cumprir todas as determinações legais, e

acabaram retornando a situação de informalidade. É interessante

observar que mesmo na informalidade estes grupos do movimento

conseguem ter respaldo na reivindicação de seus interesses e

mesmo capacidade representativa junto a eventos promovidos por

organizações governamentais nas diversas esferas. É caso das

Conferências Estaduais e Nacionais de Direitos Humanos e das

Conferências Estaduais e Nacionais de LGBT ocorridas em 2008,

onde mesmo na informalidade estes grupos conseguiram participar

ativamente, inclusive elegendo delegados para o nível nacional.

Outro aspecto relevante quanto à organização é que ela

também pode se dividir em dois níveis: interno e externo. O interno

está relacionado com a composição dos sujeitos e a distribuição de

funções internas. Já o nível externo compreende as relações com

outros segmentos ou a agregação com instituição maiores, como é o

caso de Fóruns de Organizações de Combate a AIDS, ou a

Associação Brasileiro de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais, a

qual a Associação Goiana de Gays, Lésbicas, Travestis e

Transexuais está submetida parcialmente. Ou a ILGA (International

Lesbian and Gay Association) no nível internacional, que acaba

definindo diretrizes de ações que afetam as instituições fil iadas.

Em relação às práticas do movimento, estão intimamente

relacionadas com sua forma de organização, uma vez que se

dividem em práticas formais e informais. Elas se constituem pelas

ações e discursos promovidos pelo movimento. Exemplo de práticas

formais seriam as reuniões, os congressos, os seminários, os cursos

de formação de lideranças, as paradas LGBT, a semana da

diversidade cultural, o concurso de miss drag, mostra de cinema, e

outras atividades desenvolvidas ao longo do ano e que estejam

prevista em agenda do grupo organizador ou do movimento LGBT

em geral. As práticas formais são fundamentais para consolidar os

espaços de sociabilidade, promover as culturas da

homossexualidade, formar lideranças LGBT, qualif icar diversos

profissionais para entenderem as questões que permeiam a

Page 56: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

55

homossexualidade e atuarem respeitando a diversidade de

orientação sexual.

As práticas informais são ações organizadas no calor de

acontecimentos que exigem uma reação ou intensificação por parte

do movimento LGBT. Exemplo disso foi a presença de manifestantes

na Câmara Municipal de Goiânia no dia da votação de lei municipal

que tornaria crime a discriminação a orientação sexual. Também

exemplo, é a realização de “Beijaços”, que geralmente só ocorrem

após algum estabelecimento comercial demonstrar homofobia,

coibindo que homossexuais demonstrem carinho em público. A

mobilização de manifestantes ocorre de um dia para o outro, usando

principalmente a internet, e visa publicizar o ato de homofobia

cometido pelo estabelecimento. Este ato consegue realizar uma

inversão de desprezo, uma vez que geralmente levam cartazes e

gritam palavras de ordem que remetem ao fato de que

homossexuais também consomem, portanto eles podem comprar em

outro lugar. As palavras de ordem também demonstram que o

estabelecimento estaria tomando uma atitude hipócrita (negar a

existência da homossexualidade ou impor uma invisibil idade) e anti-

cidadã, pois diferencia seu público, ao permitir que casais

heterossexuais se beijem, mas proibindo os homossexuais de assim

fazerem.

O projeto sociopolít ico ou cultural também é um elemento

importante. Ele se esboça através das práticas e das ideologias do

movimento. É o projeto que dá um sentido ou direção ao movimento.

Como a problemática do movimento LGBT gira em torno da luta por

um reconhecimento positivo da homossexualidade, ou de uma

subversão, capaz de quebrar com a hegemonia da

heteronormatividade, é possível afirmar que o projeto seria a

construção ou ampliação: dos espaços de sociabilidade

homossexual; dos direitos humanos, sexuais e civis; da liberdade no

exercício de sua orientação sexual. Isto pode ser constatado de uma

forma geral, no conteúdo e na forma de diversas atividades

realizadas pelo movimento, como nas mostras de cinema lésbico

Page 57: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

56

Elas se amam, de 2007 e 2008 ocorridas no Cine Goiânia Ouro. Ou

na mostra de arte Vernissage “homo(queer remixed)”, que inclusive

provocou reação homofóbica até por parte de servidores do Museu

Antropológico da UFG, onde parte da mostra se realizou em 2007. É

claro que o projeto do movimento busca uma unidade, uma

demarcação, mas é evidente que os segmentos de lésbicas e gays

possuem maior visibil idade e atuação. Esta dif iculdade de

construção de um projeto bem demarcado está intimamente ligada a

outro elemento que é a identidade. Ela é mais do que o somatório

das práticas referenciadas pelo projeto, ou mais do que o conjunto

de representações que o movimento gera ou constrói, para si

mesmo ou para os outros. Ela é gerada no processo interativo e

para observar isto é necessário perceber como se dá a

solidariedade polít ica, pois é esta solidariedade polít ica que “deve

ser investigada enquanto o grande elemento agregador dos

interesses difusos e heterogêneos dos diferentes atores em cena”

(GOHN, 1997, p.262).

Um dos elementos cruciais de um movimento a ser

identif icado, é o opositor ou opositores. Estes seriam os atores que

detém o poder ou a hegemonia sobre o bem demandado. Por se

tratar mais de uma demanda cultural e que tem ressonância nos

bens materiais, se torna difícil determinar seu opositor. Retornamos

a questão da violência simbólica, onde a normatização, a distinção

social produz uma hieraquização, ou atribuição de valores sociais,

dividindo os atores em dominantes e dominados, mas dif icultando a

visualização desta mesma divisão. No caso do movimento LGBT

poderia num primeiro momento afirmar que a oposição de um

movimento homossexual, só poderia ser um contra-movimento

formado por atores heterossexuais. Mas isto parece não ser o

suficiente. Ocorre que dentro do movimento homossexual também

se encontram atores heterossexuais. Então não se pode definir este

conflito a partir da antinomia homossexual e não-homossexual.

