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ESTUDOS AVANÇADOS 19 (53), 2005 87 A AMÉRICA LATINA nunca aconteceu nada parecido como a Guerra da Secessão americana, porém, em cada um dos países latinos houve, em determinado momento de sua história, um confronto entre modelos de sociedade, de choques entre propostas avançadas, modernas e posições atrasadas e retrógradas. O exemplo da Guerra da Secessão americana, em que uma nação não apelou para a conciliação e foi capaz de derramar sangue para decidir princí- pios, sempre causa uma impressão forte, especialmente em um país como o Bra- sil, onde o mito da história incruenta serviu, durante muito tempo, para mascarar os nossos desacertos. Agora, porém, já se sabe. Aqui muito sangue também foi derramado e princípios também estiveram em jogo. Basta relembrar como foram os trágicos anos vividos pelo então Grão-Pará entre 1823 e 1840. Para que se compreenda a questão, um fato deve ficar claro desde já: em 1822 a Amazônia não fazia parte do Brasil. Sequer se chamava Amazônia. Na verdade, os portugueses construíram duas colônias na América do Sul. Pode-se mesmo acreditar que esta não foi uma decisão administrativa dos portu- gueses, mas uma conseqüência das limitações tecnológicas. Naqueles tempos de navegação a vela, a transposição do cabo Branco era praticamente impossível e perigoso. Assim, para os que vinham do Atlântico Norte, as rotas mais propícias eram aquelas que, seguindo as correntes, levavam diretamente ao Atlântico Sul e ao litoral do Brasil, ou as que levavam ao Caribe e ao estuário do rio Amazonas. Uma viagem do Rio de Janeiro para Lisboa em 1790 durava noventa dias; uma entre Belém e Lisboa na mesma época durava trinta dias; já outra entre o Rio de Janeiro e Belém podia durar até cinco meses. O certo, então, é que tínhamos duas colônias de língua portuguesa na América do Sul. Uma descoberta por Cabral em 1500, batizada com o nome de Brasil e administrada por governadores gerais e vice-reis, com capital no Rio de Janeiro e um território que, ao norte, começava nos limites do atual estado do Piauí, descendo por uma estreita faixa pelo litoral nordestino, passando por Goiás, Minas Gerais e estendendo-se até as margens do rio da Prata, hoje o Uruguai. A outra colônia, inicialmente conhecida como Grão-Pará e Maranhão e mais tarde como Grão-Pará e Rio Negro, foi descoberta por Vicente Iañes Pinzón, em 1498, logo após a terceira viagem de Colombo à América, quando batizou o rio Amazonas de mar Dulce, mas efetivamente ocupada pelos portugueses a partir de 1630. Essa colônia tinha em seu território o equivalente à reunião dos atuais Afinal , quem é mais moderno neste país? MÁRCIO SOUZA N

Afinal Quem é Mais Moderno Neste País

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  • ESTUDOS AVANADOS 19 (53), 2005 87

    A AMRICA LATINA nunca aconteceu nada parecido como a Guerra daSecesso americana, porm, em cada um dos pases latinos houve, emdeterminado momento de sua histria, um confronto entre modelos de

    sociedade, de choques entre propostas avanadas, modernas e posies atrasadase retrgradas. O exemplo da Guerra da Secesso americana, em que uma naono apelou para a conciliao e foi capaz de derramar sangue para decidir princ-pios, sempre causa uma impresso forte, especialmente em um pas como o Bra-sil, onde o mito da histria incruenta serviu, durante muito tempo, para mascararos nossos desacertos. Agora, porm, j se sabe. Aqui muito sangue tambm foiderramado e princpios tambm estiveram em jogo. Basta relembrar como foramos trgicos anos vividos pelo ento Gro-Par entre 1823 e 1840.

    Para que se compreenda a questo, um fato deve ficar claro desde j: em1822 a Amaznia no fazia parte do Brasil. Sequer se chamava Amaznia.

