16
O Acesso ao Direito e à Justiça, os Direitos Humanos e o Pluralismo Jurídico José Geraldo de Sousa Junior Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília Às vésperas da realização em Brasília, do III Congresso do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal, fui convocado por seus organizadores a responder uma questão que acabou se tornando o tema do evento: “a sociedade pode ser democrática com um Judiciário conservador?”. Para responder a essa pergunta, acabei por formular outra, em termos próximos: “que Judiciário na democracia?”. E o fiz para, com este modo de interpelação, situar-me no debate atual, não só no Brasil, mas em muitos países ocidentais, acerca da reinvenção das instituições democráticas em geral, e do Judiciário em particular, por causa de seu papel estratégico para a mediação de conflitos sociais. No Brasil, notadamente, a partir do importante debate que se instaurou no país na conjuntura aberta com o processo constituinte de 1985-1988, esse tema ganhou grande relevância e foi ele que designou o próprio processo, a ponto de a Constituição que é seu fruto ser denominada “Constituição Cidadã”. Ainda que sejam muitas as críticas a esse processo, e persista a recusa para o reconhecimento da qualificação democrática a ele atribuído, a experiência constituinte deu conta de demarcar a transição do autoritarismo militar pós-1964 para um sistema civil de governo, no qual a possibilidade efetiva de participação popular na experiência de reconstrução das instituições é, de fato, uma marca. Basta ver que a própria noção de participação e de participação direta passa a designar, na concepção constitucional, o modelo de exercício de poder então constituído, com a criação formal de vários instrumentos de participação popular, com a legitimação do protagonismo social e suas estratégias de ação. Hoje, não há quem não reconheça e valorize formas regulamentadas de participação popular, legalizando, em todos os níveis formais de poder, no Legislativo e no Executivo, os processos, os mecanismos e as instituições que realizam o novo modelo de atuação cidadã,

Acesso à Justiça, Direitos Humanos e Pluralismo Jurídico (José Geraldo de Sousa Junior)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Direitos Humanos

Citation preview

  • O Acesso ao Direito e Justia, os Direitos Humanos e o Pluralismo

    Jurdico

    Jos Geraldo de Sousa Junior

    Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Braslia

    s vsperas da realizao em Braslia, do III Congresso do Sindicato dos

    Trabalhadores do Poder Judicirio e do Ministrio Pblico da Unio no Distrito Federal, fui

    convocado por seus organizadores a responder uma questo que acabou se tornando o tema do

    evento: a sociedade pode ser democrtica com um Judicirio conservador?.

    Para responder a essa pergunta, acabei por formular outra, em termos prximos: que

    Judicirio na democracia?. E o fiz para, com este modo de interpelao, situar-me no debate

    atual, no s no Brasil, mas em muitos pases ocidentais, acerca da reinveno das instituies

    democrticas em geral, e do Judicirio em particular, por causa de seu papel estratgico para a

    mediao de conflitos sociais.

    No Brasil, notadamente, a partir do importante debate que se instaurou no pas na

    conjuntura aberta com o processo constituinte de 1985-1988, esse tema ganhou grande

    relevncia e foi ele que designou o prprio processo, a ponto de a Constituio que seu fruto

    ser denominada Constituio Cidad.

    Ainda que sejam muitas as crticas a esse processo, e persista a recusa para o

    reconhecimento da qualificao democrtica a ele atribudo, a experincia constituinte deu

    conta de demarcar a transio do autoritarismo militar ps-1964 para um sistema civil de

    governo, no qual a possibilidade efetiva de participao popular na experincia de

    reconstruo das instituies , de fato, uma marca.

    Basta ver que a prpria noo de participao e de participao direta passa a designar,

    na concepo constitucional, o modelo de exerccio de poder ento constitudo, com a criao

    formal de vrios instrumentos de participao popular, com a legitimao do protagonismo

    social e suas estratgias de ao.

    Hoje, no h quem no reconhea e valorize formas regulamentadas de participao

    popular, legalizando, em todos os nveis formais de poder, no Legislativo e no Executivo, os

    processos, os mecanismos e as instituies que realizam o novo modelo de atuao cidad,

  • International Conference on Law and Justice in the 21st Century

    entendida aqui a cidadania em sentido ativo para incluir, tal como sugere Marilena Chau, a

    possibilidade de colocar no social novos sujeitos autnomos que criam, que se do a si

    prprios, novos direitos.

    Retomando a pergunta bsica: possvel ento, em uma sociedade democrtica, um

    Judicirio conservador? Incapaz, portanto, de assimilar, reinventando-se, formas democrticas

    e participativas de mediao para os conflitos e para o reconhecimento dos direitos novos,

    institudos permanentemente na experincia democrtica?

    A resposta, obviamente, no. No possvel uma democratizao plena da sociedade

    se uma de suas instituies essenciais se conserva como modelo instrumental resistente,

    porque ele se tornar obstculo prpria mudana.

    Esta sem dvida a questo candente hoje, no Brasil, quando se coloca em causa o

    problema da democratizao e se identifica no Judicirio a recalcitrncia que social e terica

    para a realizao de mudanas sociais, conferindo regulamentao jurdica das novas

    instituies o seu mximo potencial de realizao das promessas constitucionais de

    reinveno democrtica.

