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423 Disponível em www.scielo.br/paideia Paidéia set.-dez. 2012, Vol. 22, No. 53, 423-432. doi:http://dx.doi.org/10.1590/1982-43272253201314 Artigo Adaptação e Validação de Instrumentos Psicológicos entre Culturas: Algumas Considerações 1 Juliane Callegaro Borsa 2 Bruno Figueiredo Damásio Denise Ruschel Bandeira Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil Resumo: A adaptação de instrumentos psicológicos é um processo complexo que requer elevado rigor metodológico. Por não haver consenso na literatura sobre suas etapas, o presente artigo discute alguns aspectos essenciais concernentes à adaptação transcultural de instrumentos psicológicos e propõe diretrizes aos pesquisadores sobre os diferentes passos desse processo. São apresentadas, também, algumas considerações referentes à validação do instrumento adaptado. Nesta etapa, são discutidos os aspectos referentes à estrutura fatorial do instrumento, a qual requer avaliação por meio de procedimentos estatísticos, como análises fatoriais exploratórias e confirmatórias, sendo fornecidas algumas diretrizes gerais para a validação de instrumentos psicológicos em diferentes culturas. Palavras-chave: tradução, adaptação, testes psicológicos, psicometria Cross-Cultural Adaptation and Validation of Psychological Instruments: Some Considerations Abstract: The adaptation of psychological instruments is a complex process that requires a high methodological rigor. Because there is no consensus in the literature about its steps, this article discuss some essential aspects regarding the cross- cultural adaptation of psychological instruments and proposes guidelines to the researchers about the different steps of this process. Some considerations regarding the validation of the adapted instrument are also presented. In this stage, we discuss some aspects regarding the factorial structure of the instrument, which might be evaluated through statistical procedures, such as exploratory and confirmatory factor analysis. More than that, the authors provide some guidelines to the validation of psychological instruments in different cultures. Keywords: translating, adaptation, psychological testing, psychometrics Adaptación y Validación de Instrumentos Psicológicos entre Culturas: Algunas Consideraciones Resumen: La adaptación de instrumentos psicológicos es un proceso complejo que requiere bastante rigor metodológico. Ya que no hay consenso sobre sus etapas, el presente artículo discute algunos aspectos esenciales sobre la adaptación transcultural de instrumentos psicológicos y propone directrices a los investigadores sobre los diferentes pasos de este proceso. Son presentadas, también, algunas consideraciones referentes a la validación del instrumento adaptado. En esta etapa, son discutidos aspectos referentes a la estructura factorial del instrumentos, la cual debe ser evaluada mediante procedimientos estadísticos como el análisis factorial exploratorio y confirmatorio. Además, se incluyen algunas directrices para la validación de instrumentos psicológicos en culturas diversas. Palabras clave: traducción, adaptación, testes psicológicos, psicometría A adaptação de instrumentos psicológicos é uma tarefa complexa, que exige planejamento e rigor quanto à manu- tenção do seu conteúdo, das suas características psicométri- cas e da sua validade para a população a quem se destina (Cassepp-Borges, Balbinotti, & Teodoro, 2010). Nesse pro- cesso, é necessário comprovar tanto as evidências acerca da equivalência semântica dos itens quanto as evidências 1 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 2 Endereço para correspondência: Juliane Callegaro Borsa. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 120. CEP 90.035-003. Porto Alegre-RS, Brasil. E-mail: [email protected] psicométricas da nova versão do instrumento (International Test Commission [ITC], 2010). Não menos importante, a adaptação engloba a adequação cultural, ou seja, o preparo deste para seu uso em outro contexto (Beaton, Bombardier, Guillemin, & Ferraz, 2000; Hambleton, 2005; Sireci, Yang, Harter, & Ehrlich, 2006). Desde 1992, a International Test Commission (ITC) vem trabalhando com o objetivo de propor diretrizes para a tradução e a adaptação de instrumentos psicológicos entre culturas (ITC, 2010). Os termos “adaptação” e “tradução” são distintos, e tem-se preferido o uso do primeiro, uma vez que compreende todos os processos concernentes à adequa- ção cultural do instrumento, para além da mera tradução (Hambleton, 2005).

Adaptacao e Validacao

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adaptação e validação de testes psicológicos

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  • 423Disponvel em www.scielo.br/paideia

    Paidiaset.-dez. 2012, Vol. 22, No. 53, 423-432. doi:http://dx.doi.org/10.1590/1982-43272253201314

    Artigo

    Adaptao e Validao de Instrumentos Psicolgicos entre Culturas:Algumas Consideraes1

    Juliane Callegaro Borsa2Bruno Figueiredo Damsio Denise Ruschel Bandeira

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil

    Resumo: A adaptao de instrumentos psicolgicos um processo complexo que requer elevado rigor metodolgico. Por no haver consenso na literatura sobre suas etapas, o presente artigo discute alguns aspectos essenciais concernentes adaptao transcultural de instrumentos psicolgicos e prope diretrizes aos pesquisadores sobre os diferentes passos desse processo. So apresentadas, tambm, algumas consideraes referentes validao do instrumento adaptado. Nesta etapa, so discutidos os aspectos referentes estrutura fatorial do instrumento, a qual requer avaliao por meio de procedimentos estatsticos, como anlises fatoriais exploratrias e confi rmatrias, sendo fornecidas algumas diretrizes gerais para a validao de instrumentos psicolgicos em diferentes culturas.

    Palavras-chave: traduo, adaptao, testes psicolgicos, psicometria

    Cross-Cultural Adaptation and Validation of Psychological Instruments:Some Considerations

    Abstract: The adaptation of psychological instruments is a complex process that requires a high methodological rigor. Because there is no consensus in the literature about its steps, this article discuss some essential aspects regarding the cross-cultural adaptation of psychological instruments and proposes guidelines to the researchers about the different steps of this process. Some considerations regarding the validation of the adapted instrument are also presented. In this stage, we discuss some aspects regarding the factorial structure of the instrument, which might be evaluated through statistical procedures, such as exploratory and confi rmatory factor analysis. More than that, the authors provide some guidelines to the validation of psychological instruments in different cultures.

