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m época de seca, quando há pouca água disponí- vel, a cana-de-açúcar, como a maioria das plantas, lança mão de um expediente para garantir sua sobrevivência: pára de crescer. Para minimizar os efeitos do estresse hídrico, permanece quase dor- mente e desencadeia uma série de mecanismos de autodefe- sa. Fecham-se, por exemplo, os estômatos de suas folhas, que funcionam como poros responsáveis pela entrada e saída de gases e água da planta. Um dos principais hormônios envol- vidos nesse processo de adaptação à estiagem é o ácido abscí- sico (ABA), produzido naturalmente pela cana. Estudos re- centes indicam que o ABA também inibe a expressão de genes de defesa da planta, tornando-a mais suscetível a patógenos. Tudo isso é sabido, está nos livros e artigos científicos de fi- siologia vegetal. Novidade é descobrir que uma bactéria noci- va à cana, a Leifsonia xyli da subespécie xyli, também parece ser capaz de produzir esse hormônio e talvez usá-lo para pro- vocar uma doença conhecida como raquitismo-das-soquei- ras, para a qual não há cura. A suspeita surgiu depois que pesquisadores de São Paulo terminaram de seqüenciar o ge- noma integral da bactéria – que gerou um artigo científico publicado em agosto com destaque de capa na revista norte- americana Molecular Plant-Microbe Interactions – e começa- ram a analisar a função de alguns de seus 2.351 genes. Há indícios de que a ação de um gene, denominado desA, leve a Leifsonia a produzir ácido abscísico no interior da cana. Se essa hipótese estiver correta, o raquitismo-das-soqueiras, que redunda em plantas de porte reduzido e com peso até 50% menor, pode ser desencadeado pelas altas concentrações do hormônio produzido pela bactéria no interior da cana. É como se o ácido abscísico sintetizado pelo fitopatógeno man- dasse permanentemente um sinal para a planta de que há pouca água disponível no ambiente e o melhor a fazer é pa- rar de crescer. De quebra, o ABA ainda desativa os genes de defesa da cana, criando condições ideais para a bactéria se multiplicar. “Até agora não há registro de uma bactéria de planta que produza esse hormônio”,afirma o pesquisador Luis Eduardo Aranha Camargo, da Escola Superior de Agricultura 40 SETEMBRO DE 2004 PESQUISA FAPESP 103 Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), um dos coordenadores do projeto que seqüenciou o genoma da bactéria. “Mas testes in vitro indicam que a Leifsonia produz o ácido abscísico e esse dado pode ser importante para enten- dermos a sua patogenicidade.”O passo seguinte é comprovar se, dentro da cana, a bactéria realmente produz o hormônio e estabelecer uma ligação entre o ácido e a doença na planta. Feita no âmbito da rede de Genomas Agronômicos e Am- bientais, mantida pela FAPESP, a iniciativa que mapeou o ge- noma do fitopatógeno custou US$ 700 mil. A FAPESP entrou com US$ 650 mil e a cooperativa Copersucar com US$ 50 mil. Além de levantar a questão do ácido abscísico, o seqüencia- mento do genoma da Leifsonia – composto de um cromos- somo circular com 2,6 milhões de pares de bases, as unidades químicas que formam o DNA – produziu outras informações importantes para entender o comportamento do fitopatóge- no. Os pesquisadores constataram que 13% dos genes da bac- téria são, na verdade, pseudogenes: 307 dos 2.351 genes estão truncados, incompletos. “Essas alterações podem fazer os ge- nes perderem a sua função”,diz a pesquisadora Claudia Bar- ros Monteiro Vitorello, da Esalq-USP, outra coordenadora do projeto. Nenhum outro fitopatógeno apresenta quantida- Degenes e plantas anãs Genoma da bactéria Leifsonia xyli fornece pistas sobre o raquitismo da cana-de-açúcar CIÊNCIA AGRONOMIA E

AGRONOMIA Degenes eplantas...noma do fitopat ógeno custou US$ 700 mil.A FAPESP entrou com US$ 650 mil e a cooperativa Copersucar com US$ 50 mil. Além de levantar a questão do ácido

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Page 1: AGRONOMIA Degenes eplantas...noma do fitopat ógeno custou US$ 700 mil.A FAPESP entrou com US$ 650 mil e a cooperativa Copersucar com US$ 50 mil. Além de levantar a questão do ácido

m época de seca, quando há pouca água disponí-vel, a cana-de-açúcar, como a maioria das plantas,lança mão de um expediente para garantir suasobrevivência: pára de crescer. Para minimizar osefeitos do estresse hídrico, permanece quase dor-

mente e desencadeia uma série de mecanismos de autodefe-sa. Fecham-se, por exemplo, os estômatos de suas folhas, quefuncionam como poros responsáveis pela entrada e saída degases e água da planta. Um dos principais hormônios envol-vidos nesse processo de adaptação à estiagem é o ácido abscí-sico (ABA), produzido naturalmente pela cana. Estudos re-centes indicam que o ABA também inibe a expressão de genesde defesa da planta, tornando-a mais suscetível a patógenos.Tudo isso é sabido, está nos livros e artigos científicos de fi-siologia vegetal. Novidade é descobrir que uma bactéria noci-va à cana, a Leifsonia xyli da subespécie xyli, também pareceser capaz de produzir esse hormônio e talvez usá-lo para pro-vocar uma doença conhecida como raquitismo-das-soquei-ras, para a qual não há cura. A suspeita surgiu depois quepesquisadores de São Paulo terminaram de seqüenciar o ge-noma integral da bactéria – que gerou um artigo científicopublicado em agosto com destaque de capa na revista norte-americana Molecular Plant-Microbe Interactions – e começa-ram a analisar a função de alguns de seus 2.351 genes.