    Por esta razo, neste campo, graas ao protagonismo de magistrados e operadores do

    Direito, com repercusso em vrios mbitos, polticos, sociais, profissionais e de formao,

    vem se dando um dos mais fortes embates, verdadeiro combate de uma guerra ao mesmo

    tempo de movimento e de posio.

    No fundo, questiona-se, simultaneamente, a partir principalmente do engajamento de

    juzes e operadores do Direito, que se reorganizam em novas entidades dispostas a assumir a

    expresso de suas tenses Associao Juzes para a Democracia, Ministrio Pblico

    Democrtico, Juzes para um Direito Alternativo, Associao de Advogados das Lutas

    Populares presentes nas condies da cultura jurdica de formao desses operadores

    (crtica ao formalismo e ao modelo epistemolgico conformista do ensino jurdico) e na

    exigncia de redefinio de sua funo social (operadores do direito para qu e para quem).

    No livro do qual fui um dos organizadores (tica, Justia e Direito. tica, Justia e

    Direito. Reflexes sobre a Reforma do Judicirio, Pe. Jos Ernanne Pinheiro, Jos Geraldo de

    Sousa Junior, Melillo Dinis e Plnio de Arruda Sampaio (orgs), Editora Vozes/CNBB,

    Petrpolis, 2 edio, 1996), cuidou-se de enfrentar essa questo, vale dizer, a de que o Direito

    (2) Coimbra, 29 to 31 May 2003

  • Colquio Internacional - Direito e Justia no Sculo XXI

    e o sistema judicirio tm tambm que se transformar no processo paradigmtico que envolve

    as instituies sociais e os sistemas de poderes.

    Seno, como designar as contraposies entre o Direito oficialmente institudo e

    formalmente vigente e a normatividade emergente das relaes sociais? Como distinguir entre

    a norma abstrata e fria das regras que regem comportamentos e a normatividade concreta

    aplicada pelos juzes? Como recepcionar e compreender as novas condies sociais, a

    emergncia de novos sujeitos de direitos, valorizando o pluralismo jurdico efetivo que

    permeia essas relaes?

    A falta de compreenso dessas condies tem sido fator de incremento crise no

    campo da Justia, a ponto de se configurar a situao dramtica a que aludia Boaventura de

    Sousa Santos, em seus estudos pioneiros nesse tema (Pela Mo de Alice. O Social e o

    Poltico na Ps-Modernidade, Biblioteca das Cincias Humanas, Edies Afrontamento,

    Porto, 2 edio, 1994; Os Tribunais nas Sociedades Contemporneas. O Caso Portugus,

    com Maria Manuel Leito Marques, Joo Pedroso e Pedro Lopes Ferreira, Centro de estudos

    Sociais e Centro de Estudos Judicirios, Edies Afrontamento, Porto, 1996), segundo o qual,

    sem abrir-se a esse franco questionamento, sem confrontar os pressupostos formalistas de sua

    cultura legalista e sem submeter a uma reviso os fundamentos polticos e democrticos de

    seu papel e de sua funo social, o Judicirio faz da lei uma promessa vazia.

    Essas questes ganharam relevo quando se ps em discusso no Brasil o projeto de

    emenda Constituio com o intuito de introduzir modificaes na estrutura do Poder

    Judicirio (PEC n 29/00 e n 96-A/92). Em conseqncia de um grande debate nacional ento

    promovido, o tema alcanou repercusso e mobilizou muitos setores da vida poltica do pas,

    acabando por inseri-lo na agenda das grandes questes nacionais.

    Assim, a criao de um Conselho Nacional de Justia para o controle da atuao

    administrativa e financeira do Poder Judicirio e do cumprimento dos deveres funcionais dos

    juzes, abrindo o Judicirio a um acompanhamento externo, menos corporativo, com

    possibilidade de fixao de responsabilidades por desdia e m prestao jurisdicional, se

    tornaram novidades que colocaram um ramo do poder at ento inatingvel sob o processo

    democrtico de controle social. Da mesma maneira, a previso de ouvidorias, de juizados

    especiais, de rgos de conciliao, mediao e arbitragem, sem carter jurisdicional, de

    Coimbra, 29 a 31 de Maio de 2003 (3)

  • International Conference on Law and Justice in the 21st Century

    jurisdies itinerantes, foram estratgias propostas para facilitar o acesso Justia, com

    ampliao do controle social do poder.

    Outras indicaes de ordem tcnica, entre as quais a pretenso de atribuir efeito

    vinculante s decises definitivas de mrito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas

    aes diretas de insconstitucionalidade e nas aes declaratrias de constitucionalidade,

    relativamente aos demais rgos do Poder Judicirio e administrao pblica direta e

    indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, e a criao de smulas para esse mesmo

    efeito sobre matrias de sua deciso, mostraram a resistncia do sistema para abrir-se ao

    pluralismo jurdico que permeia o social, fechando-se num monoplio que aprisiona o Direito

    ao conformismo poltico da cpula do poder.

    Seja como for, a reforma inviabilizou-se com o esgotamento da fora poltica que

    sustentava o governo que tentou promov-la. Agora, um novo governo, com invejvel suporte

    popular repe o tema, em um recomeo de discusso de seus pressupostos. De fato, a

    insofismvel manifestao do eleitorado brasileiro, numa votao recorde para a escolha do

    Presidente da Repblica, carreou para a proposta de governo liderada pelo Presidente eleito

    Luiz Incio Lula da Silva, apoio e mobilizao populares irresistveis.