    Keywords: translating, adaptation, psychological testing, psychometrics

    Adaptacin y Validacin de Instrumentos Psicolgicos entre Culturas:Algunas Consideraciones

    Resumen: La adaptacin de instrumentos psicolgicos es un proceso complejo que requiere bastante rigor metodolgico. Ya que no hay consenso sobre sus etapas, el presente artculo discute algunos aspectos esenciales sobre la adaptacin transcultural de instrumentos psicolgicos y propone directrices a los investigadores sobre los diferentes pasos de este proceso. Son presentadas, tambin, algunas consideraciones referentes a la validacin del instrumento adaptado. En esta etapa, son discutidos aspectos referentes a la estructura factorial del instrumentos, la cual debe ser evaluada mediante procedimientos estadsticos como el anlisis factorial exploratorio y confi rmatorio. Adems, se incluyen algunas directrices para la validacin de instrumentos psicolgicos en culturas diversas.

    Palabras clave: traduccin, adaptacin, testes psicolgicos, psicometra

    A adaptao de instrumentos psicolgicos uma tarefa complexa, que exige planejamento e rigor quanto manu-teno do seu contedo, das suas caractersticas psicomtri-cas e da sua validade para a populao a quem se destina (Cassepp-Borges, Balbinotti, & Teodoro, 2010). Nesse pro-cesso, necessrio comprovar tanto as evidncias acerca da equivalncia semntica dos itens quanto as evidncias

    1 Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfi co e Tecnolgico (CNPq).2 Endereo para correspondncia:

    Juliane Callegaro Borsa. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 120. CEP 90.035-003. Porto Alegre-RS, Brasil. E-mail: [email protected]

    psicomtricas da nova verso do instrumento (International Test Commission [ITC], 2010). No menos importante, a adaptao engloba a adequao cultural, ou seja, o preparo deste para seu uso em outro contexto (Beaton, Bombardier, Guillemin, & Ferraz, 2000; Hambleton, 2005; Sireci, Yang, Harter, & Ehrlich, 2006).

    Desde 1992, a International Test Commission (ITC) vem trabalhando com o objetivo de propor diretrizes para a traduo e a adaptao de instrumentos psicolgicos entre culturas (ITC, 2010). Os termos adaptao e traduo so distintos, e tem-se preferido o uso do primeiro, uma vez que compreende todos os processos concernentes adequa-o cultural do instrumento, para alm da mera traduo (Hambleton, 2005).

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    A traduo , apenas, o primeiro passo do processo de adaptao. Ao se adaptar um instrumento, devero ser con-siderados os aspectos culturais, idiomticos, lingusticos e contextuais concernentes sua traduo (Hambleton, 2005). Uma vez adaptado o instrumento, possvel realizar estu-dos entre diferentes populaes, comparando caractersticas de indivduos inseridos em diferentes contextos culturais. Nesse sentido, pesquisas sobre adaptao de instrumentos tm recebido grande nfase devido possibilidade de com-parao de resultados, por meio de estudos realizados em amostras distintas (Gjersing, Caplehorn, & Clausen, 2010; Hambleton, 2005).

    O processo de adaptao de um instrumento j existente, em detrimento da elaborao de um novo instrumento, espe-cfi co para a populao-alvo, possui vantagens considerveis. Ao adaptar um instrumento, o pesquisador capaz de compa-rar dados obtidos em diferentes amostras, de diferentes con-textos, permitindo uma maior equidade na avaliao, uma vez que se trata de uma mesma medida, que avalia o construto a partir de uma mesma perspectiva terica e metodolgica. Entende-se que a utilizao de instrumentos adaptados permi-te uma maior capacidade de generalizao e permite, tambm, a investigao de diferenas entre uma crescente populao diversifi cada (Hambleton, 2005; Vivas, 1999).

    O presente artigo discute alguns aspectos essenciais concernentes adaptao transcultural de instrumentos psi-colgicos e prope diretrizes aos pesquisadores sobre os diferentes passos desse processo. Os tpicos sero apresen-tados, de acordo com a proposta dos autores para a realiza-o do processo de adaptao. Em geral, a literatura aponta que a adaptao de um instrumento deve ser constituda por cinco etapas essenciais: (1) traduo do instrumento do idioma de origem para o idioma-alvo, (2) realizao da sn-tese das verses traduzidas, (3) anlise da verso sintetiza-da por juzes experts, (4) traduo reversa para o idioma de origem (back translation), e (5) estudo-piloto (Hambleton, 2005; Sireci et al., 2006). No entanto, entende-se que, nes-sas etapas, no esto includos alguns aspectos importantes para o processo de adequao da nova verso de um instru-mento, como, por exemplo, a avaliao conceitual dos itens pela populao-alvo e a discusso com o autor do instru-mento original quanto a ajustes e modifi caes propostas na nova verso do instrumento.

    Assim, os autores do presente artigo apresentaro sua proposta para a adaptao de instrumentos a partir de seis etapas: (1) traduo do instrumento do idioma de origem para o idioma-alvo, (2) sntese das verses traduzidas, (3) avaliao da sntese por juzes experts, (4) avaliao do ins-trumento pelo pblico-alvo, (5) traduo reversa, e (6) es-tudo-piloto. Ser discutida, tambm, uma stima etapa que comumente no est includa no processo de adaptao de instrumentos, mas que julgamos importante para confi rmar se, de fato, o instrumento mantm-se estvel em sua estru-tura quando comparado ao original. Trata-se da avaliao da estrutura fatorial do instrumento, a qual realizada a

    partir de procedimentos estatsticos como anlises fatoriais exploratrias e confi rmatrias. Tambm sero discutidos os procedimentos referentes validao de instrumentos para estudos transculturais, em que o instrumento testado em diferentes culturas, a fi m de verifi car a invarincia de sua es-trutura e de seus parmetros quando aplicado em diferentes grupos e contextos culturais.

