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1 Aias Entre A Distopia E A Realidade Analise Sobre O Simbolismo Presente Na Série The Handmaid’s Tale 1 Alusk Maciel SANTOS 2 Gilmar SANTANA 3 Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN Resumo No ano de 2018, uma série de manifestações sobre as causas feministas tomaram conta do cenário sociopolítico no Brasil, Argentina e Estados Unidos, utilizando principalmente a causa da descriminalização do aborto. Os protestos chamaram a atenção dos portais de notícia na internet devido ao fato de utilizarem a série americana 'The Handmaid's Tale', inspirado na obra homônima de Margaret Atwood, para embasar os movimentos em questão. Questionamentos sobre os aspectos que compõem a série, como o simbolismo e o discurso, necessitam serem interpretados, para melhor compreender como estes elementos são utilizados para prospectar os espaços midiáticos necessários na atualidade. O simbolismo revela-se como um componente fundamental para a realização de uma convergência diante da polifonia presente nas esferas sociais, utilizando a imagem da aia como um objeto que visa romper com as ideologias já existentes e impostas pela sociedade cristalizada. A compreensão dos resultados obtidos deram-se através de teorias que dialogam sobre ideologia e semiótica, na perspectiva dos autores Terry Eagleton (1997) E Roland Barthes (1984), respectivamente. Palavras-chave: Sociologia da Imagem; Sociologia da cultura; Ideologia; Semiótica; Feminismo Introdução Não é de hoje que a temática sobre o futuro e realidades alternativas, repletas de medo e incertezas, permeiam o campo da literatura. Autores como Yevgeny Zamyatin, George Orwell e Aldous Huxley detém obras consagradas que retratam entrave entre o homem e a sociedade caótica. Surge então o gênero da ‘distopia’, que se contrapõe ao idealismo proposto pela obra de Thomas More, A Utopia (1516), servido de campo para diversos outros escritores utilizarem suas criatividades para imaginarem um futuro (ou realidade alternativa) composto por medos e incertezas. 1 Trabalho apresentado no GT História da Mídia Visual integrante do XII Encontro Nacional de História da Mídia. 2 Mestrando do curso de Ciências Sociais pelo PPGCS/UFRN, email: [email protected] 3 Orie ntador do trabalho. Professor Doutor do PPGCS/UFRN, email: [email protected]

Aias Entre A Distopia E A Realidade Analise Sobre O

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Aias Entre A Distopia E A Realidade – Analise Sobre O Simbolismo

Presente Na Série The Handmaid’s Tale1

Alusk Maciel SANTOS2

Gilmar SANTANA3

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN

Resumo

No ano de 2018, uma série de manifestações sobre as causas feministas tomaram conta do

cenário sociopolítico no Brasil, Argentina e Estados Unidos, utilizando principalmente a

causa da descriminalização do aborto. Os protestos chamaram a atenção dos portais de

notícia na internet devido ao fato de utilizarem a série americana 'The Handmaid's Tale',

inspirado na obra homônima de Margaret Atwood, para embasar os movimentos em

questão. Questionamentos sobre os aspectos que compõem a série, como o simbolismo e o

discurso, necessitam serem interpretados, para melhor compreender como estes elementos

são utilizados para prospectar os espaços midiáticos necessários na atualidade. O

simbolismo revela-se como um componente fundamental para a realização de uma

convergência diante da polifonia presente nas esferas sociais, utilizando a imagem da aia

como um objeto que visa romper com as ideologias já existentes e impostas pela sociedade

cristalizada. A compreensão dos resultados obtidos deram-se através de teorias que

dialogam sobre ideologia e semiótica, na perspectiva dos autores Terry Eagleton (1997) E

Roland Barthes (1984), respectivamente.

Palavras-chave: Sociologia da Imagem; Sociologia da cultura; Ideologia; Semiótica;

Feminismo

Introdução

Não é de hoje que a temática sobre o futuro e realidades alternativas, repletas de

medo e incertezas, permeiam o campo da literatura. Autores como Yevgeny Zamyatin,

George Orwell e Aldous Huxley detém obras consagradas que retratam entrave entre o

homem e a sociedade caótica. Surge então o gênero da ‘distopia’, que se contrapõe ao

idealismo proposto pela obra de Thomas More, A Utopia (1516), servido de campo para

diversos outros escritores utilizarem suas criatividades para imaginarem um futuro (ou

realidade alternativa) composto por medos e incertezas.