As conquistas e derrotas do movimento também permitem

visualizar e diagnosticar a sua capacidade de interferir na ordem

Page 58: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

57

social, de acionar determinados recursos ou atores, estabelecendo

possíveis aliados ou opositores. Segundo Gohn as conquistas e

derrotas:

Estão intimamente associadas à questões de natureza interna (t ipo de art iculação, forma de condução do movimento, t ipo de relação entre base-assessoria-l iderança etc.) e às questões externas, de ordem da conjuntura polít ica e socioeconômica do país (2004, p.263)

Acrescentaria também como questão externa a capacidade

de interagir e modificar os padrões culturais de uma dada

sociedade, testando sua permeabilidade ou recrudescimento. No

cenário local poderia diagnosticar como uma conquista o

estabelecimento de uma agenda de eventos polít ico-culturais que

vem se solidif icando a cada ano. Além dos espaços de

sociabilidade, como bares, boates, parques, temos eventos como a

Parada LGBT, a semana cultural, a mostra de cinema 9 LGBT, o

concurso Miss Drag e os eventos de formação de militantes como

seminários, cursos, palestras e outros. Já as derrotas podem

parecer pontuais, mas evidenciam a resistência da mentalidade

heteronormativa. Quando por várias vezes o projeto proposto pela

vereadora Marina Santana, que dentre outras coisas, possibilitava

combater a homofobia, foi retirado da pauta de votação, f icou claro

que os legisladores buscavam promover uma manobra que

dif icultaria identif icar os aliados ou opositores. Ainda que no final o

projeto não tenha sido aprovado, ele possibilitou que a discussão

acerca da homossexualidade e da homofobia fosse colocada

naquele plenário por várias vezes, e mesmo estendida para outros

âmbitos como a mídia goianiense em geral.

3.3 Os direitos humanos – a eticidade necessária

Após visualizar, em perspectiva teórico-metodológica,

alguns elementos que caracterizam o movimento LGBT, percebe-se

que há uma complexidade e uma dinâmica entre esses elementos

9 A mostra de cinema lésbico já se encontra na sua segunda edição – Chama-se Elas se Amam.

Page 59: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

58

que ainda precisam ser delineadas. É preciso retomar um

referencial teórico capaz de oferecer parâmetros para que se possa

falar em organização, projeto, identidade, práticas, opositores,

conquistas, derrotas etc. É nesse sentido que a idéia de eticidade

de Axel Honneth e inicialmente, o conceito de habitus de Bourdieu,

podem ajudar a entender o sentido, a regularidade e a dinâmica das

ações do atores sociais que compõem o movimento LGBT. Vou

explicitar abaixo a distribuição da força social do ativismo

promovido pelo movimento, para daí retornar a idéia de eticidade de

Honneth, e evidenciar como ela pode dá fundamento para a

dinâmica dessas forças sociais. Quanto ao conceito de habitus de

Bourdieu, poderá fundamentar a constituição de um estilo de vida

para os atores de cada força social específica. É como se

existissem habitus diversos (o de gestor, de líder de movimento

social, de empresário, de estudante, de professor etc.), mas em

determinado momento estes habitus são quebrados exatamente pela

amplitude da visão de mundo desses atores. Trata-se da pluralidade

de cada ator não somente de atores.

3.3.1. Como seria composta a força social interna?

Esta força social é composta pelos grupos que formam o

movimento LGBT de maneira mais restrita. Aqui estão os atores que

protagonizam as lutas diretamente relacionadas com as demandas

do movimento LGBT. Suas identidades possuem em comum a

homossexualidade e são publicamente assumidas, servindo como

um instrumento provocador de mudanças polít ico-culturais. Estes

grupos possuem como desafio a formação de uma agenda de

reivindicação. Para sistematizar essa agenda eles vivenciam uma

situação de tensão constante, num jogo de forças internas, de

demandas específicas, e de definições identitárias e ideológicas às

vezes conflitantes. Contudo essa força social interna busca construir

um consenso sobre a agenda para posteriormente explicitá-la diante

das forças sociais semi-externas e externas. Concretamente, em

Page 60: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

59

Goiânia, ela é composta por todos aqueles grupos citados

anteriormente, e que se denominam LGBT. Mas um fator que

permite a potencialização desta força dita interna, é que muitas

vezes esses sujeitos também participam de outras instituições

governamentais ou empresariais que permitem alocar recursos

diversos, seja de influência polít ica, econômico-financeira,

midiática, etc. Não se pode esquecer que os atores transitam por

campos diversos.

3.3.2. Como seria composta a força social semi-externa?

Esta força social é composta por sujeitos diversos que

possuem um relacionamento mais estreito com o movimento LGBT,

mas não fazem parte de sua força interna, ou seja, onde quer que

atuem, a homossexualidade não é a questão central de suas ações.

São organizações não governamentais, segmentos empresariais

voltados para o público LGBT1 0, gestores públicos, movimentos

sociais diversos, coletivo de estudantes, voluntários diversos,

pesquisadores-estudantes-voluntários e outros. Esta força social

pode ser chamada de semi-externa porque os sujeitos, as empresas,

ou instituições que a compõe possuem interesses diversos e as

causas, demandas ou reivindicações do movimento LGBT são

compartilhadas parcialmente ou em paralelo com outras questões

mais peculiares. É o caso do movimento negro, feminista ou dos

direitos humanos. As demandas relacionadas com a

homossexualidade perpassam de forma transversal as demandas

mais gerais desses movimentos sociais. Existem situações onde o

contexto de exclusão social é multifacetado, estando relacionado

com o gênero, orientação sexual, discriminação ético-racial,

deficiência física e outros marcadores sociais. Aqui a relação entre

força interna e semi-externa se estabelece por interesses racionais

e estratégicos, mas também por um envolvimento subjetivo.

10 A referência às empresas que oferecem produtos e serviços a lésbicas, travestis, transexuais, gays, bissexuais e os “simpatizantes”, é chamado de mercado GLS).

Page 61: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

60

Outro motivo para chamá-la de força social semi-externa é

porque na prática, o pertencimento ou a aproximação identitária,

entre os atores possuem certa flexibilidade. Exemplo de disto é o

empresário do ramo GLS ou a liderança do movimento negro que

também trás consigo o marcador social da homossexualidade.