    Etapas do Processo de Traduo e Adaptao de Instrumentos

    A Traduo do Instrumento para o Novo Idioma

    O primeiro aspecto importante a ser considerado, ao se adaptar um instrumento, a sua traduo do idioma de origem para o idioma-alvo, isto , aquele em que a nova verso ser utilizada. Tal processo complexo, exigindo uma srie de cuidados a fi m de se obter uma verso fi nal adequada para o novo contexto, mas tambm congruente com a verso original.

    A literatura na rea salienta a necessidade de evitar a traduo literal dos itens (Hambleton, 1994, 2005), porque, muitas vezes, resulta em frases incompreensveis ou, pelo menos, no coerentes com a fl uncia do idioma-alvo. Portan-to, uma traduo adequada requer um tratamento equilibrado de consideraes lingusticas, culturais, contextuais e cient-fi cas sobre o construto avaliado (Tanzer, 2005).

    O consenso de investigao nessa rea sugere que tra-dutores bilngues independentes devam ser convocados para adaptar os itens ao novo idioma (Beaton et al., 2000; Gudmundsson, 2009; Hambleton, 2005; ITC, 2010). Se an-tes entendia-se que apenas um tradutor era sufi ciente para a realizao do processo de traduo, hoje sugerida a presen-a de, ao menos, dois tradutores bilngues para a realizao deste processo, minimizando o risco de vieses lingusticos, psicolgicos, culturais e de compreenso terica e prtica (Cassepp-Borges et al., 2010).

    Muitas sugestes nessa rea se concentram na quali-dade dos tradutores. Por exemplo, Hambleton (1994, 2005) afi rma que os tradutores devem ser plenamente profi cientes em ambos os idiomas de interesse e estarem familiarizados com as culturas associadas linguagem dos diferentes gru-pos. Beaton et al. (2000), mais enfaticamente, defendem a necessidade de que os tradutores devem ser fl uentes no idioma de origem do instrumento e nativos no idioma-al-vo. Tal caracterstica permite que o processo de traduo considere as nuances do idioma para o qual o instrumento se destina, possibilitando uma maior adequao cultural do processo de adaptao.

    Para alguns autores, esperado que os tradutores pos-suam uma compreenso do construto a ser avaliado e que tenham habilidade e familiaridade com a escrita de artigos cientfi cos (Cassepp-Borges et al., 2010; Hambleton, 1994, 2005; ITC, 2010). J para Beaton et al. (2000), um dos tradutores deve apresentar familiaridade com o construto

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    Borsa, J. C., Damsio, B. F., & Bandeira, D. R. (2012). Adaptao e Validao de Instrumentos Psicolgicos.

    avaliado, enquanto um segundo tradutor no deve estar ciente dos objetivos da traduo. A adaptao oriunda do primeiro tradutor tenderia a fornecer maior semelhana cientfi ca do instrumento, proporcionando, possivelmente, maior equivalncia a partir de uma perspectiva psicomtri-ca. J a adaptao oriunda do segundo tradutor apresentaria menor probabilidade de desvios em termo de signifi cado dos itens. Por estar menos infl uenciado pelo objetivo aca-dmico da traduo, o segundo tradutor tenderia a oferecer uma verso que melhor refl ita a linguagem utilizada pela populao-alvo.

    Sntese das Verses Traduzidas

    Aps o processo de traduo do instrumento da lngua original para o idioma-alvo, o pesquisador deve possuir, pelo menos, duas verses do instrumento traduzido. Nesta fase, inicia-se o processo de sntese das verses. Sintetizar as verses de um instrumento refere-se a comparar as dife-rentes tradues e avaliar as suas discrepncias semnticas, idiomticas, conceituais, lingusticas e contextuais, com o objetivo de se chegar a uma verso nica. Nesse processo, comum encontrar duas possveis fontes de complicaes: (1) tradues complexas que possam difi cultar a compreen-so da populao a quem se destina o instrumento ou (2) tradues demasiadamente simplistas que subestimam o contedo do item. Escolhas inapropriadas so identifi cadas e resolvidas mediante uma discusso entre os juzes (exper-ts na rea a que o instrumento se prope a avaliar), junta-mente com os pesquisadores responsveis pela adaptao do instrumento.

    A avaliao das diferentes tradues de um instrumento deve ser feita para cada item em particular. Ao longo desse processo, o comit (juzes e autores) deve avaliar a equiva-lncia entre as verses traduzidas e o instrumento original em quatro diferentes reas, a saber: (1) equivalncia semn-tica objetiva avaliar se as palavras apresentam o mesmo signifi cado, se o item apresenta mais de um signifi cado e se existem erros gramaticais na traduo; (2) equivalncia idio-mtica refere-se a avaliar se os itens de difcil traduo do instrumento original foram adaptados por uma expresso equivalente que no tenha mudado o signifi cado cultural do item; (3) equivalncia experiencial refere-se a obser-var se determinado item de um instrumento aplicvel na nova cultura e, em caso negativo, substituir por algum item equivalente; (4) equivalncia conceitual busca avaliar se determinado termo ou expresso, mesmo que traduzido ade-quadamente, avalia o mesmo aspecto em diferentes culturas. Caso as verses traduzidas sejam falhas em um ou mais de um desses aspectos, o comit pode propor uma nova traduo que seja mais adequada s caractersticas do instrumento e realidade em que o mesmo ser utilizado. Nessas ocasies, a participao dos pesquisadores responsveis pela pesquisa fundamental, visto que devem possuir conhecimento sufi -ciente sobre o construto que o instrumento avalia, podendo

    dirimir dvidas tericas sobre os itens e auxiliar na deciso sobre as melhores expresses a serem utilizadas.