    Isso explica, em grande parte, a rpida convergncia poltica para a constituio de

    uma base de sustentao, capaz de assegurar, ao menos na fase atual de instalao do

    governo, condies de implementao de reformas estruturais e de polticas pblicas com

    forte contedo transformador das relaes econmicas e sociais do Brasil, inquas e

    causadoras de excluso.

    No plano poltico, portanto, so visveis a movimentao de lideranas e as

    manifestaes de rgos de formao de opinio, para uma identificao, com fora de

    carisma, entre eleito e eleitores, em direo a esse consenso de mudana. Tanto mais quanto

    as declaraes do Presidente, destacando urgncias de atendimento s carncias elementares

    que afligem a maioria excluda da populao, resgatam a disposio solidria para a

    reconstruo republicana e democrtica da cidadania e dos direitos.

    Os sinais que partem do novo governo, sob a liderana inconteste de Luiz Incio Lula

    da Silva, apontam para um cenrio de grandes transformaes. Mas estas somente sero

    possveis na medida da disponibilidade mediadora de um sistema judicirio apto a

    (4) Coimbra, 29 to 31 May 2003

  • Colquio Internacional - Direito e Justia no Sculo XXI

    compreender a correspondncia jurdica concretizadora das propostas do novo governo. Que

    comportamento pode se esperar do Judicirio nessa conjuntura?

    Em outro tempo e contexto, mas com alguma proporo, logo se evoca o tremendo

    obstculo que o Judicirio norte-americano representou para o governo Roosevelt e seu

    projeto de superao da grande depresso, com a poltica do New Deal , expressa em um

    Novo Contrato. Esta poltica, assentada em programas de emprego, esbarrou nos interesses

    dos financistas e na ganncia especulativa das operaes da Bolsa, salvaguardados por

    decises judicirias conservadoras.

    Como Roosevelt, Lula teve a chance, logo de sada, de alterar a composio do

    Supremo Tribunal Federal, redefinindo posies mais sensveis direo de mudana. Alis,

    j comeou a faze-lo, explicitando escolhas demarcadas por recortes de ao afirmativa, como

    a indicao pela primeira vez, de um Ministro negro, identificado pelo apoio de organizaes

    de militncia em favor da causa emancipatria e anti-racista dos movimentos negros.

    Entretanto, essa disposio localizada no ser suficiente para reorientar o

    comportamento do Judicirio brasileiro, atualmente no epicentro de uma virada de

    posicionamento que est na base das discusses que conduzem sua reforma constitucional.

    Em seminrio organizado pela CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil - e

    que resultou no livro antes mencionado, salientou-se a necessidade de um caminho alternativo

    ao neoliberal fundado num sistema de justia organizado sobre o pressuposto da tica

    mercatria para pensar um sistema de prestao jurisdicional fundado em uma tica da

    liberdade e da solidariedade. Nesta hiptese, apontava-se, a luta pela implantao de um

    sistema tico de prestao jurisdicional formar parte de uma srie de lutas destinadas a

    repartir melhor a riqueza; a estender a cidadania e o seu efetivo exerccio a todos os

    habitantes; a conseguir as condies objetivas de soberania e autonomia para organizar a

    produo econmica nacional em funo dos interesses de todo o povo.

    O pano de fundo dessa alternatividade projetou-se para o contexto do debate eleitoral

    que precedeu a eleio de Lula, e concentrou-se no tema das reformas estruturais para o pas.

    Assunto, alis, de discusso delicada porque envolve tambm a questo da remodelagem do

    Estado, que ganhara centralidade nos anos 1990 sob o impulso de sua crise funcional,

    considerando o impacto representado pelo processo de globalizao.

    Coimbra, 29 a 31 de Maio de 2003 (5)

  • International Conference on Law and Justice in the 21st Century

    Prevaleceu nesse processo, marcado por uma estratgia de privatizaes das agncias

    estatais de desenvolvimento e de ajuste de contas pblicas, uma plataforma de enxugamento

    das atividades do Estado em reas sociais e de gesto de direitos, em nome de uma pretensa

    eficincia de governo e da lgica de reconstruo do Estado para poder fazer frente s novas

    realidades do mercado mundializado. O custo desse processo foi a prevalncia, nas reformas,

    de elementos econmicos e polticos que suplantaram a sua dimenso social e humana.

    A fora operante dessa orientao hegemonista abateu-se com impacto demolidor e

    com conseqncias cruis exatamente sobre a infraestrutura do sistema de proteo social,

    erigido nas quadras antecedentes por esforos de superao das desigualdades, mediadas pela

    ao equilibrada do Estado e de interveno mediadora de seu aparato judicirio.

    A virada privatizante veio em avalanche. A sua forma mais ostensiva, apoiada em

    plataforma vitoriosa de um governo neoliberal, foi a venda de estatais para empresas

    nacionais e estrangeiras. A sua forma mais perversa foi a paulatina ocupao de espaos por

    grupos privados, que mercantilizaram os servios previdencirios, de sade e de educao.

    Em suma, uma poltica desestruturante e desfuncional das instituies, que canibalizou as

    resistncias e as aspiraes sociais em contradio com ela.