Portanto, na prática existe um limiar muito fluído, que dif iculta

definir quem estaria na força interna ou na semi-externa. O uso do

termo semi-externo também poderia ser “semi-interno” para alguns

desses atores, entendendo aqui, que alguns atores poderiam estar

na força interna, mas com interesses que extrapolam para o

externo. E outros poderiam fazer o movimento oposto – estariam

posicionados externamente, mas com alguns interesses que

convergem para o interno.

3.3.3. Como seria composta a força social externa?

A força social externa é composta também por sujeitos e

instituições diversas, que possuem um relacionamento fortuito, às

vezes meramente institucional ou comercial com a força interna do

movimento LGBT. Esta força social é mais difusa e estaria ainda

mais distante das reivindicações do movimento, estabelecendo um

relacionamento com interesses mais racionais e objetivos. A relação

estabelecida pode ser considerada como um meio para que esta

força social atinja uma meta específica dentro de um fim mais geral.

É o caso do envolvimento de técnicos da Secretaria Municipal de

Saúde, com a organização de eventos LGBT, cujo fim seria

meramente de promover campanhas de combate a DST/AIDS.

Neste caso percebe-se que o envolvimento com os eventos

LGBT permite aproximar-se do público alvo. Seria uma forma de

encontrá-los, usando as ONG’s ou grupos LGBT como pontes para

atingir os sujeitos em situação de vulnerabilidade, com as polít icas

públicas implantadas pelo poder público. Também o envolvimento de

equipes do Corpo de Bombeiros/SAMU, Polícia Militar,

Superintendência Municipal de Trânsito e Transportes de Goiânia,

Page 62: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

61

Superintendência da Guarda Municipal de Goiânia, Ministério

Público do Estado de Goiás, Assembléia Legislativa do Estado de

Goiás, Governo do Estado de Goiás com algumas de suas

secretarias seria uma relação mais institucional. Não se pode

questionar que a presença dessas instituições junto aos eventos

LGBT produz maior legit imidade, dando tranqüilidade na realização

das atividades propostas. Um exemplo foi a presença da força

policial junto a uma manifestação ocorrida em 9 de agosto de 2006

em frente a um shopping da cidade de Goiânia. A força policial não

se mostrou repressora, em momento algum. Ao conversar com

alguns participantes, afirmou que permaneceria ali, com o intuito de

preservar a ordem e evitar um confronto com agressão física ou

invasão de propriedade. Então, se por um lado, aquela força

representaria uma limitação, impedindo que os manifestantes

adentrassem o estabelecimento comercial, por outro lado, também

dava ampla liberdade e garantia de segurança física aos

manifestantes, desde que permanecessem na área pública. E isto

pareceu razoável para os objetivos propostos pelos organizadores

da manifestação.

Esta classif icação da composição das forças sociais do

movimento LGBT permite visualizar melhor o objeto estudado e ter

uma maior clareza da complexidade da realidade que o permeia.

Não se pode esquecer que se trata de um recurso metodológico.

Deve-se ter em mente a existência de uma dinâmica da

movimentação dos atores sociais que compõem essas forças

interna, semi-externa e externa. A interação entre esses atores pode

gerar um processo pedagógico capaz de provocar uma

reconfiguração identitária. É isto que permitiria ou não, aos atores,

transitarem no sentido da margem para o centro ou do centro para a

margem da força social do movimento LGBT. E há exemplos de

sujeitos “conquistados” pelo movimento, como também, exemplos de

sujeitos que ocupavam uma posição de liderança (força interna) e

acabou se distanciando, e se agregando a outro movimento social,

Page 63: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

62

também de minorias, tornando-se uma força social semi-externa em

relação ao movimento LGBT.

3.4 A formação de redes – homem com homem, mulher com mulher?

Até aqui percebemos que esta articulação da força social do

movimento LGBT, passa necessariamente por uma formação

identitária dos sujeitos, promovendo um reconhecimento mútuo e a

formação de uma rede solidária ou se quisermos chamar também de

estruturação de um sistema de ação. Mas ainda precisamos delinear

melhor os princípios que tornariam possível falar na compactação

ou aglutinação dessa força social do movimento. Como já foi

apontado através do conceito de eticidade de Honneth, os sujeitos

buscam condições para uma auto-realização através de um

“aperfeiçoamento normativo das relações de reconhecimento”.

(HONNETH, 2003, p.275). Acompanhando o repertório das

reivindicações de polít icas públicas, no sentido de “ issues”, de

questões, demandas apontadas pelo movimento LGBT, constata-se

que giram em torno de dois conceitos básicos – direitos humanos e

cidadania. Aproveitando que Honneth fala na construção de uma

universalidade de valores, vamos tomar o conceito de cidadania

como um referencial para a prática dos sujeitos do ativismo LGBT.

Sabe-se das diversas acepções deste conceito: cidadania

cosmopolita, planetária ou liberal, mas o fato é que o termo esteve

historicamente relacionado com uma ordem jurídica e normativa.

Sem perder esta perspectiva normativa, mas avançando

para uma sensibilidade das peculiaridades sociológicas nas quais os

sujeitos estão inseridos, pode-se desdobrar o conceito em cidadania

ativa e passiva. Isso permite um caráter processual ao conceito, que

vai além dos direitos e deveres, desmistif icando a atribuição do

igual/diferente, do pertencimento/não-pertencimento, do

singular/diverso, do universal/individual etc. E é a possibilidade de

tomar o social como não estabelecido, não codificado nas normas

legislativas a priori, que permite arranjos diversos para a ação

Page 64: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

63

coletiva, seja de utopias ou novas ideologias. Na afirmação de

Gohn:

O que irá definir a cidadania é um processo onde encontram-se redes de relações, conjuntos de práticas (sociais, econômicas, polít icas e culturais), tramas de articulações que explicam e ao mesmo tempo sempre estão abertas para que se redefinam as relações dos indivíduos e grupos com o Estado. O Estado é sempre elemento referencial definidor porque é na esfera pública estatal que se asseguram os direitos, da promulgação à garantia do acesso, e as sanções cabíveis pelo descumprimento dos direitos já normatizados e insti tucionalizados (2005, p.30).