    A escolha de qual verso utilizar deve ser obtida por meio de consenso entre os juzes e, em momento algum, por imposio (Gjersing et al., 2010). Quando houver possibi-lidade, um observador externo deve ser solicitado a trans-crever todo o processo de sntese, especialmente, no que se refere escolha dos itens a serem utilizados (Beaton et al., 2000). Esse procedimento fornecer ao pesquisador um pa-norama qualitativo sobre o processo. Ao fi nal desta etapa, o pesquisador passa a conter uma nica verso do instrumento, podendo esta ser composta por itens traduzidos por apenas um ou por mais de um tradutor (Gudmundsson, 2009).

    Avaliao da Sntese por Experts

    Aps a sntese da verso traduzida, o pesquisador deve contar, ainda, com o auxlio de um comit de experts na rea da avaliao psicolgica, ou, se possvel, com conhecimen-to especfi co acerca do construto avaliado pelo instrumento, que avaliar aspectos ainda no contemplados, tais como a estrutura, o layout, as instrues do instrumento e a abran-gncia e adequao das expresses contidas nos itens. Aqui, os experts iro considerar, por exemplo, se os termos ou as expresses podem ser generalizados para diferentes contex-tos e populaes (isto , diferentes regies de um mesmo pas) e se as expresses so adequadas para aquele pblico a que o instrumento se destina. Aspectos da diagramao do instrumento tambm sero analisados, uma vez que estes so to imprescindveis quanto os aspectos lingusticos dos itens, principalmente em se tratando de instrumentos para uso com populaes especfi cas, tais como crianas e idosos. Tambm so analisadas a clareza do rapport, a adequao do tipo e do tamanho da fonte utilizada, a disposio das informaes no instrumento, entre outros aspectos.

    Um exemplo refere-se ao estudo de adaptao de uma escala de coping religioso-espiritual, realizado por Panzini e Bandeira (2005). Esse instrumento avalia como os indiv-duos utilizam sua f para lidar com o estresse. Durante o pro-cesso de adaptao, entendeu-se como necessrio submeter o instrumento a um grupo de experts no tema coping reli-gioso-espiritual, ou seja, lderes religiosos. Como no Brasil o nmero de religies maior que o do pas de origem do instrumento, foi importante entrevistar lderes de diferentes instituies religiosas. Uma das importantes contribuies realizadas por esses juzes foi verifi car em que medida os termos propostos estavam adequados e se poderiam ser ge-neralizados para as mais diversas religies.

    A traduo, a sntese e a avaliao da verso so os pri-meiros passos do processo de adaptao de um instrumento para uma nova cultura. Aps a concluso dessas etapas, a primeira verso do instrumento estar pronta para uma pr-xima etapa, a qual consideramos essencial: a avaliao do instrumento pelo pblico-alvo.

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    Avaliao pelo Pblico-Alvo

    Esta etapa do processo tem por objetivo verifi car se os itens, as instrues e a escala de resposta so compreens-veis para o pblico-alvo. Em outras palavras, esse proce-dimento visa a investigar se as instrues so claras, se os termos presentes nos itens esto adequados, se as expres-ses correspondem quelas utilizadas pelo grupo, entre ou-tros aspectos. Os sujeitos a participarem desta etapa podem variar de acordo com as caractersticas dos respondentes a que o instrumento se destina. Por exemplo, se estamos falando de um instrumento de autorrelato, destinado a ava-liar os comportamentos agressivos de crianas, neces-srio que o instrumento seja apresentado a um grupo de crianas para que estas possam confi rmar o quo claros so os itens, ou o quanto as expresses so representativas do vocabulrio comumente utilizado pelo grupo. Nesse senti-do, entendemos como essencial que esse instrumento possa ser avaliado por crianas com diferentes idades (dentro da faixa etria a que o instrumento se destina), bem como resi-dentes em diferentes localidades e regies (j que, uma vez validado, o instrumento poder ser aplicado em diferentes populaes, de diferentes regies do pas).

    importante salientar que durante o processo de ava-liao pela populao-alvo, ainda no realizado nenhum procedimento estatstico, mas sim a avaliao da adequao dos itens e da estrutura do instrumento como um todo (se os termos so claros, se esto de acordo com a realidade, se esto bem redigidos, etc.). Em casos da no compreenso de algum item, por exemplo, sugerido que o respondente for-nea sinnimos que melhor exemplifi quem o vocabulrio do grupo a quem o instrumento se destina. Nesta etapa, pode ser solicitado que as questes sejam lidas em voz alta pelo res-pondente e que o mesmo realize uma breve explicao sobre o signifi cado de cada um dos itens. Tambm pode ser reali-zada uma aplicao para que os respondentes preencham o instrumento e, posteriormente, realizem uma discusso acer-ca da compreenso de cada item, propondo modifi caes, se caso for. A etapa da avaliao pelo pblico-alvo pode ser conduzida uma ou mais vezes, dependendo da necessidade e da complexidade do instrumento a ser adaptado.

    Traduo Reversa Back-translation

    A traduo reversa tambm sugerida como uma ve-rifi cao de controle de qualidade adicional (Sireci et al., 2006). De acordo com nosso entendimento, esse procedi-mento deve suceder todos os procedimentos de ajuste se-mntico e idiomtico, uma vez que o instrumento, nesta etapa, dever estar pronto para avaliao fi nal do autor do instrumento original. A traduo reversa refere-se a tra-duzir a verso sintetizada e revisada do instrumento para o idioma de origem. Seu objetivo avaliar em que medida a verso traduzida est refl etindo o contedo do item, confor-me prope a verso original.