1 Trabalho apresentado no GT História da Mídia Visual integrante do XII Encontro Nacional de História da Mídia.

2 Mestrando do curso de Ciências Sociais pelo PPGCS/UFRN, email: [email protected]

3 Orie

ntador do trabalho. Professor Doutor do PPGCS/UFRN, email: [email protected]

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A partir disso, as distopias adentraram novos espaços midiáticos, através das

adaptações das obras para o cinema, como no caso de ‘1984’ de Orwell, possuindo duas

adaptações, a primeira sendo de 1956, e a segunda no próprio ano de 1984. A produção de

filmes do gênero se acentua bastante a partir dos anos 80, contando com títulos como Mad

Max, Matrix, Robocop, O Exterminador do Futuro, Ghost In The Shell, dentre outros.

Recentemente, a partir da primeira década do século XXI, as adaptações dos livros

de Jogos Vorazes (Suzanne Collins), Divergente (Veronica Roth), Maze Runner (James

Dashner) reacenderam o interesse do público pelas distopias, principalmente pelo fato das

obras possuírem sequência de livros (as chamadas ‘sagas’ pelo público), o que implica

diretamente em uma produção cinematográfica maior, consequentemente gerando lucros

maiores às produtoras de filme4.

Diante disso, em 2017, a Hulu LLC estreou para os seus assinantes a adaptação do

romance literário ‘O Conto da Aia’ (The Handmaid’s Tale), obra escrita por Margaret

Atwood em 1985, tornando-se a segunda adaptação da obra – a primeira teve sua estreia nos

cinemas em fevereiro de 1990, pelo diretor Harold Pinter. A nova roupagem da obra chega

às telas através do formato de série televisiva, contando atualmente com duas temporadas5.

A série vem conquistando um grande público e tornando-se assunto devido a

intertextualidade presente, convergindo com o atual momento social vivenciado ao redor do

globo – como a constante ameaça de governos fascistas, crises políticas, divergências entre

nações, imigrações em massa (RAMOS, 1996). A polifonia presente no discurso da obra se

encarrega de causar uma ruptura no expectador, trazendo uma série de reflexões à tona

sobre a decorrência de fatos que se assemelham ao cenário distópico descrito.

A partir disso, a trama está conquistando espaço, e tornando-se aclamada6, por

retratar temas polêmicos e bastante atuais, como a luta feminista diante de uma sociedade

machista, a retomada de costumes de conservadoristas, além de críticas a métodos de

4 As sequências se tornaram uma tática mercadológica bastante promissora para a indústria cinematográfica,

efeito que ficou mais evidente após a saga Harry Potter, que contou com sete livros, oito filmes, e um

altíssimo retorno lucrativo à Warner Bros (que detém os direitos e produção da série). 5 Devido ao sucesso da série, uma nova temporada está prevista para meados de 2019. A estrutura da produção com

episódio de 55 minutos de duração em média, possuindo atualmente (2019) um total de 23 episódios, dez pertencentes a

primeira temporada, e os treze restantes a segunda. 6 Ganhadora de oito Emmy Awards no ano de 2018, incluindo os prêmios de ‘Melhor Série Dramática’, ‘Melhor Atriz em

Série Dramática’, ‘Melhor Direção em Série Dramática’ e outros. Em 2018, conquistou dois Globos de Ouro, sendo um

deles por ‘Melhor Série Dramática’ também.

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governança de extrema direita. O contexto abordado dialoga diretamente com o atual

momento vivenciado por nações como os EUA, Rússia e Brasil, com representantes e suas

formas de governos assumidamente conservadoras.

Nesse contexto, em meados de 2018, ocorreram uma série de protestos em países

como EUA, Argentina e Brasil, a respeito da legalização do aborto, bem como os direitos

das mulheres sobre os seus corpos. Os atos de protesto ganharam as mídias ao redor do

mundo, principalmente pelo uso da caracterização da personagem principal, como uma aia

(um capuz vermelho e uma touca branca), como forma simbólica de relacionar a repressão

vivenciada na série, com a realidade confrontada pelas protestantes.