    O imperativo atual o de rejeio lgica de excluso que a globalizao imprime e

    que impulsionada por critrios exclusivamente polticos e econmicos, conduzindo ao

    sacrifcio da experincia democrtica. E que, conseqentemente, leva precarizao alienante

    da prpria vida e flexibilizao do trabalho, com a perda do humano inscrito no carter dos

    investimentos competitivos de um capital sem fronteiras e sem limites.

    para esta nota social, a que est atento o debate nacional, no sentido de recuperar a

    dimenso tico-social das reformas estruturais para o pas. Ou seja, procurar inserir, enquanto

    proposies transformadoras das instituies, na sociedade e no Estado, valores que

    organizem os princpios de cooperao, solidariedade e participao, por meio dos quais se

    oponha, quela lgica excludente e alienante sustentada no primado da acumulao, a

    disposio democrtica baseada no primado de eqitativa distribuio.

    Algumas condies, entretanto, so vitais para essa virada. Em um instigante artigo

    acerca da ultrapassagem do que chama dilvio neoliberal, Boaventura de Sousa Santos

    (Depois do Dilvio Neoliberal, O Estado de So Paulo, 30/09/96, A2) alude importncia,

    nessa etapa, da necessidade de reconstruo do movimento operrio e de figurar um lugar de

    (6) Coimbra, 29 to 31 May 2003

  • Colquio Internacional - Direito e Justia no Sculo XXI

    futuro para o sindicalismo, na medida em que os sindicatos souberem ser os sindicatos do

    futuro.

    Enquanto reconstruo democrtica que se siga devastao neoliberal, o caminho

    que Boaventura de Sousa Santos indica ao sindicalismo o do aprendizado da defesa dos

    trabalhadores e, igualmente, da defesa dos desempregados, dos trabalhadores formais e dos

    informais, dos homens e das mulheres, dos brancos e dos negros, em suma, a defesa

    simultnea da corporao e dos que foram excludos do processo neoliberal, o que significa,

    para o autor, caminhar junto com os que caminham mais devagar, estar na vanguarda da

    cidadania, sem ser a vanguarda da cidadania.

    verdade, Boaventura diz em outro texto (Reinventar a Democracia, Cadernos

    Democrticos 4, Fundao Mario Soares, Gradiva Publicaes Lda, Lisboa, 1998), que foi o

    trabalho o fator determinante para inscrever na experincia histrica de fundao da

    modernidade o lugar do direito e o seu primado, a partir do que chamou consenso

    democrtico liberal, para concretizar as expectativas de incluso social.

    De fato, o trabalho desempenhou nesse processo, sobretudo por meio do protagonismo

    sindical, o papel de liderana para a instaurao de vias de acesso cidadania, estendendo aos

    trabalhadores, com suas lutas histricas, os direitos civis, polticos e inclusive os direitos

    econmicos e sociais, como o prprio direito do trabalho, resultado direto do agir coletivo dos

    trabalhadores.

    Contudo, num contexto de crescente globalizao de mercados, que permite criar

    riqueza sem criar empregos, a eroso conseqente dos direitos, combinada com o aumento do

    desemprego estrutural, acaba levando os trabalhadores perda contnua de seu estatuto de

    cidadania.

    Trata-se de uma realidade na qual se aprofunda o que Boaventura de Sousa Santos, ele

    chama lgica de excluso, gerando precariedade de vida, quando ento o trabalho deixa

    cada vez mais de sustentar a cidadania e, vice-versa, esta deixa cada vez mais de sustentar o

    trabalho: ao perder o seu estatuto poltico de produto e produtor da cidadania, o trabalho

    reduz-se penosidade da existncia, quer quando existe, quer quando falta. por isso que o

    trabalho, apesar de dominar cada vez mais as vidas das pessoas, est a desaparecer das

    referncias ticas que sustentam a autonomia e auto-estima dos sujeitos.

    Coimbra, 29 a 31 de Maio de 2003 (7)

  • International Conference on Law and Justice in the 21st Century

    Ora, os efeitos desastrosos desse processo, se deixam insensveis os agentes polticos

    que conduzem a gesto neoliberal, mesmo diante da agudizao do quadro de pobreza

    (lenincia do FMI diante da crise da Argentina, por exemplo), pem em causa a fragilizao

    dos mecanismos de governabilidade, apontando para seus limites, no superados por

    estratgias meramente compensatrias.

    Abre-se, pois, um claro campo de possibilidades para a reconstruo solidria de

    alternativas que permitam reinscrever no processo de investimento competitivo, o sentido

    humano que dele se alienara a partir dos fenmenos de flexibilizao e de precarizao que

    retiram o trabalho de seu contexto social de centralidade.

    Trata-se a de fazer coro a melhor direo de expectativas que decorrem das condies

    de redescoberta democrtica do trabalho, na perspectiva de um novo horizonte de sentido para

    a globalizao, inserindo-a na luta articulada no apenas pelo emprego, pelos direitos, seno

    pelos direitos humanos. De fato, como acentua Boaventura de Sousa Santos, necessrio

    desenhar um novo e mais arrojado arco de solidariedade adequado s novas condies de

    excluso social e s formas de opresso existentes nas relaes na produo extravasando

    assim o mbito convencional das reivindicaes sindicais, ou seja, nas relaes de

    produo.