    Segundo Beaton et al. (2000), a realizao da traduo re-versa deve ser realizada por, pelo menos, outros dois tradutores que no aqueles que realizaram a primeira traduo. Diversos autores tm sido cautelosos sobre a utilizao da traduo re-versa (Gudmundsson, 2009; Hambleton, 1993; Van de Vijver & Leung, 1997). Para esses autores, o processo de traduo reversa pode incorrer na nfase dos aspectos gramaticais em detrimento dos aspectos contextuais. Alm disso, afi rmam que a traduo reversa desconsidera o que at ento vem sendo pre-conizado: que, ao adaptar um instrumento, diversos aspectos, sejam eles culturais, idiomticos, lingusticos e contextuais, precisam ser considerados. Entretanto, importante considerar que o objetivo da traduo reversa no deve ser a obteno de uma equivalncia literal entre as verses traduzidas e a verso original. Ao invs disso, o processo da traduo reversa deve ser utilizado como uma ferramenta para identifi car palavras que no fi caram claras no idioma-alvo, buscando encontrar incon-sistncias ou erros conceituais na verso fi nal, quando compa-rada verso original (Beaton et al., 2000). A traduo reversa tambm pode ser utilizada como uma ferramenta prtica para que o pesquisador que est adaptando o instrumento possa se comunicar com o autor do instrumento original. Quando o autor tem acesso verso retrotraduzida (back-translated) do instru-mento, pode afi rmar se os itens tm, em sua essncia, a mesma ideia conceitual que os itens originais.

    Um exemplo que ilustra a utilidade da comunicao entre os autores, aps o processo da traduo-reversa, refere-se ao procedimento de adaptao do Inventory of Personality Orga-nization, realizado por Oliveira e Bandeira (2011). Nesse pro-cesso houve discordncia quanto a um determinado item, em ingls: I am a hero worshiper even if I am later found wrong in my judgment, especifi camente no termo hero worshiper, uma vez que a expresso equivalente (adorador de heris) no apresenta um sentido claro no portugus brasileiro. O item foi traduzido para o portugus como Eu idolatro algumas pes-soas, mesmo que depois eu me d conta de que estava enga-nado, sendo retraduzido para o ingls como: I idolize some people, even after I realizing that I was wrong about them. A traduo reversa, contudo, gerou discordncia com o autor do instrumento original. Em funo desse impasse, ocorreram diversas trocas de e-mails entre os autores, a fi m de discutir o real signifi cado da expresso original hero worshiper. O au-tor do instrumento original entendeu que o termo se referia a um mecanismo de idealizao. Foi-lhe explicado, ento, que a traduo literal em portugus no seria adequada, e que o termo idolatrar teria a mesma conotao de idealizao. Tambm se argumentou que a expresso Eu idolatro algumas pessoas foi inspirada na verso argentina do instrumento, a qual j havia sido aprovada pelo prprio autor.

    Como pode se perceber, a retrotraduo no pressupe que o item necessita se manter literalmente igual ao original mas, sim, manter uma equivalncia conceitual. Para isso, importante que os autores estejam cientes da possibilidade dessas aproximaes, considerando o signifi cado do item no contexto cultural no qual este ser apresentado.

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    Borsa, J. C., Damsio, B. F., & Bandeira, D. R. (2012). Adaptao e Validao de Instrumentos Psicolgicos.

    Estudo-Piloto

    Antes de afi rmar que um novo instrumento est pronto para aplicao, deve ser realizado, incondicionalmente, o es-tudo-piloto. O estudo-piloto refere-se a uma aplicao prvia do instrumento em uma pequena amostra que refl ita as carac-tersticas da amostra/populao-alvo (Gudmundsson, 2009). Mais uma vez, nesse processo, deve-se avaliar a adequao dos itens em relao ao seu signifi cado e sua difi culdade de compreenso, bem como as instrues para a administrao do teste. Aps as modifi caes sugeridas no primeiro estu-do-piloto, sugere-se realizar um segundo estudo-piloto (ou quantos forem necessrios), para avaliar se o instrumento est, fi nalmente, pronto para ser utilizado.

    Com o objetivo de evitar quaisquer tipos de vieses, as sugestes de modifi cao que surjam durante o procedi-mento do(s) estudo(s)-piloto devem ser realizadas com o auxlio do comit de experts, e nunca apenas pelo pesqui-sador que foi a campo. Como se pode observar, o processo de adaptao de um instrumento para uma nova cultura consiste em diferentes etapas que, conforme sugerem dis-tintos autores (Beaton et al., 2000; Gjersing et al., 2010; Hambleton, 2005), so fundamentais p ara a adequada re-alizao do processo.

    A Figura 1 apresenta um esquema metodolgico pro-posto pelos autores para a traduo e a adaptao de instru-mentos psicolgicos para diferentes culturas.

    Figura 1. Procedimentos para adaptao transcultural de instrumentos psicolgicos.

    InstrumentoOriginal

    Sntese dasTradues

    Adequado?

    Adequado?

    Sntese dasTradues Reversas

    Apresentao da verso para o autor

    do instrumentooriginal

    Discusso com oautor do instrumento

    original

    Traduo 1

    Avaliao Comitde Experts

    Traduo 2

    AvaliaoPopulao-Alvo

    TraduoReversa

    TraduoReversa 1

    TraduoReversa 2

    Ajustes

    Sim No

    Sim

    Estudo-Piloto

    No

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    Paidia, 22(53), 423-432

    Em algumas situaes, pode haver mudanas nos passos propostos, tanto entre eles quanto dentro deles. Por exemplo, podemos ter a insero de pequenos estudos-piloto antes da traduo reversa, a realizao de grupos focais, ou mesmo a no avaliao do instrumento pelo pblico-alvo. Por vezes, alguns instrumentos so muito simples, de fcil entendimen-to, no sendo necessria a avaliao pelo pblico-alvo. O mesmo ocorre quando so instrumentos cujos itens so no verbais, ou seja, que no solicitam leitura para sua realiza-o, sendo que nesse caso a preocupao detm-se apenas na traduo das instrues de aplicao, as quais no precisam atender a todos os passos propostos neste artigo.

