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EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE: estudos e pesquisas Volume 1

AGUIAR. Educacao e Diversidade

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EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE:estudos e pesquisas

Volume 1

Realização:

Coordenação de Educação a Distância/Universidade Federal de Pernambuco

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade/MEC

Apoio:

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPEd

(Gestão 2005-2009)

Coordenação de Educação a Distância CEAD/UFPESônia Schechtman SetteMaria de Fátima D. Angeiras

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE:estudos e pesquisas

Volume 1

ORGANIZADORES

Coordenadora GeralMárcia Angela da S. Aguiar

Coordenadores de áreaAhyas Siss

Iolanda de OliveiraJanete Maria Lins de AzevedoMárcia Soares de Alvarenga

Petronilha Beatriz Gonçalves e SilvaRachel de Oliveira

AUTORES

Adlene Silva Arantes / Fabiana Cristina da Silva Aloísio Jorge de Jesus MonteiroAna Amélia de Paula LaborneAna Paula dos Santos Gomes

Angela Maria Monteiro da Motta PiresAntônia Vitória Soares AranhaCarolina dos Santos de Oliveira

Cláudia Regina de PaulaIolanda de Oliveira

Maria Amália de Almeida CunhaMaria Angela Alves de Oliveira

Recife – PEUFPE – MEC/SECAD

2009

Copyright© 2009 Gráfca J.LuizVasconcelosRua da Conceição, 48 – Boa Vista – Recife – Pernambuco

É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação,por quaisquer meios, sem autorização prévia, por escrito, da editora.

Os textos contidos neste livro são de inteira responsabilidade de seus autores.

RevisãoMaria de Fátima Duarte Angeiras

CapaCarlos Alexandre Lapa de Aguiar

DiagramaçãoKaliana Virginia Pinheiro Lima

Impressão e AcabamentoGráfca J. Luiz Vasconcelos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Aguiar, MarciaAngela da S. (org.) [ ]

Educação e diversidade: estudos e pesquisas. MarciaAngela da Silva Aguiar,Ahyas Siss, Iolandade Oliveira, Janete Maria L. de Azevedo, Márcia Soares deAlvarenga, Petronilha Beatriz G. eSilva, Rachel de Oliveira. (orgs.) [ ]. Recife: Gráfica J. LuizVasconcelos Ed., 2009

Vários autores– dois volumes

1. Educação–Brasil. 2. Educação de jovens e adultos–Brasil. 3. Educação do campo - Brasil. 4.Educação e diversidade étnico-racial - Brasil. 5. Educação indígena - Brasil. 6. Educação especial -Brasil. 7. Políticas públicas. I.Aguiar. II. Oliveira. III.Azevedo. IV.Alvarenga.V. Silva. VI.Oliveira.

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SUMÁRIO

VOLUME 1

Apresentação

História e Cultura Africana e Afro-brasileira: repercussão da Lei 10.639 nas escolas municipais da cidade de Petrolina - PEAdlene Silva ArantesFabiana Cristina da Silva 09

Identidades, Memórias e Perspectivas do Movimento de Educação Escolar Indígena no BrasilAloísio Jorge de Jesus Monteiro 39

Trajetórias de Docentes do Ensino Superior: ações afirmativas no contexto da Universidade Federal de Minas GeraisAna Amélia de Paula Laborne 59

A Educação para as Relações Étnicos-raciais a partir do Patrimônio Cultural Negro: educação patrimonial da cultura afro-brasileira e os (as) intelectuais negros(as)Ana Paula dos Santos Gomes 91

Projeto Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável: a experiência pedagógica de Lagoa do Itaenga-PEAngela Maria Monteiro da Motta Pires 115

Educação do Campo na UFMG: do sonho aos desafiosAntônia Vitória Soares Aranha 143

As Alunas da Educação Básica e a Leitura que elas fazem das Adolescentes Negras na Revista AtrevidaCarolina dos Santos de Oliveira 161

Política, Educação e Afro-brasilidade: o movimento negro em Nova IguaçuCláudia Regina de Paula 181

A Educação das Relações Raciais nos Planos Nacionais da EducaçãoIolanda de Oliveira 203

A Relação Família-escola Rural do Campo: os desafios de um objeto em construçãoMaria Amália de Almeida Cunha 213

A Integração entre a Qualificação Profissional e o Ensino Fundamental (EJA) no Projovem Recife: a materialização da integração entre a formação geral e a formação profissional Maria Angela Alves de Oliveira 235

APRESENTAÇÃO

A superação das históricas desigualdades socioeducacionais no país requer um esforço gigantesco dos governos e da sociedade no desenvolvimento de ações concretas que ampliem as conquistas de cidadania. O reconhecimento político da educação como instância que contribui para a afirmação da cidadania constitui um impulso relevante para reforçar e ampliar as ações desenvolvidas pelos setores comprometidos com a transformação da sociedade e com a inclusão social.

Em um país cujo modelo de desenvolvimento excluiu parcela significativa da população de ter acesso à escola ou nela permanecer, a agenda de inclusão educacional enfrenta grandes desafios no que se refere à universalização do acesso e permanência bem sucedida no sistema escolar. A garantia de educação para todos exige a promoção de políticas públicas consistentes e de largo alcance.

Com a intenção de contribuir para a efetividade de políticas que buscam a afirmação de atores sociais tradicionalmente pouco considerados, a Universidade Federal de Pernambuco – UFPE consolidou, em dezembro de 2007, uma parceria com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação - SECAD/MEC visando a realização de atividades acadêmico-científicas para apoiar as políticas públicas voltadas à educação de jovens e adultos, educação e diversidade étnico-racial, educação do campo, educação indígena, educação especial, dentre outras.

Esta parceria contou com o apoio da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), cuja experiência em projeto similar muito contribuiu para o desenvolvimento das ações programadas pela Coordenação de Educação a Distância da UFPE, setor ao qual esteve vinculado o Projeto Educação e diversidade: estudos e ações em campos de desigualdades sócio educacionais. O apoio da ANPEd foi de fundamental importância para ampliar a participação da comunidade acadêmica nos esforços para a promoção da inclusão educacional, mediante as ações de formação continuada.

No âmbito do Projeto, foram incentivados os estudos que contemplam, no campo educacional, as discussões sobre questões étnico-raciais, educação de jovens e adultos e educação do campo com o propósito de alargar o conhecimento nessas áreas.

Os resultados deste esforço estão consubstanciados nos artigos que compõem

a presente coletânea - Educação e Diversidade: estudos e pesquisas - que vem a público como uma inestimável colaboração de instituições e de pesquisadores comprometidos com a democratização da sociedade brasileira e com a oferta de uma educação de qualidade para todos.

Presidente: Márcia Angela da S. Aguiar Gestão 2005-2009

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

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HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA: repercussão da Lei 10.639 nas escolas municipais da cidade de Petrolina - PE

Adlene Silva Arantes1

Fabiana Cristina da SilvaIntrodução

Sabemos que a educação tem sido entendida como um direito social e um processo de desenvolvimento humano. Como pode ser observado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a educação escolar corresponde a um espaço sociocultural e institucional, responsável pelo trato pedagógico do conhecimento e da cultura. Sendo assim, estaríamos, segundo Cavalleiro (2006), trabalhando em solo pacífico, porque universalista. Mas, na realidade, as práticas educativas, que se pretendem universalistas, isto é, iguais para todos, acabam sendo as mais discriminatórias. Daí a luta histórica dos movimentos sociais, e, de maneira específica, a dos movimentos negros brasileiros por uma sociedade mais justa e uma educação que valorize cada sujeito, inclusive o negro, sempre excluído da história (ou incluído de maneira estereotipada) e da cultura deste país.

Pela via legal, ou seja, por meio da legislação, os direitos do povo negro foram assegurados, principalmente, na segunda metade do século XX. A partir da criação da organização das Nações Unidas (ONU), em 1945 e a proclamação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Brasil iniciou as ações de combate ao racismo e ao preconceito sancionando a Lei Afonso Arinos (1951), que caracterizou a discriminação racial como contraversão penal, ao proibir a discriminação racial no Brasil. Em seguida, vários movimentos e eventos foram organizados no solo brasileiro em prol da eliminação de todas as formas de discriminação racial. Assim, chegamos a mais uma conquista, a Constituição de 1988 que considerou a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível, e as manifestações culturais como um bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Posteriormente, foi publicada a Lei nº 7716/89, a chamada Lei Caó, que define os crimes resultantes de discriminação por raça ou cor (CAVALLEIRO, 2006, p.16).

Portanto, as Leis foram sendo sancionadas tendo em vista impedir o racismo na

1 Professora assistente - Campus Petrolina - Universidade de Pernambuco.

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sociedade brasileira, pois até então, no campo educacional, só tínhamos de concreto os PCN que tratam da pluralidade cultural, mas, por se tratar de um parâmetro e não de uma Lei, não obrigou ninguém a inserir a temática na sala de aula. Nesse sentido, Lopes (2008) afirma que os PCN - valorizam os saberes locais na medida em que são ponto de partida para a assimilação do patrimônio cultural da humanidade, mas tratam as diferenças culturais como diferenças psicológicas, desconsiderando os aspectos sociológicos. Sendo assim, os PCN procuram homogeneizar, garantir uma equidade social e mascaram as desigualdades econômicas, sociais e culturais das crianças. O tema pluralidade cultural “é justificado por se considerar que a vida democrática exige o respeito às diferenças culturais” e, apesar de os PCN fazerem referências às diferenças de gênero e aos deficientes, o enfoque central é nas características étnicas, o que entra em desacordo com o próprio objetivo dos PCN, que visam posicionar-se também contra discriminações baseadas em diferenças de classe social, crenças, sexo e outras características individuais e sociais (p.70-71).

Só em janeiro de 2003, com a aprovação da Lei 10.639, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional, nº 9394/96 para incluir no currículo oficial a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira e africana é que se assinala, segundo Cavalleiro (2006), a intenção do estado brasileiro em eliminar o racismo e a discriminação racial nas escolas. Porém, sabemos que uma lei não implica necessariamente uma mudança de práticas historicamente constituídas de desvalorização da história e da cultura do povo negro nas salas de aula. E, mesmo no caso de se inserir a temática, sabemos que o enfoque dado pelos professores pode até reforçar ainda mais a situação de exclusão do povo negro do sistema oficial de ensino. Cury (2002) afirma que “[...] o contorno legal indica possibilidades e limites de atuação, os direitos, os deveres, proibições, enfim, regras. Tudo isto possui enorme impacto no cotidiano das pessoas, mesmo que nem sempre elas estejam conscientes de todas as implicações e consequências” (p.8). Conhecer as Leis é, segundo o autor, como acender uma luz numa sala de aula escura, cheia de carteiras, mesas e outros objetos, “As Leis acendem uma luz importante, mas elas não são todas as luzes. O importante é que um ponto luminoso ajuda a seguir o caminho” (CURY, 2002, p.8).

Como a educação constitui-se um dos principais mecanismos de transformação na vida de um povo, é papel da escola, de forma democrática e comprometida com a promoção do ser humano e de sua integralidade, estimular a formação de valores, hábitos e comportamentos que respeitem as diferenças e as características próprias de grupos sociais e minorias. Ou seja, a educação é essencial no processo

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de formação de qualquer sociedade e abre caminhos para a ampliação da cidadania (BRASIL, 2004).

Diante do exposto, buscamos mapear a repercussão da Lei 10.639/03 e a inserção da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas municipais de Petrolina, buscando compreender de que forma a secretaria municipal tem tentado implementar a temática e como os professores estão atuando nas salas de aula da educação básica. Para tanto, fez-se necessário sondar se os(as) professores(as) e gestores(as) da rede municipal de ensino tiveram acesso à Lei 10.639 e às Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana; identificar as ações que a Secretaria municipal de educação tem feito para implementar a referida lei no currículo escolar da educação básica, compreender o papel atribuído à Lei tanto pela secretaria, como pelos(as) professores(as) pesquisados(as), caracterizar o perfil dos professores, que atuam na rede municipal, em relação à escolarização e à autoidentificação étnico racial e apontar dificuldades/facilidades que o docente encontra para abordar a temática em sala de aula.

Além das respostas para essas questões, também nos propomos, a apresentar os resultados parciais da proposta de intervenção que estamos realizando em uma das escolas da rede, objetivando sensibilizar os professores sobre a importância de trabalhar a temática na sala de aula e construindo estratégias e instrumentos para essa ação.

Este texto está organizado em três partes distintas e complementares. No primeiro momento, realizamos uma breve reflexão sobre a Lei 10.639/03, cujos princípios destacados nas diretrizes curriculares instituídas sobre a temática e autores, nos ajudam a compreender as práticas históricas e sociológicas, que, por muitos anos, vêm criando e reproduzindo, nas escolas, um perfil único do povo brasileiro. No segundo momento, apresentamos dados de uma pesquisa descritiva, realizada com professores e membros das equipes gestoras de dez escolas da rede municipal de Petrolina sobre a repercussão e execução da referida Lei2. No terceiro momento do texto, registramos a nossa proposta de intervenção para implementação da temática na sala de aula.

É importante destacar que a nossa proposta de pesquisa e de intervenção também está alicerçada na metodologia da pesquisa-ação por ser um método de pesquisa - que agrega diversas técnicas de pesquisa social - com as quais se estabelece uma estrutura coletiva, participativa e ativa no nível da captação da informação; requer, portanto, a participação das pessoas envolvidas no problema

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investigado. Esse método pressupõe ênfase à análise das diferentes formas de ação. Os temas são limitados ao contexto da pesquisa com base empírica, voltando-se para a descrição de situações concretas e para a intervenção orientada em função da resolução dos problemas efetivamente detectados na coletividade (THIOLLENT, 1986).

Em síntese, como propõe esse autor, a pesquisa-ação é uma estratégia metodológica da pesquisa social, na qual existe ampla e explícita interação entre o pesquisador e as pessoas envolvidas na situação investigada. Dessa interação resulta a priorização dos problemas a serem pesquisados e das soluções a serem encaminhadas em ações concretas; o objeto de investigação não se constitui em pessoas, mas, sim, em situações sociais e seus problemas; o objetivo da pesquisa-ação é resolver ou esclarecer os problemas identificados na situação observada. A pesquisa não se limita à ação; pressupõe um aumento do conhecimento e do “nível de consciência” das pessoas ligadas à situação e do próprio pesquisador. De acordo com os princípios da pesquisa-ação, os aspectos práticos de concepção e organização do trabalho apresentam fases, que não são rigorosamente sequenciais, sendo seu planejamento flexível e passível de adequação às necessidades do pesquisador e dos participantes (THIOLLENT, 1992). Ou seja, na pesquisa descrita neste artigo, a pouca compreensão sobre a Lei 10.639/03 ou seu total desconhecimento em algumas escolas da rede municipal de ensino possibilitaram a execução de um projeto de intervenção, de longo prazo, sobre a temática. É importante destacar, também, dentro desse contexto da pesquisa, que a relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não se restringe à população negra; ao contrário, dizem respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática. (BRASIL, 2004). É essa perspectiva de construção de uma sociedade plural e que respeite a diversidade que estamos tentando construir em conjunto com alunos e professores da escola na qual desenvolvemos o referido projeto.

2 Neste momento, gostaríamos de agradecer a todos os que contribuíram para a realização das nossas ações, entre os quais destacamos as alunas que participam do projeto: Ana Paula Mendes Porto e Eslany Vanessa da Silva Teotonio, bolsistas do Programa Institucional de Bolsa de Incentivo Acadêmico da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco BIA/FACEPE; Michella Eloina de Sá Torres e Terezinha da Silva Santos, bolsistas da Pro-Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade de Pernambuco – PROEC/UPE e aos alunos voluntários, Maria Amélia Jesus da Costa, Aurilia de Brito Lima, Maria dos Anjos Sa Moreira, Maércio José dos Santos, Maria Cecília dos Santos e Ivonete Silva Almeida.

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História e cultura africana e afro-brasileira na educação básica: algumas determinações legais

Acreditamos que o primeiro passo para o reconhecimento e a valorização do povo negro nas escolas brasileiras se deve à inserção dos artigos 26A e 79B da Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional, LDB, como veremos a seguir:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História BrasileirasArt. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’” (BRASIL, 2003).

Analisando essas alterações na LDB, percebemos que é clara a determinação. A temática deve ser inserida no conteúdo programático oficial e não como uma disciplina nova como muitos profissionais da educação pensaram assim que a Lei foi sancionada; mas, nas disciplinas já existentes de maneira a desconstruir a história, muitas vezes, contada na escola e contida nos livros didáticos em que o povo negro aparece na grande maioria, como sujeitos inferiores e, portanto, menos importantes que os brancos na formação da sociedade brasileira.

Após a publicação da Lei 10.639/03, o Conselho Nacional de Educação CNE aprovou o parecer CNE/CP3/2004, que instituiu as Diretrizes Curriculares Para a Educação das Relações Étnico-Raciais e Para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana a serem executadas pelos estabelecimentos de ensino de diferentes níveis e modalidades, cabendo aos sistemas, no âmbito de sua jurisdição, orientar e promover a formação de professores e professoras e supervisionar o

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cumprimento das referidas diretrizes.Entretanto, temos consciência de que a sociedade brasileira tende a fazer

vista grossa ainda hoje, aos muitos casos que tomam, por exemplo, espaço na mídia nacional, mostrando o quanto ainda é preciso lutar para que todos recebam uma educação igualitária, que possibilite desenvolvimento intelectual e emocional, independentemente do pertencimento étnico-racial do aluno. Com isso, os profissionais da educação permanecem não comprendendo em quais momentos suas atitudes diárias acabam por cometer práticas favorecedoras de apenas parte de seus grupos de alunos e alunas (CAVALLEIRO, 2006).

Nesse sentido, a autora menciona que o silêncio da escola sobre as dinâmicas das relações raciais tem permitido que se transmita aos alunos uma pretensa superioridade branca, sem que haja questionamento desse problema por parte dos profissionais da educação e envolvendo o cotidiano escolar em práticas prejudiciais ao grupo negro. Silenciar-se diante do problema não apaga magicamente as diferenças; ao contrário, permite que cada um construa, a seu modo, um entendimento, muitas vezes estereotipado do outro que lhe é diferente. Esse entendimento acaba sendo pautado pelas vivências sociais de modo acrítico, conformando a divisão e a hierarquização raciais.

Segundo as Diretrizes Curriculares para a Educação das relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana para conduzir suas ações, os sistemas de ensino, os estabelecimentos e os professores terão como referência, entre outros, aspectos pertinentes às bases filosóficas e pedagógicas que assumem os princípios a seguir explicitados.

O primeiro princípio, consciência política e histórica da diversidade, deve conduzir à igualdade básica de pessoa humana como sujeito de direitos; à compreensão de que a sociedade é formada por pessoas que pertencem a grupos étnico-raciais distintos, que possuem cultura e história próprias, igualmente valiosas e que, em conjunto, constroem, na nação brasileira, sua história; ao conhecimento e à valorização da história dos povos africanos e da cultura afro-brasileira na construção histórica e cultural brasileira; à superação da indiferença, injustiça e desqualificação com que os negros, os povos indígenas e, também, as classes populares às quais os negros, no geral, pertencem, são comumente tratados; à desconstrução, por meio de questionamentos e análises críticas, objetivando eliminar conceitos, ideias, comportamentos veiculados pela ideologia do branqueamento, pelo mito da democracia racial, que tanto mal fazem a negros e brancos; à busca de pessoas em particular, de professores não familiarizados com a análise das relações étnico-

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raciais e sociais com o estudo da história e cultura afro-brasileira e africana, das informações e dos subsídios que lhes permitam formular concepções não baseadas em preconceitos e construir ações respeitosas; ao diálogo, via fundamental para o entendimento entre diferentes, com a finalidade de negociações, tendo em vista objetivos comuns, visando a uma sociedade justa.

O segundo princípio, fortalecimento de identidades e de direitos, deve orientar para o desencadeamento do processo de afirmação de identidades, da historicidade negada ou distorcida; o rompimento com imagens negativas forjadas por diferentes meios de comunicação, contra os negros e os povos indígenas; os esclarecimentos a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana universal; o combate à privação e violação de direitos; a ampliação do acesso a informações sobre a diversidade da nação brasileira e sobre a recriação das identidades, provocada por relações étnico-raciais; as excelentes condições de formação e de instrução, que precisam ser oferecidas, nos diferentes níveis e modalidades de ensino, em todos os estabelecimentos, inclusive os localizados nas chamadas periferias urbanas e nas zonas rurais.

O terceiro princípio, ações educativas de combate ao racismo e a discriminações, encaminha para a conexão dos objetivos, estratégias de ensino e atividades com a experiência de vida dos alunos e professores, valorizando aprendizagens vinculadas às suas relações com pessoas negras, brancas, mestiças, assim como as vinculadas às relações entre negros, indígenas e brancos no conjunto da sociedade; a crítica pelos coordenadores pedagógicos, orientadores educacionais, professores, das representações dos negros e de outras minorias nos textos, materiais didáticos, bem como providências para corrigi-las; condições para professores e alunos pensarem, decidirem, agirem, assumindo responsabilidade por relações étnico-raciais positivas, enfrentando e superando discordâncias, conflitos, contestações, valorizando os contrastes das diferenças; valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, como por exemplo, a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura; educação patrimonial, aprendizado a partir do patrimônio cultural afro-brasileiro, visando preservá-lo e difundi-lo;o cuidado para que se dê um sentido construtivo à participação dos diferentes grupos sociais, étnico-raciais na construção da nação brasileira, aos elos culturais e históricos entre diferentes grupos étnico-raciais, às alianças sociais; participação de grupos do Movimento Negro e de grupos culturais negros, bem como da comunidade em que se insere a escola, sob a coordenação dos professores, na elaboração de projetos político-pedagógicos, que contemplem a diversidade étnico-racial (BRASIL,2004).

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A partir da compreensão de tais princípios, é possível perceber que são várias as frentes de atuação, não só por parte dos professores mas também de todos os profissionais da educação que devem atuar desde a desconstrução das ideias e comportamentos presentes na sociedade, passando pela valorização dos elementos da cultura afro-brasileira para a construção da identidade até a análise crítica dos textos didáticos, principalmente, contidos nos livros didáticos e paradidáticos, que circulam nas escolas. É preciso compreender a história e a cultura africana e afro-brasileira para que possamos, de fato, contribuir para a formação da consciência política e histórica da diversidade, para a construção da identidade e a promoção de práticas que superem o racismo e o preconceito que existem no cotidiano escolar. Esses princípios e seus desdobramentos mostram exigências de mudança de mentalidade, de maneiras de pensar e agir dos indivíduos em particular, assim como das instituições e das suas tradições culturais. É neste sentido que se fazem as seguintes determinações em relação ao ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas, destacando-se:

O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a educação das relações étnico-raciais, se desenvolverão no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e modalidades de ensino, como conteúdo de disciplinas particularmente Educação Artística, Literatura e História do Brasil, sem prejuízo das demais em atividades curriculares ou não, trabalhos em salas de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na utilização de sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação, quadra de esportes e outros ambientes escolares (BRASIL, 2004, p.21).

Apesar de sabermos que os sistemas de ensino e os estabelecimentos de educação básica em todos os níveis e modalidades, segundo as referidas diretrizes, precisam se organizar para garantir a inserção da temática nas salas de aulas, acreditamos que ainda não são todas as redes que o fazem. Sabemos da existência de iniciativas individuais que acontecem, e, muitas vezes, não são nem divulgadas. Apontaremos a seguir as impressões dos professores e membros das equipes gestoras sobre a lei 10.639/03 e a inserção da temática na rede municipal e as ações, que estão acontecendo em Petrolina, com o objetivo de implementar a referida Lei. Uma delas é a nossa própria proposta de intervenção.

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Algumas indicações sobre a repercussão da Lei 10.639/03 nas escolas municipais da cidade de Petrolina- PE

A cidade de Petrolina, localizada no interior do estado de Pernambuco, fica situada a 800 quilômetros da capital recifense. Construída na região hoje denominada como Médio São Francisco, cidade de altas temperaturas do sertão pernambucano ou como é mais popularmente conhecida do semiárido é privilegiada por ter sido construída e constituída às margens do chamado rio da integração nacional, o rio São Francisco. Segundo dados do IBGE de 2008, a cidade tem, atualmente, 285 mil habitantes. Petrolina destaca-se no cenário nacional e internacional como uma das maiores produtoras e exportadoras de frutas do país, segundo Nunes (2009),

[...] tudo isso graças ao trabalho de petrolinenses, aqui nascidos, ou PR ela adotados, que com garra, inteligência e determinação implantaram a tecnologia da irrigação [cultura irrigada] transformando o cinza da caatinga semimorta em verdes e imensuráveis paisagens de encher os olhos do sertanejo acostumados a terra e troncos ressequidos, e mais ainda dos japoneses e investidores da região sul do Brasil, que viram e vêm nestas terras banhadas pelas águas do Velho Chico, como é popularmente conhecido o rio São Francisco, um futuro promissor (p.11).

É da plantação de frutas em projetos de cultura irrigada que gira toda a economia da cidade. Petrolina é hoje considerada um dos polos de desenvolvimento econômico do estado, apontada por diversas revistas econômicas como uma das cidades mais dinâmicas do País. Toda essa riqueza também tem seu reflexo na educação. Atualmente, a cidade conta com três instituições de ensino superior de grande porte. A FACAPE (Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Petrolina), uma autarquia mantida pelos governos municipal e estadual com oito cursos nas áreas de ciências Humanas e Sociais. A UNIVASF - Universidade Federal do Vale do São Francisco, recentemente criada, com vinte e um cursos das áreas de Ciências Humanas, Exatas e Saúde e a UPE - Universidade de Pernambuco, instituição da qual fazemos parte, mantida pelo governo do estado e que possui sete cursos de licenciatura e três cursos na área de saúde.

A rede escolar municipal possui um quantitativo ainda pequeno de escolas

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no nível da educação básica e um bom quadro de profissionais em permanente qualificação. Segundo Nunes (2009), a rede municipal, contava em 2008 com 82 escolas de educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, sendo 60 escolas na zona rural e 22 na zona urbana. Neste mesmo ano, foram matriculados 22.032 alunos, e a rede possuía 804 professores. Foram respondidos, 62 questionários: 50 por professores e 12 membros das equipes gestoras em 10 escolas da rede municipal de Petrolina. A partir da análise desse instrumento, estabelecemos, primeiramente, o perfil dos sujeitos da pesquisa e, em seguida, apresentamos as categorias de análise e os resultados obtidos.

Constatamos que a maioria dos professores pesquisados são do sexo feminino. Em relação ao vínculo com a rede de ensino, temos temporários (46%); concursado (52%), não informado (2%). Acreditamos que o vínculo permanente, via concurso, pode favorecer o trabalho contínuo enquanto o contrato pode impedir que práticas interessantes e eficazes sejam continuadas.

Em relação à origem étnico-racial, constatamos que a maior parte dos professores se autoclassifica como parda, mas, considerando que as classificações morena, morena clara, preta e negra dizem respeito à raça negra, a maior parte dos professores se autodenomina afro-brasileiro. Temos consciência dos progressos da Genética, que apontam para a impossibilidade de determinar a raça de um ser humano. Nesse sentido, os pesquisadores da área descobriram que os patrimônios genéticos de duas pessoas pertencentes a uma mesma raça podem ser mais distantes do que os de indivíduos pertencentes a raças diferentes. Sendo assim, concluíram que a raça não é uma realidade biológica humana, mas um conceito cientificamente inoperante para explicar a diversidade humana e para dividi-la em grupos. Ou seja, biológica e cientificamente, as raças não existem. Por isso, estamos utilizando o termo raça como conceito relacional, que se constituiu histórica e culturalmente, a partir de relações concretas entre grupos sociais em cada sociedade, rejeitando o determinismo biológico e valorizando a cultura e a identidade de cada um (MUNANGA, 2003; SISS, 2003).

Porém, não podemos deixar de mencionar o número de professores que se considera branco e amarelo, como pode ser observado, a seguir:

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Autoclassificação dos professores quanto à origem étnico-racial

MORENA 8%

MORENA CLARA 2%

AMARELA 2%

PRETA 4%

BRANCA 22%

NEGRA 20%

PARDA 36%

NÃO INFORMADA 6%

Definir a origem étnico-racial dos brasileiros não é tarefa simples. Existem muitos adjetivos para dizer o que somos e aqui tivemos uma pequena amostra desses adjetivos. Nesse sentido, Silva (2007) afirma que a percepção dos professores negros em relação à questão étnico-racial em sala de aula está intimamente associada à forma como eles lidam com o seu pertencimento étnico-racial. Esse pertencimento, geralmente, foi gerado de forma lenta, processual e gradativa o que, muitas vezes, só ocorre depois de os professores terem sofrido algum tipo de preconceito ou discriminação que os tenha atingido de tal forma que os levou a se verem como negro ou negra. Sabemos que o conceito de identidade é múltiplo, ou seja, fala-se em identidades de gênero, identidades etárias, identidades raciais, entre outras. Nesse sentido, gostaríamos de ressaltar o conceito de identidade segundo Munanga (2003)

(...) uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através de seu sistema axiológico, sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para se definir em contraposição ao alheio. A definição de si(autodefinição) e a definição dos outros(identidade atribuída) tem funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos etc (p.45).

Portanto, podemos dizer que a construção da identidade não é tarefa simples, se pensarmos na nossa história contada em sala de aula, por exemplo, perceberemos o quanto é difícil para uma criança negra se identificar como tal e assumir a sua identidade de negro ou negra pois aprendeu e ainda aprende na escola que os

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brancos são “os heróis nacionais” e que não havia lugar de prestigio para os negros na sociedade brasileira ao longo dos tempos , diferentemente do lugar ocupado pelos brancos no nosso país. Assim, situações vivenciadas em aula de história pode levar as crianças negras a negarem sua origem e assumirem-se como brancas.

A pesquisa revelou que a maior parte dos docentes tem entre 11 e 20 anos de atuação e, portanto, com muita experiência na área de educação, o que nos permite inferir que desenvolvem (ou deveriam desenvolver), a cada dia, seu trabalho de maneira melhor e mais consciente. Apesar de acreditarmos que o comprometimento com a temática independe do tempo de atuação. Ou seja, se os professores realmente quiserem abordar esse tema em várias situações irão fazê-lo, independente do tempo de serviço, embora reconheçamos que essa tarefa não é fácil. Nesse sentido, temos relatos de professores que foram acusados de racistas às avessas por estarem tentando valorizar a cultura negra nas salas de aula e quererem mudar o foco eurocêntrico para o afrocêntrico (MUNANGA, 2003).

Em relação à escolarização, a maior parte dos professores possui nível superior, com predominância do curso de Pedagogia. Esse dado demonstra que o município está seguindo a LDB 9394/96, a qual determina que, até 2010, os professores da educação básica possuam formação superior. Porém, sabemos que os cursos de formação de professores da região do vale do São Francisco ainda não estão preparando os alunos para trabalharem a temática, à exceção de algumas iniciativas relacionadas a práticas de alguns professores com essa preocupação. Infelizmente, a maioria das universidades brasileiras ainda não inseriu a temática em seus currículos e, assim, não podem formar professores conscientes e preparados para abordar a história e a cultura africana e afro-brasileira em suas salas de aula. Nesse sentido, Gomes Junior (2007) menciona, por exemplo, que são poucos os cursos de história que oferecem a disciplina História da África nas universidades do Nordeste, disciplina que seria de fundamental importância para a formação dos futuros professores de história. Imaginemos, então, a situação dos demais cursos de formação de professores.

Portanto, a inclusão da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos da Educação Básica é, também, uma questão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive no que se refere à formação de professores. Nesse sentido, os cursos de Pedagogia vêm reformulando seus currículos em todo o país, com fins a contemplar o exigido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais, instituídas pelo Conselho Nacional de Educação em maio de 2005. As diretrizes, em acordo com o anseio de formação de uma sociedade igualitária e mais justa,

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compreendem a docência, em seu Art. 2º, parágrafo 1º:

(...) Como ação educativa e processo pedagógico metódico e intencional, construído em relações sociais, étnico-raciais e produtivas, as quais influenciam conceitos, princípios e objetivos da Pedagogia, desenvolvendo-se na articulação entre conhecimentos científicos e culturais, valores éticos e estéticos inerentes a processos de aprendizagem, de socialização e de construção do conhecimento, no âmbito do diálogo entre diferentes visões de mundo (BRASIL, 2005, p.19, Grifo nosso).

Assim sendo, o curso de Pedagogia, do qual fazem parte todos os alunos envolvidos nesse projeto, poderá contribuir, entre outras coisas, para a formação do futuro licenciado em relação à temática. Em sintonia com a Lei 10.639/03, as Diretrizes, acima citadas, também instituem a abordagem educativa diferenciada em escolas indígenas ou em escolas de remanescentes de quilombos, como podemos observar a seguir:

§ 1º No caso dos professores indígenas e de professores que venham a atuar em escolas indígenas, dada a particularidade das populações com que trabalham das situações em que atuam, sem excluir o acima explicitado, deverão:I - promover diálogo entre conhecimentos, valores, modos de vida, orientações filosóficas, políticas e religiosas próprias à cultura do povo indígena junto a quem atuam e os provenientes da sociedade majoritária;II - atuar como agentes interculturais, com vistas à valorização e o estudo de temas indígenas relevantes.§ 2º As mesmas determinações se aplicam à formação de professores para escolas de remanescentes de quilombos ou que se caracterizem por receber populações de etnias e culturas específicas. (BRASIL, 2005, Grifo nosso).

No que diz respeito aos níveis em que os professores atuam no momento, temos (12%) na educação infantil, (70%) na educação fundamental, (4%) na educação média e (14%) não informaram em que nível atuam. Os professores da

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educação infantil, que participaram da nossa pesquisa, mencionaram a importância de inserir a temática nesse nível de ensino para que nos níveis em que se seguirem, as crianças já tenham uma base de compreensão menos preconceituosa e mais inclusiva.

Entre os membros das equipes gestoras (MEG), todos os sujeitos participantes são do sexo feminino, apenas um não informou esse dado. Como o número de questionários recebidos das MEG foi bem menor que o dos professores, remetemos ao quantitativo em números e não em percentuais. Como são membros da gestão escolar, todas as participantes possuem vinculo permanente com a rede municipal, são todas concursadas, possuem nível superior, sendo que quatro possuem curso de Pós-Graduação Lato Sensu. Têm entre 30 e 50 anos de idade e atuam de 11 a 20 anos na área da educação. Em relação à origem étnico- racial , cinco se autodeclararam brancas, três pardas, uma morena, uma preta e duas não informaram, como pode ser observado no quadro abaixo:

Autoclassificação dos membros das equipes gestoras quanto a origem étnico-racial

MORENA 01

PRETA 01

BRANCA 05

PARDA 03

NÃO INFORMADA 02

A partir da análise do nosso instrumento de coleta, estabelecemos as seguintes categorias: conhecimento sobre a Lei 10.639 e a história e cultura africana e afro-brasileira; prática docente – inserção da temática na sala de aula e os materiais didáticos utilizados; importância da temática; ações da escola e da secretaria da educação para implementação da Lei.

É importante destacar que, embora saibamos que o nosso instrumento apresenta falhas, como qualquer outro, na medida em que menciona a temática antes de questionar sobre o conhecimento da Lei (na apresentação/objetivo da pesquisa para o pesquisado) e seu conteúdo, acreditamos que isso poderia levar os sujeitos a copiarem, ou seja, a responderem mesmo sem o conhecimento real da Lei. Mesmo assim, acreditamos que as respostas revelam mesmo que, parcialmente, - considerando que nossa amostra representa em torno de 10 % das escolas municipais - aspectos da realidade do município de Petrolina sobre a inserção da temática história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas.

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No que se refere ao conhecimento sobre a Lei 10.639 e a história e cultura africana e afro-brasileira, cujo objetivo era sondar se os professores e membros das equipes gestoras da rede detinham algum conhecimento sobre a Lei e o seu conteúdo, percebemos que (42%) dos professores não responderam às questões referentes a essa categoria. Dos (24%) que responderam, (14%) demonstraram conhecer a Lei e seu conteúdo, como veremos a seguir: “É uma Lei que exige que a cultura afro-brasileira faça parte da grade curricular do ensino brasileiro”. “É uma Lei que diz que é obrigatório trabalhar a cultura afro-brasileira na escola”. Porém, não podemos deixar de mencionar os depoimentos que demonstraram conhecimento parcial ou equivocado sobre a Lei e a temática. “Foi uma Lei criada para defender os nossos irmãos afros”. “A mesma fala sobre as punições referentes à discriminação racial”. “Determina os direitos e deveres da cultura afro-brasileira”. Os relatos dos professores referem-se ao combate da discriminação e ao respeito aos direitos dos afro-brasileiros, o que demonstra que, mesmo não sabendo exatamente do conteúdo da Lei, sabem que esse diz respeito aos negros e seus descendentes.

Em relação aos Membros das equipes gestoras (MEG), quatro (4) membros não responderam e oito (8) demonstraram conhecer a Lei e seu conteúdo mesmo que parcialmente, como podemos observar:

“Fala dos direitos dos afrodescendentes. Há um documento (Lei) que determina o ensino nas escolas”. […]“A reformulação da LDB que determina o ensino essa inclusão da cultura africana e afro-brasileira em ensino regular. Está na LDB, como também nos estados para definir dentro do conteúdo pedagógico na cultura local”.[…] “Trata-se do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira”. […] “A Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003 que determinou a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira no currículo oficial da rede de ensino fundamental e médio, nas escolas publicas e particulares do Brasil”. […]“É importante para ser vivenciada na educação do Brasil. Eu já li essa Lei. Que é obrigatório incluir no currículo o ensino da cultura afro-brasileira nas áreas de educação artística, literatura e história”.

Ao analisar os depoimentos anteriormente mencionados, percebemos que as MEG demonstraram um conhecimento mais pontual que os professores em

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relação à Lei e ao seu conteúdo. Esse diferencial pode ser atribuído ao próprio setor de atuação, ou seja, a própria atividade de gerir uma unidade escolar exige maior conhecimento sobre legislação da educação. Esse conhecimento a mais, demonstrado pelas MEG, poderia favorecer uma prática pedagógica mais eficiente, desde que houvesse uma gestão democrática de fato no interior das escolas.

Em relação à prática docente – inserção da temática na sala de aula e os materiais didáticos, o nosso o objetivo era tomar conhecimento da forma com que o professor aborda a temática em sala de aula e que materiais e recursos utiliza para tanto. Percebemos que os professores que não abordam a temática em sala de aula não opinaram sobre materiais didáticos disponíveis na escola. Entre os relatos de suas práticas, os professores afirmaram que abordam a temática em situações pontuais como datas comemorativas com uso de vídeos e livros didáticos como pode ser observado a seguir:

Explicação sobre o assunto que tem em livros didáticos, filmes que o próprio professor loca”. […] “Só com danças”. “A importância dos negros na cultura brasileira”. […]“Apenas nas datas comemorativas, 13 de maio e 20 de novembro dia da consciência negra”. “Sim, debatendo sobre como os negros chegaram em nosso pais e também sobre as diferenças raciais”.[…] “Sim, através de conversas e debates sobre a escravidão e de forma resumida”. […]“Utilizando gráficos, filmes e slides sobre vários temas que se fazem necessário abordar o tema”. […]“Explanando noticias e eventos do que está acontecendo no momento e conteúdos do livro didático”.[…] “Com atrativos da história dos negros e da literatura. Exemplo: um passeio pela África de Alberto Costa e Silva”. “A escola dispõe da coleção “Vivendo a diversidade (cultura afro-brasileira) a qual é de grande contribuição para o ensino e a aprendizagem”.[…]

Em relação aos materiais específicos que tratam da história e cultura africana e afro-brasileira, menciona-se o livro Um passeio pela África e a coleção Vivendo a diversidade. Em Um passeio pela África, primeiro livro infanto-juvenil do embaixador e acadêmico Alberto da Costa e Silva, os jovens brasileiros Zezinha, Gustavo e Inácio se aventuram por um continente que, na maioria das vezes,

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conhecemos apenas por meio dos atlas geográficos: Angola, Guiné, Costa do Marfim, Senegal, Congo. Maior africanista do país e autor do clássico A enxada e a lança, Costa e Silva propõe um delicioso roteiro em que olha para o passado africano - mostrando as diferenças culturais entre os vários povos que vieram para o Brasil como escravos e ajudaram a formar nossa cultura - também aponta para o futuro. Fugindo dos clichês, ele revela para os jovens leitores uma África urbana e moderna, sem deixar de destacar as peculiaridades de cada país visitado por seu trio de personagens. “Um passeio pela África” conta com as ilustrações de Rodrigo Rosa. Multicoloridas, elas enfatizam a imagem de um continente vibrante e plural, destacada pelo autor (www.historianet.com.br).

A coleção Vivendo a Diversidade: cultura afro-brasileira, também mencionada por professores e MEG, é uma proposta pedagógica para a superação do racismo na escola e, consequentemente na sociedade, da Editora Fapi. Ela traz atividades, proposta e projetos que visam subsidiar o trabalho do educador sobre as relações étnico-raciais positivas, reconhecendo e valorizando a história, a cultura e a identidade da população afro-descendente do Brasil. A coleção busca levar os alunos e os educadores a se posicionarem de maneira reflexiva e crítica, partindo do conhecimento e da contextualização de situações variadas, para que aprendam por meio da análise de fatos. O objetivo é formá-los para que sejam capazes de intervir na realidade, transformando-a, quando necessário. Essa proposta de trabalho visa estabelecer relações humanas mais fraternas, promovendo a colaboração, a solidariedade e a construção da dignidade pessoal, além de proporcionar a reflexão de todos (www.educacaoecia.com.br). Entre os membros das equipes gestoras, uma não respondeu e onze disseram que a escola dispõe dos mesmos materiais citados pelos professores.

No que diz respeito à importância da temática, os professores, apesar de alguns desconhecerem a importância da temática e outros acharem que não é importante, (14%) disseram que não acham importante e (4%) não opinaram, (4%) disseram sim, mas não sabem por que. A maioria afirma que é importante por vários motivos (valorização da nossa história, contribuição da cultura africana para o nosso país, por causa do preconceito e da discriminação racial, inclusão social, construção da identidade entre outros). Nos depoimentos que seguem, encontramos várias justificativas para a inserção da temática.

Foi grande a contribuição cultural do nosso pais mas os negros não foram valorizados como deveria ser”. […] “Temos que

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esclarecer o assunto como aconteceu para os alunos”. […] “Sim, porque vai ampliar o universo cultural dos docentes e dos discentes”. […] “Sim, porque existe muito preconceito com o negro e a sociedade em geral não conhece a riqueza que é a cultura afro e a contribuição que esta trouxe para o nosso pais”.[…] “Sim porque existe muito preconceito em relação ao negro e precisamos mostrar a riqueza, que há na sua cultura”. […]“Sim por conta da inclusão social”. […] “Sim existem crianças que tem racismo com o colega”. […] “Sim para informar e esclarecer o porquê da discriminação”.[…]“Sim, nos ajuda a reconhecer a nossa história, nossa origem e respeitar as diferenças”. […] “Sim, somos um país afrodescendente, é preciso conhecer nossas origens, raízes”. […]“Devemos preservar o legado cultural deixado pelos africanos para o brasileiro respeitando, assim, a diversidade cultural”.

Podemos apontar algumas direções em relação aos depoimentos dos docentes. A primeira aponta para a abordagem feita em sala de aula, remetendo ao passado, principalmente à escravidão e às datas comemorativas como o “13 de maio” e o “Dia da consciência negra”. A segunda aponta para o uso de filmes e livros didáticos. Em relação ao uso do livro didático, destacamos a nossa preocupação, pois sabemos que esse é, muitas vezes, o único impresso a que professores e alunos têm acesso, sobretudo nas escolas públicas, e, muitos livros didáticos ainda trazem representações distorcidas sobre a situação do negro na sociedade brasileira, apesar da política de elaboração de livros de qualidade nos últimos tempos. Os estudos de Silva (1995) sobre representação de negros em livros didáticos apontam que a maneira como os negros eram representados era estereotipada, negativa, em episódios que narram a escravidão; por exemplo, o africano foi estereotipado como “selvagem”, “mau”, “sem alma”, para justificar a sua sujeição aos maus tratos dos brancos. Nosella (1978), por sua vez, analisou livros de comunicação e expressão da 1ª à 4ª série do primeiro grau, na Rede Oficial do Espírito Santo, na década de 1970, com o objetivo de desmascarar a ideologia subjacente aos textos em que os negros - entre outros atores, como mulheres - apareciam. Essa última análise demonstrou que os negros eram representados como empregadas domésticas, empregados da casa grande, pobres, entre outros.

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Ainda em relação aos relatos anteriormente citados, percebemos que a valorização da cultura e da raça, a discriminação, que existe na sociedade, a construção da identidade afro-brasileira foram apontados como motivos importantes para se trabalhar a história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, na opinião da maioria dos professores pesquisados.

Porém, tem um depoimento que gostaríamos de destacar. Diz o seguinte: “Sim porque o nosso país é formado por um quantitativo enorme de pessoas da raça negra onde os próprios negros se discriminam”. Mencionamos que a professora e autora desse depoimento se auto-denominou negra e que esse tipo de relato é comum não só na escola mas também na sociedade como um todo; nós, nem sempre, aceitamos quando pessoas à nossa frente, que nós consideramos negros e negras, agem de maneira preconceituosa ou mesmo racista com outros que consideramos negros e negras também. Isso nos leva a outro depoimento também comum na sociedade, isto é, não nos identificarmos como negro ou negra, ou os considerarmos diferentes de nós, mesmo sendo afro-brasileiros. Referimo-nos ao depoimento a seguir: “Sim porque é sempre bom saber sobre as culturas diferentes da nossa. […]”. A professora que fez esse relato se declarou parda. O que é comum, como já foi dito, são muitos adjetivos utilizados para não dizer que somos negros, mas o IBGE considera como negro os pardos também.

Em relação aos depoimentos dos membros das equipes gestoras, percebemos que todos responderam, atribuindo algo de importante para a implementação da temática, como segue:

“Sim, porque a diversidade cultural deve ser trabalhada, compreendida e respeitada”.[…] “Sim, pois é preciso que haja conscientização de que a abordagem é problema de todos”. […] “Sim, porque há muita discriminação e é muito bom falar (discutir) em sala de aula”. […]“Sim, porque se faz necessário conscientizar os alunos do papel cultural e da infiltração dos valores que os negros exerceram na história do país”. […]“Sim, resgata as raízes origens do povo brasileiro”. […]“Sim, essa temática oferece elementos para a contribuição dos povos africanos e destaca a ocorrência cultural e política”. […]“Sim, porque todos os assuntos que abordam a história dos povos é importante para a formação dos alunos”. […] “Sim, porque esse aprofundamento sobre a temática contribui para

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enriquecer nossa pratica pedagógica”.[…]

Por fim, no que se refere às ações da escola e da secretaria da educação para implementação da Lei, segundo os professores, há algumas iniciativas da escola e da secretaria para inserir a temática e facilitar o trabalho dos professores e professoras em Petrolina. Em relação às ações da escola, (30%) dos professores afirmaram que nada tem sido feito pela escola. Mas a maioria apontou algo a respeito do trabalho da escola, que ainda não é suficiente para garantir efetivamente a inclusão da história e cultura africana e afro-brasileira na sala de aula, como mencionamos a seguir:

“Apenas com material disponível na escola, livros, debates que escreve pouco sobre o assunto”. […] “É um tema que eu não trabalho é mais para os professores de história”. […] “A escola desde 2008 vem colaborando através de visitas com estudantes da UPE e palestras com os mesmos, aquisição de recursos didáticos (livros, computadores, atividades artísticas)”. […] “Não foi posta ainda em prática essa temática”. […] “Não trabalhamos ainda essa temática mas a escola disponibiliza internet”. […] “Facilitando ao conhecimento através de oportunidades de estudos e novas tecnologias”. “ Incentivo a trabalhar o tema na disciplina historia, educação artística e literatura”. […] “Oferecendo subsídios para trabalhar a temática”. […] “Minha escola nunca tratou desse assunto, talvez nas aulas de geografia ou artes, não sei”. “A escola garante a autonomia do professor em sala de aula. Isso já é uma vitoria”. […]

Analisando os depoimentos acima mencionados, percebemos que história, geografia, literatura e artes são colocadas como únicas áreas em que se pode abordar a temática, como se, nas demais áreas do conhecimento, isso não fosse possível, o que é comum se pensar por desconhecimento da Lei e das suas diretrizes. Os depoimentos dos membros das equipes gestoras não são diferentes. Seis (6) membros não responderam, e, entre os que responderam, encontramos: “Aborda superficialmente nas disciplinas afins: história e geografia”. “Dando suporte na medida do possível”.[…] “Os professores da área de história vem trabalhando a

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consciência negra através de pesquisas, trabalhos expositivos, teatro, leitura”. […] “Irão preparar apostilas para o trabalho em sala de aula”. […] “Dispõe de material com a temática”. Em relação à Secretaria de Educação, percebemos que há pouco incentivo, restringe-se à formação continuada no geral na opinião dos professores apesar de (20%) afirmarem que nada tem sido feito. Entre os que apontam ações acontecendo, temos:

“Há pouco encontro da secretaria, mas pode mudar esse quadro”. “Colabora na formação dos professores”. […] “Disponibilizou um documento que visa o professor abordar e trabalhar com ênfase sobre a semana da consciência negra e o incentivo a criação de projetos”. […] “O mínimo possível, pois não se conscientizou que é preciso investir na cultura sobre temas importantes que fizeram e fazem parte do nosso país”. […] “No ano passado e durante as formações continuadas com professores algumas formações de história abordaram o tema”. […]“Tivemos orientações, mas não existe prática na escola”. […] “Já fomos orientados inclusive recebemos um projeto, mas ainda não entramos em ação”. […] “Por enquanto somente formações de história”. “Capacitando através de estudos em grupo.

No que diz respeito ao trabalho da Secretaria de Educação entre os membros das equipes gestoras, seis (6) não responderam e as demais apontam que, nas formações continuadas, essa temática é abordada. Vejamos os depoimentos:

“Acho que tem feito muito pouco, mas pode melhorar dando maior suporte nessa construção”. […] “Já foram preparadas algumas apostilas”. […] “Todas as escolas municipais receberam material didático com esta temática que foi a coleção citada na questão 11 (coleção diversidade e cultura afro-brasileira)”.[…] “Promove encontros de professores nessa área na formação continuada”.[…]

Portanto, segundo os professores e as MEG, não existe uma política efetiva para a inserção da história e cultura afro-brasileira e africana na rede municipal de

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Petrolina, mas há algumas iniciativas sendo realizadas, mesmo que só nas formações continuadas. Assim, acreditamos que a nossa proposta de intervenção pode ser ampliada para atender toda a rede municipal por meio de formações continuadas, não só para professores de história, mas também para todos os níveis da educação básica. A seguir, apresentamos o nosso projeto de intervenção.

História e cultura africana e afro-brasileira: literatura infantil, música e produção de materiais didáticos – uma proposta de intervenção

No intuito de atingir, mesmo que inicialmente, os três princípios definidos pelas diretrizes curriculares: consciência política e histórica da diversidade; fortalecimento de identidades e de direitos, ações educativas de combate ao racismo e a discriminações, construímos um projeto de extensão/intervenção. A proposta divide-se em três perspectivas. A primeira perspectiva de atuação é a formação dos professores em História e Cultura Afro-brasileira e Africana com o objetivo de sensibilizá-los sobre a importância de se trabalhar a temática em suas atividades didáticas cotidianas para a construção da cidadania (por meio do projeto Escola cidadã: formação de professores em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em Petrolina – PE) e a segunda perspectiva é a construção e o acesso a materiais didático-pedagógicos (por meio do projeto intitulado Produção de materiais didático-pedagógicos para o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana em Petrolina-PE), como, por exemplo, jogos, que irão contribuir para a realização de situações de aprendizagem relacionadas à temática para facilitar o trabalho com os alunos nas salas da escola, onde o projeto está sendo realizado. Apesar de saber da existência dos materiais didáticos sobre a História e Cultura Afro brasileira e africana, como os materiais que o MEC produziu via Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), os professores declaram não saber da existência desse tipo de material. As próprias Diretrizes sobre a Lei não chegaram às escolas municipais. E a terceira perspectiva é de atuação direta com os alunos, desenvolvendo atividades de sensibilização e construção da identidade a partir da literatura infantil (por meio do projeto Escola: espaço de construção da identidade cidadã- tentativas de implementação da Lei 10.639 nas escolas municipais da cidade de Petrolina) e da música (por meio do projeto Cultura afro-brasileira: inserção da música nas escolas municipais de Petrolina-PE).

A pesquisa analisada no item anterior possibilitou reafirmar, em nosso

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contexto, a necessidade de a universidade tentar iniciar um caminho de diálogo sobre a temática dentro das escolas públicas. Atualmente, já podemos considerar um aumento na produção do conhecimento sobre as questões afro-brasileiras nas instituições públicas de nível superior, mas sabemos que apenas um pouco de tudo isso chega de forma concreta às escolas regulares. É importante destacar que, no projeto de extensão, priorizamos o trabalho com as professoras e alunos da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, com o objetivo de aproximar nossos alunos da graduação, envolvidos no projeto, nos níveis de ensino em que atuarão mais efetivamente.

Diante disso, com a proposta de sensibilizar, inicialmente, um grupo de professores para a temática, encaminhamos para a Secretaria de Educação o nosso projeto, que foi aprovado e indicado pelo Secretário de Educação para uma das escolas da rede. A escolha de uma única escola se deve ao fato de nossa equipe ser pequena e de possibilitar a realização de uma ação longa e duradoura com um mesmo grupo de professoras.

A escola indicada pela Secretaria de Educação, como já explicitado anteriormente, chama-se professora Laurita Coelho Leda Ferreira3 . Existe há onze anos e fica situada em um bairro popular chamado Vila Marcela. A instituição funciona nos horários da manhã, tarde e noite, com turmas da educação infantil, ensino fundamental e Educação de Jovens e Adultos.

No ano de 2009, data principal de execução de nossos projetos, a escola possuia treze professores, onze funcionários e quatrocentos e vinte e oito alunos matriculados.

A instituição possui uma infraestrutura pequena, com apenas seis salas de aula, uma biblioteca com espaço amplo, mesas e cadeiras, porém com poucos livros; um laboratório de informática, um refeitório e um grande pátio para o recreio sem cobertura contra o sol. Em relação aos equipamentos, os quadros são de giz e, em toda a instituição, só existe uma TV, um DVD, um vídeo, um retroprojetor e um aparelho de som.

O público-alvo é composto de cinco professoras que atuam na educação infantil e fundamental, nos dois turnos, da escola já citada e, consequentemente, seus respectivos alunos4. Para a realização do projeto, as professoras ficam reunidas em uma sala da própria da instituição conosco (coordenadoras do projeto) e com

3 Vale ressaltar que esta escola faz parte da amostra analisada na primeira parte do artigo.4 Agradecemos imensamente a toda a equipe (professores, funcionários, alunos) da escola Laurita Coelho Leda Ferreira pela atenção e carinho com que sempre nos receberam.

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a bolsista responsável realizando estudos, atividades e discussões a respeito da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, enquanto os alunos permanecem em suas salas com as outras bolsistas do projeto, realizando atividades relacionadas à temática, que descreveremos a seguir. É importante destacar que todo o material didático e pedagógico, que construímos em conjunto com os graduandos de pedagogia que fazem parte do projeto para a execução das oficinas, nós disponibilizamos uma cópia para a escola, no intuito de possibilitar sua utilização por todos os professores. Destacaremos três oficinas já realizadas com as professoras.

A primeira foi para a apresentação dos projetos e de nossa intenção para com essa proposta de intervenção. Nesse momento, percebemos que as professoras dessa escola não conheciam a referida Lei e nem trabalhavam com a temática em sala de aula. Vale ressaltar que ninguém conhecia as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, o que demonstra que nem toda escola recebeu o referido documento. Esse relato se repetiu nas escolas cujos dados foram coletados. Durante o nosso primeiro encontro, muitos exemplos de preconceito em sala de aula foram relatados pelas professoras, entre os quais podemos destacar: “os alunos do pré discriminam um determinado aluno por ser negro, dizem que a mãe dele o colocou no forno e esqueceu de tirar e ele queimou todo até o cabelo, eu os repreendo, mas não tem jeito” (professora. da Educação Infantil). “Outro dia mesmo a moça da limpeza entrou na sala e perguntou: cadê a vassoura? E a turma inteira respondeu como um coral: tá na cabeça da aluna [... ]. Eu fiquei sem ação, deu vontade de rir, mas me controlei”(Professora do 2º ano Ensino Fundamental).

É comum ouvir das professoras, com quem trabalhamos, que não estão preparadas para lidar com essas situações. Como a escola é um reflexo da sociedade, as crianças reproduzem o que veem no seu cotidiano e, muitas vezes, os profissionais da educação, principalmente os professores não enxergam situações como as descritas como preconceituosas e não interferem, contribuindo, assim, para a disseminação de preconceitos na sala de aula. Ao final do encontro, tivemos relatos positivos em relação ao encontro e a necessidade de se tornar atento a situações que, aparentemente, pareçam “brincadeira de criança” no cotidiano escolar para que situações preconceituosas não se repitam. Nesse encontro, os alunos conheceram os livros de literatura infantil Menina bonita do laço de fitas, de Ana Maria Machado,editora Ática; Bom dia todas as cores de Ruth Rocha, editora Quinteto Editorial e Na minha escola todo mundo é igual de Rossana

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Ramos, da editora Cortez. O objetivo do dia foi trabalhar a identidade de cada um e a autoestima, por meio da construção de seu autorretrato de duas maneiras: uma maneira foi construir um autorretrato com massa de modelar, momento em que se observou o fato de os alunos não pegarem a massa de cor preta, apesar de serem afro-brasileiros. Outra maneira foi confeccionar um boneco de jornal em que deveria colocar suas características físicas e, também, pudemos perceber que nenhum pintou seu boneco de preto. Quando apresentamos os referidos livros às professoras, apesar de saberem da existência de uma ou outra obra, afirmaram não conhecê-las.

A segunda oficina foi dedicada exclusivamente à sensibilização desses profissionais sobre a importância de trabalhar essa temática em sala de aula e apresentar a própria Lei e suas diretrizes curriculares. Nessa oficina, utilizamos os recursos que tínhamos disponíveis para atingir os nossos objetivos, imagens que mostravam as mudanças históricas e sociológicas do povo negro no mundo, desde o próprio continente africano, seu lugar de origem, a chegada ao Brasil e sua contribuição para a constituição do povo brasileiro. Destacamos a luta de anos pela instituição da Lei 10.639/03 e como e quais as razões que fizeram a Lei se tornar realidade durante o Governo Lula. Estudamos a Lei e, principalmente, o que é instituído nas Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, como as alternativas e sugestões de colocar a temática ao longo do currículo escolar. As professoras pediram para ter uma cópia das referidas diretrizes curriculares e relataram o que a pesquisa anteriormente relatada demonstrou, ou seja, a realidade da rede municipal: não há formação continuada para se trabalhar a temática por isso acreditavam que era para se criar uma nova disciplina chamada História da África, mencionaram a falta de materiais didáticos, entre outros. Nesse encontro, os alunos continuaram trabalhando com literatura infantil mas com um livro ainda não lido entre os mencionados. Nesse dia uma das turmas trabalhou com o conto africano Kiriku e a feiticeira em vídeo. Percebemos que as professoras e os alunos não conheciam o vídeo em questão. Os alunos prestaram bastante atenção durante a exibição do vídeo e demonstraram estranhamento, pois nunca tinham assistido a um desenho animado em que todos os personagens fossem negros, inclusive o herói. O primeiro comentário das crianças: é “todo mundo é negro!” As professoras solicitaram uma cópia do vídeo para ficar na escola e nós já a providenciamos. Em outros momentos, relataram que tem sido muito boa a experiência de assistir ao vídeo, até as turmas que não participam do nosso projeto querem assistir a ele.

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A terceira oficina denominou-se África: um país ou continente? Tivemos como objetivo conhecer, em conjunto com as professoras, aspectos geográficos do continente africano para valorizar, entre outros fatores, a cultura dos povos que lá viveram e vivem. Destacamos, nessa oficina, os países que compõem esse continente, sua cultura e seus costumes através de um jogo, elaborado pela equipe. O jogo em questão é composto de perguntas e respostas e seu tabuleiro é um grande mapa do continente africano. Nessa oficina, além de jogarmos com as professoras e refletirmos aos poucos sobre aspectos da Geografia desse continente, apresentamos vídeos e slides referentes à fauna e flora africana, destacando curiosidades e aproximações com o nosso país, além de sempre mostrar possibilidades e facilidades de trabalhar essa temática em sala de aula. Essa oficina teve grande receptividade por parte das professoras, segundo suas próprias avaliações, por conseguirmos trabalhar de forma lúdica e construir o conhecimento geográfico sobre o continente africano que elas não conheciam e, ao mesmo tempo, possibilitar a criação de estratégias de como vivenciar tudo isso em sala de aula com os seus alunos. No momento de jogar, as professoras demonstraram conhecer alguns dos países africanos por características particulares positivas ou negativas. A dinâmica do jogo consiste em jogar um dado para saber em que lugar vai estar e, dependendo da resposta correta para uma pergunta sobre assuntos gerais sobre o país em que está, avançará ou permanecerá no lugar. Todos partem do mesmo lugar. Temos relatos para exemplificar esse momento, entre eles: “não quero ficar na Etiópia, pois lá tem muita fome!” […] “No Congo eu fico, pois queria ver um gorila”, “Vou pra Camarões aprender a jogar futebol!” […] “ a África do Sul é o lugar que tem mais brancos em todo o continente”[…]

Entre as grandes dificuldades reveladas pelos professores, na pesquisa e na escola em que atuamos, estão a sua formação inicial na universidade, momento em que esse tema não tem sido abordado e o acesso a materiais didáticos - que abordem a História e Cultura Afro brasileira e Africana. Como já foi mencionado, o próprio MEC produziu por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) inúmeros materiais que têm contribuído para a implementação da temática em sala de aula, mas esse material, que pode até circular com facilidade nas capitais, não tem sido divulgado em cidades do interior, como é o caso de Petrolina. Pensando nesse acesso, principalmente em uma cidade do sertão do estado nos propomos possibilitar o acesso e a construção dos materiais didático-pedagógicos, o que contribuirá para a realização de situações de aprendizagens relacionadas à temática história e cultura afro-brasileira e africana,

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pensando assim, na real efetivação dessa temática em sala de aula. Além do jogo de perguntas e respostas já citado, construímos dominós e jogos de memória sobre a fauna e a flora do continente africano. Os referidos jogos foram confeccionados com imagens que representam a flora e a fauna e o nome do elemento logo abaixo para que, além do lúdico, se possa trabalhar a língua portuguesa por meio da escrita dos elementos que expressam a biodiversidade do continente.