Diante disso, o intuito deste estudo é analisar os elementos presentes na série,

fazendo-se necessário uma maior imersão nesta realidade distópica, buscando elementos

carregados de simbolismos ricos em significações. Além disso compreender como se

constrói a interação entre expectador e a obra, através das metodologias pautadas pelo viés

ideológico (EAGLETON, 1997), e pela semiótica (BARTHES, 1984), para fornecer uma

análise ética-social visando a união entre realidade e a distopia.

Contextualizando a série

O desenvolvimento da obra discorre a partir da narrativa em primeira pessoa da

personagem principal: uma mulher, pertencente a uma das diversas castas sociais femininas,

tendo como principal função a concepção de bebês para o povoamento da nação. A

protagonista recebe o nome Offred somente dentro da nova conjuntura social, no intuito de

indicar sua posse a uma família (no papel patriarcal do homem7).

As mulheres, dentro do contexto retratado, deixam de ocupar espaço na sociedade

ao lado dos homens, passando a lhes servir unicamente. Além disso, são segregadas em

castas hierárquicas e designadoras do papel que a mulher desempenhará na sociedade,

como: Marthas (serviçais da casa), Aias (mulheres reprodutoras), Tias (responsáveis por

treinar as Aias), Esposas (servir ao marido) e as trabalhadoras das colônias (refugiadas em

campos de concentração).

7 Neste caso, indica o pertencimento a família do comandante Fred Waterford, sendo literalmente a expressão ‘Of Fred’,

ou ‘Do Fred’ (em português).

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Todo este modelo de sociedade misógina e patriarcal entrou em vigor após um golpe

político, onde um grupo fundamentalista de reconstrução cristã, denominado ‘Filhos de

Jacó’, atacaram a Casa Branca Americana com a finalidade de restaurar a ordem perdida no

país, fundando a República de Gilead – referenciando uma região montanhosa presente na

Bíblia, que significa “monte de testemunho”, no livro de Gênesis (31:25) e Números (32:1).

O movimento conservador ganhou força a partir do caos que se encontrava a

situação no país, como: a poluição, devido à grande quantidade de materiais radioativos

presentes no ambiente; considerável diminuição de natalidade, com taxas quase nulas,

devido a problemas de fertilidade nas mulheres; guerras e conflitos de interesses políticos.

Diante destes aspectos, é importante citar, além do regime ditatorial, a distorção da

ética social, justificada através do resgate de antigos valores e reordenamento da sociedade.

Um exemplo disso é a realização de uma espécie de “rito”, onde as Aias são obrigadas a ter

relações sexuais com seus Comandantes, respaldados por uma passagem bíblica do livro de

Gênesis:

“Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a Jacó:

Dá-me filhos, se não morro. E ela disse: Eis aqui minha serva Bila, coabita com ela,

para que dê à luz sobre meus joelhos, e eu assim receba filhos por ela” (Gênesis

30:1:3).

Esta situação é visivelmente um ato de estupro, já que as aias são forçadas a ter

relações sexuais e conceber filhos contra sua vontade, porém devido ao fator bíblico

adicionado a situação, o ethos social acaba sendo alterado para um “ato de fé”. Além disso,

a ciência torna-se, de certa forma, abolida dentro de Gilead, não havendo mais

possibilidade da realização de inseminação artificial. Este rito acaba consolidando-se como

um dos principais pilares dentro da sociedade, onde a preservação de novas vidas torna-se a

premissa mais importante.

Contudo, a obra literária e a série acabam se divergindo, devido ao conteúdo do

livro ser totalmente abordado dentro da primeira temporada. Desta forma, a produção

subsequente tornam-se um conteúdo autoral, elaborado pela equipe de criação, que inclui a

própria Margaret Atwood como consultora criativa.

A partir deste fato, os novos elementos que vão surgindo, ao decorrer da trama,

fazem diálogo diretamente com a atualidade vivenciada no mundo – contando com atore

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sociais como Donald Trump, Vladimir Putin, Jair Bolsonaro e demais figuras políticas ditas

de ultradireita conservadorista. O estreitamento entre distopia e realidade ganhou destaque

no ano de 2018, quando protestos que referenciaram a obra de Margaret Atwood

repercutiram na mídia. A seguir serão apresentados os principais fatos e movimentos

políticos no Brasil e no mundo, embasados pelo discurso da série.