    Na verdade, os portugueses construram duas colnias na Amrica do Sul.Pode-se mesmo acreditar que esta no foi uma deciso administrativa dos portu-gueses, mas uma conseqncia das limitaes tecnolgicas. Naqueles tempos denavegao a vela, a transposio do cabo Branco era praticamente impossvel eperigoso. Assim, para os que vinham do Atlntico Norte, as rotas mais propciaseram aquelas que, seguindo as correntes, levavam diretamente ao Atlntico Sul eao litoral do Brasil, ou as que levavam ao Caribe e ao esturio do rio Amazonas.Uma viagem do Rio de Janeiro para Lisboa em 1790 durava noventa dias; umaentre Belm e Lisboa na mesma poca durava trinta dias; j outra entre o Rio deJaneiro e Belm podia durar at cinco meses.

    O certo, ento, que tnhamos duas colnias de lngua portuguesa naAmrica do Sul. Uma descoberta por Cabral em 1500, batizada com o nome deBrasil e administrada por governadores gerais e vice-reis, com capital no Rio deJaneiro e um territrio que, ao norte, comeava nos limites do atual estado doPiau, descendo por uma estreita faixa pelo litoral nordestino, passando por Gois,Minas Gerais e estendendo-se at as margens do rio da Prata, hoje o Uruguai. Aoutra colnia, inicialmente conhecida como Gro-Par e Maranho e mais tardecomo Gro-Par e Rio Negro, foi descoberta por Vicente Iaes Pinzn, em1498, logo aps a terceira viagem de Colombo Amrica, quando batizou o rioAmazonas de mar Dulce, mas efetivamente ocupada pelos portugueses a partirde 1630. Essa colnia tinha em seu territrio o equivalente reunio dos atuais

    Afinal, quem mais modernoneste pas?MRCIO SOUZA

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    Rosi GiordanoSticky Notehttp://www.scielo.br/pdf/ea/v19n53/24082.pdfRosi GiordanoSticky NoteAccepted set by Rosi Giordano
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    estados do Maranho, Par, Amap, Amazonas, Roraima, Rondnia e parte doAcre. A capital era Santa Maria de Belm e era administrada por governadoresmilitares e administradores diretamente ligados a Lisboa. Essas duas administra-es coloniais se desenvolveram distintamente at 1823, data em que o Impriodo Brasil comeou a anexar a colnia nortista. Uma nota curiosa: os habitantesda colnia do Sul eram chamados de brasileiros, os do norte de portugueses-americanos.

    A independncia do Brasil em 1822 pouco reflexo teve no territrio doGro-Par. Alguns adeptos da idia da independncia, como Felipe Patroni, e ocnego Batista Campos desejavam cortar os laos com a Metrpole, mas esta-vam completamente isolados do Rio de Janeiro, mantendo contatos e trocas decorrespondncia apenas com as lideranas do nordeste. A notcia da proclama-o do prncipe Pedro de Alcntara, herdeiro da casa de Bragana, trouxe muitadesconfiana, embora o gesto tenha aguado o desejo de repetir o feito na pro-gressista colnia ao norte. Um jornal, editado por Patroni, o primeiro a circularna Amaznia, O Paraense, pregou o corte dos laos com Portugal, mas apenaspor alguns meses de 1822, sendo fechado e seu proprietrio perseguido. Emmaro do 1823, o cnego Batista Campos consegue eleger para a legislatura deBelm uma maioria de brasileiros, mas os portugueses anulam as eleies. Emabril, um levante propondo a adeso ao Imprio do Brasil esmagado e seusparticipantes deportados para Lisboa, onde so condenados morte. Finalmen-te, em agosto, aporta em Belm o brigue Maranho, comandado por John PascoeGreenfell, mercenrio ingls sob o comando do almirante Cochrane e a soldo doImprio do Brasil. Greenfell, que estava com 21 anos, inaugura o modelo derelao que o governo central do Brasil teria com a Amaznia a partir de ento:o blefe. No dia 11 de agosto, depois de espalhar o boato de que a esquadra deCochrane estava fundeada nas proximidades, Greenfell enviou um ultimato aosgovernantes portugueses para que depusessem as armas ou aderissem ao Imp-rio do Brasil. Caso recusassem, Belm sofreria um bombardeio naval.