Num primeiro momento a citação acima parece apontar para

aquela dicotomia entre sociedade civil e Estado, onde tomaríamos

este como regulador, repressor e uniformizador, e aquela, como

libertadora, inovadora e pluralista. Mas numa perspectiva relacional,

deve-se atentar para a possibilidade da transformação da própria

cultura polít ica, uma vez que se tem o confronto ou a assimilação da

pluralidade de orientações e de atores polít icos.

Então idéia de cidadania parece se juntar, ao universalismo

de valores de Honneth e a luta por reconhecimento travada entre os

atores. E este universalismo de valores será o motor da articulação

do movimento LGBT com tantos outros movimentos sociais, que

também buscam a promoção de um reconhecimento positivo de suas

identidades. O próprio Estado, “paradoxalmente”, acaba se tornando

um aliado na promoção da “cidadania”, “do novo humanitarismo”,

“de um direito universal”, “dos direitos humanos”. A noção de

direitos humanos amplia o leque de protagonistas da sociedade civil

– ONG’s, entidades classistas, fóruns

locais/nacionais/internacionais, grupos informais, instituições

religiosas, movimentos diversos, fundações vinculadas com grandes

empresas multinacionais e o terceiro setor, conselhos

institucionalizados de áreas sociais, etc., todo esse conjunto acabou

promovendo uma nova forma de ativismo social, “[...] não mais para

protestar mas para FAZER [sic], laborar, atuar junto às camadas

desfavorecidas, previamente selecionadas com a ajuda destes

mesmo ativistas”. (GOHN, 2005, p.109).

Page 65: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

64

Ao promover sua luta por reconhecimento os ativistas do

movimento LGBT buscam conquistar como aliados, essa gama de

atores que atuam na promoção de direitos humanos. É necessário

uma co-legitimação de forças para dar sustentação aos ativismos de

direitos humanos. Esses atores possuem trajetórias diversas e

vivem cenários diversos. O que ocorre é a formação de um ponto de

convergência dessas trajetórias. Daí que o habitus de militante do

movimento LGBT não basta. É necessário ser também um ativista de

causas humanitárias, que advoga a favor de uma sociedade

pluralista. A palavra ativista, aqui, possui um significado amplo.

Pode-se dizer ativista todo ator social que coletivamente ou não,

promove ou contribui na realização de atividades que buscam

fortalecer os direitos humanos. Então, ativista dos direitos humanos

seria aquele que é capaz de ativar, de agir, movimentar, de alguma

forma, as forças sociais que promovem direitos humanos. Isto

englobaria atores governamentais ou não, iniciativa privada,

movimentos sociais, movimentos polít ico-partidários etc. É a

configuração e dinâmica dos posicionamentos desses diversos

atores sociais, ou ativistas que permite falar na configuração de um

campo de ativismo dos direitos humanos. Ainda que fracamente

delineado, é possível sustentar a sua constituição a partir da

constatação de seus subcampos – o ativismo estatal e os demais

ativismos de diversos movimentos sociais – e dos mecanismos que

promovem uma diferenciação social, seja entre atores ou grupos de

atores.

A diferenciação social pode ser percebida porque os atores

não possuem o mesmo capital social, cultural, simbólico ou

econômico. Ainda que exista um esforço para atenuar as diferenças,

e promover uma participação mais horizontal dos atores, fica

evidente que as trajetórias de vida determinam na forma ou

capacidade de participação nos eventos.

Isto ficou bem delineado na 4ª Conferência Estadual de

Direitos Humanos ocorrida de 12 a 14 de setembro de 2008, em

Goiânia. Ali foi possível perceber a convergência em torno do que

Page 66: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

65

seria a eticidade de Honneth. A sustentação daquilo que chamamos

de estado democrático de direito, de cidadania coletiva ou

planetária, de autonomia, de participação polít ica, de sociedade civil

organizada, só é possível através da promoção de uma estrutura

material e simbólica que permita e evidencie o convívio mutuo das

diversidades. É na Conferência que cada ator social busca

satisfazer sua demanda específica, mas também é obrigado a

defrontar-se com a especificidade do outro. A conferência acaba

promovendo um ambiente pedagógico sobre os mais variados temas

sociais – a luta anti-manicomial, o combate e prevenção a

DST/AIDS, a luta contra a discriminação sexual ou étnico-racial, a

promoção dos direitos culturais, ambientais, o direito a terra, a

moradia, a saúde, os direitos da criança e do adolescente, do idoso,

do deficiente etc.

Na dinâmica promovida pelos grupos de trabalhos, estavam

atores dos mais variados segmentos sociais, e muitos acabavam

aprendendo sobre as dif iculdades e lutas dos outros segmentos.

Exemplo disso foi quando uma participante que representava a

Igreja Anglicana no Brasil demonstrou desconhecer a diversidade

presente no movimento homossexual. Ela desconhecia a sigla

LGBT. Então, a participação na Conferência de Direitos Humanos se

torna uma oportunidade de aprender sobre o outro, sobre sua

realidade diante dos direitos humanos. É um momento de definição

do que é o humano e não-humano. Como buscar humanidade para

si, sem negar a humanidade do outro nessa situação de interação?

O documento orientador da participação da sociedade civil na

conferência já definia uma lista de grupos historicamente

discriminados e/ou vulneráveis, que garantia um mínimo de

delegados junto a conferência nacional – seriam: movimento negro;

população indígena; e grupos e movimentos com histórico de

violação de direitos, seja por características pessoais (grupo LGBT,

pessoas idosos, pessoas, com deficiência), por características

culturais/religiosas (ciganos, e comunidade de terreiro) ou em razão

de diversos contextos sócio-históricos, territorial e econômico

Page 67: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

66

(caiçaras, quilombolas). Isso é importante porque já legit ima o

direito a certa representatividade desses atores.