Há indícios de que a ação de um gene, denominado desA,leve a Leifsonia a produzir ácido abscísico no interior da cana.Se essa hipótese estiver correta, o raquitismo-das-soqueiras,que redunda em plantas de porte reduzido e com peso até50% menor, pode ser desencadeado pelas altas concentraçõesdo hormônio produzido pela bactéria no interior da cana. Écomo se o ácido abscísico sintetizado pelo fitopatógeno man-dasse permanentemente um sinal para a planta de que hápouca água disponível no ambiente e o melhor a fazer é pa-rar de crescer. De quebra, o ABA ainda desativa os genes dedefesa da cana, criando condições ideais para a bactéria semultiplicar. “Até agora não há registro de uma bactéria deplanta que produza esse hormônio”, afirma o pesquisador LuisEduardo Aranha Camargo, da Escola Superior de Agricultura

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Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP),um dos coordenadores do projeto que seqüenciou o genomada bactéria.“Mas testes in vitro indicam que a Leifsonia produzo ácido abscísico e esse dado pode ser importante para enten-dermos a sua patogenicidade.” O passo seguinte é comprovarse, dentro da cana, a bactéria realmente produz o hormônioe estabelecer uma ligação entre o ácido e a doença na planta.

Feita no âmbito da rede de Genomas Agronômicos e Am-bientais, mantida pela FAPESP, a iniciativa que mapeou o ge-noma do fitopatógeno custou US$ 700 mil. A FAPESP entroucom US$ 650 mil e a cooperativa Copersucar com US$ 50 mil.Além de levantar a questão do ácido abscísico, o seqüencia-mento do genoma da Leifsonia – composto de um cromos-somo circular com 2,6 milhões de pares de bases, as unidadesquímicas que formam o DNA – produziu outras informaçõesimportantes para entender o comportamento do fitopatóge-no. Os pesquisadores constataram que 13% dos genes da bac-téria são, na verdade, pseudogenes: 307 dos 2.351 genes estãotruncados, incompletos.“Essas alterações podem fazer os ge-nes perderem a sua função”, diz a pesquisadora Claudia Bar-ros Monteiro Vitorello, da Esalq-USP, outra coordenadorado projeto. Nenhum outro fitopatógeno apresenta quantida-

Degenes eplantas

anãs

Genoma da bactéria Leifsonia xylifornece pistas sobre o raquitismo da cana-de-açúcar

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de tão elevada de genes aparentemente não-funcionais. Detamanho semelhante ao da Leifsonia, o genoma da Xylellafastidiosa – bactéria que causa a clorose variegada dos citros(CVC), doença conhecida como amarelinho nos laranjais –apresenta apenas 2% de pseudogenes.

ode até ser que os 307 genes incompletos da Leif-sonia não sirvam mais para nada, sejam um en-tulho genético, mas os cientistas acreditam queeles tenham um significado. São um indício deque a bactéria passa por um processo chamado

decaimento genômico. Genes que já foram úteis – e agoranão são mais – perdem progressivamente a sua integridade efuncionalidade. Por que isso ocorre? Possivelmente porquea bactéria, ao longo de sua evolução biológica, mudou a suaforma de viver e hoje não precisa manter intactos tantosgenes como no passado. A Leifsonia xyli da subespécie xylié um microorganismo que se especializou em viver numúnico lugar: nos vasos do xilema da cana, a parte da plantaencarregada do transporte de água e sais minerais das raí-zes para a copa. Fora desse hábitat, não se encontra o pató-geno. Portanto, genes fundamentais para a preservação de

bactérias que vivem ao ar livre não são um item de primei-ra necessidade para a bactéria da cana.“Ela não precisa maisde muitos de seus genes”, comenta Aranha. Essa hipótesetambém está sendo testada por meio da comparação daLeifsonia xyli subespécie xyli com espécies próximas que sãode vida livre.

Para se defender do ataque de outros microorganismosque habitam o xilema da cana, a Leifsonia parece dispor de ummecanismo capaz de ejetar de seu organismo toxinas produ-zidas por outros organismos que colonizam a cana, como abactéria patogênica Xanthomonas albilineans. Aliás, a pró-pria Xanthomonas tem uma “bomba” que expulsa venenoslançados por outros seres. Esse traço comum pode explicar aconvivência das duas bactérias no interior da planta. A lon-go prazo, a meta dos pesquisadores é entender como o siste-ma de proteção presente na Leifsonia e na Xanthomonas fun-ciona – e quais genes estão envolvidos nesse mecanismo.“Nofuturo, talvez possamos alterar geneticamente a cana e dotá-la de uma bomba bacteriana que expulse toxinas produzidaspor microorganismos que a atacam”, diz o engenheiro agrô-nomo Reinaldo Montrazi Barata, da Esalq. Assim, poderiasurgir uma variedade da planta mais resistente a doenças. •

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A Leifsonia xyli(acima) infecta os vasos do xilema da cana (foto maior):hormônio da bactériapode ser a causa da doença

Efeitos do raquitismo:cana infectada (à esq.) tem distância menorentre os nós do caulee pode pesar apenasa metade de uma planta sadia (à dir.)

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