    A maioria dos portugueses e quase toda a burocracia colonial aderiramincondicionalmente e os nacionalistas viram-se alijados do poder. Da mesma for-ma que no recncavo baiano e em Pernambuco, a administrao de Jos Bonifciopreferia apostar nas lideranas conservadoras, geralmente portugueses de fortu-na adquirida na colnia, do que apoiar lderes brasileiros no exatamente afina-dos com o esprito da casa de Bragana. De 1823 para frente o que vai se ver oconstante embate entre as correntes conservadoras e nacionalistas, os primeiroscom o Partido Caramuru e os segundos com a Sociedade Filantrpica. As refre-gas polticas invariavelmente acabavam em choques armados.

    Aqui pertinente uma pergunta. Por que a violncia tornou-se a nica viapossvel? Onde estava o esprito conciliador ciosamente cultivado pelas nossaselites? A melhor explicao est na profunda diferena entre as duas colnias, todistintas que eram em estratgias, na cultura, na economia e at na viso demundo.

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    A verdadeira fundao do estado do Gro Par e Maranho se deu em 31de julho de 1751, com a assinatura do decreto pelo Marqus de Pombal. Paragovernar o novo Estado Pombal nomeia seu irmo Xavier de Mendona Furta-do, que imediatamente pe em prtica uma srie de medidas, como a criao dacapitania do Rio Negro, a criao do Diretrio dos ndios, a transformao daspovoaes e aldeias indgenas em vilas portuguesas, a liberdade legal concedidaaos ndios e a cassao dos poderes temporais da Igreja Catlica. A economia daprimeira fase colnia, que era baseada na extrao de drogas do serto extra-tivismo primrio , transforma-se radicalmente, fundamentando-se na produomanufaturada e na agricultura de pequenas propriedades. A exportao e o con-sumo local de produtos de borracha alimentavam uma indstria florescente, queproduzia artigos de fama mundial, como sapatos e galochas, capas imperme-veis, molas e instrumentos cirrgicos. Baseava-se tambm numa vigorosa inds-tria naval que chegou a produzir mais da metade da frota portuguesa no final dosculo XVIII. Esta indstria localizava-se em cidades das imediaes de Belm,onde ainda esto presentes os sinais da arte portuguesa de construir embarca-es. Os mais belos barcos regionais, que lembram os bergantins do sculo XVIII,continuam a ser fabricados nas tradicionais cidades paraenses e continuam a sin-grar os rios do grande vale. Quanto agricultura, a poltica de pequenas proprie-dades permitiu a introduo de culturas como as do algodo, anil, tabaco e caf,alm do rpido crescimento da economia do cacau no baixo Amazonas. O pro-grama agrcola foi reforado pela vinda de colonos portugueses, culminandocom a chegada das famlias oriundas da antiga provncia de Mazago. Em 1772,com a expanso e o crescimento dos territrios do oeste, o estado passa a se cha-mar Gro-Par e Rio Negro.

    Fotografia de 1867 por ocasio dos festejos da abertura do rio Amazonas ao comrcio mundial.

    Reproduo Acervo FAU-USP

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    O Gro-Par desfrutava de uma cultura urbana bastante desenvolvida, comuma capital de belo traado e edifcios requintados, onde se pode encontrarexemplares pioneiros da arquitetura neoclssica, obra de Antnio Jos Landi, oarquiteto de Bolonha contratado por Lisboa para embelezar a cidade de Belm efazer da miservel aldeia de Barcelos, sede da capitania do Rio Negro, uma cida-de habitvel. A obra de Landi, um sopro de ar inovador numa poca exclusiva-mente barroca, ainda no foi devidamente avaliada. A vida social de Belm erabastante austera, mas as noites tropicais eram inundadas de msica e canto, quevinham das casas particulares e das bandas a animar as praas repletas de transe-untes. desse perodo a obra de Tenreiro Aranha, o primeiro escritor de lnguaportuguesa nativo da regio, que tambm produziu uma interessante obra dra-mtica, que ele mesmo encenou em concorridas e controvertidas produes.Alis, o teatro era uma das paixes do povo de Belm, e foi ali naquela cidadeque algumas das ousadas peas de Gabriel Malagrida, missionrio jesuta, natura-lista e mstico espanhol que teria a duvidosa honra de ser o ltimo herege a serqueimado na fogueira pela Inquisio, foram encenadas e vistas pela primeira enica vez. A Casa de pera de Belm de 1775 e no Gro-Par e Rio Negroque a profisso de ator, por decreto oficial, deixa de ser considerada infame,seguindo uma ordenao de 1771, outorgada pelo rei Dom Jos I, de Portugal.Vale observar que a Casa de pera funcionou at 1812, entrando em decadnciadepois dos fastos de 1823. Uma das originalidades da sociedade nortista era opapel da mulher. Num olhar superficial, a condio da mulher no parecia distin-ta do que sucedia em outras partes, mesmo daquelas sociedades que se conside-ravam mais civilizadas. No entanto, algo de particular existia ali, como a intensaparticipao das mulheres na poltica, nos anos que ensangentaram o Gro-Par. No dia 16 de abril de 1833, fundada em Belm uma organizao secreta