A distribuição de forças dentro da conferência pode ser

evidenciada na classif icação realizada entre representantes

governamentais e não governamentais. Antes de procederem na

votação dos delegados que devem ir a Conferência Nacional de

Direitos Humanos que será realizada em Brasília, em dezembro de

2008, ocorreu um debate para se definir o que seria governamental

ou não. Um exemplo de ampla discussão foi quando apontaram a

OVG – Organização das Voluntárias de Goiás, como sendo

governamental. E mesmo após definirem-na como governamental,

ainda assim, surgiu outro debate, uma vez que as pessoas tidas

como funcionários da OVG, também eram sujeitos de outras

atividades ou profissões, e buscam participar como representantes

da sociedade civil. Isto seria um momento de definição identitária, e

evidencia a possibilidade dos atores transitarem entre o

governamental ou não. O episódio ilutra a pluralidade de atores

sociais, construída pelas trajetórias ou pelo jogo da situação.

3.5 Um campo de ativismo LGBT?A formação de um campo de ativismo de direitos humanos

que ao se ampliar acaba formando sub-campos de lutas diversas por

direitos, sejam ecológicos, culturais, sexuais etc. é inevitável. Só é

possível falar em um campo de ativismo de direitos humanos

quando identif icamos a existência de um conjunto de legislação,

com mecanismos normativos, reguladores e fiscalizadores, que

acabam também por hierarquizar a participação dos atores neste

campo. Existem atores coletivos ou individuais, legit imados para

participarem ou representarem determinados grupos em eventos,

tais como seminários, conferências, audiências públicas etc. Estes

atores possuem cargos, funções, formação profissional ou

intelectual, que atribuem também um status que legitima seu poder

de fala.

A criação de espaços para o debate público sobre as

questões que permeiam os direitos humanos é, ao mesmo tempo

Page 68: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

67

uma reivindicação daqueles que se sentem excluídos, como também

é uma necessidade para aqueles que representam o status quo. A

sustentação do “ideal de sociedade democrática”, com participação

e autonomia dos sujeitos, só é possível através da promoção de

eventos, de títulos, de honras, de status, e de outros mecanismos

que demonstrem não só uma agenda polít ica aberta às

reivindicações dos grupos de pressão, mas também promovam e

qualif iquem os atores participantes.

Embora sustente a existência de um campo de ativismo de

direitos humanos, a principal implicação para a fundamentação

deste trabalho está na sustentação e fundamentação da existência

de um campo de ativismo LGBT. Embora o sistema de ação coletiva

promovida pelos sujeitos LGBT não possa de desvincular do campo

de ativismo dos direitos humanos, tentarei fazer uma descrição do

campo de ativismo LGBT, ainda que ora me remeta ao campo maior,

ou seja, ao ativismo dos direitos humanos.

A dinâmica encontrada no movimento LGBT de Goiânia,

permitiu falar de um campo de ativismo, mesmo que ele ainda não

seja plenamente delineado. Falar em campo de ativismo LGBT pode

ser paradoxal, pois uma vez que o ativismo seja atendido em suas

reivindicações, isto pode provocar uma redução do seu espaço de

atuação. Contudo, percebeu-se uma luta pelos recursos, pela

definição de projetos e ideologias entre os sujeitos participantes.

Ainda no primeiro capítulo constatou-se que os sujeitos

homossexuais buscam subverter ou desconstruir a hierarquização

produzida pelos dispositivos de uma heteronormatividade, só que

estes sujeitos possuem trajetórias diversas e portanto, mesmo ao

produzirem esta luta em comum, acabam também produzindo

hierarquizações dos sujeitos, dentro de seu próprio campo de luta. É

que os atores sociais não se enquadram mecanicamente dentro do

quadro hierárquico, uma vez que possuem diferentes capitais

sociais, oriundos de diferentes campos sociais. Assim, percebeu-se

uma diferenciação social entre os sujeitos participantes do campo

do ativismo LGBT, baseada na estrutura e no volume do capital

Page 69: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

68

social dos atores. Um dos primeiros fatores determinantes da

desigualdade é história de cada ator dentro ou com o movimento

LGBT. Como afirma Bourdieu,

[ . . . ] a acção é uma espécie de luta entre a história objectivada e a história incorporada, luta essa que dura por vezes uma vida inteira para modif icar o posto ou modif icar-se a si mesmo, para se apropriar do posto ou ser por ele apropriado [... ] (2001, p. 103).

Na prática, isto significa que em determinados momentos os

sujeitos evocam critérios de antiguidade, onde os atores que já

participam do ativismo há mais tempo podem se afirmar com maior

autoridade. É como se tivessem maior conhecimento de causa,

sintetizando um habitus da militância, numa espécie de ícone, e que

por isso devem ser consultados e respeitados. Isto também se

apresentava contraditório, pois que muitas vezes estes mesmos

sujeitos também procuravam incentivar as novas gerações de

ativistas para que assumissem a posição de líderes.

Também os atores mais “novos”, às vezes chamavam as

lideranças mais antigas de “dinossauros do movimento”,

relacionando suas práticas com uma postura negativa e

ultrapassada. Entretanto, prevalece um respeito e uma legitimidade

pelo poder de “fala” dessas lideranças. A posição de determinados

sujeitos dentro do campo e a legit imidade enquanto lideranças,

também fica clara, quando são convidados a falar para a imprensa

local sobre temas relacionados com a prática da homossexualidade.

Portanto, não é qualquer ator do ativismo que pode falar em nome

do movimento.

Outro elemento da legitimidade de representar o ativismo

LGBT está relacionado com a posição formal desses sujeitos no

quadro organizacional das instituições LGBT. Aqui, os sujeitos

exibem o título de presidente, coordenador, fundador, etc.

remetendo ao aspecto de um status legal. Este aspecto é muito

importante e está relacionado com as instituições formais. Quando o

governo, nas suas diversas esferas, promove algum projeto ou

programa para selecionar instituições para receberem recursos e

Page 70: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

69

promoverem ações que beneficiem a população LGBT, somente

aquelas instituições devidamente registradas conseguem ter acesso

aos recursos.

Com isso o próprio poder público acaba criando

mecanismos que fomentam a manutenção ou ampliação do campo

do ativismo LGBT, juntamente com normatizações que interferem no

modelo organizacional dos atores coletivos. Exemplo disso é o

Projeto Somos – Desenvolvimento Organizacional, Advocacy e

Intervenção para ONG’s que trabalham com GAYS e outros HSH.