Nesse encontro, algumas turmas trabalharam com literatura infantil, uma com Kiriku e outra trabalhou com música, com o objetivo de proporcionar uma vivência interdisciplinar da cultura afro-brasileira a partir da música. Nesse momento, os alunos tiveram contato com músicas e os ritmos afro-brasileiros, como o frevo em seus diversos tipos melódicos: frevo canção, frevo de rua, frevo de bloco, e seus instrumentos, principalmente um acessório: sombrinha de frevo, a partir de atividades que proporcionassem às crianças o reconhecimento dessa música como de origem africana. Além do conhecimento e a construção de instrumentos musicais de origem africana como o Ganzá (construído com copos descartáveis e sementes) e o pandeiro (construído com embalagens de goiabada e tampinhas de refrigerante).

Gostaríamos de finalizar com os depoimentos das professoras que participam da nossa proposta de intervenção, em relação ao vídeo Rompendo o Silêncio, que aborda a caso de uma professora branca que modifica sua prática em sala de aula a partir de uma formação continuada e passa a fazer coisas simples que surtem efeitos importantes no combate ao preconceito. “A realidade diante do preconceito faz com que a gente reconheça o preconceito diante dos alunos”.[…] “A professora tem que estar mais atenta ao preconceito dentro da sala de aula e ensinar aos alunos a respeitar as diferenças entre eles”. […]“Nós não podemos fechar os olhos para os problemas que aparecem dentro da sala e no nosso dia a dia. Como diz o filme Rompendo o silencio, precisamos ser mais uma sementinha contra o preconceito e a discriminação racial”. […]

Algumas Considerações

Diante da especificidade do tema abordado, é necessária uma reflexão mais prolongada e sistematizada sobre o papel, que nós, professores, de todos os níveis de ensino, deveremos construir junto com os nossos alunos, sobre o nosso país e sobre o nosso povo. O respeito à diversidade e as diferenças vão além de um problema escolar, porém, é a escola o local com maior capacidade de empreender alternativas de solução, ou ao menos, de diminuição dessa desigualdade. A partir

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da pesquisa realizada, foi possível perceber que muitos professores e membros das equipes gestoras, da rede municipal de Petrolina, acreditam que a Lei 10.639/03 tem sua importância no combate ao preconceito e à discriminação em sala de aula e que abordar a temática se faz necessário para valorizar, resgatar nossa história, nossa raiz africana e, assim, promover o inclusão social. Mas as iniciativas da rede municipal ainda não são efetivas e nem atingem todos os professores da rede, restringindo-se aos professores de história em momentos pontuais da formação continuada. Uma das grandes dificuldades reveladas pelos professores pesquisados é que, além de em sua formação inicial na universidade esse tema não ter sido abordado, pelo menos, sistematicamente, é a real falta de material didático que aborde a História e Cultura Afro brasileira e africana nas escolas municipais de Petrolina.

De fato, não se pode negar a importância da temática História e cultura Afro-brasileira e africana na sala de aula e sua repercussão na sociedade brasileira. Reafirmamos mais uma vez que, sem a escola, seria impossível reverter o racismo. Já dizia Nelson Mandela “[...] ninguém nasce odiando ninguém, nós aprendemos a odiar e achar que as pessoas valem menos. Se nós aprendemos a odiar, podemos desaprender, e o espaço escolar é essencial para essa desaprendizagem”.

Temos consciência de que uma Lei por si só não pode mudar uma realidade, que foi construída historicamente a partir da hierarquização social em que o negro e o índio foram considerados inferiores aos brancos.

A partir dos resultados obtidos, principalmente, no que se refere a nossa iniciativa de trabalhar a temática em uma escola, inicialmente, poderá contribuir para ampliar essa discussão. A sensibilização dos professores e a tomada de consciência pela existência do tema já é um passo importante para essa construção. Assim, acreditamos que a nossa proposta de intervenção pode ser ampliada e atender o maior quantitativo da rede municipal que for possível, por meio de formações continuadas não só para professores de história, mas também para todos os níveis da educação básica. Esperamos, assim, contribuir, mesmo que minimamente, para o desenvolvimento de políticas públicas que garantam a inclusão efetiva da história e cultura africana e afro-brasileira, a formação de cidadãos conscientes de sua história e cultura e consequentemente, para a redução das desigualdades sociais e educacionais existentes pelo menos em nossa cidade.

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REFERÊNCIAS

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IDENTIDADES, MEMÓRIAS E PERSPECTIVAS DO MOVIMENTO DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL

Aloísio Jorge de Jesus Monteiro1

Introdução

Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. (...) O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. (Walter Benjamin)

Segundo Walter Benjamin2, a civilização em determinados momentos históricos assume características de Barbárie. Podemos perceber um processo acelerado de excludência que se alarga e de movimentos plurais que avançam. Uma pilha de produtos culturais sobre nossas cabeças, muitas vezes, nos impede de avançar.

O momento atual está partejando uma outra concepção de Política, de Ética e de Estado. Os significados e valores se embaralham e, tudo isso, cobra um espaço crescente para a educação e para os movimentos de fronteira. Será que não é hora de apoiarmos uma nova “Barbárie”?3

É necessário situarmos o lugar dos movimentos instituintes como instrumentos para superação de uma política neoconservadora, expressa por uma globalização excludente, não podendo subtrair-se assim, dos impactos marcados pela polifonia de diversos sujeitos históricos, que se apresentam, concretamente, na transformação do crescente cenário de violência do mundo atual.

Radicalizando a apreensão de possibilidades mais plurais, procuramos identificar os conceitos de território e identidade bem como suas possíveis confluências com a complexidade das novas configurações atuais. Nesta proposta,

1 Doutor em Educação, Professor Adjunto do Instituto de Educação IE/UFRRJ. Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas Diálogos e Saberes Cotidianos (LEPDiSC) e Coordenador do Programa Tekoha Guarani - UFRRJ. 2 Pensador da Escola de Frankfurt e escritor, entre outros, de Sobre o Conceito de História.3 Segundo Benjamin, o conceito de Barbárie assume aqui o significado de barbarismo, ou seja, diferente, estrangeiro, em oposição ao sentido expresso pelo termo barbaridade, violência, brutalidade.

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procuramos situar o processo de investigação e pesquisa das memórias e instrumentos da política e da cultura tradicional agrícola Guarani, expressos no mundo globalizado em geral, e mais especificamente na região sul do estado do Rio de Janeiro, mas que não podem subtrair-se dos impactos e pressões marcados pela polifonia de diversos sujeitos históricos, que se apresentam, concretamente, através dos movimentos de complexidade do mundo atual.

A Questão do Território

A relação existente entre território e identidade para os índios, anterior à conquista, é marcada pela noção de território sem fronteiras. O índio era nômade e sua identidade cultural agrícola caracterizava-se por um sistema de rotatividade do espaço e equilíbrio ecológico natural.

Partimos de uma noção político-jurídica de território desde a fundação do Estado Moderno, no século das luzes, que se manteve associada ao conceito de Estado-Nação, primando, como afirma Milton Santos, pela subordinação eficaz do território ao Estado. O território marcava e definia o Estado-Nação, enquanto este o moldava como Estado territorial e território “estatizado”.

Hoje, vivemos um processo de transformações profundas nas diversas esferas do relacionamento humano mundial de uma modernidade tardia e presenciamos mudanças significativas no processo de transnacionalização do território. “Mas, assim como antes tudo não era, digamos assim, território ‘estatizado’, hoje tudo não é estritamente ‘transnacionalizado” (SANTOS, 1994, p. 15). Portanto, até mesmo nos lugares onde os processos de mundialização se apresentam de forma cada vez mais eficiente, os territórios habitados, através de outras tessituras a partir de novas redes de complexidade, acabam por impor ao processo de globalização a sua revanche (Santos), isto é, um outro convite para um novo embate.

A crise da modernidade que presenciamos como atores, muitas vezes como protagonistas e em outras como coadjuvantes, nos remete a um momento histórico em que o velho não dá mais conta de explicar a realidade, ao mesmo tempo em que o novo ainda não se estabeleceu. Como pergunta Haesbaert (2002): em relação ao território, ao espaço humano, o que seria esse novo e esse velho?

A questão fundamental, segundo Haesbaert, reside na relação binomial espaço-tempo. Primeiramente com o fim do tempo e da própria história segundo Fukoyama. Nesse sentido, o discurso do fim do tempo (diacrônico), acabaria por se confundir e se balizar por uma perspectiva, como nos diz Jameson (1996), por uma

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“cultura cada vez mais dominada pelo espaço e pela lógica espacial”.Assim, concordando com Haesbaert, o domínio do mundo pela sincronicidade

(espaço) ou pelo tempo (diacrônico), se institui enquanto cerne do debate, introduzindo categorias como: instantaneidade, velocidade, tempo real, virtual, alteridade, territorialização, desterritorialização, reteritorialização, etc.

Sabemos que os espaços não foram suprimidos e que se a velocidade do tempo acaba por destituir as distâncias, os espaços, mas que isto se deve, fundamentalmente, ao aumento do desenvolvimento e avanços tecnológicos, que colocam a relação espaço-tempo em um processo cada vez mais dinâmico e de virtualidade.

Até mesmo porque se, as relações são instantâneas e se o tempo desaparece, como podemos ter o chamado “tempo real” ? Que “real” é esse?

Nessa lógica, as argumentações são marcadas por uma tentativa de dissociação das noções de espaço-tempo, sem se perceber, muitas vezes, que uma dá sentido a outra.

tempo e espaço são referências fundamentais em nossas vidas. Ao tentarmos suprimir uma ou outra, podemos suprimir nossa própria identidade. Ou fundando outra, completamente distinta. Mas, como não acreditamos que a atual crise (de representação, sobretudo) seja uma crise de mudanças radicais a esse ponto, nossa tese é de que, ao invés de estarem desaparecendo, a geografia e seus espaços – ou territórios – estão, na verdade, emergindo sob novas formas, com novos significados (HAESBAERT, 2002, p. 31).

Algumas novas formas emergentes de territorialização, muitas vezes, acabam por aprofundar um processo de desterritorialização, na tentativa de reterritorializar diversos grupos sociais em novas bases territoriais, muito mais identificadas com um processo de pauperização e exclusão profundas, ou seja, visam recompor e deslocar o espaço, a cultura, a economia e a organização social e política de um grupo específico, buscando reconstituí-los em novas bases territoriais, a fim de garantir a manutenção do poder instituído, no interior, inclusive, de suas bases simbólicas.

Então, muito mais do que a aniquilação dos territórios, o que presenciamos é a tentativa de estruturação de outras formas de significações e organizações

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territoriais das sociedades tradicionais, onde, na realidade, não podemos nos deixar iludir e assim perdemos a perspectiva de uma territorialização, ainda que permeada pela complexidade de processos múltiplos e diferenciados, deve estar socialmente referenciada, articulada a seu plano econômico-político e marcada por suas dinâmicas simbólico-culturais.

No que diz respeito ao significado de territorialidade pode-se defini-lo, segundo Haesbaert, em três grandes linhas gerais.

A primeira entende o território como a base material concreta. Isto é, enquanto meio de produção e reprodução da sociedade, criando assim um vínculo estreito de dependência entre o sentido de territorialidade e a base de produção material, ou seja, a terra.

A segunda se dá a partir da centralidade da concepção política. Identifica as diversas relações de poder e controle, individuais e sociais, nos espaços materiais de existência humana. Aqui o entendimento clássico da noção de território, se dá, a partir de sua vinculação ao conceito de Estado-Nação, mas não reduzidos a estes, de forma estrita.

E por último a perspectiva da dimensão cultural no significado de território, que identifica, o espaço territorial, enquanto aquele que é marcado por suas identidades.

Nesse campo, identificamos aqueles que defendem, por um lado, uma reterritorialização mais radical, a partir do tensionamento das identidades, como propõe Huntington, na tese do “choque de civilizações”; e por outro, os que identificam a necessidade de uma desterritorialização a partir do conceito de culturas híbridas, cujos representantes são por Nestor Canclini e Homi Bhabha, entre outros, como também, no entendimento de circularidade de culturas, proposto por Carlo Grinzburg.

Concordamos com Haesbaert (2002): “É muito difícil estabelecer fronteiras entre a concepção política e a concepção cultural de território”.

Entendendo que a produção simbólica é indissociavelmente perpassada pelas relações de poder, a cultura aqui, necessariamente, precisa ser apreendida enquanto cultura política. Ou seja, se por uma via identificamos a dimensão político-ideológica do poder simbólico (cultura política) no debate da territorialidade, por outra, não duvidamos da existência, na mesma dimensão (político-ideológica), das diversas possibilidades de políticas culturais homogeneizadoras (muitas vezes enquanto políticas públicas), que visam a desconstrução e desterritorialização de conhecimentos tácitos e culturas tradicionais.

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É nessa perspectiva de cultura política, ao mesmo tempo material e simbólica, que percebemos a dimensão cultural dos processos de desterritorialização. Alguns autores, com tendências culturalistas, afirmam que o próprio caráter cultural dos territórios precede e/ou se impoõe sobre a natureza política. Não se trata, porém, de substituir uma visão ‘materialista’ por uma visão ‘idealista’ dos processos de desterritorialização (HAESBAERT, 2002, p. 39).

Hoje, vendo a fragmentação territorial, associada a um processo de globalização e ocidentalização cultural planificada, em uma perspectiva instituída (oficial, hegemônica), identificamos, como consequência, o declínio e consequente deslocamento do conceito de territórios Estado-nacionais, para o fortalecimento do caráter político da noção de territórios identitários, a partir de um processo de etnicização do significado de territorialidade, em grande parte presentes em diversos movimentos sociais reivindicatórios e, principalmente, na lógica do poder instituído.

Entretanto, em uma via instituinte (alternativa, contra-hegemônica), muito mais do que um embate entre as dimensões culturais e políticas, devemos aprofundar a relevância do tratamento das diversas possibilidades e significações de territorialização e desterritorialização, baseados nos diferentes níveis de interações complexas - levando em conta objetividades e subjetividades, sonhos e condições sociais – que compõem as diversas tentativas de reterritorialização das comunidades subalternas, tradicionais e populares da sociedade, no interior de uma perspectiva de garantia da autonomia, do respeito às diferenças e da dignidade humana.

As buscas mais radicais sobre o que significa estar entrando e saindo da modernidade são as dos que assumem as tensões entre desterritorialização e reterritorialização. Com isso refiro-me a dois processos: a perda da relação ‘natural’ da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas” (CANCLINI, 1997, p. 43).

Entendemos assim, que o significado de território está estritamente ligado, à noção de identidade.

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Sobre a Noção de Identidade

Na introdução do debate sobre os sentidos do termo identidade, uma perspectiva bastante esclarecedora é a da divisão em dois campos centrais de discussão, defendida por Kathryn Woodward, traduzida na tensão entre a perspectiva essencialista e não-essencialista de identidade.

Para Woodward (2000, p. 15), o essencialismo identitário pode se constituir tanto pelo campo da história quanto pelo biológico, ou seja, “certos movimentos políticos podem buscar alguma certeza na afirmação da identidade apelando seja à ‘verdade’ fixa de um passado partilhado seja a ‘verdades’ biológicas”.

Na esteira dessa lógica encontramos também movimentos étnicos, religiosos, nacionalistas, etc. que com frequência “reivindicam uma cultura ou uma história comum como fundamento de sua identidade” (WOODWARD, 2000, p.15).

Já para realizarmos um aproximação ao campo não-essencialista do conceito de identidade, ainda segundo a autora, precisamos de uma análise da inserção da identidade naquilo que ela chama de “circuito da cultura”, como também, concordando com Hall (1997), na “forma como a identidade e a diferença se relacionam com a discussão sobre representação” (WOODWARD, 2000, p. 16).

No interior desta perspectiva, Bauman (2005), apoiado em Siegfried Kracauer, define os possíveis significados de identidade a partir da existência do que ele chama de: “comunidades de vida” e “comunidades de destino”.

A primeira se caracteriza por aquelas comunidades que “vivem juntas em ligação absoluta”; e a segunda naquelas em que são “fundadas unicamente por ideias ou por uma variedade de princípios”.

Então, para Bauman, a necessidade da definição identidade somente surge com a exposição do conceito de “comunidade de destino” (fundada por ideias), na transcendência de uma possível visão essencialista de identidade, a partir de uma compreensão fixada de comunidade de vida.

É porque existem tantas dessas ideias e princípios em torno dos quais se desenvolvem essas ‘comunidades de indivíduos que acreditam’ que é preciso comparar, fazer escolhas já feitas em outras ocasiões, tentar conciliar demandas contraditórias e frequentemente incompatíveis” (BAUMAN, 2005, p. 17).

Por outro lado, ousaria afirmar a também existência de uma terceira categoria

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presente na articulação das diversas possibilidades de entrelaçamentos complexos entre as comunidades de vida e de destino, definidas por Bauman, que denomino comunidades de fronteiras.

Estas comunidades se caracterizam pela possibilidade de apesar e além de “viverem juntas” (comunidades de vida), possuírem, dinamicamente em seu interior, “multicomunidades de destino”, ou seja, uma multiplicidade de comunidades que se articulam em diferentes esferas e “variedades de princípios e ideias”. Assim, a comunidade de fronteira, se situa naquilo que Homi Bhabha chama de entre-lugares, ou seja, nos espaços de vidas fronteiriças.

Ao pensarmos, nesse sentido, a noção de identidade, não podemos nos fixar em duas únicas dimensões polarizadas a partir de um determinado espaço territorial, isto é, nos atermos a uma perspectiva interna e/ou externa de vidas comunitárias, e, a partir de então, realizarmos as articulações entre aqueles que pertencem (internos) e os estrangeiros (externos). Podemos ser absolutamente estrangeiros, enquanto pertencendo.

O próprio Bauman (2005, p. 18) concorda com esta perspectiva quando afirma:

Em nossa época líquido-moderna, o mundo em nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados, enquanto as nossas exigências individuais estão fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados. Poucos de nós, se é que alguém são capazes de evitar a passagem por mais de uma ‘comunidade de ideias e princípios’, sejam genuínas ou supostas, bem-integradas ou efêmeras, de modo que a maioria tem problemas a resolver.

O caminho situado nas fronteiras, ao mesmo tempo em que pantanoso, é o território da produção do outro, do “novo”, daquilo que transcende as posições fixadas. Mesmo porque, para os residentes das fronteiras, em qualquer direção que se olhe, se vê um estrangeiro.

Penso que esta seja a emergência do momento da humanidade atual. Acredito ser esta a marca mais profunda do significado de diferença, onde a ruptura entre os essencialismos possíveis (“estreitos e estritos” ou “amplos e genéricos”), possam realmente se dar no “ser” e “fazer” dos relacionamentos cotidianos, marcados, necessariamente, por diferentes pertencimentos; onde, definitivamente, “rótulos” (tais como em remédios e produtos industrializados) e “marcas” (tais como em

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grifes e animais de rebanhos) possam ser superados.Avançamos em diversos campos, no que concerne à questão da alteridade.

Mas, como nos adverte Carlos Skliar, não podemos deixar que o outro se transforme em tema, pois quando esse outro, porque marcado pela diferença, se traduz em temática, tendemos a um processo de homogeneização das diferenças e incorporamos, mesmo que sutilmente, uma dimensão essencialista.

É por isso que o território dos entre-lugares é o caminho do “fio da navalha”.Precisamos romper com o sentimento das alteridades fixadas e assumirmos

as perspectivas de nossas alteridades fluidas, sem perdermos a dimensão dos enfrentamentos políticos. Em determinados momentos, buscando a superação das condições de opressão e violências instituídas, devemos fixar nossos campos identitários, enquanto estratégia política de enfrentamento no processo de luta contra qualquer atitude totalitária. Mas, é preciso manter a lucidez, da necessidade de rompimento das barreiras entre o “nós” e os “outros”, em uma sociedade possível, como nos alerta Todorov.

É nisto, creio eu, que reside a preocupação central de Stuart Hall, quando ele assume a preferência pelo conceito de identificação, em detrimento ao de identidade, muito menos pela obrigatoriedade de defini-lo categoricamente, do que pelo reconhecimento do grau de complexidade presente. Assim Hall busca situar a identificação na fronteira entre sujeitos e práticas discursivas.

Hall (2000, p. 105) concorda com Foucault, quando diz: “o que nos falta, neste caso, não é ‘uma teoria do sujeito cognoscente’, mas ‘uma teoria da prática discursiva”. Por outro lado, sublinha também, que a emergência deste “descentramento” não se traduz no deslocamento da centralidade do sujeito, e mesmo da razão, em detrimento da prática discursiva, mas na acentuação da exigência de uma “outra” reconceptualização do sujeito e da racionalidade dominante.

O conceito de ‘identificação’ acaba por ser um dos conceitos menos bem desenvolvidos da teoria social e cultural, quase tão ardiloso – embora preferível – quanto o de ‘identidade’. Ele não nos dá, certamente, nenhuma garantia contra as dificuldades conceituais que têm assolado o último” (HALL, 2000, p. 105).

A tarefa que temos em mãos, pode ser traduzida por um permanente cuidado com as armadilhas e atalhos, que podem nos levar a caminhos de aprimoramento das vias e territórios de preconceitos, discriminações e violências instituídas,

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porque, aquilo que reivindica “exclusividade” (identidade fixa), não pode incluir, pois o radical semântico do termo exclusivo, é o mesmo da palavra de exclusão.

Memórias e Movimentos Indígenas: da luta pela terra à implantação de projetos educacionais.

Marcadamente, a conquista territorial sempre esteve presente em nosso processo histórico, como não poderia deixar de ser, em se tratando de perspectiva colonizadora. Outro ponto central neste cenário, que se associa à luta territorial, é a questão populacional, e, no caso brasileiro, em primeiro um momento, nos referimos à população indígena.

A delimitação populacional indígena no Brasil se constitui em um amplo campo de debate e divergências entre diversos estudiosos da área. Mas, segundo Eduardo Góes Neves (2004), na transição do século XV para o XVI, existiam aproximadamente 52 milhões de indígenas na América Latina. Já John Manuel Monteiro (2004) estima entre 8 e 10 milhões somente no Brasil, e, de acordo com Manuela Carneiro da Cunha (2004), cerca de 5 milhões ocupavam estritamente a região amazônica.

No limiar do século XVIII e início do XIX, a perspectiva prognóstica colonizadora era marcada pela tentativa de demarcação do tamanho original da população indígena, em consonância com o grau de declínio desta mesma população. Tal perspectiva visava a apreender as diversas possibilidades e tendências de desaparecimento das diferentes nações indígenas, quer sejam por morte (em função das diversas epidemias) ou pela assimilação cultural.

Ainda segundo relatos do padre jesuíta João Danilo, os índios Macuxi e os Wapixan já ocupavam a região do extremo norte de Roraima, conhecida como Raposa-Serra do Sol e hoje foco de enormes disputas.

A manutenção dos povos indígenas nas regiões de fronteira era uma estratégia colonizadora, defendida principalmente pelo então Barão do Rio Branco e por Joaquim Nabuco, visando à manutenção territorial portuguesa e que ficou conhecida como Muralhas do Sertão.

Hoje, segundo, respectivamente, John Manuel Monteiro (2004) e Manuela carneiro da Cunha (2004), temos pouco mais de 200 povos indígenas e aproximadamente 270.000 índios, nas diversas etnias, em território brasileiro4.

4 Dados do Censo 2000 do IBGE.

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Também atualmente, em relação à demarcação do território da região amazônica, dados importantes precisam ser sublinhados na relação povos indígenas - empresas de capital privado. Cabe destacar que somente a Manasa Madeireira Nacional possuía, em 1986, 4 milhões e 140 mil hectares no Amazonas, área maior que a Bélgica, Holanda e Alemanha reunidas. Já a Jarí Florestal Agropecuária possui cerca de 3 milhões de hectares no Pará.

Cabe destacar que o modo de produção no Brasil colônia se caracterizava pela mão-de-obra escrava. Naquele momento histórico a terra era, em última análise, posse do colonizador. Daí a estratégia de manutenção dos povos indígenas nas regiões de fronteira – tendo em vista também a forte resistência destas diversas etnias ao processo colonizador escravocrata – através das Muralhas do Sertão, tinha endereço certo.

Já no final do século XIX, as mudanças estruturais nas relações sociais de produção, tendo como base a necessidade da posse da terra, como elemento central de poder no coronelismo, estabelece outras bases nas disputas territoriais e, por que não, identitárias.

A expansão das fronteiras urbanas destaca-se entre os fenômenos mais significativos e, contraditoriamente, pouco reconhecidos no campo das políticas públicas governamentais. Tal fato implica sérios limites sociais e de possibilidade de vida para as comunidades tradicionais.

Acreditamos que a superação destas condições limitantes de desenvolvimento social e humano poderá ser alcançada com o reconhecimento das comunidades residentes em espaços populares e tradicionais – dentre elas as aldeias indígenas – como sujeitos sociais ativos; capazes de pensar, inventar e realizar seus sonhos de uma vida mais plena e generosa. É preciso, portanto, desconstruir os estigmas que marcam os residentes destas comunidades e, em associação, buscar condições para a reconstrução de “novos protagonistas” de políticas sociais, em referenciais participativos, visando à superação daquilo que chamamos de imaginário congelado da identidade brasileira.

Dentre esses, destacamos, sem a menor dúvida, os jovens das comunidades indígenas em particular, no que Aracy Lopes da Silva e Luís Grupioni definem como convívio na diferença, ou seja:

A afirmação da possibilidade e a análise das condições necessárias para o convívio construtivo entre segmentos diferenciados da população brasileira, visto como processo

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marcado pelo conhecimento mútuo, pela aceitação das diferenças, pelo diálogo (SILVA e GRUPIONI, 2004, p. 15).

Acreditamos que para construir um futuro melhor, se faz indispensável incorporar aqueles que herdarão esse mesmo futuro. Nesse sentido, as políticas públicas de combate às desigualdades sociais precisam superar a concepção de ausência e ações descontínuas, que orientaram diversos projetos, e caminhar na via da construção de políticas inclusivas para jovens e adultos, e em especial, neste caso, de comunidades indígenas.

Ainda na perspectiva de Silva e Grupioni:

Nestes tempos de violência generalizada no país, a reflexão sobre os povos indígenas e sobre as lições que sua história e suas concepções de mundo e de vida social podem nos trazer, aliada ao exame dos modos de relacionamento que a sociedade e o Estado nacionais oferecem às sociedades indígenas constituem um campo fértil para pensarmos o país e o futuro que queremos (2004, p. 15 e 16).

Nossa proposta se inspira em uma concepção horizontalizada de ação pública, bem como, no envolvimento dos jovens e adultos moradores de diversos espaços tradicionais de fronteira nas mais diferentes aldeias indígenas.

Nessa perspectiva, devemos identificar a dinâmica das concepções, ausências institucionais e as novas formas de organização das políticas públicas, nos mais variados campos da questão indígena, como também ações instituintes, que dizem respeito à superação das condições de exclusão, abandono, omissões e violências, nas diferentes aldeias e etnias indígenas, que compõem o cenário cultural brasileiro.

Um dos campos marcadamente grifado pelas lutas históricas dos diferentes povos indígenas, visando a superação deste quadro de ausências institucionais, é o educacional. Entendemos que um dos caminhos possíveis de políticas públicas em educação indígenas mais consequentes está na criação de diagnósticos participativos socioculturais e econômicos que, por definição ética e política, contribuam para a construção de práticas educativas que levem em conta as estratégias cotidianamente construídas pelos diversos grupos étnicos, cujo objetivo maior tem como referência a superação das desigualdades e violências sociais, marcantemente vivenciadas nos espaços de fronteira.

50 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

A implantação de projetos escolares para a população indígena é quase tão antiga quanto o estabelecimento dos primeiros agentes coloniais na Brasil. A submissão das populações nativas, a invasão de suas áreas tradicionais, a pilhagem e destruição de suas riquezas, etc. têm sido, desde o século XVI, o resultado de práticas que sempre souberam aliar métodos de controle político a algum tipo de atividade escolar civilizatória (SILVA e AZEVEDO, 2004, p. 149).

Da Lei 11.645/08 5 a I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena – CONEEI

Sobre a Lei 11.645/08: breve análise

O ano de 2008 pode ser identificado como um momento de avanços significativos para Movimento Nacional de Educação Escolar Indígena no Brasil. Por um lado, tivemos a promulgação da Lei 11.645 e, por outro, o processo de construção da I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena.

Em relação a Lei 11. 645/08, podemos dizer que ela se prende unicamente a mudanças de aspectos estruturais e formais, que foram modificados a partir da Lei 10.639/03, que tratavam do ensino da história e cultura afro-brasileira.

Nenhuma proposta de parâmetros curriculares, estabelecidos através de referenciais teórico-metodológicos podem ser identificados ou apreendidos a partir desta Lei, mas reconhecemos que a luta conjunta do movimento indígena e do movimento negro no Brasil, propiciou este avanço legal.

5 Presidência da República Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei . 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o O art. 26-A da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 26 - Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o - O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 51

Nesse sentido é que o Movimento de Educação Escolar Indígena passa a enxergar a construção da I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (I CONEEI), como um espaço possível de articulações instituintes, visando a elaboração, em caráter nacional, de parâmetros efetivos institucionais, para a construção de uma Educação Escolar Indígena Diferenciada (incluída inclusive no Plano Nacional de Educação – PNE), bem como sua inserção no Sistema Nacional de Educação, a partir da Lei 11.645/08.

O Movimento Indígena e a I CONEEI: breve relato

à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR). Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 10 de março de 2008; 187o da Independência e 120o da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, Fernando Haddad.

Após diversas investidas do movimento indígena organizado no Brasil, principalmente no campo da educação, a conquista da Lei 11.645 de março de 2008, estabelece um marco significativo de avanço histórico. O Movimento indígena em conjunto com o Ministério da Educação, através de sua Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), com o Conselho Nacional de Secretarias de Educação (CONSED) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI),

52 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

articula, efetivamente, a I Conferência de Educação Escolar Indígena (I CONEEI), e reune as principais lideranças, em diversas áreas e etnias, das representações comunitárias dos povos indígenas, do Conselho Nacional de Educação, dos Sistemas de Ensino Estaduais e Municipais, União dos Dirigentes Municipais da Educação (UNDIME), de Universidades, da Rede de Formação Técnica e Tecnológica e da sociedade civil organizada, visando a promoção de um debate amplo e formulação de propostas sobre as condições de oferta da educação intercultural indígena, buscando definir referenciais para as políticas públicas a serem desenvolvidas para este campo, como também no que diz respeito a gestão de programas e ações para o tratamento qualificado e efetivo das diferenças étnicas indígenas, no interior de um processo participativo.

A I CONEEI (como consta em sua carta de constituição) foi organizada em três momentos :

1. Conferências nas Comunidades Educativas Indígenas;2. Conferências Regionais; 3. Conferência Nacional.As Conferências nas Comunidades Educativas Indígenas foram realizadas em

diversas escolas indígenas, nas diferentes regiões do país, e buscaram estabelecer diálogos e identificar as diversas vozes, de diferentes atores locais, visando articular possíveis propostas em relação ao papel que a educação escolar indígena deve assumir para o fortalecimento cultural e a construção da cidadania, respeitando a diversidade étnica, como também, discutir os avanços conquistados e os desafios que ainda precisam serem enfrentados.

As Conferências Regionais, realizadas pela I CONEEI, foram os espaços de debate, para que representantes dos povos indígenas, dirigentes e gestores dos Sistemas de Ensino, Universidades, FUNAI , entidades da sociedade civil e demais instituições refletissem a realidade da educação escolar indígena no Brasil e propusessem possíveis encaminhamentos para a superação dos desafios atuais.

E por último, a Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (I CONEEI) foi o momento de grande articulação geral das reflexões e debate das propostas, formuladas nas etapas anteriores, locais e regionais, onde delegados e delegadas, formularam e assumiram um conjunto de compromissos compartilhados, no que diz respeito a orientação de ações institucionais, no sentido do desenvolvimento articulado e diferenciado, da Educação Escolar Indígena.

Assim se constituiu o cronograma e a agenda do I CONEEI.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 53

I CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

02/12/2008 – 16 h – Lançamento oficial da I CONEEI no MEC – Brasília-DF• 15 a 18/12/2008 - Conferência Regional do Rio Negro-São Gabriel da

Cachoeira/AM.• Dia 14/01 – Reunião sobre Educação Técnica no TEARN e Consulta ao

Fundo Amazônia.• 20 e 21/01 - Reuniões organizativas na FUNAI e na CGEEI-SECAD em

Brasília .• 26 a 27/01 – Reunião preparatória NE I-Salvador/BA.• 02 e 03/02 – Reuniões preparatórias: MG/ES (BH), NE II (Fortaleza) e

MS(C.Grande).• 05 e 06/02 – Reuniões preparatórias: MS (Dourados) e Sul Curitiba.• 09 a 13/02 - Reunião com Técnicos das Unidades Regionais da FUNAI

em Brasília-DF.• 10 e 11/02 – Reuniões organizativas CONSED (11 e 12-DF) UNDIME (10

e 11-DF).• 18 a 20/02 - Reunião prévia de Manaus, Alto Solimões e Javari, Plano

Territorial-Alto RN.• 26 e 27/02 – Reunião da Comissão Organizadora da I CONEEI-DF e

CNEEI-DF.• 04 a 06/03 – Remessa de Carta Consulta do TEARN para gestores do

Fundo Amazônia.• 10 a 13/03 - Conferência Regional do Nordeste I (BA, AL, SE).• 24 a 27/03 - Conferência Regional do Nordeste II (CE, PB, PE).• 26 e 27/03 – Reunião preparatória MT-Cuiabá(Cuiabá)-Fusão das duas:

Xingu e Cuiabá.• 30 e 31/03 - Reunião preparatória: RR-Boa Vista-RR**Solicitação de

antecipação.• 31/03 a 03/04 - Conferência Regional do MS (Dourados).• 02 e 03/04 – Firmatura do Plano Territorial do Alto Rio Negro-Manaus.• 05 a 08/04 - Conferência Regional do MS (Campo Grande).• 09/04 – Reunião com o Povo Guarani de Santa Catarina/etapa regional

Sul-Biguaçu-SC.• 13 e 14/04 - Reunião preparatória: Alto Solimões e Javari–Tefé-AM.

54 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

• 16 e 17/04 - Reunião preparatória: Rondônia-Porto Velho-RO.• 22 a 24/04 – Reunião da Comissão Organizadora da I CONEEI e CNEEI-

DF .• 27 e 28/04 – R. Prep.: TO/MA/GO-Palmas-TO.• 28/4-01/05- Conferência Regional do Sul (Faxinal do Céu-PR)

RS,SC,PR,SP,RJ.• 04 e 05/05 - Reunião preparatória: Macapá-AP.• 04 a 07/05 - Conferência Regional do Mato Grosso (Cuiabá).• 11 a 14/05 - Conferência Regional do Alto Solimões e Javari (Tabatinga-

AM).• 18 a 21/05 - Conferência Regional de Manaus (Manaus).• 25/05 – Reunião de trabalho do Plano Territorial do Alto Rio Negro-

Manaus.• 01 a 04/06 - Conferência Regional de RR (Boa Vista).• 03 a 04/06 – Reunião preparatória das regionais PA Sul e PA Norte (Belém-

PA).• 07 a 10/06 - Conferência Regional do Mato Grosso (Xingu).• 17 a 20/06 - Conferência Regional do MA, GO e TO (Palmas).• 22 e 23/06 – Reunião da Comissão Organizadora da I CONEEI.• 29/6-03/07 - Conferência Regional de EEI de MG e Espírito Santo.• 29 e 30/06 - Reunião Preparatória: AC - Rio Branco – AC.• 01/07 – Reunião de firmatura do Plano Territorial do Alto Rio Negro-

Brasília-DF.• 06 e 07/07 - Reunião preparatória da etapa regional do PA - SUL - Marabá-

PA.• 14 a 16/07 – Dia de Campo no TERRITÓRIO ETNOEDUCACIONAL DO

MACIÇO GUIANENSE OCIDENTAL-Alto Alegre-Fazenda Santa Luzia-IFRR, SECD,EMBRAPA-RR, SEBRAE-RR, SENAC-RR, CENTRO DE FORMAÇÃO E CULTURA RAPOSA SERRA DO SOL, OMIR,OPIR, CIR.

• 21 a 24/07 - Conferência Regional de RO (Ouro Preto do Oeste-RO)• 20/10/2009 - Encerradas as inscrições de observadores(as) junto à etapa

nacional da I CONEEI • 16 a 20/11/2009 - ETAPA NACIONAL DA I CONEEILOCAL: CTE da CNTI em Luziânia-RIDE-DF .• 22/11 a 22/12/2009 - Sistematização e documentação final da I CONEEI

(Período de 1 mês subsequente à realização da etapa nacional da I Conferência

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 55

Nacional de Educação Escolar Indígena) .

Conclusão

Buscando superar uma visão histórica de ausências e omissões institucionais marcadamente presente em nossa trajetória desde o Brasil colônia, principalmente no que diz respeito às políticas públicas, defendemos a visão da possibilidade de construção de diagnósticos participativos, que efetivamente, no campo educacional, podem identificar dados significativos na perspectiva da construção da escola diferenciada indígena, fundada no conceito de interculturalidade e do respeito a diferença e diversidade étnica.

Nesse sentido, reafirmamos a emergência daquilo que chamamos de concepção horizontalizada de ação pública, na medida em que esta busca se pautar na(s): reflexões sobre os povos tradicionais (aqui marcadamente o indígena) e seus saberes históricos; sua cosmologia, concepções de mundo e de vida social; articulação das possibilidades de relacionamentos interculturais com a sociedade em geral; e com o atendimento das demandas necessárias por parte do Estado Nacional.

Assim, entendemos que a metodologia proposta para construção da I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (I CONEEI), como também a promulgação da Lei 11.645/08, caminham, como passos iniciais, na direção da construção de uma política horizontalizada de ação pública e na configuração de um Estado realmente preocupado com a preservação de suas memórias, territórios, identidades e de seu patrimônio cultural.

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TRAJETÓRIAS DE DOCENTES DO ENSINO SUPERIOR: ações afirmativas no contexto da Universidade Federal de Minas Gerais

Ana Amélia de Paula Laborne1

Introdução

A raça, entendida aqui como uma construção social (MUNANGA, 2004), se constitui em uma dimensão relacional, podendo variar de acordo com os contextos. A experiência de miscigenação racial, tão presente no Brasil, serve para tornar esse processo ainda mais complexo.

Hasenbalg e Silva (1992; 1999), Guimarães (1999), Telles (2003) e Silvério (2002) afirmam que as desigualdades que caracterizam o Brasil ocorrem em uma sociedade racialmente heterogênea. Hasenbalg e Silva (1992) ainda enfatizam que tal situação não deve ser explicada como mera herança de um passado escravista. Na realidade, a persistência histórica do racismo no Brasil deve ser entendida a partir das desigualdades produzidas entre os sujeitos socialmente classificados em categorias raciais, levando em consideração a complexa teia das relações de poder entre os segmentos da sociedade.

Nesse contexto, apesar da intensa miscigenação da população brasileira, a discriminação e o preconceito racial persistem. O fato de ser branco em nossa sociedade confere vantagens estruturais e privilégios, sejam eles concretos ou simbólicos, que moldam as experiências, as identidades das pessoas, suas visões de mundo, concepções e práticas políticas (TELLES, 2003). Essa situação se repercute em vários setores da sociedade, e a educação escolar é um deles.

Autores como Barcelos (1992), Hasenbalg e Silva (1992), Henriques (2001), Queiroz (2002), Teixeira (2003), Gomes e Martins (2004), ao analisarem a educação no Brasil, vêm aprofundando a discussão sobre a dimensão racial e seus efeitos na distribuição de oportunidades educacionais entre os diferentes grupos da população.

É importante destacar que algumas pesquisas apontam para o fato de que a escolarização dos indivíduos se dá de forma desigual de acordo com a sua raça. Segundo Henriques (2001), a escolaridade média de um jovem negro com 25 anos

1 Professora da Faculdade de Educação – Universidade Federal de Minas Gerais

60 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

de idade gira em torno de 6,1 anos de estudo, enquanto um jovem branco da mesma idade tem cerca de 8,4 anos de estudo, apresentando um diferencial de 2,3 anos de estudo. Esse fato se torna ainda mais relevante em uma sociedade em que a escolaridade média dos adultos está em torno de 6 anos.

Essas análises com recorte racial deixam clara a precariedade da situação educacional da população negra no Brasil, o que é preocupante já que sabemos quão relevante é o peso que a educação ainda desempenha no processo de mobilidade social.

Noé (2005, p.6) aponta a escola como uma instituição social que “se incumbiu de separar os que a ela tinham acesso e os que a ela não pertenciam. Porém os que nela se inseriam também eram divididos, por múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização.”

Assim, entendida como um campo político, a educação não está desvinculada de um exercício (desigual) de poder, pois o ato de instituir diferenças nem sempre implica na garantia do direito. As diferenças, por vezes, são atribuídas ou percebidas em um contexto de relações assimétricas de poder, convertendo-se, dessa maneira, em desigualdades.

Por outro lado, se pensarmos na possibilidade de que a escola não apenas transmite conhecimentos, mas também é um espaço de produção de valores, de subjetividades, de comportamentos e posturas, entenderemos ainda que ela pode interferir positivamente na afirmação das identidades raciais, de gênero e geracionais, dentre outras.

Articulado a essa discussão, e pensando as trajetórias educacionais de professores negros de uma Instituição de Ensino Superior (IES) como percursos de ascensão educacional, o presente artigo tem como principal objetivo apresentar resultados parciais da pesquisa realizada com docentes negros da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), buscando compreender as trajetórias de vida, escolares e acadêmicas desses sujeitos à luz da discussão sobre a pertinência da implementação de ações afirmativas no ensino superior.

A escolha da UFMG como local para o desenvolvimento da pesquisa parte do entendimento da universidade como um espaço de produção de valores e de comportamentos enquanto instituição escolar, e relaciona-se também com seu caráter público e gratuito.

Ao longo dos últimos anos, a UFMG vem realizando debates sobre inclusão e democratização do acesso aos cursos superiores. A proposta de inclusão social desta universidade consiste na concessão de um bônus adicional de 10% à nota do

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 61

candidato ao vestibular que comprovar ter cursado os últimos sete anos em escola pública e mais 5% para o candidato que, além desse requisito, se autodeclarar preto ou pardo.

Nesse contexto, nos interessa identificar as condições de ingresso e inserção na vida acadêmica desses docentes negros, bem como as principais experiências que marcaram e constituíram essa trajetória. Ao reconstituir esses percursos vivenciados por esses docentes negros, buscamos compreender suas estratégias de inserção social e escolar, analisando a vivência da sua condição racial nos diversos espaços pelos quais circularam e ainda circulam - sobretudo, os acadêmicos.

As entrevistas

Diante da inexistência de dados sobre a classificação racial dos professores da UFMG foi necessário, em um primeiro momento, realizar uma coleta de dados quantitativos que pudesse facilitar o contato com esses sujeitos. Dentre os 224 (duzentos e vinte e quatro) docentes que responderam ao questionário aplicado nas faculdades que compuseram a amostra, a saber: Faculdade de Medicina, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Instituto de Geociências e Faculdade de Letras, 181 (cento e oitenta e um) se declararam brancos, 29 (vinte e nove) pardos, e apenas 1 (um) se declarou preto.

A partir desse mapeamento, entramos em contato com docentes autodeclarados pardos e com o único docente preto para a realização de uma entrevista. Foram entrevistados um total de 6 (seis) docentes, sendo 5 (cinco) homens e 1 (uma) mulher. No presente artigo privilegiamos a análise de três depoentes: Carlos – professor da Faculdade de Letras, Pedro – professor do Instituto de Geociências e Alex – professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo2.

Ao transmitir-nos suas vivências através de suas percepções, os sujeitos entrevistados nos permitiram delinear processos mais amplos e elucidar algumas questões que se mostraram recorrentes nas falas, tais como as estratégias desenvolvidas para driblar as dificuldades encontradas no processo de escolarização e a sub-representação de alunos negros e, principalmente, de professores também negros na UFMG.

Assim, nesse artigo, privilegiaremos os pontos comuns e divergentes dentre essas trajetórias, assim como a maneira com que esses docentes lidam, se

2 Os nomes dos docentes são fictícios.

62 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

expressam e reagem diante da complexa trama das relações raciais na sociedade, e mais especificamente, na universidade.

Trajetórias de ascensão

De alguma maneira esses sujeitos conseguiram, mais do que ascender ao ensino superior, construir trajetórias de ascensão social dentro da universidade, chegando à docência em uma IFES. Nas palavras de Teixeira (2003, p. 186),

(...) fazer um estudo de suas trajetórias até chegar à universidade pode ajudar a explicar como e quando a realização de um curso superior passa a fazer parte de seus projetos com vistas a uma possível ascensão social via educação e por que estes são bem-sucedidos onde tantos fracassam.

Ao refletir sobre as trajetórias de vida enquanto um instrumento de análise em trabalhos acadêmicos a autora, citando Bourdieu (1987, p. 69), afirma que o pesquisador deve “construir a noção de trajetória como uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço, ele mesmo em devenir e submetido a incessantes transformações”. Nessa perspectiva, não podemos entender uma trajetória sem reconstituir os estados sucessivos inerentes ao processo.

Apesar de todos os possíveis obstáculos e dificuldades a ascensão social nas trajetórias analisadas, entender esse processo pode sinalizar de que forma esses projetos de vida colocam-se como uma possibilidade para esses sujeitos.

As narrativas dos depoentes, sobretudo quando abordam aspectos do seu desempenho escolar, contrariam as expectativas preconceituosas que colocam o negro ou o mestiço como incapazes. Lançar luz sobre esses depoimentos possibilita promover a contestação de pressupostos racistas sobre os negros e os mestiços.

Eu sempre gostei de estudar, era um diferencial, não era aquele aluno caxias, mas gostava de estudar, prestava atenção na sala de aula, fazia para-casa e brincava. E os meus irmãos nunca gostaram de estudar não, eles desistiram na quinta, na oitava (Carlos).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 63

Eu sempre fui bom aluno. Sempre fui bom aluno e no primário era o melhor aluno do grupo. No ginásio sempre fui bom aluno. (...) Então sempre estudei muito, sempre morava na biblioteca, sempre tive um pouco esse perfil mesmo. (Alex)

Os relatos sobre o desempenho escolar nos permitem observar que esses sujeitos sempre se destacaram na escola. Nesse sentido, corroborando estudos sobre a temática (TEIXEIRA, 2003; SANTOS, 2007), o bom desempenho escolar obtido no decorrer de suas trajetórias talvez seja a principal explicação desses professores para a longevidade em suas trajetórias escolares.

Tornar visível o sucesso e a ascensão social em uma sociedade, que, discrimina com base na raça, é uma estratégia de encorajamento e estímulo para a população negra. No entanto, como nos alerta Teixeira (2000, p. 48), é preciso tomar o cuidado de analisar os dados,

(...) sem reproduzir o senso comum, que parece ver o negro que ascende via educação ou como exceção que acaba por confirmar a regra (a universidade não é mesmo lugar para negros e pobres), ou como alguém que deu certo ou chegou lá porque é alguém mais inteligente ou porque esforçou-se mais do que a maioria efetivamente o faz.

Assim, no relato desses professores, mais do que particularismos ou considerações isoladas buscamos compreender as relações operantes entre esses sujeitos e as coletividades das quais participam, levando em conta que essas últimas são internamente diferenciadas e hierarquizadas.

Destacarem-se como aluno fez com que, para esses depoentes, a escola tivesse um papel importante em suas trajetórias. Desta maneira as experiências relacionadas à escola permeiam algumas falas.

Antigamente tinha a turma dos melhores, eu lembro que da sexta pra sétima série foi o ano que eu fiz a cirurgia, que eu tirei o nódulo do meu pescoço, então foi um ano que eu fui muito ausente da escola. A partir de agosto pra dezembro, eu ia fazia a prova, estudava sozinho, ficava no hospital, ia lá fazia... E eu lembro que o meu rendimento caiu, mas mesmo

64 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

assim eu fui aprovado e minha mãe, por algum esquecimento, não fez a minha matrícula quando deveria ter sido feita. Ela efetuou a minha matricula depois, com isso eu fui parar em uma turma não tão boa quanto a minha, uma turma de alunos... como eu diria para não ser preconceituoso, alunos com dificuldade de aprendizagem, alunos maiores. Então eu estava na sétima deveria estar com treze anos com alunos de dezesseis, dezessete, dezoito anos. Eu lembro do primeiro dia que eu fui para essa sala eu chorei até, porque eu queria a minha turma. Eu fui na orientadora e falei: “Eu não quero ficar naquela turma não, só tem marmanjo, só tem gente burra. Eu quero a minha turma. Eu quero a minha turma.” Ai ela falou: “Olha, agora a gente não pode te mudar porque a gente tem que esperar, semana que vem a gente te muda. Tem que esperar fechar a matricula, organizar como qualquer escola estadual, semana que vem a gente te muda.” Eu lembro que no recreio eu subia pra minha turma, não dava nem ideia. Mas foi uma semana... Na primeira semana eu fui lá e não conseguiram me mudar porque não sei o quê, não sei o quê. Na terceira semana eu já não quis mais sair da turma. E foi engraçado porque eu consegui manter contato com a minha turma, que era a turma A e com turma Z, e nessa turma eu via essas dificuldades. Nessa turma A, praticamente não tinham negros, numa escola estadual isso no final da década de 70. Engraçado isso, depois eu fui observar, e na outra a grande maioria era, um ou outro não era negro, ou não era pardo, e com dificuldade. Tinha eu e uns outros quatro alunos bons que vinham de outras escolas, que não sabe e manda para aquela sala. Engraçado que eu tenho amigos dessa turma até hoje, que eu considero amigos que estão na minha cidade. E da outra turma eu tenho poucos amigos (Carlos).

Ao dizer de sua relação com a escola o professor Carlos indica uma hierarquia de segregação que essa instituição utilizava para separar os “aptos” dos “inaptos”. Nas primeiras classes estavam os alunos que não apresentavam nenhuma reprovação escolar e que eram tidos como “os melhores alunos”. Interessante a

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 65

observação de que, entre os alunos dessa turma “A” praticamente não havia negros. No lado oposto, na percepção do depoente, os negros eram maioria.

Aprender a ser aluno é, na verdade, aprender desde cedo a ser classificado. É internalizar, ao longo do percurso escolar, que cada um pertence a uma categoria, a uma turma, a um grupo racial (ARROYO, 2004).

O depoimento revela um processo de exclusão e segregação racial realizado pela escola. Um processo que está presente na estrutura da escola e nos padrões raciais que a mesma introjeta e reproduz.

O sistema escolar se rege por essa lógica do direito individual à educação, cada aluno é um aluno em seus percursos individuais, com ou sem problemas individuais de aprendizagem, aprovado ou reprovado e retido. As lógicas que regem o trato dos alunos no cotidiano escolar são lógicas individualistas de sucesso, mérito, fracasso (ARROYO, 2007, p. 123).

Esse perfil hierárquico, seletivo e “racializado” do sistema escolar aponta para uma integração seletiva que inclui excluindo os diferentes. É dessa maneira que o racismo estrutural de nossa sociedade tem encontrado eco nas estruturas seletivas do sistema escolar.

Em outro momento da entrevista, relembrando a relação com a escola, esse mesmo depoente analisa a trajetória de sua irmã.

E tenho uma irmã que é muito, muito especial o caso dela, eu falo que a escola... Hoje, anos depois eu pude ver que a escola a expulsou. Ela sempre foi muito boa em todas disciplinas, com exceção de matemática, escrevia super bem, até hoje escreve bem com poucos erros. Mas não conseguia passar em matemática, então ela acabou desistindo. (...) Ela tinha muita dificuldade. E tinha uma coisa engraçada, eu sempre fui bom em matemática e não tinha paciência de ensinar pra ela. “Você é burra demais, você é não sei o quê, porque que você não aprende?” Quer dizer, eu estava reproduzindo a mesma coisa, inconscientemente, que a escola estava fazendo com ela. Hoje eu tenho essa consciência. E eu não conseguia explicar para ela e ela não conseguia entender, então ela ia muito bem em

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todas as outras matérias, mas em matemática ela não conseguia (Carlos).

Diante dessa realidade, impossível não pensar no papel da escola enquanto uma instituição de fundamental importância para a superação das desigualdades e dos preconceitos. Para Arroyo (2007, p. 117), “os percursos e trajetórias acidentadas das crianças e adolescentes vítimas da segregação sócio-étnico-racial têm sido um argumento para ocultar o racismo que ainda se faz presente no sistema escolar.”

Na tarefa de incluir de forma excludente nosso sistema tem se revelado bastante eficiente na medida em que perpetua, para as crianças e adolescentes pobres e negros, uma espécie de sistema paralelo através das turmas especiais, de repetentes e desacelerados (ARROYO, 2007).

Nesse sentido, não podemos compactuar com o silêncio sobre determinadas situações. É preciso intervir para que as desigualdades que marcam nossa sociedade não encontrem eco nas instituições escolares. Na fala de Munanga (1996, p. 224),

(...) o preconceito é um dado universal; ele não é natural, é cultural, e todas as culturas são preconceituosas, incluindo a negra. Mas o problema do Brasil é que ninguém quer assumir abertamente esse preconceito, e quando ele se transforma em racismo enquanto ideologia que tem sua origem inventariada e conhecida, as coisas se complicam demais (...) Estamos num país onde certas coisas graves e importantes se praticam sem discurso, em silêncio, para não chamar atenção e não desencadear um processo de conscientização, ao contrário do que aconteceu nos países de racismo explícito. O silêncio, o implícito, a sutileza, o velado, o paternalismo, são alguns aspectos dessa ideologia.

Diante da natureza construída dessas desigualdades entendemos que a escola, além de reproduzir os preconceitos existentes na sociedade muitas vezes produz, mesmo que de forma silenciosa, através de ações, distinções que deixam marcas nas trajetórias dos sujeitos.

A escola, nesse sentido, participa da dinâmica da produção do sucesso escolar como instância que estabelece os parâmetros de sucesso. A escola assume uma centralidade na vida dos sujeitos na medida em que produz efeitos muitas vezes negativos na construção identitária de quem dela foi excluído (VIANA, 2007).

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Observamos que, em determinados momentos, nem sempre ser bom aluno garante visibilidade no contexto escolar. Algumas situações são emblemáticas quando analisamos o lugar social que, para nossa sociedade, pode ser ocupado por uma criança negra.

Eu sempre gostei de teatro e na escola, só me sobravam os papéis de escravo. Eu ficava p. da vida. Acho que isso é um dos grandes motivos que os negros não se denominam negros. Eu ficava p. da vida, porque que eu tenho eu ser o escravo? (...) A gente nunca fazia... na quadrilha eu nunca era o rei de quadrilha... Nunca era, ficava p. da vida. Vendia igual, vendia mais que os outros, mas a princesa era a mais bonita e o rei, sei lá como se chamava, era o mais bonito entre aspas (Carlos).

Nesse momento percebemos as limitações sociais impostas à criança negra para ocupar determinados papéis seja no teatro, seja em outros eventos escolares. De acordo com Cunha Junior (1987, p. 53), na escola, por vezes, “ocorrem situações em que a criança é impedida de ocupar posição de destaque por ser negro.” A escola, assim, pode ser entendida como um espaço sócio-cultural no qual estão delimitados os papéis dos sujeitos na trama social.

A escola pode ser compreendida como uma relação em contínua construção, de conflitos e negociações em função de circunstâncias determinadas. (DAYRELL, 1996). Nessa perspectiva, os sujeitos não são apenas agentes passivos diante da estrutura. Eles influenciam e são influenciados pelas práticas escolares a partir de suas múltiplas vivências.

Para a maioria dos depoentes a relação com a escola é algo a ser destacado em suas trajetórias. Quase sempre o bom desempenho escolar é motivo de orgulho, conforme pudemos observar em depoimentos anteriores. Esta parece ser uma estratégia utilizada pelos entrevistados para manter sua visibilidade no espaço escolar. Uma estratégia muito desgastante emocionalmente uma vez que qualquer deslize pode desautorizá-los a ocupar esse lugar de destaque. Na fala de um dos depoentes percebemos uma mágoa muito grande com relação a uma experiência de reprovação.

Eu tenho uma mancha no meu currículo. No meu primeiro ano de grupo, eu repeti, mas é muito engraçado, esse meu sobrinho ele tem a mesma idade do que eu. Nós dois temos

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quarenta e um anos, eu lembro que nós entramos na escola juntos, só que o meu sobrinho ele não é negro, ele é branco do cabelo ruim, não sei em qual categoria entraria. E eu lembro que no primeiro ano eu chorava muito, não gostava de ficar na sala, então no final do ano eu já sabia ler bonitinho, eu acompanhava, estava no mesmo nível, mas eu chorava e não queria ficar na sala. Eu lembro que a professora não me aprovou e eu trouxe essa mágoa comigo, porque a gente foi criado juntos e eu queria estar na mesma série. Eu repeti o primeiro ano e ele nunca repetiu, sempre foi bom aluno, eu também sempre fui bom aluno. Então sempre eu ficava atrás, ficava um ano atrás dos meus colegas. Obviamente depois você cria um outro grupo de colegas, mas eu fiquei sempre atrás dos colegas da minha idade. Então, isso me marcou muito, acho que até por isso eu nunca mais reprovei. Era raro, pode contar as vezes que eu tinha notas vermelhas, pouquíssimas. (...) Eu nunca fui aquele C.D.F., mas eu gostava de estudar e tinha um rendimento muito bom. Então essa é uma marca e foi a única (Carlos) (grifo nosso).

A reprovação, na perspectiva de Arroyo (2004, p. 373), “tem repercussões políticas, sociais e raciais seriíssimas. É uma forma de violência étnica, discriminatória e segregadora.”

A retenção é uma prática social que extrapola a escola em suas causas e consequências, indo além das práticas escolares de classificar e segregar, reprovar e reter os alunos. Os custos humanos decorrentes dessa prática, como podemos observar no depoimento acima, são altos. Essas experiências deixam marcas nas trajetórias dos sujeitos, sobretudo em pobres e negros, e mesmo naqueles que conseguem uma ascensão social via escolarização.

Alguns estudos propõem uma redefinição dos significados que a escola historicamente teve para essa parcela da população. Enfrentar a prática de reprovação pode sinalizar uma reeducação de valores, sentimentos e emoções da instituição escolar no sentido de torná-la mais democrática e inclusiva.

Os docentes, os pedagogos, as famílias, os diversos atores sociais e culturais dessa prática da reprovação-retenção tão

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incrustada em nosso sistema escolar e já faz tempo abolida em tantos sistemas escolares de qualidade social e democrática. Não será possível ensinar e aprender com práticas mais igualitárias e democráticas e menos seletivas e segregadoras? (ARROYO, 2004, p. 375)

Diante dessa realidade, o professor Carlos passou a se manter sempre alerta, evitando que a situação de reprovação acontecesse novamente. Parece-nos que em momento algum ele questiona a escola e a forma classificatória por meio da qual ela lida com os alunos e alunas, nem as marcas e “manchas”, como ele mesmo diz, que ela consegue imprimir em trajetórias e identidades. Assim, exposto ao juízo constante dos que estão ao seu redor, a impressão que fica é que, para o negro, é preciso ser “o melhor”, aquele que nunca comete falhas, para garantir sua visibilidade e ser reconhecido e legitimado nesse espaço.

O processo de escolarização: a construção da ideia de fazer um curso superior

Entendendo a educação formal como o principal veículo de ascensão social, como destacou Fernandes (1978), supomos que ela deveria fazer parte dos projetos de vida desses professores ou, pelo menos, ser valorizada enquanto algo a ser conquistado. Nessa medida interessa-nos saber qual seria a postura com relação à escola e o grau de importância dado à escolarização em um possível projeto de ascensão social.

Muitas vezes a família, apesar de não possuir uma condição financeira que possibilitasse oferecer uma educação considerada de boa qualidade, utiliza de todos os arranjos disponíveis para oferecer a melhor condição possível para seus filhos.

Quando a família não proporciona muitas referências facilitadoras para se trilhar com sucesso esses caminhos, os elementos socializadores que vêm de outros grupos podem representar efetivamente uma circunstância favorável. (...) Quando essas oportunidades aparecem, elas são, na maioria das vezes, muito bem aproveitadas (VIANA, 2007, p. 51).

Nesse sentido, um depoimento em especial nos chamou atenção. Ao falar

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sobre a importância da mãe, o entrevistado relata articulações que permitiram, para ele, uma trajetória diferente, vislumbrando a continuidade de seus estudos.

A minha mãe é uma pessoa importante que mostrou o esforço dela. Apesar de não ter essa educação formal, ela fez um esforço grande pra me dar uma formação. O que ela podia, ela me dava um apoio. Ela articulou de tal forma que permitisse eu ter pelo menos uma trajetória mais confortável do que ela teve. Apesar das limitações dela, arrumou, fez um arranjo na vida dela e acabou me permitindo que eu tivesse uma trajetória um pouquinho mais do que ela obteve (Pedro) (Grifo nosso).

Podemos dizer que, às vezes até de forma inconsciente, o projeto de fazer um curso superior é um investimento de família, mesmo que seja apenas de uma parte dela, neste caso, a mãe, que investiu de todas as maneiras possíveis na trajetória escolar de seu filho.

As possibilidades de ascensão social para os negros em uma sociedade marcada pela desigualdade racial são escassas. Nesse contexto, conseguir estabelecer uma rede de apoio e solidariedade de famílias, pessoas e instituições foi de fundamental importância para incentivar e conduzir, muitas vezes facilitando, o percurso desses professores.

E aí fui morar com uma tia, fiquei morando até começar a universidade, só no meio da universidade que eu fui morar com amigos. E morando no bairro Padre Eustáquio, eu fiz a escola técnica toda morando no Padre Eustáquio. E estudava na escola técnica e descia a pé (Alex).

O depoimento acima nos permite observar uma estratégia muito utilizada de rede de solidariedade. A possibilidade de morar com uma tia em Belo Horizonte significou para esse entrevistado um apoio fundamental para desenvolver o projeto de fazer um curso superior.

Segundo Teixeira (2003, p. 218), as redes de solidariedade foram o principal fator que possibilitou mudanças sociais e as responsáveis pelas trajetórias de

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ascensão de seus informantes na pesquisa realizada no Estado do Rio de Janeiro. Assim, “só a ideia de ‘rede’ é capaz de explicar, de forma mais ampla, os mecanismos sociais que conduzem esses indivíduos, desde a gerar até a executar projetos dessa natureza.” Tais redes de apoio ajudam determinados indivíduos a contornar obstáculos, a princípio intransponíveis.

Dessa rede de apoio viria, muitas vezes, a ajuda necessária para abrir o caminho para os projetos mais ambiciosos de ascensão social. A questão do apadrinhamento coloca-se como uma forma de acessar essa rede. Um dos entrevistados fala que sua mãe vislumbrou uma outra trajetória para seu filho a partir do estabelecimento desse tipo de relação.

E eu tive a oportunidade de ter um apoio muito especial dessa família, já que o meu pai particularmente, embora fosse uma pessoa que eu soubesse onde estava e tudo, ele não era muito presente. Então, uma boa parte da atenção, em termos de apoio tanto financeiro, problemas que os jovens têm e tal, principalmente quando você tem essa questão dos pais separados, isso aí tudo, de certa forma foi, um pouco suavizado pela presença dessa família. (...) Quem me dava uma certa cobertura, apoio, pagou cursinho pra mim, pagava professor particular, eram exatamente essas pessoas (Pedro).

Em certa medida essas relações repõem alguns mecanismos característicos da ordem social tradicionalista, da influência da família branca e do paternalismo. Conforme aponta Fernandes (1978, p. 163)

Em virtude de acidentes ligados às condições de nascimento, à dependência econômica da mãe ou da avó (empregadas de famílias importantes), à simpatia nascida de pequenos serviços etc., um menor podia ser incluído na periferia daquelas famílias e ficar exposto, de modo mais ou menos demorado, aos influxos sociais de seu estilo de vida.

Os estilos de vida, os modelos e valores dessa classe social seriam, assim, incorporados graças a uma rede de relações que as empregadas domésticas mantêm com famílias de classe média alta.

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Em outros momentos, para a família pobre, o trabalho, a sobrevivência fala mais alto do que a continuidade dos estudos. As necessidades financeiras vividas pelos pais e mães parecem determinar a forma como estes orientam a trajetória educacional de seus filhos e filhas. Não se trata de negar a importância da escola, mas de relativizá-la diante da demanda mais imediata do trabalho e da possibilidade de sustento que ele acarreta. Proporcionar o básico que a escola pode oferecer, possibilitando ao filho/homem a inserção no mercado de trabalho e a filha/mulher o suficiente até que esta se case e constitua uma família, são também estratégias familiares. Dessa forma, os filhos estariam seguros e integrados em uma rede familiar.

Pensamentos que expressam uma visão instrumental da escola e reproduzem a lógica patriarcal? Talvez. Essa seria a resposta mais fácil. Faz-se necessário compreender as escolhas familiares em contexto, dentro das condições e do momento em que as pessoas vivem. Os valores expressos pela família do depoente são frutos de uma época e dizem respeito a um lugar social, de classe e de raça ocupado pelos sujeitos em uma estrutura de desigualdade. Talvez a manutenção dessa mesma estrutura seja um dos fatores que tem possibilitado até hoje a perpetuação de valores como os descritos em contextos familiares atuais. Nesse processo, fazer um curso superior pode estar fora do alcance da família.

Infância no interior, nunca faltou nada, mas também não tínhamos luxo. Meu pai fazia o esforço para dar pelo menos o ginásio, que era como eles falavam, pros filhos, mas quase ninguém estudou. (...) Tenho outros dois que depois continuaram os estudos, mas a maioria parou na quinta, sexta, sétima e oitava. Não tinha motivação. O meu pai fazia o esforço para que todos fizessem o ginasial, mas é outra formação, outra cabeça. A ideia era trabalhar e mulher não precisava estudar. Minha irmã mais velha, por exemplo, ela fala que gostava muito de estudar, ela tem sessenta seis anos e fez até a terceira série. Ela escreve, é letrada, escreve com erros. Ela fala que ela saiu porque minha mãe a tirou da escola pra ela cuidar dos meus irmãos. Na verdade ela criou todo mundo junto com a minha mãe. Minha mãe com quinze anos, com dezesseis anos já a teve e ela foi criando, criando... Incentivava a estudar sim, mas se tinha dificuldade... Se tinha que ir na escola, minha mãe não

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ia, mandava que um dos meus irmãos fossem. (...) Não tinha incentivo em casa, não tinha essa coisa, você tem que estudar, porque estudar vai te dar um futuro melhor. Futuro era você acabar o ginásio e trabalhar ou a mulher casar e fazer uma família. Então não tinha esse incentivo em casa. (...) Eu sou o único que concluiu o curso superior, porque eu falei que não queria aquela vida para mim, então essa construção vem desde a infância. (...) Eu tinha essa ideia: “Eu não vou trabalhar de três horários, eu não quero isso pra mim, não quero essa vida pra mim.” Eu tinha essa vontade, mas não que ela fosse de alguma maneira colocada por meus pais (Carlos).

Nesses casos, conforme nos relata o depoente, o processo de ascensão social via educação passa a ser um projeto muito individual. Os pais, muitas vezes por questões econômicas e de percepção de possibilidades, não manifestam grande interesse pela trajetória educacional do filho. No entanto, essa trajetória acaba sendo motivo de orgulho pessoal.

As famílias populares participam da construção do sucesso escolar dos filhos de modo diferenciado, ainda que nem sempre visível e voltado explícita e objetivamente para tal fim. (...) Em alguns casos, a mobilização dos filhos em torno de um projeto escolar expressa a interiorização do desejo dos pais de vê-lo ir longe nos estudos. Já em outros casos, é ‘apesar dos pais’ que eles se engajam num movimento de emancipação cultural e social por intermédio da escola (VIANA, 2007, p. 20).

Em alguns casos percebemos que a família, não podendo propiciar o mesmo tipo de trajetória a todos os filhos, acaba adotando estratégias que garantam pelo menos para alguns uma ascensão. Muito frequentemente a estratégia é privilegiar os filhos do sexo masculino, em detrimento das filhas. Como observamos no relato acima, as mulheres poderiam ascender de outra maneira, através de um bom casamento. Será que o fato dessa pesquisa ter encontrado, entre os docentes universitários negros (pretos e pardos), uma maioria de homens tem alguma relação com esse fato? Nota-se que, ao delimitar os entrevistados que se autoclassificaram enquanto tais, o grupo de mulheres foi muito pequeno e, no final, a escolha para

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a análise mais aprofundada das entrevistas recaiu sobre os homens. Esse dado nos remete a relação entre gênero, raça e “masculinidades” e pode ser melhor analisado. No entanto, nos limites dessa pesquisa, tal aprofundamento não é possível, configurando-se como um outro caminho para uma futura investigação.

O ingresso na universidade: um caminho possível

O ingresso na universidade, para alguns entrevistados, “marca a descoberta de uma nova pessoa, um indivíduo novo” (TEIXEIRA, 2003, p. 189). No relato abaixo, o professor afirma que este foi o melhor momento de sua vida, um momento de descobertas que abriu espaço para novas vivências.

Melhor momento da minha vida! A gente era um grupo muito bom e assim, nós ainda nos encontramos. (...) Então foi o melhor o momento da minha vida. É tudo muito novo, porque pensa, pra uma pessoa que veio do interior, vem trabalhar com eletrônica, em uma época completamente diferente. Estudar e também descobrir que não era só estudar. Tinha a cerveja depois da aula, tinha cerveja aqui. A convivência foi muito boa, fazer as disciplinas foi muito bom. Foi o melhor momento da minha vida! (Carlos)

Ao entrarem na universidade, os entrevistados, em sua maioria, deparam-se com a realidade de conciliar o estudo com o trabalho como forma de se sustentar.

Foi essa disputa mesmo entre o trabalho e querer estudar. Porque sabendo que se você não estudar, você não consegue nada. Então cavando muitas possibilidades de construir alguma coisa e a vontade de estudar. (...) Com muita dificuldade para manter, trabalhando... (Alex)

Não era fácil. Eu ralei muito. (...) Tanto é que eu demorei seis anos pra terminar esse curso. Demoraria quatro anos, eu fiz em seis porque como eu trabalhava, eu não conseguia cumprir todos os créditos, pelo menos não com aproveitamento, então eu demorei seis anos pra terminar esse curso. A minha trajetória

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era só a trajetória de quem ia e assistia às aulas. (Pedro)

Esses relatos nos possibilitam dizer que uma das estratégias para a efetivação desse projeto de ascensão via educação seria a garantia de um emprego que propiciasse o sustento enquanto a formação universitária ocorria.

Muitas vezes é essa experiência anterior no mercado de trabalho, realizada de forma mais precoce que a média da população, que irá subsidiar os estudos e gerar novas expectativas com relação à realização de um curso superior. Teixeira (2003, p. 188) em sua pesquisa sobre negros no ensino superior, afirma que existe uma “urgência/premência do emprego para o próprio sustento, que vai viabilizar, em última instância, a execução do próprio projeto de realização de um curso universitário.”

Logo depois que eu acabei o ensino médio e aí comecei a procurar trabalho, porque minha mãe coitada, ela não trabalhava para ter condição de me dar dinheiro. Então eu tive que me virar. Aí comecei a procurar em banco. (...) Uma forma de eu trabalhar e estudar era consegui trabalho no banco. Porque banco eram só seis horas. E aí eu ralei, ralei porque não era fácil. Não era fácil mesmo. Como eu trabalhava não tinha uma vida acadêmica. Eu ia fazia as disciplinas, enfrentava um pouco de dificuldade... (Pedro)

Trabalhei desde pequeno como engraxate de rua. Trabalhava como engraxate de rua com oito anos de idade. E eu considero assim, desde os oito anos eu assim “me sustento”. Porque, fora a sobrevivência em casa, todo o dinheiro extra, era por minha conta. Então para eu estudar em Belo Horizonte... Então, aonde você vai arrumar dinheiro? É por sua conta, arrume. Essa independência sempre teve que ser conseguida. Trabalhei a partir dos quatorze anos, trabalhei em uma indústria siderúrgica na cidade, aí com carteira assinada, ganhando meio salário mínimo. Então é essa história marcada assim pelo trabalho que do ponto de vista da criança, lá é uma coisa super normal. (...) Durante o curso, sempre me mantendo. Com serviços ligados a arquitetura, desenho, depois peguei bolsas

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de iniciação cientifica, não eram tão boas nem tão numerosas como hoje, mas eu consegui durante talvez um ano, dois anos ser monitor (Alex).

E trabalhando com eletrônica, eu trabalhei uns quatro anos. Não gostava, mas fui trabalhando. (...) Comecei a fazer e curso e falei: “Agora eu não paro”. E fui largando a eletrônica. Durante o curso ainda trabalhei um pouco para me manter. E eu trabalhava, tinha um salário que não era maravilhoso. Então não tinha tempo, trabalhava de oito as seis, passava no bandejão, jantava e vinha pra cá. Como eu trabalhava o dia inteiro, eu não sabia da vida acadêmica. (Carlos)

Os depoimentos abaixo reafirmam que os professores se consideram pessoas de referência dentro de sua própria família chegando, em alguns momentos, a serem tomados como exemplos a serem seguidos por qualquer um que se dispusesse a lutar para conquistar uma vida melhor.

Então, hoje em dia, me dá muito orgulho. Talvez mais pra frente eu consiga ser uma referência negra pra outros jovens, que como eu, estão batalhando. Uma vez que estudei e consegui chegar nesse lugar de professor universitário (Pedro).

Eu sou o único que concluiu o curso superior. As minhas irmãs têm muito orgulho de mim, porque eu consegui estudar, coisa que elas não conseguiram. (...) Quando eu encontro um aluno que tem o caso parecido com o meu, tudo que eu puder fazer pra levantar a auto-estima, pra falar você pode, você consegue e você vai. Porque pode, consegue e vai, basta querer e ter força de vontade. Eu acredito muito nisso, ter força de vontade e perseverança (Carlos).

Tratam-se, na maior parte dos casos, de processos de ascensão social iniciados por eles mesmos, a partir de sua geração. O professor Carlos, ao destacar a trajetória de um aluno, reafirma sua própria trajetória, identificando semelhanças entre as mesmas.

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Eu tenho um aluno negro que está fazendo o mestrado agora. Eu trabalhei com ele no segundo grau, ele queria fazer Medicina e fez Medicina. Eu lembro que ele era um aluno muito bom, a escola que eu trabalhava não era ruim não, mas era pública. E eu lembro que a gente levava material extra pra ele, eu dava aula e dava como se desse um suporte extra classe. Ele formou, tentou o vestibular, passou na primeira etapa, levou pau na segunda pra Medicina. Ficou o ano todo estudando, passou na primeira etapa e levou pau em Medicina. Ficou o ano todo estudando e passou. Quer dizer, ele concluiu o curso, dois anos depois ele entrou no curso que ele quis. E não fez cursinho, porque ele não tinha dinheiro pra pagar cursinho. De quem que é o mérito? Pra mim, o mérito é dele. Obviamente dele e de todos que o ajudaram. E hoje ele já é médico, trabalha, tem uma vida super legal. Mudou a vida da família dele também. A história da família dele era muito parecida com a da minha (Carlos).

Nesses discursos, que enfatizam o esforço pessoal devemos tomar um certo cuidado com posturas individualistas que limitam a análise dos dados a uma perspectiva microsocial. As questões mais gerais que delineiam o contexto, a macroestrutura no qual esses professores estão inseridos também deve ser considerada.

Nesse sentido, os docentes, de uma maneira geral, têm uma percepção bastante clara de que desenvolveram uma trajetória ascendente, pouco comum ao seu meio de origem. A referência à família presente nos depoimentos é mais um dado que confirma o fato de que eles não atribuem a si mesmos uma espécie de genialidade promotora do seu deslocamento social e acadêmico. A família aparece de várias maneiras: investindo nos estudos básicos visando a entrada no mercado de trabalho, recebendo sobrinhos oriundos do interior, priorizando um dos filhos para dar continuidade aos estudos, entre outras formas de apoio. Portanto, não há como dizer que são posturas individualistas embora, em dado momento, eles tenham construído carreiras individuais.

No entendimento de Fernandes (1978), essas trajetórias podem ser entendidas como um mecanismo de “infiltração social”, uma válvula de mobilidade social vertical através da qual o “mulato de talento” ou o “negro notável” seriam

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premiados. O perigo, segundo o autor, é transformar esse tipo de trajetória de ascensão social em “exceções que confirmam a regra”, reforçando um discurso que coloca a responsabilidade de “sucesso” ou “fracasso” unicamente nos sujeitos, desconsiderando as condições macrosociais que cerceiam suas possibilidades.

No entanto, mais que premiação “permitida” pela sociedade de classes ao integrar o negro, como apontado pelo autor, poderíamos dizer que são trajetórias duras, de luta e conquista individual e coletiva.

O lugar de professor universitário

O espaço da universidade, no Brasil, é majoritariamente composto por brancos. Conforme observamos a partir da análise de pesquisas quantitativas (BARCELOS, 1992; HENRIQUES, 2001; TEIXEIRA, 2003), o percentual de pretos e pardos ocupando espaços universitários é ainda muito pequeno. Para alguns entrevistados a percepção de estar em lugares onde a maioria é branca vem sendo construída ao longo dessa trajetória.

Então, eu me lembro que quanto mais eu caminhava em relação às séries mais avançadas, diminuía o número de amiguinhos negros. Eu me lembro no primário, na sala, você tem um monte de amiguinhos negros e você vai seguindo. Na faculdade, era o mesmo esquema. Quando você vai ficando mais velho, eu noto o seguinte, vai diminuindo a quantidade de jovens negros. Tantos de meninos quanto de meninas negras. Você vai ter um ou outro colega (Pedro).

Ao desenvolverem trajetórias ascendentes, via escolarização, esses professores passam a ocupar um lugar diferenciado na sociedade. No entanto, em alguns momentos, parece que o “ser negro”, quer se autoclassifique como preto ou pardo, ocupando o lugar da docência no ensino superior, sobretudo público, não coincide com a representação social do que é ser um professor universitário.

Eu sinto que me olham atravessado. (...) De pessoas se espantarem: “Você é o professor?” Isso direto. No primeiro dia de aula eu estou lá, aí chegam: “Você é o professor?” “É, sou o professor.” Quer dizer, esse cara não tem o perfil do que

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eu espero de um professor (Carlos).

Ser professor universitário significa, nesse contexto, ascender socialmente. Entretanto não significa ficar livre de discriminações raciais uma vez que, no Brasil, esta se dá por características fenotípicas, tais como cor da pele, tipo de cabelo e traços corporais. Essas características não desaparecem apenas porque o sujeito galgou uma posição de destaque na sociedade.

Além disso, essa é uma profissão que exige muita capacidade de argumentação, reflexão teórica e comunicação. No contexto do racismo, porém, estes são atributos próprios do branco. Tal pensamento, expresso nas teorias raciais dos finais do século XIX e início do século XX, embora superado pela ciência, ainda impera no imaginário social e circula no meio acadêmico. Na forma perversa como o racismo opera, o negro que se inseriu academicamente acaba tendo que viver em constante alerta, respondendo a todo o tempo indagações sobre o seu direito e capacidade de ocupar o lugar do conhecimento. Questionamentos que nem sempre são feitos verbalmente, mas através de gestos, atitudes e sentimentos. O estranhamento parece sempre estar lá, presente, latente (SANTOS, 2007).

Aqui cabe comentar a realidade de sub-representação da população negra no ensino superior como docentes. Para um dos professores entrevistados, a UFMG é, na verdade, “um reflexo da sociedade”. A pouca presença de negros nesses espaços de poder dentro da universidade reflete as desigualdades encontradas na sociedade. A inexistência ou o pequeno número de outros indivíduos do mesmo grupo racial ocupando esses quadros gera uma inquietação nesses sujeitos.

Pensar... aqui na Faculdade de Letras, nós somos mais de 120 professores. Negros: eu e mais dois professores (...) Isso também quer dizer muita coisa, numa faculdade com mais de 120 professores, três são negros. Isso quer dizer muita coisa. Qual negro que consegue essa ascendência? A que custo ele consegue ascender socialmente? (Carlos)

A Escola sempre foi marcada por essa coisa, muitos brancos... Quando tinha um negro, a gente sabia. Até hoje é um pouco assim. (...) Estou tentando passar aqui porque não é possível que não tenha nenhum professor negro na Escola de Arquitetura, em nenhum departamento... (Alex)

A gente tem um contingente da população gigantesco e os núcleos de poder, os nichos de poder, eles são realmente muito seletivos. Quer ver? Conta quantos professores negros, quantos alunos negros tem. Não é porque as pessoas são imbecis, são incompetentes... É porque realmente não há condições que possibilitem isso. Você encontra um ou outro. Eu por exemplo, tive uma sorte, uma situação assim (...). Teve uma série de arranjos que permitiu. Talvez se eu não tivesse minha mãe, morasse com meu pai, talvez a minha trajetória ia ser diferente. (Pedro)

Parece que a maioria dos professores entrevistados desenvolve formas de resistir e continuar ocupando esse lugar que, na representação social produzida no contexto do racismo, não seria um lugar para negros. Um deles, ao ser perguntado se já havia sofrido preconceito na universidade, declara que nunca sentiu “nada de forma explícita”.

Sentir “nada de forma explícita” significa ao mesmo tempo dizer que sentiu alguma coisa.

Não sei se seria discriminação racial, mas eu não dou muita importância, então. Eu acho que talvez de forma inconsciente. Mas diretamente, não que eu me lembre. Mas de ser olhado de cima em baixo por causa da roupa, várias vezes. Mas normal, não ligo. (...) Eu não penso nisso quando eu estou trabalhando, eu não penso: “Olha, eu sou o três, estou no meio de mais dois colegas negros trabalhando aqui.” Não penso nisso. Mas eu não faço disso nem vítima, nem bandeira, tô trabalhando. (Carlos)

Outro professor, ao relatar o caso de um aluno negro na escola de Arquitetura, ressalta o fato de que as estratégias de sobrevivência dos negros em espaços onde a maioria é branca, se relacionam a formas interessantes e diversificadas de enfrentar as discriminações.

A gente teve um aluno negro na Escola, há pouco tempo

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agora, que fez até mestrado também... Ele é muito engraçado, muito inserido na turma, ficava brincando com o povo, assim: “Ah, não me dá nota baixa não, senão eu vou te processar, porque essa nota foi só preconceito porque eu sou preto.” Brincava muito com isso, mas eu observava, tinha muita piada desconfortável. Ele até tirava de letra essas piadas, brincava com as piadas, fazia piadas com as piadas, mas na verdade, eu não achava uma situação desconfortável para ele. A escola tem uma resistência. Mas ele pelo menos, a opção dele foi partir para o ataque, um ataque irônico, brincalhão (Alex).

Na verdade, esses sujeitos estrategicamente se autocondicionaram a lidar com os obstáculos, de forma a sofrer menos do ponto de vista emocional e subjetivo. Para aqueles que conseguem romper essas barreiras parece que toda discriminação que já sofreram, sofrem ou possam a vir sofrer é encarada como um desafio a ser enfrentado.

O contexto da UFMG e as ações afirmativas

Ao analisarmos essas trajetórias não podemos desconsiderar o contexto no qual esses docentes constroem suas identidades enquanto sujeitos negros e professores universitários.

O debate sobre a democratização do acesso à universidade pública brasileira é um tema recente na UFMG. Ao longo dos oitenta anos de existência, esta universidade manteve-se fiel a um ideário de modernização da sociedade e conciliou seu processo de consolidação com uma ausência de preocupações com relação à incorporação dos grupos sociais para os quais ela não foi inicialmente planejada.

Em contrapartida, vivenciamos na sociedade brasileira um movimento crescente que amplia a ideia de democracia e de igualdade para os diferentes segmentos. Nesse contexto a ação dos movimentos sociais tem desencadeado mudanças significativas no que diz respeito ao acesso a direitos de grupos estigmatizados.

Diante dessa realidade, a questão da democratização tornou-se um tema frequente nos debates internos dessa instituição e tem desafiado gestores e a comunidade acadêmica a construir respostas que sinalizem uma ampliação do acesso à universidade para segmentos que até então não ascendiam ao ensino superior, a

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saber, estudantes oriundos das camadas populares e negros. (FONSECA, 2007)A realização de um Censo Socioeconômico dos Alunos de Graduação

da UFMG, que, entre outras coisas, evidencia o perfil dos estudantes que ingressaram nessa universidade entre os anos de 2003 e 2005 no que diz respeito ao seu pertencimento étnico-racial, parece sinalizar um reconhecimento quanto à necessidade de discussão sobre a democratização da universidade pública. Segundo esses dados os que se declararam brancos são 70,3%. Muito acima dos 28% que se declararam pretos e pardos.

A construção do censo socioeconômico dos estudantes reflete a necessidade que tem a instituição de conhecer e monitorar o perfil do seu alunado. A produção de diagnósticos desta natureza tem ocorrido com frequência e eles vêm reafirmando o padrão de desigualdade entre os estudantes e a necessidade de iniciativas que tornem o acesso a UFMG mais democrático (FONSECA, 2007, p. 5).

Em 2003, a UFMG organizou o seminário “Ampliação do acesso à universidade pública: uma urgência democrática”, dando visibilidade ao tema da democratização do ensino superior. A proposta apresentada pela instituição como estratégia de inclusão social foi, naquele momento, a democratização através da expansão de vagas nos cursos noturnos.

A partir da análise dos dados do Censo Socioeconômico uma comissão, designada pela Reitoria para estudar a questão da democratização do acesso, constatou que a partir do aumento de vagas nos cursos noturnos haveria um aumento de alunos originários de escolas públicas e, através destes, aumentaria também o contingente de negros. As análises revelaram ainda que os egressos de escolas públicas e negros têm opção preferencial pelo ensino noturno.

Como uma alternativa à política afirmativa de cotas sociais ou raciais, os estudos realizados por essa comissão apontam que a inclusão, via cursos noturnos, aumentaria o número de estudantes oriundos de escolas públicas (e negros) sem ofender o princípio do mérito acadêmico, uma vez que todos estariam submetidos ao mesmo concurso vestibular.

A proposta é embasada em alguns estudos que afirmam que não existem prejuízos na qualidade de ensino ofertado no curso noturno.

Apesar da posição oficial assumida por esta universidade, circulavam, no

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interior da mesma, outras interpretações sobre o acesso de estudantes negros à graduação. Gomes e Martins (2004), ao analisarem a presença de alunos negros na UFMG, argumentavam que a ampliação de vagas nos cursos noturnos é um mecanismo insuficiente diante do quadro de desigualdade racial no ensino superior e, no caso da UFMG, acaba reduzindo o debate do direito da população negra ao ensino superior para o campo das políticas de inclusão. Apontavam, ainda, que tal solução também não seria suficiente em relação aos cursos mais disputados ou cujo funcionamento só é possível durante o dia. As autoras acabavam por afirmar que, diante de tal quadro, fazia-se necessária a adoção de políticas de ações afirmativas.

Nessa mesma perspectiva um professor entrevistado, ao ser questionado sobre as vivências entre alunos do diurno e do noturno, afirma que existem diferenças significativas entre os turnos.

É diferente sim. Eu acho o aluno que trabalha oito horas não consegue vivenciar. Não é a mesma coisa de jeito nenhum, de jeito nenhum. Deixa eu melhorar, depende muito do aluno. Em princípio não, pra não ficar uma coisa taxativa. Eu vejo que é muito difícil (Carlos).

Além das vivências distintas nos espaços da universidade Fonseca (2007), ao realizar entrevistas com alunas da UFMG, aponta outras questões que também se diferenciam entre os cursos diurno e noturno na universidade.

Segundo elas, há um funcionamento precário da estrutura do campus no turno da noite (bibliotecas, órgãos burocráticos, praça de serviços, estrutura de transportes, eventos culturais) e também uma diferença em relação às atividades acadêmicas (grupos de pesquisa, seminários, palestras, defesa de teses e dissertações) que ocorrem em geral no diurno (FONSECA, 2007, p.7).

A partir do seminário em que a proposta de vagas noturnas foi apresentada, a ampliação de vagas nos cursos noturnos passou a ser difundida em meio à comunidade acadêmica como uma alternativa possível para a democratização do acesso à universidade na UFMG. Para Fonseca (2007, p. 9), a universidade, ao assumir como proposta de inclusão a ampliação de vagas nos cursos noturnos

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“procurou satisfazer as exigências de democracia sem, contudo, incorporar plenamente a ideia de igualdade.”

A medida de expansão de vagas no período noturno foi aprovada pelo Conselho Universitário como política prioritária para a inclusão social na UFMG (PEIXOTO e ARANHA, 2008).

Demonstrando uma postura otimista, um professor entrevistado acredita que a implementação de políticas de ação afirmativa que possam reverter o quadro de desigualdades na UFMG é só uma questão de tempo.

A UFMG tem essa postura. Eles são extremamente contrários. Mas é uma coisa que a gente tem que dar um pouquinho de tempo. (...) Eu não tenho dúvida que vai adotar não. Politicamente eu vejo um coro, um esforço coletivo de grandes figuras do governo atual no sentido de implementar essas políticas. E o governo quando tem vontade política, há elementos, há mecanismos que favorecem esse tipo de aprovação. Alguns mostram dificuldade, resistência, mas eu não tenho dúvida que isso vai acontecer não. Às vezes não tem a mesma velocidade que uns desejam, mas eu não tenho dúvida que vai acontecer não (Pedro).

No início de 2006, o reitor, Prof. Ronaldo Tadeu Pena, apresentou a ideia de cotas sociais quando participou da posse da diretoria da Faculdade de Medicina. Esse fato sinalizou uma possível abertura para a discussão das chamadas cotas sociais, mas não com relação à questão racial.

O Programa Ações Afirmativas na UFMG destaca-se como uma das principais expressões da discussão sobre a questão racial na UFMG. Foi criado no ano de 2002 e tem como proposta atuar com estudantes negros prioritariamente pobres que, independente de qualquer iniciativa institucional, conseguiram ingressar na universidade.

As ações do Programa podem ser entendidas como experiências de permanência de alunos negros na UFMG. No entanto, essa é uma iniciativa de um coletivo de professores negros e brancos da Faculdade de Educação (FAE), da Escola de Ciência da Informação (ECI) e da Escola de Ensino Fundamental do Centro Pedagógico da UFMG (CP). Dessa maneira, não foi ainda incorporada como uma política de permanência da UFMG.

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O nosso desejo maior é que o Ações Afirmativas na UFMG deixe de ser um programa específico de extensão e seja incorporado pela UFMG enquanto um programa institucional, vinculado á reitoria, com recursos para bolsas, abertura de editais, tornando-se, de fato, uma proposta de permanência da UFMG e não somente na UFMG, como tem sido até o momento (GOMES e MARTINS, 2004, p. 9).

Corroborando a postura institucional da UFMG em desconsiderar o quesito raça nas propostas para a democratização do acesso, um professor afirmou que em uma reunião da Comissão Permanente para o Vestibular os presentes decidiram não discutir a temática.

Eu participo da COPEVE, eu fui a um Congresso de Performance o ano passado, teve uma reunião que ia se discutir as formas de ampliação do acesso. Aí depois quando eu voltei pra outra, já estava se discutindo o que vai ser implementado, que é por escola pública, o aluno que estudou do básico até o segundo grau, vai ter um bônus de 20%. Quer dizer, não se aceitou. A UFMG não aceitou a cota por cor/raça. O que se aceitou e foi uma discussão que não houve a discussão, eu sei porque eu faço parte, chegou: “Não vamos discutir a questão de cor.” Foi muito engraçado! E não foi discutido, os professores que estavam presentes não quiseram discutir a questão da cor. (...) A maioria que estava falou: “Nós não queremos discutir cotas pra negros.” Eu não estava no dia. Eu fiquei revoltado. (...) Mas eu acho que é algo que ainda vai gerar muita polêmica. E a UFMG tenta se resguardar das polêmicas, o que eu acho um absurdo (Carlos).

Em novembro de 2006, a UFMG organizou seu segundo seminário sobre a democratização do ensino superior. O seminário “Universidade Pública e Inclusão Social – Experiência e Imaginação” reitera o compromisso assumido pelo atual reitorado com as discussões acerca da temática da inclusão na UFMG. A realização desse seminário foi importante para que a comunidade acadêmica reunisse elementos para subsidiar as discussões travadas no âmbito do Conselho

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Universitário sobre a democratização do acesso na UFMG. Em maio de 2008, o Conselho Universitário da UFMG aprovou a proposta

de inclusão social que consiste na concessão de um bônus adicional de 10% para candidatos ao vestibular que comprovarem ter cursado os últimos sete anos em escola pública, e mais 5% para os candidatos que, além desse requisito, se autodeclararem pretos ou pardos.

A inclusão do quesito raça/cor como adicional ao bônus é fruto da articulação de um grupo de docentes negros e brancos da UFMG, oriundos de diferentes cursos e áreas do conhecimento (Educação, Letras, Demografia, Ciências Biológicas, Música, Antropologia, Ciência Política, Psicologia, Comunicação Social) que apresentaram uma demanda específica de ação afirmativa para negros na UFMG ao reitor e ao Conselho Universitário. Esse grupo realizou reuniões com o Movimento Negro e com o reitorado e apresentou ao Conselho Universitário uma proposição de incluir a questão racial na proposta de bônus adicional já defendida pelo Conselho de Pesquisa e Extensão (CEPE), que foi aprovada.

A fala abaixo de um dos entrevistados reitera a necessidade da articulação e mobilização de grupos dentro da instituição para que as mudanças aconteçam.

Teve um evento na África do Sul, ele fez a assinatura que o Brasil era contrário à discriminação e tudo mais. Isso aí foi no Governo Fernando Henrique. O Lula, ele aprofundou mais, então eu acredito que é uma perspectiva que a gente deve pensar seriamente. E eu acho, eu posso estar equivocado, mas acho que é irreversível. É irreversível esse quadro. É evidente na sociedade esse tipo de situação. (...) Então eu acho que a gente deve pensar que existe realmente uma situação que vai acontecer que vai mudar e que isso depende de uma mobilização de grupos favoráveis para tentar convencer as pessoas e tal, e que realmente tem o poder de decisão, não só dentro da universidade como também fora porque você sabe que agem um conjunto de elementos e forças para convencer e realmente fazer valer essas mudanças (Pedro).

Em decorrência desse aditivo racial e atendendo a um encaminhamento do Conselho Universitário, em setembro de 2008, a reitoria da UFMG instituiu a Comissão de Estudo e Acompanhamento das Medidas de Inclusão Social no Corpo

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Discente da Universidade para realizar um censo étnico-racial de professores, alunos (graduação e pós) e técnicos administrativos da UFMG e implementar uma proposta de permanência (acompanhamento) dos alunos que entrarão pelo sistema de bônus. No momento, o trabalho da comissão encontra-se em andamento.

Considerações Finais

A pesquisa revelou trajetórias e percursos de sujeitos de origem popular, marcados pela luta pela sobrevivência. Alguns viveram estratégias familiares mais organizadas a fim de garantir o sucesso dos filhos e outros não. No entanto, todos tiveram que conciliar a vivência do trabalho e do estudo. Embora docentes da UFMG vivenciem situações veladas de estranhamento do ponto de vista racial, a credencial de “ser professor universitário” parece lhes garantir uma certa imunidade diante de situações declaradas de preconceito no meio acadêmico.

Os resultados também nos fazem pensar na necessidade de realização do censo étnico-racial na UFMG enquanto fonte de dados mais precisos sobre o perfil étnico-racial dessa universidade, tanto de alunos, professores e funcionários. Isso permitirá também analisar em que lugares esses sujeitos se encontram, as áreas das quais participam e a quantidade de negros e brancos no quadro de trabalhadores dessa universidade. Poderá também contribuir para a realização de várias pesquisas e, inclusive, contribuir com a reitoria na elaboração de uma efetiva política de inclusão social apoiada em dados empíricos mais gerais e não somente do alunado, como tem sido até o momento. Além disso, poderá disponibilizar dados em nível nacional de forma transparente e pública como deve ser a orientação das pesquisas que se debruçam sobre temáticas de relevância social produzidas nas universidades públicas e realizadas com recursos públicos. Assim, poderemos ter maior conhecimento sobre a configuração étnico-racial dessa universidade e indagar até que ponto ela se configura como uma instituição pública que inclui ou não a diversidade étnico-racial. Quem sabe assim, no futuro, pesquisas que “tematizem” professores, técnicos administrativos e alunos negros e brancos desta universidade encontrem dados mais consistentes, acessíveis e disponíveis que lhes possibilitem uma maior rapidez na pesquisa de campo, no mapeamento, no contato com esses sujeitos e na realização de reflexões e análises sobre o perfil étnico-racial dessa instituição, além de viabilizar discussões sobre a pertinência da implementação de ações afirmativas nessa universidade.

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A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS A PARTIR DO PATRIMÔNIO CULTURAL NEGRO: educação patrimonial da cultura afro-brasileira e os(as) intelectuais negros (as)

Ana Paula dos Santos Gomes1

Introdução

No mesmo sentido da educação libertadora, a educação das relações étnico-raciais visa à superação da educação bancária e consequentemente de qualquer educação que se pretenda dominadora, no sentido das ponderações de Freire (1987), Fiori (1986), Dussel, (s.d.). Neste contexto, Ribeiro (1997) diz que trabalhar com o tema das relações raciais não significa diminuir a questão principal que é o direito humano, mas que o campo das relações raciais é um dos muitos espaços de discriminação, preconceito e dominação, e colocar-se nesse espaço particular é se comprometer com uma luta maior em favor dos direitos humanos.

Superar uma educação dominadora não é simples, principalmente quando pensamos a história do povo negro brasileiro, marcada pela opressão e exclusão. A educação dominadora vem se processando a mais de quinhentos anos na história desse povo. Esse processo procurou e procura naturalizar a inferioridade dos africanos e seus descendentes. A esse respeito, Ribeiro (1997) explica que, no Brasil, o passado do afro-descendente é associado à escravidão. A este fato somaram-se, de acordo com Ribeiro (1997), representações negativas do africano e seus descendentes no imaginário coletivo e mais a ação conjunta e articulada da educação formal e informal da mídia, da literatura, entre outros agentes de criação e manutenção de estereótipos negativos.

Ao abordarmos o campo da educação formal como um dos espaços de criação e manutenção de estereótipos negativos dos africanos e seus descendentes, é oportuno lembrar a luta do Movimento Negro que dentre suas reivindicações e lutas, priorizava transformar a realidade de discriminação racial dentro das escolas. Silva (1997) diz que entidades do Movimento Negro, preocupadas com a problemática racial no sistema educacional brasileiro que escolheu uma representação cultural semelhante à européia, reproduzindo os valores e superioridade dos europeus,

1 Orientadora - Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva - UFSCar

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reagiram ao impacto que esse fato causou e causa para a construção da identidade dos estudantes negros, indígenas e mestiços que são impossibilitados de verem a positividade da sua origem, cultura e história apresentada nas salas de aula, vendo-a de forma negativa, carregada de estereótipo.

Conforme Silva (1997), juntamente com as denúncias de desigualdades raciais na educação, surgiram iniciativas do Movimento Negro e de outros segmentos da sociedade, no sentido de desenvolverem projetos educativos que buscavam pôr em prática perspectivas pluriculturais e anti-racistas, no sistema educacional brasileiro. Neste contexto de luta do Movimento Negro, é importante assinalar que uma das vitórias mais recentes e de muita importância não só para a comunidade negra, mas também para toda a população brasileira, foi a aprovação do Parecer CNE/CP/003/2004 do Conselho Nacional de Educação que regulamenta a Lei 10.639/2003, a qual estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, no currículo escolar do ensino fundamental e médio.

O Parecer determina, entre outras coisas, que “a educação das relações étnico-raciais requer aprendizagens entre brancos e negros, troca de conhecimentos, quebra de desconfianças, projeto conjunto para construção de uma sociedade justa, igual, equânime” (p.14). O referido Parecer chama atenção para o fato de que “combater o racismo, trabalhar pelo fim da desigualdade social e racial bem como para promover a reeducação das relações étnico-raciais não são tarefas apenas da escola, mas passam por ela” (p.14). Por isso, destaca que para as instituições de ensino cumprirem a missão de educar, é preciso que “se constituam em espaço democrático de produção e divulgação de conhecimentos e de posturas que visam a uma sociedade justa” (p.14).

O mencionado Parecer especifica também que para obter sucesso, a escola e seus professores devem estar preparados, não podem inventar, é um trabalho que não pode se “restringir às palavras e raciocínios desvinculados da experiência de exclusão e inferiorização vivida pelos negros brasileiros, por isso é necessário mais que palavras, ou seja, é preciso o diálogo” (p.15). O Parecer propõe ainda “o diálogo da escola com os estudiosos das relações étnico-raciais e com grupos do Movimento Negro para que sejam superados equívocos entre o que se sabe e a realidade, para que se promovam de fato concepções e ações que avancem na construção de um projeto comum de combate ao racismo e discriminação” (p.15).

Acontece que a escola não se preocupa em manter diálogo com os(as) negros(as) estudiosos(as) da questão racial e muito menos em combater o racismo e a discriminação, pelo menos não o suficiente. O espaço escolar que deveria dar

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condições para melhorar as relações de respeito e reciprocidade entre crianças negras e não negras, de modo a promover a construção de uma sociedade justa e igual, acaba se tornando, para as crianças negras, principalmente, um espaço que as exclui, isso faz com que com que suas primeiras experiências sociais sejam negativas. Segundo Algarve (2004, p. 36), “sendo a história e raiz cultural do povo negro, esquecidas, omitidas e distorcidas pela escola, professores e sociedade, a identificação dos negros com o grupo originário fica prejudicada, ao mesmo tempo em que atitudes discriminatórias em relação à cultura e às pessoas de origem africana são permitidas aos brancos.” Buscar práticas educativas que permitam aos professores e as crianças conhecerem a cultura negra é uma forma de promover relações de respeito e valorização da diversidade e da diferença dentro desse espaço de educação. Nessa perspectiva, a educação patrimonial traz importante contribuição para fortalecer a interação entre a escola e a comunidade negra, assim como a educação na diversidade e na diferença. Os(as) intelectuais negros(as)2 estudiosos das relações étnico-raciais e os(as) integrantes do Movimento Negro e/ou conhecedores e praticantes da cultura negra, são educadores da cultura negra por isso, estão aptos a dar palestras e/ou cursos para públicos que ainda não conhecem as especificidades da cultura negra. As palestras e/ou cursos podem ser acompanhadas

2 O termo intelectual usado no trabalho busca base nos estudos de Gramsci (1987) sobre intelectuais orgânicos. Partindo do estudo de Gramsci, neste trabalho, entende-se por intelectuais todos que praticam atividade intelectual criadora, que fazem qualquer trabalho com uma finalidade, seja para transformar ou manter uma realidade. O intelectual que procura transformar uma realidade é aquele que coloca a disposição da sociedade seus saberes, que faz intercâmbio com outros saberes de modo a produzir conhecimentos que contribuam para transformar o mundo que vive sua própria realidade e a de seu grupo étnico, muitas vezes realidade de opressão em que vivem. Existem também os intelectuais que buscam manter uma realidade em benefício próprio seja para garantir privilégios seja para conservar domínio sobre outros. Estes intelectuais são entendidos aqui como aqueles que insistem em negar o racismo contra a população negra defendendo o discurso da democracia racial e da miscigenação. Desta forma escondem a perversidade da discriminação racial e favorecem a permanência das desigualdades raciais entre brancos e negros. Neste sentido, busco entender o/a intelectual negro/a, como aquele que se opõe a ideia da inferioridade negra defendida e atestada pela sociedade brasileira. Por isto, é preciso lembrar que a pergunta que aqui se faz é: de que intelectuais estamos falando? Do negro intelectual ou do intelectual “negro”? O negro intelectual pode ser todos/as os/as negros/as que produzem conhecimentos seja como engenheiros/as, médicos/as, poetas, pintores/as, músicos, pesquisadores/as, cozinheiros/as, professores/as, sapateiros/as, borracheiros/as etc, em benefício de si próprio. Porém os/as intelectuais “negros/as” são aqueles/as que produzem conhecimentos não apenas em beneficio de si próprios/as, mas também em benefício da sua comunidade negra. Como diz Santos (2004), a pergunta que se faz é para que e para quem o intelectual produz conhecimento, nesta direção o/a intelectual negro/a produz conhecimentos para fortalecer sua comunidade negra, para melhorar a condição de vida dos/as negros/as discriminados/as.

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da Sala Africanidades3, espaço interativo em que as pessoas têm contato com objetos, músicas, instrumentos e diversas informações sobre o patrimônio cultural negro.

Patrimônio cultural, neste trabalho, refere-se a bens materiais e imateriais que se relacionam à identidade, à ação e à memória dos grupos étnicos que formam a sociedade, ou seja, “encerra a herança de um povo, é o centro de valor e sentidos, de saberes e práticas” (CANCLINI, 1990, apud SILVA, p.5). A Sala Africanidades constitui um patrimônio cultural material da cultura negra, pois abriga em seu espaço, objetos, roupas, musicas, instrumentos musicais, livros, notícias, fotografias, imagens que dizem respeito a cultura negra. Os(as) intelectuais negros(as) são patrimônios imateriais, pois ao proferirem palestras ou darem cursos sobre a cultura negra, partem da sua experiência de negros(as) que buscam se edificarem como pessoas em uma sociedade que discrimina sua cor e sua cultura. Sobre patrimônio imaterial, Gallois (2006) afirma que uma das manifestações do patrimônio cultural imaterial se dá nas tradições e expressões orais. No entender de Londres (2001), quando se fala em patrimônio imaterial, não se esta referindo propriamente a meras abstrações, em contraposição a bens materiais.

Conforme esta autora, todo signo tem dimensão material e simbólica, por isso, a distinção que cabe fazer, no caso de bens culturais, é entre aqueles bens que, uma vez produzidos, passam a apresentar relativo grau de autonomia em relação a seu processo de produção, e aquelas manifestações que precisam ser constantemente atualizadas por meio de mobilizações de suportes físicos – corpo, instrumentos, indumentária, e outros recursos de caráter material – que, conforme Londres (2001) depende da ação de sujeitos capazes de atuar segundo determinados códigos.

Nesta direção, as palestras e/ou cursos dados por intelectuais negros(as) constituem uma manifestação do patrimônio imaterial da cultura negra, pois os (as) intelectuais negros(as) são patrimônios vivos da comunidade negra. Ao dizer

3 A primeira Sala Africanidades foi desenvolvida em 1998 a pedido da Unidade de Atendimento à Criança (UAC) na Universidade Federal de São Carlos e, em 1999, por ocasião do evento da UNESCO – “Paz e Infância”. Ambas as ofertas causaram impacto nos professores, pais e crianças em tudo que viam, ouviam, podiam manusear experimentar tocar instrumentos musicais e dançar. A sala foi considerada pelos avaliadores do evento como um laboratório de Direitos Humanos. Em 2006 a sala Africanidades ganhou um local permanente. Foi inaugurado, em novembro desse mesmo ano, o Centro Municipal de Cultura Afro-Brasileira “Odette dos Santos” em São Carlos. Esse Centro de Cultura foi projetado pelo NEAB/UFSCar para atender a diversidade artística e cultural de São Carlos e possui espaços temáticos onde são desenvolvidas ações e projetos, entre eles, a sala de Africanidades. O Centro é uma parceria com o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFSCar com a prefeitura municipal de São Carlos.

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patrimônio vivo refiro-me ao entendimento de um dos programas da UNESCO, implantado em 1989, que tinha como objetivo a preservação e valorização das culturais tradicionais. Esse programa Tesouros Humanos Vivos incentivou a criação de sistemas nacionais de identificação e reconhecimento oficial de indivíduos considerados por suas comunidades como depositários e praticantes da tradição (GALLOIS, 2006, p. 16).

Neste sentido, muitos têm sido os(as) intelectuais negros(as) que atuaram e continuam atuando no Movimento Negro, destaco as participações populares da comunidade negra que têm procurado superar o racismo contra os(as) negros(as) na educação assim como promover o conhecimento e respeito para com a cultura negra, ações que têm contribuído também para a educação das relações étnico-raciais, preservação e valorização da cultura negra.

Nesta direção, destaco o exemplo do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Governo de São Paulo que, de acordo com Santos (2006), descortinou o véu que encobria o racismo institucional na sociedade brasileira. O autor diz que o racismo faz parte da sociedade paulista onde o comportamento, aparentemente livre de preconceitos, foi duramente denunciado por muitas entidades em São Paulo, homens e mulheres que faziam parte dessas instituições tiveram participação intensa, nos anos 1970, na luta contra a discriminação racial.

Segundo Santos (2006), uma ação importante do Conselho da Comunidade Negra foi o levantamento de informações relativas às políticas para a população negra o que determinou que se fizesse um esforço concentrado, em curto espaço de tempo, mantendo audiências e conversas permanentemente com técnicos das secretarias do governo do Estado de São Paulo. Nesse espaço de tempo, constatou-se que muito mais que levantar informações, era necessário sensibilizar os servidores públicos sobre a questão racial como fator importante na formulação de políticas públicas. Nesta perspectiva foram articuladas diversas parcerias e alianças, sendo o Conselho da Comunidade Negra formado por representantes de nove secretarias: Governo, Economia e Planejamento, Justiça, Educação, Promoção Social, Relações de Trabalho, Cultura, Segurança Pública e Negócios Metropolitanos.

Dentre essas parcerias, a educação foi uma das mais importantes comissões temáticas do Conselho da Comunidade Negra. Santos (2006) afirma que seu objetivo era potencializar esse setor, desde o Mobral até o ensino médio completo, rever os livros didáticos e realizar pesquisas sobre a condição da população negra na área da educação. Conforme o autor, esta comissão deveria também apresentar sugestões

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para as secretarias estadual e municipal de educação, o MEC, as universidades e demais entidades do setor educacional. Santos (2006) relata que esta comissão chegou a ter quinze pessoas, que em sua maioria, era formada por mulheres: professoras, negras e brancas, de diferentes partidos, voluntárias que não ocupavam cargos remunerados no Conselho da Comunidade Negra, sendo as reuniões abertas à participação de todos.

O autor diz ainda que por ser o Conselho da Comunidade Negra um órgão do Estado, a Comissão de Educação desenvolveu estratégias de trabalho na Secretaria de Educação e escolas oficiais com o objetivo de que professores alunos, supervisores, enfim, toda a comunidade escolar pudesse refletir sobre a questão racial. De acordo com Santos (2006), este trabalho teve inicio com uma audiência em que ficaram estabelecidas as diretrizes de relacionamento com a Secretaria da Educação e a necessidade de se obter dados concretos sobre a situação educacional dos negros. Nessa direção, o setor de educação do Conselho da Comunidade Negra procurou fomentar e ampliar discussão sistêmica e crítica sobre as necessidades que a comunidade negra encontrava no plano educacional. Santos (2006) destaca o projeto Salve 13 de Maio? como um dos que de fato conseguiu atingir toda a comunidade escolar de maneira que, ao final de dois anos, ficou evidenciado que a escolarização consciente é para o negro uma arma contra a discriminação racial.

O projeto Salve 13 de Maio? foi um dos trabalhos realizados pelo Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-Brasileiros (GTAAB) da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Os trabalhos realizados por esse grupo tinham como meta a superação do preconceito e discriminação racial e valorização da cultura afro-brasileira. O projeto Salve 13 de Maio? trouxe para dentro das escolas o processo de discussão sobre a situação socioeconômica do negro brasileiro e a discriminação racial da qual é vítima e teve como objetivo reconstruir a escola pública tornando-a entre outras coisas, um espaço de construção de identidade da criança negra.

Em 1992, a professora Rachel de Oliveira fez uma pesquisa de mestrado em que relata as primeiras intervenções educacionais realizadas pelo Movimento Negro feita na rede pública do estado de São Paulo, na década de 1980. Segundo Oliveira (1987), o Projeto Salve 13 de Maio? foi desenvolvido em escolas públicas do Estado de São Paulo, nos anos de 1986 a 1988, sob a orientação da Secretaria da Educação de São Paulo e teve como objetivo mostrar as formas de preconceito vigente na instituição escolar assim como contribuir para futuros estudos sobre relações raciais na escola. Defendida a dissertação, a professora Rachel fez doação de parte dos documentos (ofícios, relatórios, trabalhos escolares, correspondências)

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do referido projeto para a Universidade Federal de São Carlos para subsidiar futuras pesquisas na área da educação das relações étnico-raciais4 .

Ao se falar de pesquisas na área da educação das relações étnico-raciais não se pode deixar de destacar também o trabalho dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros/NEABs que desenvolvem pesquisas e buscam trabalhar a questão racial nos espaços acadêmicos trazendo discussões, trabalhos de extensão, seminários, cursos de formação que buscam valorizar a cultura negra e promover a educação das relações étnico-raciais.

A sala Africanidades constitui-se num ambiente com material interativo e itinerante, oficina e centro de pesquisa, com acervo permanente e temporário relativo à cultura e história afro-brasileira e africana. Atende população de diferentes faixas etárias, níveis de ensino, pesquisa e interesse intelectual, aberta aos interessados em aprofundar conhecimentos sobre as culturas e histórias do continente Africano e da Diáspora. Nesta perspectiva a Sala Africanidades possibilita a educação para a diversidade étnica e cultural e assim uma melhor compreensão da cultura negra brasileira. Nesse contexto, o Parecer da Lei 10.639 pontua que se faz necessário pensar na renovação das práticas educativas vigentes procurando superar a invisibilidade da questão racial na escola, combater o racismo e promover a reeducação das relações étnico-raciais que apesar de não ser tarefa apenas da escola, passa por ela (p.14).

A Sala Africanidades é um espaço que valoriza a cultura negra e proporciona oportunidade para que as todas as pessoas conheçam as especificidades da cultura afro-brasileira e africana. A partir deste projeto criado pela professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, na época coordenadora do NEAB/UFSCar, foi realizada uma pesquisa de mestrado com o objetivo de analisar um cantinho de africanidades

4 Parte dos documentos relativos ao Projeto “Salve 13 de Maio?” foi doada pela professora Rachel de Oliveira à Unidade Especial de Ensino Informação e Memória (UEIM). Destacam-se entre estes documentos: ofícios, relatórios, trabalhos escolares, correspondências e documentos diversos relacionados à questão da discriminação racial contra os negros na sociedade. Segundo a professora, o objetivo da doação foi para que os documentos pudessem contribuir com pesquisas na área da educação das relações raciais. A partir da organização dos documentos doados a UEIM, foi publicado o CDROM “A criança negra e a escola”. O referido CD contém uma base de dados organizada, com a finalidade de facilitar o acesso rápido às informações contidas nos documentos (ofícios, relatórios, trabalhos escolares, correspondências). Os documentos reúnem depoimentos de alunos, professores, educadores e pesquisadores a respeito da discriminação racial na escola. O CDROM é um material de apoio para a educação das relações raciais, pois oferece aos professores/as, alunos/as, educadores/as e pesquisadores/as informações da realidade de discriminação que a criança negra vive dentro do espaço escolar, contada e/ou ilustrada (desenhos) pela própria criança negra

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dentro da sala de aula e os efeitos que pudesse produzir no relacionamento de alunos(as) brancos (as) e negros(as). A pesquisa foi realizada por Valéria Algarve na EMEB “Afonso Fioca Vitali (Caic) com os alunos de uma sala da 4ª série no ano de 2003 na cidade de São Carlos com o objetivo de se reconhecer e valorizar a diferença, a partir de um cantinho de africanidades. A professora Elaine Bedendo, responsável pela sala de aula em que se deu a pesquisa de Valéria Algarve, recebeu o Prêmio do (CEERT)5, em 2004, pelo trabalho realizado com as crianças no cantinho africanidades em sua sala de aula onde promoveu interação das crianças negras e brancas com objetos e história de cultura afro-brasileira.

Trabalhos de pesquisa como esses são importantes porque trazem para dentro das instituições formais de ensino reflexões sobre a necessidade do diálogo com o diferente, com a diversidade, seja ela cultural ou racial, pois a diferença esta posta dentro dessas instituições, mas precisa ser compreendida e valorizada.

Nesse contexto de se valorizar e compreender a diversidade cultural e racial de crianças e adolescentes que frequentam as instituições formais de ensino o Parecer sublinha que é preciso haver diálogo da escola com as lideranças da comunidade negra. Diálogo mais que necessário ao se pensar o funcionamento do sistema educacional brasileiro que preserva a cultura da classe dominante e ignora as outras culturas que integram o diverso patrimônio cultural que constitui a sociedade brasileira. Assim sendo, é importante buscarmos novas formas de contribuir para tornar a escola e a sociedade, um espaço mais respeitoso com a diversidade cultural e com a diferença, um espaço que permita o rompimento com o domínio da cultura européia, rompimento que não significa que a cultura negra venha predominar, mas que seja valorizada e respeitada.

Nessa perspectiva, de tornar a escola um espaço mais respeitoso com a diferença, a pesquisa aqui apresentada, focaliza a educação das relações raciais e busca compreensões na educação como “processo de ‘construir a própria vida’, processo que se desenvolve nas relações entre gerações, grupos raciais e sociais,

5 A professora Elaine Bedendo foi premiada pelo CEERT em 3º lugar com o tema: Cantinho de Africanidades: trabalhando a cultura negra em sala de aula. O Prêmio Educar para a Igualdade Racial: experiências de promoção da igualdade racial/étnica no ambiente escolar” foi criado com o intuito de premiar experiências desenvolvidas em sala de aula por educadores da rede pública e particular, voltadas para a promoção da igualdade e pleno desenvolvimento das crianças, adolescentes e jovens, negros, brancos, indígenas e de outros grupos étnicos, para a garantia do direito ao acesso e permanência na escola. Em sua primeira edição em 2002, foram recolhidas 210 experiências representativas das cinco regiões do país. Nesta segunda edição foram recolhidas 314 experiências da educação infantil, do ensino fundamental e médio, de áreas rurais e urbanas, de todos os estados do país.

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com a intenção de transmitir visão de mundo, repassar conhecimentos, comunicar experiências” (SILVA, p.1). Esse processo pressupõe um modo de educar que promova o reconhecimento e o respeito para com a diferença e, permita ainda, a liberdade de criar, criticar, dialogar, interagir com o mundo e os diferentes grupos étnicos num permanente processo de aprender ensinar e aprender. Um modo de educar que busque na diversidade cultural um elemento essencial na formação dos cidadãos e cidadãs.

Nessa direção é oportuno citar a educação patrimonial, definida por Maria de Lourdes P. Horta como “processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo” (HORTA, p.6). A Educação patrimonial busca preservar o patrimônio cultural através de ações educativas que “possibilitem aos indivíduos conhecer a diversidade cultural do país, apropriar-se dela, valorizar, respeitar, em outras palavras, permite ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia (...). Este processo leva ao reforço da auto-estima dos indivíduos e comunidades e à valorização da cultura brasileira, compreendida como múltipla e plural” (HORTA, p.6). Fortalece o diálogo e o respeito entre diferentes culturas em favor da preservação do patrimônio cultural brasileiro.

O trabalho da educação patrimonial é conhecido e explorado por pessoas interessadas na preservação de bens culturais. O interesse desse tipo de educação é formar cidadãos críticos, criativos, sabedores de seus valores culturais e de seus direitos em relação a conhecer e apropriar-se do patrimônio cultural de seu país.

Conhecer e apropriar-se do patrimônio cultural são fatores importantes na formação dos cidadãos e cidadãs. A esse respeito Fiori (1986) afirma que a formação humana da pessoa depende dentre outras coisas do seu descobrimento histórico, descobrimento que acontece também por meio do conhecimento do seu patrimônio cultural. Conforme Fiori (1986), a formação humana depende “do seu reconhecimento enquanto sujeito de sua história, história que acontece dentro de um aprendizado como método de libertação e autoconfiguração, descobrimento histórico de valores de humanização, de invenção do homem novo” (FIORI, 1986, p. 9). Eu acrescentaria que a formação humana depende também do descobrimento dos valores culturais e da identidade étnica, a saber, descobrimento do patrimônio cultural.

Por isso, o patrimônio cultural afro-brasileiro em suas diversas dimensões traz possibilidades de educar para as relações étnico-raciais. Uma educação que contribui para a desconstrução da discriminação contra o negro e sua cultura e busca

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romper com o domínio da cultura européia, cultura única, que se quer dominante e que produz nas pessoas, o que Dussel (p. 262) chama de dependência cultural. Dentro desse contexto, é importante a reflexão sobre o conceito de educação patrimonial que constitui um dos melhores caminhos para se conhecer e valorizar a cultura negra. Além disso, a educação patrimonial ao proporcionar relações entre as pessoas e os grupos entre si também permite, entre outros, “transmitir conhecimento das tradições dos grupos na sociedade” (SILVA, 2004).

Nessa perspectiva, os(as) intelectuais negros(as) estão aptos a contribuir com a escola no que diz respeito a educação étnico-racial e a execução da Lei 10.639 de acordo com os dispostos no Parecer. As formas pelas quais os(as) intelectuais negro(as) podem trabalhar são diversas incluindo a transmissão do conhecimento das tradições dos grupos na sociedade. As palestras, os cursos de formação de professores, as oficinas culturais, constituem ações educativas pelas quais os(as) intelectuais negros(as) podem transmitir conhecimentos da cultura e tradição negra assim como contando sua trajetória de vida considerando pontos importantes de se trabalhar a auto-estima das crianças e jovens negros(as). Desta forma suas participações na formação das crianças e jovens é importante para que esses(as) se tornem pessoas edificadas capazes de conduzirem a vida e continuarem na luta pela preservação e valorização da cultura negra como também no combate a discriminação racial presente em nossa sociedade. Por isso, o diálogo entre os(as) intelectuais negros(as) com a escola é essencial não apenas para a comunidade negra como também para toda sociedade brasileira.

O objetivo geral da pesquisa era contribuir para a execução do Parecer da Lei 10.639 nas escolas para a melhoria da educação das relações étnico-raciais entre crianças negras e crianças não negras. Os objetivos específicos deveriam contribuir com a educação das relações étnico-raciais tornando conhecidas e valorizadas experiências de vida e contribuições de intelectuais negros(as) para a promoção da cultura afro-brasileira; contribuir para o conhecimento e valorização da cultura afro-brasileira; contribuir para fortalecer a integração entre a escola e a comunidade negra.

Encaminhamentos Metodológicos

Horta (p.8) diz que em um processo de descobrimento da realidade cultural de um determinado tempo e espaço social é possível se aplicar uma metodologia apropriada que facilite a percepção e a compreensão dos fatos e fenômenos

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culturais. O processo da Educação Patrimonial pode ser “aplicada a qualquer evidência material ou manifestação da cultura, seja um objeto ou conjunto de bens, um monumento ou um sítio histórico ou arqueológico, uma paisagem [...] qualquer expressão resultante da relação entre os indivíduos e seu meio ambiente” (HORTA, p. 46). A autora cita também outras formas de expressão cultural que constituem o patrimônio vivo de uma sociedade, são elas artesanatos, maneiras de pescar, caçar, plantar entre outras. As salas africanidades itinerantes constituem patrimônio material da cultura negra, portanto podem ser considerados espaços de Educação Patrimonial dessa cultura assim como a atuação dos(as) intelectuais negros(as) nesses espaços de africanidades, seja contando história, ministrando palestras, realizando oficinas (arte, dança, artesanato) e debatendo o tema das relações étnico-raciais a partir da sua experiência, uma vez que são considerados(as) patrimônios vivos da comunidade negra. Existe a possibilidade de atuação dos(as) intelectuais negros(as) nas escolas conforme proposta da pesquisa de mestrado Trajetória de vida de intelectuais negros(as): contribuição a educação das relações étnico-raciais 6.

Para proceder à coleta dos dados da referida pesquisa de modo a trazer, entre outras, contribuições para o diálogo entre a comunidade negra e a escola, foi feito uso das fontes orais que, de acordo com Meihj (1996), “podem assumir a forma de: histórias orais de vida (é o relato do narrador sobre sua existência através do tempo); relatos orais de vida (é solicitada ao narrador que aborde determinados aspectos de sua vida, a narração é direcionada para a temática); ou de depoimentos orais (buscar obter dados informativos e factuais do entrevistado sobre sua vivência em determinadas situações ou a participação em instituições que se quer estudar)”. Na pesquisa apresentada, foram utilizados os relatos orais de vida em que o(a) narrador(a) aborda determinados aspectos de sua vida, sendo a narração guiada por uma temática.

6 Os dados da pesquisa de mestrado citada mostram a possibilidade de os (as) intelectuais negros (as) contribuírem com a educação das relações étnico-raciais dentro dos muros das escolas e colégios buscando base na educação patrimonial em se considerar os (as) intelectuais negros (as) patrimônios vivos da comunidade negra. Na análise dos dados, especificamente na dimensão “Orientação aos/as jovens negros (as)” os (as) intelectuais negros (as) dirigem aos jovens negros (as) sua experiência com o objetivo de orientá-los para se tornarem não apenas pessoas educadas e edificadas, mas também pessoas que valorizam sua origem e cultura. Ao repassar experiência e conhecimentos sobre a cultura, assim como a importância de valorizar a cultura e a origem, os (as) intelectuais negros (as) podem se assim o quiserem educar orientar não apenas os (as) jovens negros (as), mas também as crianças negras. Podem repassar conhecimento de como constroem conhecimentos sobre sua cultura e preservam seus valores e sua origem.

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Foi feito uso da forma de relatos orais, com a finalidade de desvelar a trajetória de vida de intelectuais negros (as) de modo que o relato da sua trajetória de vida venha a constituir parte do patrimônio cultural afro-brasileiro assim como promover a educação das relações étnico-raciais, a preservação do patrimônio afro-brasileiro e o conhecimento da história e cultura afro-brasileira. A oralidade - e aqui especificamente, o relato oral - é de muito valor para diferentes raízes étnico-raciais, que não utilizaram a escrita para registrar sua história:

Sabemos que, nas comunidades em que a escrita se faz ausente, o relato oral tem importância capital, visto que este é o modo como todos os costumes e história permanecem vivos, através do relato dos mais velhos para os mais novos. Até mesmo nas comunidades em que hoje a escrita se faz presente existiu um período, anterior a esta, em que a história oral era o instrumento que possibilitava a perpetuação da cultura local (ABRAHÃO, 2004, p. 171).

A trajetória de vida contada através do relato oral é um valioso documento que une o passado reconstruído com um presente. O resgate do indivíduo enquanto elemento fundamental para a compreensão da vida humana é enriquecedor para o conhecimento da História, em outras palavras “a evidência oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história. Enquanto os historiadores estudam os atores da história a distância, a caracterização que fazem de suas vidas, opiniões e ações sempre estará sujeita a ser descrições defeituosas, projeções da experiência e da imaginação do próprio historiador: uma forma erudita de ficção. A evidência oral, transformando os “objetos” de estudo em “sujeitos”, contribui para uma história que não só é mais rica mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira” (THOMPSON,1992, p.137).

Na análise e descrição dos dados da pesquisa Trajetória de vida de intelectuais negros(as): contribuição a educação das relações étnico-raciais, buscou-se princípios na Fenomenologia ao se trabalhar na análise dados com unidades de significado. Conforme Hennemann (1988) as unidades de significado são o sentido do Todo obtido pela descrição do fenômeno, onde se processa a redução fenomenológica. Segundo o autor, a redução fenomenológica é tomada como instrumento metodológico que fornece à pessoa a possibilidade de descrever a experiência sem os pressupostos metafísicos do senso comum, na atitude natural.

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Hennemann (1988) diz que a redução fenomenológica torna as descrições da experiência consistentes conforme nós as vivemos, pois chegamos ao nível do fenômeno. Quando estamos presentes no reino da experiência, podemos intuir diretamente a estrutura do fenômeno mediante a evidência emergida da experiência como fenômeno. Através da evidência, retiramos as unidades de significado emergidas do contexto onde o fenômeno se insere. Oliveira (2001) entende unidades de significados como sendo “a menor porção que traz em si o conteúdo de uma fala ou de um gesto”.

Nas unidades de significado, buscou-se, a descrição de dimensões que não consiste apenas em mero registro de dados, tampouco um conjunto de elementos que expressam nossa construção das construções de outras pessoas, do que elas e seus grupos se propõem (SILVA, 1990, p.129), mas são reflexões sobre as experiências vividas e experimentadas pelos(as) intelectuais negros(as). “A descrição consiste em transformar as unidades de significado em unidades estruturais de modo mais geral do que as do sujeito em estudo, de tal modo que respeitando sua experiência, possa transmitir o fenômeno como objeto de análise” (HENNEMANN, 1988, p.83).

A descrição das dimensões encontradas na trajetória de vida dos (as) intelectuais negros(as), colaboradores(as) desta pesquisa buscou destacar processos educativos de que participaram em diferentes espaços de suas vidas: trabalho, família, comunidade e no repassar conhecimento aos(as) jovens negros(as). Nesses espaços os(as) intelectuais negros(as) expressam significações e representações de sua trajetória de vida. Estas significações e representações se processaram no sentido de reconstruírem sua história e junto com sua comunidade, reconstruíram e reconstroem a história do povo negro brasileiro, esquecida e desvalorizada.

As experiências de vida dos(as) intelectuais negros(as) colaboradores(as) desta pesquisa revelam valores culturais, familiares, morais que orientaram seu crescimento humano, intelectual e profissional. Apontam possíveis caminhos de superação da discriminação racial e conquista de espaços de luta e denúncia, e principalmente espaço de cidadãos e cidadãs ativos na sociedade. Nesta perspectiva dão significados ao processo de se constituírem intelectuais negros(as). Entre os significados trazidos pelos diferentes colaboradores/as da pesquisa, destaca-se a dimensão Orientações aos(as) jovens negros(as) apresentada a seguir.

Orientação aos(as) jovens negros(as)

A partir de suas experiências de vida, os(as) intelectuais negros(as)

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participantes da citada pesquisa ensinam aos mais jovens que é preciso cultivar a auto-estima, ter persistência nos estudos, buscar qualificação profissional, enfrentar a realidade do ser negro(a) em uma sociedade racista, conservar os valores culturais e religiosos que aprenderam na família e enfrentarem a discriminação de cabeça erguida, ter persistência e acreditar em si, buscar superar as dificuldades, reformular estratégias buscando o melhor caminho para chegar ao seu objetivo. Sempre refletir, questionar, perguntar, conversar com as pessoas em quem se confia, ter consciência dos seus próprios limites, estar atento às oportunidades que surgem.

Orientam para que aprendam a se conduzir na vida, a saber lidar com as situações que a discriminação racial impõe aos(as) negros(as) na sociedade. Neste sentido, os(as) intelectuais negros(as), colaboradores(as) da citada pesquisa, orientam os menos experientes (jovens) a se conduzirem de modo a preservarem suas raízes, formularem novas estratégias de luta contra a discriminação racial, firmarem-se como negros(as). Acrescentam ser necessário que os(as) jovens negros(as) busquem edificarem-se como pessoas que assumem sua história, sua cultura, sua origem, junto com a comunidade negra (Centros de cultura negra, Clubes negros entre outros). Os(as) intelectuais negros(as), participantes da pesquisa, sabem por experiência que para os(as) negros(as) este processo de edificação da pessoa não é simples, exige muito esforço, paciência e resistência. Assim sendo, é preciso orientá-los. Domingas, uma intelectual negra, diz:

De tudo o que eu fiz na vida o que mais gostei foi trabalhar com jovens. Acho que eles precisam da gente [mais experientes], mas acho que somos nós que precisamos deles, porque eles são quem tem um futuro imenso diante dos olhos deles, a gente pode estar se realizando através deles. Eu sempre me realizei muito através das pessoas a quem eu puder dar a minha relação de ajuda. Eu acho que ser educador, antes de tudo, é isso, é estar disponível para oferecer relação de ajuda.

Na mesma perspectiva, outro intelectual negro, Silas, propõe aos(às) jovens negros(as) que tomem como referências pessoas negras que como ele, venceram os obstáculos da discriminação racial. Acrescento que eles(as) não apenas venceram os obstáculos, mas construíram sua história, se formaram profissionais, foram e são atuantes na dinâmica social. São pessoas compromissadas com a comunidade da qual fazem parte como forma de colaborar com o seu fortalecimento. Silas diz

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que o(a) jovem negro(a) não deve se espelhar apenas nos grandes heróis negros, mas também nos comuns como ele, que é conhecido cabeleireiro, pequeno empresário, liderança do movimento negro, integrante de escola de samba, na cidade onde reside. Heróis comuns que no dia a dia lutam, resistem, produzem conhecimentos, superam obstáculos, socializam seus saberes e buscam, juntos com suas comunidades, transformarem a sociedade em que vivem num espaço mais igual para os(as) negros(as), mais humano, mais respeitoso com as diferentes culturas e raças.

Para o(a) jovem negro(a) tomar a decisão de seguir o exemplo de vida dos(as) intelectuais negros(as) participantes da pesquisa, é preciso se colocar num processo educativo que começa em casa, na família, depois no trabalho com as outras pessoas. Processo que se desenvolve no conhecer a si próprio, seus limites, sua origem, sua história para entender as relações desiguais a quais sua comunidade é submetida na sociedade. Conhecer o espaço onde formam o seu intelecto e suas representações, e junto com os outros aprenderem a se edificar como pessoa e profissional. Desta maneira, vão dando novos significados a sua história negra, reconstruindo essa história, preservando a memória negra, o seu patrimônio e sua identidade.

Maria de Lourdes, outra intelectual negra participante da pesquisa, bibliotecária, integrante atuante de grupo do movimento negro da cidade onde nasceu e mora, diz ter conhecido um jovem negro que frequentava as reuniões do Centro Cultural e que se mantinha em silêncio quando em conversas entre os membros do Centro Cultural se abordava a questão dos(as) negros(as), as dificuldades, a discriminação. Convivendo com a comunidade do Centro Cultural e ouvindo as conversas dela com os(as) outros(as) frequentadores(as) do Centro sobre os valores da história dos(as) negros(as), o jovem passou a se ver como negro, sem sentir vergonha da sua origem. Maria de Lourdes conta que este jovem começou a participar destas conversas sobre a questão dos(as) negros(as) e a dar sua opinião a respeito da sua comunidade negra. Maria de Lourdes diz que o discurso deste jovem passou a ser o seguinte “agora não sou bobo não, viu? Aprendi bastante coisa, tá? Porque a gente começa a mostrar pra eles que não tem motivo pra ter vergonha, de ser negro; que não é inferior; que [negro] é bonito do jeito que ele é; que cada um tem sua beleza dentro de sua raça.”

Ouvindo as conversas dos mais experientes, este jovem passou a se olhar com mais orgulho, a se aceitar como pessoa negra, é possível que se tenha libertado do sofrimento de ter vergonha da sua origem africana e, desta forma, viver alienado da sua própria realidade, de ser negro e ter direitos iguais aos dos brancos, de pertencer

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a uma comunidade da qual se deve orgulhar. É necessário que a comunidade negra abra maior espaço para que os jovens negros(as) façam reuniões, debates e confraternizações de modo a reforçar a identidade negra desses(as) jovens e também para que eles/as conheçam mais sua verdadeira história de povo negro, fortaleçam sua identidade, construam sua história e assumam com mais coragem sua negritude. Abrir um espaço dentro das comunidades negras, para os(as) jovens negros(as) se expressarem e construírem suas estratégias de luta é uma forma de contribuir com sua educação, sua formação humana e também sua formação enquanto intelectuais negros(as). As ações da juventude negra são marcantes na história da população negra, a contribuição deste público jovem para a reconstrução da história negra é significativa. Uma das criações de espaço de luta e denúncia de jovens negros é, entre outras, a prática de alguns estilos musicais tais como o hip hop e o rap que expressam a resistência negra à opressão, a discriminação racial. São estilos musicais, que resgatam os valores da cultura negra, denunciam a violência policial e racial. Neste contexto, podemos dizer que os jovens negros(as) também são intelectuais negros(as). A prática da dança do hip hop e do rap é uma ação de denúncia de discriminação, de resistência à desvalorização cultural e de recriação da cultura negra na música e na sociedade constituem uma ação transformadora. Abrir espaços na comunidade negra para a participação ativa dos(as) jovens negros(as) é possibilitar sua formação enquanto intelectuais negros(as), é importante dizer que não apenas na arte, dança e na música os(as) jovens podem se posicionar, mas também na vida política da sociedade. Assim como orientam a juventude negra para a cidadania a partir da valorização da sua origem e cultura, os(as) intelectuais negros(as), também podem contribuir para a educação das crianças negras também no espaço escolar. Podem ainda contribuir com a educação de pessoas não negras que desconhecem e discriminam a origem e cultura africana.

Repassando experiências, conhecimentos e preservando tradições e valores culturais da comunidade negra.

Toda a experiência humana se torna fonte de conhecimento que envolve todo um contexto social e cultural, por isso, a experiência de uma pessoa pode contribuir com a formação de outras pessoas menos experientes. A formação é um processo de socialização em que os contextos familiares, escolares e profissionais constituem lugares de regulação de processos específicos que se entrelaçam uns com nos outros, dando uma forma original a cada história de vida. As pessoas se colocam

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num processo de educação. Ao dizer educação me baseio na definição dada por Silva (1987) que diz que educação é o ato de construir o nosso próprio modo de ser, junto com as pessoas com quem convivemos, ao assumirmos com eles os destinos do nosso grupo, nossa classe social, nossa comunidade.

As trajetórias de vida desveladas pelo relato oral dos(as) colaboradores(as) da pesquisa têm de fato um importante papel formativo porque trazem experiências de formação que são parte do processo de se constituírem intelectuais negros(as). O relato de suas trajetórias de vida educa na medida em que provoca, nas pessoas que os ouve, alegrias, tristezas, inspiração, apreço, repúdio. Provoca sentimentos e expõe momentos de percursos. Estes relatos têm a capacidade de nos inspirar, questionar, incentivar e muitas vezes nos transformar. Quantas vezes mudamos algumas atitudes depois de ouvirmos a história de vida de alguma pessoa que nos conta as formas pelas quais superou algum problema, venceu obstáculos e, conquistou seu objetivo. Por tudo isto, a trajetória de vida de intelectuais negros(as) se torna exemplo de vida para os(as) negros(as) que são discriminados, principalmente para os(as) negros(as) mais jovens. É o mais experiente orientando para a vida os menos experientes.

Os relatos orais recolhidos através de entrevistas objetivam compreender uma vida, ou parte dela, como possível para desvelar e/ou reconstituir processos históricos e socioculturais vividos pelos sujeitos em diferentes contextos.

Neste sentido, acredito que os relatos orais de trajetória de vida também contam histórias e educam para a vida os mais jovens e outras pessoas que poderão aprender com a experiência vivida. É importante que os(as) intelectuais negros(as) tenham oportunidade de contar sua trajetória de vida também nas escolas de modo a colaborar na educação das relações étnico-raciais. Sobre esta possibilidade, é importante destacar uma das propostas do Parecer CNE/CP/003/2004 que chama atenção para a importância do “diálogo da escola com os estudiosos das relações étnico-raciais e com grupos do Movimento Negro para que sejam superados equívocos entre o que se sabe e a realidade” (p.15).

Nesta perspectiva, de se superar equívocos entre o que se ouviu falar e a realidade da história dos(as) negros(as), se faz necessário buscar meios que tornem a história e a cultura afro-brasileira mais conhecida, valorizada e respeitada. A trajetória de vida de intelectuais negros(as) uma vez partilhada, refletida, a partir do rememorar e do relato, poderá servir de exemplo e incentivo principalmente para os(as) negros(as) mais jovens de modo que se orgulhem do seu povo negro, se identifiquem como negros(as) e preservem sua cultura de origem. Neste contexto,

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é possível dizer que a trajetória de vida de intelectuais negros(as) constitue um dos patrimônios culturais afro-brasileiro. Tornar conhecida a trajetória de vida das pessoas negras é cuidar do patrimônio vivo da comunidade e contribuircom a preservação da cultura negra. Como patrimônio vivo da comunidade negra, os(as) intelectuais negros(as), guardam na memória a sua trajetória de vida e rememorando esta trajetória, relatam suas experiências. As experiências relacionadas aos nossos modos de ser, fazer, estar e transformar o mundo encontram-se armazenadas em sua memória. Os(as) intelectuais negros(as) lembram trajetos de vida e ao contarem desvelam sua história, como se educaram e se formaram nas relações sociais.

O desvelamento da trajetória de vida de intelectuais negros(as) podem fomentar o desenvolvimento de novos estudos e pesquisas que ampliem o entendimento sobre as relações étnico-raciais no Brasil. O registro desta trajetória, sua sistematização e disponibilização podem contribuir para fortalecer a identidade cultural dos(as) negros(as) que são discriminados assim como uma consequente tomada de consciência da importância da preservação do patrimônio cultural negro e da reconstrução da história deste povo.

A trajetória de vida de intelectuais negros(as), uma vez conhecida por outras pessoas e disponível para pesquisa, torna-se também importante subsídio para ações educativas. A educação patrimonial é uma das ações possíveis de se educar para as relações étnico-raciais a partir do patrimônio. Educação patrimonial é “processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo” (HORTA, s.d.). Este processo permite as pessoas conhecerem, os diferentes patrimônios culturais que compõem o patrimônio cultural brasileiro, além de permitir ao indivíduo fazer a leitura da sociedade que vive e respeitar a diferença, leva ainda “ao reforço da auto-estima dos indivíduos e comunidades e à valorização da cultura brasileira, compreendida como múltipla e plural” (HORTA, s.d.).

Os processos educativos que resultam da prática de combate à discriminação racial presentes nas trajetórias de vida dos(as) intelectuais negros(as) são consequência do aprender e ensinar, aprender e ensinar que se processa na sua vivência familiar, profissional e no repassar experiência para os mais jovens. Nesses processos educativos se estabelece uma relação de alteridade, nesta relação, não existe espaço para a manipulação de uma pessoa sobre outra, mas prevalece o respeito ao outro, ao diferente, dá-se um processo de troca de experiências. Existe o reconhecimento de que somente se constrói algo se houver comunicação com o outro e a valorização da diferença. A formação humana se dá também a partir do

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momento que diante do outro diferente acontece o reconhecimento de si próprio(a) como sendo diferente, reconhece-se na outra pessoa valores que ainda não se têm em si próprio(a), mas que se pode aprender com a outra pessoa. Aprendendo com ela, também se pode ensinar coisas que se aprende nessa troca, pode-se construir novos conhecimentos.

Aprender a partir da trajetória de vida das pessoas também permite se construir novos conhecimentos. O relato da trajetória de vida de intelectuais negros(as) traz experiências de vida, conquistas, saberes, dificuldades, superações que podem servir de subsídios para novas pesquisas na área da educação das relações étnico-raciais. Os seus escritos, produções guardam aspectos da sua cultura original que podem constituir parte do patrimônio cultural da comunidade negra. Referências que são os(as) intelectuais negros(as) como patrimônios vivos da comunidade negra. Desta forma, o(a) intelectual negro(a) passa a ser um protetor e divulgador da cultura negra e ao intercambiar seus saberes com outros saberes renova e valoriza sua cultura.

O compromisso com a comunidade presente na trajetória de vida dos(as) intelectuais negros(as) se traduz em resistência à opressão, mas também exprime a existência de um povo que quer ser visto ouvido e respeitado. Exprime o grito forte de liberdade contra um sistema que exclui pela cor, raça, religião, opção sexual, classe social, e assume uma postura de resistência a todo sistema que exclui, oprime e desumaniza. Ao trabalhar com a trajetória de vida de intelectuais negros(as) é importante também, considerar o registro de suas produções científicas ou profissionais, de seus escritos, fotos, cartas, poemas que armazenados poderão ser consultados por outros(as) pesquisadores(as) e (ou) interessados(as) e desta forma ampliar o conhecimento e futuras pesquisas na área da educação das relações étnico-raciais. O registro de todas estas produções contribui para que a trajetória destas pessoas negras seja conhecida e conhecida também a sua cultura de origem africana. Conhecimento que pode fortalecer a auto-estima dos(as) negros(as) que são discriminados(as) e despertar os(as) não negros(as) para o respeito e valorização da cultura negra.

O desconhecimento da cultura e da origem, somado a falta de referências positivas da raça, são fatores que afetam negativamente a auto-estima dos(as) negros(as). Em vista da supremacia branca, e do domínio que estabelece na sociedade brasileira muitos(as) negros(as) buscam assemelhar-se ao branco, fato este que fortalece a ideologia do branqueamento que é uma das formas de desenraizamento da cultura negra. A ideologia do branqueamento ganha força

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mediante à desvalorização da cultura de origem africana e da presença e influência da raiz africana no país.

É fato que a discriminação contra a cultura negra tem causado à população negra diversos prejuízos, entre eles a tentativa de desenraizamento da sua cultura, que destrói a humanidade da pessoa. Para desconstruir a desvalorização da cultura negra é necessário que se conheça esta cultura nas suas origens e conhecendo, aprenda-se a preservá-la e valorizá-la, ações essas que contribuem para impedir seu desenraizamento. Conhecer, valorizar, preservar são formas de resistência. Estas formas de resistir estão presentes na história do povo negro brasileiro. Resistência que se dava não apenas em movimentos de revolta, protesto, manifestações, mobilização política, mas também nas manifestações culturais. As manifestações culturais negras se transformavam em resistência contra a dominação cultural imposta pelos brancos.

O(a) negro(a) enfrentou inúmeras dificuldades para se integrar na sociedade e, para conseguir esta integração, tinha que passar por um processo de branqueamento. Os(as) negros(as) considerados(as) intelectuais, também não escaparam ao processo de branqueamento, eram levados(as) a pensar a sociedade como os brancos a pensavam e concebiam, ou seja, uma sociedade equânime, justa e bem organizada, uma verdadeira democracia racial. E como os brancos, eles(as) deveriam pensar a situação do(a) negro(a) como consequência da sua incapacidade de ascensão social devido a sua pobreza e a falta de instrução (escrita, leitura) resultado da sua pouca inteligência. Mas, os(as) intelectuais negros(as) resistiram a esta ideologia, pensaram e agiram no sentido de transformar a realidade de opressão da sua comunidade negra. Mesmo nos dias atuais a sociedade duvida da capacidade dos(as) negros(as) de pensarem e agirem sobre sua realidade como também de produzirem conhecimentos.

Os(as) negros(as) são vistos(as) com desconfiança pela sociedade e sempre aparecem no imaginário social como ingênuos(as), frágeis, necessitados de auxilio, isso quando considerados(as) negros(as) dóceis e obedientes. Porém se adotarem uma postura de quem questiona, reage ou luta por seus direitos são considerados(as) rebeldes, violentos(as), perigosos(as), uma ameaça à ordem social e constantemente reprimidos(as) e sujeitos(as) à detenção. Diante desta realidade da população negra, os(as) intelectuais negros(as) questionaram e/ou questionam a imposição de ideias que alienam as pessoas de sua própria realidade e as ferem em sua humanidade e trabalham com ideias opostas ao interesse dominante e, desta forma, lutam para transformar a realidade de opressão de si próprios(as) como negros(as) e também

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do seu povo negro.O(a) intelectual negro(a) se fortalece quando assume de fato um compromisso

com o seu povo negro (SANTOS, 2004) e se dispõe a trabalhar para promover a cultura negra tornando-se referência positiva para os membros da sua comunidade, principalmente para os mais jovens. O(a) intelectual negro(a) é aquele(a) que assume sua negritude, sua história, sua cultura, sua origem, junto com a comunidade negra.

Seguir o exemplo de vida dos(as) intelectuais negros(as) não é tarefa fácil, trata-se de um processo educativo que começa em casa, na família, depois se estende ao trabalho, ao convivo social. Processo que se desenvolve no conhecer a si próprio(a), seus limites, sua origem, sua história para entender as relações sociais muitas das vezes, desiguais, as quais sua comunidade é submetida na sociedade e conhecendo buscar transformá-la. É necessário também conhecer o espaço onde se forma o intelecto, as representações, e junto com os outros aprender a edificar-se como pessoa e profissional. Desta maneira, vão se dando novos significados à própria história, reconstruindo-a e, assim sendo, preservando a memória, o patrimônio e a identidade do grupo a que pertence.

Para ser referência, o intelectual negro(a) não precisa ser necessariamente letrado(a), acadêmico(a), mestre ou doutor(a) pode ser também uma pessoa que não tenha elevado nível escolar. Esta compreensão de intelectual encontra-se nos estudos Gramsci(1982) sobre os intelectuais orgânicos que são diferentes dos intelectuais classistas que representam valores universais (SANTOS, 2004). Os(as) intelectuais classistas fazem parte do rol dos grandes intelectuais, os orgânicos, dos pequenos (GUIMARÃES, 1999) que assim como os grandes, também fazem história devendo da mesma forma, que a história dos grandes, ser conhecida e estudada.

Considero que os objetos acumulados por esses intelectuais, tais como: fotos, escritos, objetos são vestígios de uma caminhada e contam histórias. As habilidades adquiridas (artesanatos, pinturas, corte e costura poesia, danças, composições, produções cientificas, palestras e outras) são manifestações culturais e preservam a cultura negra. Seus relatos orais desvelam a sua história individual e possibilitam resgatá-los como sujeitos ativos na construção de sua própria história. Os relatos orais resgatam o indivíduo como sujeito no processo histórico, possibilitam conhecermos o contexto social, político e cultural que viveu e de alguma maneira ajudou a transformar. Podemos conhecer ainda os processos educativos que os fizeram construírem conhecimentos, se formarem e se informarem para a vida, resistirem à desvalorização da sua cultura e conquistarem espaços para atuarem

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como profissionais na sociedade. O relato da trajetória de vida dos(as) intelectuais negros(as) traz as experiências

de sua vida na reconstrução não apenas da sua história individual como também coletiva, pois quando reconstrói sua história e assume o seu pertencimento racial, ele(a) fortalece e da visibilidade para a comunidade negra.

Por fim, a formação de cidadãos críticos, a partir do conhecimento de sua cultura e sua origem é uma forma de educar para as relações étnico-raciais. A educação dentro do contexto cultural valoriza o ser humano, uma vez que a cultura é a valorização do ser humano e assim sendo, parte integrante da sua educação. Este trabalho pretende ser uma pequena contribuição à pesquisa na área da educação e busca trazer a partir do relato da trajetória de vida de intelectuais negros(as), novos entendimentos das relações étnico-raciais na sociedade. Acredito que muitos outros trabalhos feitos no contexto da educação das relações étnico-raciais a partir da trajetória de vida de pessoas negras abrirão novos caminhos para outras pesquisas nesta área da educação. Este trabalho soma-se a outros já feitos e outros que virão no sentido de trazer novas perspectivas e instrumentos para combater a discriminação racial na sociedade brasileira, melhorar as relações raciais no país e principalmente melhorar a qualidade de vida da população negra. Como dizem os (as) mais experientes militantes negros(as): a luta continua. Axé!

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PROJETO EDUCACIONAL DE APOIO AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: a experiência pedagógica de Lagoa do Itaenga-PE

Angela Maria Monteiro da Motta Pires1

Introdução

A realidade brasileira apresenta, historicamente, fortes desigualdades econômicas e sociais, principalmente nas áreas rurais. A situação do campo e as lutas que ali ocorrem têm sido objeto de estudos que dão destaque à enorme violência de que são vítimas os povos do campo2 . Trabalhadores assassinados, famílias expulsas violentamente, casas e roças incendiadas acompanham denúncias das igrejas e sindicatos (MARTINS, 1989, p. 12). Essas desigualdades, inclusive as educativas e escolares, demonstram que há uma dívida histórica e também uma dívida de conhecimento dessa dívida histórica. Neste sentido, estudos vêm sendo realizados com o objetivo de pesquisar como estas desigualdades marcam profundamente a construção ou a não-construção do sistema educativo, de políticas educativas e de garantia de direitos, especificamente do direito à educação.

Conhecer a nova dinâmica do campo é fundamental, no intuito de perceber, no caso da educação, em que medida essa dinâmica, juntamente com os movimentos sociais, pressiona para mudar o sistema educativo, as políticas educativas, a escola e os educadores. Nesta perspectiva, Arroyo (2006, p.106) destaca que “os movimentos do campo poderão contribuir para dinamizar a escola”, tendo em vista que “trazem a ideia de direitos. Colocam a educação no campo dos direitos”.

A educação do campo é uma realidade recente no Brasil e surge em contraposição à educação rural, tendo em vista esta ter uma forte ligação com a classe dos grandes proprietários rurais. Advinda da organização dos movimentos sociais e dos povos do campo organizados, a educação do campo é uma forma de reconhecimento dos direitos das pessoas que vivem no campo, que busca interrogar

1 Doutora em Educação pela UFPE.2 O documento preparatório da primeira Conferência Nacional Por uma Educação Básica do Campo (FERNANDES; CALDART, 2004, p. 25) define povos do campo como o conjunto dos trabalhadores e das trabalhadoras do campo, seja camponês, agricultor, criador, extrativista, pescador, ribeirinho, caiçara, quilombola, seringueiro, indígena, posseiro, arrendatário, meeiro, trabalhador assalariado e suas famílias, vinculados à vida e ao trabalho no meio rural.

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a sociedade, o Estado e suas políticas, o sistema educacional, a escola, o currículo, a formação e a prática docente, os dirigentes estaduais e municipais de educação e os centros de formação de educadores e educadoras do campo.

A partir da organização dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, no âmbito da luta por políticas públicas, houve uma conquista importante, que foi a aprovação das “Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo” (Conselho Nacional de Educação: Parecer nº 36/2001 e Resolução no. 1/2002), as quais incorporaram reivindicações dos movimentos sociais e sociedade civil. Nessas diretrizes, o campo é considerado como “um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana” (BRASIL, 2002, p.1).

A luta por uma educação do campo de qualidade e que contemple os interesses e aspirações dos povos do campo tem se colocado como uma bandeira dos movimentos sociais organizados, particularmente aqueles militantes na questão agrária. Para tanto, foi criada a “Articulação Nacional Por uma Educação do Campo” (CALDART, 2004, p.1), formada por esses movimentos sociais, organizações não governamentais, representantes das universidades e de órgãos públicos. Essa Articulação Nacional destaca a importância da educação como parte de um projeto de emancipação social e política que fortaleça a cultura e os valores das comunidades campesinas e que seja vinculada ao seu projeto de desenvolvimento auto-sustentável.

A educação do campo vem se constituindo, nos últimos dez anos, em uma área de interesse para as pesquisas acadêmicas. Os temas pesquisados variam desde questões pedagógicas em escolas públicas à educação veiculada pelo MST, CUT, à pedagogia da alternância e a problemas relativos aos sistemas municipais de educação. Entre essas pesquisas, encontram-se algumas que têm demonstrado o descaso do Estado com a educação do campo.

Leite (1999), em pesquisa realizada sobre um balanço histórico da educação rural no Brasil, mostra o aspecto marginal desse processo escolar e o desinteresse do Estado em promover uma política educacional adequada ao homem do campo. Neste mesmo sentido, a pesquisa de Pereira (2007), objetivando levantar indicadores para subsidiar a formulação de políticas públicas no ensino fundamental, em escolas do campo, em municípios paraenses, aponta para a precariedade da estrutura física das escolas, do transporte escolar, a insuficiente e irregular distribuição da merenda, a ausência de material didático específico à realidade rural, a multiplicidade de

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funções desempenhadas pelos professores e a rotatividade destes, não criando uma identidade entre a escola e a comunidade, o desinteresse pela formação de professores para trabalharem em escolas multisseriadas e a ausência de um monitoramento sistemático em relação ao trabalho dos professores.

Constata-se, na produção recente das pesquisas em educação do campo, uma lacuna quanto a trabalhos dedicados a explorar o acesso e a permanência dos alunos nas escolas do campo, na perspectiva de averiguar se as aprendizagens construídas vêm possibilitando o desenvolvimento de uma educação com qualidade social. Neste sentido, visando preencher, em parte, essa lacuna e contribuir para o debate e a construção de políticas públicas de educação do campo, propusemos este trabalho, o qual consistiu em um estudo sobre a educação do campo no município de Lagoa do Itaenga, em Pernambuco.

Tratar a educação com qualidade social pressupõe compreendê-la como um fenômeno complexo que envolve múltiplas dimensões. É buscar a correlação entre a educação e os demais indicadores de qualidade de vida, objetivando contribuir para uma vida melhor com maior satisfação individual e melhor convivência social. Dessa forma, deve se inserir na democratização radical do direito à educação em que haja a democratização do acesso, na permanência com sucesso para todos e na gestão, na perspectiva de se atenuarem os processos de segmentação social (DOURADO, 2008).

Ao considerarmos, como objeto de investigação, a educação do campo inserida em um Projeto Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável, a perspectiva norteadora de desenvolvimento sustentável no presente estudo se contrapõe àquelas que priorizam o crescimento econômico em prejuízo ao desenvolvimento social e, sobretudo, ambiental. O predomínio de uma lógica econômica exclusiva, como paradigma de desenvolvimento, mostrou-se incompatível com reivindicações sociais básicas, crescentemente comprometendo os recursos naturais, o que acaba gerando uma espécie de consenso quanto à necessidade de substituir-se o padrão de desenvolvimento.

O desenvolvimento sustentável foi abordado no âmbito das Nações Unidas, pela primeira vez, no Relatório da Comissão Brundtland, que o definiu como aquele que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, através da superação da pobreza e do respeito aos limites ecológicos. Este relatório estabeleceu, ainda, que o desenvolvimento sustentável requer a eliminação da pobreza e a adoção de estilos de vida que atendam as necessidades básicas dos seres humanos.

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A discussão relativa ao desenvolvimento sustentável, entretanto, apresenta alguns avanços a partir da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, no Rio de Janeiro, ao situar o ser humano no centro de todo o processo de desenvolvimento, referindo-se, principalmente, ao direito de desenvolvimento como um direito humano (PNUD, 1999). De acordo com essa perspectiva, a Organização das Nações Unidas- ONU, com as contribuições de pesquisadores como Amartya Sen, definiu indicadores como o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH, buscando avaliar esse desenvolvimento em função do alargamento das escolhas das pessoas, considerando três opções básicas, presentes em todos os níveis de desenvolvimento:

a) desfrutar de uma vida longa e saudável; b) adquirir conhecimento; c) ter acesso aos recursos necessários a um padrão de vida decente. O conceito de desenvolvimento deve incorporar as múltiplas dimensões

em que se manifestam essas opções: econômica, social, política, cultural e ambiental. Aspectos como a socialização dos frutos do crescimento, acesso igual às oportunidades, universalização dos direitos à saúde, nutrição, habitação e educação fazem parte do conceito de desenvolvimento humano. Este compreende tanto o desenvolvimento das capacidades humanas, como a sua utilização produtiva, extrapolando o enfoque, apenas setorial (educação, saúde ou outros serviços sociais), e propondo um desenvolvimento das pessoas, para as pessoas e pelas pessoas (CORAGGIO, 1996).

Tratar a questão do desenvolvimento sustentável é buscar fortalecer o campo democrático, trazendo a discussão para o conjunto das relações sociais. Sustentáveis são as formas sociais de apropriação e uso do meio ambiente, consideradas na sua diversidade, e não apenas dos recursos naturais. A perspectiva democrática vê na extensão territorial e no meio ambiente o suporte da diversidade social e ecológica em que todas as formas, condições e práticas se inter-relacionem (ACSERALD, 1997).

Buscando relacionar o desenvolvimento sustentável com a educação, torna-se fundamental situá-la, historicamente, em relação aos paradigmas de desenvolvimento adotados na América Latina e no Brasil. A educação torna-se uma questão central, a partir da última década do século passado, quando “o estruturalismo cepalino”, como paradigma de desenvolvimento, que surgiu na década de 1940, é questionado, dando origem a outro paradigma.

A CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina - propõe novas

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orientações em um documento intitulado: “Transformação Produtiva e Equidade”, que tem como ideia básica a incorporação e a difusão deliberada e sistemática do progresso técnico e de sua compatibilização com a democracia política e com uma crescente equidade social (PAIVA & WARDE, 1994). A discussão sobre o ensino básico que, anteriormente, ocorria em relação ao aspecto quantitativo dos resultados que este apresentava, mudou o foco para a questão da qualidade educacional, a qual tem sido discutida através de abordagens distintas, mas que, segundo Enguita (1994), é uma “meta compartilhada que todos dizem buscar”.

Nesta pesquisa, adotamos uma abordagem metodológica etnográfica, através da qual buscamos trilhar o caminho que possibilitasse colocar a realidade mais próxima da teoria. Utilizamos também a análise de conteúdo como método de análise dos dados, de modo a produzir “inferências de um texto focal para seu contexto social de maneira objetivada” (BAUER, 2005, p.191).

O referencial empírico utilizado é formado de quatro fontes diferentes que se complementam:

1) documentos: relatórios, proposta de capacitação, fichas pedagógicas, programas, pesquisas e relatórios;

2) dados estatísticos do PNUD/IDH-1991/2000, IBGE/INEP/2001/2006, INCRA e Secretaria de Educação de Lagoa do Itaenga-2001/2006.

3) entrevistas semi-estruturadas com os sujeitos envolvidos com a implantação da Proposta de Educação do campo, em Lagoa do Itaenga.

4) observação participante nos encontros de formação e em duas escolas do campo, as quais denominamos Ser Feliz e Nosso Orgulho.

Ao combinarmos metodologias diversas para o estudo de uma realidade complexa e dinâmica, adotamos a “triangulação de métodos” na sua condução. O conceito de “triangulação”, segundo Minayo (2005, p.10), vem do interacionismo simbólico. Esta autora busca apreender o seu significado a partir do que elabora Denzin (1979): triangulação significa a combinação e o cruzamento de múltiplos pontos de vista; a tarefa conjunta de pesquisadores com formação diferenciada; a visão de vários informantes e o emprego de uma variedade de técnicas de coleta de dados que acompanha o trabalho de investigação. Segundo Brito e Leonardos (2002, p. 13), na “triangulação” não há um único método, um único meio de se chegar aos resultados. Dessa forma, foi possível adentrarmos na experiência vivenciada de educação do campo do município e de seus atores sociais, na realidade local, em que foi estabelecido um processo interativo com os sujeitos da pesquisa: gestores,

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professores, coordenadores, formadores, pais e alunos. No item a seguir, serão apresentados os resultados da pesquisa.

Desenvolvimento

Princípios norteadores e objetivos da Proposta de Educação do Campo de Lagoa do Itaenga

A Proposta, denominada Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável, baseia-se nos seguintes princípios norteadores (SERTA, 2002, Documento 08. p.3):

1 - A escola tem um papel junto aos modelos de desenvolvimento e à cultura que precisa ser explicitado;

2 - O conhecimento não é neutro e é instrumento privilegiado de intervenção na realidade para modificá-la;

3 - Todas as pessoas possuem conhecimento e podem construí-lo ainda melhor;

4 - A construção do conhecimento passa por outros paradigmas diferentes daqueles que estamos acostumados: compartimentados, separados. A visão holística e interdisciplinar é importante para se entender a sustentabilidade do desenvolvimento e a ligação da educação com as interfaces do mesmo;

5 - Os espaços pedagógicos de formação não são apenas os espaços de sala de aula, mas também aqueles da produção agropecuária, da família, da convivência social, da cultura, dos serviços. A sala de aula é um espaço de sistematização, de análise e de síntese;

6 - A pesquisa não é só uma ferramenta de construção de conhecimento, deve ser também uma postura diante da realidade. Educando e educador precisam assumir essa postura com senso crítico, curiosidade e “questionamento reconstrutivo” (MOURA, 2003, p. 4), e, ao mesmo tempo, cultivar essa ferramenta como metodologia de ensino e aprendizagem;

7 - Educação não se faz sem cidadania, sem participação política, sem envolvimento dos sujeitos sociais no projeto de vida das comunidades. O desenvolvimento, com sustentabilidade, exige construção, implementação e controle social de políticas públicas sociais básicas. Tudo isso começa na escola, exercitando a solidariedade, a participação, o respeito pelo outro e pelo diferente.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 121

8 - A avaliação do ensino e aprendizagem engloba não só os conhecimentos, como conteúdos, nem só os instrumentos, como também os processos, os produtos, numa dimensão permanente e sistemática, em forma de hetero e auto-avaliação;

9 - Os conhecimentos novos construídos de forma inovadora provocam e conduzem os participantes do processo a novas ações e posturas. A aprendizagem consiste em “aprender a aprender, a ser, a fazer, a conviver” e do “aprender a compartilhar” (MOURA, 2003).

10 - A educação para o desenvolvimento leva em conta a sustentabilidade ambiental, agrária, econômica, social, política, cultural, de equidade de gênero e intergeracional, baseada na compreensão de que “os paradigmas da sustentabilidade supõem novas relações entre pessoa e natureza, entre os seres humanos e os demais seres dos ecossistemas.”

Ao lado desses princípios, são apresentados os seguintes objetivos da Proposta:

a) construir e transmitir o conhecimento a partir da realidade do aluno e da sua família;

b) desenvolver o senso crítico do aluno e do professor, por meio do processo de conhecimento e análise da realidade;

c) envolver a família na ação educativa da escola; d) provocar mudanças na comunidade, a partir da pesquisa feita pelas

crianças na comunidade, com a participação das famílias; e) a participação da escola na melhoria das condições de vida da comunidade.A concepção pedagógica da proposta adotou como referencial filosófico

o conceito de TEIA, que, segundo documentos pesquisados, pretende que seja construída, por parte dos educadores e educadoras, “a TEIA da educação, a qual tem como objetivo articular o conhecimento à vida do educando e da família, contemplando a renda, a propriedade, o meio ambiente, a cultura, a vida pessoal, a história, as carências e potencialidades das pessoas e dos grupos”. Nessa proposta, os conteúdos curriculares devem buscar articulação da horta com a matemática, da criação de animais com a biologia, do plantio com a botânica, da religião com a arte e com a cultura (SERTA, 2002, p.1).

Elementos metodológicos da proposta

A metodologia da proposta baseia-se “no desafio de conhecer a realidade do aluno”, e, para isso, organiza-se em quatro etapas, (MOURA, 2003, p. 105-121),

122 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

conforme descritas em seguida: 1 – Pesquisa Nesta etapa, as crianças são incentivadas e orientadas a realizar pesquisas

sobre a realidade local, como trabalho escolar, e para isso é escolhido um tema gerador, como, por exemplo: a água para consumo humano – quem tem acesso, que tipo de acesso, que tipo de tratamento é dado à água, entre outros; os serviços públicos existentes –; que tipo de serviços existem (escola, postos de saúde, telefone, estradas, sua qualidade e tipo de atendimento); cultura – festas, músicas, tradições, remédios caseiros, história da própria comunidade. Esta tarefa, na medida em que é realizada pelos alunos com as famílias na comunidade, é considerada imprescindível pelos entrevistados, porque contribui para o envolvimento dos alunos, das suas famílias e da comunidade com a realidade social e com a escola.

2 – Desdobramento Nesta etapa, o educador analisa, desenvolve e tematiza os resultados da

pesquisa em conteúdos curriculares – português, ciências, história, cultura, arte –, de forma interdisciplinar. Nesse processo de análise e aprofundamento, o educador faz uso de novas pesquisas, como também avalia como foi a pesquisa – as dificuldades que os alunos encontraram, como se sentiram, como foram recebidos –, e processa uma síntese e uma reflexão sobre a realidade pesquisada.

3 – Devolução Nesta etapa é proposto que os educandos e educadores façam uma prestação

de contas do que foram capazes de fazer com as informações iniciais que colheram, e provoquem as pessoas com “o novo conhecimento adquirido”, para daí extrair uma ação que ajude a construir o desenvolvimento, ou seja, que transformem em ação o conhecimento construído. Essa compreensão se pauta no princípio colocado na metodologia de que o conhecimento não deve ser uma mera construção intelectual, e que a escola tem um papel político/pedagógico para com os educandos e a comunidade.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 123

4 – Avaliação

Esta é uma etapa em que se propõe avaliar o processo de trabalho em relação à proposta. Esta avaliação ocorre de duas formas: autoavaliação e heteroavaliação. Neste sentido são avaliados os processos, os conteúdos e as pessoas envolvidas na construção da aprendizagem e das ações. Cada ator avalia o seu desenvolvimento e aprendizado e avalia os demais. O educando avalia a sua participação, a das famílias e a do educador; o educador procede da mesma forma e as famílias, também.

Essas quatro etapas representam a base da metodologia da proposta. A primeira etapa, que é a pesquisa, não se diferencia muito de outras propostas que tomam como base do ensino o princípio da investigação. Porém, essa investigação vem ocorrendo mais no sentido do aprofundamento teórico de um tema. No caso da “pesquisa” como uma das etapas, é um formato diferenciado, pelo fato de buscar verificar como as pessoas da comunidade apreendem determinado tema e quais os problemas existentes na comunidade relacionados ao tema. Percebe-se que essa etapa possibilita uma primeira aproximação da escola com a família e a comunidade.

No que se refere à segunda etapa, a questão central é transformar em conteúdos os resultados da pesquisa, fazendo relação com as disciplinas curriculares. É uma etapa importante, porque coteja o conhecimento do senso comum com o conhecimento sistematizado cientificamente, no sentido de produzir outro conhecimento. A nossa preocupação é se de fato vai ser possibilitado ao aluno o conhecimento necessário para ele se situar não apenas na sua realidade, mas no mundo, como cidadão.

A terceira etapa da proposta é uma condição fundamental de um processo de planejamento e gestão democráticos, a qual se materializa na devolução às famílias, à comunidade e aos gestores dos resultados da pesquisa. Essa devolução se apresenta também como um momento de discussão dos problemas e de prestação de contas por parte da escola e dos gestores.

A quarta etapa, de avaliação, na medida em que propõe a autoavaliação e a heteroavaliação sai de uma visão tecnicista e se coloca numa perspectiva democrática em termos de proposta teórica. Para se apreender como essas etapas vão se constituindo na prática, teremos a análise da implantação da proposta, em Lagoa do Itaenga, nos itens a seguir.

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O desenvolvimento da Educação do Campo em Lagoa do Itaenga

A proposta de educação do campo em Lagoa do Itaenga vem sendo implementada segundo as etapas definidas metodologicamente: a pesquisa, o desdobramento, a devolução e a avaliação. São criados temas geradores para serem trabalhados, através de fichas pedagógicas, na pesquisa, para as dez escolas do campo. Cada ficha se constitui em um instrumento da pesquisa, contendo as questões centrais que subsidiam os alunos na coleta de dados junto às comunidades.

No início do trabalho, os temas contemplados foram: o censo populacional, o censo agropecuário e o censo ambiental. Com o desenvolvimento da proposta, o município de Lagoa do Itaenga foi inovando e construindo outros temas e estratégias, a partir de inquietações dos gestores e professores “com base nas necessidades das comunidades”, segundo a Coordenadora de Educação do Campo.Assim, em um segundo momento, os temas criados foram: a Água potável, Qualidade de vida do homem e da mulher do campo, Resgatando a cultura e revivendo a história, Higiene e Saúde e as Plantas: conservando hoje para garantir o amanhã.

Destaca, ainda, a Coordenadora de Educação do Campo, que quando existe um problema específico da realidade de alguma comunidade e que a escola mostra interesse em trabalhar, há possibilidade de “criar fichas diferentes”. Assim, a partir do contato com a realidade local, a definição dos temas e dos projetos pedagógicos vai se materializando. Neste sentido, ela observa que:

Então, quando a gente trabalhou a 1ª ficha pedagógica, que a gente começou a ter esse contato maior com a comunidade, (…) a partir dos próprios problemas que existem na comunidade é que a gente vai trabalhando as futuras fichas. A gente tem sempre esse olhar. A gente quer melhorar aquilo que, de certa forma, não está indo bem na comunidade.

Entre os temas trabalhados foi ressaltado, com especial relevância, o de “Plantas: conservando hoje para garantir o amanhã”. Surgiu a partir da necessidade sentida pelos coordenadores e professores da educação do campo para trabalhar a problemática ambiental, problema que vem inquietando a sociedade local e a sociedade global. Percebe-se uma forte iniciativa e autonomia dos profissionais da educação e, ao mesmo tempo, uma preocupação com temas importantes para melhorar a qualidade de vida da comunidade e do planeta, ou seja, tratar a educação

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do campo a partir da realidade ambiental significa se inserir na problemática local e global. É o que revela o depoimento da vice-coordenadora de Educação do Campo:

No primeiro encontro que tivemos no mês de março as duas coordenadoras de Educação do campo, com todos os professores que fazem essa modalidade de ensino, nos reunimos e vimos a necessidade atual para se estar trabalhando. E, assim, a gente viu que, por conta de toda a mídia, o dia todo, todos os dias estar jogando… é os documentos da ONU (…), que ela fala muito sobre a situação do planeta (…). Houve o primeiro, onde foi (…) um alarme muito grande (…). Daqui a cinquenta anos poderá deixar de existir peixes. Aí depois veio o segundo, onde era também jogada a situação dos outros seres vivos do planeta, extinção de diversos animais; a situação calamitosa que pode ficar o planeta Terra se o homem, agora, não preservar de verdade. Então, com base em todas essas questões atuais que a mídia está jogando todos os dias, foi que os professores, junto com as coordenadoras, decidimos (…) estar trabalhando as plantas, porque depois que falaram que a Amazônia brasileira corre o risco de num futuro breve ela virar uma savana, (…) foi que se despertou para a importância das plantas, em estar ajudando o planeta Terra neste momento. Então daí surgiu a ideia de professores e coordenadores estar[em] construindo a ficha pedagógica, composta de 12 perguntas, onde cada pergunta está direcionada à influência da planta, a importância da planta para a comunidade, o olhar da comunidade para esta importância, a leitura que a comunidade faz das plantas (Vice-coordenadora da educação do campo de Lagoa do Itaenga).

Então vamos trabalhar quem? Vamos trabalhar a criança… a criança que, na medida que ela cresce, se trabalhando ela hoje, ela já cresce com outro olhar, de não ver na natureza apenas o lucro que a natureza pode oferecer com os seus recursos, mas assim poder explorá-lo de forma responsável. Então, assim, vamos trabalhar com as plantas para que a gente faça a nossa parte hoje e que, amanhã, essas crianças que estão crescendo

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sejam cidadãos mais responsáveis com o meio ambiente em geral.

Em uma conjuntura permeada por questões ambientais preocupantes, verifica-se a importância de se adotar essa questão como um tema sugerido por gestores e professores do município de Lagoa do Itaenga. Inserida nessa mesma perspectiva de inovação das práticas no município encontra-se o depoimento da ex-Secretária de Lagoa do Itaenga, mostrando que é importante mudar os temas, mas, além dos temas é fundamental mudar também as estratégias:

… não só os temas, porque os temas são escolhidos de acordo com as necessidades que as comunidades apresentam, mas eu digo, assim, a forma como vem sendo feito: sempre pesquisa, sempre devolução. Vamos modificar isso aí? De que forma podemos modificar isso aí, utilizando outras estratégias? Na realidade eu acho que é mudança de estratégias que a gente precisa fazer agora para 2006, para não se tornar cansativo e, assim, muita mesmice.

Percebe-se que iniciativas são criadas e práticas são construídas no município por gestores e professores, no sentido da melhoria da qualidade de vida dos alunos e de suas famílias. O desenvolvimento dessa proposta de educação do campo, segundo a entrevista com a Diretora de Gestão Educacional, tem possibilitado avanços da gestão municipal, na medida em que, ao favorecer, através da pesquisa, um maior conhecimento da realidade local, são identificadas algumas necessidades da comunidade: “trouxe uma nova consciência de tudo, uma nova visão, na perspectiva de atender às reais necessidades da comunidade”.

Entre os Projetos considerados relevantes na Educação do Campo no município, destaca-se o Projeto da Biblioteca Itinerante. Esse projeto está relacionado com o “Projeto Trabalhando a Cultura e Formando Leitores” para as escolas do campo, o qual propõe entre seus objetivos “despertar no aluno o prazer pela leitura”, “ampliar a visão de mundo e inserir o leitor na cultura letrada” e “permitir o desenvolvimento da autonomia do aluno”, segundo entrevista com a Secretária de Educação municipal.

Como estratégias metodológicas, o Projeto da Biblioteca Itinerante sugere a dinamização do espaço da sala de aula, visando torná-lo um espaço agradável, com:

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arrumação da estante de livros; cantinho da leitura e espaço para colocar todas as atividades produzidas pelos alunos e alunas; a caixa de leitura com diferentes tipos de textos e outras produções selecionadas pelos alunos (músicas, receitas, anúncios, poesias, adivinhações, versos rimados, paródias, acrósticos, literatura de cordel, reportagens etc.); apresentação de cartazes; confecção de casinha para apresentação de histórias (mamulengo): confecção de uma televisão para dinamizar a história e biblioteca móvel3 .

O Projeto da Biblioteca Itinerante é considerado, pelos gestores, como uma conquista importante para o município. O poder de organização dos gestores educacionais quanto à contribuição para o avanço da educação do campo é ressaltado pela Diretora de Ensino:

(...) e assim (…) mais uma conquista nossa foi esse projeto para o CIP – Conjunto integrado dos Projetos. Então, o município da gente faz parte e a gente assim lutou muito. Aí veja só, foi assim eles já haviam discutido junto com os municípios (…) e a gente… de repente nós sentamos nossa equipe e dissemos: não a gente já tem uma certa estrutura, precisamos querer algo mais, e fomos lá buscamos com o SERTA; foi assim, houve uma certa resistência. O projeto tinha algumas ações voltadas para formação, oficinas e nós lutamos pelo Projeto da biblioteca itinerante. O nome do Projeto é Formando Leitores, e foi uma conquista hoje que a gente, juntamente com o SERTA, que realmente nos dá muito apoio também, e a gente até agradece muito a compreensão. A gente batalhou para querer, porque a gente queria alguma coisa que chamasse mais atenção no campo, porque a gente sabe a formação [que] já está tendo. E a gente queria algo que levasse aqueles alunos. Até a Secretária disse alguma coisa muito importante: é como se fosse um circo quando chega, o circo da alegria. Então, a leitura da alegria. Então a gente vai batalhar e, breve, se Deus quiser, a gente já está com esse projeto aí funcionando. Eu acho que vai beneficiar e muito os alunos. A gente vai ganhar o acervo,

3 Fonte: Projeto pedagógico: Trabalhando a Cultura e Formando Leitores, Secretaria de Educação de Lagoa do Itaenga, abril de 2006.

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o carro, o mobiliário. Aí a ideia é dar continuidade, e como é móvel, a gente vai fazer um cronograma de atividades de tal dia em tal escola embaixo de uma árvore; aí a gente tem as mesinhas, no projeto já tem a compra de mesas desmontáveis, que possa montar no pátio numa época sem chuva e ali fazer toda a apresentação, trabalhar com teatro (…). Então, a gente está com mil ideias. (…) eu acho que isso a gente vê de uma forma muito prazerosa, com muito orgulho, porque a gente vem crescendo. Não queremos dizer que somos os melhores, mas eu acho que a gente faz um pouquinho a diferença (…).

No caso da pesquisa sobre o tema da água, os alunos fizeram todo o levantamento, procurando indagar sobre: para que essa água servia; por que devemos tomar água potável; e a situação das águas que ficam contaminadas. E, a partir daí, eles descobriram a falta de filtro na maioria das casas e que a água para beber não era de boa qualidade. Segundo a ex-Secretária de Educação de Lagoa do Itaenga, isso possibilitou que as pessoas fossem buscar os seus direitos para adquirir uma água de boa qualidade. Assim, conseguiram que a Prefeitura e a Secretaria interviessem para atender à comunidade.

Nesta mesma direção, se expressa a Coordenadora de Educação do Campo, indicando como esse processo de construção da educação do campo, a partir da pesquisa, do conhecimento da realidade local, pode levar a uma intervenção dos pais na comunidade, inclusive com a busca de parcerias com outras Secretarias, como Saúde e Agricultura. Isso tem possibilitado maior acesso a informações por parte da população, visando melhorar as questões problemáticas, como as relativas à saúde, à agricultura, à infra-estrutura, ao meio ambiente e outras.

A partir de parcerias com pais, moradores da comunidade e outras secretarias, a Secretaria de Educação vai possibilitando o acesso da comunidade às ações governamentais, tais como filtros para as comunidades, a construção de hortas nas casas, em uma parceria com a Secretaria de Agricultura do município, e a revitalização do Rio Capibaribe. Essas ações contaram também com a participação dos Agentes de Desenvolvimento Local (ADL)4 :

Nós trabalhamos uma ficha pedagógica sobre a água, que a gente fez um trabalho muito importante, pois, além de a gente trabalhar a pesquisa, a gente detectou alguns problemas

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e, dentro desses problemas, a gente procurou solucionar. Por exemplo: muitas pessoas não tinham nenhuma forma de tratamento com a água; aí a Secretaria fez parceria e conseguiu doar filtros para essas comunidades. Trabalhamos uma ficha sobre cultura: Resgatando a cultura e vivendo a história, que já foi agora vista na coordenação. E a gente fez esse resgate histórico da comunidade. (…) pedimos aos alunos que confeccionassem desenhos depois que eles descobriram a história da comunidade. E, depois que eles descobriram a história, criaram esses desenhos e a gente conseguiu construir telas resgatando a história da comunidade. (…) fica um registro vivo, não é? Trabalhamos a qualidade de vida do homem do campo. Dentro da qualidade de vida do homem do campo, a gente tentou fazer um trabalho mais sistemático com relação às hortas, onde a gente conseguiu parcerias com a Secretaria de Agricultura, com os ADLs, que eu já tinha dito, Agentes de Desenvolvimento Local, e, também, com os próprios pais que a gente está construindo hortas na casa daquelas pessoas da comunidade. A Secretaria de Agricultura forneceu sementes pra gente começar esse trabalho, e que, realmente, é muito rico (…). É algo que a gente planta dentro da escola. A gente constroi dentro da escola, mas, à medida que a gente faz na escola, a gente tem um olhar voltado para a comunidade em geral. E, agora, a gente está trabalhando, começamos (…) (estamos na semana de pesquisa) fazendo um trabalho voltado para as plantas (…). A gente percebeu que, por exemplo, lá na comunidade tem um Rio que passa (…) – o Rio Capibaribe – e a gente sentiu a necessidade [de revitalizar], começando realmente do nada, a questão da mata ciliar, a questão da arborização das nossas comunidades, de frutas que deixaram

4 Os agentes de desenvolvimento local-ADL são jovens formados pela Organização Não Governamental- Serviço de Tecnologias Alternativas (SERTA), através de um curso de Agente de Desenvolvimento Local, criado a partir do Projeto Aliança com o Adolescente, com o objetivo de formar jovens para interagir com o seu meio, seu espaço de vida, de estudo e de trabalho no sentido de contribuir com as mudanças e o desenvolvimento sustentável (Documento: Um olhar sobre a microrregião da Bacia do Goitá- Pernambuco: uma experiência da capacitação e mobilização social para o desenvolvimento sustentável do campo- SERTA, 2005).

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de existir (Coordenadora de Educação do Campo de Lagoa do Itaenga).

É importante considerar que a articulação institucional na gestão das políticas públicas se constitui como um grande desafio para a gestão local da educação, pois requer que se mudem os modos de pilotagem e de regulação do sistema educativo através de um sistema de alianças entre os principais pólos de influência local da escola: o Estado, os professores e os pais dos alunos, saindo de um sistema de alianças bipolares do Estado e professores contra os pais, do Estado e pais contra os professores e de professores e pais contra o Estado. Assim, na medida em que em Lagoa do Itaenga está sendo construída uma articulação da escola, através dos seus professores e alunos, com os pais e a comunidade, começa a ser gestado um novo formato institucional. Dessa forma, é que se pode “trazer à escola pública o seu sentido cívico e comunitário original, no quadro da democratização do Estado e da sociedade e no exercício da cidadania” (BARROSO, 2002, p.175).

A pesquisa, segundo uma formadora, contribui também para levar os pais e a comunidade a refletirem e a se mobilizarem em relação aos problemas locais, “ela traz essa provocação” para que haja uma participação dos cidadãos na vida pública. Essa provocação ocorre em cima de uma “motivação social concreta”:

Está lá, está visto que o lixo está na rua, o lixo está no rio, todo mundo vê, mas é como se não enxergasse. Vê, mas não enxerga, não é? E com a pesquisa, com o trabalho de pesquisa, provoca essa reflexão: (…) o que é que eu estou fazendo pra mudar essa realidade? (…) E aí, quando os meninos começam a trabalhar, a desenvolver, a produzir conhecimento a partir desses resultados, que eles começam a se enxergar, a enxergar o ambiente onde eles estão convivendo e veem que existe o lixo, que o lixo não é só em São Paulo, que inundou as canaletas e que (…) inundou as cidades. Que o lixo está ali perto dele e que, por acaso, se houver uma grande chuva, também vai acontecer com ele isso, porque o lixo está ali, a doença está ali, está bem próximo, não é uma coisa distante. Então ele começa a ver que é um problema que é dele também, que ele precisa estar resolvendo, estar buscando alternativa de solução, e (…) buscando uma forma de estar alertando outras pessoas para

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que elas também possam mudar de postura.

Percebe-se que há uma extensão da função educativa da escola para os pais e comunidade, implicando o envolvimento deles com ações com as quais não estão “costumeiramente comprometidos”. Segundo Paro (2005, p.68), torna-se muito importante esse envolvimento dos pais e da comunidade com a escola, mas através de uma “função educativa não doutrinária” no que se refere às questões da realidade local, tendo em vista que:

(…) além de terem melhores condições de influir nas tomadas de decisão a respeito das ações e objetivos da escola, eles estarão investindo na melhoria da qualidade da educação de seus filhos, bem como na melhoria de sua própria qualidade de vida, na medida em que esses adultos estarão mais capazes, intelectualmente, de usufruir melhor de bens culturais a que têm direito e que antes não estavam a seu alcance.

Em um segundo momento do desenvolvimento da Proposta de Educação do Campo, os dados da pesquisa são transformados em conteúdo. Esta etapa trata de “analisar, desenvolver, desdobrar os dados e elevar o conhecimento trazido pelas pesquisas para outro patamar”. O educador sistematiza, enriquece e desdobra conteúdos curriculares de matemática, português, ciências, história, geografia, cultura e arte. Dependendo do assunto pesquisado pelo aluno, “o professor busca ampliar mais os conteúdos, porém sempre de forma interdisciplinar”. Nesse processo de análise e aprofundamento, o educador faz uso de novas pesquisas. Percebe-se, assim, a articulação entre as etapas, não havendo uma sequência linear e estanque, como nesse caso, em que a pesquisa também pode ser feita nesta etapa de desdobramento.

Em Lagoa do Itaenga, segundo uma professora entrevistada, o desdobramento é realizado com a participação dos professores e alunos. Os conteúdos sistematizados vão subsidiar o planejamento do professor em relação às atividades a serem vivenciadas em sala de aula, demonstrando, assim, a construção desse processo de forma coletiva, incentivando a participação da comunidade na escola e dos alunos na produção de textos. Observemos a sua fala:

Os alunos participam na sistematização. Quando a gente

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sistematiza esses dados, cada professor sistematiza o seu e a gente junta em um único dado, e cada professor fica com uma ficha desse único dado sistematizado. E aí a gente se reúne, só os professores, agora os cinco (5) professores, e transforma os dados em conteúdos para cada série. Então, depois que a gente transforma os dados em conteúdo para cada série, aí a gente vai fazer novo planejamento. Se cada professor tem uma ficha dessas com os dados, aí a gente vai sistematizar em conteúdos. Quando a gente sistematiza em conteúdos, cada professor vai preparar seu planejamento diário, que é um caderno que a gente tem de acompanhamento, mas que a gente planeja em conjunto, porque um ajuda ao outro. Vai transformando pergunta por pergunta para que essa ficha seja trabalhada de uma maneira bem trabalhada (…)na comunidade, que toda comunidade esteja se envolvendo naquele resultado, de uma maneira mais eficaz. Quando a gente termina de desdobrar, aí a gente vai fazer uma atividade em cima daquele desdobramento. Então essa atividade pode ser qualquer uma dessas (…): os textos rimados, versos rimados, produção de texto, paródias, confecção de livro, de pequenos livros, textos ilustrados de pequenos livros, mas feitos por eles. Aquele ali é de alfabetização e é todo ilustrado.

O desdobramento se constitui em um “processo de aprendizagem muito grande” e muitas experiências são socializadas nesse momento, segundo relatos de gestores e professores entrevistados. É a etapa em que ocorre “a construção do currículo, das atividades pedagógicas em sala de aula, e alguns pais participam desses desdobramentos”, expressa uma professora da Escola Nosso Orgulho.

Para uma formadora, o desdobramento é a construção efetiva do conhecimento, porque é um momento que exige mais reflexão, embora considere que a construção do conhecimento passa por todas as etapas:

Porque [é] nesse momento que a gente foca na reflexão do que se está fazendo, do que se está buscando (…). Então, nesse momento, são as horas das produções (…). É a hora de estar buscando mais, outros elementos, buscando quais os livros

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didáticos, em que podem ajudar, o vizinho da escola, em que pode ajudar, o pai de aluno, em que pode ajudar. É o momento, realmente, de construção de conhecimento, é no desdobramento. É conhecimento construído, provocações feitas, que a gente sabe que tudo instiga a outras coisas (…). Todo conhecimento instiga a mais conhecimento, a provocações, a intervenções.

Percebe-se uma preocupação em cotejar o conhecimento do senso comum, trazido a partir da etapa da pesquisa, com o conhecimento incorporado aos livros didáticos. Nesta direção vem o depoimento de uma professora da Escola Ser Feliz, sobre como articular o conhecimento da realidade do aluno com os conteúdos curriculares. A professora coloca que a escola trata o conhecimento a partir da realidade do aluno, mas valoriza e busca o conhecimento curricular, como uma forma de preparar o aluno para o vestibular e para ingressar no mercado de trabalho:

Porque a criança não pode ficar sem ter conteúdos, porque ela vai precisar para os vestibulares da vida, os concursos de vida, não é? Só a partir do conhecimento que a criança está inserida; é partir do mundo dela e levá-la a essa visão holística e uma visão do mundo, porque não se fica só naquela sistematização da PEADS, se pergunta o que ele sabe e o que não sabe, mas também tem que inserir conteúdos através desse conhecimento.

Quando as diferentes formas de conhecimento se encontram numa mesma iniciativa, podem proporcionar momentos de conflitos ou de diálogos que, dependendo do caminho adotado, podem resultar no aprofundamento das desigualdades entre os conhecimentos ou, então, no estabelecimento de relações complementares, culminando em processos de enriquecimento mútuo. Abrir espaços para a interação entre diferentes formas de conhecimentos, de modo a pensar de modo mais amplo a questão da educação do campo, constitui-se em um exercício de democracia e fé. Democracia pela possibilidade de utilizar um conhecimento que seja resultante do diálogo entre vários saberes, e fé pela crença de que este diálogo é possível sem hierarquias.

Para Santos (2006, p.154-155; 2007, p.32-33), o confronto de conhecimentos trata-se de uma “ecologia de saberes”, que é o novo diálogo de conhecimentos com o estabelecimento de uma nova epistemologia do saber, que valorize o apanhado

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de outras culturas, como as camponesas, indígenas, o saber popular, o saber das populações urbanas marginais etc. Para isso, destaca: “o que vamos fazer é um uso contra-hegemônico da ciência hegemônica, ou seja, a possibilidade de que a ciência entre não como monocultura mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes”. No caso de Lagoa do Itaenga, ao articular o conhecimento da realidade local com os conhecimentos curriculares, se aproxima do que reflete Santos (2006, p. 33), em relação ao que se deve levar em consideração quando se articulam saberes: “conhecer o que determinado conhecimento produz na realidade, a intervenção no real, a concepção pragmática do saber, porque é importante saber qual é o tipo de intervenção que o saber produz”.

Os conhecimentos, uma vez desdobrados, aprofundados e analisados, serão sintetizados para serem apresentados, em reunião, às famílias e à comunidade de modo geral. Os educandos e os educadores vão dar uma satisfação, fazer uma prestação de contas do que foram capazes de construir com as informações iniciais que colheram e vão provocar as pessoas com o novo conhecimento adquirido, visando desencadear ações. De acordo com o documento sobre os Princípios e Fundamentos da Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável PEADS (2003, p.116), essa etapa se propõe a: “transformar em ação o conhecimento construído, intervir na comunidade a partir do conhecimento novo, devolver o conhecimento produzido para quem ajudou a gerá-lo”. É o momento de provocar uma ação, uma mudança, pois a escola tem um papel político/pedagógico (BAPTISTA, 2003, p. 48).

A devolução é um momento em que professores e alunos, após um trabalho coletivo, criam um produto, e esse produto é apresentado pelos alunos aos pais e à comunidade, em que fica evidenciado o que conseguiram descobrir, construir e aprender. Para isso são utilizados recursos didático-pedagógicos, como: poesias, paródias, teatros, mamulengo, apresentações animadas, exposição de fotos, desenhos, jogos pedagógicos, gráficos, textos, júri simulado etc. Os tipos de recursos didático-pedagógicos e as dinâmicas são escolhidos de acordo com os temas trabalhados no Projeto Pedagógico do período letivo. É uma forma de reconstruir o conhecimento, de apropriar-se, e também “uma forma prazerosa” de tratar esse conhecimento (documento sobre os Princípios e Fundamentos da Proposta (MOURA, 2003, p. 117). Segundo Paro (2005, p. 65), tornar o ensino prazeroso “é uma condição fundamental para despertar o interesse do educando. Se a escola precisa ser competente, deve também levar em conta a necessidade de que seus alunos sejam seduzidos pelo desejo de aprender”.

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A avaliação é a quarta etapa da metodologia da educação do campo utilizada em Lagoa do Itaenga. Como não foi possível realizar uma observação dessa etapa, as apreensões aqui sistematizadas são fruto das entrevistas realizadas e leituras de documentos. Segundo esses instrumentos, é uma etapa em que são avaliados os processos, os conteúdos construídos e assimilados, as habilidades desenvolvidas/ou exercitadas (participação, interesse, solidariedade, respeito etc), os sujeitos que participaram do processo e os resultados alcançados. Cada ator avalia o seu envolvimento e aprendizado e também avalia os demais. O educando avalia a sua participação, a das famílias e a do educador; o educador, a mesma coisa, e as famílias também. Para uma professora de Lagoa do Itaenga, da Escola Ser Feliz, “a avaliação não é uma etapa estanque, e ocorre nas outras etapas também. Ela vem acontecendo de forma contínua. São utilizados encontros, diálogos e reuniões para serem discutidas as questões e “procedidos os encaminhamentos no sentido de melhorar a comunidade”.

Na entrevista com uma professora da Escola Ser Feliz, ela expressa como vem sendo realizada a avaliação:

A avaliação é contínua. A gente avalia todo o processo. É processual porque a gente avalia toda a questão. E um fato mais interessante é que a avaliação (…) não se dá somente no aluno. (…) é uma avaliação constante que se dá com todo mundo e em todos os processos. A gente avalia o aluno, avalia o pai, avalia o professor e avalia também a comunidade. Então, o aluno não recebe uma nota só pelo que ele sabe, isso não. Ele vai ter uma avaliação contínua, processual, com todos que participam do momento: comunidade, alunos, professor e pais.

Conclusão

A garantia do acesso e da permanência das crianças nas escolas do campo aponta para que a educação do campo seja tratada como direito a uma escola pública de qualidade. Assim sendo, impõe-se o desafio de superar a dicotomia entre quantidade e qualidade, ou seja: a ampliação do acesso é importante, mas é fundamental assegurar a permanência na escola, como ponto de partida. Em Lagoa do Itaenga, nas escolas rurais, esse processo de democratização vem ocorrendo, na medida em que se dá a ampliação do acesso e está sendo garantida a permanência

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dos alunos. Esse processo tem sido motivado pela ampliação do contingente de alunos no ensino fundamental com a implantação da política do FUNDEF nos municípios, de um lado; e, de outro, principalmente, na área rural de Lagoa do Itaenga, com a implantação de uma metodologia que provocou um movimento da escola e da comunidade na construção de uma educação do campo com mais qualidade.

No município são disponibilizadas vagas para todas as crianças que querem estudar, segundo informam os gestores. Na entrevista com uma professora da Escola Ser Feliz, é confirmado o depoimento dos gestores: “A escola tem livre acesso. Não tem nenhum aluno que deixou de estudar por falta de vaga. A hora que chegar, tem”. Sobre essa questão do acesso à escola, um pai de aluno, ao ser entrevistado, faz uma comparação, mostrando que, enquanto hoje todos os alunos que procuram a escola encontram vagas, antigamente havia um número limitado de vagas, as quais eram logo preenchidas, o que impossibilitava o estudo para as demais crianças que estavam fora da escola. Esse contingente “tinha que esperar o ano seguinte” para disputar uma vaga na escola.

De acordo com a Secretária de Educação de Lagoa do Itaenga, está havendo um retorno à escola, tanto dos pais de alunos que tinham deixado de estudar como de pessoas analfabetas para o Programa EJA. Essa retomada dos estudos ocorreu pelo fato de, na primeira etapa da metodologia da PEADS – a pesquisa com a comunidade –, serem identificadas pessoas nessa situação. Ao lado disso, o trabalho estimulou os próprios pais a procurarem estudar, na medida em que se promoveu um maior envolvimento da família com a escola e se mostrou a necessidade de acompanharem as atividades dos filhos nas tarefas escolares.

Os indicadores educacionais relativos ao município vêm apresentando resultados significativos, tais com as taxas de reprovação e abandono escolar no Ensino Fundamental –1ª a 4ª séries – na zona rural, que, segundo dados do MEC/INEP-Censo Escolar, vêm decrescendo, passando de um patamar de 20,4% e de 5,2%, em 1991, para 16,9% e 1,2%, em 2006, respectivamente, identificando, assim, que a evasão escolar na área rural praticamente não existe em Lagoa do Itaenga. Ao se verificar essas taxas em 2006, no Ensino Fundamental de 1ª a 4ª série na zona urbana do município, percebe-se que são mais elevadas do que na Zona Rural: a taxa de reprovação é de 19,5% e a de abandono escolar é de 4,8%. Em entrevista realizada com o Presidente do Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente de Lagoa do Itaenga, ele coloca que a evasão escolar na zona rural é diferenciada da zona urbana porque “o aluno tem um ensino ‘sem decoreba’; o

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processo educativo ocorre em outros espaços da escola, além da sala de aula, com a participação do aluno e este tem prazer de ir para a escola do campo”.

Nesta mesma direção, percebe-se o relato da Coordenadora da Educação do Campo, falando sobre a apreensão de alunos de 5ª a 8ª série da zona urbana que estudaram da 1ª à 4ª série na zona rural:

(…) um grupo de ex-alunos de 5ª a 8ª séries (…) se colocavam realmente de uma forma que nos deixava emocionada. E o aluno falava que na zona urbana ele sentia uma diferença muito grande, porque o professor não estimulava da mesma forma que os professores da zona rural estimulavam. A questão de atividades, por exemplo, ela colocava que era muito chato o professor da 5ª série estar lá escrevendo e o aluno só copiando. Não pergunta o que é que a gente acha (isso a menina falando lá no Campo da sementeira em um Encontro de ex-alunos), não faz pesquisa, não conhece a nossa realidade, só manda a gente escrever e pronto. Então, a gente percebe até nos dizeres dos próprios alunos (…) a questão da diferenciação.

Inseridos no conjunto de indicadores que demonstram a melhoria da qualidade da educação em Lagoa do Itaenga, encontram-se os referentes à formação de professores, que, segundo o Censo Escolar de 2005, apontou que todos os professores da Zona Rural têm formação pedagógica. Dos 38 Professores da Zona Rural, 33 têm magistério completo, mas, desses, segundo entrevista da Diretora de Ensino, 90% estão concluindo licenciatura em áreas como pedagogia, história, letras, geografia, matemática, e seis já têm o curso de licenciatura concluído. Percebe-se, assim, que o município está bem próximo do que estabelece o Artigo 62 da LDB nº 9394/96:

A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação admitida como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal.

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A importância da escola do campo para a comunidade fez com que pais e alunos reivindicassem, em três (3) devoluções, a implantação da 5ª série. Já era uma meta da Secretaria de Educação e se tornou uma exigência da comunidade, a qual começou a ter “um olhar mais crítico, e, com a parceria, foi fortalecido o desejo”, expressa a Coordenadora de Educação do Campo.

O incentivo à permanência na escola também tem ocorrido porque a Proposta de Educação do Campo vem possibilitando o reconhecimento da diferença, conforme destaca uma professora da Escola Ser Feliz, ao expressar que “a educação do campo deve ser uma educação diferenciada, porque zona rural e zona urbana têm as suas diferenças” .

A fala da professora, ao colocar a importância do reconhecimento da educação do campo como uma educação específica, diferenciada da escola urbana, como sendo uma forma de valorização dos povos do campo, encontra respaldo em Santos (2007, p. 62-63), sobre “o reconhecimento da diferença”. Porém o teórico ressalta que esse reconhecimento da diferença precisa vir ao lado do “respeito à igualdade”, como sendo fundamental para a construção da “democracia participativa”. E faz uma crítica às teorias da modernidade pelo fato de se orientarem apenas pelo princípio da igualdade e não pelo princípio do reconhecimento da diferença, e afirma: “é preciso tentar uma construção teórica em que as duas estejam presentes, e saber que uma luta pela igualdade tem de ser uma luta pelo reconhecimento da diferença, porque o importante não é a homogeneização, mas as diferenças iguais.”

A escola do campo também é considerada como um espaço muito importante para os alunos, o que é demonstrado através de uma forte relação de pertencimento, da relação afetiva com os professores, pelas produções realizadas, pela pesquisa junto à comunidade, na valorização da natureza, na aprendizagem realizada, na relação com a horta, e como forma de ascensão social, conforme foi extraído de relatos escritos de alunos da Escola Ser Feliz.

A Escola Nosso Orgulho é também um espaço do qual os alunos gostam muito. Em entrevista realizada com a mãe de uma aluna da 2ª série, ela comparou a escola com outra do município de Feira Nova, onde a filha havia estudado, e declarou que na Escola Nosso Orgulho “a filha aprendeu do bom e do melhor”. Para ela, a filha gosta tanto da escola que sempre quer frequentá-la no horário alternativo ao das suas aulas, inclusive até quando está doente.

Depoimentos escritos por alunos da Escola Nosso Orgulho demonstram como a Escola é importante para eles, pelo aprendizado que ela proporciona, pelas produções, pelo envolvimento com pesquisas, pelo desenvolvimento do gosto pelo

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estudo e a possibilidade de ter uma profissão, pela transformação das pessoas, por se tornarem pessoas mais participativas, pelo ambiente de carinho e amor que proporciona, pelos valores cívicos, pela didática das professoras.

Com este estudo, foi possível aprender que a educação do campo de Lagoa do Itaenga vem preparando os alunos e suas famílias para terem uma melhor qualidade de vida, ao trabalhar o Projeto Pedagógico sobre as Plantas. A partir deste Projeto, os gestores e professores da educação do campo trabalham a educação na perspectiva de a escola contribuir para o desenvolvimento sustentável da população, mediante a introdução de temas sobre a questão ambiental e, consequentemente, para a melhoria da qualidade de vida da comunidade.

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EDUCAÇÃO DO CAMPO na UFMG: do sonho aos desafios

Antônia Vitória Soares Aranha1

“Salete Stronzaq, estamos com você Para ocupar de frente o latifúndio do saber: a UFMG!” 2

Introdução

Este artigo resulta de uma pesquisa exploratória sobre a experiência de formação docente no âmbito da Educação do Campo. É um balanço, ainda inconcluso, de uma grande experiência que se iniciou em 2004 na Faculdade de Educação da Universidade de Minas Gerais - UFMG. Trata-se do curso de Pedagogia da Terra, em parceria com o INCRA, demandado por movimentos sociais, tais como o MST e a Via Campesina.

A 1ª Turma de Licenciatura em Educação do Campo – Pedagogia da Terra – é formada por homens e mulheres militantes de Movimentos da Via Campesina de Minas Gerais (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Movimento de Mulheres Camponesas – MMC, Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas – CAA, Comissão Pastoral da Terra – CPT, Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA e Cáritas) (TURMA VANESSA DOS SANTOS, 2009, p. 163).

Na época da sua implantação, a autora era Vice-diretora da FAE-UFMG e integrou-se, ativamente, nas articulações internas e externas à Unidade para a realização desse curso.

Foram inúmeras reuniões, incontáveis idas aos órgãos superiores e de registro acadêmico até que o mesmo pode se iniciar em 2005. Em fevereiro de 2010, a

1 Professora Associada da Faculdade de Educação da UFMG e membro da equipe da Educação do Campo2 Palavra de ordem dos alunos ao iniciarem o curso em novembro de 2005

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turma vai se formar. Atualmente, a Faculdade de Educação conta não apenas com cursos de

graduação voltados para os povos do campo, mas inicia também cursos de especialização como a Pedagogia da Alternância, participa de projetos de formação docente como a Escola Ativa, já formou e tem formado um número cada vez mais de mestres e doutores envolvidos com a temática. Enfim, a FAE-UFMG conta hoje com um Programa de Educação do Campo, que viceja, dá frutos e tende a se expandir cada vez mais.

Para se ter uma ideia do vigor dessa discussão no âmbito da FAE-UFMG, apresentamos um quadro, mostrando a evolução de teses e dissertações defendidas com a temática na Instituição:

Ano Dissertações Teses

Até 2004 0 2 (obs.: defendidas por professores da FAE)

2004 – 2006 2 1

2006 – 2009 7 3

O número é sempre crescente e envolve praticamente todas as linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Educação.

O direito à educação dos povos do campo

Muito já tem sido dito e registrado sobre a Educação do Campo, portanto, é desnecessário reproduzir neste texto esse debate. Mas, interessa aqui, resgatar as dimensões de como essa discussão processou-se no interior da UFMG.

Ao iniciarmos a experiência, foi necessário enfrentar alguns debates. Duas questões, em especial, se colocavam:

1. A necessidade da reforma agrária, em contraposição ao modelo hegemônico de agronegócio.

2. O direito a uma educação diferenciada dos povos do campo. A discussão relativa ao primeiro ponto não se circunscreve apenas ao campo

da educação. Trata-se de um debate econômico, político e social da atualidade, com um apoio significativo da mídia ao agronegócio. Portanto, em determinadas circunstâncias, é um debate em condições desiguais pois os movimentos sociais dos povos do campo não só não tem acesso aos meios de comunicação na mesma dimensão dos seus opositores como, com regularidade, são criminalizados pela

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mídia.

No projeto político, social e econômico do agronegócio, encontram-se as grandes monoculturas, as grandes extensões de terra, o uso intensivo da tecnologia e do agrotóxico, os transgênicos, as culturas para exportação, a concentração de terra, o trabalho assalariado e o desemprego e o desrespeito ao meio ambiente. (...) Por outro lado, no projeto camponês, trabalhadores lutam por terra, produzem alimentos diversificados para o consumo interno e vivem, muitas vezes, um mundo de carências. São considerados pelos defensores do agronegócio como ineficientes para os padrões de produção capitalista (MENEZES NETO, 2009, p. 25).

Portanto, posicionar favoráveis ao direito dos povos do campo de acesso à terra e considerar a reforma agrária, a agricultura familiar, as pequenas cooperativas agrícolas como necessárias ao desenvolvimento econômico e não como algo anacrônico, foi uma primeira necessidade da equipe responsável pela implantação do projeto.

A segunda questão posta já vinha sendo trabalhada em diversas instituições e órgãos governamentais.

Neste momento em que antagônicos projetos políticos lutam pela hegemonia no campo, a educação também está em disputa. Para que essa não seja submetida e subjugada aos interesses da reprodução ideológica e material do capital, torna-se de fundamental importância a disputa contra-hegemônica e a construção de novas discussões educativas na educação do campo (MENEZES NETO, 2009, p. 36).

Caldart (2004), aponta o avanço dentro do próprio MST, um dos pólos mais dinâmicos dos movimentos sociais do campo, quanto à questão da educação. Ela afirma que, desde 1999 o Movimento foi amadurecendo as suas reivindicações educacionais e a sua relação com a Escola. Inicialmente, o MST mobilizava-se pelo direito à Escola e “pela possibilidade de uma escola que fizesse diferença ou tivesse realmente sentido em sua vida presente e futura (preocupação com os

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filhos)” (idem, p. 224). A seguir, o próprio Movimento toma para si a tarefa de “organizar e articular

por dentro de sua organicidade essa mobilização, produzir uma proposta pedagógica específica para as escolas conquistadas e formar educadoras e educadores capazes de trabalhar nessa perspectiva” (idem, p. 225). E, por fim, o MST incorporou a escola em sua dinâmica e, assim, a escola “passou a ser vista como uma questão também política, quer dizer, como parte da estratégia de luta pela Reforma Agrária, vinculada às preocupações gerais do Movimento com a formação de seus sujeitos.” (idem, p. 226).

Caldart (idem) afirma ainda que o MST tem auxiliado, decisivamente, numa das discussões mais importantes da história da educação, contribuindo para o que chama de pedagogia da práxis.

Assumindo-se como herdeiro dos aprendizados políticos e organizativos de outros movimentos em diferentes tempos e lugares da história, o MST, desde o início, acreditou que seria possível formar seus próprios intelectuais (dirigentes e formadores) e também aproximar organicamente alguns intelectuais de ofício de modo que pudessem ajudar nessa formação interna (idem, p. 312).

Gonsaga (2009, p. 80), corroborando com a perspectiva de Caldart, chama a atenção para a necessidade da formação dos intelectuais orgânicos, nos processos educativos – escolares ou não, do MST: “Esta concepção do curso, relacionada à formação do educador enquanto intelectual orgânico está amparada nos pressupostos de Gramsci, autor deste conceito. Segundo ele, a função deste intelectual seria a de difundir no grupo ao qual pertence uma determinada concepção ideológica.”

Tal perspectiva do MST e de outros movimentos do campo como o Sindical, a CPT, as Escolas Famílias Agrícolas entre outros contava e conta cada vez mais com adeptos dentro e fora da Academia. E, com a convicção de que os povos do campo, os movimentos sociais camponeses têm direito a uma educação diferenciada, a equipe da FAE-UFMG iniciou, então, os procedimentos para a implantação do primeiro curso, o Pedagogia da Terra.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 147

Construção da Pedagogia da Terra, do Le Campo e do Le Campo Reuni

Nosso tempo é de urgências. Urge o tempo da luta de todos pela dignidade roubada de cada um de nós. Mas a sabedoria camponesa nos ensina que esta luta urgente é uma luta de resistência e persistência. É preciso trabalhar pensando na próxima safra, preservando com cuidado as sementes e prestando atenção no tempo certo de seu plantio (CALDART, 2008).

O primeiro curso de educadores do campo implantado na Faculdade de Educação da UFMG foi o Pedagogia da Terra. Demandado principalmente pelo MST e financiado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, através do PRONERA, foi pensado inicialmente para atender a formação de professores e professoras dos anos iniciais do ensino fundamental.

Porém, no decorrer dos debates foi se colocando a necessidade de ampliação e que a equipe propusesse um curso que respondesse a necessidade de docentes do campo para toda a Educação Básica.

A escola do campo demandada pelos movimentos sociais vai além da escola das primeiras letras, da escola da palavra, da escola dos livros didáticos. (...) O curso proposto, em seus objetivos e formas de estruturação, deveria buscar a formação de educadores e educadoras compromissados com esse projeto educativo e com competência para levá-lo a cabo, com qualidade e responsabilidade social (ANTUNES-ROCHA, 2009, p. 40).

Além do mais, como afirma Gonsaga (2009, p. 75), há outras especificidades da Escola do Campo que deveriam ser consideradas: “pois o que se configura é que muitas vezes estas são fechadas pelo governo municipal ou estadual porque têm poucos alunos e, desta forma não acham “compensador” enviar vários educadores- entendendo que são várias as disciplinas- para atendê-los.” Assim, essa nova configuração da formação por área “vem justamente para suprir essa demanda, além de se pautar na concepção de que o ensino não deve ser fragmentado em

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pedaços, em disciplina, perdendo, assim, o seu caráter totalizante.” Não dava, portanto, para construir esse curso como o mesmo modelo e mesma

lógica das licenciaturas tradicionais. Novos tempos e espaços de aprendizagem faziam-se necessários. Do ponto de vista legal, o curso contou com o respaldo de instrumentos tais como o Parecer 9/2001 do CNE que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica e mesmo como base na LDBN 9394/96, além do “que é conferido à Educação do Campo na Resolução do CNE/CEB n° 1/2002, em seu Artigo 5°, ao dizer que: As propostas pedagógicas das escolas do campo, respeitadas as diferenças e o direito à igualdade e cumprido imediata e plenamente o estabelecido nos artigos 23, 26 e 28 da Lei 9.394, de 1996, contemplarão a diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia” (GONSAGA, 2009, p. 98).

Assim, o curso foi definido com algumas características bem marcantes:

1. Outra organização dos espaços e tempos escolares. Utilizou-se a Pedagogia da Alternância, cuja organização do “tempo escola” é diferenciado, ocorrendo concentrado em dois meses do ano. Mas, o “tempo comunidade”, o período em que o aluno/aluna está em seu assentamento também passou a ser tempo de aprendizagem, com atividades a serem cumpridas e acompanhadas pela equipe de trabalho. 2. A formação não disciplinar mas, por área de conhecimento, capaz de garantir uma flexibilidade na atividade dos/das docentes do campo, de acordo com as necessidades colocadas pela realidade. As necessidades presentes na escola do campo exigem um profissional com uma formação mais ampliada, mais totalizante, já que ele tem que dar conta de uma série de dimensões educativas presentes na realidade (ANTUNES-ROCHA, 2009, p. 41). 3. A necessidade de articulação dos professores, responsáveis pelo encaminhamento do curso. Embora essa atividade tenha se dado de forma diferenciada em cada área, em todas elas foi necessário o diálogo, o acordo, o por-se em debate, para que fossem definidos conteúdos essenciais, atividades básicas a serem dadas. Se levarmos em consideração a pouca tradição

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da existência dessas articulações no interior das licenciaturas tradicionais, veremos que houve também aí a quebra de um paradigma: o isolamento do trabalho docente no interior das Universidades. Eu acho que nós estamos trabalhando num movimento que a gente está chamando de integrador, a partir da temática, a partir de alguma abertura. (...) As questões que estão sendo postas pelo curso nessa área são questões que ultrapassam o limite disciplinar. Disso eu não tenho dúvida. Como nós estamos lidando, do ponto de vista da elaboração do pensamento, para formação para esses alunos, nós estamos acertando nas diferentes condições teórico/metodológicas, nos diferentes campos disciplinares, no sentido de encontrarmos um articulador para impulsionarmos um mínimo para que esse aluno consiga, além de uma perspectiva disciplinar dessa área, compreender o contexto, o fenômeno no qual ele está. (...) Para esse tempo de retorno (...) a nossa escolha foi compreender a sociedade brasileira, compreender a sociedade brasileira no contexto que é dado a pensar essa sociedade contemporânea nos diferentes momentos. Isso nós estamos fazendo a partir de algumas leituras. E essas leituras seguem a base comum para todos os alunos, mas os seminários articulam diferentes momentos dessa reflexão. E no momento prático da realização desse seminário, nós acertamos numa coisa que eu acho muito bacana: o diálogo com os diferentes professores. A perspectiva e o olhar dos diferentes professores no momento dos seminários (Depoimento de uma professora, extraído de GONSAGA, 2009, p. 89). 4. O acesso a outras linguagens e outros instrumentos de comunicação. A equipe responsável, ao implementar o curso, entendeu a necessidade de uma maior inclusão em todos os níveis. Assim, foram oferecidos cursos e atividades voltados para a inclusão digital, filmagens, produção de textos, entre outras. 5. Processo seletivo especial, ou seja, foi realizado um vestibular onde uma das exigências para a participação dos

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concorrentes era que residissem ou estivessem envolvidos em práticas educativas em acampamentos e assentamentos da reforma agrária. Para certificar essa condição deveriam apresentar uma carta de apresentação do presidente da associação comunitária do assentamento ou do acampamento, atestando sua residência ou prática com os mesmos. 6. Participação intensa dos alunos e membros dos movimentos, seja na coordenação do curso, seja através de estruturas próprias. Gonsaga (2009), descreve detalhadamente essa estrutura que merece aqui ser apresentada: Os estudantes se organizam em coletivos, aos quais chamam de Núcleo de Base, ‘que é um espaço de debate, reflexão, avaliação, propostas e encaminhamentos. É também um espaço de decisão política a respeito do processo organizativo’. Cada núcleo, no caso do Pedagogia da Terra, tem até oito pessoas, onde periodicamente alterna o coordenador ou coordenadora, sendo seus membros trocados a cada dois Tempos-Escola. Os núcleos são personalizados com um nome e ‘grito de ordem’, sempre homenageando alguém, seja pensadores, membros do Movimento que, de alguma forma deixaram sua marca, ou ainda, pessoas que lutaram e deram a própria vida para defender uma causa ou ideal, como Chico Mendes, por exemplo (GONSAGA, 2009, p.82).

E mais:As questões demandadas nos Núcleos de Base são encaminhadas à equipe de coordenação pedagógica dos movimentos sociais presentes no curso. Esta, por sua vez, é composta por um membro da coordenação do Setor de Educação em Minas Gerais e por membros indicados entre os educandos da turma. Além dessas indicações, fazem parte também da coordenação pedagógica os coordenadores de turma, que são dois, indicados a cada Tempo-Escola. Com exceção dos coordenadores de turma, a equipe da coordenação pedagógica é permanente, do início ao fim do curso (idem, p. 83).

Por fim:Após os encaminhamentos das questões demandadas pelos

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Núcleos de Base à coordenação pedagógica, esta se reúne com a coordenação do curso na UFMG, quando é o caso, para discuti-las e encaminhá-las da melhor forma possível. Para viabilizar as discussões, debates e encaminhamentos nos Núcleos de Base, criaram-se os setores, que tem como atribuição “elaborar e manter atualizadas as linhas políticas e suas normas de funcionamento. Deverá potencializar o fortalecimento da organização” . Nesse sentido, os setores cumprem o papel de assessoria e norteamento aos Núcleos de Base. Os setores são compostos pelos membros dos núcleos, de modo que todos os setores tenham um ou dois membros de cada Núcleo de Base. Essa composição dos setores alterna em todas as etapas, de forma que todo educando do curso irá participar de todos os setores até o final do curso. Os setores são classificados em: Setor de Secretaria, Finanças, Saúde, Educação Infantil, Relações Humanas, Cultura, Comunicação e Memória (idem, p. 83).

Enfim, o Pedagogia da Terra, com duração de cinco anos,

confere aos egressos a habilitação de Professor Multidisciplinar, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, e de Professor por Área do Conhecimento em Ciências da Vida e da Natureza, ou em Ciências Sociais e Humanidade, ou em Línguas, Artes e Literatura ou em Matemática, nas séries finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio (ANTUNES-ROCHA, 2009, p. 49).

Implementado o curso, a partir de uma longa e às vezes tensa tramitação nos órgãos superiores da Universidade, em especial o CEPE, tratava-se agora de estabelecer convivências, aprendizagens mútuas, e dar andamento ao mesmo.

Seguindo processo semelhante e simultâneo, implantava-se, também, na FAE-UFMG o curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas (o FIEI), voltado para alunos indígenas, com o ensino médio, que já fossem ou serão professores nas comunidades indígenas. A tramitação conjunta dos dois cursos fortaleceu a ambos e permitiu uma abrangência maior de atendimento da formação

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docente na FAE-UFMG. Esta história, em fase de resgate, através de pesquisa da Equipe de Professores

responsável pelo curso Pedagogia da Terra, utilizando instrumentos como análise documental, história oral, grupo focal, entre outros começa a ser sistematizada e merecerá artigos específicos para que seja trabalhada de forma mais aprofundada. Porém, pode-se, de imediato apontar traços marcantes da mesma, tais como:

1. O MEC passa a interessar-se também pela implantação de experiências de formação de educadores do campo. Desta forma, uma das suas iniciativas foi o envio de uma equipe a Belo Horizonte para analisar a experiência da Pedagogia da Terra da FAE-UFMG. Tendo como modelo o curso aí implantado, o MEC convida cinco Universidades Públicas para que ofereçam o curso de Licenciatura do Campo, entre elas a própria FAE.

Alterando alguns aspectos, tal como a extensão do curso, tanto em duração como em abrangência, o Licenciatura do Campo (carinhosamente chamado por nós de Le Campo) é ofertado em quatro anos, com as mesmas habilitações do Pedagogia da Terra.

No entanto, outros sujeitos do campo passam a dialogar e a integrar esse curso, tais como: Escolas Rurais de Prefeituras Municipais, assentamentos e acampamentos do movimento sindical, em especial da FETAEMG, educadores das Escolas Famílias Agrícolas, quilombolas, entre outros.

E, assim, em 2008, inicia-se outra turma de educadores do Campo, o Le Campo, na Faculdade de Educação da UFMG.

2. Com o REUNI, inicia-se na Faculdade de Educação um grande debate. Se com o Pedagogia da Terra o debate ocorreu mais em nível dos órgãos superiores da Universidade que queriam esclarecimentos, apresentavam problemas a serem superados, agora o debate ocorre, fundamentalmente, no interior da Faculdade.

Inicialmente, discute-se a adesão ou não ao Reuni. Superada essa questão, qual a ampliação a ser ofertada pela Faculdade.

De imediato, a equipe sabia que haveria um impacto via expansão das

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licenciaturas tradicionais. Mas, não se contentaram apenas com isso. Queríam que a Faculdade mostrasse mais a sua cara – contribuindo de forma significativa para o processo de inclusão social na Universidade.

E, assim, foi proposto pelas equipes do Le Campo e FIEI e pela Direção da Faculdade3 , que os dois cursos fossem incluídos no REUNI, tornando-se, desta maneira, cursos regulares da Universidade.

Verifica-se que um profundo e fecundo debate ocorreu: qual a qualidade dos cursos? Eles competem ou não com as outras licenciaturas? Teremos ou não professores suficientes para eles? Onde alocá-los na Faculdade? Enfim, mais de seis meses de discussões nas instâncias deliberativas da Faculdade, nos e-mails institucionais, no interior dos próprios cursos. Vale a pena registrar que no decorrer do debate, os alunos indígenas enviaram uma carta à Congregação da Escola solicitando que o FIEI integrasse o Reuni. Os alunos do Pedagogia da Terra e do Le Campo também acompanharam, interessadíssimos, o desenrolar dos debates bem como os movimentos sociais do Campo.

Somente esse debate merecerá, certamente, um capítulo à parte. Ele é revelador de nossas inseguranças, tradições e até mesmo preconceitos. Outro estudo que efetive a coleta e análise de documentos deste processo poderá resgatá-lo na sua plenitude.

De toda forma, registra-se que, em 2009, inicia-se a terceira turma de educadores do Campo, o Le Campo Reuni. Agora, como curso regular da Universidade. Porém toda conquista, toda opção provoca também deslocamentos, outras necessidades, outras possibilidades. Assim, há também algumas preocupações que agora acompanham a equipe a tornar a Licenciatura do Campo um curso regular. Estas preocupações explicitaram-se no grupo focal que objetiva resgatar o histórico dos cursos bem como nos encontros com os movimentos sociais.

1. Não diluir a questão da Reforma Agrária. Uma das características do Pedagogia da Terra é que de maneira muito explícita – seja nas místicas, nas bandeiras carregadas pela turma, nas palavras de ordem – a questão da luta pela terra estava permanentemente colocada. Agora, com a ampliação para novos sujeitos, é preciso garantir que ela não seja diluída nem perca a referência enquanto um conducto pedagógico dos

3 Antônia Vitória Soares Aranha (Diretora) e Orlando Aguiar (Vice-Diretor).

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novos cursos. 2. O processo de seleção, o vestibular. Até o Le Campo 2008 estava garantida a presença obrigatória somente de alunos vinculados ao campo. Agora, embora o vestibular continue a ser preparado e realizado pelas equipes da FAE, tanto no Le Campo como no FIEI não tem sido possível garantir a obrigatoriedade desse vínculo para não ferir o princípio da universalidade de oportunidades via Vestibular da UFMG. Desta forma, observa-se a convivência com alunos que não apresentam essa vinculação e ate mesmo com alunos não indígenas como no caso do FIEI-Reuni. Esse é considerado um grande complicador, pois advoga-se que os cursos não podem perder o foco ao se institucionalizarem na Universidade.

São, então, alguns dos impasses, algumas questões novas, postas a partir de uma realidade rica, fecunda e desafiadora.

“O curso, sob a coordenação da Profa. Maria Isabel Antunes Rocha, da UFMG, e da Profa. Marta Helena Roseno, do MST, encerra-se em 2010. Muitas mudanças ocorreram e muitas conquistas foram alcançadas após a aprovação do curso PTerra (carinhosamente assim chamado). Pode-se dizer que mexeu com a vida de todos os parceiros. Hoje já está aprovado, e em exercício na UFMG, o curso de Licenciatura do Campo e também está em andamento o projeto REUNI, no formato de curso regular e de alternância, que tem como objetivo dar continuidade à formação de educadores para atuar nas escolas do campo e escolas indígenas. Ambos são heranças do curso de pedagogia da terra e licenciatura indígena, que seguem com o desafio de não perder de vista o protagonismo dos movimentos sociais” (ROSENO & ROSENO, 2009, p. 63).

Falam os educandos do Pedagogia da Terra

Explicitado o histórico, é necessário, ainda que brevemente, trazer depoimentos dos educandos, da nossa primeira experiência, o Pedagogia da Terra.

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Como veem o curso? O que trouxe de novo em suas vidas e em sua atividade no Movimento Social? Como se veem dentro da estrutura da UFMG? Que perspectivas têm, a partir de agora?

A equipe responsável pelo curso está programando um balanço mais completo do mesmo em fevereiro, com a conclusão da primeira turma. Mas, verifica-se que os alunos já produziram textos. Um deles, um artigo da turma, publicado no livro que relata essa experiência. Destaca-se algumas questões.

1. Relação indivíduo-coletivo: O exercício da coletividade, apesar de ser uma prática nos movimentos sociais, organizações e instituições ligadas às causas populares, na turma tem um significado especial, no que tange aos aprendizados: estamos percebendo a importância de cada um e cada uma. Com isso nos tornamos mais sensíveis aos pontos de vista, às opiniões e às críticas. Percebemos que é possível alcançar a unidade da turma, respeitando as diferenças (TURMA VANESSA DOS SANTOS, 2009, p. 164). Dos mais experimentados aos mais jovens nas lutas, todos, cada um a seu modo, têm contribuído para o aprendizado do coletivo. Cada um, no processo, forma-se e conforma-se, aprende a viver e a conviver como diferente sem perder a individualidade, fato importante porque a coletividade não se torna apenas um número, soma das individualidades, mas um conjunto capaz de unificar-se em torno de um propósito comum (idem, p. 165) .No tempo escola, os tempos educativos, organização por núcleos de bases, setores, coordenação da turma, coordenação político-pedagógica constituem-se numa prática participativa e democrática que, a cada dia, aprimora-se e desperta para o exercício do diálogo e da construção coletiva. Tais práticas propiciam a autodisciplina e a formação de valores, como espírito de solidariedade e cooperação. O tempo comunidade, continuidade do tempo escola, permite-nos desenvolver, aplicar, avaliar, dar significado e (re)significar o nosso processo formativo na comunidade. O trabalho, o estudo e a militância apontam o rumo e não nos deixam esquecer que o movimento é a nossa principal matriz formadora (idem, p. 165).

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2. Desafios:O espaço universitário tem se mostrado um terreno fértil; contudo podemos dizer que é um território dominado por um modo de fazer instituído por relações de poder que transcendem tal espaço, tem fragilidades e pode vir a ser disputado, à medida que atuamos em nossos locais, juntamente com nossos movimentos e organizações (idem, p. 165). Há perspectiva de construirmos coletivamente novas formas de acesso e socialização do conhecimento universitário e socialização dele, de maneira a ir ocupando os espaços que nos foram negados historicamente, por não termos acesso às condições materiais e objetivas, e superando, uma vez que nós, do campo, temos muita dificuldade de acesso (idem, p. 166). O primeiro desafio foi a construção do Memorial por cada educando e educanda. Escrever, resgatando nossa história, mexeu com os nossos sentimentos pessoais e do grupo como um todo. Escrever o Memorial nos fez lembrar de momentos de sofrimentos. Como as pessoas estavam em grupos, a solidariedade para com o companheiro e/ou a companheira que recordava o seu momento de dor levou a turma a ir trabalhando e exercitando a tolerância e a compreensão (idem, p. 166). Exercitar a compreensão menos fragmentada do conhecimento tem sido um enorme desafio. Superar o condicionamento histórico de aprender-ensinar-aprender por pedaços, ou seja, por disciplinas, é um desafio. A ‘especialização’ por disciplina dificulta a percepção das relações e interações, no processo de construção do conhecimento (idem, p. 169). Acreditamos que, potencialmente, a prática que vem sendo construída na universidade de os professores se desafiarem a formar educadores do campo por área do conhecimento e, ao mesmo tempo, os educadores do campo atuarem nas escolas do campo nessa perspectiva, sem dúvida, ‘mexe’ com as estruturas do fazer pedagógico (idem, p. 169). Somos a 1ª Turma do Brasil de Licenciatura em Educação do Campo, que contempla todas as áreas do conhecimento, incluindo Pedagogia e vários Eixos Temáticos, o que desperta

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em nós um deslumbramento, muita responsabilidade e disciplina (idem, p. 169).

3. Perspectivas:Só o fato de estarmos cursando uma faculdade na UFMG alimenta uma perspectiva grande de sairmos da faculdade capacitados para trabalhar em sala de aula nas nossas escolas, lutar pela emancipação de políticas de Educação do Campo que vão muito além de ter escola no campo, mas de construção de um projeto popular para o nosso país, que defenda e valorize todas as formas de vida e condene todas as formas de morte, entendendo que o agronegócio, a monocultura, as multinacionais são práticas que geram a morte e não a vida (idem, p. 167). Espera-se que possamos, inclusive, contribuir para a proposição de políticas públicas que venham a atender a demanda e a realidade do campo, no sentido de contribuir com uma vida digna do povo camponês (idem, p. 167). Por essa ótica, a formação por área de conhecimento permite uma visão mais ampla do educando frente à realidade do campo: perceber as contradições, problematizar as questões aparentemente imutáveis, buscando os nexos dos acontecimentos (idem, p. 168).

Conclusão

Como já foi afirmado, a experiência do PTerra – juntamente com as novas experiências, passa por um processo de reflexão, alimentado por pesquisas em andamento na Faculdade de Educação.

No entanto, além dos aspectos já apontados ao longo do texto, é possível explicitar outras assertivas, conclusões e perspectivas.

Em primeiro lugar, a Equipe responsável pelos cursos, provocou inúmeros deslocamentos, tanto na Faculdade de Educação como na UFMG. Deslocamentos e mesmo desconfortos de toda ordem: simbólicos, através da presença marcante de sujeitos que nunca adentraram outros espaços na UFMG, com suas bandeiras de luta, seus símbolos, seus corpos, enfim (por que não?); pedagógicos, com a alteração de novos tempos e espaços escolares, por exemplo e mesmo burocráticos

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como o registro acadêmico dos cursos, em formatos muito distintos dos outros cursos da Universidade.

No entanto, por mais que esse deslocamento tenha ocorrido, pode-se afirmar que apenas arranhou as estruturas pedagógicas e mesmo burocráticas da FAE e da UFMG. Assim, o estudo revela que o impacto dessas licenciaturas em outras licenciaturas da FAE ainda é pequeno. Renovou-se muito, mas existem dificuldades em expandir essas inovações. Isso se deve tanto a estrutura rígida das Universidades, a necessidade de ampliação do diálogo para muitos outros sujeitos quanto a incipiente sistematização dessas experiências.

Outro aspecto a ser ressaltado é que esses sujeitos, moradores e atuantes nos movimentos sociais do Campo, precisam ampliar sua presença para além da FAE. Suas necessidades são infinitas, como é infinita a dívida social para com eles. Mas, essa ampliação precisa ser conquistada, dificilmente será oferecida. Desta forma, verefica-se que, para a equipe responsável urge a necessidade de ampliar parceiros em outros cursos, repetir essa experiência em outras Unidades.

Enfim, para os atores que vivenciam tal experiência, é preciso não perder a perspectiva de que:

A compreensão de educação originária desse movimento, que evite reduzi-la às práticas inovadoras sobre as necessárias, mas insuficientes, dimensões dos processos pedagógicos escolares vividos no território rural, exige a construção de práticas de Educação do Campo capazes de contribuir para a realização de processos formativos que contribuam com a promoção da desalienação do próprio trabalho (MOLINA, 2009, p. 189).

REFERÊNCIAS

ANTUNES-ROCHA, M. I. Licenciatura em Educação do Campo: histórico e projeto político-pedagógico. In: ANTUNES-ROCHA, M. I.; MARTINS, A. A. (Orgs.). Educação do Campo: desafios para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

CALDART, R. Apresentação. In: MACHADO, C. L., CAMPOS, C. S. S. & PALUDO, C. Teoria e Prática da Educação do Campo – análises de experiências, Brasília: MDA, 2008.

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______. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 3. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

GONSAGA, Eliana Aparecida. Pedagogia da Terra – o curso de Licenciatura em Educação do Campo de Minas Gerais. 2009, 160p. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.

MENEZES NETO, A. J. de. Formação de Professores para a Educação do Campo: projetos sociais em disputa. In: ANTUNES-ROCHA, M. I.; MARTINS, A. A. (Orgs.). Educação do Campo: desafios para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

MOLINA, M. C. Possibilidades e Limites de Transformações das Escolas do Campo: reflexões suscitadas pela Licenciatura em Educação do Campo – UFMG. In: ANTUNES-ROCHA, M. I.; MARTINS, A. A. (Orgs.). Educação do Campo: desafios para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

ROSENO, S. M. & ROSENO, M. H. Movimento Social e Universidade: construindo parcerias. In: ANTUNES-ROCHA, M. I.; MARTINS, A. A. (Orgs.). Educação do Campo: desafios para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

TURMA VANESSA DOS SANTOS. Licenciatura em Educação do Campo: sob o nosso olhar de lutadores e lutadoras do campo. In: ANTUNES-ROCHA, M. I.; MARTINS, A. A. (Orgs.). Educação do Campo: desafios para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

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AS ALUNAS DA EDUCAÇÃO BÁSICA E A LEITURA QUE ELAS FAZEM DAS ADOLESCENTES NEGRAS NA REVISTA ATREVIDA

Carolina dos Santos de Oliveira1

Introdução

O presente artigo segue como desdobramento de trabalho anterior em que se pretendeu analisar as adolescentes negras no discurso da revista Atrevida (Dissertação orientada por Nilma Lino Gomes). Tarefa que foi realizada através da ACD, análise crítica do discurso, na perspectiva de Fairclough (2001), que privilegia o contexto de produção dos discursos. Sendo assim demonstrou ser a ferramenta mais eficaz para responder às questões da dissertação.

A partir dos resultados encontrados, nova etapa de pesquisa. Realizada como um retorno ao lugar onde a pesquisa foi motivada: a sala de aula. Quando professora da educação básica, pude perceber como as revistas femininas e seus estereótipos povoam o imaginário das adolescentes que estavam no espaço escolar. Com isso surgiu a necessidade de conhecer a publicação no que diz respeito às relações raciais, que foi o objeto da dissertação de mestrado.

Como uma pesquisa de caráter qualitativo, ela não pretende configurar uma amostra por saturação, e sim uma amostra intencional (ALVES-MAZZOTTI, GEWANDSZNAJDER, 1999)

A primeira parte do artigo trata da Lei 10.639/03 e o contexto de sua sanção. Em seguida, uma aproximação do campo de estudos em educação e mídia é explicada. Para a melhor compreensão dos dados obtidos em campo, se fez necessária uma breve apresentação da revista e os resultados encontrados no que diz respeito aos discursos sobre as adolescentes negras.

Finalmente relatamos como foi o retorno da pesquisa à sala de aula, desta vez com o discurso da revista já tendo sido estudado e percebendo quais as leituras as adolescentes fizeram da revista.

1 Mestra em educação FAE/UFMG

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A Lei 10.639/03

A Lei 10.639/03, que altera a LDB 9394/96, no que se refere ao ensino de história da África e Cultura Afro- brasileira, faz parte de um contexto em que diversas ações, relativas às demandas do movimento negro estão efervescendo na esfera nacional e internacional.

Algumas dessas ações se efetivaram após a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, que aconteceu em Durban, África do Sul, em 2001, após um período de pré-conferências nos países envolvidos. No Brasil, a movimentação nesse período se refere também ao crescimento da discussão e implementação de ações afirmativas2.

Dessa forma, no Brasil, como resultado da Conferência de Durban, observou-se que uma série de assuntos e de reivindicação do movimento negro passou a ocupar – com avanços e limites – a pauta de políticas públicas, visando a diminuir as desigualdades raciais. A fim de implementar essas reivindicações e pôr em ação as propostas assinadas em Durban, foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 21 de março de 2003.

Entre as várias conquistas do movimento negro no Brasil pós-Durban, resultado de toda essa movimentação e ainda do compromisso de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, é sancionada a Lei n. 10.639, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas públicas e privadas da educação básica. Com a sanção da Lei, institucionaliza-se a preocupação com a formação de professores na perspectiva da diversidade étnico-racial.

Outra preocupação que ganha força e extrapola os fóruns de militância negra diz respeito à qualidade do material didático e paradidático que vem sendo usado nas escolas, no que diz respeito às relações raciais (BENTES, 2002; ALVES, 2002).

Essa preocupação se estende para as produções audiovisuais e da mídia impressa, mesmo que essas não tenham um objetivo intencional de educar os sujeitos. A escola não é um espaço isolado, ela sofre a interferência de outros meios, dentre elas a mídia, de forma indireta e até mesmo intencional, quando em alguns

2 Entende-se por “ação afirmativa” uma série de políticas e ações, que podem ser originadas da iniciativa pública ou privada, visando a corrigir e a combater as desigualdades raciais, de gênero, de orientação sexual, nacionalidade etc., e seus efeitos, para assim garantir o acesso aos direitos básicos de um cidadão e construir oportunidades iguais para todos.

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momentos faz uso de recursos extraescolares, para serem utilizados nas salas de aula.

Educação e mídia

O estudo da mídia no campo da educação e sua relação com a escola não se limita a pensar como os suportes midiáticos são usados de forma intencional no espaço escolar. Mesmo aqueles veículos ignorados pelos professores e marginalizados pela maior parte das escolas estão intrinsecamente ligados a ela.

Considerando os educandos como sujeitos, como nos propõe Arroyo (2000), sabemos que, ao chegar à escola, esses sujeitos estão repletos de crenças, valores, hábitos, conceitos e preconceitos, adquiridos em uma formação não escolar. A ação desses sujeitos pode modificar, tensionar e até mesmo implodir as concepções culturais e pedagógicas presentes de forma oficial nas escolas. Há universos culturais, sociais, políticos e discursivos em disputa. Isso se expressa nos rituais, nos currículos, nas práticas pedagógicas, na organização do trabalho da escola.

As práticas escolares podem mediar as leituras de mundo que os sujeitos fazem, bem como os mais diversos lugares de aprendizagem: igreja, festas , sindicatos, clubes, suportes midiáticos também mediam a relação do aluno com a escola.

Dessa forma, estamos entendendo mídia como um espaço educativo que interage com a escola e que tem suas leituras mediadas pela cultura privilegiada pela escola. Pensando em práticas da lei 10.639/03, devemos verificar como as vivências escolares podem ou não produzir sujeitos atentos às relações raciais hierarquizadas no Brasil.

“Mídia” vem do latim Media, que é o plural de Médium, meio. Esse termo é adotado em inglês como mass media, ou seja, meios de comunicação de massa. Foi no início do século XX que a expressão “mídia” passou a ser utilizada como um fenômeno ocidental e contemporâneo. Os filósofos e sociólogos alemães Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) são considerados pelos mais diversos autores como aqueles que deram a tônica inicial do conceito de “indústria cultural” associada aos meios de comunicação de massa. Essa discussão faz parte da sua obra Dialética do esclarecimento, com primeira publicação em 1947.

No capítulo em que tematizam a indústria cultural, os autores analisam a produção e a função da cultura no capitalismo. A ideia de “indústria cultural”, nesse contexto, é criada para definir a conversão da cultura em mercadoria; logo não se

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refere apenas aos veículos de comunicação (televisão, jornais, rádio etc.), mas ao uso dessas tecnologias por parte da classe dominante para a distribuição da cultura hegemônica entre as massas. A produção cultural e intelectual passa a ser guiada pela possibilidade de consumo, seguindo uma lógica de mercado.

Na perspectiva desses autores, o mesmo fenômeno de massificação das mercadorias que ocorreu com o advento da Revolução Industrial também aconteceu com a cultura, ou seja, ela estava se massificando e, tal como o processo industrial, trazendo alienação aos seus consumidores. Nesse aspecto, para ser considerada cultura de massa, ela precisa ser uma iniciativa da classe dominante, produzida e adaptada para as massas, isto é, uma produção cultural de poucos para muitos.

Ainda, segundo Adorno e Horkheimer (1985), a indústria cultural padroniza seus consumidores criando nesses algumas necessidades e, assim, faz perpetuar seus produtos. Ela produz a cultura de massa e, nesse sentido, a mídia pode ser considerada como uma de suas ramificações. Todo esse contexto só existe a partir do surgimento da sociedade de consumo e com o acirramento dos processos capitalistas de produção; por isso, pode ser considerado como um fenômeno ocidental e contemporâneo. A cultura de massa divulgada pela mídia seria a ilustração pedagógica do mundo, mundo esse inatingível pelos espectadores. É uma fuga do cotidiano que apresenta o próprio cotidiano como solução.

A percepção da mídia como mera reprodutora de sentidos e manipuladora da sociedade perde força com estudos nos Estados Unidos na década de 1970 (GUAZINA, 2004). A perspectiva que emerge nesse período é a mesma adotada nesta pesquisa, ou seja, de que os meios de comunicação de massa também produzem sentido, conhecimentos e podem ser considerados como uma forma de prática social.

A produção de sentido vem das mediações que as pessoas fazem ao terem contato com a mídia, portanto, é preciso pensar não só a produção e a recepção, mas também a mediação que se dá nesse processo. A mediação diz respeito ao lugar que os sujeitos ocupam no mundo; para isso é preciso ir além do fato de enxergar as massas como meras receptoras das intenções mercadológicas do capitalismo, ou melhor, não é possível imaginar que os produtos midiáticos serão recebidos pelo público tal como foram concebidos.

É nesse contexto que se podem inserir iniciativas de mídias alternativas, experiências críticas e populares de tecnologias da informação produzidas pelos próprios grupos em situação de marginalidade. Esses podem não ter o alcance de “massa” da indústria cultural capitalista, mas possuem alguma eficácia, até mesmo

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de questionar a própria indústria cultural e a massificação capitalista.No século XXI, nos contextos de globalização, não só a globalização

econômica atua, mas também formas contra-hegemônicas de globalização, produzidas pelos setores populares, pelos movimentos sociais, divulgadas por algum tipo de mídia, fazendo com que a chamada “grande mídia” sinta cada vez mais a necessidade de se autoavaliar num processo cíclico para a manutenção de seus produtos e de suas ideias no mercado.

No presente trabalho, o termo é igualmente usado como meio de comunicação de massa, porém, de forma alargada. Entende-se mídia como meio de divulgação da cultura de massa, que, além de representar a realidade, é uma forma de criá-la. Considerada como possuidora de um discurso, ela é, na perspectiva foucaultiana, prática social, ou seja, ao apresentar um discurso sobre um tema, ela já é em si uma prática do tema (GOMES; PEREIRA, 2001).

Baseados na perspectiva de Adorno e Horkheimer (1982), podemos refletir que a cultura de massa, produzida pela mídia impressa feminina, faz parte da ilustração pedagógica do mundo. Sendo considerada pedagógica, há aqui uma dimensão não só informativa, mas, sobretudo, formativa. Esse caráter formador nem sempre será dotado de positividade, mas também poderá reproduzir e produzir valores, estereótipos, preconceitos. É nesse sentido que podemos aproximar os estudos sobre a mídia impressa, principalmente a feminina, do campo da educação.

A Revista Atrevida

As revistas femininas ocupam, hoje, no mercado editorial e na sociedade, lugar consolidado, a ponto de ser consideradas como parte da ‘imprensa feminina’. O fato de não serem absorvidas pelo movimento feminista e pelos críticos desse tipo de publicação como uma ‘escrita politicamente engajada’ não altera a realidade da sua existência. Acordos e discordâncias sobre o tema existem; no entanto, esse espaço midiático se enraizou e possui um público leitor, veicula imagens, representações e discursos sobre as diferenças, as relações de gênero, de classe social, de geração, questões de ordem moral, comportamento, entre outros.

O produto da mídia que escolhemos para levar para a escola a fim de realizar uma sondagem foi a revista Atrevida. A referida publicação foi objeto de pesquisa na dissertação de mestrado em educação, quando foi analisada à luz da Análise crítica do Discurso, ACD.

A análise objetivou apreender os discursos sobre as adolescentes negras no

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discurso da revistas Atrevida, levando-se em conta as relações raciais no Brasil, construídas historicamente, as concepções de beleza e os avanços e retrocessos das discussões das relações raciais no Brasil e a legislação vigente (OLIVEIRA, 2009).

A Atrevida foi lançada em setembro de 1994, concorrendo, desde seu início, com a veterana Capricho e com outras em seu segmento; ela apresenta seções fixas e outras que variam a cada edição. Os temas abordados são os mesmos das revistas femininas para adultos: ou seja, moda e beleza (este último muitas vezes sob o disfarce de falar de saúde), celebridades e comportamento.

Tal revista é atualmente uma publicação mensal da Editora Escala (grupo UOL); porém, já circulou como uma publicação da Editora Símbolo. Segundo informações da própria pesquisa de mercado da revista, a Atrevida tem como público-alvo as mulheres de 15 a 19 anos, das classes ABC. Apesar disso, é possível encontrar leitoras fora desse perfil, seja no que diz respeito à faixa etária e à classe social, seja no que concerne ao gênero, já que é possível encontrar leitores (5% são homens) entre as leitoras.A tiragem da revista gira em torno de 200 mil exemplares por mês.

Como resultado do sucesso da revista, foram lançados outros produtos com a marca Atrevida, entre eles as publicações Atrevida Fashion e Atrevidinha.

Com tiragem menor (30 mil), Atrevida Fashion é uma publicação semestral que se direciona às mesmas leitoras da Atrevida e trata especificamente de moda e beleza.

Atrevidinha se diferencia um pouco pelo seu público-alvo: mulheres de 7 a 12 anos, embora grande parte de suas leitoras (cerca de 40%) pertença à faixa etária do público de Atrevida (15 a 19 anos).

Fora do mercado editorial, é possível encontrar outros produtos da marca, como lingeries (calcinhas, sutiãs, pijamas) e artigos de papelaria (cadernos, fichários, lápis).

Guardadas as devidas diferenciações e objetivos desses dois espaços educativos – escola e mídia impressa feminina –, mesmo que a revista apresente padrões estereotipados de “ser jovem”, “ser adolescente” e “ser pré-adolescente” atravessados pelos interesses de consumo e mercado -, ela parece estar mais atenta ao fato de que existem possíveis formas de realização desses ciclos da vida e, por isso mesmo, joga com imagens, discursos e estereótipos por meio das segmentações editoriais.

Constatando que a revista elege, como suas leitoras, sujeitos que estão em idade de frequentar a educação básica, consideramos as leitoras incluídas no

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período conhecido como adolescência, a qual também pode ser entendida como a fase inicial da juventude.

Os estudos sociológicos e antropológicos tendem a incluir a adolescência na juventude. Segundo Peralva (1997) e Dayrell (2003), a adolescência é a fase inicial de um período denominado “juventude”. Ela é marcada por transformações de ordem biológica, afetiva, relacional e de inserção social. É possível marcar o início da juventude quando fisicamente se adquire o poder de procriar, quando a pessoa dá sinais de necessitar menos da proteção familiar e quando começa a assumir responsabilidades. Todavia, essa concepção pode variar de uma cultura para outra.

Cronologicamente, a juventude tem sido considerada o momento da vida que vai dos 14 aos 25 anos, sendo que, de 14 a 17 anos, os sujeitos são considerados adolescentes, e de 18 a 25 anos, são vistos como jovens. Essa classificação cronológica usada para efeitos de estudos, dados estatísticos e aplicação de políticas públicas não pode ser considerada como uma classificação fixa. É necessário compreender a juventude e a adolescência numa perspectiva sociológica e antropológica3.

A puberdade pode servir de referência para definir o início da adolescência. As transformações de ordem biológica que a caracterizam podem marcar o princípio das mudanças nas relações sociais, porém nem mesmo essas transformações de ordem biológica acontecem para todo o mundo ao mesmo tempo. Logo, as relações que se estabelecerão com essas transformações também não serão as mesmas, já que estão intimamente ligadas com a cultura com a qual as pessoas estão vinculadas.

Não sendo possível definir seu início, mas apenas traçar referências, o mesmo acontece com o término da adolescência. Na ausência de determinantes físicos ou de rituais de passagem, a entrada no universo juvenil e na vida adulta é resultado do consentimento dos adultos.

Como resultado não só de transformações biológicas, mas também dos papeis sociais reservados ao novo corpo que se configura, a adolescência pode ser assim definida, do ponto de vista da psicologia:

Em outras palavras há um sujeito capaz, instruído e treinado por mil caminhos – pela escola, pelos pais, pela mídia – para

3 Valendo-se dos dados de 2007, o IPEA classificou como jovens as pessoas com idade entre 15 e 29 anos; antes esse recorte era considerado entre 15 e 24 anos, aumento justificado por duas circunstâncias: “Maior expectativa de vida para a população em geral e maior dificuldade desta geração em ganhar autonomia em função das mudanças no mundo do trabalho” (IPEA, 2008, p. 11).

adotar as ideias da comunidade. Ele se torna um adolescente quando, apesar de seu corpo e seu espírito estarem prontos para a competição, não é reconhecido como adulto (CALLIGARIS, 2000, p. 15).

Nesse sentido, a adolescência é mais do que um período de transição. É uma construção cultural e, mesmo assim, o conceito não é capaz de enquadrar todos os adolescentes. Por isso, pode-se falar de adolescências, e não em adolescência.

Como afirmam Carrano e Dayrell (2002), devemos atentar para a multiplicidade do “ser jovem”, “ser adolescente”. Os autores compreendem a adolescência como uma etapa da juventude, e, se a juventude é parte de um processo de constituição dos sujeitos, os processos são individuais, marcados por diferentes historicidades e realidades sociais. Portanto, ser adolescente varia de acordo com o tempo e com o espaço de constituição desses sujeitos. Como construção social e histórica, pode-se afirmar que a adolescência é um fenômeno contemporâneo e ocidental (CALLIGARIS, 2000).

E é como tempo real, que possui sentido e significado em si mesmo, que a adolescência é entendida nesta pesquisa como mais uma dimensão dos ciclos de formação humana ou das idades e fases da vida produzidas em nossa cultura.

Assim como a juventude, a adolescência não deve ser percebida apenas como um vir a ser, uma passagem da infância para a juventude. De acordo com as mudanças culturais, sociais e econômicas, nas sociedades ocidentais, nota-se que a vida adulta tem chegado cada vez mais tarde em nossa sociedade; com isso, há uma extensão não só da juventude, mas também da adolescência.

É nesse contexto que compreendemos o público-alvo da revista Atrevida, que num contexto mais amplo está em processo de escolarização na educação básica. Como parte da cultura, as adolescentes leitoras de Atrevida possuem características comuns, mesmo que estas sejam apresentadas apenas como uma projeção da revista ao imaginar o seu público-alvo. O mesmo movimento acontece com as instituições escolares, que também idealizam seus sujeitos e projetam expectativas gerais deixando de lado as especificidades de cada um.

A revista Atrevida, assim como a escola concebe as adolescentes nestas múltiplas interfaces: sociológica, antropológica, educacional, psicológica e médica. Ou seja, os editores dialogam com as leitoras levando em consideração a complexidade do ciclo da adolescência, embora nem sempre tal intencionalidade seja perceptível para uma leitora imersa no próprio ciclo para o qual a revista se

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destina.É por meio do discurso, que envolve contexto, texto, imagens, cores e

formas, que podemos perceber tal intencionalidade e complexidade. O discurso surge, então, como um referencial importante para compreendermos melhor como a revista Atrevida dialoga com significados sociais e culturais da adolescência e, com base nesses, produz outros na perspectiva do mercado.

As revistas, atentas às mudanças provocadas na vida de suas jovens leitoras, procuram ocupar os lugares que surgem com o passar dos anos. A família, que até então era a referência de conduta dessas jovens, tem sua fronteira ultrapassada, questionada, contrariada por outros grupos que acabam por preencher a lacuna que a família sozinha não é capaz de suprir – o grupo de amigos, os grupos religiosos, o engajamento político, as primeiras experiências afetivas e sexuais passam a serem as novas referências dessas adolescentes.

A revista feminina voltada para adolescentes cumpre o lugar de melhor amiga, dá conselhos, dicas, transforma-se em um espelho de conduta, é capaz de responder a perguntas a que os pares da idade talvez não saibam responder, ensina o que se espera a respeito de ser “mulher no mundo” e o que o sexo oposto espera dela. Tudo isso com a autoridade de adultas, jornalistas, médicas e principalmente dos sujeitos dos desejos das jovens leitoras, os rapazes/adolescentes.

Negras e brancas nas páginas de Atrevida

As revistas femininas, geralmente, são alicerçadas em processos comunicativos. Elas pretendem orientar suas leitoras sobre conduta, aparência, moda, celebridades, sem, no entanto, informar sobre esses assuntos. Os textos são imperativos e prescritivos, baseados na experiência de vida de outras pessoas. A opinião pessoal, individual, tem peso muito forte nessas publicações, maior que outras informações, elaboradas por autoridades no assunto. Estas últimas somente são consultadas para respaldar as opiniões da revista.

A Atrevida segue esse mesmo padrão editorial. Apesar de pretender abarcar determinado segmento de leitoras – as adolescentes –, apresentando-lhes a possibilidade de contemplar as especificidades delas, ela acaba por massificar as suas leitoras.

A concepção de leitora que a publicação apresenta, a princípio, pode ser percebida como uma leitora não “racializada”, uma vez que não se menciona nada sobre tal assunto de forma explícita. Esse posicionamento de invisibilidade da raça

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negra está relacionado com as características das relações raciais no Brasil: o branco, enquanto grupo étnico-racial, não precisa ser mencionado. Ele é o representante natural da espécie; ele só é destacado quando o “outro”, seja ele negro, indígena ou oriental, é chamado à cena. Dessa forma, ao analisarmos os discursos sobre a relação raça e adolescência produzidos pela revista, observamos que a leitora-alvo privilegiada é a adolescente branca.

As concepções raciais ficam evidentes quando é possível constatar que existem aparições episódicas e pontuais para a presença da adolescente negra. Analisando a matéria voltada ao público negro e aquelas similares direcionadas às leitoras em geral, nota-se uma tentativa da revista de ser inovadora em seu discurso sobre beleza negra, tentando valorizar as diferenças entre as adolescentes e afirmar que todas podem ser belas nas suas especificidades.

Todavia, ao longo das matérias, percebemos que a possibilidade de a adolescente negra se tornar bela passa por cuidados que podem descaracterizá-la como tal. Um dos exemplos é a forma como a publicação descreve os cabelos, um dos principais símbolos da identidade negra. Ela sugere, em todos as edições que fala desse tipo de cabelo, que esses devem ser macios e com movimento.

Existe uma indefinição no uso dos termos “crespos” e “ondulados”, que faz parte das tentativas do discurso brasileiro sobre o seu povo de se afirmar como um país mestiço e sem preconceitos.

A justificativa, implícita, para a inclusão pontual de orientações para o cabelo crespo (e a pele negra), é a dificuldade em “lidar” com esses aspectos da nossa corporeidade. Podemos observar a presença da ideia da “lida” com o cabelo, a qual tem forte relação com trabalho, com esforço. Isso nos lembra o estudo realizado por Gomes (2006), no qual a autora, ao realizar uma etnografia em salões de beleza étnicos em Belo Horizonte, discute que, para o negro, a ideia de labuta, sofrimento e fadiga, faz parte de uma história ancestral. Ela está relacionada ao processo de exploração e à escravidão. Em uma perspectiva racial, a lida incorpora a ideia de trabalho forçado e coisificação do escravo e da escrava. Guardadas as devidas proporções, podemos observar que a Atrevida, ao mencionar a especificidade do cabelo crespo, enfatiza sempre que, para a adolescente negra mantê-lo bonito, ela terá sempre que “labutar” mais do que as outras.

As concepções biológicas emergem no discurso do periódico. Insinua-se que as características inscritas num corpo negro são consideradas inadequadas, revelando uma ideia de hierarquia racial. As características étnico-raciais do segmento negro da população são mais difíceis de enquadrar no modelo pretendido

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esteticamente pela revista para o qual os produtos e os serviços oferecidos pelo mercado, de maneira geral, foram criados. A discussão da quase inexistência de produtos específicos para negros e negras no mercado, entendida como resultado de relações de poder socioeconômico e étnico-racial na sociedade, não é sugerida nas páginas de Atrevida.

Existe uma indefinição no uso dos termos “crespos” e “ondulados”, que faz parte das tentativas do discurso brasileiro sobre o seu povo de se afirmar como um país mestiço e sem preconceitos.

A justificativa, implícita, para a inclusão pontual de orientações para o cabelo crespo (e a pele negra), é a dificuldade em “lidar” com esses aspectos da nossa corporeidade. Podemos observar a presença da ideia da “lida” com o cabelo, a qual tem forte relação com trabalho, com esforço. Isso nos lembra o estudo realizado por Gomes (2006), no qual a autora, ao realizar uma etnografia em salões de beleza étnicos em Belo Horizonte, discute que, para o negro, a ideia de labuta, sofrimento e fadiga, faz parte de uma história ancestral. Ela está relacionada ao processo de exploração e à escravidão. Em uma perspectiva racial, a lida incorpora a ideia de trabalho forçado e coisificação do escravo e da escrava. Guardadas as devidas proporções, podemos observar que a Atrevida, ao mencionar a especificidade do cabelo crespo, enfatiza sempre que, para a adolescente negra mantê-lo bonito, ela terá sempre que “labutar” mais do que as outras.

A aparência física articulada a determinado padrão de beleza tem grande importância nas páginas da publicação. As palavras de ordem de Atrevida são “seja bela”.

No entanto, “ser bela” não é fácil para a adolescente negra. Ela é possuidora de uma corporeidade “problemática”. A sua pele não aceita determinados procedimentos estéticos, os quais não são recomendados para essa adolescente. O “problema” é apresentado como próprio do corpo negro (“pele que precisa de mais cuidado do que as outras”, “cabelo que necessita de mais cuidado para deixar de ser rebelde e ter movimento”, “pele com propensão a cicatrizes, apesar de ter a vantagem de ser menos flácida” etc.). Mais uma vez, considera-se que o “problema” está no corpo negro, e não nos procedimentos estéticos disponíveis no mercado, os quais geralmente são pensados e desenvolvidos tendo como referência corpo branco e cabelos lisos.

A polidez é uma marca nos discursos sobre a pele negra presentes na publicação. Ela denota cuidado ao tratar o tema, reconhecendo que está realizando uma incursão por um assunto delicado e ambíguo no contexto brasileiro. Com

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polidez, as matérias sempre iniciam com conselhos, com afirmações positivas e com vantagens sobre ser negra, seguidas de explicações biológicas, tudo isso respaldado pelo discurso médico, geralmente feito por dermatologistas, que confere caráter científico e, pretensamente, isento de juízo de valor.

No decorrer das dicas, a outra face da polidez aparece, dessa vez, de forma negativa, quase sempre com frases precedidas de uma conjunção adversativa. A jornalista apresenta explicações médicas, mas apresenta as desvantagens da pele negra e dos cabelos crespos e novamente se isenta da responsabilidade sobre o tema, chamando o discurso médico de uma dermatologista. Do ponto de vista da prática discursiva, essas desvantagens geralmente exercem o papel de anular as vantagens antes apresentadas.

Em diversos momentos, é citado que existem produtos no mercado específicos para o segmento negro, mas a revista não diz quais são, onde os encontrar, porque são diferentes, quais os resultados que eles apresentam, nem mesmo nas outras seções da revista. Novamente, essa forma de diferenciar os cuidados com cada tipo de corpo demonstra que as leitoras são concebidas de forma racializada.

O discurso entendido como prática social revela o que Teles (2003, p. 17) aborda sobre a conotação de inclusão social e não de exclusão presente no discurso sobre a miscigenação no Brasil. Segundo o autor, os conceitos raciais da América Latina sustentam a ideia de que negros, indígenas e brancos se socializam, moram juntos e se misturam biologicamente a ponto de as distinções raciais se tornaram irrelevantes.

O jogo entre as palavras “crespo”, “anelado” e “ondulado” revela o papel do cabelo na classificação racial, ora usadas como sinônimo, ora com definições diferentes: “No critério de classificação racial brasileiro e no processo de autoclassificação dos sujeitos, determinados penteados e estilos de cabelo possibilitam à mulher e ao homem negros e mestiços manipularem a sua cor” (GOMES, 2006, p. 290).

Outro elemento que merece destaque é a presença de adolescentes negras que se tornaram celebridades. Estar na mídia parece credenciá-las para figurar nas páginas da revista. Visualizando todas as capas de Atrevida na perspectiva da interdiscursividade, encontramos um número pequeno de negras figurando e, quando isso acontece, as modelos são celebridades e nem sempre estão sozinhas. Ao passo que é possível encontrar capas com modelos brancas desconhecidas e posando individualmente.

As celebridades negras aparecem também em seções que falam de cabelo

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e pele no lugar das modelos, diferentemente das informações para a leitora geral, que normalmente são acompanhadas de uma modelo desconhecida e branca. Nesse sentido, notamos que a chamada “branquitude normativa”, expressão proposta por Araújo (2000), é um elemento incorporado pela revista, que elege a modelo branca como a representante geral e universal da espécie.

As explicações biológicas ainda são as preferidas para justificar por que brancas e negras devem ser tratadas de forma diferente. Mas, ao contrário do que a ciência vem comprovando, de que as diferenças étnico-raciais são expressões da diversidade humana, as explicações da revista apresentam-nas de forma naturalizada e ainda podem levar a concluir que todas as mulheres negras sejam iguais.

Quando as páginas das matérias para negras se esgotam, a revista expressa uma sensação de dever cumprido, ou seja, a publicação não excluiu ninguém e, portanto, podemos passar a página e contemplar as leitoras habituais. Isso é comprovado nas seções que se seguem, ao analisarmos as dimensões intertextuais do discurso expressas nas dicas de beleza. Essas são gerais, não se destinam explicitamente a um segmento étnico-racial específico, mas, pelas imagens, pelos desenhos e textos, entende-se que são voltadas para a leitora branca, uma vez que a negra já teve suas dicas na página anterior, e as representações visuais entendidas como texto remetem a meninas brancas.

Ainda quando são representadas nas seções fixas, as adolescentes negras aparecem, mais uma vez, na posição de outro, ou seja, estão presentes para figurar orientações para o próprio segmento étnico-racial. Não é possível encontrar uma modelo negra ilustrando uma reportagem sem que seu pertencimento étnico-racial seja mencionado e seja necessário para a compreensão dessa.

Em nenhum momento a revista relativiza os padrões de beleza, como culturalmente construídos, e situados em um tempo e lugares localizados na História. Ao contrário, são considerados universais e, portanto, desejado por todas.

A quase ausência de adolescentes negras na revista Atrevida é parte do contexto das relações raciais brasileiras refletidas no mundo da moda. Nota-se aqui novamente a relação entre discurso e prática social.

E é esse mesmo contexto que nos permite analisar a presença dessa adolescente no discurso da Atrevida como permeada de avanços e recuos. Nesse sentido, há que se considerar que, mesmo de forma episódica e eivada de estereótipos, a inclusão da adolescente negra nas páginas dessa publicação pode ser lida como resposta do mercado à pressão dos movimentos contra-hegemônicos para a superação do racismo em vários âmbitos da sociedade, entre eles a questão estética. O movimento

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negro e o de mulheres negras destacam-se como protagonistas nesse processo.É também uma forma de esse mesmo mercado se apropriar de elementos

produzidos por um discurso político e despolitizá-los ao abordar a dimensão estética descolada da vida social, do seu caráter de construção social, histórica, política e cultural. É assim que vemos a ideia de beleza negra, construída no seio da militância negra, sofrer um processo de naturalização e ser tratada de maneira estanque.

O discurso a respeito da adolescente negra na revista Atrevida é complexo e insidioso, assim como o são as relações raciais em nossa sociedade. Não se pode desprezar que a sua existência revela determinado tipo de mudança social, mas, ao mesmo tempo, não se pode deixar ser seduzido por ele. A adolescente negra é inserida na revista por meio de um discurso que carrega todas as ambiguidades do racismo brasileiro (afirmação através da própria negação) e do mito da democracia racial. Isso se dá de forma complexa e entremeada entre o mundo da mídia, os discursos sobre gênero, raça, juventude, classe, estética e beleza. A ACD, na perspectiva de Fairclough (2001), ajudou-nos a desvelar e a perceber essas contradições, esses avanços e esses recuos.

As adolescentes na escola: quais leituras fazem de Atrevida ?

A sondagem foi realizada com alunas do ensino fundamental e médio de uma escola da rede estadual de ensino, onde foi localizada práticas de implementação da lei 10.639/03

Etapas da pesquisa

Tendo as informações sobre as adolescentes negras no discurso da revista Atrevida, foi iniciada uma incursão por uma escola da rede pública de ensino em Belo Horizonte, quando foram observadas salas de aula do matutino e do noturno, sendo respectivamente turmas de 7ª série e 2 º ano do ensino médio.

Foi configurada uma amostra conhecida como intencional , quando os sujeitos são escolhidos para que sejam capazes de responder a questão proposta (ALVES-MAZZOTTI, GEWANDSZNAJDER, 1999). Interessaram para a pesquisa sujeitos que já fossem leitoras da revista, e dessa forma familiarizadas com o seu discurso e interessadas em seu conteúdo.

A partir, daí foram observadas quais as alunas demonstravam ser leitoras

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de Atrevida. Foram selecionadas dez alunas que responderam a um questionário preliminar, que nos levou a cinco alunas que participaram de outras atividades, como roda de conversa e foram observadas em outras etapas.

Observações:O professor indicado pela escola como referência das práticas da lei foi o

professor de história. Segundo seu relato, a rede de ensino oferece formação para a aplicação da lei, porém essa é opcional, devendo o professor se inscrever caso se interesse. Segundo a informação dele, a última oferta de formação de ensino de história da África pouco motivou a inscrição dos professores, principalmente os que estão lotados nas periferias, porque deveria ser realizada no órgão central da secretaria de educação (inclusive para aqueles que lecionam na região metropolitana), diferente das outras vezes, em que pode ser feita na própria escola ou via internet.

Foi observado que com a aproximação do dia 20 de novembro a preocupação com a “consciência negra” se intensifica em toda a escola, inclusive para os alunos, demonstrando uma confusão entre os docentes sobre o que realmente é a lei. O corpo docente, de forma geral, parece entender que a lei só se aplica no mês de novembro, na semana do dia 20.

O confinamento da aplicação da lei nesse período do ano torna discussão racial festiva e estetizada. Considerado como o grande momento da discussão, o desfile da beleza negra tende a reproduzir o maniqueísmo (belo X feio) que as práticas cotidianas já apresentam. Nesse dia a “beleza negra” passa a ocupar o lugar de “certo” e a estética branca posicionada no lugar de vilã. Representando uma transposição de valores em discussões e debates.

Essa aparição, pontual e estetizada da beleza negra, na escola, assemelha-se à inclusão pontual de adolescentes negras na revista Atrevida, revelando que ambas as instituições estão inseridas em um mesmo contexto, a saber: as relações raciais no Brasil que são orientadas pela noção da branquitude normativa, pela qual o branco, considerado o representante geral da espécie humana, ocupa lugar privilegiado nas relações de poder, e ao mesmo tempo revelam-se preocupadas com a inclusão dos/as negros/as nas orientações pelos acordos e legislações de ações afirmativas vigentes no país.

As alunas, por sua vez, revelam dificuldade em tratar do tema, a começar por sua própria classificação. Os termos pardo e moreno são a saída fácil para aqueles que apresentam dúvida. As alunas demonstram intimidade com a ideia de se auto-classificarem, porque na escola essa prática já acontece durante as avaliações

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governamentais ou da própria escola; no entanto, ainda estão aprendendo como fazê-la. Os professores relatam que as/os alunas/os baseiam-se em uma classificação cromática, ou seja, exclusivamente no tom de pele: se estão mais pálidos desejam se classificar como amarelos, se estão bronzeados, mesmo que sejam brancos, se classificam como morenos. Quando são orientados que essa classificação tem um caráter racial, ficam confusas porque passa pela identidade dos sujeitos.

Passada a etapa de conhecimento dos sujeitos, o conteúdo da revista foi abordado. Quando perguntados sobre esse conteúdo, de forma geral, nenhuma delas fez menção explícita sobre a invisibilidade, ou aparição pontual das mulheres negras.

Já a intervenção direcionada, em edições em que apareciam modelos negras de forma relevante, as modelos negras são percebidas como objetos: também são invisíveis para as adolescentes, que enxergam apenas os produtos que elas estão vendendo. As modelos negras dificilmente aparecem ilustrando editoriais que versam sobre comportamento, estão sempre associadas a produtos e serviços que pretendem trazer sucesso e bem- estar, conseguidos pela aparência.

Já as adolescentes ou mulheres brancas da revista nem sempre são vistas como objeto, algumas delas são sujeitos de desejo das leitoras. Elas figuram seções sobre comportamento, ilustram de forma despretensiosa matérias sobre primeiro emprego, intercâmbio, turismo, são apresentadas como as pessoas capazes de ter todas essas realizações na vida, diferente da imagem da mulher negra, que geralmente é apresentada como alguém que precisa de outra aparência.

As celebridades são o foco das leitoras (e da revista), estas quando são negras tendem as ser “embraquecidas” pelas suas fãs - classificam outras pessoas semelhantes como negras e as celebridades como “morenas”. Se há chance de uma mulher negra figurar a revista como protagonista é se ela for uma celebridade; o mesmo acontece para as leitoras. Elas são capazes de admirar uma mulher negra, ou mesmo um homem negro, se eles forem celebridades.

Em uma segunda etapa da sondagem, quando abordadas sobre preconceito racial as alunas admitem que a sociedade é racista, porém demonstram que essa percepção é uma abstração para elas, que não conseguem verbalizar em práticas cotidianas essa discriminação e quais os reflexos dela em termos de desigualdade.

Só quando questionadas frontalmente admitem que as negras são minoria na revista, porém não conseguem problematizar o que de fato significa essa pouca presença. Repetem frases de efeito como: “o Brasil é racista”, não podemos ser racistas porque somos todos misturados”, “se for ver todo mundo tem algum

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africano no passado”. No entanto, não sabem apontar práticas de exclusão, não conhecem pessoas que são racistas e não reconhecem vítimas do racismo.

Se sentem excluídas das páginas da revista por não conseguirem consumir os produtos da revista, e não por não estarem representadas. Por estarem imersas em uma sociedade de valorização de um consumo exacerbado e de uma sociedade marcada por muitos anos de divulgação do mito da democracia racial, não conseguem perceber que consumo dos produtos significa alcançar determinada aparência, que é o padrão de beleza que a revista estipula: mulheres brancas, magras e de cabelos lisos.

As preocupações com cabelo revelam a capacidade que a manipulação da textura do cabelo tem de deixar as identidades raciais fluidas, e que mesmo sem muita elaboração de pensamento as adolescentes observadas sabem que podem transitar por diferentes pólos modificando o cabelo.

Considerações finais

Essas observações revelam como as adolescentes estão imersas no contexto das relações raciais desiguais no Brasil, que é ambíguo e cheio de disfarces (TELLES, 2003). Apesar de terem contato com a discussão sobre o tema, ainda ignoram o efeito dessas relações em seu cotidiano.

A implantação da lei 10.639/03 tem aguçado no espaço escolar discussões sobre as relações raciais, no entanto ainda de forma episódica e deslocada das práticas cotidianas. Os estudos sobre essas práticas são necessários para avaliar as estratégias para que os objetivos da sanção da lei sejam cumpridos: a promoção de ações afirmativas para visando à promoção efetiva da igualdade racial.

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POLÍTICA, EDUCAÇÃO E AFRO-BRASILIDADE: o movimento negro em Nova Iguaçu1

Cláudia Regina de Paula2

A história é uma aventura que nos mobiliza no sentido de construir um conhecimento que não aparte a imaginação do rigor. É o desafio que faz crescer a nossa vigilância epistemológica e os empurra para o discernimento de nuances explicativas capazes de resgatar (sempre parcialmente) a pluralidade de um universo que escapa às investidas de nossas ferramentas teóricas e confunde a nossa pretensão mais escondida de “ressuscitar” os mortos.

Clarice Nunes

Introdução

Os Movimentos Sociais operam práticas formativas, singulares, de modo informal, no plano cultural, político ou social, a ação ativista intencional e organizada escapa às categorizações e proclama múltiplas interpretações. Nessa perspectiva, ao me aproximar do debate do Movimento Negro3 em particular, busquei refazer o percurso no desenvolvimento de redes de conhecimento e formação.

A cidade de Nova Iguaçu4 foi escolhida especialmente por ser âmbito de

1 A presente pesquisa integra meus estudos de doutoramento, realizado com orientação do professor Dr. Roberto Conduru no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.2 Cláudia Regina de Paula é doutoranda em Educação pela UERJ, Mestre em Política Social pela Universidade Federal Fluminense/UFF. Licenciada em Pedagogia/UERJ, especializou-se em Relações Raciais e Educação pelo PENESB/UFF. Egressa do II Concurso Negro e Educação promovido pela ANPEd/Ação Educativa/Fundação Ford, atua como Técnica em Assuntos Educacionais na UFRuralRJ.3 A expressão “Movimento Negro” (MN), embora bastante vaga, pois congrega diversos grupos, associações, movimentos e entidades, será utilizada na compreensão de que, mesmo em diferentes contextos e a partir de especificidades, o MN e seus atores atuam como sociedade civil organizada e, nessa organização, fomentam novas políticas. Santos (1994, p.157) ao enumerar diversas ações empreendidas e fundadas por negros (culturais, religiosas, recreativas e/ou políticas) considera que [...] toda essa complexa dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana, constitui movimento negro. Ver SANTOS, Joel Rufino dos. “Movimento negro e crise brasileira”. In: SANTOS, Joel Rufino dos, BARBOSA, Wilson do Nascimento. Atrás do muro da noite; dinâmica das culturas afro-brasileiras. Brasília: Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, 1994.

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trabalho e ação política da pesquisadora, além de reunir especificidades pronunciadas no contexto e realidade social da Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro, que, até meados do século vinte era basicamente agrária.

Gomes (1996) pesquisou os quilombos da baixada iguaçuana no século XIX e identificou comunidades que viviam nas margens dos Iguaçu e Sarapuí, nas freguesias de Nossa Senhora do Pilar e Santo Antônio da Jacutinga. Além da facilidade de escoamento fluvial, a região também contava com estradas que ligavam à Corte (da Polícia e do Comercio) e, em meados do século XIX com o transporte ferroviário e a estação da Maxambomba. Embora dotada de condições favoráveis para o desenvolvimento econômico, a região foi abalada pela expansão da cana-de-açúcar do norte fluminense e pela produção cafeeira do Vale do Paraíba, agregadas as epidemias, como a cólera entre 1855-56, que provocou altos índices de mortalidade entre os escravizados.

Segundo o autor, havia ainda intensa e complexa rede de trocas entre aquilombados, taberneiros e mascates desde a “lenha do mangue” aos produtos pirateados dos barcos que por ali navegavam e dos roubos às fazendas. O contato dos quilombolas com as senzalas, as revoltas e fugas, ataques e saques ameaçavam a elite escravista e fortaleciam a resistência negra.

Na região de Iguaçu, a presença e atuação dos quilombolas, por quase um século pelo menos, possibilitavam a criação de uma economia local em que os quilombolas acabaram se tornando comunidades quase legitimadas localmente, ao mesmo tempo dentro da escravidão e alternativa à ela. (GOMES, 1996, p.282)

Esse território operou uma significativa transformação em suas características no processo de ocupação urbana quando as grandes fazendas foram subdivididas em chácaras e estas, em momentos e por meio de proprietários variados, foram parceladas e originaram diferentes loteamentos. Atualmente, 67% do território iguaçuano é composto de áreas de preservação ambiental, como a Reserva Biológica do Tinguá5. Entretanto, as características descritas, contrastam com a precariedade estrutural e socioeconômica da maioria de seus habitantes, como a falta de saneamento ambiental, o alto déficit habitacional e a elevada taxa de mortalidade por homicídio6.

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Passos iniciais

Meu primeiro movimento nessa pesquisa foi entrar em contato com a COPPIR de Nova Iguaçu e solicitar uma entrevista com seu atual coordenador, sem sucesso. Agendei uma visita quando tive acesso a uma síntese das ações da coordenadoria nos últimos cinco anos, que serão publicadas em uma cartilha.

Na Conferência Municipal e Intermunicipal de Educação – CONAE, ambas realizadas em Nova Iguaçu em 2009, entrei em contato com militantes do movimento social e pude verificar que atualmente algumas de suas lideranças participam em diferentes áreas da gestão do prefeito Lindemberg Farias, no segundo mandato pelo Partido dos Trabalhadores.

Entrevistei também dois militantes do Movimento Negro e, em respeito ao sigilo de pesquisa, optei por nomeá-los a partir de referenciais culturais africanos: uma líder do movimento de mulheres negras, aqui denominada Jamile e com um militante do Movimento Negro na cidade, sob alcunha Malik. Essas entrevistas sinalizaram uma imbricação entre as ações e atuações desses entrevistados na dinâmica política da cidade. Ambos, além da militância social também integram a gestão local em diferentes esferas. Em seus relatos também indicaram outros homens e mulheres que consideravam importantes na construção do movimento social na cidade, em especial do Movimento Negro. Nos depoimentos os entrevistados se reportaram às influências da Igreja Católica e das Pastorais na formação de lideranças do movimento social, optei em buscar as fontes de pesquisa nos arquivos da Cúria7 de Nova Iguaçu.

4 De acordo com o censo de 2000, Nova Iguaçu tinha uma população de 754.519 habitantes, correspondentes a 7,0% do contingente da Região Metropolitana, com uma proporção de 93,8 homens para cada 100 mulheres. Sua população estimada em 2005 é de 830.902 pessoas, sendo 55,3% afros descendentes (42,6% pardos, 12,7% pretos), 43,2% de brancos, 0,2% amarelo, 0,3% indígena e 1,1% sem declaração. O número de católicos é de 43%; 29% evangélicos; 22% sem religião e 6% de outras religiões.5 Declarada pela UNESCO como Reserva da Biosfera (Decreto Federal nº 97.780 de 13 de maio de 1987), a Reserva Biológica do Tinguá possui ainda hoje uma rica biodiversidade e abriga parte importante da Mata Atlântica do Estado, além de contar com a presença de rios, corredeiras, cachoeiras, piscinas naturais e ruínas dos séculos XVII e XIX.6 Para informações detalhadas, consultar: Projeto Localização dos Objetivos do Milênio - Cidade de Nova Iguaçu/RJ/Brasil, realizado pelo Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ) em julho de 2006.7 Pude contar com o valioso apoio do pesquisador e diretor do Arquivo Antonio de Lacerda nessa tarefa e expresso meus agradecimentos.

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Mobilizações, tensões e influências no jogo político

A partir dos anos 60 e 70 do século XX, opera-se uma luta de grande dimensão travada por vários países africanos contra a opressão colonial. Resistência e mobilização foram observadas em Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, para citar alguns países. Concomitantemente na América, movimentos pacifistas pelos Direitos Civis, assim como outros movimentos radicais (Panteras Negras, Mulçumanos Negros) lutavam contra o apartheid. Essa enorme mobilização projetou para o mundo lideranças como Luther King, Malcom X, Steve Biko e Nelson Mandela. A conjuntura internacional acirrou os movimentos de massa e revelou profundas desigualdades raciais que vitimavam afro-descendentes em todo o mundo. Enquanto isso, o Brasil imerso na ditadura militar, sufocado em suas demandas sociais assistiu a uma manobra política que reavivou o mito da democracia racial. Suspensão dos direitos políticos, cassações, perseguições, prisões e torturas foram alguns dos sofrimentos imputados aos militantes de esquerda, lideranças, estudantes, intelectuais e sindicalistas, que, alguns deles sob intensa pressão buscaram o exílio. Esse período, marcado pelo ostracismo na cena política brasileira, afeta substancialmente o debate racial, conforme salienta Hasenbalg (1995, p. 360):

O período que vai aproximadamente de 1965 até o final da década de 1970 não foi dos mais estimulados para pesquisar e escrever sobre as relações raciais no Brasil: o tema racial passou a ser definido como questão de ‘segurança nacional’. Em 1969, as aposentadorias compulsórias atingiram os mais destacados representantes da escola paulista de relações raciais. Além disso, houve falta de dados: por ‘motivos técnicos’ a pergunta sobre a cor foi eliminada do Censo Demográfico de 1970.

7 Barreira (2006), que investiga o processo de formação dos trabalhadores (1888-1925) a partir de práticas sociais não-institucionalizadas, em especial a imprensa operaria, também registra naquele contexto, na cidade de Sorocaba, São Paulo, as influências que os novos trabalhadores urbanos trazem com eles: tradições, hábitos e costumes de outras regiões do país, e de europeus recém chegados, principalmente da Espanha, Itália, Portugal e Alemanha. Novos modos de viver e pensar vão sendo incorporados, a circulação de saberes e ideias delegam a imprensa alternativa um decisivo papel.

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Em Nova Iguaçu destaca-se a trajetória de Dom Adriano Mandarino Hypólito, Bispo da cidade entre 1966 e 1995, dedicado as causas sociais e à luta contra a ditadura. Pertencente à ala mais progressista da Igreja Católica Dom Adriano entrevia na mobilização popular das Comunidades Eclesiais de Base, Pastorais e Associações de Moradores (reunidas em Federações como o MAB8 – Movimento de Amigos de Bairro em Nova Iguaçu), o fortalecimento do movimento social organizado. De fato, esse movimento operou expressou transformações nas comunidades mais pobres e significou instrumento de ação e formação política. Os relatos dos entrevistados nessa pesquisa, bem como as fontes consultadas confirmam a importância do movimento popular na Baixada Fluminense, como declara Maria José de Souza, ex-presidente do MAB:

Ajudei a criar a Associação de Moradores do Bairro Guandu. Foi em 1968. Na época lutávamos pelo saneamento. Fui presa, fiquei dois dias no quartel da Marinha acusada de subversão. Mobilizamos a população para uma reivindicação justa pela água. O MAB representou para a sociedade uma grande força política, mostrou a força dos movimentos populares que todos nos ajudamos a formar (SERRA et all, 2007, p.14).

Dom Adriano promovia um trabalho pastoral que buscasse soluções aos diversos problemas enfrentados pelo povo da Baixada Fluminense, muitos deles descritos por Alves (1998) em sua pesquisa “Baixada Fluminense: a violência na construção do poder”: coronelismo, grupos de extermínio, desova de cadáver, são algumas características da violência política e social praticada na região, acrescida dos problemas de saneamento básico, transporte, moradia. Era uma arriscada tarefa para Dom Adriano e seus fiéis. Sua defesa incansável dos Direitos Humanos em tempos de ditadura militar resultou em sequestro, na noite de 22 de Setembro de 1976. Após ter sido seguido em seu trajeto habitual, teve seu carro interceptado: encapuzado, algemado e espancado, Dom Adriano foi abandonado nu em Jacarepaguá, enquanto seu carro explodia em frente à sede da CNBB no Rio de Janeiro. As retaliações, no entanto, não se esgotaram nesse episodio, mas o Bispo

8 A Federação das Associações de Moradores de Bairro da Cidade de Nova Iguaçu foi fundada em 06 de dezembro de 1981 e é filiada à Federação Estadual das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro e à Confederação Nacional das Associações de Moradores (SERRA et all.,2007).

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não se intimidou. O trabalho social e pedagógico desenvolvido pelas Pastorais prosseguiu e a Diocese ainda investiu na construção do Centro de Formação de Líderes – CENFOR, inaugurado em 1978.

A Diocese de Nova Iguaçu, criada em 26 de março de 1960, pela Bula Quandoquidem Verbis do papa João XXIII publicava os periódicos: A Folha - litúrgico, Caminhando – informativo, que, ao final da década de 1980 registram diversos artigos que refletem as desigualdades raciais no país.

Em 1988, ano do centenário da Abolição, a Campanha da Fraternidade9

“A fraternidade e o negro” tinha como lema “Ouvi o clamor desse povo” foi amplamente noticiada nesses periódicos. No jornal “A folha” (Ano 16, nº. 839 de 31/01/88) o artigo sob o título “Preta e pobre, como nosso povo” Carlos Mesters, holandês, frade carmelita, teólogo, doutor e biblista, compara a figura de Maria, a Nossa Senhora Aparecida, ao povo brasileiro. O mesmo autor assina outros textos: “A população negra no Brasil, (A folha, ano 17, nº841), “O negro brasileiro no mercado de trabalho” (14/02/88 – ano 17, nº842), “Negro, educação e desigualdade ( 21/02/88, ano 17, nº843); Observa-se que do nº854 até o nº 887 na publicação litúrgica “A folha” predominam as questões sociais e o papel da igreja latino americana nesse contexto.

O Informativo “Caminhando” (Ano I, nº12, 1987), destaca a ordenação sacerdotal de um negro, na primeira página: “A ordenação do negro Ailton”: O Ailton pobre e negro agora glorificado em sua ordenação para o serviço do Povo de Deus, confirma profundas intenções. Não é o grande que liberta o pequeno. Não é a burocracia eclesiástica que vai libertar o Povo de Deus” O tom crítico da primeira página se torna um pouco mais moderado na página 3:

A ordenação sacerdotal de Ailton Izaías da Silva, negro, 33 anos e pertencente à Congregação dos Missionários do Sagrado Coração. O acontecimento realizado na Catedral de Santo Antonio, Nova Iguaçu, no dia 20 de Novembro – Dia Nacional da Consciência Negra - atraiu cerca de duas mil

9 A Campanha da Fraternidade busca vincular a Igreja às questões sociais, como demonstram os temas que antecederam ao de 1988 – A fraternidade e o negro: 1978 – Trabalho e justiça para todos, 1979 – Preserve o que é de todos, 1980 – Para onde vais?, 1981 – Saúde para todos, 1982 – A verdade vos libertará, 1983 – Fraternidade sim, violência não, 1984 – Para que todos tenham vida, 1985 – Para quem tem fome, 1986 – Terra de Deus, terra de irmãos, - 1987 – Quem acolhe o menor a Mim acolhe. (CNBB, 1988)

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pessoas que se emocionaram com o desenrolar da festa que teve vários destaques: dezenas de grupos de cultura afro-brasileiras, padres de várias regiões do país, o bispo diocesano Dom Adriano Hipólito e o bispo ordenante Dom José Maria Pires, antes conhecido por “Dom Pelé” e agora carinhosamente apelidado “Dom Zumbi” numa alusão ao fato de dedicar sua vida a luta dos negros, como ele.

A ordenação do padre negro em 20/11/1987 transformou-se num ato político emblemático. A crítica a burocracia eclesiástica também é descrita por Certeau (apud VIDAL, 2005, p.263), sacerdote jesuíta que questionava a lógica das instituições, inclusive da Igreja que, na sua concepção vinha perdendo fiéis enquanto a comunidade de fé se transformava em simples administradora de bens.

Em visita ao Brasil Certeau (ibidem) se impressiona com o contraste e as condições de vida dos pobres nas favelas cariocas “banida da cidade resplandecente e, ao que tudo indica, da luz que a envolve, à noite, o Cristo tão longe do Corcovado”. Para o autor, era preciso mudar radicalmente a posição da Igreja Católica no combate à pobreza. Esse redirecionamento, que se traduz na opção pelos excluídos, se realiza através da Teologia da Libertação do qual fazem parte Dom Adriano e outros sacerdotes na Baixada Fluminense naquele momento. Em sua entrevista, Malik se refere a esse movimento religioso como um marco em sua vida:

Toda a minha concepção ideológica ela tem base e sustentação, as raízes na Teologia da Libertação.Mesmo que hoje eu não tenha a pratica institucional da religião, foi ali que foi alicerçada toda a minha concepção filosófica, ideológica, política., todas as minhas raízes. (...) eu tinha 14 anos de idade e a partir daí começou minha militância no movimento social e não parou mais.(...)A Teologia da Libertação significava construir o reino de Deus aqui na terra. Para nós a questão racial era muito emblemática. Como haveria um reino de Deus aqui na terra com o racismo? A exploração, não combinava ... O machismo não combinava, o menor abandonado não combinava... Pra gente eram temas muito sensíveis que iam de encontro, entravam em choque com o nosso projeto.

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Rocha (1998), formado na Teologia da Libertação ou Teologia Latino-Americana, publicou pesquisa sobre os APNs – Agentes de Pastoral Negros em que relata o crescimento do debate e da consciência da negritude no mundo eclesial. As reflexões desse segmento indicaram a necessidade de realização de cursos de formação em nível nacional, estadual e regional. O Primeiro Encontro dos Agentes de Pastoral Negros ocorreu em São Paulo em 1983 e, até o ano de 1996, o autor registra a realização de 14 encontros nacionais e de vários cursos de formação acerca da teologia negra, um deles em Nova Iguaçu, assessorado pelo Frei Carlos Mesters no de 1988, sob o título “Negro e Bíblia” (ROCHA, 1998, p.149). O autor também se refere à realização da Primeira Semana de Teologia Afro-Latino-Americana em Nova Iguaçu no ano de 1992 que reuniu representantes do Brasil, Equador, Panamá, República Dominicana e Peru. O estudo de Rocha (1998) discorre sobre a trajetória dos Agentes de Pastoral Negros e dimensiona a ação da Diocese de Nova Iguaçu, naquele contexto.

Na participação nas Comunidades Eclesiais de Base onde foi se desenvolvendo um longo processo de formação da consciência crítica diante da realidade, muitos negros aprenderam a lutar e a defender coletivamente os direitos dos empobrecidos, pequenos e marginalizados. Nelas, os negros, como os demais empobrecidos latino-americanos, tomam consciência do desvirtuamento da proposta do Reino, oferecida por Jesus. Além do que, descobrem caminhos novos de atuação e novas formas de lutas que possibilitam a intervenção no processo histórico, saindo da situação de objeto para se constituir em sujeito da historia (ibidem, p.124).

Nos arquivos da Cúria de Nova Iguaçu localizei cartazes dos Agentes de Pastoral Negros, alguns manuscritos que demonstram articulação com outros movimentos, assim como descreveu MALIK. A seguir, extraído do cartaz original, descrevo uma convocação para um ato público:

Lei Áurea – 99 anos Ato público Agentes de Pastoral Negros – Nova Iguaçu e Caxias

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União e Consciência Negra (Chatuba) Cáritas/Comissao de Justiça e Paz Afro-Cultural 20 de Novembro Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra Comissão Pastoral da Terra Pastoral Operária

13/05/87 – 18:20 Concentração Catedral Caminhando para Praça da Liberdade

No ano seguinte, os APNs de Nova Iguaçu assinaram um novo cartaz conclamando para o ato em repúdio ao dia 13 de maio de 1988. Nota-se maior ousadia no texto, embora não haja referências a outros apoios ao evento:

12/05/88 – 19 horasAgentes de Pastoral Negros de Nova Iguaçu Ato público em Repúdio ao 13 de Maio Cem anos depois da dita - que foi uma Mentira Nacional, queremos denunciar a escravidão em que nós negros ainda vivemos, acreditando assim, viver o Sonho dos Quilombos.

Para Certeau (2008), o cotidiano, suas relações, ações e gestos produzidos pelos sujeitos sociais, suas “artes de fazer” e “táticas de resistência” inventam o cotidiano com mil maneiras de “caça não autorizada”. Na invenção do cotidiano os sujeitos se (re) apropriam, (re) significam os objetos e códigos. Nesse sentido, apontamos o período que sucedeu a abertura política no Brasil, marcado pela reorganização de movimentos silenciados, entre os quais o Movimento Negro, como um momento fecundo de práticas pedagógicas, formativas dos movimentos populares. Denunciando os efeitos perversos da ideologia do branqueamento, influenciados pela luta e conquistas dos negros na América e pelos processos de emancipação colonial na África, o MN buscou ainda criar uma comunidade de interesses em torno da origem africana, ressignificando os símbolos da cultura afro-brasileira (como sinaliza um dos slogans da época: “Negro é lindo!”).

0 povo negro tem um projeto coletivo: a edificação de uma

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sociedade fundada sobre a justiça, a igualdade e o respeito por todos os seres humanos; uma sociedade cuja natureza intrínseca torne impossível a exploração econômica ou racial. Uma democracia autêntica, fundada pelos destituídos e deserdados da terra. Não temos interesse na simples restauração de tipos e formas obsoletas de instituições econômicas, políticas e sociais; isto serviria apenas para procrastinar o advento de nossa emancipação total e definitiva, a qual virá apenas com a transformação radical das estruturas socioeconômicas e políticas existentes. Não temos interesse em propor uma adaptação ou reforma dos modelos da sociedade capitalista (NASCIMENTO,10 1980, apud GUIMARÃES, 2002, p.103).

Ao retornar do exílio em 1981, Abdias Nascimento, que participou ativamente do movimento pan-africanista internacional, elegeu-se Deputado Federal (1983-1987) e dedicou seu mandato à luta contra o racismo11. Destaco em seu projeto legislativo um sistema de valores que buscava eliminar referenciais racistas dos currículos ao mesmo tempo em que pretendia incorporar estudos relativos à história e cultura africana e afro-brasileira. Analogias (grifo meu) entre o que viria se conformar no texto da Lei nº 10. 639 em 2003:

Projeto de Lei nº 1.332 de 1983. Dispõe sobre ação compensatória visando à implementação do principio da isonomia social do negro, em relação aos demais segmentos étnicos da população brasileira, conforme direito assegurado pelo art. 153, § 1º da Constituição da República.

Art. 8º. O Ministério da Educação e Cultura, bem como as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, conjuntamente com representantes das entidades negras e com intelectuais negros comprovadamente engajados na matéria, estudarão

10 NASCIMENTO, Abdias. Quilombismo: an Afro Brazilian political alternative. Journal of black studies, 11(2): 141-178, Afro Brasilian Experience and Proposals for Social Change, december, 1980.11 Abdias Nascimento amplia sua atuação no parlamento ao eleger-se senador (1991-1999) pelo PDT e apresenta projetos definindo o racismo crime e mecanismos de ação compensatória, para construir a igualdade racial no país. NASCIMENTO, 2004.

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e implementarão modificações nos currículos escolares e acadêmicos, em todos os níveis (primário, secundário, superior e de pós-graduação), no sentido de:I – Incorporar ao conteúdo dos cursos de História brasileira o ensino das contribuições positivas dos africanos e seus descendentes à civilização brasileira, sua resistência contra a escravidão, sua organização e ação (a nível social, econômica e política) através dos quilombos, sua luta contra o racismo no período pós-abolição; II – Incorporar ao conteúdo dos cursos sobre História Geral e ensino das contribuições positivas das civilizações africanas, particularmente sues avanços tecnológicos e culturais antes da invasão europeia do continente africano;III – Incorporar ao conteúdo dos cursos optativos de estudos religiosos o ensino dos conceitos espirituais, filosóficos e epistemológicos das religiões de origem africana (candomblé, umbanda, macumba, xangô, tambor de minas, batuque, etc.); IV – Eliminar de todos os currículos referências ao africano como “um povo apto para a escravidão”, “submisso” e outras qualificações pejorativas;V – Eliminar a utilização de cartilhas ou livros escolares que apresentem o negro de forma preconceituosa ou estereotipada;VI – Incorporar ao material de ensino primário e secundário a apresentação gráfica da família negra de maneira que a criança negra venha a se ver, a si mesma e a sua família, retratadas de maneira igualmente positiva àquela que se vê retratada a criança branca; VII - Agregar ao ensino das línguas estrangeiras europeias, em todos os níveis em que é ensinado, o ensino de línguas africanas (yorubá ou kiswahili) em regime opcional;VIII – Incentivar e apoiar a criação de Departamentos, Centros ou Institutos de Estudos e/ou Pesquisas Africanos e Afro/Brasileiros, como parte integral e normal da estrutura universitária, particularmente nas universidades federais e estaduais (Projeto de Lei nº 1.332 de 1983 de autoria de Abdias

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Nascimento12)

Nos anos 80 do século XX o país estava imerso num projeto de redemocratização e um de seus ícones foi a Assembleia Nacional Constituinte, que reuniu lideranças com a missão de escrever uma Constituição Cidadã que legitimasse a democracia. A mobilização popular e a pressão da opinião pública contribuíram para que parlamentares reconhecessem a diversidade étnica, racial e cultural brasileira. Também ganhou visibilidade a luta dos remanescentes de quilombos pelo direito a terra. Os representantes das Entidades do Movimento Negro do país, na Constituinte, apresentaram uma agenda de reivindicações vinculadas à educação:

• Contra a discriminação racial e a veiculação de ideias racistas nas escolas.• Por melhores condições de acesso ao ensino à comunidade negra.• Reformulação dos currículos escolares visando à valorização do papel do negro na História do Brasil e a introdução de matérias como História da África e línguas africanas.• Pela participação dos negros na elaboração dos currículos em todos os níveis e órgãos escolares (HASENBALG, 198713 apud Santos 2005, p. 24).

Ao ser promulgada a Constituição Brasileira, após duro período de direitos restringidos e interditados pela ditadura, a nova carta tornou-se um marco no processo democrático. No que tange ao debate racial, a nova carta tornou os “preconceitos de raça ou de cor” crime inafiançável e imprescritível. No plano da cultura, ressalva-se a valorização e difusão das manifestações culturais dos grupos indígenas e afro-brasileiros. E, no direito a educação, a garantia da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola indicavam uma universalização do ensino, apesar das desvantagens educacionais entre brancos e não brancos permanecerem nas estatísticas educacionais. No plano político, o voto do analfabeto permitiu incorporar milhões de negros aos processos decisórios e democráticos.

13 HASENBALG, Carlos A. O Negro nas Vésperas do Centenário. Estudos Afro-Asiáticos. (13): 79-86, 1987.

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O Movimento Negro retoma o debate pela inclusão da temática afro-brasileira e africana na sala de aula, uma vez que essa reivindicação não foi contemplada. Mesmo com os avanços promovidos pela nova Carta, nosso modelo educativo permanecia excludente e reprodutor de desigualdades.

A década de 90 do século vinte também registra o início de um movimento de educação popular que viria a se desenvolver e se consolidar na Baixada Fluminense com o apoio da Igreja Católica e do movimento social: o Pré-Vestibular para Negros e Carentes – PVNC,

A oportunidade das camadas populares, pobres e negros, ingressarem nas universidades públicas fortaleceu a luta, a consciência racial e política desses grupos, além de ampliar o debate com a sociedade. Ressalta-se o apoio da PUC – Pontifícia Universidade Católica a esse movimento, oferecendo bolsas aos candidatos egressos do PVNC, atualmente o movimento está articulado em redes organizadas com vínculos e concepções distintas: a Educafro, com vínculo católico e o PVNC, laico.

(...) já havia naquele momento uma discussão racial, que vinha dos pré-vestibulares e de alguns grupos, alguns núcleos que se juntavam pela cidade para fazer discussões especificas, como o movimento de mulheres negras, pessoas que lutavam nesse período foi criado um comitê muito importante pra cidade, que foi o Comitê Manuel Congo que acumulava várias forças, vários segmentos da sociedade organizada em Nova Iguaçu, tinha pessoas ligadas aos partidos políticos, às varias pastorais, pessoas ligadas as associações de moradores (...) são várias as etapas, mas eu acho que só ganha força e uma certa efervescência com essa discussão advinda dos pré-vestibulares para negros e carentes e um pouco da ação das pastorais em relação as comunidades (Jamila).

Os mesmos anos 90, ao mesmo tempo, registram uma crise na esfera política e nos movimentos sociais. A nova geopolítica mundial, a globalização e o crescente neoliberalismo conjugados expressam uma descrença nas instituições políticas

11 Abdias Nascimento amplia sua atuação no parlamento ao eleger-se senador (1991-1999) pelo PDT e apresenta projetos definindo o racismo crime e mecanismos de ação compensatória para construir a igualdade racial no país (NASCIMENTO, 2004).

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e um arrefecimento nos movimentos de massa. Nesse contexto surgem diversas organizações que se agrupam em torno de temas e interesses específicos, (VIDAL, 2005) e essa formação identitária caracteriza muitas instituições/entidades que passam a lutar por questões pontuais, dentre elas a igualdade racial e a equidade de gênero.

A agenda contemporânea

Muitos caminhos foram trilhados até 09 de janeiro de 2003, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu primeiro mandato sancionou a Lei 10.63914. Decorridos alguns anos desse marco, permeado de conflitos, resistências e negociações para instituir o Artigo 26 A da Lei n° 9394/96, e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana15 o Movimento Negro reafirmou uma reivindicação anunciada anos antes. A omissão curricular da história e cultura afro-brasileira, e a proposta de mudanças curriculares que revertessem a constante depreciação e/ou ausência dos saberes e manifestações culturais dos afro-brasileiros e dos africanos, são focos permanentes do MN.

Seguindo exemplo de outros municípios e estados brasileiros16, Nova Iguaçu se antecipou ao indicativo da Lei nº10. 639, ao promulgar a Lei 12.716 de 20 de Novembro de 1995, que versava sobre a “introdução nas escolas do município das atividades e estudos direcionados ao resgate da história dos elementos da cultura afro-brasileira”, de autoria do então Vereador Artur Messias do Partido dos Trabalhadores17

14 A Lei nº 10.639 de 09 de Janeiro de 2003, altera a Lei nº 9. 394, de 20 de Dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. 15 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas, foram aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação como parecer CNE/CP3/2004, em 10 de março de 2004. A partir dessas Diretrizes, o CNE aprovou a Resolução nº1, de 17 de junho de 2004, regulamentando a temática nas diversas ações dos sistemas de ensino.16 Ver o estudo realizado por SILVA JUNIOR, Hédio. Anti-Racismo : Coletânea de Leis Brasileiras – Federais, Estaduais e Municipais. São Paulo: Editora Oliveira Mendes, 1998. Vários municípios contemplam a legislação anti-racismo como Aracaju, Belém, Porto Alegre, São Paulo e o Distrito Federal.17 O Partido dos Trabalhadores confirmou e ampliou, nas últimas eleições municipais de 2008, suas bancadas de vereadores e prefeitos na Baixada Fluminense: Belford Roxo, Mesquita, Nova Iguaçu e Paracambi são administradas pelo PT.

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(de 1991 a 1996). Malik relatou que o Coletivo Manuel Congo18 após intenso debate, apresentou, através dele, que atuava na assessoria do Vereador, o referido projeto de lei, sancionado pela Câmara de Vereadores de Nova Iguaçu.

O dialogo entre a sociedade civil, através do movimento social organizado e o poder público, pode ser compreendido na perspectiva de Scherer-Warren (2006, p.116-7):

As redes, por serem multiformes, aproximam atores sociais diversificados – dos níveis locais aos mais globais, de diferentes tipos de organizações –, e possibilitam o diálogo da diversidade de interesses e valores. Ainda que esse diálogo não seja isento de conflitos, o encontro e o confronto das reivindicações e lutas referentes a diversos aspectos da cidadania vêm permitindo aos movimentos sociais passarem da defesa de um sujeito identitário único à defesa de um sujeito plural.

Em geral, a parceria entre poder público e sociedade civil através de canais de representação, conselhos, fóruns e outras formas de participação democráticas, são bem vindas, no entanto, tais imbricações também despertam reflexões assim como Jamila: [...] Eu sinto assim: está num momento em que as pessoas precisam se juntar para pensar a questão independente da estrutura governamental, como agia exatamente o comitê Manuel Congo naquela formação.

Não circunscrito à Nova Iguaçu, mas disseminado nos diversos escalões da gestão pública, muitos militantes partidários e do movimento social passaram a ocupar cargos na esfera publica e a constituir e consolidar projetos que atendessem ao grupo de interesse, como descreve Lobato (1996, p.40):

O processo político é tanto mais amplo, quanto mais atores sociais dele fizerem parte, sejam institucionalizados ou não, estejam ou não representados em grupos formais de interesse. Mesmo sob as mais variadas formas organizacionais, com interesses os mais diversos e, portanto, com diferentes graus de

18 O entrevistado se refere ao Coletivo, Fórum e Comitê Manuel Congo, que segundo ele agregava diferentes forças políticas e culturais da cidade de Nova Iguaçu . Participavam dos debates integrantes do MAB, os Agentes de Pastoral Negros, Agentes Culturais, em especial o Polo Macunaíma, o MNU, UNEGRO, Sindicato das Domésticas, Pastoral Operária (...)

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poder, o processo político engloba tanto atores sociais quantos dele quiserem fazer parte, ao menos onde existirem canais democráticos de manifestação de demandas. Das relações estabelecidas entre esses atores resultará a política em si, sendo esta apenas uma das etapas de todo o processo.

Se o campo político é o lugar de concorrência pelo poder (BOURDIEU, 1989), esse tem sido arena de disputas do Movimento Negro em suas diferentes organizações que passaram a pleitear centralidade política e/ou se institucionalizaram. A Coordenadoria de políticas de promoção da igualdade racial da cidade de Nova Iguaçu – COPPIR pode ser um bom exemplo político-institucional: criada pelo Prefeito Lindberg Farias em 28 de Julho de 2005, pelo decreto lei nº 7186/2005. Segundo a Cartilha Aberta (2009), a COPPIR foi o primeiro organismo criado pelo poder executivo na Baixada Fluminense, vinculada ao gabinete do Prefeito, com a finalidade de implementar políticas públicas pertinentes às diversidades étnicas, transversalizando suas ações. Acerca da criação da COPPIR, relata JAMILA que essa ação foi fruto de reivindicações do Movimento Negro que emergiu por ocasião da Conferência Municipal de Igualdade Racial, realizada na cidade no ano de 2005.

[...] Na verdade a COPPIR foi criada por uma demanda do próprio movimento. Em 2005, o movimento criou a discussão na conferência. Foi uma conferência do movimento, não foi uma conferência de governo. Não foi uma conferência com apoio efetivo do governo, mas fruto da discussão que a Seppir fazia de ampliar para os municípios a discussão da questão racial.[...] Eu sinto que o movimento se sentiu meio responsável por esse filho, que foi a criação da COPPIR. Eu tenho visto que todos os passos da COPPIR, desde então, foram amparados pelo movimento, seja organizado ou não.

A indicação do nome de Geraldo Magela para coordenador da COPPIR, parecia consensual à época, assim como relata Malik:

(...) Teve uma luta muito interna, muito desgastante para nomear Geraldo Magela. (...) quando esse debate começou, nós

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queríamos alguém que conhecesse a nossa história. (...) Nós queríamos através da nossa experiência para elaborar uma política racial para a cidade, porque não queríamos uma coisa pronta. (...) Ele foi nomeado muito tempo depois da criação da COPPIR e, quando foi nomeado ganhou uma cadeira e uma mesa de estrutura... Por mais de um ano ele foi mantido assim (...)

A institucionalização de um projeto político alçou seus atores a co-responsáveis por sua causa e efeito. A dimensão subjetiva da ação política sugeriu uma atenção especial às consequências desta: não bastava criar a COPPIR, mas era necessário fortalecê-la, ampará-la, formando uma espécie de rede de proteção. Lutamos pela criação da COPPIR, então não podíamos deixar ele sozinho (...) MALIK.

Na perspectiva de atuação em rede, Scherer-Warren (2006) classifica em três níveis as formas que os grupos de interesse atuam em prol da promoção de políticas publicas. A autora considera o primeiro nível o associativismo local, ( associações civis, movimentos comunitários e sujeitos sociais envolvidos com causas sociais ou culturais do cotidiano, ou voltados a essas bases, como são algumas Organizações Não-Governamentais – Ongs. A autora não descarta a busca pela organização em rede desses grupos, em âmbito nacional ou transnacional.

O segundo nível compreende as formas de articulação inter-organizacionais, os (fóruns da sociedade civil, associações nacionais de ONGs e as redes de redes)

14 A Lei nº 10.639 de 09 de Janeiro de 2003, altera a Lei nº 9. 394, de 20 de Dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas, foram aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação através parecer CNE/CP3/2004, em 10 de março de 2004. A partir dessas Diretrizes, o CNE aprovou a Resolução nº1, de 17 de junho de 2004, regulamentando a temática nas diversas ações dos sistemas de ensino. 15 Ver o estudo realizado por Silva Junior (1998), em que o autor relata que vários municípios contemplaram legislações anti-racistas como Aracaju, Belém, Porto Alegre, São Paulo e o Distrito Federal. 16 O Partido dos Trabalhadores confirmou e ampliou nas últimas eleições municipais de 2008 suas bancadas de vereadores e prefeitos na Baixada Fluminense: Belford Roxo, Mesquita, Nova Iguaçu e Paracambi são administradas pelo PT.17 O entrevistado se refere à Manuel Congo como Coletivo, Fórum e Comitê, que segundo ele agregava diferentes forças políticas e culturais da cidade de Nova Iguaçu . Participavam dos debates integrantes do MAB, os Agentes de Pastoral Negros, Agentes Culturais, em especial o Pólo Macunaíma, o MNU, UNEGRO, Sindicato das Domésticas, Pastoral Operária (...)

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que buscam se relacionar entre si, para o empoderamento da sociedade civil. Embora esses dois níveis estejam assentados sobre o paradigma institucional, baseados em normas e procedimentos, registros e certificações em outros casos.

Scherer-warren (2006) chama a atenção para outras formas de protesto que qualifica como o terceiro nível organizacional: a mobilização na esfera pública. Os atores sociais empreendem um esforço de visibilidade que produz também efeitos simbólicos, como exemplificam as marchas, caminhadas e outros protestos.

Nesse processo articulatório, atribuem, portanto, legitimidade às esferas de mediação (fóruns e redes) entre os movimentos localizados e o Estado, por um lado, e buscam construir redes de movimento com relativa autonomia, por outro. Origina-se, a partir desse fato, uma tensão permanente no seio do movimento social entre participar com e através do Estado para a formulação e a implementação de políticas públicas ou em ser um agente de pressão autônoma da sociedade civil (SCHERER-WARREN , 2006, p. 113-4).

As tensões de que nos fala Scherer-Warren (2006), produzidas no movimento social e em seus agentes, se assemelham ao que vivenciam os militantes do Movimento Negro em Nova Iguaçu.

Embora a COPPIR tenha promovido maior visibilidade às suas ações, a institucionalização e os entrelaçamentos com o setor público, não significaram maior poder de ação, estrutura ou financiamento. Indicou ainda uma reorientação política, em que o Movimento Negro já não exercia a mesma pressão, na cidade, como podemos conferir na entrevista do atual Coordenador da COPPIR, Paulo Santana19 concedida ao Grupo Enraízados, em Agosto de 2009, em que relata sua chegada à COPPIR:

Cheguei a esse cargo por indicação do Ministro Edson Santos da Secretaria Especial da República de Promoção de Política de Igualdade Racial (SEPPIR). Eu fui Secretário Adjunto de Saúde e desenvolvi com o ex-coordenador algumas parcerias

19 A pesquisadora tentou agendar uma entrevista com o atual coordenador da COPPIR em Nova Iguaçu, sem sucesso. Em contato telefônico, este sugeriu que aproveitasse a entrevista concedida ao grupo Enraízados, publicada na Internet.

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institucionais, e, portanto, já tinha conhecimento da área de atuação, abrangência e importância da COPPIR. Disponível em http://www.enraízados.com.br/Conteudo/Entrevistas.asp (consulta realizada em 16/09/09).

Na mesma entrevista, ao ser perguntado: Já teve algum envolvimento com o movimento negro antes da COPPIR? Assim respondeu o atual Coordenador, o cardiologista Paulo Santana:

Nunca fui filiado a alguma entidade do movimento negro, porém desde pequeno a questão racial sempre esteve presente na minha vida e na minha adolescência estive próximo das pessoas do movimento e de suas organizações, discutindo, apoiando essa questão e também participando das suas várias atividades como as do MNU, Agbara Dudu, as atividades do Frei Davi, entre outras.

Na avaliação de MALIK, a COPPIR alcança visibilidade e importância política na medida em que acontecem, na cidade, várias discussões envolvendo as questões raciais. Segundo ele, quando a Seppir começa a realizar convênios com os municípios que tinham coordenadorias de promoção de políticas de igualdade racial, eleva-se a importância. E, na sua avaliação, embora reconheça a competência do atual coordenador, sua gestão está marcada pela questão da saúde, enquanto que Geraldo Magela ampliava o debate em diferentes campos. Eu particularmente, não vi como positiva essa troca, porque ela não foi discutida com o movimento social. Para Malik, o amadurecimento, a caminhada e o acúmulo de experiências de Magela à frente da COPPIR em Nova Iguaçu, que mesmo sem a estrutura mínima de assessoria, foi apoiado pelo Movimento Social e com isso realizou muitas ações importantes para consolidação do debate racial. Em busca dessas ações, em especial daquelas voltadas para a aplicação da Lei nº 10.639 na cidade, entrei em contato com a Secretaria Municipal de Educação e comparei aos dados apresentados pela COPPIR. Nota-se que essas ações são pontuais e carecem de planejamento, recursos e articulação.

No que tange à formação docente da rede municipal de ensino na temática étnico-racial, registram-se três projetos: Em 2006, “A cor da cultura” (com recursos dos diversos parceiros); Curso à distancia Gênero e Diversidade na Escola (diversos

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parceiros e recursos próprios) e I Formação Continuada em Historia e Cultura Afro-Brasileira (com recursos do FNDE) parceria da SEMED com a COPPIR na organização. O universo de docentes atendidos pelos projetos em relação à rede de ensino é simbólico, cerca de dez por cento: A cor da cultura – 70 professores; I Formação Continuada e Gênero e Diversidade – 200 professores cada. Ou seja, os projetos não demandaram recursos próprios dos cofres de Novo Iguaçu, mas, sobretudo do governo federal, parceiro e/ou provedor dos projetos. A propósito, com a instalação do campus avançado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro em Nova Iguaçu, a cidade também passou a usufruir de diversas atividades oferecidas pela Universidade, além dos cursos de extensão, graduação e pós-graduação. Com a criação do LEAFRO (Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros) a rede de ensino passou a ter mais uma oportunidade de formação inicial e continuada, mais uma vez com esforço e recursos federais. Nessa perspectiva, embora algumas iniciativas sejam louváveis, ainda falta vontade política na gestão local para atender às demandas sociais.

Algumas Considerações

A luta por reparação, valorização e reconhecimento da identidade e da cultura da população negra no Brasil é um processo de longa duração. A atuação dos movimentos sociais tornou-se mais efetiva a partir da formação de grupos de interesses na formulação e implementação das políticas, como vimos ao longo desse artigo.

Os Movimentos Sociais e seus agentes perceberam a lacuna de formação política necessária para a continuidade da luta. A Educação Popular, que parte da centralidade dos sujeitos, suas experiências, saberes e interesses contribui com o processo de humanização e consciência. Através dela, pretende-se favorecer o acesso aos direitos em sua plenitude. Forjada no e para o coletivo é conquistada na lógica do direito afirmativo. São experiências de luta, de solidariedade, de aprendizagens e conquistas. São experiências pedagógicas e políticas, plenas de significado. Percebemos nas ações pastorais, nas reuniões, encontros e atividades políticas, uma dimensão formativa que despertou muitos homens e mulheres, para o engajamento na luta pela afirmação e ampliação de direitos.

Tratamos em particular do Movimento Negro em Nova Iguaçu, mas através dele podemos dimensionar avanços e recuos, construção de significados e práticas, que manifestam diferentes modos de fazer política. Embora os processos

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 201

sejam sempre singulares, creio que, em certa medida, os militantes atuam como mediadores para a construção de um projeto alternativo de sociedade.

REFERÊNCIAS

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EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 203

A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DOCENTES PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES RACIAIS NOS PLANOS NACIONAIS DA EDUCAÇÃO

Iolanda de Oliveira1

Introdução

Educação e diversidade humana é uma questão incorporada por teorias pedagógicas contemporâneas as quais, estabelecendo a relação da educação com os grupos socialmente marginalizados, constatam entre os fatores determinantes da condição de inferioridade destes neste setor, o seu pertencimento a tais grupos. Entre estes, estão incluídos os que se diferem dos padrões socialmente aceitos por motivo do seu pertencimento a um segmento socioeconômico baixo, pelo fenótipo, pela cultura diferenciada, por serem portadores de necessidades educativas especiais, por motivo de pertencerem ao gênero feminino, entre outros outros sujeitos portadores de características que não conferem com os padrões inventados pelos que detém o poder Tais constatações têm fortes implicações na formação docente, cuja atuação contribuirá, na sua relação com os estudantes, para acentuar a situação constatada, mantê-la ou para promover o sucesso escolar de tais grupos.

No presente artigo, privilegia-se a questão da formação docente para a educação das relações étnico raciais, buscando averiguar as referências implícitas ou explícitas sobre esta questão, nos Planos Nacionais de Educação, em particular o Plano Nacional de Educação elaborado para o período 2001/2010, o Plano de Desenvolvimento da Educação elaborado em 2007, o Plano Nacional para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana e o Documento Referência da Conferência Nacional de Educação - CONAE/2010.

Privilegia-se este tema, não só pela sua importância no cenário educacional brasileiro atual, mas também porque esta é uma questão investigada por vários autores que apresentam nesta coletânea, os resultados dos seus estudos, os quais tiveram o nosso acompanhamento.

1 Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento -- USPProfessora do Programa de Pós-Graduação em EducaçãoCoordenadora do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira

204 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

A educação para a diversidade racial brasileira

A Educação é considerada como dever do poder constituído a partir da Constituição de 1824, cujo artigo 179 – das Disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, assim é redigido em sua alínea 32: “A instrução primária é gratuita a todos os cidadãos.” Este mesmo documento, em seu artigo 6 define cidadãos do seguinte modo: “Art. 6 são cidadãos Brasileiros: I - Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos, ou libertos.” Apesar de tal legislação ser datada da primeira metade do século XIX, o movimento negro do período imperial incorpora a educação em seus movimentos de resistência e durante todo o século XX, percebe-se que a educação é um bem cultural que a população negra inclui entre as suas principais reivindicações, culminando com a aprovação da Lei 10.639 em 2003, que atende pelo menos legalmente, a uma de suas reivindicações ao longo da história do negro no Brasil.

Sabe-se entretanto que a realidade do negro na educação brasileira é evidenciada comprovando a condição de inferioridade de pretos e pardos em todos os níveis de ensino, em relação à população branca que também em todos os níveis, goza de uma situação privilegiada, ocupando uma posição acima da média nacional.

Sabe-se ainda que vários fatores contribuem para manter a situação de desigualdade racial constatada no interior do sistema escolar, mas sabe-se também que a atuação do profissional docente na sua relação professor/aluno é, se não o mais importante, o fator mais decisivo na desconstrução de uma educação racializada. Uma educação para a diversidade racial brasileira não pode, sem dúvida, preiscindir do respaldo legal, mas a legislação só se concretiza no espaço escolar em uma dinâmica curricular e da sala de aula que privilegie uma educação anti-racista com conteúdo anti-racista. Para realizar tal trabalho, os profissionais docentes necessitam de uma formação que lhes garanta o domínio dos conteúdos a ensinar, dos valores que tal tipo de educação deverá privilegiar e de uma pedagogia que lhe permita manipular tais conhecimentos e privilegiar tais valores, colocando-os a serviço da equidade racial. Oriundos de uma trajetória escolar à qual tais conhecimentos e valores lhes foram negados, tanto os profissionais em formação inicial, quanto os que se encontram em exercício, somente terão condições de ter uma atuação satisfatória na educação para as relações étnico-raciais se tiverem em sua formação, tais conhecimentos de forma obrigatória. Os planos, em nível nacional, deverão, portanto, incluir a obrigatoriedade de tal formação. No corpo do

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 205

artigo, passa-se a analisar o potencial dos planos citados para que tal incorporação ocorra.

A questão racial e a formação de profissionais do magistério para a educação das relações étnico-raciais nos Planos Nacionais

O Plano Nacional da Educação, privilegia, no eixo IV, o Magistério da Educação Básica, tendo como subitem a Formação dos Professores e Valorização do Magistério. Destaca-se este subitem como condição necessária para que a qualidade do ensino se realize. Ao salientar a valorização do magistério, destacam-se três aspectos: formação inicial, condições de trabalho, salário e carreira e formação continuada. O destaque desses aspectos consiste nas condições básicas gerais para que tais profissionais atuem de modo satisfatório, mas não garantem que a diversidade racial será incorporada no trabalho docente. Por outro lado, o destaque neste mesmo item da necessidade de que o profissional seja formado para enfrentar “os novos desafios e as novas exigências no campo da educação” se aproxima da necessidade de atentar para a diversidade humana e seus efeitos na educação. Esta posição é comprovada através de um dos princípios do Plano cujo item h) é transcrito a seguir: “inclusão das questões relativas à educação dos alunos com necessidades especiais e das questões de gênero e de etnia nos programas de formação”. Embora o conceito de etnia não se aplique a toda a população negra, sendo comumente utilizado para referir-se à população indígena, é possível que os autores do plano tenham pretendido incorporar pretos e pardos com a redação deste princípio. Considera-se neste caso, importante rever o conceito que é atribuído à palavra etnia tomando-se como referência a conceituação de Munanga, (MUNANGA, 2009, p.5) “Uma etnia é um conjunto de indivíduos que possuem em comum um ancestral, um território geográfico, uma língua, uma história, uma religião e uma cultura”. Considerando-se a conceituação transcrita, a mesma se aplica com mais frequência a determinadas comunidades indígenas e a algumas comunidades quilombolas, mas este conceito não pode ser atribuído às comunidades urbanas, as quais foram muito mais afetadas pela dupla mestiçagem, isto é, pela mestiçagem biológica e cultural e portanto, não mantiveram as características atribuídas a um grupo étnico. O Conselho Nacional de Educação, no Parecer 03 aprovado em 10 de março de 2004, justifica a utilização da expressão étnico raciais do seguinte modo:

206 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

É importante também explicar que o emprego do termo étnico, na expressão étnico-racial, serve para marcar que essas relações tensas devidas a diferenças na cor da pele e traços fisionômicos o são também devido à raiz cultural plantada na ancestralidade africana, que difere em visão de mundo, valores e princípios das de origem indígena, européia e asiática (CNE,2004, p.13).

Deve-se entretanto, considerar que no Plano Nacional de Educação, a palavra etnia, possivelmente não é utilizada no sentido que lhe é atribuído pelo CNE, cujo Parecer data de 2004, sendo portanto, muito posterior à elaboração do Plano em estudo. Entretanto constata-se neste Plano no item 10.3 – Objetivos e Metas, nº 21 a seguinte redação:

Incluir, nos currículos e programas dos cursos de formação de profissionais da educação, temas específicos da história, da cultura, dos conhecimentos, das manifestações artísticas e religiosas do segmento afro-brasileiro, das sociedades indígenas e dos trabalhadores rurais e sua contribuição na sociedade brasileira (PNE,2001,p.82).

Percebe-se uma antecipação do que consta na Resolução nº 1 de 17 de junho de 2004, Art. 1º (caput) e parágrafo 1º do mesmo artigo, Resolução esta, instituída pelo Conselho Nacional de Educação que determina as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, cuja redação que corresponde às citações anteriores é a seguinte: Art. 1º A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores. Parágrafo 1º : As instituições de ensino superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram, a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP nº 03/2004.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 207

A despeito do mérito do Plano em discussão, por antecipar em parte, o que é determinado posteriormente como decorrência da aprovação da Lei 10.639/03, há no mesmo o destaque de um item sobre Educação Indígena e omissão completa de determinações sobre a Educação Quilombola.

Mediando a elaboração do novo Plano Nacional de Educação, a sociedade brasileira vivenciou uma fase em que a questão negra principalmente em educação, iniciou um momento ímpar de discussões a nível nacional. A implementação da política de ação afirmativa sob a modalidade de cotas e a aprovação da Lei 10.639/03 colocaram tais questões na pauta das discussões brasileiras. As determinações sobre as alterações curriculares na escola básica, bem como suas implicações na formação inicial e continuada de professoras, provocaram discussões principalmente no interior das escolas e busca de formação continuada de parte destes profissionais, conforme comprovam as demandas de tais cursos, principalmente os oferecidos pelas universidades públicas através dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs).

No âmbito de tais mobilizações, é elaborado, em 2007, o Plano de Desenvolvimento da Educação, como desdobramento do PNE, o qual omite a questão da diversidade étnico – racial. Neste mesmo ano, em resposta a um grupo de intelectuais e militantes que reivindicam a real implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, é criado um Grupo de Trabalho Interministerial, instituído pela Portaria MEC/MJ/SEPPIR nº 605 publicada em maio de 2008, ainda que o GT tenha iniciado os trabalhos no segundo semestre de 2007 tendo a tarefa de elaborar o Plano Nacional para implementação das referidas Diretrizes, Plano lançado em junho de 2009 após entrega oficial, pelo GT ao Ministro da Educação em novembro de 2008.

A versão entregue ao Ministro da Educação tem ao todo seis eixos estratégicos: 1. Fortalecimento do Marco Legal para a Política de Estado, com destaque

nos seguintes documentos:Constituição Brasileira de 1988, Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, Lei 10.639/03, Parecer CNE/CP 03/2004, Resolução CNE 01/2004, Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Declarações e Planos de Ação das Conferências Mundiais de Educação para Todos realizadas em Jontiem em 1990 e em Dacar em 2000 e conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias realizada em Durban (2001). Estas foram as bases legais que contêm compromissos assumidos pelo Estado Brasileiro para enfrentar o problema das desigualdades raciais no pais.

208 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

2. Políticas de Formação Inicial e Continuada para profissionais da educação e gestores. Neste eixo, a proposta incorpora a formação dos profissionais destacados em todas as instâncias, incluindo os quadros que atuam no MEC , nas universidades tratando-se da formação inicial e nas Secretarias estaduais e municipais de educação e a nível de escola.

No Ministério da Educação salienta-se a necessidade de formação dos quadros que atuam nos seguintes setores: Secretaria de Educação Superior (SESU), Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC), Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Conselho Nacional de Educação a fim de que os critérios de avaliação da educação superior sejam revistos no que se refere à estrutura curricular no sentido que sejam consideradas as determinações legais no que concerne à educação para as relações étnico-raciais. O GT apontou também a garantia de assento de pesquisadores negros da área de Educação para as Relações Étnico-Raciais, no Comitê Técnico Científico da CAPES, os quais deverão ser referendados pela Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e pela ANPEd, através do GT Educação e Relações Étnico-Raciais. Estes são alguns dos aspectos mais importantes da proposta elaborada pelo GT, sobre a Formação de profissionais da educação, com ampla participação da sociedade civil por meio de seis encontros regionais e um nacional.

Os outros eixos foram os seguintes: 3. Políticas de material didático.Quanto a este aspecto a proposta essencial é incluir as determinações do marco

legal na avaliação dos livros didáticos e paradidáticos inscritos nos Programas do livro didático, tendo como ação correspondente determinou-se a inclusão de pesquisadores e especialistas na temática da Educação para as relações Étnico-Raciais nas comissões avaliadoras dos programas do livro didático do MEC.

4. Gestão democrática e mecanismos de participação e controle social em educação.

Destaca-se, neste eixo, a meta de criação de um Fórum Nacional de Educação e Diversidade Étnico-Racial com representação dos fóruns estaduais e municipais.

5. Avaliação e monitoramento Propõe-se a criação de um sistema de informações que permita a avaliação

da implementação da Lei considerada em todas as instâncias a partir das unidades escolares, mediadas pelas secretarias municipais e estaduais da educação, culminando no MEC.

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 209

6. Condições institucionais. E finalmente algumas recomendações: determinou-se que a meta para garantir

a implementação aqui considerada consiste na garantia de recursos suficientes para a execução do que é proposto no Plano, com dotação orçamentária de parte da união, estados e municípios.

Entregue ao Ministro de Educação, a proposta foi alterada no interior do MEC e no documento aprovado, os eixos propostos foram mantidos de modo sintético. Deu-se destaque às atribuições dos sistemas de ensino federal, municipal e estadual, dos Conselhos de Educação, das instituições de ensino e dos colegiados e Núcleos de Estudos. Houve destaque dos níveis e modalidades de ensino e na educação nas áreas de remanescentes de quilombos.

O item X – Metas norteadoras e períodos de execução, contemplando parte significativa do plano original, a despeito de algumas perdas. Destacam-se as seguintes metas que interferem na formação inicial e continuada de professores:

• Incorporar os conteúdos previstos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana na construção do PNE 2012/2022 -- médio prazo.

• Regulamentação da Lei 10.639/03 em nível Estadual, Municipal e do Distrito Federal – curto prazo.

• Incluir como critério para autorização, reconhecimento e renovação de cursos superiores, o cumprimento do disposto no Art. 1º, parágrafo 1º da Resolução CNE nº 01/2004 – curto prazo

• Incluir na política nacional de Formação dos Profissionais do Magistério da Educação Básica, sob a coordenação da CAPES, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana – curto prazo

• Promover formação continuada de professores da educação básica que atuam em escolas remanescentes de quilombos, atendendo ao que dispõe o Parecer CNE/CP nº 03/2004 e considerando o processo histórico das comunidades e seu patrimônio cultural -- médio prazo.

Entende-se que a elaboração e a aprovação do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana, com a preservação de aspectos significativos do que foi proposto pelo GT, constitui um expressivo avanço para a promoção do negro brasileiro em educação. Entende-se também que é o momento da sociedade civil empreender esforços para a

210 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

incorporação do referido Plano, no Plano Nacional da Educação, em fase de discussão e que terá sua vigência a partir do ano de 2012.

Passa-se a averiguar se no Documento Referência CONAE, as determinações do Plano aprovado em atendimento ao que foi estabelecido pela Lei 10639/03 sobre a Formação de profissionais da Educação, foram contempladas.

Analisando o Documento Referência CONAE, encontram-se seis eixos, sendo o eixo IV Formação e Valorização dos Profissionais da Educação. Os outros eixos são:

I – Papel do Estado na Garantia do Direito à Educação de Qualidade: Organização e Regulação da Educação Nacional

II – Qualidade da Educação, Gestão Democrática e AvaliaçãoIII – Democratização doa Acesso, Permanência e Sucesso EscolarV – Financiamento da Educação e Controle Social eVI – Justiça social, Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade.Sabe-se que todos os eixos mantêm interfaces entre si, devendo concretizar-

se de maneira articulada, sem o que, compromete-se o desenvolvimento do Plano. Entretanto, por privilegiarmos, neste artigo, A Formação de Profissionais da Educação, particularizando os profissionais do magistério, centra-se a atenção nos aspectos do Documento Referência que abordam esta questão e no item VI por tratar da questão da Inclusão, diversidade e Igualdade.

O item 154 do eixo IV, destaca, entre as etapas e modalidades de educação, a educação profissional, de jovens e adultos, do campo, escolar indígena, especial e quilombola. O item 162 é redigido do seguinte modo: Nesse contexto mais amplo, uma política nacional de formação e valorização dos profissionais do magistério, pautada pela concepção de educação como processo construtivo e permanente implica: i) Garantia de que, na formação inicial e continuada, a concepção de educação inclusiva esteja sempre presente, o que pressupõe a reestruturação dos aspectos construtivos da formação de professores, com vistas ao exercício da docência no respeito às diferenças e no reconhecimento e valorização à diversidade.

No item 183, em seus subitens t e u, vê-se a seguinte redação:

t Implementar programas de formação inicial e continuada que contemplem a discussão sobre gênero e diversidade étnico-racial, com destaque para as lutas contra as variadas formas de discriminação sexuais, raciais e para a superação da violência contra a mulher;

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 211

u Implementar cursos de formação continuada e inserir na formação inicial conteúdos específicos de educação das relações étnico-raciais e de ensino de história e cultura afrobrasileira e africana.

O que está posto no Plano Nacional para implementação da Lei 10.639/03 está contemplado no que se refere a formação de profissionais docentes, principalmente no subitem u, no qual é transcrito o que é determinado pela Resolução 01/2004 do CNE.

No eixo VI, a questão da educação para as relações étnico-raciais é mencionada nos itens 269 e no 277, subitem c, como parte de questões vinculadas a outros grupos excluídos, o que em geral tem como consequência o tratamento da questão negra de modo secundário aos demais grupos que se encontram na mesma condição de rechaçados. Há que se considerar, entretanto, que a questão da educação para as relações étnico raciais, é tratada em particular no item 279 I que incorpora o que é determinado na legislação pertinente, fazendo referência no item a ao Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Eduação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana, com desdobramentos nos demais subitens, destacando-se entre estes o subitem j que é redigido do seguinte modo: Introduzir, junto a CAPES e CNPQ, a educação das relações étnico-raciais e a história e cultura africana e afro-brasileira como uma subárea do conhecimento dentro da grande área das ciências sociais e humanas aplicadas.

Estes são os aspectos os quais foram considerados mais importantes no Documento de Referência no que se refere à formação de profissionais da Educação com vistas ao atendimento das determinações legais pertinentes à questão aqui considerada e do que consta no Plano Nacional específico sobre esta questão.

Conclusão

A análise dos documentos selecionados para elaboração deste artigo, comprova que a educação para as relações étnico raciais na formação dos profissionais da educação é timidamente colocada no Plano Nacional da Educação vigente, omitida no Plano de Desenvolvimento da Educação e contemplada no Plano Nacional que teve a questão da educação para a diversidade racial como aspecto privilegiado, apresentando as diferentes facetas do problema constatado e propondo medidas

212 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

para alterar o quadro evidenciado desde a instância a nível nacional, representada pelos órgãos do MEC, passando pelos estados e municípios e atingindo a instituição escolar.

O Documento Referência, no eixo IV transporta para os seus itens e subitens, as questões essenciais sobre a formação de profissionais da educação para as relações étnico-raciais, mas ainda atreladas a outros grupos deserdados, o que pode provocar a diluição da questão negra, a exemplo do que acontece em situações análogas. É no eixo VI, que a questão negra ganha sua particularidade, no qual o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afor-brasileira e Africana é incorporado.

Pode-se afirmar que mantidos tais aspectos no documento final CONAE, ter-se-á legalmente a situação ideal para uma educação da diversidade racial brasileira, com ênfase na questão negra, com forte repercussão na proposta de formação dos profissionais do magistério. O grande desafio será, deslocar o que está posto no Plano para a realização concreta em todas as instâncias da educação, em um percurso, que tendo como ponto de partida o Ministério da Educação, deverá atingir a escola e a sala de aula, que são os lugares onde tais políticas se efetivam.

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MUNANGA, Kabengele. Teoria social e relações raciais no Brasil contemporâneo: refrescando a memória. São Paulo, 2009 (texto não publicado).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 213

A RELAÇÃO FAMÍLIA-ESCOLA RURAL/DO CAMPO: os desafios de um objeto em construção1

Maria Amália de Almeida Cunha2

Introdução

Pode-se dizer que os estudos versados sobre o mundo rural e do campo vêm deixando de ser ‘um não lugar’ na agenda acadêmica (CANÁRIO, 2008), para ocupar um importante espaço no debate atual. De acordo com Portes, Campos e Santos (2008), tal fato pode estar atribuído à própria complexidade dos fenômenos sociais que as populações que aí habitam vêm enfrentando desde a segunda metade do século XX, em detrimento da penetração do sistema capitalista nos modos de produção dos pequenos camponeses e agricultores. Segundo Vendramini (2004), a modernização da agricultura favoreceu a concentração da propriedade de terra e a subordinação do trabalhador do campo às novas exigências das agroindústrias, destruindo as pequenas unidades de produção. Como consequência, uma série de pesquisas e estudos relacionados à educação rural e do campo ganharam centralidade no debate acadêmico, debate este que enfatizou os problemas concernentes a esta modalidade de ensino, a realidade das escolas rurais, a formação do corpo docente, a situação socioeconômica das famílias rurais, o processo formativo do professor, a situação dos alunos/trabalhadores e das professoras que se dedicam também à colheita, o currículo, o transporte dos estudantes, a emergência dos movimentos sociais no campo e suas propostas educativas específicas (ARROYO, 1982; ARROYO, 2003; ARROYO, CALDART E MOLINA, 2004; FERNANDES, 2003; NETO, 2003).

Pensando em contribuir para a transformação de um ‘objeto social’ em ‘objeto de investigação científica’, este artigo pretende realizar uma reflexão acerca dos processos de socialização familiar e escolar no contexto rural/do campo. Para tanto, utilizamos como ponto de partida as impressões e registros dos alunos do curso de licenciatura do campo da UFMG, turma de 2008. A discussão ensejada faz parte do planejamento das atividades do Tempo Comunidade, momento em que os

1 Agradecimentos: Agradeço à colega Isabel A. Rocha, pelo convite à parceria intelectual, acadêmica e afetiva. À turma do LECAMPO 2008, pelo convite ao desafio.2 Profª Adjunta da Faculdade de Educação - Universidade Federal de Minas Gerais

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alunos, escolarizados em um regime de alternância, podem debruçar-se sobre temas importantes de análise trabalhados durante o curso.

Como bem sublinham Portes, Campos e Santos (2008), a relevância de estudos desta natureza diz respeito, no campo da pesquisa concernente a uma sociologia da educação de cunho mais qualitativo, à escassez de trabalhos que reflitam sobre as práticas de escolarização das famílias rurais. De acordo com os autores (2008), nos últimos anos, é possível observar um afluxo de trabalhos que versam sobre as práticas familiares/de escolarização dos filhos, que vão desde as camadas populares urbanas (PORTES, 2001; 2003; SOUZA E SILVA, 1999; VIANA, 2003; ZAGO, 2003), à baixa classe média (ROMANELLI, 2003), e passam pelas classes médias propriamente ditas (ALMEIDA, 1999; NOGUEIRA, 2003), encerrando-se com as elites (ALMEIDA, 2004; NOGUEIRA, 2002), por outro lado, como mostra a pesquisa bibliográfica levada a cabo pelos autores, pouco se tem pesquisado sobre as práticas de escolarização das famílias rurais/do campo. A relação cotidiana que estas mantêm com a escola é ainda muito pouco investigada.

Em se tratando especificamente da educação do campo, Fernandes e Molina (2004, p. 64) destacam a emergência de um novo paradigma como sendo resultado do conjunto de práticas pedagógicas desenvolvidas por diferentes movimentos sociais. Nesse sentido, de acordo com esses autores:

A ideia de Educação do Campo nasceu em julho de 1997, quando da realização do Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (Enera), no campus da Universidade de Brasília (UnB) promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em parceria com a própria UnB, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB).

A partir de então, têm surgido diferentes empreendimentos da própria população rural, por meio de suas diferentes organizações e movimentos sociais, visando colocar em pauta suas demandas, bem como construir uma identidade das escolas do campo. Destacam-se, assim, os convênios entre Movimentos Sociais, Universidades, Organizações Não-Governamentais, Instituições Públicas e Igrejas, entre outros, na produção de ideias e ações que atribuem um sentido renovado à

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concepção de escola no/do campo. Nesse contexto, podemos destacar as diversas práticas de escolarização que

vêm sendo realizadas no país vinculadas ao conceito da educação do campo, com o objetivo precípuo de trabalhar a partir da realidade do aluno, considerando as demandas e as necessidades locais em que esse está inserido.

No campo da legislação, podemos ressaltar a aprovação e a publicação da Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002, que instituiu as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, reconhecendo as especificidades do campo e da educação a ser oferecida nesse espaço.

Já no campo teórico, de acordo com Portes, Campos e Santos (2008, p. 6), a problematização sobre a emergência da concepção do campo em detrimento de uma educação rural reflete as limitações desta última em termos da abrangência da diversidade dos problemas e desafios colocados pelo mundo rural. Enquanto a educação do campo é percebida como espaço de resistência, produtor de vida e cultura, a educação rural é associada a uma concepção mais instrumental e por isso mesmo pouco ativa em relação aos desafios mencionados; ela é tida como uma educação tradicional desvinculada dos modos de vida da população camponesa e das relações sociais existentes no campo, cuja ideia de escola parece alheia ao seu local geográfico.

Em contraposição a um modo tradicional e refratário às mudanças, a educação no/do campo, segundo Caldart (2002), relaciona-se a uma reflexão pedagógica que surge das diversas práticas de educação desenvolvidas no campo e/ou pelos sujeitos do campo. É uma reflexão que reconhece o campo como lugar onde não apenas se reproduz, mas também se produz pedagogia, reflexão que desenha traços do que se pode constituir como um projeto de educação ou de formação dos sujeitos que ali vivem.

Desta forma, como aponta Portes, Campos e Santos (2008), os elementos pontuados para a caracterização da educação rural e da educação do campo demonstram que os dois conceitos se distanciam um do outro, uma vez que apresentam visões dicotômicas nas formas de pensar o campo, a educação e seus sujeitos.

Pensando nesses desafios, as análises que aqui se seguem refletem a importância da interface entre o ensino e a pesquisa, considerada esta o pilar para o aprofundamento das temáticas que envolvem a educação no campo. Se a dinâmica escolar no campo ainda está presente de maneira subliminar nas pesquisas sociológicas sobre este universo (PORTES, CAMPOS E SANTOS, 2008;

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VENDRAMINI, 2004; CALDART, 2003), ouvir o que têm a dizer os sujeitos deste processo parece constituir um meio eficaz de desvendar o interior desta ‘caixa preta’. Os documentos e arquivos responsáveis pela descrição, registro e memória deste contexto particular nem sempre estão disponíveis e/ou sistematizados. Deste modo, os alunos de licenciatura em educação no campo são eles mesmos protagonistas e autores das fontes que poderão servir como registro para futuros estudos.

A família e a escola no contexto rural/do campo: práticas de socialização dissonantes?

Pode-se dizer que os modos de socialização, tanto familiar quanto escolar, constituem um campo fértil de análise na sociologia da educação. Todo grupo social, como condição de sua continuidade, precisa transmitir à geração seguinte a experiência acumulada no tempo. O próprio nascimento ilustra a necessidade de renovação, dinamizando a necessidade de transformar a experiência acumulada de toda uma vida para além dos espaços da memória individual para que justamente essa memória se organize e seja registrada em um tempo histórico. Normalmente, quando o indivíduo nasce ele já encontra uma série de regras, classificações e modelos de comportamento e de conduta que são anteriores e exteriores a ele. A esse processo Durkheim (1955) chamava de socialização: modos de ser, pensar e agir que fazem parte da ação de uma geração de adultos sobre a mais jovem e que tem como objetivo imprimir uma natureza social ao indivíduo. A educação seria o meio mais eficaz, para Durkheim (1955), de tirar da criança a condição de tabula rasa e transformá-la em um ser social.

O processo de socialização é também fundamental para se analisar o papel da escola na sociedade. Em uma concepção tradicional (funcionalista, cujo principal expoente é Émile Durkheim), é por meio do processo de socialização que a escola e a família permitem, através de sua ação complementar, a integração dos alunos na sociedade, levando-os a assimilar valores, princípios, normas e regras de comportamento etc.

Todavia, quando se trata de perscrutar a dinâmica de duas das maiores instâncias de socialização, no contexto rural, a sociologia da educação parece ainda dialogar timidamente com esse universo.

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Práticas de socialização familiar

As práticas de socialização familiar em um contexto do campo devem ser pensadas à luz do uso diferenciado que a família rural faz do espaço e dos serviços da escola, estabelecendo uma relação íntima entre as duas instituições- escola e família-, não apenas no que se refere à apropriação dos saberes escolares, mas também aos serviços e práticas que a escola pode oferecer à família, sobretudo à mãe trabalhadora rural, no cuidado dos seus filhos (tempo dedicado às crianças e fornecimento de alimentação, pela merenda escolar etc.) (DE VARGAS, 2003, p.95). A escola também frequentemente se confunde com os espaços destinados à família, uma vez que não raras vezes as aulas ainda são ministradas nas casas das professoras, nas Igrejas, em salas comunitárias, entre outras.

Assim, no contexto de uma educação no/do campo, a linha de delimitação entre essas duas instituições se apresenta de forma bem mais tênue, embora cada uma delas continue representando espaços distintos de organização social (DE VARGAS, 2003, p.96).

(...) na zona rural as famílias não se encontram preparadas para enfrentar ou solucionar os problemas propostos pelos educadores de seus filhos. No campo os pais quase não têm tempo para participar dessa parceria, pois na maioria das vezes vão trabalhar nas plantações logo cedo e só voltam ao entardecer, para garantir o sustento da família. Seus filhos também perdem aulas ou abandonam a escola devido às suas tarefas domésticas, tais como arrumar a casa, tomar conta dos irmãos menores e ainda ajudar nas plantações (MARIA LÚCIA, ANDRÉIA PAULA, LUCILENE, SELMA - Turma de 2008)

Na minha comunidade ocorreram algumas mudanças na participação da família com relação a hoje. Antes, na escola, não se falava da realidade local, como por exemplo, a agricultura, cultura, crenças, que são diferentes em cada comunidade. Hoje se percebe que o diálogo da escola com a família está melhorando, a comunidade está participando. A mudança deve acontecer ainda mais, pois a família deve estar cada vez mais engajada na escola e vice-versa. A escola

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influencia a vida das pessoas na comunidade e a mesma reflete na sua cultura, costumes, etc. Dentro da sala de aula e fora das paredes da sala (EZEQUIEL, Turma de 2008).

Fiz uma observação em uma escola primária do campo, no município de Limeira do Oeste, MG e durante uma semana observei a rotina dos alunos desta escola, que atende crianças de várias comunidades, como o assentamento PA Reserva, Iaje, Iama, banco da terra (projeto do INCRA) etc. Percebi que as condições dos alunos do assentamento são muito mais precárias e eles parecem ser mais discriminados do que os outros (...). Eles dizem que a vida no campo é boa, mas não tem casa, energia e muitas outras coisas. Ajudam seus pais a tirar leite, juntar os bezerros, na colheita e tudo mais que eles pedem (LUCIANA, MARÍLIA, ROSIMEIRE - Turma de 2008).

A relação da família com a escola, no contexto pesquisado, parece difícil se levarmos em conta a própria dinâmica das escolas, com a crescente ‘pedagogização do cotidiano’, uma vez que, via-de-regra, a temporalidade e o ritmo da escola não levam em consideração a lógica do tempo das famílias que trabalham com a terra.

A prática do dever de casa, por exemplo, é apenas mais um indício desta dissonância. A esse respeito, Resende (2008) lembra da importância em se compreender a lógica que as famílias de diferentes meios sociais imprimem à escolarização. Lahire (1997) e Thin (2006) lembram também que quando se fala em dever de casa, torna-se necessário ir além da categoria classe social para poder analisar as configurações singulares de fatores ou traços que podem compor diferentes perfis familiares dentro de uma mesma classe. Assim, apesar de, no seu conjunto, as famílias de camadas populares tenderem a seguir lógicas socializadoras que, em vários aspectos, se opõem às lógicas escolares (THIN, 2006), há famílias oriundas das classes populares que manifestam traços favorecedores de maior adesão dos filhos às exigências do mundo escolar. É o caso, por exemplo, de famílias que valorizam de forma especial, dentro das suas possibilidades, a cultura escrita ou a própria cultura escolar.

De acordo com Resende (2008), o dever de casa é tido como toda atividade pedagógica elaborada e proposta por professores, destinada ao trabalho dos alunos fora do período regular de aulas. Inclui, assim, exercícios escritos, pesquisas,

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resolução de problemas, atividades práticas, dentre outras. Dessa forma constitui, por um lado, um dos dispositivos curriculares por meio dos quais a escola concretiza seu trabalho pedagógico. Pode-se dizer que o dever de casa faz parte de uma das rotinas curriculares instituídas pela escola e tacitamente aceitas pelos atores sociais nela envolvidos. Por outro lado, o dever de casa permeia também o cotidiano das famílias, redefinindo, em certa medida, o lar como uma extensão da sala de aula.

Desta forma, o dever de casa constitui apenas uma das dimensões da relação família-escola, entre tantas outras que têm sido objeto da sociologia da educação. Entretanto, sabe-se ainda muito pouco dessa cooperação no âmbito das famílias que vivem no campo. Faz-se necessário o aprofundamento de estudos etnográficos que possam dar conta da diversidade do campo e que possam igualmente mapear as dinâmicas de socialização assentadas na relação família-escola para que, de fato e de direito, a escola faça sentido na vida desses alunos.

Em nossa atividade de pesquisa, orientada no Tempo Comunidade, os alunos puderam fazer alguns registros acerca da percepção desta prática para algumas famílias, incluindo alunos e professor. Alguns relatos ilustram parte dessa rotina que envolve tanto a família quanto a escola:

A cultura escolar do ‘pára-casa’, que é uma estratégia metodológica para maior absorção e fixação dos conteúdos, na maioria das vezes é vista pelos alunos/as como castigo e punição, pois esta cultura nem sempre é contextualizada na realidade local, e não considera as condições pessoais. Na zona rural é muito comum encontrar estudantes que tem pai ou mãe com pouca escolarização e até mesmo analfabetos, o que torna a tarefa de fazer o dever de casa um compromisso difícil, penoso e desagradável (JOSILMA, MARLÚCIA, MARIA DO CARMO, MARIA ELIZABETE, SIMONE E HELENA - Turma de 2008).

Uma visita às famílias da zona rural do Município de Governador Valadares mostrou como é difícil falar com eles. O professor que entrevistamos, Edson, nos relatou que sempre que chegava às residências dos alunos, estes estavam desempenhando alguma atividade, algumas vezes estavam próximos à casa e interrompiam a atividade para lhe dar atenção e na maioria

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das vezes estavam em algum mutirão (é uma cultura da região trabalhar uma família para outra e se paga com um dia de trabalho e não com dinheiro) ou estavam trabalhando em algum lugar distante que nem era possível conversar com o estudante (...) (JOSILMA, MARLÚCIA, MARIA DO CARMO, MARIA ELIZABETE, SIMONE E HELENA - Turma de 2008).

“(...) quando este povo faz as tarefas de casa que eu e os demais professores passam”? Perguntou o professor Edson. “Foi aí que entendi o motivo pelo qual na maioria das vezes chegavam com as tarefas de casa sem fazer ou sem concluir. E decidi não passar mais os ‘pára-casa’ e os convidei a pensar comigo uma forma de dar maior qualidade para a disciplina, e juntos pensamos em ter uma atividade bimestral para fazer em grupo, definida no início do bimestre de forma que eles tivessem vários fins de semana para se dedicarem à tarefa, eu e eles/as avaliamos que foi muito mais produtivo que as tarefas em doses homeopáticas de ‘pára-casa’ e que criava sempre dificuldades para executá-las” (JOSILMA, MARLÚCIA, MARIA DO CARMO, MARIA ELIZABETE, SIMONE E HELENA - Turma de 2008).

Esses pequenos excertos ilustram a dificuldade em fazer concordar duas lógicas socializadoras que muitas vezes apresentam-se como assimétricas no campo. A chamada ‘pedagogização do cotidiano’ não encontra espaço em um ambiente marcado pela lógica da subsistência, enfatizando a centralidade do trabalho na vida dessas famílias. A baixa escolaridade dos pais, a precariedade das escolas, as longas distâncias a serem percorridas para poder estudar, entre outras, dificulta a realização de uma dinâmica marcada pela forma escolar hegemônica.

Práticas de socialização escolar

A concepção tradicional que temos a respeito da socialização escolar, ancorada no legado de Durkheim (1955), funda-se então em uma separação entre o mundo escolar e o mundo social. A escola deve estar protegida das paixões do mundo. A socialização tem por objetivo criar no homem um novo ser, o ‘ser social’.

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Durante muito tempo, foi este modo hegemônico visto como o mais adequado para se compreender como se transmitia o ensino e, consequentemente, a maneira mais eficaz de se compreender como ocorria a aprendizagem.

Na sociologia, foi a partir do final da década de 1960 que um novo modo de socialização passou a ser pensado. Um modo talvez menos centrado no papel da escola e mais atento às transmissões que ocorriam no ambiente doméstico. Tal abordagem permite inferir que o modo de socialização familiar pode trazer vantagens e desvantagens na educação dos filhos e que serão cumulativas no processo de aprendizagem vivido no ambiente escolar. Desta forma, a escola pode tirar proveito pedagógico da condição da educação vivenciada no ambiente doméstico e deste modo favorecer ainda mais os já favorecidos e desfavorecer os já desfavorecidos.

Pode-se dizer com isso, que para a teoria da reprodução cultural, cujo principal expoente é Pierre Bourdieu (1998), o que temos é uma teoria da ‘não-socialização’escolar, uma vez que esta é determinada primeiro pela cultura da classe de origem do indivíduo, depois pela reprodução da ordem social através da escola.

A escola, segundo Bourdieu, impõe o chamado ‘arbitrário cultural’, uma vez que ela não faz senão reconhecer ‘os seus’, isto é, aqueles que estão já de antemão socialmente destinados a ser reconhecidos por ela, identificados por seu habitus de classe.

A transmissão do saber para Bourdieu (1998) apóia-se no postulado da escola reprodutora das hierarquias sociais. Isto porque uma das principais funções da escola, para o autor, é a de assegurar o ajustamento entre as origens sociais e os destinos sociais estatisticamente previsíveis dos indivíduos.

Pode-se dizer que o papel da socialização escolar para Bourdieu (1998) é o de legitimar uma ordem social contestável. A cultura escolar que funda a socialização está longe de ser universal e objetiva, como pretendia Durkheim. Ao contrário, ela está muito próxima da cultura familiar dos alunos socialmente favorecidos com quem se estabelece uma espécie de conivência tácita. Se os herdeiros têm assim a capacidade natural de compreender as regras do jogo, um ‘sentido imediato de localização’ e de estratégia, os outros se acham sempre defasados, incapazes de desvelar as ‘astúcias’ da dominação e os obstáculos presentes no jogo escolar. Estes últimos manifestam, via- de- regra, expectativas limitadas em relação ao futuro escolar.

Estes dois modos de conceber o processo de ensino/aprendizagem são reveladores de uma prática que dificilmente conjuga as duas habilidades. Tanto na teoria funcionalista quanto na teoria da reprodução, o processo de socialização

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parece ser algo que acontece de modo independente da vontade do indivíduo. É como se este desempenhasse um papel passivo diante das instituições.

Segundo Iturra (1994), ensino e aprendizagem são processos que se acompanham um ao outro durante todo o processo educativo. Para o autor, o ensino seria a prática de transferir conhecimentos provados ou acreditados pela população que educa a população que se estima desconhecer as formas, estruturas ou processos que ligam as relações sociais com as coisas: a prática de fixar o estereótipo do social (...). Já a aprendizagem seria a prática de colocar questões por parte da população que ensina, que envolvem alternativas de respostas à população que começa a entender o funcionamento do mundo, onde a resposta encontra o iniciado, não sendo a sua atividade substituída pelo iniciador. Em síntese, para Iturra (1994), o ensino encerra uma repetição, criando uma subordinação entre aquele que ensina e aquele que aprende, ao passo que a aprendizagem é descobrir, decodificar o instituído criando alternativas, pressupondo uma relação de interlocução e de diálogo entre aquele que ensina e seu aprendiz.

Para Iturra (1994), na prática educativa escolar ocidental, estas habilidades estão separadas. Para os antropólogos a transmissão de um saber repousa no legado mais importante em qualquer tribo ou clã: a genealogia. Isto quer dizer, o conhecimento da ascendência e da descendência de cada indivíduo, o seu lugar na estrutura de relações: a quem pertence e para onde deve circular, bem como quais suas obrigações e os seus limites no acesso ao conhecimento. O conhecimento da sua genealogia pode ser descrito como uma prática de aprendizagem onde a ausência da escrita na vida cotidiana coloca um forte peso no desenvolvimento de estruturas mentais porque não tem depois de um texto onde ir lembrar o que fazer quando a memória se esgota ou a conjuntura muda e fornece outros contextos. Há mesmo um ditado em algumas tribos africanas que diz que quando um ancião morre em alguma aldeia, é toda uma memória viva que se esvai, um conjunto de livros que fenece.

De maneira geral, os dicionários não distinguem claramente os conceitos de educação, ensino e aprendizagem. Como afirma Vieira (2006, p. 525), para os dicionários de língua portuguesa, por exemplo, educar, ensinar e aprender tem um denominador comum: a ideia de instruir. Mas todo esse processo que envolve: educar, ensinar e aprender ocorre sempre dentro de um contexto e supõe aquilo que Paulo Freire (1920-1998) chamava de curiosidade epistemológica, ou seja, compreender os processos pelos quais os indivíduos educam, ensinam e aprendem é essencial para entendermos o alcance deste processo. Pode-se com isso dizer que

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semear não é difícil, o difícil é compreender a variedade dos modos de tratar aquilo que já brotou.

O processo educativo é a rotina que mais imprime uma marca em nossa maneira de agir e de sentir. Por isso mesmo, é o comportamento mais cotidiano de nossas vidas, na medida em que todos nós, de um jeito ou de outro, ensinamos a alguém e também aprendemos algo com alguém. Assim entendido, pode-se dizer que o processo educativo é algo muito mais amplo do que é caracterizado o ensino nas instituições especializadas (ITURRA, 1994).

Todavia, a descontinuidade que parece se observar entre ensino e aprendizagem diz respeito ao modo como nas sociedades modernas e contemporâneas, o modo de socialização escolar se impôs a outros modos de socialização, pretendendo-se tornar o modo de socialização hegemônico (VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001, p. 11). Neste sentido, o modo de socialização escolar tornou-se, por assim dizer, o modo legítimo de socialização. A forma escolar de relações sociais só se capta completamente, na ligação com a transformação das formas de exercício do poder. Como modo de socialização específico, isto é, como espaço onde se estabelecem formas específicas de relações sociais, ao mesmo tempo em que transmite saberes e conhecimentos, a escola está fundamentalmente ligada a formas de exercício do poder.

Para Vincent, Lahire e Thin (2001, p.18), qualquer forma de relação social implica ao mesmo tempo na apropriação de saberes construídos como objetivados, legitimados, explícitos, sistematizados, codificados etc., e na ‘aprendizagem’ de relações de poder. A Constituição do Estado moderno pressupõe uma cultura que se distancia cada vez mais das aprendizagens, no ‘saber-fazer’, para dar lugar a uma cultura grafocêntrica, centrada no modo de produção de uma escrita, na generalização da alfabetização e da forma escolar e na construção de uma relação distanciada da linguagem e do mundo. Anterior a este modo de socialização dominante, o que existiam eram as formas sociais orais de ensino e aprendizagem. Os saberes e o saber-fazer eram operados na e pela prática, de situação em situação, de geração em geração; a aprendizagem era incorporada pelo fazer e pelo ver fazer, não passando necessariamente pela linguagem verbal.

Para Canário (2008, p.39), a escola nasceu historicamente em ruptura com as comunidades locais, cujas solidariedades representavam um entrave à afirmação da lógica de mercado. A atividade pedagógica situa-se, tendencialmente, fora do espaço social e fora da flecha do tempo: o espaço e o tempo escolares são distintos dos espaços sociais e do tempo histórico, evidenciado a descontinuidade entre

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ensino e aprendizagem. A escolarização, como modo de socialização dominante e hegemônico, supôs a desvalorização dos modos de socialização anteriores.

Todavia, é preciso considerar que a aprendizagem acontece no decorrer da prática e não separada das práticas. É um tipo de saber que não existe fora das situações de sua efetivação, de sua mobilização. O processo de aquisição supõe a repetição e a identificação de algo que se vê, ou seja, algo no seu estado incorporado. Isso é particularmente visível nas sociedades sem escrita, em que o saber herdado só pode sobreviver no seu estado incorporado (VINCENT, LAHIRE E THIN, 2001, p.25). Neste contexto descrito, o saber não é em nenhum momento separado das práticas sociais do grupo, mas se transmite na prática, no âmago da prática, em uma participação, imitação, identificação entre o dito e o feito.

De acordo com esta lógica social, não há uma distinção entre a linguagem e o mundo, isto porque, como diria Paulo Freire, a leitura do mundo antecede a leitura da palavra. Esta lógica social onde estão ancorados os processos de aprendizagem se difere completamente das formas sociais escriturais, ou seja, formas sociais escolares de relações sociais. De acordo com Vincent, Lahire e Thin (2001, p.29), as formas escriturais encerram uma relação de poder e revelam, por meio da escrita, a existência de saberes objetivados. Isto porque é a escrita que permite a acumulação da cultura até então conservada no estado incorporado e que vai tornar cada vez mais indispensável a aparição de um sistema escolar. A escola torna-se o lugar cada vez mais central, o ponto de passagem obrigatório para um número cada vez maior de sujeitos sociais que se destinam a atividades e a posições sociais muito diferentes.

A forma social da escrita, tal como a forma social oral, fazem parte de um conjunto da formação social. Em uma sociedade “grafocêntrica”, como as sociedades ocidentais, as formas sociais de escrita são consideradas dominantes e as formas orais dominadas, o que pressupõe uma relação de poder entre ambas, já que, quem fala conforme as regras, coloca-se objetivamente em uma relação de poder. Aqueles que dominam as regras dominam, também, as formas de relações sociais. Assim, a oposição entre linguagem oral e linguagem escrita, conforme lembra Lahire (2000, p.52) não é técnica, mas social. Para este autor, as crianças ingressam familiarmente na escrita de diferentes maneiras; é nas relações de interdependência entre os membros da constelação familiar que se constroem as formas de controle de si e dos outros, as relações com a ordem organizam e intensificam, ainda que não deliberadamente, a aprendizagem da escrita e da leitura, as formas de autoridade tornam possíveis ou dificultam a construção de disposições culturais mais ou menos

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compatíveis com as políticas disciplinares próprias à ordem escolar (LAHIRE, 1997, p.141).

Pode-se inferir, com essa discussão, que a forma escolar é forma predominante no modo de socialização das nossas formações sociais, por isso ela é tida como a forma social dominante. Ela encerra uma organização racional do tempo, transforma o ensino em uma repetição de exercícios cuja função consiste em aprender conforme as regras.

Esse modo de socialização dominante, que transforma, por meio de um trabalho metódico, esquemas mentais em esquemas sociais, é essencial para a produção e a reprodução das nossas formações sociais, que consiste na reprodução das hierarquias, das classes, bem como de uma cultura legítima- porque legitimada por aqueles que estão em condição de julgar e de classificar aqueles que não dominam a forma dominante de socialização.

Tal predominância justifica-se, para Vincent, Lahire e Thin (2001, p. 38) pelo fato do modo escolar de socialização ter transbordado largamente as fronteiras da escola e atravessado numerosas instituições e grupos sociais, como a família, por exemplo, instituição que aprendeu a pedagogizar o cotidiano. Como lembram os autores, a tendência de numerosas famílias (principalmente nas classes superiores e médias) é multiplicar as atividades ‘extra-escolares’ dos filhos, com isso, espera-se que estes últimos interiorizem a aprendizagem da disciplina, o gosto pelo esforço, a importância do trabalho metódico, racional e que se curva ao rigor das horas. Todas as atividades organizadas regulam e estruturam o tempo das crianças: tendem a garantir sua ocupação incessante, ocupação cuja função consiste não tanto em enquadrar e vigiar, mas gerar disposições em relação à regularidade, ao respeito pelo emprego do tempo (2001, p. 41).

Para os autores supracitados, nas classes superiores e médias os pais- e singularmente as mães- tendem a se tornarem verdadeiros pedagogos para transformar a relação com os filhos em relações educativas, pedagógicas. Já as classes populares, sobretudo as mais dominadas no plano cultural, estão mais distantes do modo escolar de socialização.

Com isso, pode-se inferir que desde Émile Durkheim, há uma teoria global da socialização que procura colocar em evidência a maneira como a instituição escolar deve inculcar os saberes, os valores e as normas que permitirão a integração de todos os cidadãos em um modelo de sociedade: racional e científica, responsável pela difusão dos valores da modernidade. Neste modo de socialização hegemônico, as pequenas escolas rurais e do campo foram pouco a pouco sendo vistas como

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sinônimos do atraso, de certos particularismos e valores tradicionais que não se coadunavam mais com o projeto de modernidade, da qual a escola é a grande partícipe.

A esse respeito, a literatura internacional e nacional concernente à temática mostra como a transição para uma lógica de pensamento centrada em outros valores particulares ao mundo rural foi sentida de maneira tão dolorosa no processo de escolarização para as crianças do campo. A passagem de um esquema prático para um esquema mental, da casa para a escola, trouxe o seguinte dilema: ter sucesso na escola pode representar uma ruptura com os valores familiares (ALPE, 2008, p. 185). Como a escola pode continuar mantendo seu projeto, sem deixar de integrar aqueles que não estão inseridos nesta lógica?

Pouco a pouco o discurso em torno das escolas rurais demonstrou que era preciso retirá-la de um espaço geográfico que está na contramão do desenvolvimento, dando margem a uma série de políticas centradas na racionalidade e eficiência dos gastos públicos e talvez a nucleação das escolas rurais reflita hoje parte destas preocupações.

A nucleação das escolas do campo

O trabalho de campo da turma de 2008 do curso de licenciatura em educação no campo resultou em uma ‘pequena cartografia’ acerca da implementação e desenvolvimento das escolas no espaço onde vivem, bem como a situação atual das escolas no contexto em questão. O tema da ‘nucleação’ foi recorrente durante o processo de observação empírica.

O resultado desta pequena ‘sondagem’ revela o quanto ainda há muito por fazer em termos de políticas públicas para tornar explícito aquilo que ainda parece implícito. As informações encontram-se ainda truncadas, pois muitos alunos encontraram dificuldades de naturezas diversas, que vão desde a justificativa da inexistência dos dados até a indisponibilidade de alguns funcionários públicos em disponibilizar as informações (ROCHA & MARTINS, 2009).

O problema da nucleação das escolas já aparecia como um desafio para a política educacional do campo desde o levantamento de Ribeiro (2007), no âmbito do projeto realizado por meio do edital da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) nº 2/2006, cujo objetivo era mapear os trabalhos e pesquisas desenvolvidos no âmbito da Educação do Campo vinculadas ao Projeto Básico: Educação como exercício de diversidade: estudo e ações em

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campos de desigualdades sócio-educacionais, apoiado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade vinculada ao Ministério da Educação (SECAD/ MEC).

De maneira geral, é possível perceber, no levantamento realizado por Ribeiro (2007), as diversas dificuldades que ainda persistem no contexto educacional do campo. A precariedade continua sendo uma marca da educação no campo e em vários trabalhos constata-se a recorrência de problemas relacionados à infra-estrutura escolar, as escolas distantes do espaço de vivência da população do campo e que faz com que professores e alunos devam percorrer longas distâncias a pé, além de colocarem a vida em risco em veículos em condições inadequadas para o transporte escolar. A merenda e o material didático são, muitas vezes, insuficientes. Esse último apresenta ainda temáticas estranhas à cultura camponesa.

Nota-se que mesmo havendo uma legislação específica para a educação do campo, em muitas realidades ela é ignorada. Assim, seja de maneira explícita ou subliminar, a questão da nucleação das escolas do campo ainda aparece como um problema e ao mesmo como um desafio colocado aqueles que dependem dessas escolas.

A realização de uma espécie de ‘cartografia escolar’3 permitiu a coleta das seguintes impressões:

Tivemos várias dificuldades em acessar os dados (...). Eu fui com antecedência na secretaria de educação, mas a secretária me pediu duas semanas para conseguir os dados. Após esse prazo, quando fiz contato a mesma relatou que ainda não havia conseguido. Outras duas vezes fui à prefeitura e na casa dela, mas não a encontrei, deixando sempre recado. Quando a encontrei, nas vésperas de vir para o LECAMPO, ela disse que

3 A cartografia é a ciência que tem a proposição de representar o ambiente terrestre em diversas escalas através de mapas, cartas e recursos gráficos digitais. Têm como origem tempos remotos quando o homem primitivo representava seu ambiente e a disposição de certos recursos importantes à sua sobrevivência através de pinturas rupestres. Do início das grandes navegações européias no século XV aos dias atuais, foram sendo desenvolvidos métodos e tecnologias de captação e agrupamento de dados matemáticos e astronômicos mais precisos, buscando alcançar maior exatidão nas representações cartográficas. No campo educacional a cartografia parte do princípio de que o aluno deve elaborar primeiro um mapa menta a respeito da escola em que está se formando para atuar. Posteriormente, ele deve fazer o contato com as escolas e ao mesmo tempo proceder às descrições daquele universo observado: como a escola está organizada e estruturada, quais a condições físicas e materiais daquela escola, quem são os sujeitos que habitam esse universo, etc.

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não teve acesso aos dados porque a prefeitura é recente e não fez esses dados (ANDERSON E ALBERTO MARTINS).

O que muito me chamou a atenção neste processo de busca foi justamente a falta de informações referente às questões solicitadas. O que fica evidente é que os órgãos responsáveis por documentar e arquivar a ‘vida’ do município não tem demonstrado a preocupação em registrar essa memória, ou se tem simplesmente não disponibiliza. E isto não é uma limitação apenas da secretaria da educação, pois o mesmo aconteceu na secretaria de saúde do município (HELENA).

Como ressaltam Rocha e Martins (2009), mesmo diante das limitações os estudantes recorreram a outras fontes, como banco de dados disponíveis em sites governamentais, livro e ainda o registro oral de moradores da região. No transcorrer da pesquisa, os estudantes chamaram a atenção para a precariedade das escolas do campo, seja em relação aos recursos materiais, humano e físico:

As escolas em funcionamento precisam, nos prédios, de algumas reformas como cercamento do espaço, a construção de uma área para a prática da educação física, colocar água tratada e fossa séptica, equipamentos e móveis, além da oferta de uma merenda adequada (...) no campo político pedagógico parece estar ineficiente a orientação pedagógica, o material didático e principalmente, precisa-se da reabertura das escolas fechadas (JOSILMA - Turma 2008).Encontramos a maioria dos prédios em condições precárias, feitos de paredes pré-fabricadas, com mais de 10 anos de construção, com o telhado em estado de deterioração. As escolas têm pouco material didático e de consumo. A grande maioria não está adaptada para a educação infantil, apesar de ter demanda (HELENA -Turma de 2008).

Um dado significativo presente nestes relatos e evidenciado por Rocha e Martins (2009) diz respeito à redução do número de escolas no campo. Como apontam os autores, se as décadas de 1960 a 1980 estiveram marcadas pela implementação de escolas nas comunidades pesquisadas, a década de 1990 surge

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 229

como o momento do refluxo desta expansão. A diminuição do número de escolas no campo neste período coincide com o processo denominado de nucleação escolar4 . Nele, escolas do campo são extintas ou paralisadas e seus alunos remanejados para escolas pólos, geralmente situadas nas sedes do município. A redução das escolas pode ser percebida na tabela abaixo:

Município ou comunidadeEscolas nas décadas de 1960 a

1990

Escolas nos anos finais dadécada de 1990 a década de

2000

Virgolândia 13 04

Turmalina 55 18

Jordânia 17 13

Cruzília 14 03

Taiobeiras 26 11

Sobrália 09 02

Frei Inocêncio 10 03

Total 144 54

A escola depende da família e a família precisa da escola, a problemática desta questão está na politização do ensino. A nucleação rompeu com os laços culturais escolar, impondo sua política educacional (Alexandre; José Aparecido- Turma de 2008).

Considerações finais

Segundo Canário (2008, p. 33), a heterogeneidade das escolas rurais pode ajudar a produzir novas práticas pedagógicas, talvez menos alienantes do que o trabalho escolar que é produzido no contexto das formas escolares hegemônicas. Por isso, argumenta o autor, a escola rural pode ser um laboratório para se pensar um outro modelo de escola. Entretanto, as práticas escolares no contexto rural são ainda pouco estudadas, por isso é importante transformar esse objeto social em objeto de investigação (CANÁRIO, 2008, p. 34).

Como diz Vidal (2009), invadir a ‘caixa- preta’ da escola, máxima reiterada nas investigações recentes, tem significado também perscrutar as relações interpessoais constituídas no cotidiano da escola, seja em função das relações de poder ali estabelecidas, seja em razão das diversas culturas em contato (culturas

3 Segundo Vendramini (2006, p. 162) a nucleação escolar refere-se ao processo de agrupamento de escolas do campo e tem como projeto racionalizar a estrutura e a organização das pequenas escolas, que contam com reduzido número de alunos e diminuir o número de classes multisseriadas, orientando-se pelo Plano Nacional de Educação (Projeto de lei 4.173/98).

230 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

infantis, juvenis e adultas, culturas familiares e religiosas, dentre outras). Nessa perspectiva, a percepção das tensões e conflitos no ambiente escolar e nas formas como a escola se exterioriza na sociedade vêm matizando a visão homogeneizadora da instituição escolar como reprodução social (VIDAL, 2009, p. 26).

Se há um consenso de que o surgimento da escola, como vimos, marca um lugar específico e separado das outras práticas sociais, onde se constituem saberes escritos formalizados, produzem-se efeitos duráveis de socialização sobre os estudantes, disseminando a aprendizagem das maneiras de exercício de poder e propagando o ensino da língua na construção de uma relação escritural com a linguagem e o mundo, configurando aquilo que Vincent, Lahire e Thin chamaram de ‘forma escolar’, por outro lado, deve-se reconhecer que a cultura escolar guarda uma cota de permeabilidade ao câmbio, à troca por parte dos sujeitos envolvidos no processo educativo, muitos dos quais não se conformam à exterioridade das regras e buscam construir suas próprias experiências no percurso escolar.

Para Vidal (2009, p. 30), longe de querer desconhecer e desconsiderar a força dos elementos estruturantes da escola na sua constituição e consolidação como instituição social, faz-se interessante igualmente reconhecer e valorizar as alterações que foram sendo inseridas no cotidiano escolar, seja pela iniciativa das políticas públicas, seja pela ação dos sujeitos escolares. Sendo assim, não obstante a forma escolar constituir em uma forma homogênea e dominante de socialização, ela comporta também um lugar de fronteira cultural, de zona de contato, uma vez que a cultura escolar pode ser percebida como uma cultura híbrida.

Para a autora (2009), os sujeitos também fazem a história da escola e não são categorias abstratas, impassíveis diante do curso da história. Professores, pais e alunos passam a ser vistos como sujeitos privilegiados do processo de ensino-aprendizagem, pelas escolhas que efetuam e pelos saberes que produzem (VIDAL, 2009, p. 36). Deste modo, a cultura escolar não deixa de ser uma importante ferramenta teórica que permite vislumbrar as tensões presentes entre sociedade e cultura espelhadas pelo jogo escolar e que revelam todas as tensões e contradições presentes nesta relação.

O tratamento de uma temática considerada ainda incipiente na agenda investigativa reascende o debate a respeito da emergência de novas práticas educativas que nos ajudem a pensar criticamente a respeito da forma escolar instituída. A relativa escassez sobre os modos de socialização escolar e familiar no contexto rural revela a maneira como o mundo rural é ainda equacionado: de maneira simplista, como um problema exclusivamente associado ao desenvolvimento,

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 231

em contraposição ao mundo urbano industrializado. O diagnóstico a respeito dos ‘problemas do mundo rural’ é ainda percebido pela ótica do déficit cultural e material: ausência de recursos, falta de racionalidade pedagógica, insuficiência instrumental etc. A leitura é sempre realizada pela negativa quando Canário (2008, p. 37) lembra que é justamente a emergência do ‘desvelamento da caixa preta nas escolas rurais’ o que pode permitir nos desembaraçarmos de uma visão pragmática que prejudicou o pensamento educativo. Sendo assim, parece fundamental o exercício da produção de estudos etnográficos no campo que ofereçam elementos para uma ação mais eficaz tanto do Estado, dos movimentos sociais, quanto da própria Universidade e seu compromisso com a esfera pública.

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EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 235

A INTEGRAÇÃO ENTRE A QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL E O ENSINO FUNDAMENTAL (EJA) NO PROJOVEM RECIFE: a materialização da integração entre a formação geral e a formação profissional

Maria Angela Alves de Oliveira1

Introdução

Este texto buscará expressar os achados da pesquisa que objetivou analisar a integração entre a formação geral e a formação profissional no âmbito do Programa Nacional de Inclusão: Educação, Qualificação e Ação Comunitária – ProJovem na cidade do Recife-PE, o que implicou um olhar sobre o cenário em que se originam as políticas públicas de juventude, bem como acerca da nova face da dualidade estrutural a partir do modo de produção flexível.

As análises sobre as ações públicas destinadas à juventude no Brasil nos meados da década de 1990 realizadas por Rua (1998) afirmam que essas ações públicas caracterizam-se muito mais como “estado de coisas” do que como “problemas políticos”, estando incluídas nas políticas sociais implementadas pelo governo federal para todas as faixas etárias sem uma perspectiva de formação de valores e atitudes das novas gerações.

Dessa forma, no âmbito das políticas de juventude as representações normativas, embora focadas nos jovens envolvem, sobretudo, universos relacionais: jovens e mundo adulto, destacando-se possibilidades de interação, de conflito e de solidariedade marcadas pelo poder exercido nas instituições. Assim, Sposito e Carrano (2003) afirmam que as políticas públicas de juventude não são apenas o retrato passivo de formas dominantes de conceber a condição juvenil, mas podem agir, ativamente, na produção de novas representações. Concluem, então, que a conformação das ações e programas públicos não sofre apenas os efeitos de concepções, mas pode, ao contrário, provocar modulações nas imagens dominantes que a sociedade constrói sobre a juventude, sobre os jovens.

Helena Abramo (1997) identifica essa perspectiva sobre jovens como aquela que toma a juventude como uma etapa problemática. Nela, o sujeito jovem aparece

1 Universidade Federal de Pernambuco – Programa de Pós-Graduação Em Educação

236 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

a partir dos problemas que ameaçam a ordem social ou a partir do déficit nas manifestações de seu desenvolvimento. As questões que emergem são aquelas relativas a comportamentos de risco e transgressão. Em decorrência dessa visão, são comuns políticas de caráter compensatório, focalizadas em setores que apresentam as características de vulnerabilidade, risco ou transgressão, normalmente os grupos visados se encontram na juventude urbana, pobre e negra.

A base de sustentação das políticas de juventude é exatamente esse diagnóstico do envolvimento dos adolescentes com a violência, trata-se de uma “visibilidade perversa”, segundo Zaluar (1997), ela esconde a condição social desse jovem, mostrando apenas os dados da violência e não expõe as condições em que esta violência está sendo sofrida ou praticada. Contudo, para Sposito e Carrano (2003) há uma variedade de orientações, muitas vezes num mesmo espaço institucional, quando se trata da definição sobre ações que envolvem a juventude:

Vive-se a simultaneidade de tempos no debate sobre a juventude, o que faz a convivência, muitas vezes dentro de um mesmo aparelho de Estado, de orientações tais como as dirigidas ao controle social do tempo juvenil, à formação de mão-de-obra e também as que aspiram à realização dos jovens como sujeitos de direitos (p. 18).

Tomando esse quadro como referência, buscamos estabelecer uma reflexão sobre esse contexto complexo articulando-o com as questões relacionadas à educação profissional enquanto política pública direcionada aos jovens. Nesse sentido, Kuenzer (2006) ao analisar as mudanças ocorridas no âmbito do mercado de trabalho e da educação revela uma complementaridade dialética entre esses dois campos: de um lado, a exclusão includente, promovida pelo mercado de trabalho que exclui a força de trabalho de postos reestruturados, promovendo sua reinserção precária em outros pontos da cadeia produtiva, de outro lado, a inclusão excludente no âmbito da educação que, sob a defesa do discurso democratizante que sustenta as políticas públicas contemporâneas, inclui os jovens em modalidades precarizadas de educação profissional que servirão apenas para a certificação, a qual é incapaz de assegurar a inclusão e a permanência do jovem no mercado de trabalho.

Dessa forma, os jovens, sobretudo aqueles que constituem os denominados grupos vulneráveis ou focos de discriminação social, encontram-se duramente castigados e submetidos a uma sociabilidade da incerteza, da volatilidade. Educação

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 237

e trabalho, o par antes experimentado como passaporte viável à ascensão e mobilidade social, mostram-se igualmente como campo minado. Nessa perspectiva, a educação e outras demandas sociais continuam a exigir políticas públicas que venham eliminar a acentuada precarização dos jovens.

Nesse cenário há uma tendência considerável de aprofundamento do processo que denomina de “polarização de competências”: de um lado, diferentes modalidades de educação para a grande maioria exposta a uma formação de curta duração e baixo custo, de outro, formação mais complexa, de custo elevado e duração ampliada para aqueles que ocuparão cargos de concepção e gerência, referendando a continuidade da dualidade estrutural fruto da divisão social e técnica no processo de trabalho, cada vez mais concentradora e, portanto, contraditória. Explicita-se a equação que articula a “exclusão includente” promovida pelo mercado e a “inclusão excludente” no campo da educação (a formação geral e a formação profissional) posto que subordinada a esse mercado acaba por se desqualificar (KUENZER, 2006).

É nesse contexto, expresso pela dualidade estrutural do sistema educacional brasileiro e da construção de uma proposta de educação integrada, que compreende a formação geral e a formação profissional como partes inseparáveis em qualquer modalidade de ensino, sobretudo quando se trata da formação dos jovens brasileiros, que estaremos analisando a proposta oficial e as concepções que educadores, formadores e gestores têm sobre a articulação entre a formação profissional e a formação geral na materialização do ProJovem em Recife.

O Programa Nacional de Inclusão: Educação, Qualificação e Ação Comunitária – ProJovem se insere na Política Nacional da juventude, lançado em 2005 pelo Governo federal para execução pelos municípios / capitais do país. Foi dirigido a jovens de 18 a 24 anos, que terminaram a 4ª série, mas não concluíram a 8ª série do ensino fundamental e que não possuem vínculos formais de trabalho. Sendo considerado um programa emergencial e experimental, na medida em que focaliza o segmento jovem que busca chegar ao ensino médio e ao mercado de trabalho, a partir de uma proposta curricular articulando a formação geral, a qualificação profissional e o engajamento cívico.

Nas suas finalidades, o Programa enfatiza a formação integral do jovem através da articulação efetiva entre elevação da escolaridade, tendo em vista a conclusão do ensino fundamental; qualificação profissional com certificação inicial e o desenvolvimento de ações comunitárias de interesse público.

Acredita-se que a sua contribuição se expressará na reinserção do jovem na

238 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

escola; na identificação de oportunidades de trabalho e capacitação dos jovens para o mundo do trabalho e ainda na inclusão digital como instrumento de inserção produtiva e de comunicação, objetivando a promoção da equidade, superando assim a situação de exclusão em que se encontram os jovens no que se refere aos direitos à educação e ao trabalho. Em síntese, a integração entre educação, trabalho e ação comunitária tem como propósito a inclusão social dos jovens cidadãos (BRASIL, 2005).

Em virtude da faixa etária alvo do ProJovem, ele tem abrigo na educação de jovens e adultos, articulando o acesso à continuidade dos estudos e o mundo do trabalho, através dos Artigos 37 e 39 da LDB:

Para a clientela alvo do ProJovem, a LDB prevê a educação de jovens e adultos, destinada àqueles que não tiveram acesso à continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria (Artigo 37), oferecendo-lhes oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses e condições de vida e de trabalho (Cf. § 1º do Artigo 37). Esse jovem, matriculado ou egresso do ensino fundamental (...), bem como o trabalhador geral, jovem ou adulto, contará com a possibilidade de acesso à educação profissional (Parágrafo Único do Artigo 39), a qual integrada ás diferentes formas de educação ao trabalho, à ciência e à tecnologia, conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva - Artigo 39 - Artigo 3º - Inciso XI (BRASIL, CNE/CEB, Parecer 02/2005).

O ProJovem atende aos objetivos tanto da educação de jovens e adultos quanto da educação profissional, com a finalidade da qualificação para o trabalho e a elevação da escolaridade do trabalhador, segundo itinerários formativos tendo em vista o desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva e social, a partir dos Artigos 37 e 38; 39 a 42 da LDB e Artigo 3 do Decreto n 5.154/04:

Quanto à natureza do ProJovem, ele atende tanto a objetivos da Educação de Jovens e Adultos, prevista nos Artigos 37 e 38 da LDB, quanto a objetivos da Educação Profissional, prevista nos Artigos 39 a 42 da mesma LDB, e deve ser ofertado e realizado

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 239

segundo itinerários formativos, objetivando o desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva e social (Artigo 3º do Decreto nº 5.154/04, in fine), na forma prevista pelo § 2º do Artigo 3º do Decreto nº 5.154/04, isto é, articulando a Educação Profissional e a Educação de Jovens e Adultos, objetivando a qualificação para o trabalho e a elevação da escolaridade do trabalhador (BRASIL, CNE/CEB, parecer 02/2005).

O Projeto Pedagógico Integrado (PPI) do ProJovem se sustenta em três dimensões que funcionam como vigas mestras: a Formação Básica para elevação da escolaridade ao nível da 8ª série do ensino fundamental; a Qualificação para o mundo do trabalho, incluindo qualificação inicial em um arco de ocupações; e a Ação Comunitária/Participação Cidadã, envolvendo uma experiência de participação social cidadã.

Para que o curso cumpra as finalidades a que se propôs, essas três dimensões devem ser articuladas, de modo que cada uma contribua para fortalecer as demais. Assim, o ProJovem propõe aliar teoria e prática, formação e ação, explorando a dimensão educativa do trabalho e da participação cidadã. E para que a Educação Básica, a Qualificação Profissional e a Ação Comunitária/Participação Cidadã possam se fortalecer mutuamente, cada uma delas deve desenvolver-se plenamente e em consonância com os requerimentos para uma inserção plena, criativa e produtiva desses jovens na sociedade contemporânea.

O trabalho e a formação profissional no contexto da dualidade estrutural do capitalismo e nos marcos de uma concepção unitária e integral

Não existe a possibilidade de desvincular o trabalho e a educação do processo histórico. Saviani (2007) considera que há uma identificação entre educação e trabalho que serve de alicerce à produção da própria existência do ser humano, isto é, era trabalhando que se aprendia a trabalhar. Os homens se educavam e educavam as novas gerações, sendo a experiência a responsável por validar as formas e conteúdos que deveriam ser preservados e aqueles descartados em função da continuidade das espécies, assim, o processo de aprendizagem, coincidia com a própria produção da vida. Nas origens da humanidade, a educação coincidia inteiramente com o próprio processo de trabalho, ou seja, os homens reproduziam sua existência coletivamente,

240 EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE

o trabalho era comum a todos. Na sociedade primitiva, eles se educavam nesse processo, educando, também, as novas gerações, de forma assistemática.

À medida que a divisão social do trabalho foi se consolidando, em decorrência do desenvolvimento da produção por meio da apropriação privada dos meios de produção, houve uma ruptura da unidade entre trabalho e educação tal como existente nas comunidades primitivas. Assim, o desenvolvimento das forças produtivas, a apropriação privada dos meios de produção e o aprofundamento da divisão social do trabalho farão emergir duas classes fundamentais: a classe dos proprietários e a classe dos não-proprietários, tornando possível a primeira classe viver do trabalho alheio, contradizendo a compreensão ontológica do homem de que é o trabalho que define a essência humana, que ninguém pode viver sem trabalhar.

Historicamente a separação entre os que concebem e os que executam o pensado foi se agudizando, o que redundou no acirramento das desigualdades entre os homens. O aprofundamento da divisão social do trabalho fez eclodir contradições e, portanto, relações sociais conflituosas face à distribuição desigual dos bens materiais e do seu consumo (MACHADO, 1989).

Ao considerarmos que os processos educativos possuem uma estreita vinculação, ou mesmo uma estreita influência do meio social no qual se efetivam, podemos compreender que estes sofrem as consequências do aprofundamento da divisão social do trabalho, particularmente da divisão entre o trabalho manual e intelectual. Nesse contexto, são estabelecidas duas modalidades distintas de ensino e aprendizagem de acordo com cada classe fundamental. Para a classe dos proprietários os processos centram-se nas atividades intelectuais, que vão originar a instituição escola. A classe dos escravos e serviçais, os responsáveis pelas atividades manuais, desenvolviam sua formação concomitantemente ao exercício das respectivas funções. Originando-se nos contextos da Idade Antiga e Idade Média, nessas práticas se encontram as raízes da nova determinação da relação entre trabalho e educação que vai se expressar em toda a sua magnitude quando da afirmação do modo de produção capitalista (SAVIANI, 2007; PETITAT, 1994).

Como nos chama a atenção Althusser (1985), a necessidade de valorização do capital provoca a existência de processos educativos que disciplinem os trabalhadores de forma a submetê-los à ordem dominante. Esta ordem historicamente vem assumindo diferentes formas de organização do trabalho e da produção, em virtude das chamadas crises cíclicas do capitalismo e das tentativas de sua superação, sempre com a incorporação de inovações técnico-científicas (FRIGOTTO, 1984).

Assim, a segunda Revolução Industrial (de meados do Século XIX) e, mais

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 241

tarde, as tentativas de superação da crise de acumulação instalada no final dos anos de 1920, traz a adoção da produção de base taylorista/fordista, nos Estados Unidos, e que se expande pelo mundo no decorrer do século XX. Esse modelo, acirrou a divisão técnica do trabalho que passou a ser marcada pela nítida definição de fronteiras entre as ações intelectuais e instrumentais no processo de trabalho. Tal cisão fundamentava-se nas relações de classes bem definidas, que determinavam as funções a serem exercidas pelos planejadores e executores, demonstrando que a relação entre educação e trabalho era claramente determinada pela dualidade estrutural (KUENZER 2007; FRIGOTTO, 1984).

As consequências do trabalho baseado nos moldes taylorista/fordista foram diversas: as capacidades humanas de percepção, atenção, os gestos, movimentos e o ritmo de trabalho foram todos subjugados à máquina. Essa forma de trabalho, ao invés de ser experiência formativa, tornou-se fonte de alienação, por não permitir o desenvolvimento das capacidades humanas em todas as suas potencialidades. Quanto mais o trabalho se fragmenta e se especializa, menos se desenvolvem as capacidades intelectuais, o homem se distancia do conhecimento e da visão totalizante da sociedade (FRIGOTTO, 1984).

Como sabemos, com a crise dos anos de 1970, o modelo taylorista/fordista perde a primazia para o modelo de acumulação flexível que vai promover significativas mudanças nos processos produtivos. No que se refere ao mundo do trabalho, a intensificação do uso de novos materiais, da química fina, da microeletrônica, dentre outras inovações tecnológicas, vão fazer com que diminua a absorção da força de trabalho nos moldes da regulamentação anterior, face a exacerbação da automação das empresas de ponta (HARVEY, 1992).

Neste quadro, aumenta o trabalho precário e temporário e, para os chamados grupos centrais de trabalhadores (os poucos que vão lidar com a produção de bens e serviços altamente tecnologizados) passam a ser exigidas novas habilidades que se proclamam como uma formação aos moldes da politecnia, trazendo em seu bojo um discurso de superação da histórica dualidade estrutural. Por um lado, o que será exigido de apenas alguns – uns poucos que compõem o núcleo duro do “novo mundo do trabalho” – é difundido como sendo uma necessidade de todos, numa clara expressão da ideologia que encobre as diferenças de oportunidade e, portanto, as desigualdades existentes na sociedade. É o momento em que se cunham as noções de “empregabilidade”, novas “competências” entre outras, como essenciais para a absorção dos trabalhadores no novo mercado. De outro lado, explicita-se a seguinte contradição: quanto mais se simplificam as tarefas, mais se requer conhecimento do

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trabalhador, exigindo-lhes competências cognitivas superiores e de relacionamento que serão úteis apenas para uns poucos.

Como argumenta Kuenzer, o desenvolvimento científico, ao ser apropriado pelo capital, aumenta sua força produtiva gerando um tipo de desenvolvimento social que se coloca:

[...] em oposição objetiva ao trabalhador; assim, o conhecimento científico e o saber prático são distribuídos desigualmente, contribuindo ainda mais para aumentar a alienação dos trabalhadores. A escola, por sua vez, se constituiu historicamente como uma das formas de materialização desta divisão, ou seja, como o espaço por excelência, do acesso ao saber teórico, divorciado da práxis, representação abstrata feita pelo pensamento humano, e que corresponde a uma forma peculiar de sistematização, elaborada a partir da cultura de uma classe social (KUENZER, 2005, p. 79).

No modo de acumulação flexível, o trabalho torna-se mais abstrato, isto é, mais simplificado, ao mesmo tempo em que se exacerba a destruição da natureza e do meio ambiente. Em consequência, têm surgido novos movimentos sociais que se aglutinam em lutas contra a ordem estabelecida, buscando o equilíbrio na relação homem-natureza. Em suas demandas, os movimentos proclamam a necessidade de atitudes relativas à preservação ambiental, maiores conhecimentos sobre saúde e segurança no trabalho, maior grau de participação e organização em todos os setores da vida social e produtiva.

Em tal contexto, a relação educação e trabalho passa a ser mediada pelo conhecimento. Portanto, há uma tendência mundial à elevação da escolaridade básica diante dessa reunificação entre ciência, trabalho e cultura, a qual corresponde um novo padrão de divisão técnica na produção e de consumo, que aproxima as tarefas intelectuais e manuais (KUENZER, 2007).

Há que considerarmos, no entanto, que não só aqueles que vivem do trabalho, mas também a população em geral, sofrem a exigência de um aporte mais ampliado de conhecimentos e habilidades cognitivas superiores para que possam participar da vida social e produtiva, apresentando-se a escola como a única opção para a grande maioria construir essa relação com o conhecimento intelectual. A indicação do novo regime de acumulação é a substituição da formação especializada pela

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 243

formação geral, significando a disponibilização da educação básica para todos os trabalhadores, a continuidade é “uma formação profissional, de caráter mais abrangente do que especializado, a ser complementada ao longo das práticas laborais” (KUENZER, 2007, p.1159).

Dessa forma, a proposta de superação da dualidade estrutural se apresenta respaldada pela materialidade da acumulação flexível, tendo o sistema escolar como uma das superestruturas que pode integrar teoria e prática, assegurando a educação básica para todos. Porém, a distribuição desigual e diferenciada de educação é que rege a dualidade estrutural na acumulação flexível, como forma de adequação ao movimento de um mercado que inclui e exclui, dependendo das necessidades do regime de acumulação e por isso prescinde de elevação dos níveis de conhecimento e da capacidade de trabalhar intelectualmente (KUENZER 2005).

Na perspectiva de resgatar o trabalho de sua condição de trabalho alienado, cuja exacerbação se configurou no modo de produção capitalista, e, portanto, de enfrentar a superação da sua dualidade estrutural, Marx e os teóricos marxistas defendem a formação humana como formação politécnica.

Conforme Manacorda (1989), a proposta de educação de Marx baseia-se numa formação de homens total e omnilateralmente desenvolvidos, por meio da união entre trabalho produtivo, instrução intelectual, exercício físico e treinamento politécnico, numa unidade diversa entre instrução e trabalho, tal como a efetivada no capitalismo. Neste sentido, para melhor esclarecer a concepção marxiana, Manacorda cita Krupskaya, educadora russa que participou ativamente da construção de uma pedagogia socialista:

Em vez de instrução profissional, é preciso dizer instrução politécnica. O fim da escola é a formação não de limitados especialistas, mas de homens que sejam capazes de qualquer trabalho. Marx sublinha sempre e expressamente a necessidade de uma instrução politécnica, que é também de grande importância para a formação geral; o conceito de politécnico abrange a instrução quer no trabalho agrícola, quer no trabalho técnico e artístico-artesanal; o conhecimento prático dos diversos ramos serve também para o desenvolvimento físico onilateral e para a formação de capacidades de trabalho universais (apud MANACORDA, p. 314).

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Encontraremos, pois, reflexões sobre a formação politécnica nos clássicos do marxismo, Marx, Engels, Lênin; nos escritos de Gramsci, antes e durante o cárcere como também em escritos de autores brasileiros, educadores marxistas, como Dermeval Saviani e pesquisadores do GT - Trabalho e Educação da ANPEd, como: Lucília Regina de Souza Machado e Gaudêncio Frigotto, entre outros (RIBEIRO, 1996).

Nas construções desses autores, observamos que a escola unitária seria o lócus de partida da formação politécnica. Neste sentido, a escola unitária é entendida como a escola do trabalho que unifique, na pedagogia: éthos (atributos do ser), logos (racionalidade) e técnos (tecnologia); que estabeleça no plano metodológico e epistemológico a relação entre ciência, economia e cultura, num movimento permanente de reconstrução do mundo material e social (RAMOS, 2005).

Assim, a formação politécnica significa plena expansão do indivíduo humano dentro de um projeto de desenvolvimento de ampliação dos processos de socialização, não se restringindo ao imediatismo do mercado de trabalho, supondo o desenvolvimento de todas as potencialidades, apropriação e mobilização em benefício da sociedade. Levar os indivíduos a serem dirigentes de si próprios, como seres sociais e sujeitos coletivos (MACHADO, 1994).

Kuenzer (2005) analisa as implicações da incorporação de categorias clássicas da pedagogia socialista por parte das políticas públicas, como a formação integral com vistas à politecnia; a superação da fragmentação do trabalho em geral e do trabalho pedagógico e o fim da cisão entre teoria e prática, no discurso pedagógico toyotista. Assim, afirma:

[...] é importante que se destaque uma preocupação que tem estado presente em nossos estudos: a facilidade com que a pedagogia toyotista se apropria, sempre do ponto de vista do capital, de concepções que têm sido elaboradas no âmbito da pedagogia socialista, estabelecendo-se uma tal ambiguidade nos discursos e nas práticas que tem levado muitos a imaginar que, a partir das novas demandas do capital no regime de acumulação flexível, as políticas e propostas pedagógicas de fato passaram a contemplar os interesses dos que vivem do trabalho, do ponto de vista da democratização (KUENZER, 2005, p. 77).

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE 245

Nesse contexto, o estabelecimento de uma nova relação entre homem e conhecimento é anunciada, sem, contudo, significar um avanço democrático, pois como indicam vários autores, mesmo ocorrendo importantes mudanças na vida social, há um crescente aprofundamento das desigualdades e a manutenção das diferenças de classe, condições inerentes a uma relação entre capital e trabalho cada vez mais concentradora (KUENZER, 2007).

Com a incorporação da ciência e da tecnologia nos processos produtivos e sociais, mais se exige do trabalhador. Se, antes, a relação de trabalho demandava o envolvimento físico, as mãos e habilidades específicas que exigiam a coordenação fina ou acuidade visual, agora, a mudança da base rígida para a flexível exige o desenvolvimento de outras habilidades, cognitivas e comportamentais. Dentre elas, destacam-se a capacidade de “[...] análise, síntese, estabelecimento de relações, rapidez de respostas e criatividade diante de situações desconhecidas, comunicação clara e precisa, interpretação e uso de diferentes formas de linguagem, capacidade para trabalhar em grupo, gerenciar processos, eleger prioridades [...]” (KUENZER, 2005, p. 86). Implica, enfim, numa educação inicial e continuada mais rigorosa, exigindo novos comportamentos do trabalhador.

É importante anunciar como essas orientações começam a aparecer nas políticas educacionais no Brasil. Neste sentido, segundo Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005), a formação politécnica foi defendida nos espaços de debate para a elaboração da LDB de 1988, porém foi derrotada pelas forças conservadoras, representando a perpetuação da dualidade do sistema educacional brasileiro, expresso na separação entre a formação geral e a formação profissional no não atendimento dos anseios populares por uma escola integral de qualidade, como afirmam, além dos autores já citados, Kuenzer (1997); Saviani (1997) e Oliveira (2001).

Lembramos que toda a política implantada nos dois períodos de governo de Fernando Henrique Cardoso seguiria apoiada em projetos do Banco Mundial, que, dentre outras coisas, preconizava a implantação de um modelo gerencial de gestão. Dentre os mecanismos acionados podemos citar as tentativas de controle e uniformização dos conteúdos educacionais por meio do estabelecimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais PCNs; o estabelecimento de práticas avaliativas que consideravam apenas os resultados das aprendizagens, a exemplo do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e do “Provão”, para o ensino superior. Além do que, se procurou difundir nas escolas valores próprios do mercado, a exemplo da implantação de programas que estimularam a competitividade entre as escolas, e as tentativas de implantar práticas formativas em direta consonância com

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competências e habilidades exigidas conjunturalmente pelos setores produtivos (MOURA, 2007).

Nesse sentido, ganhou destaque a formação profissional, devido a sua importância estratégica na busca por qualificação e requalificação exigidas pelas transformações ocorridas no mundo do trabalho.

Assim, procurou-se adaptar o sistema educacional do país aos requerimentos da nova ordem capitalista mundial. Esta nova ordem vai se expressar, dentre outras manifestações, na globalização dos mercados, no modo de produção flexível e na adoção de elementos da doutrina neoliberal como orientadora da regulação social (HARVEY, 1992). Assim, se tenta direcionar a educação para uma concepção produtivista, cujo papel é o de desenvolver habilidades de conhecimento, de valores e atitudes de gestão da qualidade, definidas sob a ótica do mercado de trabalho, cujo objetivo é formar, em cada indivíduo, um banco ou reserva de competências que lhe assegure empregabilidade (FRIGOTTO, 1998).

Como já foi dito anteriormente por Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) as noções de “empregabilidade e “competências” serviram de importante aporte ideológico para as reformas voltadas para a educação profissional nesse período de consolidação do liberalismo econômico. Portanto, para Oliveira (2001), o conceito de competência, enquanto capacidade de buscar novos conhecimentos, tendo como princípio básico do processo educativo o “aprender a aprender”, vincula-se diretamente à ideia de empregabilidade. Na visão do autor, o conceito de competência adquire sentidos diferentes para a formação do trabalhador, a depender do Ministério ao qual está vinculada: o da educação ou o do trabalho. Para o primeiro a noção de competência está relacionada diretamente a uma atividade produtiva e, portanto, segue os propósitos de uma formação continuada. Para o Mistério do Trabalho parece ser mais explícita a relação com a ideia de empregabilidade “não apenas como capacidade de obter um emprego, mas, sobretudo, [do trabalhador] de se manter em um mercado de trabalho em constante mutação” (p. 196). Nesse sentido, o autor salienta que

O Ministério do Trabalho entende que a forma de atender não só aos requisitos do setor produtivo, mas também providenciar para que os indivíduos disponham de meios para se tornarem assalariados, será pelo desenvolvimento de habilidades básicas (ler, escrever, abstrair etc.); habilidades específicas (conhecimentos demandados pela reestruturação

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produtiva); habilidades de gestão (fundamentais para uma atividade autônoma). A implementação desses objetivos só poderá acontecer se houver uma profunda reestruturação das instituições ligadas ao ensino profissionalizante (escolas técnicas federais, Serviço Nacional da Indústria - Senai e Serviço Nacional do Comércio - Senac), que, a despeito da qualidade dos serviços prestados, não preenchem as novas exigências coetâneas à globalização econômica (OLIVEIRA, 2001, p. 197).

Em síntese, podemos, no entanto, identificar o princípio da contradição nas decisões e mudanças empreendidas. No campo legal há um movimento de busca da superação e ao mesmo tempo, uma manutenção da dicotomia entre a formação geral e a formação específica. Contudo, nos parece que a luta ainda vai ter que ser travada por longos anos, pois os problemas estruturais da sociedade, ou seja, a divisão social e técnica do trabalho é que impõe distintas formas e quantidades de educação para grupos separados de trabalhadores: os trabalhadores intelectuais e os trabalhadores manuais e esta separação não será resolvida através da escola.

Todavia, o movimento contraditório, vai se manifestando nas orientações das políticas, como exemplificam os programas implantados pelo atual Governo Federal: Escola de Fábrica, Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA) e o Inclusão de Jovens (PROJOVEM). Particularmente nesse último, as intenções proclamadas registram o objetivo de superação da dualidade da formação profissional. São as contradições e acomodações que portam essas intenções o alvo da nossa investigação.

No entanto, nossas análises não estão deixando de lado que os citados programas apresentam um caráter focal e contingencial. Nesse sentido, concordamos com Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005, p. 1104) quando eles advertem:

Ambos os programas (ProJovem e Escola de Fábrica), com diferenças na sua finalidade e organização, resgatam um preceito que pretendíamos ter superado desde a revogação da Lei n. 5.692/71, qual seja, tomar a qualificação profissional como política compensatória à ausência do direito de uma educação básica sólida e de qualidade. Esta deve ser garantida em qualquer idade, integrada à possibilidade de habilitação

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profissional mediante a qual se constituam identidades necessárias ao enfrentamento das relações de trabalho excludentes.

Implantação do ProJovem em Recife

O Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem) foi implantado em julho de 2005 na capital pernambucana, constituindo-se uma das quatro capitais que participaram do projeto piloto do Programa.

O ProJovem em Recife já matriculou 22.900 (vinte e dois mil e novecentos) e certificou com a conclusão do ensino fundamental e qualificação profissional inicial a 8.681 jovens, no período de 2005 a julho de 2008. A partir de setembro de 2008, dois pólos estão em funcionamento, na estrutura do ProJovem Urbano, com 32 núcleos/escolas municipais, nos quais estudam cerca de 6.400 jovens de 18 a 29 anos, dos 11.000 jovens inscritos.

Buscando fortalecer e ampliar as articulações intersetoriais e intrasetoriais, foi criada uma instância de gestão com o objetivo de fomentar as atividades a serem realizadas nas Estações da Juventude. Segundo o depoimento do gestor “G1” a seguir, é instituído um Comitê Intersetorial de Juventude, o qual integra ações dos diversos Programas Municipais, sendo composto pelas seguintes secretarias e órgãos municipais: diretorias, gerências e a autarquia Geraldão, da própria Secretaria de Educação, Esporte e Lazer; a Gerência da Juventude da Secretaria de Direitos Humanos e Segurança Cidadã; Secretaria de Orçamento Participativo e Gestão Cidadã, Secretaria de Saúde, Secretaria de Políticas da Assistência Social, Secretaria de Cultura e da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico.

O exame das informações nos permitiu observar uma tentativa de articulação das instâncias do governo municipal e, em particular no interior da própria Secretária de Educação, onde ficou instalada a coordenação municipal do ProJovem, constituindo-se como espaço de diálogo e negociação o Comitê Intersetorial, o que permitiu o estabelecimento de parcerias com outras secretarias e órgãos do governo municipal em função da operacionalização do Programa na cidade do Recife.

No entanto, as questões da gestão do Projeto de Inclusão de Jovens ficaram centralizadas no gabinete do gestor da educação municipal. Apesar da criação do Comitê Intersetorial, as decisões, de fato, foram tomadas no âmbito restrito entre o gabinete do dirigente da educação municipal e as coordenações gerais do ProJovem.

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Através da fala do gestor “G1” exposta abaixo, percebemos uma deferência à educação de jovens e adultos a partir da incorporação de profissionais ligados a essa modalidade de ensino. Embora haja essa perspectiva de articulação, fica ainda sob dúvida o reconhecimento do ProJovem como proposta pertencente à EJA.

No caso do Recife, alguns fatores influenciaram. Por exemplo, eu chamei muita gente que trabalhava com a EJA para trabalhar e assumir, junto comigo, o ProJovem. Porque, na verdade, mesmo não sendo EJA, é educação de jovens e adultos, por que você está dando escolaridade e dando profissionalização. Então, essas pessoas que trabalhavam com EJA tinham uma sensibilidade boa para isso. O coordenador pedagógico do ProJovem era gerente da EJA no município (GESTOR G1).

Esta referência do gestor “G1” às pessoas com experiência em EJA nos remete a afirmações de Haddad (2007), quando ele, refletindo sobre a institucionalidade da EJA, ressalta a forma precária como suas políticas são implementadas. Porém, por outro lado, o seu caráter popular, de proximidade com as comunidades, tem sido estratégia importante para o engajamento de educadores em programas e projetos, imprimindo uma qualidade à ação, o que nos faz pensar ser essa a razão da intenção da gestão municipal em cercar-se de profissionais com esse perfil e vivência, isto é, o perfil histórico da militância da educação de Jovens e Adultos no Brasil. Acrescenta Haddad (2007, p. 208):

Os serviços públicos municipais de atendimento da EJA acabam realizando-se, caso a caso, em função da dinâmica entre o compromisso político do poder público, a disponibilidade de recursos financeiros e a pressão social. Poderíamos afirmar, sem perigo de erro, que não há um sistema de atendimento que garanta a continuidade de estudos para os jovens e adultos, nem um padrão nacional, apesar da crescente institucionalização da EJA nas redes de ensino nos últimos anos.

Na sua implantação, em 2005 e no ano de 2006, a coordenação pedagógica geral do ProJovem era exercida pela mesma pessoa que estava no cargo de gerente de EJA. Porém, apenas essa acumulação de cargos não garantiu uma vinculação

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orgânica com as demais diretorias e gerências da SEEL. É o que apreendemos através do depoimento do gestor “G3” a seguir:

E aí, infelizmente a gente ainda lida com a burocracia, a morosidade do poder público que no caso de algumas pessoas, que também não são todas. Não é? Que um ofício chega e você não dá prosseguimento àquele ofício, então demora, fica engavetado, passa pela mão de fulano, passa pela mão de cicrano, pra poder sair e isso sendo dentro de um mesmo órgão, então isso é estressante. Você estar correndo atrás dessas coisas para que o negócio saia do papel. Quando tudo chega, quando tudo acontece, quando tudo acontece de forma sincronizada, quando a estrutura que se pensou, consegue ser colocada em prática... (GESTOR G3).

Uma medida tomada pela coordenação local do ProJovem em Recife, desde o seu início, foi a consolidação da organização dos núcleos no interior das Escolas da Rede Municipal de Ensino - RMER. Esta medida exigiu disposição para o diálogo por parte do dirigente da educação municipal, dos coordenadores gerais e de estação juventude e os gestores escolares a fim de estabelecerem alguns acordos necessários para o gerenciamento do Programa no espaço escolar, como afirma a fala do gestor “G1” a seguir:

Outra lição que a gente teve foi a de que é preciso dialogar e a gente não cansou de dialogar, fomos até a exaustão com os diretores dessas escolas: ouvindo as dificuldades, ouvindo os desafios, e se comprometendo com elas também. Pois se a gente estava dizendo: nós vamos ocupar sua escola à noite, nós vamos ajudar: vai ter vigilante à noite, nós vamos recuperar a iluminação, vai ter merendeira, tem que ter o pessoal da limpeza para deixar tudo limpinho para o pessoal da manhã. Veja, eu não posso chegar lá e exigir que ela se comprometa, sem me comprometer também. É um conjunto de coisas, é um trabalho de convencimento. Mas qual é o problema com o fato desses alunos sujarem ou, porventura, quebrarem algo na escola? A obrigação da secretaria de educação é recuperar

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essa escola. [...] no debate com as diretoras... Então, me deu uma alegria muito grande encontrar diretoras que eram das mais resistentes na primeira etapa do ProJovem, depois de a gente ter pensado em não colocar na segunda etapa o ProJovem lá e elas vinham dizer que queriam; que tinha transformado o bairro, que a relação da escola com o bairro mudou, então foi uma coisa que eu acho que melhorou também a escola onde eles estiveram (GESTOR G1).

Observamos que dos 32 núcleos do ProJovem, em funcionamento a partir de setembro de 2008, apenas um deles não funciona em Escolas da RMER, instalando-se na sede do Centro Público de Casa Amarela. Portanto, no turno noturno, concomitantemente ao desenvolvimento das aulas do ProJovem, cinco Escolas ofertam aulas do Ensino Fundamental2 , em vinte escolas funcionam turmas de EJA, e apenas em nove escolas o ProJovem tem primazia em seu turno de funcionamento.

Consideramos importante a decisão tomada pela gestão municipal em abrigar os núcleos do ProJovem nas Escolas da Rede de Ensino Municipal e, me parece que em função disso, favorece as possibilidades de ampliação dos recursos locais para investir na própria Rede, bem como a abertura de turmas em unidades educacionais que estavam desativadas no turno noturno.

Porém, essas considerações colocam, para a agenda da gestão municipal, a necessidade de uma profunda reforma da Educação de Jovens e Adultos (EJA), na perspectiva da construção de uma proposta pedagógica que se volte à educação de jovens que necessitam de um aporte mais ampliado de conhecimentos técnico-científicos e ao mesmo tempo se inserirem no mundo do trabalho, a qual pode se apoiar em elementos da própria experiência acumulada no ProJovem. É pertinente lembrar, na construção de uma política de EJA municipal, a inclusão da categoria trabalho como princípio educativo, tomado em sua dimensão ontocriativa, constituindo-se uma dimensão fundamental na formação dos jovens e adultos das camadas populares.

A implementação desta reforma já tem no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) a possibilidade de financiamento, inclusive através de

2 Ensino Fundamental: 3° e 4° Ciclos de Aprendizagem (5ª a 8ª séries).

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propostas que articulem a formação geral e a formação profissional na modalidade EJA como parte do ensino fundamental, através da formação inicial e continuada de trabalhadores já indicada nas proposições do Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), respaldando-se no Decreto n° 5.154, promulgado no ano de 2004, que regulamenta a educação profissional.

Contudo, essa construção não prescinde de um processo amplo de discussão entre os atores envolvidos, sendo salutar a formulação de uma proposta pedagógica respaldada em um aporte teórico-prático aprofundado e no estabelecimento de uma formação dos educadores objetivando a apropriação dos fundamentos e procedimentos da proposta, sob a garantia de um processo de planejamento que envolva as especificidades correspondentes ao público jovem que está galgando uma segunda chance de inserção à escola, diferentemente dos alunos do ensino regular na faixa etária prescrita dos 7 aos 14 anos.

A materialização da integração entre a qualificação profissional e a formação geral

A categoria “integração” no ProJovem tem expressão na forma de conceber, executar, monitorar e avaliar uma política de inclusão de um segmento juvenil brasileiro que vive em condições de risco e vulnerabilidade social, fração da classe trabalhadora do país. Nessa dimensão, a intenção proposta pelo governo central é o rompimento do ciclo de desigualdades e o restabelecimento da esperança da sociedade na perspectiva de futuro para o Brasil, na medida em que se estabelece um amplo Programa denominado de “ProJovem Integrado”, voltado para o desenvolvimento integral do jovem brasileiro, baseado em dois princípios fundamentais, a inclusão de todos e o direito universalmente garantido. Desse modo, no âmbito do ProJovem Urbano, a proposta correspondente trata-se de um currículo que articula a educação (ensino fundamental - EJA); o trabalho (qualificação profissional) e a cidadania (participação/protagonismo), conformando um Projeto Pedagógico Integrado (BRASIL, PPI, 2008).

É oportuno destacar que o nosso estudo tomou como investigação a relação entre trabalho e educação, com foco específico na feição assumida pela integração entre a formação geral e a formação profissional, a partir das prescrições do Projeto Pedagógico Integrado do ProJovem no chão da escola.

Torna-se relevante afirmar no início deste debate, que em face da nossa opção

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em realizarmos o estudo proposto à luz do materialismo-histórico, compreendemos que a superação da dualidade entre a formação geral e a formação profissional não será resolvida na escola enquanto não for superada a divisão técnica e social do trabalho, forma inerente ao modo de produção capitalista.

Assim, Kuenzer (2007, p. 1162), ao mesmo tempo em que nos alenta, nos coloca em posição de luta ao afirmar que

A dualidade só será superada se superada for à contradição entre a propriedade dos meios de produção e da força de trabalho. Embora, como em todo processo contraditório, haja espaço para processos emancipatórios, é preciso reafirmar que o estatuto da escola burguesa se constrói, historicamente, à luz das demandas de valorização do capital, para o que os processos de capacitação ou disciplinamento da força de trabalho são vitais.

Portanto, é considerando a existência desse espaço de contradição, onde são possíveis o estabelecimento de relações e processos emancipatórios, que estaremos trazendo as opiniões e concepções dos educadores, formadores e gestores como atores do ProJovem em Recife.

De acordo com dados extraídos dos questionários da nossa pesquisa há também uma ampla aprovação dos educadores vinculados ao ProJovem. Quase 100% dos professores consideram o Projeto Pedagógico do ProJovem inovador e este aspecto é relacionado à proposta pedagógica e curricular integrada do Programa.

Em fragmentos de falas do professor “02” e do gestor “E1” abaixo transcritas, podemos conferir relevância quanto à integração entre a qualificação profissional e a formação geral ao se referirem ao currículo integrado:

[...] tem toda uma proposta, tem todo um projeto criado, direcionando aquele aluno para que a formação básica exista, a integração entre a formação básica e o arco e a profissão ocupacional exista e o aluno, ele entende, que ele saindo do PROJOVEM ele já tem um ponto a mais, ele não tem só o ensino fundamental completado (PROFESSOR 02).

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[...] a proposta curricular do ProJovem, ela é bem peculiar, ela é bem diferenciada e inovadora, por conta dessas duas dimensões que você citou aí, que é a formação básica e a qualificação para o trabalho e ainda tem uma terceira que é a ação comunitária (GESTOR E1).

Não obstante a proposta curricular do ProJovem instituir um Projeto Pedagógico Integrado, a sua organização curricular propõe as disciplinas distintas e tempos e espaços próprios para as dimensões da Educação Básica e da Qualificação para o mundo do trabalho, o que no depoimento abaixo do professor “03”, ao identificar elementos que na sua visão integram essas duas dimensões, a partir da disciplina que leciona, percebemos uma abordagem de aprendizagem por conteúdo, dispersa e fragmentada.

Dentro de ciências humanas, como a gente trabalha em etapas: o jovem e o trabalho; o jovem e a cidadania resgatam muito esta questão do trabalho, do mundo do trabalho, a questão de postura mesmo, de transição, termos que eles desconheciam de trabalho. Até sistemas: sistemas civil e capitalista e; a gente explicava o que é o capitalismo, relação de trabalho, foco no trabalho por que eles não tinham ideia disso. Dentro de ciências humanas foram resgatadas essas questões. Vimos filmes... O interessante foi no sentido de ser um operário, mas ter seus direitos enquanto trabalhador e a questão do sindicato, foi muito interessante. No começo não, mas quando eles começaram a focar esta questão da qualificação, eles começaram a fazer a correlação: “E no meu trabalho?”, eles perguntavam em sala de aula. [...] Com a qualificação... Por que assim: dentro da qualificação eles são centrados por arcos, não é isso? Então, dentro da sala de aula enquanto professora de ciências humanas eu não separava essa questão do arco, inicialmente, eu falava do mundo do trabalho: o que é o mundo do trabalho para o jovem. [...] Então, aos poucos eles começaram a questionar a relação de trabalho, que eles desconheciam; oportunidades e até chegar ao arco; se realmente esse arco que eles estavam eles iam continuar; se interessavam

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ou se apenas se inscreveram nesse arco só por curiosidade e a partir daí começavam os ganchos, assim: a gente trazia textos referentes a cada arco e também a disciplina, por que dentro de história eu puxava (PROFESSOR 03).

Assim, essa visão dos professores centrada na seleção de conteúdos a partir do contexto dos arcos ocupacionais foi bastante reiterada nos depoimentos dos demais professores entrevistados, o que demonstra que os elementos indicadores do currículo integrado se resumem a fragmentos de conhecimentos descontextualizados, não conseguindo estabelecer uma relação histórica deste contexto articulando os saberes científicos e os saberes da prática social concreta, num movimento de construção do modo de produzir e de organizar a vida individual e coletiva (KUENZER, 2007), parecendo querer responder a uma necessidade imediata da realidade dos jovens na busca de qualificação para sua inserção no mundo do trabalho, por isso a relação centrada nos arcos ocupacionais.

A análise das implicações da proposta de integração entre a qualificação profissional e a formação geral na concepção e na prática pedagógica de professores nos revela, inicialmente, uma limitação na articulação entre os conhecimentos gerais e específicos ao se restringir em inter-relacionar conteúdos disciplinares com as atividades propostas para os arcos ocupacionais, restringindo a concepção do mundo do trabalho à aprendizagem de procedimentos práticos ligados a uma ocupação. Contudo, reconhecemos que a proposta busca avançar na construção de metodologias que considerem como ponto de partida as efetivas relações sociais e o mundo do trabalho (KUENZER, 2007), como podemos observar a partir da prática pedagógica peculiar de alguns professores, a presença de elementos que indicam a pretensão de estar relacionando o mundo do trabalho de forma mais ampliada, os conhecimentos científicos e a realidade dos jovens estudantes.

Já na FTG é extremamente fácil e o livro já ajuda muito, por que muito do que a gente vê no nosso conteúdo de qualificação na FTG, a gente percebe que é trabalhado com português, matemática e o aluno até percebe isso, a gente vai começar um assunto e eles dizem “há vimos isto em português, a professora estava falando sobre isso também”. A gente precisa de muitos conhecimentos deles, mas eles não conseguem perceber essas ligações do que a gente dá no arco com a educação básica,

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eu também não consigo perceber, uma ligação de conteúdo, de assuntos. No POP, também a gente consegue ter uma referência com o que são dados nas outras disciplinas, com o eixo estruturante, mas a mais efetiva é na FTG. Acho que é a parte mais rica da qualificação profissional, é a FTG. Dá pra você trabalhar realmente muito bem com o aluno, não tem aquela cobrança: olha, tem que dar esse conteúdo naquele dia, então a sua preocupação vai ser trabalhar aquilo naquele dia, por que você só vai estar com esse aluno uma semana depois. Então, eu acho a FTG a parte mais importante, mas bem trabalhada de toda a disciplina de qualificação profissional (PROFESSOR 14).

Fazendo uma crítica ao caráter inovador e à gestão verticalizada do Programa, a fala do professor “05”, registrada a seguir, defende a ampliação da carga horária das aulas de educação básica por semana, argumentando que há uma cobrança dos próprios alunos. O professor “08”, através do depoimento abaixo, também defende essa ampliação da carga horária das aulas disciplinares, trazendo como argumento que a maioria dos seus alunos apresenta uma defasagem significativa em relação aos conteúdos disciplinares e o que de fato se concretiza é a continuidade da atividade disciplinar no horário disponibilizado para a interdisciplinaridade/integração, ficando sem ser realizada a articulação entre a formação geral e a qualificação profissional.

É um projeto inovador, pra começo não é a gente sabe. [...] A meu ver, está bom, mas nós professores queremos nos sentir melhor, porque os alunos cobram da gente que eles tenham mais aulas durante a semana [...] Pronto, ele passa um dia na turma A, um dia na turma B, um dia na turma C. querendo mais tempo, então, pode melhorar, agora é uma coisa que já vem lá de cima, lógico a coordenação pedagógica tenta o máximo ver o que é que pode fazer, mas não pode mexer tanto (PROFESSOR 05).

Eu gostaria de focar a falta de base, é impressionante como os alunos do ProJovem... Eu já fiz esse levantamento, pelo

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menos do meu núcleo, das turmas que eu trabalho cerca de 60% a 70% dos alunos têm uma falta de conhecimento básico impressionante: leitura, escrita, preguiça de ler, não sabem tabuada, coisas básicas de multiplicação. Eu prefiro me limitar e dizer o seguinte: enquanto a gente não mudar, eu falo no ProJovem, enquanto não mudar essa história de botar só duas aulas de matemática por semana, é muito pouco, a gente tem que trabalhar mais, tem outras disciplinas, não que não seja importante, integração, interdisciplinaridade, juntando na semana são 08 aulas, enquanto na minha específica só tem duas, então é uma disparidade muito grande. Pra gente diminuir esse déficit no conhecimento básico, acho que deveria dá mais uma oportunidade, mais tempo de aula de matemática e português também. A prática de leitura é muito pouca, vamos dizer assim, eles falam do ProJovem na sala de aula mesmo. [...] por que não adianta a gente querer integrar o aluno, com o conhecimento que ele não tem. Você quer integrar o aluno com o conhecimento da matemática, e aí ele precisa daquele conhecimento de português, que ele vai ter que aprender, ou na aula de matemática ou fora daquele horário, e vai ser aonde? Na aula da integração, aí de todo jeito vai dá aula de matemática (PROFESSOR 08).

Verificamos que, para os sujeitos entrevistados, as dificuldades surgidas no desenvolvimento das suas práticas pedagógicas relacionam-se a um déficit dos fundamentos científico-tecnológicos na sua própria formação acadêmica como também na formação inicial e continuada que vem sendo realizada para os educadores no âmbito do ProJovem, mostrando-se insuficiente para garantir os conhecimentos fundamentais para a materialização da integração entre a formação geral e a formação profissional. Além da questão da formação dos educadores, a carga horária do curso, mesmo com a duração aumentada para dezoito meses, revela-se ineficaz diante da formação escolar em que se encontram os jovens das camadas populares, público alvo do ProJovem, sobretudo, com relação aos conhecimentos científicos, fruto da própria forma de organização do modo de acumulação capitalista excludente e classista, da qual decorre um sistema dual de ensino, um para a elite e outro para os pobres.

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A prioridade dos alunos em relação às aulas dos arcos ocupacionais foi recorrente nas falas dos sujeitos entrevistados, demonstrando a necessidade dos jovens em realizar uma formação profissional buscando sua inserção no mundo do trabalho e a garantia de uma renda para prover sua sobrevivência e, para uma grande parte dos jovens, de sua família. Contudo, segundo Kuenzer (2007), no cenário contemporâneo a qualificação profissional se reveste de uma profunda ideologização, no que aparecem inúmeras noções e conceitos, como competência, empregabilidade, empreendedorismo e daí as derivações atitudinais e comportamentais a eles atribuídos. É perversa a dimensão ideológica com que se reveste a qualificação profissional ou preparação para o mercado de trabalho. Face à inexistência de postos de trabalho, é no nível do discurso que mais se “vende” o ideário presente nas mudanças paradigmáticas do sistema produtivo.

Às vezes acontece de um aluno passar praticamente toda a semana sem assistir aula, mas quando tem dia de qualificação, ele aparece (PROFESSOR 11).

Encantam-se pelo arco e deixam a educação básica de lado. E outros fazem o inverso. Infelizmente, quando a gente percebeu, tentou fazer um trabalho de resgate desses alunos... Mas pelo que tava sendo oferecido, tinha alguns professores qualificadores que conseguem interagir bem com os alunos, eles conquistam, eles conseguem levar os alunos a participarem de todas as atividades (GESTOR E2).

Portanto, o sentido da prioridade dos jovens estudantes às aulas dos arcos ocupacionais, mesmo que se constitua em uma oportunidade nos moldes da formação restrita ao saber fazer, ao treinamento de uma tarefa voltada para determinada ocupação, é a promessa de um lugar no mundo do trabalho. Então, o ProJovem passa a representar a esperança de realização de uma qualificação profissional diante das poucas ou nenhuma oportunidade de profissionalização para esses jovens em face do histórico sistema dual da educação brasileiro, ficando a educação profissional sob o comando da iniciativa privada.

Desse modo, esta preferência dos jovens pela qualificação profissional e um distanciamento da formação geral demonstra, por outro lado, que mesmo considerando a diversidade existente de situações e posturas por parte dos jovens

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em relação ao trabalho, este aparece como uma mediação efetiva e simbólica na experimentação da condição juvenil (SPOSITO, 2007). Na opinião dos jovens entrevistados na pesquisa Perfil da Juventude Brasileira, no âmbito do Projeto Juventude, segundo Abramo e Branco (2005), o trabalho é também indicado em primeiro lugar entre os direitos mais importantes de cidadania, assim como entre os direitos que os jovens deveriam ter.

Esta prioridade pela qualificação profissional por parte dos jovens estudantes, como representação do ideário neoliberal de inclusão no mercado de trabalho, representa mais uma limitação para a materialização da proposta de integração entre a qualificação profissional e a formação geral, constituindo-se em um grande desafio a ser enfrentado no cotidiano da prática pedagógica dos educadores, além de indagar os próprios rumos da escola, diante de uma perspectiva de formação humana integral.

CONSIDERAÇÕES

Houve uma positiva receptividade da proposta do governo central a ser implantada sob coordenação da Secretaria de Educação, Esporte e Lazer, a qual buscou esforços junto aos diversos órgãos do governo municipal, mas a gestão do Programa ficou centralizada no gabinete da respectiva secretaria, apesar da criação de um comitê intersetorial, com representação de várias instâncias do governo local, não conseguindo subverter seu caráter temporário e homogêneo para se constituir em uma ação integrada à política municipal de educação, imprimindo uma identidade própria.

Verificamos que, embora o espaço de funcionamento dos Núcleos do ProJovem se efetivar em Escolas da Rede Municipal de Ensino, não ocorre uma vinculação orgânica entre os processos de gestão e pedagógico em ação no Programa e nas Escolas, estabelecendo uma forma de relação que mais parece constituir-se em duas redes paralelas. Dessa maneira, não observamos uma efetiva articulação com as modalidades EJA e o Ensino Fundamental (3° e 4° Ciclos de Aprendizagem), as quais são referências para a concepção do Projeto Pedagógico Integrado através do texto da própria LDB e do Decreto nº 5.154/04 que trata da Educação Profissional, além dos indicativos prescritos nos parâmetros curriculares nacionais. Ao contrário, detectamos uma diminuição no atendimento das modalidades de ensino citadas em favor da implantação das turmas do ProJovem.

Através da análise das entrevistas dos professores, formadores e gestores,

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apreendemos que a dicotomia entre a formação geral e a qualificação para o mundo do trabalho norteia a visão dos sujeitos entrevistados, bem como a dos jovens estudantes. Existe a compreensão, por parte dos educadores, da proposta de integração das três dimensões do Programa: educação básica, qualificação para o mundo do trabalho e ação comunitária/participação cidadã. Contudo, apesar desta dualidade não poder ser resolvida no âmbito da escola, constitui-se um desafio a desconstrução do discurso hegemônico no imaginário das classes populares do reconhecimento do seu direito a uma escola de qualidade para o seu desenvolvimento intelectual. “Permitir entender isso é a tarefa de um processo educativo emancipatório. A luta pelo direito ao trabalho dá-se no campo mais amplo da sociedade” (FRIGOTTO, 2005, p. 15).

É relevante mencionarmos que existe uma deferência importante com relação à presença da qualificação profissional no Projeto Pedagógico Integrado do ProJovem, principalmente em se tratando dos jovens estudantes, mas também nota-se a mesma visão entre os educadores, formadores e gestores, considerando que a qualificação profissional faz a diferença em relação às propostas vivenciadas no ensino regular, o que tem proporcionado certo distanciamento em relação à formação geral, deixando-a de lado. Dessa maneira, trata-se de uma cultura imediatista de inserção no mercado de trabalho, o que parece ser uma especificidade da formação para o trabalho, enquanto apelo também do próprio indivíduo e como uma questão de sobrevivência, além dos atrativos lançados pelo mercado. Portanto, “o fato de sempre termos defendido e ainda continuarmos a defender uma formação para o trabalho, não desvinculada da formação geral, coloca-nos, na atualidade, em uma posição de nadar contra a corrente” (OLIVEIRA, 2005, p. 12).

No que se refere à materialização do currículo integrado na sala de aula, percebemos que a concepção dos educadores, formadores e gestores estão marcadas pela visão conteudista da organização por disciplina, inclusive isolando a própria qualificação profissional como disciplina ao invés de uma das dimensões de uma totalidade, embora haja exemplos de práticas que tenham buscado realizar a integração entre a formação geral e a formação profissional, sendo identificadas, principalmente, com as aulas de Formação Técnica Geral – FTG e com o arco de esporte e lazer, observamos que ambos parecem conseguir manter uma maior articulação com os conteúdos e atividades organizados nas disciplinas da Educação Básica, acenando indicadores que revelam possibilidades de uma maior relação entre o aluno e o conhecimento, “que leva o pensamento a transitar continuamente entre o abstrato e o concreto, entre a forma e o conteúdo, entre o imediato e o

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mediato, entre o simples e o complexo, entre o que está dado e o que se anuncia” (KUENZER, 2007, p. 76) e tem como categoria que fundamenta esse processo o trabalho como práxis humana e como práxis produtiva.

Dessa forma, podemos concluir que a integração entre a formação geral e a formação profissional no âmbito do ProJovem em Recife ainda se apresenta fragmentada. Percebemos que a sua materialidade se respalda na competência, dedicação e compromisso dos profissionais envolvidos, o que implica uma prática educativa peculiar, correspondendo, de maneira geral, a propostas precárias de inclusão escolar que “irá legitimar a inclusão desses jovens em trabalhos precarizados, que desmascara a dualidade negada na acumulação flexível” (KUENZER, 2005, p. 88).

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