    Vista de duas fachadas do Palcio dos Governadores do Gro-Par, obra de Antnio Jos Landi.

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    -USP

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    feminina como nunca houve em outras partes do Brasil. Era a Sociedade dasNovas Amazonas, que tinha como finalidade a formao de mulheres com virtu-des polticas capazes de dar provas de amor ptria e adeso liberdade. Inspira-das nas lendrias amazonas guerreiras, as Iluminadas, com se auto-intitulavam,chegaram a somar mais de mil seguidoras e foram muito influentes. Assim, ho-mens como Tenreiro Aranha, Patroni e o cnego Batista Campos no surgiramdo nada, mas foram caudatrios de uma civilizao prpria, em que a tradiocultural ibrica aparece recriada no apenas pelo mundo amaznico, mas absor-veu fontes inesperadas, com os ideais da revoluo francesa e a filosofia da Ilus-trao. Deu-se que em 1808, em represlia invaso francesa em Portugal, osnortistas reuniram uma armada e invadiram a Guiana Francesa. Em Caiena funcio-nava uma delegacia da Revoluo, dedicada a traduzir e a editar em espanhol eportugus as obras de agitao e textos filosficos, que eram infiltrados nos pa-ses vizinhos. As administraes coloniais espanholas e portuguesas temiam tantoesse trabalho que, em Belm, se algum fosse flagrado portando um desses tex-tos, como, por exemplo, um exemplar da declarao dos direitos do Homem,era preso e sumariamente fuzilado. Por ironia histrica, naquele antro de sub-verso, no exato covil onde se destilavam esses mortferos venenos, que osnortistas vo se meter e viver durante anos de ocupao, at a assinatura doTratado de Fontainebleau, em 1814, anos de convvio promscuo que deram aeles, oficiais e jovens burocratas, acesso a verdadeiras bibliotecas revolucionriasque foram sendo pouco a pouco transferidas para Belm, transportadas nos naviosde guerra e sob a proteo daqueles que deveriam confisc-las.

    Talvez por tudo isso, os intelectuais do Gro-Par tivessem conscincia deque no havia salvao fora da adeso ao Imprio do Brasil. Se continuassemportugueses, numa tentativa de fazer um Canad portugus, sofreriam um retro-cesso. A administrao do ultramar nunca mais seria como antes, nunca maisPortugal teria um Pombal e os portugueses estavam ficando ressentidos erevanchistas como conseqncia de tantos reveses: invaso francesa e transfern-cia da Corte para o Rio de Janeiro; recesso econmica e a independncia doBrasil. Havia o risco tambm de passarem para outras mos, se tornarem colniainglesa, ou francesa... Imaginem uma imensa Jamaica equatorial encravada aonorte, fazendo par com a Guiana francesa.

    Homens como o cnego Batista Campos sabiam do risco em aderir a umregime monrquico, e ainda por cima com um Imperador portugus de tem-peramento brusco no comando, quando o ideal que o regime fosse republica-no. Alm disso, estavam se juntando a um pas que tinha uma economia comple-tamente diferente e, em certos aspectos, at mais atrasada. A questo que aeconomia do Gro-Par tinha uma participao alta de mo-de-obra assalariada,de gente livre. Os escravos eram minoria, sem peso algum na produo de bens.J a economia do Imprio do Brasil no podia funcionar sem escravos. No Gro-Par a cultura no estava marcada pela relao senhor e escravo, pela sordidez docativeiro, de tal forma que a maioria do povo sequer tinha entrado na cadeia