Trata-se de um projeto idealizado pela Associação para a Saúde e

Cidadania Integral na América Latina e Caribe – ASICAL, mas que

no Brasil é realizado desde 1999, pela parceria entre Associação

Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros – ABGLT e o governo

federal, através do Ministério da Saúde. O objetivo do projeto pode

ser resumido como está no prefácio de seu guia:

Este guia tem como objetivo auxi l iar as insti tuições que trabalham com populações de gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), principalmente aquelas insti tuições que estão iniciando sua trajetória. Busca solucionar as dúvidas mais freqüentes e apresenta caminhos já percorridos que servem como experiência para as novas organizações BRASIl, Ano 2005, Projeto Somos – Guia Prático – Série manuais 65. p. 11).

A implicação deste projeto para a construção do campo de

ativismo LGBT em Goiânia pode ser sintetizada nas palavras do

entrevistado 6:

“Desse Projeto Somos, nos somos responsáveis por mais ou menos 15 a 20 ONG’s que hoje existe no Centro Oeste e alguns do Norte, que uma parte do projeto a AGLT também atuou na capacitação da região norte. Mas a maioria dessas ONG’s estão no interior, em Anápolis, Cadas [Nova], Ceres, Quirinópolis. Foi tudo fundada através dos cursos de capacitação do Projeto Somos”. (Entrevistado 6)

O capital cultural é outro fator de determinação da

diferenciação social. Os ativistas que possuem maior formação

escolar, maior capacidade intelectual de elaboração de discursos e

Page 71: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

70

de domínio sobre os temas relacionados com o ativismo não só

LGBT, mas também dos direitos humanos, acabam se sobressaindo

na atuação dentro do movimento. Exemplo disso é a posição da

travesti, que geralmente enfrenta maior dif iculdade de concluir seus

estudos ou de ser aceita no ambiente escolar, acaba apresentando

dif iculdades para defender seus interesses dentro do movimento.

Como disse uma ativista: “o corpo da travesti é construído na rua”.

Isso pode ser estendido aos saberes, as práticas polít icas e a

linguagem da travesti. É mais comum encontrar gays e lésbicas,

com formação superior, ocupando a posição de liderança.

Os atores oriundos do campo acadêmico também possuem

certa legit imidade para participarem e se fazerem ouvir. São

pesquisadores ou professores que possuem conhecimentos

relevantes sobre o tema da homossexualidade e suas relações com

a sexualidade, a polít ica, a saúde, a educação, a religião, os

direitos e outras questões. Estes atores possuem orientação sexual

diversa, ou seja, não são necessariamente sujeitos com práticas

homoeróticas e formadores da força social interna do ativismo, mas

também são sujeitos hetorossexuais que podem representar as

forças sociais semi-externas ou externas do ativismo LGBT.

Também o capital polít ico está presente na definição da

hierarquização social. Geralmente os atores oriundos ou com

trânsito pelo campo polít ico possuem mais êxito na participação

junto ao movimento LGBT. Estes sujeitos agregam conhecimentos,

redes de relacionamento, títulos e honras, que possibilitam ocupar

posições de liderança junto ao ativismo LGBT. E também não é

qualquer polít ico (vereador ou outra autoridade pública) que pode

falar em nome do movimento. Existem aqueles polít icos que já

gozam de uma legitimidade e mesmo de uma afinidade com a

linguagem e com a problemática da homossexualidade, que lhe

permite identif icar-se como aliado do movimento, e, portanto como

ativista. Essa palavra aliado, dentro do movimento LGBT, possui um

significado polít ico que a diferencia da palavra simpatizante. O

aliado é aquele que se envolve, de fato, e que possui maior

Page 72: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

71

esclarecimento acerca das lutas do movimento. O aliado se

diferencia do simpatizante, daquele que tolera ou aceita as lutas,

porque participa de forma proativa. Quando no ano de 2007, a

Câmara Municipal preparava-se para votar o projeto de lei da

Vereadora Marina Santana, que coibia a homofobia nos

estabelecimento comerciais da capital, os ativistas conseguiam

claramente identif icar aqueles que afirmavam votar a favor, mas que

no fundo eram contra o projeto. Ou seja, os ativistas conseguiam

perceber a manobra polít ica (onde vereadores queriam posar como

simpatizantes) e identif icar os verdadeiros aliados.

Devido as eleições municipais de 2008, muitos candidatos

foram ou mandaram representantes à XII Parada LGBT de Goiânia.

A maioria dos candidatos buscou gerar uma identif icação com o

movimento LGBT, adotando um material personalizado tanto no

texto quanto na cor (uso das cores do arco-íris). A ABGLT –

Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e

Transexuais – apresentou um quadro sintetizando a participação de

sujeitos LGBT e aliados nas eleições de 2008 no âmbito nacional.

Foram 178 candidatos distribuídos em 34 gays, 22 travestis e

transexuais, 12 lésbicas e 110 aliados, oriundos de 20 partidos

diferentes. Estas informações servem para fundamentar a disputa

dentro do campo do ativismo, a disputa por recursos de outro campo

(no caso, o polít ico), mas também evidenciam uma ampla aliança ou

afinidade do movimento LGBT com sujeitos diversos, em termos de

sexualidade ou vinculação partidária.

Na parada de LGBT de Goiânia sempre há a participação

dos “carros de som” ou “trios” que representam as casas de dança,

bares, ou saunas. Eles buscam correlacionar a tomada de posição

dentro do ativismo LGBT, com recursos ou capitais oriundos de

outro campo, no caso o econômico, fundamentado no mercado GLS.

Geralmente, no período que antecede a parada e no dia da parada,

as casas de dança anunciam a promoção de festas, que tentam

vincular a realização da parada, atribuindo nomes como: “Festa da

Parada; “Festa da pré-parada”, ou “Noite da Parada”. Às vezes

Page 73: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

72

esses vinculos se estendem aos profissionais que trabalham como

DJ (disc jockey) na festa. Então estes profissionais possuem um

status que os relaciona com o público homossexual, e permitem uma

hierarquização desses sujeitos dentro da ordem social do mercado

GLS.