    Esta, sem dvida, a questo candente em nosso pas para a realizao de mudanas

    sociais, que requerem conferir regulao jurdica das novas instituies o seu mximo

    potencial de realizao das promessas polticas e constitucionais de reinveno democrtica e

    solidria.

    Nessa redescoberta democrtica se inserem relaes de sociabilidade, na perspectiva

    de um novo horizonte para a ao poltica, inscrevendo-a na luta articulada no apenas por

    reformas institucionais, seno por reformas que sejam mediadas pelo eixo dos direitos. Mais

    propriamente, pelo eixo dos direitos humanos.

    Esta questo tanto mais importante quanto ela aponta para o problema, por exemplo,

    da seletividade e da pouca transparncia da Justia, principalmente quando o que est em

    causa o enquadramento jurdico dos conflitos sociais. Neste aspecto, mais claramente

    transparece uma impresso que corriqueira, isto , a da limitao institucional para lidar

    com os movimentos sociais em geral e o movimento sindical e suas reivindicaes.

    (8) Coimbra, 29 to 31 May 2003

  • Colquio Internacional - Direito e Justia no Sculo XXI

    Nessas situaes, a falta de percepo do conflito como necessrio mudana social

    acaba provocando intervenes, inclusive judiciais, que resultam em criminalizar o prprio

    conflito e cristalizar o domnio de grupos e de prticas cujo anacronismo j encontraram o seu

    limite histrico.

    Tm se tornado freqentes no Brasil e tambm no mundo, imagens divulgadas pela

    mdia, de trabalhadores, principalmente trabalhadores rurais, algemados, jogados de bruos no

    cho, sob o taco policial. Presos e com a cara na lama foi a manchete de um jornal em

    Braslia, por ocasio da priso de 16 membros do Movimento Social dos Trabalhadores

    Rurais Sem Terra quando o MST ocupou fazenda de filhos do ex-Presidente da Repblica

    Fernando Henrique Cardoso numa ao para demarcar posicionamento sobre o ritmo da

    reforma agrria em curso no pas. As fotos traduziam em relao a um movimento que o

    intelectual brasileiro Celso Furtado caracterizou como o mais importante do sculo XX, as

    imagens fortes de uma atitude estratgica j h tempos delineada, de criminalizao dos

    movimentos sociais.

    Na esteira da ao dos movimentos, cuja presena social ativa inscreveu no imaginrio

    poltico do pas, com a Constituinte de 1988, a idia de democracia participativa, o Brasil

    revitalizou-se, abrindo-se a uma interlocuo sem precedentes em sua histria, que mesmo os

    governos conservadores que se seguiram ao regime militar nunca deixaram de reconhecer,

    todos eles tendo ensaiado a idia de estabelecer pactos sociais.

    Mesmo diante de tenses graves, prprias ao aprendizado democrtico, essa

    interlocuo procurou guiar-se pela mediao poltica, e seus momentos mais agudos foram

    sempre reconhecidos como pertinentes dinmica da luta por direitos, enquanto redesignao

    de uma cidadania ativa.

    As Cincias Polticas e Sociais e tambm o Direito puderam, assim, incorporar a

    novidade da participao, e nesse contexto a cidadania passou a ser avaliada no seu modo

    protagonista, redefinida nos termos propostos por Marilena Chau (A OAB, a Sociedade e o

    Estado, Conferncia Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Anais, Belo Horizonte,

    1990).

    Dentre os movimentos sociais, cuja presena criadora no espao da poltica, mais

    lograram constituir novos direitos, mobilizados numa perspectiva de pluralismo jurdico e

    Coimbra, 29 a 31 de Maio de 2003 (9)

  • International Conference on Law and Justice in the 21st Century

    pelo impulso solidrio dos direitos humanos, foi o MST o que mais realizou essa conscincia

    participacionista da qual resultaram direitos novos como o direito terra e o direito moradia.

    Ao longo dos ltimos anos, o MST no apenas tornou visvel socialmente a sua

    identidade de sujeito coletivo capaz de criar direitos, como venho designando (Movimentos

    Sociais. A Emergncia de Novos Sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direito, Conferncia

    Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Anais, Belo Horizonte, 1990; Srie o Direito

    Achado na Rua, vol. 1, Introduo Crtica ao Direito, Editora UnB, Braslia, 1 edio, 1987;

    vol. 2, Introduo Crtica ao Direito do Trabalho, Editora UnB, Braslia, 1993; vol. 3,

    Introduo Crtica ao Direito Agrrio, Editora UnB, Braslia, 2002; Sociologia Jurdica:

    Condies Sociais e Possibilidades Tericas, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre,

    2002), como logrou angariar o reconhecimento de sua capacidade instituinte para o

    estabelecimento de novas prticas sociais e polticas. E, no bojo desse processo, ganhou uma

    autonomia de interveno que acabou por transform-lo num ator poltico singular, em

    condies de exercitar a crtica como oposio a toda forma de pensamento e de ao

    hegemonistas.

    Porm, mesmo em conjuntura de pensamento nico, de adeso compulsria e de

    recusa a toda forma de oposio, o MST conseguiu galvanizar uma concordncia, inclusive

    hermenutica, em alguns editoriais e em muitas homilias de uma teologia ainda solidria com

    a pobreza, chegando a tocar a tradio mais renitente, a jurdica, sobre o sentido legitimvel

    de sua estratgia de realizao de valores constitucionais, quando os prprios tribunais

    passaram a reconhecer o significado jurdico de sua ao.