    Aspectos de Validao do Instrumento Adaptado

    Os processos de adaptao descritos tm por objetivo pro-duzir instrumentos que sejam equivalentes em diferentes cul-turas. Para alguns autores (Herdman, Fox-Rushby, & Badia, 1997; Hui & Triandis, 1985), a equivalncia conceitual e idio-mtica o primeiro aspecto a ser alcanado atravs do proces-so de adaptao. Entretanto, ainda que os mtodos qualitativos sejam imprescindveis para assegurar a adequao do processo de adaptao, eles no fornecem qualquer informao sobre as propriedades psicomtricas do novo instrumento (Eremenco, Cella, & Arnold, 2005). Nesse sentido, complementarmente s etapas de adaptao do instrumento, devem ser realizadas anlises estatsticas para avaliar em que medida o instrumento pode, de fato, ser considerado vlido para o contexto ao qual foi adaptado. Adaptar e validar um instrumento so, portanto, passos distintos, porm complementares. Em geral, as revistas cientfi cas exigem que as publicaes nessa rea explicitem tan-to os procedimentos de adaptao quanto os de validao.

    Os passos exigidos em um processo de validao de um instrumento psicolgico so diversos (Urbina, 2007), no exis-tindo na literatura consenso sobre quais e quantas evidncias de validade o instrumento deve possuir para ser considerado vlido. Sugerimos que quanto mais evidncias o instrumento fornecer, melhor, visto que isso tende a aumentar a confi abili-dade da medida. Complementando, entendemos, assim como Urbina (2007), que essas evidncias devem ser tambm ava-liadas por outros pesquisadores que no apenas os autores do instrumento, incrementando ainda mais sua validade.

    A etapa de busca por evidncia de validade de um ins-trumento pode ser subdividida em duas grandes reas, a pri-meira referindo-se validao do instrumento para o novo contexto, e a segunda referindo-se validao do instrumen-to para estudos transculturais (envolvendo diferentes verses do mesmo instrumento). Para os objetivos deste artigo, dis-cutiremos esses aspectos separadamente.

    Evidncias de Validade do Instrumento para o Novo Contexto

    O primeiro passo para a validao de um instrumen-to refere-se avaliao de sua estrutura fatorial. Em geral,

    os instrumentos so construdos para mensurar construtos que, mesmo sendo latentes (isto , no observveis), devem apresentar uma estrutura relativamente organizada. O bur-nout, por exemplo, uma sndrome de cunho ocupacional composta por trs dimenses distintas: exausto emocional, despersonalizao e baixa realizao no trabalho.

    O Maslach Burnout Inventory (MBI) (Maslach & Jack-son, 1981), considerado o instrumento mais utilizado para sua mensurao, avalia essas trs caractersticas por meio de trs fatores distintos. Em estudos de validao do MBI para uso em novos contextos, espera-se encontrar uma estrutura relativa-mente similar proposta original. Caso contrrio, o instrumen-to estar apresentando discrepncias que afetam a compreenso sobre o prprio construto que est sendo avaliado.

    Possveis alteraes que aconteam ao longo dos es-tudos de validao devem ser discutidas luz de aspectos quantitativos e qualitativos, com vistas a compreender as possveis razes que levaram alterao na estrutura fatorial do instrumento. importante salientar que, em geral, certas mudanas so esperadas devido a caractersticas amostrais, principalmente em instrumentos complexos, que apresentam um nmero elevado de itens e de fatores.

    Tcnicas de anlises fatoriais exploratrias (AFEs) e anlises fatoriais confi rmatrias (AFCs) devem ser utilizadas para auxiliar o pesquisador na escolha da estrutura que seja mais plausvel para a amostra. Tanto as AFEs quanto as AFCs tm por objetivo agrupar uma grande quantidade de variveis observadas a um nmero reduzido de fatores (dimenses la-tentes) que explicam o conjunto de variveis observadas (Bro-wn, 2006). Para maior detalhamento desses procedimentos, pesquisadores interessados podem buscar textos-referncia que visam a auxiliar na conduo de AFEs (Costello & Os-borne, 2005; Damsio, no prelo) e de AFCs (Brown, 2006).

    Conforme explicitado anteriormente, avaliar a estrutura fatorial do instrumento refere-se apenas a um aspecto de um estudo de validao. Diversas outras evidncias de validade devem ser realizadas, tais como a avaliao da validade de contedo e de critrio do instrumento, realizadas a partir da comparao dos seus resultados com aqueles obtidos atravs de outras medidas equivalentes. Anlises de consistncia in-terna interitens, avaliao da preciso (confi abilidade e fi de-dignidade), bem como avaliao da consistncia da medida em tempos distintos (estabilidade temporal), so formas de buscar evidncias de validade para o instrumento adaptado. Esses procedimentos so realizados aps a avaliao da es-trutura fatorial do instrumento e devido ao espao deste arti-go no sero apresentados. Para maior aprofundamento nessa temtica, sugere-se a leitura de Urbina (2007). Nessa obra, a autora apresenta captulos especfi cos que tratam sobre a fi -dedignidade e sobre a validade de instrumentos psicolgicos.

    Validao de Instrumentos para Estudos Transculturais

    Outro aspecto referente validao de instrumentos psicolgicos refere-se adequao da medida para uso em

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    estudos transculturais. Nessa perspectiva, alguns autores uti-lizam o conceito de equivalncia referindo-se no apenas aos aspectos qualitativos do instrumento adaptado, mas tambm mensurao no enviesada entre o instrumento adaptado e a sua fonte original, de maneira que quaisquer resultados ob-tidos a partir de estudos transculturais refl itam to somente a diferena (ou semelhana) real entre os grupos, no sendo produto de falhas de adaptao (Eremenco et al., 2005).