No geral o que constatamos é que os atores buscam não só

posicionar-se dentro do quadro de diferenciação social do campo,

como também buscam sustentar e avançar na construção do próprio

campo do ativismo LGBT. E esta seria a principal implicação para

delinear as características de uma ação coletiva perpetrada pelo

movimento LGBT. A ação dos diversos sujeitos para compor o

campo do ativismo, acaba constituindo uma rede de interações,

permeada por tensões, disputas, mas também pela cooperação e

solidariedade.

Page 74: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

73

CONCLUSÃOAproposta inicial foi investigar a ação coletiva promovida

pelo movimento LGBT, buscando desmistif icar o caráter de

unicidade que lhe é atribuído e permitindo a elaboração de um

quadro interpretativo capaz de perceber a pluralidade dos atores e

das lógicas de ação. Evitou-se uma polarização entre determinantes

macrosociológicos ou microsociológicos da ação, bem como se

privilegiou uma análise que fosse capaz de captar e demonstrar o

múltiplo pertencimento dos atores individuais, com socializações

sucessivas ou simultâneas, hábitos diversos, subjetividades,

racionalidades, etc.

Talvez a estratégia tenha sido por demais descrit ivas e

pouco analít icas. Um trabalho com maior consistência teórica

poderia ter optado em fundamentar como o fenômeno estudado se

distância dos princípios macrosociológicos, ou o inverso, como a

microsologia poderia encontrar princípios explicativos da ação

promovida pelo movimento LGBT. Isso produziria um trabalho mais

focado teoricamente e com recorte analít ico bem definido. Então,

tenho a consciência dos limites da atividade aqui realizada. Não se

produziu propriamente um estudo sobre a sexualidade, nem sobre

os movimentos sociais, nem sobre uma teoria especifica da

sociologia moderna. Orientou-se uma problematização sobre uma

realidade específica, que acabou por produzir mais questões de

análise do que soluções. Manifestaram-se fenômenos sociais e

problemas sociológicos dos mais diversos: homoafetividade, novas

conjugalidades, construções da sexualidade, manifestação de

“culturas subalternas”, os grupos sociais e suas estratégias de

mobilização de recursos e de mobilização polít ica, os movimentos

sociais e sua relação com o estado, e outros. Muitos desses

problemas emergiram como uma ponta de ice-berg, e mesmo

possuindo uma grandeza relevante, tiveram que ser deixados para

trás, no mar sem fim da análise sociológica, a ser desbravada por

outros. Portanto, questões que poderiam ser relevantes para

complementar este estudo, tiveram que sair de foco.

Page 75: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

74

O olhar sobre a realidade estudada produziu uma recusa em

aceitar uma ditadura dos princípios estruturais sobre a ação do

sujeito, e também produziu um respeito pela singularidade do sujeito

e sua capacidade de imprimir uma dinamização da ordem social. Foi

nesse sentido que se optou por util izar um referencial que procurou

valorizar a riqueza situada no espaço-relacional existente entre ator

e sistema. Se o objetivo era entender os limites para se falar em

ação coletiva, então era necessário perceber os mecanismos

estruturais e sua relação dialógica com os mecanismos de mudança

e expressão de singularidades e subjetividades.

O uso do conceito de habitus de Bourdieu foi o que permitiu

num primeiro momento promover uma agregação dos sujeitos, seja

em torno de uma homossexualidade, de uma não-

homossexualidade, de um ativismo de direitos humanos ou de um

ativismo de direitos sexuais. Também o conceito de identidade,

apoiado nas premissas de diversos autores, permitiu complementar

um construto teórico de hierarquização dos sujeitos dentro de uma

ordem social. A descrição realizada ao longo do texto buscou

enfatizar como uma hegemonia da cultura heteronormativa,

estabeleceu uma relação entre dominantes e dominados. Quando se

afirmou que o conceito de hatibus serviu num primeiro momento, é

exatamente porque, ao se aplicar a sujeitos homossexuais, pode

não conseguir abarcar a diversidade de trajetórias por eles

apresentadas. É a combinação entre seu capital social e sua

trajetória social que pode ofuscar ou não sua percepção, e

consequentemente seu posicionamento, enquanto sujeito dominado

ou não. Conforme o trânsito desse sujeito dentro dos diversos

campos sociais, sua condição pode passar de dominado à

dominante.

Somente quando a “marca de distinção” (BOURDIEU, 1998,

p.14) capaz de posicionar o sujeito na hierarquia social, advém

sobretudo de uma ordem cultural, enfatizando seu aspecto

simbólico, em detrimento de outros capitais sociais, é que a

condição de dominado do sujeito homossexual se evidencia. Daí o

Page 76: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

75

fato da ação coletiva do movimento LGBT situar-se principalmente

no campo cultural.

Assim a luta por reconhecimento, apontada por Honneth

como motor da transformação social na busca da auto-realização

dos seres, não é mecânica ou teleológica, mas requer a percepção

de um reconhecimento negativo, que carece de um parâmetro para

se definir relacionalmente.

A idéia de direitos humanos, tendo como correlatas a

democracia e a cidadania, construída ao longo da história e

legit imada através de diversas normas (tratados, declarações,

cartas, estatutos, constituições etc), sempre foi incorporada aos

discursos dos ativistas do movimento LGBT. Este conjunto de

normas torna-se um parâmetro universal, como uma “comunidade de

valores” capaz de atender os indivíduos em suas singularidades.

Durante o trabalho de campo, pode-se constatar, seja

através do discurso dos próprios sujeitos ou do material simbólico

(músicas, cartazes, manifestações polít icas e culturais), que a luta

por reconhecimento positivo das identidades homossexuais se

pautou pelo reconhecimento na experiência do amor, na experiência

do reconhecimento jurídico e na experiência da solidariedade,

Frases como: “orgulho sim, preconceito não”, “estamos aqui,

acostumem-se”, “toda forma de amor vale a pena”, “eu te amo e vou

gritar pra todo mundo ouvir”. Essas experiências de reconhecimento

são interdependentes. O ato de amar também pode depender de

uma garantia de união civil legítima. Trata-se de uma segurança

jurídica a ser construída, como afirma Honneth:

Os padrões de reconhecimento do direito penetram o domínio interno das relações primárias, porque o indivíduo precisa ser protegido do perigo de uma violência física, inscri to estruturalmente na balança precária de toda l igação emotiva: consta das condições intersubjetivas que possibi l i tam hoje a integridade pessoal não somente a experiência do amor, mas também a proteção jurídica contra as lesões que podem estar associadas a ela de modo causal (2003, p.278).