    Ainda agora, quando a reorientao da ao de governo, com base popular, instala

    novamente a poltica como fundamento da relao entre Estado e Sociedade, permanece

    difusa a convico de muitos setores, a inteno de desqualificar o agir dos movimentos

    sociais e de fazer recrudescer o esforo de criminaliz-los. No se trata de pr-julgar as

    opes adotadas por esses movimentos porque isso se insere na esfera de sua autonomia. O

    cuidado de no perder de vista o sentido poltico dessa ao, a qual necessariamente tem

    que ser compreendida por quem governa, de modo a agir no espao pblico da poltica, nico

    mbito em que se pode avaliar a legitimidade das aes.

    Nessa esfera, em que se adestra a disposio republicana para a interlocuo prpria

    de sociedades efetivamente democrticas, tambm o Judicirio realiza um aprendizado que o

    (10) Coimbra, 29 to 31 May 2003

  • Colquio Internacional - Direito e Justia no Sculo XXI

    auxilia a reconhecer situaes cotidianas de conflitos que s por serem conflitos no so por

    definio criminalizveis.

    Desse aprendizado se extraem as energias emancipatrias que animam internamente o

    prprio Judicirio, que passa a ter, em novo cenrio poltico de forte consenso transformador,

    a oportunidade histrica para dirigir os esforos de superao de sua crise para tambm se

    transformar conforme os fundamentos da solidariedade tica de reorganizao da sociedade

    indicados pelo eleitorado brasileiro.

    O que se cuida agora, no perder de vista o sentido dialgico impresso pela

    democracia a todo processo institucional. Como lembra J.J. Gomes Canotilho (Direito

    Constitucional e Teoria da Constituio, Editora Almedina, Coimbra, 1998), Este impulso

    dialgico e crtico que hoje fornecido pelas teorias polticas da Justia e pelas teorias

    crticas da sociedade garantia democrtica sem a qual o prprio Direito Constitucional

    resta definitivamente prisioneiro de sua aridez formal e do seu conformismo poltico.

    Para conduzir e organizar essa discusso e organiz-la foi criada, no mbito do

    Ministrio da Justia , uma Secretaria Especial de Reforma do Judicirio. Trata-se, assim, de

    ampliar as possibilidades de compreenso e de explicao dos problemas fundamentais que

    esto na base das instituies de acesso Justia para que elas possam agir, conforme

    orientao do Prof. Canotilho ao Direito Constitucional, mas que se presta tambm a esse

    tema: com o olhar vigilante das exigncias do direito justo e amparadas num sistema de

    domnio poltico-democrtico materialmente legitimado.

    Referidas ao Judicirio, estas exigncias mobilizam o seu aparato para novas

    intervenes que se mostrem aptas, no apenas funcionalmente, no sentido de sua

    modernizao, mas a conferir definies jurdicas diferentes, a situaes-limite de litgios, e,

    deste modo, interpretar demandas de transformao social.

    Um exemplo ilustra essa disposio. Em julgamento de Habeas Corpus (n 4.399-

    SP), em que foram pacientes Diolinda Alves de Souza e outras lideranas do Movimento

    Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Superior Tribunal de Justia (STJ)

    concedeu a liberdade aos pacientes presos, pondo em relevo, a partir de voto condutor da

    deciso, que as chamadas instncias formais de controle de criminalidade esto sujeitas

    posio poltica, econmica e social da pessoa. A deciso assumiu ento uma disposio

    descriminalizadora, em perspectiva democrtica emancipatria, ao ponderar judiciosamente a

    Coimbra, 29 a 31 de Maio de 2003 (11)

  • International Conference on Law and Justice in the 21st Century

    condio prejudicial na qual se encontravam os pacientes e ao reconhecer que as chamadas

    classes sociais menos favorecidas no tm acesso poltico ao governo, a fim de conseguir

    preferncia na implantao de programa posto na Constituio da Repblicae que portanto,

    no pode ser considerado esbulhador aquele que ocupa uma terra para fazer cumprir a

    promessa constitucional da reforma agrria.

    Realizar a promessa democrtica inserida na Constituio desafio que se pe para o

    Judicirio e responder a esse desafio implica recriar-se em sua forma e no seu agir terico e

    poltico.

    Desde logo se coloca a sua disposio para tratar o tema de sua reforma no como

    questo interna corporis, mas como assunto de interesse geral da sociedade. A primeira

    sinalizao do novo governo no sentido de alargar o campo de interlocuo sobre a reforma

    do Judicirio, deu-se na direo de interromper o processo em curso, abandonando a proposta

    atualmente em debate no Congresso Nacional, para reabrir a discusso com a sociedade, em

    outras bases.

    Est em causa, considerando as muitas resistncias levantadas contra o projeto, a

    recusa a uma reforma que assumia claramente um carter tecnocrtico do sistema judicial,

    incapaz de responder s aspiraes democrticas da cidadania e conduzida por uma lgica

    modernizadora orientada por interesses de agentes econmicos com poderosas ramificaes

    nas suas estruturas globalizadas.

    A nova agenda para o debate coloca a oportunidade para redefinir os termos e os

    temas relevantes para uma adequada deliberao. E, uma questo que em geral fica de fora,

    fundamental para orientar a discusso. De nada valer a modernizao do sistema se, ao

    mesmo tempo, no se atualizarem os paradigmas de realizao do Direito e a renovao da

    cultura de formao de seus operadores.