    Apesar de as AFEs e AFCs serem um conjunto de tcnicas amplamente utilizadas na avaliao da validade de construto de instrumentos adaptados, quando o objeti-vo realizar estudos transculturais, comparando diversos grupos entre si, importante que o pesquisador avalie a compatibilidade da medida nos diversos grupos simulta-neamente (Hambleton & Patsula, 1998; Reise, Widaman, & Pugh, 1993; Sireci, 2005). Com base nessas anlises comparativas, o pesquisador pode assegurar que a medida avalia o mesmo construto de maneira similar nas diferentes populaes, ou seja, assegura o pressuposto de invarin-cia de medida (Reise et al., 1993). Dentre vrias formas de avaliar a invarincia de medida, a anlise fatorial confi r-matria multigrupo (AFCMG), o funcionamento diferen-cial do item (em ingls, differential item functioning, DIF), proposto pela Teoria de Resposta ao Item (TRI), e o es-calonamento multidimensional (EMD) podem ser valiosos recursos (Milfont & Fischer, 2010; Sireci, 2005).

    Na AFCMG, a estrutura fatorial do instrumento esti-pulada a priori, e o pesquisador avalia, simultaneamente, a equivalncia dos parmetros estruturais nos diversos grupos de interesse (Brown, 2006). Dentre vrios aspectos, pode--se observar: (1) a equivalncia da estrutura do instrumento (isto , se o mesmo nmero de fatores e os mesmos itens por fator se mantm equivalentes para os diferentes grupos); (2) a equivalncia das cargas fatoriais dos itens (isto , se o peso ou a importncia dos itens no fator so semelhantes para os diferentes grupos); (3) a similaridade da covarincia da(s) varivel(is) latente(s) (isto , se os itens explicam o mesmo nvel de variabilidade do construto para os diferentes gru-pos, e/ou se a covarincia entre os fatores do instrumento so semelhantes para os diferentes grupos); e (4) a equivalncia dos resduos das variveis observveis (isto , se os erros de medida so similares para os diferentes grupos) (Brown, 2006; Byrne, 2010).

    A avaliao da equivalncia da estrutura e dos parme-tros do teste, atravs da AFCMG, responde algumas questes relevantes, como, por exemplo: a estrutura fatorial de deter-minado instrumento igual entre os grupos (mesmos itens avaliando o mesmo construto)? Os itens que compem deter-minado fator apresentam a mesma importncia nos diferen-tes subgrupos ou apresentam diferenas que impossibilitam a comparao das diferentes amostras? O instrumento apresenta itens que so enviesados para um subgrupo em particular?

    O uso da AFCMG tem crescido de maneira exponen-cial nos estudos internacionais. Isso porque a tcnica per-mite uma avaliao da invarincia tanto da estrutura do

    instrumento quanto dos diversos parmetros do teste. Pes-quisadores interessados em melhor compreender a AFCMG podem remeter-se a Brown (2006) e a Byrne (2010).

    A TRI, por sua vez, com o auxlio das tcnicas de fun-cionamento diferencial do item (em ingls, differential item functioning, DIF) permite, assim como a AFCMG, a avalia-o de similaridade dos itens de determinado instrumento para diferentes grupos (Sireci, 2005). Nos termos da TRI, um item de um teste apresenta DIF quando a funo de resposta ao item (FRI) diferente para sujeitos de diferentes grupos que apresentam o mesmo nvel da varivel latente (Andra-de, Laros, & Gouveia, 2010). Se os sujeitos apresentam o mesmo nvel na varivel latente (por exemplo, mesmo nvel de fobia social), mas apresentam FRI diferentes (diferentes probabilidades de respostas e, consequentemente, diferentes escores no item), possvel que este item esteja enviesado, apresentando funcionamento diferencial. Em situaes que ocorrem DIF, duas estratgias podem ser adotadas. A pri-meira delas refere-se a eliminar os itens que apresentam DIF para que os grupos sejam comparveis entre si. Nesses casos, o instrumento passa a ser um instrumento diferente do ins-trumento original, visto que alguns itens deixam de ser uti-lizados. A segunda proposta a equiparao dos escores dos sujeitos mantendo os itens que apresentaram DIF (Eremenco et al., 2005). Nesses casos, os itens que apresentam DIF so considerados de maneira diferenciada para os grupos, com vistas a manter a equivalncia entre os escores.

    As tcnicas de DIF propostas pela TRI so particular-mente teis para avaliar vieses de itens especfi cos, no sen-do proveitosas para avaliao da equivalncia de estruturas fatoriais (Kankara & Moors, 2010). Outro aspecto a consi-derar que a maioria dos modelos da TRI avaliam, exclusi-vamente, medidas unidimensionais (isto , instrumentos que contm um nico fator). Em caso de instrumentos multidi-mensionais, em geral, so conduzidas anlises de DIF para as dimenses em separado, visto que para cada dimenso, os sujeitos apresentaro nveis especfi cos de trao latente (Millsap, 2010). Diversos textos-base podem ser consulta-dos para maior compreenso das tcnicas de DIF, conforme proposto pela TRI. Por exemplo, em Pasquali (2007), o autor apresenta captulos especfi cos (captulos 7 e 8) sobre a te-mtica. Um exemplo prtico do uso de tcnicas de DIF para avaliar vieses de pesquisa em estudos transculturais pode ser encontrado em Peterson et al. (2003).

    Por fi m, o EMD refere-se a um conjunto de tcnicas estatsticas que tambm possibilita a comparao de diferen-tes grupos simultaneamente. Diferentemente da AFCMG, o EMD apresenta a vantagem de que a estrutura fatorial do ins-trumento no precisa ser estipulada a priori. O pesquisador pode computar diferentes confi guraes, escolher a confi gu-rao de interesse (por exemplo, a confi gurao que melhor representa a estrutura terica do instrumento) e avaliar se a estrutura apresenta adequao para os diferentes grupos (Ar-ciniega, Gonzlez, Soares, Ciulli, & Giannini, 2009). Outra caracterstica importante do EMD que, assim como na TRI,

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    no necessrio um modelo linear para derivar a estrutura subjacente dos dados (Sireci, 2005).