Discutindo os fatos

Em 03 de agosto de 2018, um grupo de mulheres caracterizadas como as aias da

série The Handmaid’s Tale, iniciaram protestos em frente ao prédio do Supremo Tribunal

Federal (STF), em Brasília8 (ver figura 1). O movimento demonstrou posicionamento a

respeito da audiência pública que discutiu a legalização da interrupção da gravidez até a 12ª

semana de gestação, ou seja, a legalização do aborto no país – o que atualmente é

caracterizado como crime, passível de detenção por até três anos.

Figura 1 – Mulheres em ato político em frente ao STF

Fonte: https://goo.gl/oiD9W5

Na Argentina, o ato de protesto antecedeu o movimento no Brasil, tendo sido

realizado em 25 de junho de 2018, em frente ao Congresso, em Buenos Aires9. O que estava

sendo reivindicado era o mesmo direito, a descriminalização do aborto até a 14ª semana de

gestação. A proposta havia sido aprovada na Câmara, porém foi reprovada no Senado. A

8https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2018/08/03/mulheres-usam-roupas-de-o-conto-da-aia-em-ato-pela-

descriminalizacao-do-aborto-em-brasilia.ghtml 9 https://veja.abril.com.br/mundo/argentinas-pro-aborto-protestam-com-trajes-de-o-conto-da-aia/

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autora da obra original, Margaret Atwood, enviou uma mensagem de apoio as mulheres

manifestantes, através de sua conta pessoal do microblog Twitter (ver figura 2).

Figura 2 – Mensagem de Atwood no Twitter

Fonte: https://goo.gl/GbYkwi

Outro protesto semelhante aconteceu nos Estados Unidos no dia 04 de setembro de

2018, onde outro grupo de mulheres vestidas como aias, adentraram ao senado americano

para demostrar seu posicionamento contra a indicação de Brett Kavanaugh para assumir a

suprema corte10. As mulheres clamavam pela democracia, temendo a ruptura perante a

ameaça conservadora, bem como a extinção de leis que garantem maior liberdade às

mulheres.

Todos os três atos de protestos foram extremamente semelhantes, a caracterização, o

silêncio e as cabeças baixas, seguindo exatamente a postura de uma aia na série. Os

interesses reivindicados eram praticamente os mesmos, o direito de a mulher decidir o que é

melhor para si e para o seu corpo – no caso da Argentina e do Brasil, a descriminalização

do aborto, enquanto nos EUA, o medo da perda de direitos, que incluem o funcionamento

de clínicas de aborto legalizadas no país.

No Brasil, ainda temos um cenário bastante caótico para as mulheres, onde apenas

em janeiro de 2019, tiveram mais de 100 casos registrados de feminicídio em todo o país11,

e segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil apresenta a quinta maior taxa de

feminicídios dentre os 84 países pesquisados. A situação mostra-se mais grave através dos

10 https://veja.abril.com.br/mundo/em-caos-senadores-sabatinam-indicado-de-trump-para-a-suprema-corte/ 11 https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-02-04/feminicidio-brasil-janeiro.html

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números referentes as situações de violência doméstica, sendo em 2017, uma média de 530

mulheres que acionam a Lei Maria da Penha por dia no país12.

Neste sentido, os dados dispostos acima servem para embasar o movimento

feminista, diante de uma realidade embaraçosa e desafiadora para as mulheres – além de

perseverarem na conquista por direitos iguais, devem lutar pela própria sobrevivência. É

exatamente neste ponto em que a realidade e a obra de Atwood se assemelham e geram

diálogo entre si.

A partir disso, podemos refletir mais sobre os questionamentos e dados investigados

até então a partir da conhecida citação de Oscar Wilde: “a vida imita a arte muito mais do

que a arte imita a vida”, visando a compreensão da produção de sentindo, significação,

simbolismo e ideologia presentes em The Handmaid’s Tale que serão apresentados a seguir.

Discussão

O ser humano destaca-se dos demais seres, por possuir além das características de

estimulo-resposta baseadas nos sentidos, merknetz e wirknetz13 (de maneira interligada, o

que geram um funktionskreis, ou seja, um ciclo funcional), um outro sistema denominado

por Ernest Cassirer como ‘sistema simbólico’, devido a capacidade de simbolizar a nossa

realidade, e fornecer uma percepção mais apurada do meio no qual estamos inseridos

(CASSIRER, 1994).

Diante disso, a cognição humana deriva de sua capacidade de simbolizar o ambiente

a sua volta, sem isto estaríamos condicionados a nos comportar de maneira instintiva, assim

como os demais animais, fadados a uma realidade meramente biológica, como ilustrado

pelo mito da Caverna de Platão:

Sem o simbolismo, a vida do homem seria como a dos prisioneiros na caverna do

famoso símile de Platão. A vida do homem ficaria confinada aos limites de suas

necessidades biológicas e seus interesses práticos; não teria acesso ao "mundo

ideal" que lhe é aberto em diferentes aspectos pela religião, pela arte, pela filosofia

e pela Ciência. (CASSIRER, 1994, p. 74).

12 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/08/brasil-registra-606-casos-de-violencia-domestica-e-164-estupros-por-

dia.shtml 13 “De acordo com sua estrutura anatômica, ele possui um certo Merknetz e um certo Wirknetz – um sistema receptor e um

sistema efetuador” (CASSIRER, 1994).

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De acordo com Cassirer, o ser humano possui um aparato fisiológico necessário para

desenvolver as atividades psíquicas necessárias para uma ‘produção de sentido’, sendo esta

uma característica particular do ser humano. Isto representa um universo de possibilidades

que implicam nas faculdades cientificas desenvolvidas pelo homem, na forma de entender a

si mesmo, a natureza e a sociedade na qual construímos e habitamos.

Desta forma, cada ser humano é único, possuindo uma espécie de “universo

individual próprio”, determinado pelas experiências vivenciadas por cada indivíduo, o que

nos define como ‘seres monadários’ (únicos). Nessa ótica, o simbolismo desenvolvido e

interpretado pelos humanos, deixa de ser meramente simbólico, adentrando o espaço físico,

através da linguagem, mito, arte e religião (CASSIRER, 1994).

A partir disso, podemos correlacionar o pensamento de Cassirer sobre os sentidos

humanos, com os estudos sobre a ‘câmera obscura’ desenvolvidos por Karl Marx,

descrevendo a mente humana como uma câmera, que registra passivamente os objetos do

mundo externo, de modo funcionalmente igual ao de uma câmera fotográfica, os registros

não podem mentir. A única maneira de criar uma distorção é através da manipulação dos

objetos (EAGLETON, 1997).

Por esta perspectiva, o estudo de Karl Marx, complementa o pensamento

desenvolvido por Platão sobre o mito da caverna, em que o ser humano possui capacidade

cognitiva para compreensão da exterioridade a sua volta, não significando que haja uma

uniformidade na produção de sentido. Cada pessoa interage com o meio à sua forma, o que

acaba fazendo com que exista um viés ideológico presente nas interações sociais –

entendendo ideologia em Marx, como uma espécie de véu que impede de enxergar a

realidade social plenamente (EAGLETON, 1997, p85).

Este caráter está relacionado com uma visão de um mundo através das ideologias

presentes, através do que Marx denomina de superestrutura (EAGLETON, 1997) – sendo

uma espécie de estratégia dos pensamentos de grupos dominantes para a manutenção do seu

poder, através da estrutura presente na sociedade como política, leis, Estado, religião, artes,

meios de comunicação, etc. Isso nos leva a pensar a forma que ocorre a percepção/recepção

das informações que estamos constantemente recebendo do ambiente (externo a nossa

mente).

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Diante desses conceitos, pode-se ainda acrescentar a perspectiva do semioticista

Roland Barthes, na qual dialoga, a partir dos pensamentos sobre a obra ‘A câmara clara’,

sobre o sentido que um elemento fotográfico, produz numa pessoa, no qual Barthes

denomina como studium e o punctum – sendo este último o que irá mais causar maior

reflexão e interagir diferentemente com cada pessoa, devido a experiência única de vida de

cada um (BARTHES, 1984).

O segundo elemento vem quebrar (ou escandir) o studium. Dessa vez, não sou eu

quem vou buscá-lo (como invisto com minha consciência soberana o campo do

studium), é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. Em

latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por

um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que

me remete também à idéia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato,

como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas, com esses pontos sensíveis;

essas marcas, essas feridas são precisamente pontos. (BARTHES, 1984, p. 46)

A dualidade composta pelos elemento descritos por Barthes, corresponde as formas

de objetividade e subjetividade entre o indivíduo e a fotografia. O studium é a contemplação

da imagem guiado pela consciência, de modo que a leitura da imagem contempla

conhecimentos inerentes a sociedade e cotidiano. Porém o punctum infere no expectador

algo que chama sua atenção e leva produção de sentido de uma maneira particular, ou seja,

na sua subjetividade (BARTHES, 1984).

Diante desses fatos, a série The Handmaid’s Tale, busca causar justamente o efeito

do punctum, gerando uma inquietação/desconforto a partir das cenas de conteúdo explicito,

que mostram um pouco da perversidade humana dentro da distopia em questão. Isso rompe

justamente com a visão ideológica concebida por Marx, como a retirada do véu para

enxergar a realidade agressiva na qual o mundo está vivenciando atualmente.

Neste sentido, a obra buscou criar uma ponte entre a subjetividade de cada

expectador com o contexto real, através de elementos utilizados na construção do ethos da

série, sendo o recorrente uso de flashback na segunda temporada um espaço ideal para gerar

reflexões no público, a medida que muitos dos contextos abordados poderiam estar

facilmente sendo exibidos nos noticiários – como protestos pela reinvindicação dos direitos

das mulheres dentro da distopia, que passaram a ser privadas de exercer atividades dentro

da sociedade, sendo marginalizadas, assim como nos primórdios da história, em detrimento

da sociedade patriarcal que crescia fortemente antes do golpe que fundou Gilead.

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Podemos observar os aspectos da dualidade entre o punctum e studium,

desenvolvidos por Barthes, sendo trabalhados a todo instante na série. O studium dialoga

com os aspectos recorrentes da nossa sociedade, como o fato do aborto ainda ser um ato

criminoso, ou como a crescente ameaça do fascismo se alastrando pelos países ao redor do

mundo. Já o punctum, compreende aspectos dentro da série pertinentes com a

individualidade monadária de cada pessoa, como uma mulher que se choca ao assistir a

cena do rito, onde há o estupro das aia, aflorando diversos sentimentos a partir de uma

empatia.

Além disso, a obra de Atwood traz elementos bastante marcantes, auxiliando ainda

mais na construção do simbolismo, como a caracterização das aia (túnica de tecido grosso

na cor vermelho sangue, presença de luvas da mesma cor, touca e chapéu branco que

remetem a uma estética camponesa de tempos medievais), bem como sua postura corporal

diante da sociedade opressora. A utilização da cor vermelha equivale a uma leitura

conotativa (BARTHES, 2006), contendo demais sentidos (entrelinhas), como o próprio

sangue, entraves políticos disputados ao longo da história (Inconfidência Mineira,

Construtivismo Russo, etc.), ou uma postura transgressora.

Além disso, as próprias passagens bíblicas, selecionadas dos livros pertencentes ao

antigo testamento, retratadas de uma maneira literal, ou seja, secularizada perante o atual

contexto social, nos confronta com visões acerca de uma ética muito peculiar presente na

Bíblia. Isso alimenta diálogos presentes na nossa sociedade sobre questões onde a religião

intervém de maneira a conter avanços ditos como “profanos”, indignos perante a proposta

divina.

Diante dos fatos abordados acima, podemos entendemos a série The Handmaid’s

Tale como um ponto de partida, servindo de embasamento para atos de protesto em três

países distintos, ganhando espaço na mídia através dos portais de notícia Veja, Ig, G1, BBC

Brasil e Folha de São Paulo. Isso nos mostra uma construção fortemente interligada entre

realidade e série, onde uma auxilia os passos da outra.

Nesse sentido, é possível concluir que o momento escolhido para a estreia da série

veio bastante a calhar por diversos conflitos políticos em âmbito global, indo além da

vitória de Donald Trump nos EUA em 2016, para os cenários políticos do Brasil e

Argentina (2018), bem como o constante crescimento do já antigo atrito entre Estados

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Unidos e Rússia, através da disputa política vivenciada na Venezuela com o polêmico

governo de Nicolás Maduro14.

Um recente discussão envolvendo a série e seu simbolismo aconteceu no carnaval

brasileiro de 2019, onde homens e mulheres fantasiaram-se de acordo com a vestimenta das

aias, para curtir a festividade. Criou-se então uma polêmica sobre diversas questões, todas

com o intuito de questionar a utilização do simbolismo da série, se o ato seria um

desmerecimento à mensagem transmitida pela série (ver figura 3).

Figura 3 – Matéria questionando o uso da “fantasia de Aia” no carnaval

Fonte: https://bit.ly/2K9osPZ

Mesmo assim, independentemente do real intuito por trás da utilização da

vestimenta da aia (apenas uma fantasia, ou oportunidade de protesto), se desmerece a causa

ou não, o que importa é a discussão, entrelaçada à série e levada ao público. Nesse sentido,

geraram-se debates visando unir a perspectiva do enredo abordado com a atual conjuntura

sócio-política do país. Um exemplo disso é o surgimento de matérias retratando a série o

seu discurso em sites de notícias e entretenimento (ver figura 4).

14 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/02/russia-afirma-que-ajuda-dos-eua-a-venezuela-e-pretexto-para-acao-

militar.shtml

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Figura 4 – Matéria debatendo o contexto entre a série e a realidade

Fonte: https://bit.ly/2OLZcOa

Diante disso, é importante compreender os elementos presentes na série que

corroboram uma imagem simbólica para seus expectadores. Nos atos de protesto

anteriormente citados, o elemento comum aos três é justamente a vestimenta das aias.

Devemos entender o contexto desta casta pertencente a sociedade distópica como o que

Giorgio Agamben (2010) definiu como homo sacer15 em sua obra que aborda o contexto

vivenciado pelos refugiados judeus nos campos de concentração de Auschwitz no período

do regime nazista alemão.

Deste modo, devemos dar um maior enfoque ao elemento corpóreo presente na série

(ver figura 5), como todo um contexto de informações consegue se transmitido por

vestimentas e gestos impressos na série? De acordo com Lucia Santaella (2008), o corpo é

um sintoma da cultura, justamente por ser um ‘corpo simbólico’, pela sua capacidade de ser

codificado em linguagem, e posteriormente descodificado, interpretado e recodificado pelo

expectador.

15 “Existem vidas humanas que perdem a tal ponto a qualidade de bem jurídico, que a sua continuidade, tanto o portador

da vida como a sociedade, perdeu permanentemente todo o valor” (AGAMBEN, 2010, p. 133).

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Figura 5 – Matéria abordando elementos presentes na série e realidade

Fonte: https://bit.ly/2KkT7bG

Conclusão

A série The Handmaid’s Tale vem desempenhando um importante papel em nossa

sociedade ultimamente, trazendo questões sobre visão política e ideológica para serem

debatidas juntamente ao seu público expectador, principalmente com a disposição de

aparatos tecnológicos e mídias sociais fortemente atuantes na construção de um debate

sobre os discursos presente na série.

Isto resulta numa produção de sentido a partir da subjetividade existente em cada

receptor, podendo haver dos mais diversos sentimentos atrelados a recepção da mensagem

apresentada (como no caso da empatia, anteriormente já citado). É neste ponto em que toda

a série consegue ser condensada, por mais polifonias de discursos que estejam presentes,

unicamente no elemento estético da Offred, como um símbolo transgressor, de luta e

resistência perante uma sociedade injusta, que não respeita a sua individualidade.

Neste sentido, os punctum da série volta para a representatividade da personagem

principal, como vemos, é ela quem irá desencadear as produções de sentido ulteriores. O

choque impresso visa romper com a ideologia existente, principalmente do governo norte-

americano, já que a produção da obra é americana. Sua aplicabilidade mesmo assim

consegue perpassar por demais países e continentes, justamente por conta da obra literária

que a originou ter bebido de diversas fontes de informação, um exemplo disso foram:

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14

Código de Hamurabi, Revolução Iraniana de 1978, Segunda Guerra Mundial, Nazismo16 e

outros.

Esses aspectos que compõe a série mostram-se eficazes no quesito de ceder espaço

para discussões necessárias para a atualidade, os simbolismo servem como uma

convergência diante de uma polifonia presente nas esferas sociais, utilizando a imagem da

aia como um elemento que visa romper as ideologias já existentes e impostas pela

sociedade cristalizada.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora

UFMG, 2010.

BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Editora Nova

Fronteira, 1984.

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