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    produtiva, trabalhando para seu prprio sustento. E nem precisavam se esforarmuito, tamanha a exuberncia da natureza. J no Brasil, no havia massa degente que no fosse escrava, e todos trabalhavam para algum fazendeiro, porqueo sistema era de latifndios, tal qual no sul dos Estados Unidos, comandados porgrandes senhores, gente poderosa que mandava mais que El Rei em seus dom-nios. No Brasil a indstria era pequena, medocre e desprezvel produo deestearina, olarias, marcenarias , e se dizia at que no era vocao do pas. NoGro-Par, nas pequenas fazendas, todos iam juntos lavrar a terra, os propriet-rios e os empregados, coisa impensvel no Brasil. Das colnias portuguesas, oGro-Par era a nica a possuir uma pauta de exportaes onde os produtosmanufaturados suplantavam a matria-prima.

    Em compensao, a colnia chamada Brasil dependia amplamente da agri-cultura e da agroindstria, tendo, portanto, uma forte proporo de mo-de-obra escrava. Em meados do sculo XVIII, tanto o Gro-Par como o Brasilconseguem criar uma forte classe de comerciantes, bastante ligados importaoe exportao, senhores de grandes fortunas e bastantes autnomos em relao Metrpole. Mas enquanto os comerciantes do Rio de Janeiro deliberadamenteoptaram pela agricultura de trabalho intensivo, como o caf, baseando-se noregime da escravido, os empresrios do Gro-Par intensificaram seus investi-mentos na indstria naval e nas primeiras fbricas de beneficiamento de produ-tos extrativos, especialmente o tabaco e a castanha-do-par. O que as lideranasnortistas queriam, na falta de outra opo, era ocupar o espao poltico ps-colo-nial, fazer com que os lderes brasileiros tivessem neles os seus interlocutores,quando chegasse a hora.

    Isto no foi o que aconteceu. A anexao da Amaznia acabou se dandopela fora, por que exigia um projeto de nao e uma viso de poltica continen-tal, coisa que nem os nortistas nem os brasileiros tinham. E entre 1823 e 1840, oque vai se ver um processo de provocao deliberada por parte do Rio deJaneiro e a fria crescente da parte do Gro-Par. O resultado foi uma severaconvulso social e a conseqente represso.

    O mais importante historiador do perodo, Domingos Antonio Rayol, Barode Guajar, resume as responsabilidades dos homens de seu tempo e demonstraque os protagonistas a se digladiarem em lutas fratricidas, tratando cada um dedesmoralizar por sua vez o princpio de autoridade, arrastando as massas popula-res aos movimentos tumulturios, apagando nelas a noo dos deveres sociais,cavando o abismo em que mais tarde uns e outros se precipitaram, com irreparveldano e runa geral da Provncia.

    Entre 1823 e 1840, a regio norte sofre a interveno poltica e militar doImprio do Brasil, perde suas lideranas histricas e deixa de ser uma administra-o colonial autnoma para se transformar numa fronteira econmica. A derrotado Gro-Par e sua destruio pelo Imprio do Brasil, se me permitem a compa-rao um tanto audaciosa, foi, de certo modo, como se o Sul tivesse vencido a

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    Guerra de Secesso, nos Estados Unidos. Dezessete anos de guerra civil levarama Amaznia a perder 40% dos seus habitantes. A anexao destruiu todos osfocos de prosperidade. Entre os polticos do Imprio do Brasil e as lideranasnortistas nenhum dilogo foi possvel. E o vento levou o Gro-Par.

    O Brasil fruto de opes histricas como essa que acabamos de resumir.Evidentemente que opes erradas no so exclusivas de nossa histria, mas oproblema que a elas se colam os efeitos de uma perversa dicotomia, como se opas se configurasse por um eterno embate entre reas endemicamente pobres ereas historicamente ricas, entre regies intrinsecamente modernas e outrasatavicamente arcaicas. Nesse falso pressuposto, o Norte e o Nordeste represen-tam o arcaico, o atraso, um fardo que o Centro-Sul moderno precisa financiar,empurrar e suportar. Por tudo que vimos at agora, esta oposio arcasmo-modernidade no estaria sendo vista do avesso?

    Certamente, no caso da Amaznia, o rtulo de regio atrasada tem sidofoco de desastres. aqui que reside o problema. Especialmente porque se huma regio brasileira que melhor conhea a experincia da modernidade, esta aAmaznia, como prova a sua prpria histria. Nos quinhentos anos de presenada cultura europia, experimentou os mtodos mais modernos de explorao.Cada uma das fases da histria regional mostra a modernidade das experinciasque foram se sucedendo: agricultura capitalista de pequenos proprietrios em1760 com o Marqus de Pombal, economia extrativista exportadora em 1890com a borracha, e estrutura industrial eletroeletrnica em 1970 com a Zona

    Prefeitura de Rio Branco (Acre), dezembro de 1912.

    Acervo Fundao Oswaldo Cruz

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    Franca de Manaus. Os habitantes da Amaznia, portanto, no se assustam facil-mente com problemas de modernidade, o que vem provar que a regio bemmais surpreendente, complexa e senhora de um perfil civilizatrio insuspeitopela v ingenuidade. No por outro motivo que a Amaznia continua umconveniente mistrio para os brasileiros. Portanto, vamos com calma quandoaplicarmos esses rtulos.

    Experincias de modernidade j foram feitas na regio. Mas os tecnocratase o governo central foram incapazes de favorecer a aceitao de experinciaslocais no processo de integrao econmica, porque de uma rea atrasada nadase espera.

    Isto aparece claramente com o projeto agropecurio da ditadura militar. Oestmulo para a criao de gado tornou-se uma catstrofe para a Amaznia por-que o modelo agropecurio foi imposto a um estado, o Acre, onde no haviatradio de criao de gado, e que por causa disso perdeu sua cobertura florestaltradicional. Enquanto os tecnocratas de Braslia mandavam boi para os sertesdo Acre, os nativos se perguntavam: por que no usaram as zonas tradicionais depasto? Sim, pastos naturais como os existentes no baixo Amazonas, na regio debidos, Alemquer e Oriximin, ou em Roraima, cuia superfcie superior detodos os pastos europeus reunidos? Esse exatamente um caso em que a integra-ro econmica foi feita em detrimento da histria e da tradio locais. E, no en-tanto, a arrogncia no ficou apenas com os tecnocratas do governo militar, umcontingente imenso de salvadores da pobre e atrasada Amaznia estabeleceusuas agendas baseadas em concluses apressadas.

    Por exemplo, as propostas de neo-extrativismo de Chico Mendes tomadascomo soluo universal para a questo amaznica. Para comeo de conversa, elasse destinavam apenas a dois ou trs municpios do Acre. Chico Mendes era deXapuri, quase na fronteira com a Bolvia. Em Cruzeiro do Sul, alguns quilme-tros para o norte, no serviam mais. Era, portanto, absurdo focalizar-se nelas eapresent-las como solues de uso geral na regio, como fizeram alguns ecolo-gistas e certos movimentos de defesa da regio. Nos parmetros polticos de1985, quando a idia foi gerada, a luta por tais reservas extrativistas estava perfei-tamente explicada. No entanto, este foi um conceito que muito foi alargadodesde ento, a ponto de se tornar uma das mais usadas medidas de preserva-o do governo Sarney e, em termos polticos amplos, como espcie de propos-ta geral para a regio, pois o futuro da Amaznia estaria em sua total regresso economia extrativista.

    O extrativismo foi o subsistema econmico engendrado pelo chamado ci-clo da borracha. O seu impacto acabou por imprimir a face social da Amaznia,criando uma peculiar cultura, determinando sua estrutura de classes e at mesmoas formas de ocupao do espao geogrfico. Estou convencido de que ChicoMendes, como todo nativo da regio, conhecia muito bem o carter da velhasociedade extrativista, especialmente o carter dos proprietrios extrativistas, in-

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    capazes de enfrentar o modelo agropecurio e de defender suas propriedades. Asreservas extrativistas foram uma brilhante soluo ttica para preencher esse va-zio poltico. Era uma forma de mobilizar os seringueiros para a defesa da proprie-dade extrativista, j que os proprietrios estavam enfraquecidos, postos mar-gem pelo modelo econmico agropecurio e especulador.

    Uma economia como a extrativista, que sequer formou uma oligarquiafirme em seus propsitos, no pode servir de modelo de restaurao salvadora.Os proprietrios extrativistas foram saindo de cena, consumindo o melhor de suaenergia e capacidade criadora no exerccio de sobreviver a qualquer custo. Du-rante o tempo em que estiveram parasitando a natureza da regio, os extrativistasrelacionaram-se com os grupos hegemnicos do pas atravs de uma lamentvelsublimao poltica. Fingiam que tinham o poder, encenavam os seus desejos e,no final, acabavam por conciliar, seguindo a reboque com a sensao do devercumprido.

    Chico Mendes no estava fazendo nenhum tipo de apologia restauradorade uma pgina negra da histria regional ao propor a luta pela transformao dosseringais acreanos em reservas. Ele sabia que tais reservas eram solues muitolocalizadas, que no respondiam sequer ao problema do Acre, quanto mais deuma rea continental, diversificada, como a Amaznia brasileira. Falar, portanto,que o destino da Amaznia a regresso ao extrativismo, mesmo a um extrativismoidlico, socializado e mstico, mais uma vez atropelar a prpria Amaznia. Dequalquer modo, vamos supor que fosse possvel fazer da Amaznia uma imensareserva extrativista, um enorme playground para todos os diversos pirados daterra. Bem, este o sonho nada pirado da poderosa indstria farmacutica inter-nacional, dos grupos econmicos que trabalham com a biotecnologia, com aengenharia gentica e a etnobiologia. Assim, mais uma vez deseja-se que a Ama-znia oferea o que tem, mas que fique em seu lugar, como territrio primitivo,de gente primitiva, que no deve jamais ter acesso a essas tecnologias e ao con-trole econmico de seus produtos.

    O certo que se o extrativismo na Amaznia no est morto, deve serdefinitivamente erradicado por qualquer plano que respeite o processo histricoe a vontade regional. Mesmo porque a Amaznia no deve ser reserva de nada,nem celeiro, nem estoque gentico ou espao do rstico para deleite dos turistasps-industriais.

    Infelizmente, o modelo econmico brasileiro insiste em destruir riquezasque sequer foram computadas, movido por puro imediatismo econmico. Masno se deve agravar mais a regio impondo-se solues aparentemente ditadaspelo esprito da solidariedade. Especialmente porque contra os abusos possvelresistir, mas no h nada que se possa fazer contra a solidariedade.

    Se o Imprio do Brasil no tivesse tido que se haver com o Gro-Par, ou,como disse Jos Honrio Rodrigues, se no tivesse passado o tempo inteiroreprimindo revoltas populares, podemos estar certos de que o processo de for-

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    mao da sociedade brasileira teria chegado a outro resultado. Na realidade, oGro-Par foi reinventado em Amaznia pelo Imprio do Brasil, que propspara a regio derrotada uma nova e conveniente imagem, que ainda no se ajus-tou totalmente e s vezes causa desconforto. Os nativos da Amaznia sempre seespantam ao ver que, talvez para melhor vend-la e explor-la, ainda apresentamsua regio como habitada essencialmente por tribos indgenas, quando existemh muito tempo cidades, uma verdadeira vida urbana, e uma populao cultaque teceu laos estreitos com o mundo desde o sculo XIX. Alis, nisso residemas maiores possibilidades de resistncia e de sobrevivncia da regio. Com efeito,os povos indgenas da Amaznia h muito se conscientizaram de que nada con-seguiro se no se apoiarem nessa populao urbana que nica e que se expres-sa nas eleies e exerce presso sobre a cena poltica. pela participao polticadessa Amaznia urbana, reforando o jogo das foras polticas avanadas na cons-truo da democracia, que o problema da prpria explorao econmica daAmaznia poder encontrar uma soluo. Portanto, preciso reforar as estru-turas polticas regionais. A Amaznia conta uma populao de vinte milhes depessoas e com nove milhes de eleitores, o que no pouca coisa.

    Mrcio Souza romancista, autor da tetralogia Crnicas do Gro-Par e Rio Negro.

    Texto solicitado ao autor. Recebido e aceito para publicao em 31 de janeiro de 2005.