Procurou-se sistematizar a forma como o movimento LGBT

em Goiânia busca promover sua luta por reconhecimento, pela

Page 77: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

76

construção de um esquema tipológico, no qual a força social do

movimento é considerada interna, semi-externa ou externa. O

núcleo de formulação de suas reivindicações, de seus projetos e

ideologias, depende necessariamente da força social interna: as

qualidades dos sujeitos participantes, dos líderes e de suas

interações internas define o modo e a qualidade do relacionamento

com suas forças semi-externas e externas. A esquematização

possibilita visualizar um circuito de energias e de formação de redes

de solidariedade, util izado para manter a coesão da força social do

campo de ativismo LGBT

Isto parece contemplar o objetivo deste trabalho, pois se

evidenciou que os atores não estão em plena harmonia, uma vez

que produzem novas hierarquizações dentro do campo de ativismo

LGBT, mas que também tendem a controlar as tensões de modo a

permitir a manutenção e ampliação do campo.

Page 78: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

77

BIBLIOGRAFIA

ALEXANDER, Jeffrey C.. Ação Coletiva, Cultura e Sociedade Civil: Secularização, atualização, inversão, revisão e deslocamento do modelo clássico dos movimentos sociais. Revista Brasileira de Ciências. Sociais, São Paulo, v. 13, n. 37, 1998. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000200001&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16 Out 2007. doi: 10.1590/S0102-69091998000200001.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001. p. 314.

______. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998. p.361.

______. Razões Práticas. Campinas, SP: Papirus, 1996. p. 224.

______. Sociologia. São Paulo: Ática, 1994. p. 191.

______. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 208.

BRASIl, Ano 2005, Projeto Somos – Guia Prático – Série manuais 65. p. 135.

CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 530.

CHAVES, Christine de Alencar. A Marcha nacional dos Sem-terra: Um estudo sobre a fabricação do Social. Rio de Janeiro: Relume Dumará: UFRJ, 2000. p. 446.

CONDE, Michele Cunha Franco. O movimento Homossexual brasileiro, sua trajetória e seu papel na ampliação do exercício da cidadania. (Dissertação de Mestrado em Sociologia). UFG. FCHF. Departamento de Ciências Sociais. Mestrado em Sociologia, 2004.

DUBAR, Claude. A Socialização – Construção de identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 343.

FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinha?: movimento homossexual e produção de identidades coletivas no anos 1990, Rio de Janeiro: Garamond, 2005. p. 301.

Page 79: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

78

FRANÇA, Isadora Lins. Cercas e Pontes: O movimento GLBT e o Mercado na Cidade de São Paulo. (Dissertação de Mestrado em Antropologia), S. Paulo: USP, FFLCH, 2006.

GILBERT, Margaret. Rationality in Collective Action. Philosophy of the Social Sciences, New York, v. 2, n. 3, 2006. p. 234-56.

GOHN, Maria da Glória. O Protagonismo da Sociedade Civil – movimentos sociais, ONGs e redes solidárias. São Paulo:Cortez, 2005. p.120.

______. Movimentos sociais no início do século XXI: antigos e novos atores sociais. Petrópolis, RJ:Vozes, 2003. p.143.

______. História dos movimentos e lutas sociais – a construção da cidadania dos brasileiros. São Paulo: Loyola, 2003. p.214.

______. Teoria dos Movimentos Sociais – Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997. p. 383.

HABERMAS, Jurgen. Comunicação, opinião pública e poder, In: Comunicação e Indústria Cultural. Cohn, Gabriel, São Paulo: Nacional, 1975.

HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed.34, 2003. p. 296.

LAHIRE, Bernard. Homem Plural – os determinantes da ação. Petrópolis/ RJ: Vozes, 2002. p. 231.

LITTLE, Daniel. Rational Choice Theory. In: Varieties of social explanation: an introduction to the Philosophy of Social Science. Boulder: Westview, 1991, p. 39-66. (Tradução de Jordão Horta Nunes).

OLIVEIRA FILHO, José Jeremias de. Patologia e Regras Metodológicas. Estudos Avançados . São Paulo, v, 9, n.23, abril, 1995. p. 263-268.

OLIVEIRA, Vanilda Maria de. Um olhar interseccional sobre feminismos, negritudes, e lesbianidades em Goiás. (Dissertação de mestrado em Sociologia) UFG. FCHF. Departamento de Ciências Sociais. Mestrado em Sociologia, 2006.

MELUCCI, Alberto, A invenção do Presente: movimentos sociais nas sociedades complexas. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 199.

MELUCCI, Alberto, Por uma sociologia reflexiva – pesquisa qualitativa e cultura. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 374.

MILLS, C. Wright, A Elite do Poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

Page 80: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

79

SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice – O social e o polít ico na pós-modernidade. S.Paulo, Cortez, 2003, p.348.

SCHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Soc. estado. [online]. 2006, vol. 21, no. 1 [citado 2008-11-18], pp. 109-130. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922006000100007&lng=pt&nrm=iso >. ISSN 0102-6992. doi: 10.1590/S0102-69922006000100007.

SLORTERDIJK, Peter, O Desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 177

SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros: Identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 272

SOUSA, Alemar Moreira de. O espaço que ousa dizer seu nome: Territórios GLTBS de Goiânia. (Dissertação de Mestrado em Geografia). Goiânia. UFG. IESA, 2005. p. 107

TOURAINE, Alain. Na fronteira dos movimentos sociais. Traduzido por Ana Liési Thurler. Soc. estado . [online]. 2006, vol. 21, no. 1 [citado 2008-11-18], pp. 17-28. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922006000100003&lng=pt&nrm=iso >. ISSN 0102-6992. doi: 10.1590/S0102-69922006000100003.

Page 81: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 82: AÇÃO COLETIVA E MOVIMENTO GLBT EM GOIÂNIAlivros01.livrosgratis.com.br/cp075287.pdf · evidência da ação coletiva, a Parada. Assim, percebeu-se um . 11 alargamento do campo de

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo