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Agroecologia e Movimentos Sociais

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Agroecologia e movimentos sociais.

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III SEMANA DE ATUALIZAÇÃO EM AGROPECUÁRIA Agroecologia: Base para a Segurança Alimentar

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AGROECOLOGIA E MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAMPO:

a urgência de uma vinculação para além do discurso

Luiz Antonio Ferraro Júnior Professor do Departamento de Tecnologia da Universidade Estadual de Feira de Santana. Doutorando do Centro de Desenvolvimento Sustentável da UnB e bolsista do Cnpq.

Neste texto, escrito em julho de 2007, por ocasião de minha participação na terceira

semana de atualização da Escola Agrotécnica de Santa Inês, busco reforçar a necessidade de

uma associação entre reforma agrária e agroecologia que, na prática, tem sido muito difícil

estabelecer.

A pouca clareza de movimentos e técnicos sobre o papel da agroecologia na

sustentabilidade da reforma agrária tem relegado a agroecologia a uma função quase estética

ou de inserção eventual em nichos diferenciados de mercado. Confunde-se agroecologia e

agricultura orgânica. Agroecologia como a possível cereja do bolo e não como farinha e ovo

do mesmo.

A plasticidade do sistema vigente confere uma grande habilidade em alterar alguns de

seus elementos sem que isso o prejudique. Assim como o que não mata engorda, aquilo que

não muda o sistema o mantém, ou mesmo o fortalece. A reforma agrária, que modifica em

alguns espaços a estrutura fundiária vigente, pode, a médio ou longo prazo, até ampliar a

desigualdade agrária e se colocar a serviço do agronegócio, mesmo que temporariamente

pareçam uma política distributiva. Sem se inscrever em um projeto mais amplo, a reforma

agrária muda algo para não mudar nada.

Assim, desenvolvo apenas três argumentos que, juntos, visam estabelecer a vinculação

inexorável da reforma agrária e da agroecologia para que os técnicos e estudantes que o

debaterão em Santa Inês, assumam mais fortemente o compromisso com esta construção

articulada da transformação agrária e agrícola.

ARGUMENTO 1: A reforma agrária é condição necessária para a agroecologia.

Considerando-se a natureza artesanal e biodiversa da agroecologia ela não pode se

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realizar sem uma profunda mudança da estrutura fundiária brasileira.

A máxima biodiversidade e a mínima dependência de recursos externos são dois

princípios agroecológicos que implicam em conhecimento profundo, planejamento detalhado

e intervenções cuidadosas sobre o espaço. O/a agricultor(a) deve entender as peculiaridades

da região, do clima, da unidade produtiva, seus micro-sítios, suas aptidões, limitações,

variações ao longo do ano. Com este conhecimento o/a agricultor(a) em função de suas

necessidades alimentares, de sua comunidade, sua região vai promovendo intervenções que

inserem a agrobiodiversidade no sistema nos espaços e momentos adequados.

Tabela 1: Síntese da Estrutura Fundiária Brasileira em 2003

N de imóveis % Área (hectare) % Área média

(hectare)

Pequena (menos de 200ha) 3.895.968 91,9 122.948.252 29,2 31,6

Média (200 a 2000ha) 310.158 7,3 164.765.509 39,2 531,2

Grande (acima de 2000ha) 32.264 0,8 132.631.509 31,6 4.110,8

Total 4.239.421 100 420.345.382 100 99,2

Fonte: INCRA

Como podemos observar na tabela anterior, na maior parte das terras brasileiras (71%)

esta artesania não é possível. Há mais terra cultivável localizada em unidades (im)produtivas,

acima de 2000 hectares, que em áreas com menos de 200 hectares. Um terço das terras

cultiváveis do país estão geridas por apenas trinta mil sujeitos que gerenciam, em média, cada

um, mais de 4 mil hectares. Não há agroecologia possível nestas condições. A maior parte das

terras fica apta somente à gestão massificada, homogênea, intensa em energia e dinheiro e de

alto impacto oferecida pelas empresas que oferecem pacotes prontos, da genética à colheita. O

padrão da agricultura se torna o da monocultura intensiva.

Dois aspectos agravam o problema fundiário, um é o fato do modelo corrente de

agricultura (via empresas, universidades, escolas técnicas, centros de pesquisa) se tornar

hegemônico e capturar todo universo da agricultura brasileira, o outro agravante é que a maior

parte dos pequenos proprietários brasileiros ocupa áreas marginais. Grande parte das

pequenas propriedades do campesinato se localizam em áreas menos férteis, de climas mais

instáveis e secos, mais distantes e menos servidas de estrutura (transporte, saúde, educação).

A área média das pequenas propriedades (31,6 hectares) é menor que o módulo fiscal da

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maioria das regiões do país. Programas fundiários como o “Minha roça” têm titulado, em

pleno sertão baiano, áreas com um ou dois hectares, é a consagração do “ridículofúndio”. Este

nível de acesso à terra não condiz com as necessidades mínimas de uma família sertaneja, que

além de seus roçados precisa de área de caatinga, de frutas, de áreas para pastoreio de

animais.

Agroecologia, ainda que voltada para o bem estar e soberania alimentar, não é

justificativa para a minifundiarização aviltante. Propostas como a “mandala” ou a produção

permacultural devem cuidar para não se tornarem argumento em favor da má distribuição de

terras, ainda que existam casos de sobrevivência em um ou dois hectares estes casos não são

generalizáveis (restrição do alcance dos nichos de mercado, instabilidade climática, risco).

Ao contrário disso a agroecologia requer reforma agrária.

Para o bem dos/as agricultores/as e suas famílias, estes precisam de terra em quantidade

e qualidade suficientes, o/a agricultor(a) e sua família devem ocupar áreas conectadas às áreas

urbanas, seus mercados e seus serviços públicos.

O projeto agroecológico não é um projeto de isolamento e simples auto-abastecimento, é

um projeto a serviço da sociedade e da qualidade de vida de todas as pessoas, por isso, o/a

agricultor(a) e sua família precisam de terra em quantidade e qualidade suficientes, e devem

ocupar áreas conectadas às áreas urbanas, seus mercados e seus serviços públicos.

Para que menos áreas sejam degradadas, para que mais produção agroecológica sirva ao

Brasil e para que o campesinato tenha acesso aos serviços da assistência técnica oficial, do

ensino médio e superior em ciências agrárias e à pesquisa produzida pela Embrapa, mais e

melhores áreas precisam estar a serviço do projeto agroecológico, por isso, o/a agricultor(a) e

sua família precisam ocupar mais e mais terras, conectadas às áreas urbanas, seus mercados e

seus serviços públicos.

ARGUMENTO 2: A reforma agrária não é condição suficiente para a agroecologia.

Ainda que a reforma agrária seja imprescindível para a agroecologia, como vimos no

argumento anterior, ela, sozinha, não garante qualquer avanço agroecológico.

Muitos assentamentos no sul do país tem sido porta de entrada para as sementes

transgênicas vindas da Argentina. No oeste da Bahia, muitos assentamentos têm vendido, a

preços ridículos, suas matas de cerrado para carvoagem. No sul da Bahia alguns assentados

retiram áreas de mata atlântica e até cabrucas cheias de cacau para estabelecer pastos para

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gado. Estes assentados crêem estar se tornando verdadeiros produtores, seguem o modelo dos

grandes da região em que estão, afinal é este o modelo que vêem “dar certo”.

O discurso e o compromisso agroecológico da “Via campesina” não conseguem romper

esta tendência. O caminho que leva à monocultura, à agricultura capitalista convencional é

uma trilha muito bem marcada.

Em cada região as lojas e os técnicos do sistema oficial que atendem aos agricultores ,

sem má fé, acolhem os novos produtores dentro da agricultura convencional. É nesta

“acolhida”, neste abraço de urso, que eles encontram os insumos, o crédito, os conhecimentos

e os compradores da produção. As análises de viabilidade e projetos feitos para os

assentamentos são pautados neste modelo vigente. Assim, a trilha que “puxa” os camponeses

para este modelo é marcada pelo caminho percorrido pela técnica, pelo crédito, pelo mercado

e pela tecnologia.

Os movimentos que não estão focados na luta pela terra, como o MPA, estão lutando por

renegociação de dívidas, por mais crédito, por assistência técnica. Elementos que acabam

também buscando a inserção dos camponeses com-terra no modelo, ao qual os sem-terra

terminam chegando de uma vez só (terra +Pronafs).

Outra fator que demarca com força a trilha da agricultura convencional é de ordem

cultural e subjetiva. O/a agricultor(a) está condicionado(a) a buscar o seu caminho. É

comuníssimo, nos assentamentos, ouvir relatos de como desapareceram a solidariedade, a

parceria, o convívio e a própria comunidade que surgiram no período de acampamento. Assim

que ocupam a área e são reconhecidos começa um período de ansiedade pela demarcação

individual das terras, antes da qual a produção coletiva para auto-abastecimento é só um

“purgatório” antes do “paraíso” do empreendimento familiar. O próprio conceito de

agricultura e agricultor familiar são indutores deste individualismo “salve-se quem puder”.

Nestes moldes a agroecologia não é possível. Distribuir terras não induz agroecologia, pode

induzir minifundiarização convencional, degradante e depauperizante.

A agroecologia está pautada em processos associativos e relação agricultor(a)-

agricultor(a) que viabilizem e amplifiquem a soberania alimentar, a produção de

conhecimentos, a proteção e partilha de patrimônio genético.

A construção da agroecologia é necessariamente comunitária e não apenas familiar. O

sucesso da unidade produtiva não se realiza sem o sucesso da comunidade de produtores. O/a

produtor/a agroecológico não se viabiliza sozinho. A busca das “huellas” (pegadas

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agroecológicas nos saberes e práticas da comunidade), os experimentos agroecológicos

coletivos, as trocas de serviços e produtos, as feiras solidárias e as festas são partes

constitutivas da agroecologia.

É óbvio, mas não desnecessário, dizer que sem a busca da agroecologia não ocorre

agroecologia. Agroecologia requer distribuição de terras mas também uma revolução nos

objetivos, na tecnologia e na organização da produção assim como no tecido social que

envolve cada unidade. Não é qualquer terra, qualquer assistência técnica, qualquer mercado,

qualquer conjunto de relações sociais e relações cidade-campo que sustenta o projeto

agroecológico.

ARGUMENTO 3: A agroecologia é condição necessária para a sustentabilidade da

reforma agrária.

Bem, tendo argumentado a importância da reforma agrária para a agroecologia e

também de outras transformações da agricultura necessárias à mesma, resta saber se a reforma

agrária precisa da agroecologia.

Sem pretender neutralidade política ou ideológica há que se reconhecer que a

agroecologia compõe um projeto revolucionário, de transformação social e econômica. Este

projeto precisa da reforma agrária. Se a reforma agrária precisa deste projeto é algo dúbio,

sobre o que precisamos desenvolver argumentos.

É possível imaginar uma reforma agrária que crie milhões de minifúndios à imagem e

semelhança de seus irmãos maiores. É possível imaginar que cada assentado/a, convertido em

pequeno/a agricultor/a familiar, se insira no mercado como miniatura do/a grande produtor/a,

ou seja, enquanto o grande opera créditão, pra comprar pacotão, plantar áreazona e obter uma

rendazona o pequeno opera creditozinho, com pacotinho, em áreazinha, obtendo uma

rendazinha. Ser contra ou a favor disso é uma questão meramente ideológica, sou contra ou a

favor da desigualdade, esta idéia me parece boa ou má, errada ou certa.

Entretanto, podemos interpretar as possibilidades e significados desta opção da reforma

agrária como difusão de miniaturas da agricultura convencional independentemente de nossos

posicionamentos políticos.

Há, na agricultura convencional, o conceito de escala, principalmente quando falamos

dos pacotes tecnológicos das “grandes culturas” (é este o termo que usamos na universidade),

a operação das máquinas, os preços dos insumos segundo volumes maiores ou menores, o

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tamanho do caso de sementes, determinam uma área teórica ideal para máxima rentabilidade,

são módulos de produção. Normalmente, os módulos para feijão, milho, arroz, soja, estão

acima de 100 hectares. Se pensarmos nas grandes culturas irrigadas os números aumentam.

Isso significa que quem produz em áreas menores subaproveita um ou mais itens do “ótimo”

do pacote. Negocia em condições piores as compras e as vendas. Assim, o pequeno produtor

familiar não será uma miniatura proporcional de seu espelho maior, se ele operar 10% da área

do seu vizinho maior obterá menos de 10% da renda que o mesmo obtém em 10% de sua

área. Portanto, a inserção dos minifúndios no modelo vigente requer, no mínimo, uma ampla

articulação dos/as pequenos/as proprietários/as para aquisições, produção e comercialização.

Só assim eles podem se tornar uma miniatura proporcional dos grandes produtores. Não está

dito que tal articulação, tal engenharia que permita total sintonia entre 10-20-30 diferentes

proprietários, é realizável na prática.

O outro caminho dos minifúndios, fora do projeto agroecológico, é a busca de nichos

específicos de mercado. Os defensores da pequena agricultura apontam vários caminhos para

a inserção mais qualificada da mesma, defendem, por exemplo, a pluriatividade que inclua

empreendimentos não agrícolas, como o turismo rural. Há ainda produtos específicos como os

produtos com formatos especiais (mini, decorativos) e os produtos altamente elitizados (alho-

poró, couve-de-bruxelas, endívia). Há a venda direta que aumenta a margem de lucro na

comercialização e os fatores de diferenciação da produção como a produção orgânica e a

certificação social. É aí que se inscreve a agricultura orgânica, no que tange a produção ela é

uma tecnologia baseada na substituição de insumos químicos pelos orgânicos, podendo ser

realizada pelo latifúndio e aplicada à monocultura. A agricultura orgânica, para o minifúndio,

é uma forma de agregar valor de mercado à pequena produção. Essa alternativa, acaba

gerando concorrência e uma crescente desigualdade entre os minifúndios, a reforma agrária dá

certo para uns, mas não para outros.

Fazendo uma leitura crítica destas alternativas podemos dizer que, sem um projeto para

além da distribuição de terras, o projeto da reforma agrária é tão somente um projeto

capitalista de subinclusão no que a agricultura convencional oferece. Ou uma subinclusão nas

alternativas de pouco interesse para os empresários mais capitalizados. A reforma agrária faz

com que sem-terras se tornem produtores e consumidores marginais do sistema, até que este

deseje requerer sua força de trabalho ou suas terras. Trata-se de uma condição de semi-

proletarização, seja pela venda direta ou indireta de sua força de trabalho ao mercado. Indireta

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quando se dá pela sua participação em um elo mais frágil e pouco rentável de uma cadeia

produtiva, quando eles ficam a serviço de quem processa, transporte e/ou vende o produto.

Direta quando se dá pela venda de dias de trabalho nos produtores próximos.

Assim, terras e pessoas ficam em “stand-by”, à disposição do sistema. Quando aquela

região surgir para uma determinada cadeia produtiva se instalam os conglomerados de

laticínios, carnes, processamento de alimentos e exploram estes “felizes” minifundiários ou,

caso a produção em questão seja de fato interessante economicamente, suas terras são

compradas pelos agricultores que terão melhores condições de produzir dentro do sistema de

grande mercado.

Espero que esta curta argumentação tenha sido suficiente para convergirmos quanto à

inviabilidade da reforma agrária dentro do sistema atual e dentro da agricultura convencio nal,

seja ela orgânica, certificada ou mesmo verticalizada e pluriativa. Se concordarmos neste

ponto podemos passar ao fechamento deste argumento com a idéia de que a agroecologia

oferece sustentabilidade à reforma agrária e que, portanto, a reforma agrária precisa da

agroecologia assim como esta depende da reforma agrária.

O projeto agroecológico se fundamenta em soberania alimentar, qualidade de vida,

qualidade ambiental, autonomia, endogenia e curto-circuitos comerciais. Ele se volta para

uma comunidade, um município e uma região. Com o desenvolvimento agroecológico em

uma região, fortalece-se uma ampla rede de economia solidária, que pode ir incorporando

serviços e produtos não-agrícolas, do campo e da cidade. O sucesso de um depende do

sucesso de outros e isso pode gerar o ciclo virtuoso que pode ecoar qualidade de vida para

toda a região. Os fluxos econômicos e energéticos se modificam, a entrada de recursos

econômicos e energéticos para a produção se reduzem, assim como o volume de produtos que

saem da região também se reduz, ampliam-se os fluxos internos de recursos. Os sistemas

podem ir se conectando em direção à uma grande rede agroecológica, envolvendo cidade e

campo. Neste cenário utópico, mas que sinaliza uma direção possível, a reforma agrária não é

mais um estado temporário, ou marginal, ela é o centro de uma nova matriz econômica

regional.

Enquanto os movimentos sociais, os profissionais e as pessoas que participam das lutas

em parceria com o campesinato, não perceberem quão inócua pode se tornar a luta pela terra,

não perceberem a premência de uma transformação para além da fundiária, estaremos

gastando nossas forças em um projeto “gattopardiano” de mudar algo para não mudar nada.