    Para lembrar Marx, numa de suas teses famosas (contra Feuerbach), pretender serem

    os homens produtos das circunstncias e da educao (e conseqentemente, que os homens

    transformados sejam produtos de outras circunstncias e de uma educao diferente),

    esquecer que so precisamente os homens que transformam as circunstncias e que o prprio

    educador tem necessidade de ser educado.

    Uma das constataes mais evidentes durante a dcada de 1990 que precede o debate

    em torno da questo do Judicirio, e do esgotamento de seu modelo de organizao, foi a

    (12) Coimbra, 29 to 31 May 2003

  • Colquio Internacional - Direito e Justia no Sculo XXI

    dupla crise que alcanou a atividade do jurista e do operador do Direito . De um lado, uma

    crise de conhecimento, traduzida na perda de confiana epistemolgica acerca dos paradigmas

    de sua formao, excessivamente legalista e formal, que se manifestou no ensino jurdico. De

    outro lado, uma crise de legitimidade para atuar como mediador eficaz para a soluo de

    tenses decorrentes de uma explosividade de conflitos sem precedente, gerando uma perda de

    confiana em relao funo social desses operadores, despreparados para sequer

    compreend-los.

    A melhor traduo desse processo, no primeiro aspecto, foi a formulao que lhe

    atribuiu Roberto Lyra Filho (O Que Direito, Coleo Primeiros Passos, Editora

    Brasiliense, So Paulo, 1 edio, 1982; O Direito que se Ensina Errado, Editora Obreira,

    Braslia, 1980), falando de um direito que se ensina errado, no duplo aspecto por ele

    considerado, como ensino do Direito em forma errada e como errada concepo do Direito

    que se ensina. Da ele lembrar, muito a propsito, que se o primeiro aspecto se refere a um

    vcio de metodologia; o segundo, viso incorreta dos contedos que se pretende ministrar,

    ambos permanecem vinculados, uma vez que no se pode ensinar bem o Direito errado; e o

    Direito, que se entende mal, determina, com esta distoro, os defeitos da pedagogia.

    Foi na medida de lanar desafios em direo a um direito achado na rua, como

    possibilidade de estabelecer parmetros que pudessem nortear, conceitual e politicamente,

    uma educao jurdica e uma reinstitucionalizao em trnsito para uma democracia solidria

    e participativa, que se tornou possvel fazer a crtica organizao do sistema de Justia e s

    diretrizes curriculares do ensino do Direito. Entretanto, por trs dessa reorientao encontra-se

    uma disposio epistemolgica que arma o conhecimento sociolgico para a compreenso da

    formao dos ordenamentos jurdicos.

    Na apresentao que fazem ao livro por eles organizado (Sociologia & Direito.

    Textos Bsicos para a Disciplina Sociologia Jurdica, Editora Pioneira, 2 edio atualizada,

    So Paulo, 1999), Cludio Souto e Joaquim Falco reivindicam para o conhecimento scio-

    jurdico uma distino relativa ao conhecimento jurdico-dogmtico para atribuir ao primeiro

    a pretenso de fazer avanar um processo de desideologizao da realidade jurdica e a

    partir da, abrir caminhos epistemolgicos para o encontro desejvel do direito positivo

    com a realidade.

    Coimbra, 29 a 31 de Maio de 2003 (13)

  • International Conference on Law and Justice in the 21st Century

    De fato, os estudos desses autores, contribuiram para o adensamento do conhecimento

    scio-jurdico aos poucos inserido no sistema curricular das Faculdades de Direito, a partir da

    dcada de 1970, e tiveram sempre a preocupao de superar a crise do direito entendida

    como a distncia que tem separado o direito positivo da realidade, dos fatos sociais.

    Com o rigor epistemolgico caracterstico de suas abordagens, esses autores fizeram

    aproximaes relevantes para o desenvolvimento de concepes sociolgicas do Direito,

    desde a busca de uma substantivao cientfica do campo, de uma ordenao metodolgica

    dos procedimentos empricos de suas pesquisas at as classificaes dos fenmenos

    constitudos pelos procedimentos e desempenhos dos operadores jurdicos que formam a

    prxis do Direito tal como ele praticado no cotidiano das organizaes e instituies.

    Puderam eles, assim, com seus trabalhos, indicar categorias e instrumentos para a anlise e

    avaliao de conceitos e/ou proposies sobre os processos de consenso, competio e

    conflito entre indivduos, grupos sociais em particular, possibilitando uma correspondente

    explicao de fundo emprico e histrico e fornecendo instrumental conceitual e

    metodolgico capaz de diagnosticar essa distncia, donde estabelecem-se as bases, ou de sua

    superao racional, ou da permanncia ideolgica da distncia.

    Numa outra vertente de estudos pioneiros para a constituio do campo sociolgico-

    jurdico e para o conhecimento da formao dos ordenamentos jurdicos, Roberto Lyra Filho

    vai retomar a anttese ideolgica que interfere e aprofunda o distanciamento entre Direito e

    realidade social, a partir da aporia entre os principais modelos de ideologia jurdica em que

    esta anttese se apresenta, isto , a oposio entre jusnaturalismo e juspositivismo, para

    sustentar que o impasse s se dissolver quando, no processo histrico-social se encontrar o

    parmetro para a determinao prpria do Direito.