    A validade do pressuposto de invarincia fatorial entre grupos crucial para uma srie de concluses no desenvol-vimento e adaptao de instrumentos psicomtricos, bem como na comparao de grupos em estudos transculturais. A no ser que seja rigorosamente testada, os pesquisadores no podem afi rmar que a estrutura e os parmetros de determi-nado instrumento so semelhantes para as diferentes popu-laes. Se as medidas do instrumento no so comparveis entre os diferentes grupos, quaisquer diferenas encontradas em termos de diferena de escores dos grupos ou padres de correlaes com variveis externas so, provavelmente, erros de mensurao e no refl etem a real diferena entre os grupos (Tanzer, 2005).

    Consideraes Finais

    Na Psicologia, cresce o interesse por estudos transcul-turais, o que, por sua vez, vem exigindo um maior rigor e preocupao quanto qualidade e adequao das medidas adaptadas e validadas para uso em diferentes contextos (ITC, 2010). Embora se reconhea a importncia da adaptao de instrumentos para outras culturas, pesquisadores tm salien-tado que grande parte das pesquisas nesse campo tem sido considerada invlida devido inadequao dos procedimen-tos de traduo e adaptao dos instrumentos (Hambleton, 2005). Muitas vezes, as adaptaes dos instrumentos psico-lgicos baseiam-se na mera traduo dos itens para o novo idioma. Em geral, essas tradues so realizadas pelos pr-prios pesquisadores e contam com o processo de traduo reversa, no qual analisado apenas o grau de equivalncia semntica entre a verso adaptada e a verso original (Cas-sepp-Borges et al., 2010; Hambleton, 2005; Reichenheim & Moraes, 2003).

    No h consenso sobre como adaptar um instrumento para uso em outro contexto cultural. Tal procedimento vai depender das caractersticas do instrumento, dos contex-tos de sua aplicao (tanto da verso original como da sua adaptao) e da populao a quem se destina. No entanto, consenso que o processo de adaptao vai alm da mera tra-duo, a qual no garante a validade de construto, tampouco a confi abilidade da medida.

    O processo de adaptao de instrumentos deve conside-rar a pertinncia dos conceitos e domnios apreendidos pelo instrumento original na nova cultura, bem como considerar a adequao de cada item do instrumento original em termos da capacidade de representar tais conceitos e domnios na nova populao-alvo. Alm disso, no processo deve-se considerar a equivalncia semntica, lingustica e contextual entre os itens originais e traduzidos, bem como a anlise das propriedades psicomtricas do instrumento original e de sua nova verso (ITC, 2010). Nossa experincia em seguir os passos propos-tos neste estudo tem gerado possibilidades mais fi dedignas de avaliao de diversos construtos, em diferentes contextos,

    evitando desperdcio de tempo, dinheiro e material. Instru-mentos mal adaptados podem apresentar problemas quando outros estudos so conduzidos com os mesmos, gerando da-dos incoerentes ou pouco fi dedignos. Em geral, tardiamente, no momento da coleta e da posterior anlise dos dados, que o pesquisador percebe os erros ocorridos durante o processo de traduo, adaptao e validao de um instrumento.

    Especialmente em estudos transculturais, a utiliza-o de instrumentos que foram meramente traduzidos no garante resultados confi veis. Isso porque a mera traduo no oferece parmetros para avaliar se os resultados obtidos referem-se a diferenas ou similaridades entre as diferentes amostras, ou se so oriundos de erros de traduo (Manees-riwongul & Dixon, 2004).

    Durante as ltimas dcadas, estudos transculturais tm atrado especial ateno dos pesquisadores, sobretudo no campo da sade mental. Estes estudos permitem, a partir da aplicao de um mesmo instrumento de medida, comparaes entre diferentes indivduos inseridos em diferentes contextos culturais. Os estudos transculturais permitem no apenas ve-rifi car diferenas entre indivduos e culturas, como tambm compreender as semelhanas e caractersticas comuns entre os mesmos. Para isso, necessrio que existam instrumentos adequadamente adaptados, que possam proporcionar equiva-lncia da medida, independentemente do contexto em que for utilizado. Nesse sentido, alm da necessidade de um rigoroso processo de adaptao, a avaliao das caractersticas psico-mtricas do novo instrumento imprescindvel para garantir que o instrumento est em condies de uso.

    O presente artigo prope procedimentos a serem condu-zidos quando do processo de adaptao, bem como anlises estatsticas que podem somar na garantia de que o instru-mento apresente as propriedades necessrias para o uso tanto na populao-alvo quanto em estudos transculturais. Porme-norizar tais aspectos, em especial os procedimentos estatsti-cos, est fora do alcance deste artigo, entretanto, as diretrizes e referncias mencionadas podero servir como base para que os interessados busquem aprofundamento na rea da adaptao de instrumentos psicolgicos.

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    Juliane Callegaro Borsa Doutora em Psicologia pelo Pro-grama de Ps-graduao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Bruno Figueiredo Damsio doutorando em Psicologia pelo Programa de Ps-graduao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.Denise Ruschel Bandeira Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    Recebido: 24/07/20121 reviso: 19/09/2012

    Aceite fi nal: 02/10/2012

    Como citar este artigo:Borsa, J. C., Damsio, B. F., & Bandeira, D. R.

    (2012). Adaptao e validao de instrumentos psicolgicos entre culturas: Algumas consideraes. Paidia (Ribeiro Preto), 22(53), 423-432. doi:http://dx.doi.org/10.1590/1982-43272253201314