    Para ele, incumbe Sociologia procurar no processo histrico-social o aspecto

    peculiar da prxis jurdica: na historicidade no meramente factual, porm com balizamento

    cientfico, sem esquemas ou modelos previamente designados, para estabelecer as conexes

    necessrias entre fatos relevantes, seguindo uma hiptese de trabalho e suas constantes

    verificaes metdicas (fenmenos hiptese de trabalho verificao ante os fenmenos

    reajuste das hipteses)

    Cuida-se, pois, de uma Sociologia Histrica, porque Sociologia a disciplina

    mediadora, que constri sobre o acmulo de fatos histricos, os modelos, que os organizam;

    (14) Coimbra, 29 to 31 May 2003

  • Colquio Internacional - Direito e Justia no Sculo XXI

    enquanto a Histria registra o concreto-singular, a Sociologia o aborda na multiplicidade

    generalizada em modelos, segundo traos comuns(O que Direito, cit.), que, aplicada ao

    Direito, tornar possvel esquematizar os pontos de integrao do fenmeno jurdico na vida

    social, bem como perceber a sua peculiaridade distintiva, integrada a uma estrutura de

    ordenao.

    Neste ponto Lyra Filho oferece a distino singular, uma vez que todos os demais

    autores empregam indistintamente as expresses Sociologia Jurdica e Sociologia do

    Direito, mas que, segundo ele, representam duas maneiras de ver as relaes entre Sociologia

    e Direito, constituindo, portanto, abordagens diferentes, apesar de interligadas, num

    intercmbio constante. Assim, diz ele, falamos em Sociologia do Direito, enquanto se estuda

    a base social de um direito especfico, e se faz a anlise, por exemplo, de como o direito

    positivo oficial reflete a sociedade na qual se aplica; j a Sociologia jurdica, por outro lado,

    seria o exame do Direito em geral, como elemento do processo sociolgico, em qualquer

    estrutura dada, de tal sorte que lhe pertence, por exemplo, o estudo do Direito como

    instrumento, ora de controle, ora de mudana sociais.

    base dessa distino Lyra Filho traz para a Sociologia Jurdica, a modelagem

    inserida por Ralf Dahrendorf para determinar as suas posies fundamentais, identificadas nos

    modelos de estabilidade, harmonia e consenso e de mudana, conflito e coao e

    procura oferecer uma posio de sntese dialtica, dirigida compreenso da formao dos

    ordenamentos jurdicos que capte o Direito no processo histrico de atualizao da Justia

    Social, segundo padres de reorganizao da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais

    do homem.

    A anlise dos ordenamentos jurdicos, portanto, luz desses padres, insere a sua

    problemtica na mesma ordem de fenmenos j examinados por Boaventura de Sousa Santos

    (ver por ltimo, A Crtica da Razo Indolente: Contra o Desperdcio da Experincia, Cortez

    Editora, So Paulo, 2000), a partir de sua considerao acerca do pluralismo jurdico e dos

    modelos de interlegalidades que nele se fundamenta. Sousa Santos, de fato, designa as

    porosidades de diferentes ordens jurdicas, contrapondo-se viso de unidade de

    ordenamentos, que obrigam a constantes transies e transgresses, referidas a prticas sociais

    emancipatrias, nas quais as transgresses concretas so sempre produto de uma negociao e

    de um juzo poltico, mediados pelos direitos humanos. Compreender, pois, a estrutura de um

    Coimbra, 29 a 31 de Maio de 2003 (15)

  • International Conference on Law and Justice in the 21st Century

    (16) Coimbra, 29 to 31 May 2003

    ordenamento como unidade hierarquizada de uma ordem jurdica sujeita a um monoplio de

    jurisdio, ou design-la a partir da competitividade de padres em permanente negociao,

    resulta, em todo caso, em opo terica e poltica de reconhecimento da validade e da

    legitimidade normativa desse modo produzida.

    Compreende-se, assim, porque Roberto Lyra Filho passa a entender o Direito como

    modelo de legtima organizao social da liberdade. Mas o que significa isso? Conforme ele

    indica, o direito se faz no processo histrico de libertao enquanto desvenda precisamente

    os impedimentos da liberdade no-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados

    e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos

    autnticos (isto , atendendo ao ponto atual mais avanado de conscientizao dos melhores

    padres de liberdade em convivncia), quanto produtos falsificados (isto , a negao do

    direito do prprio veculo de sua efetivao, que assim se torna um organismo canceroso,

    como as leis que ainda por a representam a chancela da iniqidade, a pretexto da

    consagrao do direito).

    O Direito Achado na Rua, expresso criada por Roberto Lyra Filho, ttulo que

    designa um projeto de pesquisa e um programa de capacitao de operadores de Direito, sob

    minha direo, quer ser, exatamente, reflexo sobre a atuao jurdica dos novos sujeitos

    coletivos, expresso de identidade dos movimentos sociais e de suas experincias para a

    criao de direitos, enquanto possibilidade: 1) de determinar o espao poltico no qual se

    desenvolvem as prticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; 2) de definir

    a natureza jurdica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto poltico de transformao

    social e de elaborar a sua representao terica como sujeito coletivo de direito; 3) de

    enquadrar os dados derivados destas prticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas

    categorias jurdicas.